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D IREITO À E DUCAÇÃO Aspectos Constitucionais coordenação Nina Beatriz Stocco Ranieri organização Sabine Righetti

Direito à educação: aspectos constitucionais; 2009unesdoc.unesco.org/images/0018/001876/187688por.pdf · 7 9 Apresentação Nina Beatriz Stocco Ranieri I. OS ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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DIREITO À EDUCAÇÃO

Aspectos Constitucionais

coordenação

Nina Beatriz Stocco Ranieri

organização

Sabine Righetti

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DIREITO À EDUCAÇÃO

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EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Diretor-p residente Plinio Martins Filho

COMISSÃO EDITORIAL

Presidente José Mindlin

Vice-presidente Carlos Alberto Barbosa Dantas

Adolpho José Melfi

Benjamin Abdala Júnior

Maria Arminda do Nascimento Arruda

Nélio Marco Vincenzo Bizzo

Ricardo Toledo Silva

Diretora Editorial Silvana Biral

Editoras-assistentes Marilena Vizentin

Carla Fernanda Fontana

Reitora Suely Vilela

Vice-reitor Franco Maria Lajolo

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

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Direitos em reservados à

Edusp – Editora da Universidade de São Paulo

Av. Prof. Luciano Gualberto, Travessa J, 374

6o andar – Ed. da Antiga Reitoria – Cidade Universitária

05508-010 – São Paulo – SP – Brasil

Divisão Comercial: Tel. (11) 3091-4008 / 3091-4150

SAC (11) 3091-2911 – Fax (11) 3091-4151

www.edusp.com.br – e-mail: [email protected]

Printed in Brazil 2009

Foi feito o depósito legal

Copyright © 2009 by autores

Ficha catalográfica elaborada pelo Departamento Técnico do Sistema Integrado de Bibliotecas da USP

Ranieri, Nina.Direito à Educação / coordenação Nina Beatriz Stocco Ranieri;

organização Sabine Righetti. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009.

288 p.; 16 x 23 cm

Inclui bibliografia.Apêndice: Os autores.ISBN 978-85-314-1147-2

1. Direito à educação (Brasil). 2. Educação. I. Righetti, Sabine. II. Título.

CDD- 379.81

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7

9 Apresentação

Nina Beatriz Stocco Ranieri

I. OS ASPECTOS CONSTITUCIONAIS DO DIREITO À EDUCAÇÃO

19 A Educação. Direito Fundamental

Monica Herman S. Caggiano

39 Os Estados e o Direito à Educação na Constituição de 1988:

Comentários Acerca da Jurisprudência do Supremo

Tribunal Federal

Nina Beatriz Stocco Ranieri

61 O Poder Judiciário e o Direito à Educação

Eduardo Pannunzio

89 O Ensino Religioso nas Escolas Públicas Brasileiras:

Do Direito à Liberdade de Crença e Culto ao Direito à

Prestação Estatal Positiva

Salomão Barros Ximenes

II. OS SISTEMAS DE ENSINO E O MINISTÉRIO PÚBLICO

SUMÁRIO

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SUMÁRIO

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113 As Instituições de Educação Superior e as Autoridades Estatais:

Autonomia e Controle

Eduardo Martines Júnior

123 Atuação do Ministério Público para a Proteção do Direito

à Educação Básica

Adriana A. Dragone Silveira

III. O DIREITO À QUALIDADE NA EDUCAÇÃO

145 Direito à Educação de Qualidade na Perspectiva

Neoconstitucionalista

Erik Saddi Arnesen

167 Padrão de Qualidade do Ensino

Marcelo Gasque Furtado

IV. REFLEXÕES SOBRE O ENSINO PRIVADO

185 A Natureza Jurídica do Serviço Prestado pelas Instituições

Privadas de Ensino: Controvérsias sobre o Tema

Luiz Gustavo Bambini de Assis

203 A Expansão do Ensino Superior no Brasil: A Opção pelo Privado

Fernanda Montenegro de Menezes

219 A Exploração da Atividade Educacional pela Iniciativa Privada

e seus Limites Legais

Luiz Tropardi Filho

V. EDUCAÇÃO E INCLUSÃO

241 A Educação Indígena e o Papel do Estado

Sabine Righetti

257 Ações Afirmativas e Cotas no Ensino Superior:

Uma Reflexão sobre o Debate Recente

Camila Magalhães, Fernanda Montenegro Menezes e Sabine Righetti

285 Sobre os Autores

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9

Apresentação

Nina Beatriz Stocco Ranieri

Em 2006 foi criada na Faculdade de Direito da Universidade de São

Paulo a primeira Cátedra Unesco de Direito à Educação do país, com o

objetivo de promover estudos e pesquisas na área do direito à educação

no sistema jurídico brasileiro e no direito internacional.

O direito à educação está definido como parte indissociável da mis-

são da Unesco, a instituição da Organização das Nações Unidas para

a Educação, Ciência e Cultura. Expressa a crença, defendida por seus

idealizadores, da necessidade de se criarem oportunidades iguais e ver-

dadeiras de educação para todos. A Cátedra tem, além disso, o desejo de

tornar realidade o ideal de igualdade de oportunidades educacionais, tal

como apontado pelo Fórum Mundial da Educação, realizado em Dakar

em 2000.

Como se sabe, o direito à educação ocupa papel central no âmbito dos

direitos humanos. É indispensável ao desenvolvimento e ao exercício dos

demais direitos. Por dar acesso a outros direitos, ele se mostra, portanto,

um instrumento fundamental, por meio do qual adultos e crianças mar-

ginalizados, econômica e socialmente, podem emancipar-se da pobreza e

obter os recursos necessários à sua plena participação no meio social.

A Unesco criou seu Programa de Cátedras em 1991, com o objeti-

vo de fortalecer o ensino superior nos países em desenvolvimento, uti-

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APRESENTAÇÃO

10

lizando mecanismos apropriados para intensificar a cooperação entre

universidades. Foram assinados acordos para criação de cátedras em

mais de vinte países, cobrindo os mais diversos campos acadêmicos –

das ciências naturais a questões ambientais e ecológicas, os tópicos de

população, ciência e tecnologia, ciências sociais e humanas, ciências da

educação, cultura e comunicação, como também a paz, a democracia e

os direitos humanos.

Na qualidade de professora do Departamento de Direito de Estado

da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, pude tomar as

primeiras providências, com o apoio do diretor da Faculdade de Direito,

professor João Grandino Rodas, para a criação desta Cátedra, da qual

me tornei coordenadora. Os entendimentos tiveram início no final de

2006 quando, por iniciativa do Governo do Estado de São Paulo, foi

realizado um seminário internacional com foco nos desafios e perspec-

tivas do ensino superior público no Estado, do qual participou o doutor

Kishore Singh – responsável na Unesco pela área de Educação Básica e

Direito à Educação. Naquela ocasião, a Faculdade de Direito da USP foi

integrada ao programa Unitwin/Unesco (University Education Twin-

ning and Networking Scheme).

O programa da Unesco tem por objetivo promover capacitação pela

troca e compartilhamento de conhecimentos dentro de um espírito de

solidariedade. Dessa forma, o programa entende a cooperação norte-

sul e sul-sul como estratégia de aprimoramento das instituições par-

ticipantes. São elas, na maioria, universidades e institutos de pesquisa

que atuam em parceria com diversas e importantes organizações não-

governamentais, fundações e instituições do setor público e privado. O

Unitwin cria condições, portanto, para que aqueles que se dedicam ao

ensino superior possam somar esforços com a Unesco para elaboração

dos objetivos de uma agenda global.

Ao iniciar seus trabalhos, a Cátedra ofereceu, durante 2008, a disci-

plina Aspectos Constitucionais do Direito à Educação – I, no âmbito do

mestrado em Direitos Humanos da Fdusp, com quinze alunos regular-

mente matriculados e cinco alunos ouvintes.

O livro que ora vem a lume – Direito à Educação I – em primorosa

edição da Edusp, é o resultado das atividades de pesquisa desses alunos.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

11

A temática é ampla. Abrange a problemática dos direitos fundamen-

tais e do direito à educação, em particular, assim como os reflexos da

organização federativa do país nos sistemas de ensino e a distribuição

de competências entre a União, os Estados e os Municípios, na Consti-

tuição Federal de 1988. Enfrenta ainda questões atuais concernentes à

educação indígena, ao ensino religioso e às ações afirmativas; e percorre

a jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal e a atuação do

Ministério Público, em busca de indicadores que permitam avaliar a efe-

tivação e a efetividade do direito à educação. Todos os artigos levantam

aspectos teóricos e práticos do Direito à Educação, buscando disseminar

o seu conteúdo.

O livro é composto por cinco partes. A primeira delas é introdutó-

ria, concentrando mais análises teóricas que práticas, os demais cuidam

de temas específicos.

A Parte I trata dos Aspectos Constitucionais do Direito à Educação

em quatro capítulos, que intentam expandir possibilidades de promo-

ção e proteção do direito, a saber: “A Educação. Direito Fundamental”;

“Os Estados e o Direito à Educação na Constituição de 1988: Comentá-

rios acerca da Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal”; “O Poder

Judiciário e o Direito à Educação”; “O Ensino Religioso nas Escolas Pú-

blicas Brasileiras: Do Direito à Liberdade de Crença e Culto ao Direito à

Prestação Estatal Positiva”.

Monica Herman S. Caggiano, em “A Educação. Direito Fundamen-

tal”, faz notar que a trajetória histórica da doutrina dos Direitos Huma-

nos indica a clara preocupação do homem – ou dos mais conscientes

dos homens – com a sua instrução. É o que consta na Declaração Fran-

cesa de 1789, na qual esta presente a ideia da impositiva necessidade de

se assegurar acesso à educação e aos meios direcionados à emancipação

intelectual e política do ser humano, integrante da comunidade social.

Esse capítulo, ao pontuar a afirmação histórica do direito à edu-

cação, introduz a temática de sua promoção e proteção pelo Judiciário,

tratado em dois capítulos, de diferentes perspectivas. No primeiro deles,

“Os Estados e o Direito à Educação na Constituição de 1988: Comentá-

rios Acerca da Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal”, de minha

autoria, são apontados os avanços alcançados até o momento na garan-

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APRESENTAÇÃO

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tia do direito à educação, a partir da jurisprudência do STF posterior à

Constituição Federal de 1988. É expressivo o aumento de casos indivi-

duais e coletivos levados à apreciação do Tribunal, não só quando com-

parado às Constituições brasileiras anteriores como também em relação

às demandas judiciais de garantia dos demais direitos sociais. Ao que

tudo indica, a sociedade brasileira, o Ministério Público e o Judiciário,

vem percebendo a importância do direito à educação na construção de

uma sociedade livre, justa e solidária. Nesse sentido, destaco que as duas

dimensões do direito à educação – direito individual e coletivo, e habili-

tação de caráter instrumental – permitem a difusão da democracia, dos

direitos humanos e da proteção do meio ambiente, valores cruciais no

mundo contemporâneo.

Em “O Poder Judiciário e o Direito à Educação” analisa as formas

de garantia do direito à educação no sistema jurídico nacional e no in-

ternacional. Nesse sentido, avalia a possibilidade de o direito à educação

ser invocado perante órgãos com funções judiciais ou “quase-judiciais”,

fazendo uma revisão da jurisprudência do STF nos vinte anos de vigência

da Constituição Federal e dos principais órgãos do Sistema Global e Inte-

ramericano de Proteção dos Direitos Humanos. Por Eduardo Pannunzio.

Esta Parte é encerrada com a temática do ensino religioso e da liber-

dade de culto. Em “O Ensino Religioso nas Escolas Públicas Brasileiras:

Do Direito à Liberdade de Crença e Culto ao Direito à Prestação Estatal

Positiva” o autor Salomão Barros Ximenes acompanha a trajetória do

ensino religioso na legislação brasileira. Um ponto fundamental desta

pesquisa reside no embate do ensino laico e do ensino religioso em tor-

no da natureza da obrigação estatal neste campo.

Na Parte II são analisadas as obrigações dos sistemas de ensino e a

atuação do Ministério Público na Educação, com dois seguintes capí-

tulos: “As Instituições de Educação Superior e as Autoridades Estatais:

Autonomia e Controle”; “Atuação do Ministério Público para a Proteção

do Direito à Educação Básica”.

“As Instituições de Educação Superior e as Autoridades Estatais: Au-

tonomia e Controle”, de autoria de Eduardo Martines Júnior, focaliza as

dificuldades da análise jurídica dos amplos temas educacionais. Destaca

que a educação chegou aos domínios do Direito, exigindo dos juristas

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

13

e profissionais militantes uma atuação interdisciplinar, influenciando

e sofrendo interferências diversas. A educação como direito tem sido

discutida entre os juristas como prioridade absoluta, de modo a com-

bater a pobreza, o subdesenvolvimento econômico e social, e mesmo a

criminalidade. Conclui que qualquer tentativa de solução para os graves

problemas que enfrentamos passa pela priorização da educação.

Já em “Atuação do Ministério Público para a Proteção do Direito

à Educação Básica”, Adriana A. Dragone Silveira analisa, em detalhes, a

atuação do Ministério Público ante a proteção do direito à educação bá-

sica. Destaca a importância da prática do diálogo e dos benefícios do tra-

balho conjunto do MP com a sociedade civil organizada. O artigo aponta,

no entanto, alguns limites dessa instituição, como a dificuldade da exigi-

bilidade de demandas relacionadas com a qualidade da educação.

As preocupações com a qualidade de ensino constituem a temática

da Parte III – O Direito à Qualidade na Educação.

“Direito à Educação de Qualidade na Perspectiva Neoconstitucio-

nalista”, de Erik Saddi Arnesen, propõe uma interpretação da exigência

da qualidade na educação à luz da teoria neoconstitucionalista. Consi-

dera que da perspectiva do Estado Constitucional de Direito ampliam-

se as possibilidades de dar-se conteúdo jurídico, portanto exigível, à ex-

pressão “direito à educação de qualidade”, de tal sorte que deixe de ser

um ideal ou meta subjetiva ou intangível. Enumera, ainda, algumas das

perplexidades que a expressão, no cotidiano, vem apresentado.

Em “Padrão de Qualidade do Ensino”, Marcelo Gasque Furtado de-

fende que, embora seja unânime a ideia de que a educação deva, em to-

dos os níveis escolares, revestir-se de qualidade, há concepções diversas e

até conflitantes sobre a definição dessa qualidade. Aponta algumas bali-

zas que permitem pensar na concretude jurídica desse conceito, a partir

das diretrizes estabelecidas na Constituição Federal, em especial no ar-

tigo 206, VII, que estabelece a garantia de padrão de qualidade como um

dos princípios orientadores do ensino em nosso país.

O ensino privado, examinado na Parte IV, é o tema em torno do

qual giram as preocupações de três autores. Denominado Reflexões so-

bre o Ensino Privado, reúne os seguintes capítulos: “A Natureza Jurídica

do Serviço Prestado pelas Instituições Privadas de Ensino: Controvérsias

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APRESENTAÇÃO

14

sobre o Tema”; “A Expansão do Ensino Superior no Brasil: A Opção pelo

Privado”; “A Exploração da Atividade Educacional pela Iniciativa Priva-

da e seus Limites Legais”.

“A Natureza Jurídica do Serviço Prestado pelas Instituições Priva-

das de Ensino: Controvérsias sobre o Tema”, focaliza a natureza jurídica

do serviço de educação prestado por instituições privadas de ensino e

a controvérsia doutrinária e jurisprudencial acerca desse tema. Destaca

as discussões sobre o assunto, ocorridas no Supremo Tribunal Federal,

o conceito de serviço público na doutrina nacional e estrangeira e ex-

plora a noção de direito público subjetivo. Por Luiz Gustavo Bambini

de Assis.

O capítulo “A Expansão do Ensino Superior no Brasil: A Opção

pelo Privado”, de Fernanda Montenegro de Menezes, busca destacar as

formas mais utilizadas pelo governo para efetivação do direito à edu-

cação, mais especificamente, para efetivação do direito à educação su-

perior através de programas implementados em instituições privadas.

Também analisa o processo histórico de surgimento e de expansão do

ensino superior privado no Brasil.

Luiz Tropardi Filho também cuida da expansão do ensino privado.

Seu foco são os limites legais da atividade educacional. Confrontando a

expansão acentuada do número de estabelecimentos educacionais pri-

vados e a crescente intervenção estatal nessa atividade, levanta a hipótese

de haver um conflito entre o interesse público envolvido na prestação

dos serviços educacionais e o interesse privado daquele que explora a

atividade. Diante desta constatação, o autor em “A Exploração da Ativi-

dade Educacional pela Iniciativa Privada e seus Limites Legais”, pergun-

ta-se como compatibilizar tais interesses e se é possível estabelecer um

convívio pacífico entre a atuação privada e a atuação estatal.

A Parte V finaliza a obra voltando-se à Educação e Inclusão, com

artigos relevantes a propósito da educação indígena e da problemática

das ações afirmativas.

“A Educação Indígena e o Papel do Estado”, de Sabine Riguetti, re-

flete sobre as recentes discussões no campo da educação indígena no

Brasil, atentando para os aspectos jurídicos e institucionais que envol-

vem o tema, na criação da Funai (Fundação Nacional do Índio), em

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

15

1967, no Estatuto do Índio, em 1973, e na inserção da questão da educa-

ção indígena na Constituição Brasileira de 1988 e na Lei de Diretrizes e

Bases da Educação (LDB), de 1996.

Em “Ações Afirmativas e Cotas no Brasil: Uma Reflexão sobre o De-

bate Recente” três autoras – Camila Magalhães, Fernanda Montenegro

de Menezes e Sabine Righetti – analisam as ações afirmativas e as políti-

cas de cotas para negors e indígenas com um recorte específico das cotas

no ensino superior púbico para egressos de escolas públicas. O texto

reproduz o estágio internacional e nacional das discussões sobre cotas

no ensino superior, aborda os aspectos jurídicos do tema e analisa as

experiências com políticas de inclusão.

Pela diversidade e amplitude dos problemas focalizados pelos capí-

tulos que o compõem, Direito à Educação I é, portanto, leitura indicada

para os que se dedicam ao estudo do Direito à Educação e dos Direi-

tos Humanos em geral, tanto no nível de graduação ou pós-graduação,

quanto para pedagogos e juristas atraídos pela importância do Direito à

Educação. Num país onde não há tradição de defesa individual e coletiva

desse direito, a reflexão sobre o tema e a disseminação de doutrina e ju-

risprudência neste campo são extremamente bem vindas e oportunas.

Fevereiro de 2009

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I

OS ASPECTOS CONSTITUCIONAIS DO DIREITO À EDUCAÇÃO

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19

Introdução

Transcorridos mais de duzentos anos do impacto das primeiras De-

clarações de Direitos1 e apesar dos inúmeros documentos internacio-

1. Cuida-se aqui das declarações americanas, de nítida inspiração religiosa, impreg-

nadas pela filosofia jusnaturalista e pela tradição liberal inglesa: a. a Declaração de Direitos

do Bom Povo de Virgínia, estabelecida pela assembléia constituinte do Estado de Virgínia e

promulgada com o texto da Constituição, em 12 de junho de 1776; b. a Declaração de Inde-

pendência dos Estados Unidos, documento que tem origem em proposta do General Lee, em

nome de Virgínia, aprovada pelo 2o Congresso Continental, recebendo na sua redação final o

título de Declaration of Independence veio a ser aprovada na sessão de 4 de julho de 1776; c. a

A Constituição dos Estados Unidos, de 1787, documento produzido pela Convenção Cons-

titucional de Philadelphia, que abriu seus trabalhos em 25 de maio de 1787, apresentando

um quorum de sete estados, com o fim de debater e deliberar a revisão dos “Articles of Con-

federation”. Em 17 de setembro do mesmo ano, os delegados de doze Estados aprovaram

a nova Constituição, sendo que, dos 42 presentes, 39 a subscreveram. O novo documento

constitucional conquistou eficácia em 21 de junho de 1788, quando o nono Estado norte-

americano (New Hampshire), o ratificou; d. as dez Emendas da Ratificação da Constituição

dos Estados Unidos (Bill of Rights de 1790), conformam um texto que decorre de um trabalho

preparado por James Madison e apresentado ao Congresso (Câmara dos Representantes), já

sob o título de Bill of Rights, sendo aprovadas, nessa fase, doze emendas que, a seguir foram

encaminhadas aos Estados para fins de ratificação. Em 15 de dezembro de 1791, o Estado de

Virgínia ratifica o texto, mas apenas dez das emendas passam a integrar o texto da Consti-

A Educação. Direito Fundamental

Monica Herman S. Caggiano

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MONICA HERMAN S. CAGGIANO

20

nais2 que vêm denotar a especial e intensa atenção que o mundo moder-

no dispensa à proteção dos direitos fundamentais, direitos do homem

e do cidadão, paradoxalmente, pouco se avançou em termos fáticos. A

imprensa e a mídia se encarregam de denunciar profundos pontos de

vulnerabilidade: discriminação racial, discriminação da mulher, discri-

minação religiosa e a educação contemplando poucos – uma elite.

O reduzido avanço que se alcançou, em parte, pode ser atribuído à

própria evolução do mundo, de modo muito acelerado e diante de um

processo de globalização que conduz a novos comportamentos e a novas

demandas. Nesta perspectiva, oportuno o registro de que até nas so-

ciedades mais evoluídas, como o desenvolvido mundo europeu, o tema

educação passa, novamente, a trazer inquietudes diante do fenômeno

imigratório que impacta os países com o advento de um contingente de

alunos de culturas diferentes, línguas diferentes, preparo diferente e que

reclama das autoridades novas medidas para atender e qualificar esta

diferenciada clientela. É o caso da Alemanha e da Itália que buscam no-

tuição norte-americana, passando a primeira emenda a ser rotulada de expressão da garantia

dos fundamental rights, vindo ali registrada a liberdade de manifestação do pensamento, a

liberdade de opinião, a liberdade religiosa (free exercise clause) e a establishment clause, re-

conduzindo a lei às suas finalidades seculares. E mais, ainda, na França, da Declaração de

Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Conquanto, historicamente não se afigure pio-

neira ao utilizar essa fórmula de documento escrito e solene para proclamar, arrolados num

elenco ordenado, os direitos do homem, parece certo afirmar que o texto é o que mais reflexos

produziu no mundo, operando nítida e potente influência sobre a elaboração de toda uma

doutrina edificada girando em torno do tema “direitos humanos”, e, por isso, a que mais se

notabilizou pela iniciativa.

2. Tratado de Versalhes, 28.6.1919 (OIT); Constituição soviética de 1936; Declaração

Universal dos Direitos do Homem de 1948; Declaração Americana dos Direitos e Deveres do

Homem, Bogotá, 1948; Estatuto do Conselho da Europa, de 1949; Convenção contra a discri-

minação no campo da educação (Unesco, 14.12.1960); Convenção Internacional sobre a eli-

minação de todas as formas de discriminação racial de 1965; Pacto Internacional relativo aos

Direitos Civis e Políticos, 1966; Pacto Internacional relativo aos Direitos Econômicos, Sociais

e Culturais, de 1966; Convenção Americana Relativa aos Direitos do Homem (Pacto de São

José da Costa Rica), de 1969; Ato Final de Helsinki, de 1975; Recomendação sobre a Educação

para a Compreensão, a Cooperação e a Paz internacionais e a Educação relativa aos Direitos

Humanos e às Liberdades Fundamentais, da ONU, de 1974; Convenção sobre a Eliminação

de todas as formas de Discriminação das Mulheres, de 1979; Convenção sobre o Direito da

Criança, de 1989; Declaração Universal da Unesco sobre o genoma humano, de 1997.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

21

vas fórmulas para enfrentar a emergente fenomenologia e incrementar

a qualidade do ensino3.

Daí o renovado interesse no debate sobre este especialíssimo tópico.

O seu adequado enquadramento no contexto atual, num mundo atingi-

do pelo processo de globalização que importa, inclusive, um recrudes-

cimento de atitudes e a imposição de um novo tratamento desse velho

e sempre presente problema. Na aldeia global a que se referem Brecher

e Costello (1998), que descortina grupos e forças sociais em contínua

competição, a atual tarefa dos homens consubstancia-se em edificar um

sistema de tutela mais adequado e pré-ordenado à concreta defesa dos

Direitos Humanos, inclusive do direito à educação e, primordialmente,

a promoção da educação para direitos humanos fundamentais.

Oportuna e meritória a iniciativa quanto à abordagem dessa maté-

ria, inserindo-a no contexto de uma obra dedicada ao estudo da promo-

ção da educação pelo Direito, porquanto para alcançar o status civitatis,

definido pela ordem jurídica, é mister – e mais que isto – é condição

insuperável o incremento da educação, conferindo-lhe tratamento ade-

quado no sistema jurídico e nas políticas públicas praticadas.

Educação: Fundamentalidade do Direito

A trajetória histórica da doutrina dos Direitos Humanos é indicador

preciso da clara preocupação do homem – ou dos mais conscientes dos

homens – com a sua instrução. Já desde a edição da declaração francesa

de 1789, avulta a ideia da impositiva necessidade de se assegurar acesso à

educação e aos meios direcionados a emancipação intelectual e política

do ser humano, integrante da comunidade social. No seu preâmbulo,

emerge evidente a hostilidade em relação à ignorância, registrando este

documento, já nas suas primeiras linhas: “[...] que a ignorância, o esque-

cimento e o desprezo pelos direitos humanos são as únicas causas dos

males públicos e da corrupção dos Governos [...]”4.

3. Neste sentido as reportagens trazidas pela revista The Economist, 18 out. 2008, pp.

61-62.

4. Em Textos Básicos sobre Derechos Humanos, Madrid, Universidad Complutense,

1973, p. 87.

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A declaração jacobina, também francesa, de 1793, avança, no tema

para, expressamente, envolver o tópico educação sob o seu braço pro-

tetor, dedicando-lhe o dispositivo do seu artigo 22, que principia por

identificá-la como “[...] uma necessidade para todos”5. E, ainda, em ter-

reno francês, a Constituição de 1848 cuida da matéria em dois diferentes

artigos. O primeiro (art. 9) declara a liberdade do ensino e o segundo

(art. 13) a gratuidade do ensino primário e do profissionalizante como

fatores a assegurar o direito do trabalho6.

No contexto atual não nos parece subsistir dúvidas quanto à inclu-

são do direito à educação no elenco dos direitos humanos fundamentais,

amparado portanto por um quadro jurídico-constitucional que vem a

lhe assegurar, também, um sistema de garantias. É direito fundamen-

tal porque, de uma banda, consubstancia-se em prerrogativa própria à

qualidade humana, em razão da exigência de dignidade, e, de outra, por-

que é reconhecido e consagrado por instrumentos internacionais e pelas

Constituições que o garantem.

O direito à educação, destarte, inserido no nicho dos direitos funda-

mentais, apresenta-se revestido das qualidades que a estes são próprias.

Estes caracteres, aliás, consagram a postura dos direitos fundamentais

como elementos da essência de uma Constituição7, revelando, como

anota Robert Alexy:

a. a natureza de direitos morais, porquanto contam com a “univer-

salidade” na sua estrutura, assumindo a postura de direitos de

todos contra todos;

5. Ver nota 36.

6. Art. 9o O ensino é livre. A liberdade de ensino é exercida em condições de capacida-

de e de moralidade determinadas pelas leis e diante da vigilância do Estado. Esta vigilância

estende-se a todos os estabelecimentos de educação e ensino sem qualquer exceção.

Art. 13 A sociedade favorece e fomenta o desenvolvimento do trabalho por força do

ensino primário gratuito, a educação profissionalizante – Textos Básicos sobre Derechos Hu-

manos, op. cit., p. 103. 7. Já proclamava a declaração francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de

26.8.1789 preconizava no seu art. 16: “Toda a sociedade em que a garantia dos direitos não

estiver assegurada [...] não tem Constituição”.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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b. a qualidade de direitos preferenciais, porquanto fundamentam,

exatamente, o direito dos homens à sua tutela pelo direito po-

sitivo;

c. a “fundamentalidade do interesse ou carência protegida” que exi-

ge e implica na “necessidade de respeito, sua proteção ou o seu

fomento pelo direito”8.

E mais até, no mundo atual, o direito à educação comparece nas

suas duas facetas (de primeira e segunda dimensão ou geração), enqua-

drado como uma realidade social e individual. Com efeito, insuflado e

robustecido pelos caracteres de índole coletiva, extraídos das duas últi-

mas gerações de direitos9, vislumbra-se o direito à educação com conte-

údo multifacetado, envolvendo não apenas o direito à instrução como

um processo de desenvolvimento individual, mas, também o direito a

uma política educacional, ou seja, a um conjunto de intervenções juridi-

camente organizadas e executadas em termos de um processo de forma-

ção da sociedade, visando oferecer aos integrantes da comunidade social

instrumentos a alcançar os seus fins.

Nesse sentido, a orientação contida na Declaração de 10 de dezem-

bro de 1948, que concebe o direito à instrução na sua conotação clássica,

individualística, acoplando-lhe, também, uma finalidade social:

Art. XXVI. 2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerân-

8. “Direitos Fundamentais no Estado Constitucional Democrático”, Revista da Faculda-

de de Direito da UFRGS, v. 16, 199, p. 203.

9. A segunda geração de direitos – direitos sociais e econômicos – eclode sem que se

abandone a imposição de salvaguarda das prerrogativas inerentes ao ser humano (primeira

geração) proclamadas nas declarações americanas e no documento francês de 1789. Esta nova

dimensão insere direitos que reclamam em favor do indivíduo, integrante da sociedade esta-

tal, determinadas prestações positivas por parte do Estado. São direitos sociais e econômicos,

que, se de uma parte, já insinuam presença na declaração jacobina de 1793 e na declaração

que integra a Constituição francesa de 1848, em realidade, passam a ser apresentados de for-

ma inequívoca por força da Constituição mexicana de 1917 e ganham ressonância com a sua

inserção na Constituição alemã de Weimar, de 1919, que dedica todo um capítulo à vida social

e outro à vida econômica, oferecendo um novo modelo constitucional.

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cia e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz10.

Merece, aliás, reparo, o disposto no inciso 3, do mesmo artigo XXVI,

do referido documento, que atribui à educação um sentido social, todo

especial, ao outorgar aos pais, também, responsabilidade pela instrução

da prole. A família, pois, ao lado da instituição social que é representa-

da pela escola, emerge como fator coadjuvante no processo educacional

preconizado como meio operativo de garantia do direito à educação.

E, em 1960, como primeiro instrumento internacional, com o per-

fil de convenção, a Unesco aprovou em 14 de dezembro, a convenção

concernente à luta contra a discriminação no panorama da educação,

partindo do prevalência da ideia insculpida nos atos constitutivos e na já

anotada Declaração de 10 de dezembro de 1948 de que, dentre suas tare-

fas, emerge a primazia da promoção do direito a educação para todos.

A seu turno, relevante marco nessa trilha evolutiva, a Recomenda-

ção sobre a Educação para a Compreensão, a Cooperação e a Paz inter-

nacionais e a Educação relativa aos Direitos Humanos e às Liberdades

Fundamentais, documento resultante da Conferência Geral da Organi-

zação das Nações Unidas, dedicada ao tema Educação (de 1974), define

a questão:

1. Para os efeitos da presente Recomendação: a. a palavra “educação” designa o processo global da sociedade, por via do qual as pessoas e os grupos sociais apre-endem a desenvolver conscientemente, no interior da comunidade nacional e inter-nacional e em benefício destas, a totalidade de suas capacidades, atitudes, aptidões e conhecimentos [...] (Barba, 1997, p. 139, tradução nossa).

Em verdade, a ideia da impositiva presença e efetivação do direito

à instrução nas sociedades politicamente organizadas vem vinculada,

cada vez mais, à própria evolução da sociedade, preordenada a viabi-

lizar um clima de respeito à dignidade humana. Multiplicam-se, pois,

os documentos que buscam servir de instrumento a sua garantia. Nesse

10. Direitos Humanos. Instrumentos Internacionais. Documentos Diversos, Brasília, Ed.

Senado Federal, 1996, p. 134.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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diapasão, dentre outros, poderíamos enunciar: o Pacto Internacional re-

lativo aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, a Conven-

ção sobre os Direitos da Criança, aprovada em 8 de março de 1989, pela

Comissão de Direitos Humanos da ONU, e a Declaração Mundial sobre

Educação Para Todos, adotada na Conferência Mundial de 9 de março

de 1990, na Tailândia, que reclama por uma renovação do compromisso

com a educação.

Inobstante o extenso elenco de atos cercando a adoção e a aplicação

dos princípios vetores da educação, no seu status de direito fundamen-

tal, constata-se, ainda, uma acentuada fragilidade na adequada imple-

mentação desse direito, reconhecida, aliás, pelo ordenamento nacional

e internacional.

Assim é que, em 1990, a própria Declaração Mundial sobre Educa-

ção Para Todos anotava “as seguintes realidades”:

1. Mais de 100 milhões de crianças, das quais 60 pelo menos são meninas, não tem acesso ao ensino primário.

2. Mais de 960 milhões de adultos são analfabetos [...]. 3. Mais de 1/3 dos adultos do mundo não tem acesso ao saber [...]. 4. Mais de 100 milhões de crianças e inumeráveis adultos não conseguem

completar o ciclo de educação básica [...] (Barba, 1997p. 222, tradução nossa).

Mais recentemente, membros da Anistia Internacional, uma das

mais beligerantes ONGs em prol da concreta eficácia dos direitos procla-

mados na Declaração de 1948, reunidos em Dakar, capital de Senegal,

promoveram relevante debate acerca da atual necessidade de se inten-

sificar a luta em prol dos direitos sociais, econômicos e culturais. De

sucesso na sua investida contra a prisão arbitrária e a tortura, ou seja

na defesa de direitos de natureza civil e política, a proposta dessa orga-

nização visa, a seu turno, assegurar maior publicidade e, portanto, visi-

bilidade ao tratamento oferecido pelos governos aos direitos de terceira

geração, que, de certa forma, vem sendo negligenciados e, sem uma ade-

quada vigilância, acabam se apresentando de reduzida eficácia prática11.

11. Sobre a Conferência de Dakar, ver The Economist, 18 agos. 2001, p. 18.

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Crianças em regime de escravidão, como denunciado na Nigéria12,

assassinato de crianças em Kabul, identificando-se a ação de uma rede

de tráfico de órgãos humanos13, são fatos reveladores de que, além da

exigência, ainda presente, quanto a instrumentos adequados para a va-

lidez dos direitos da primeira geração, impositivas se apresentam pro-

vidências direcionadas a fortalecer o plano educacional, diminuindo o

prejuízo oriundo da ausência de políticas públicas voltadas a fazer pre-

valecer este direito. Mais até o direito à educação para direitos humanos.

E, mediante instrução, inibir o resultado da ignorância, “causa dos ma-

les públicos e da corrupção”, como já proclamavam os revolucionários

franceses do século XVIII.

A realidade doméstica brasileira, a seu turno, não descortina um

quadro muito animador em relação ao grau de instrução. Conquanto

tenha avançado no combate ao analfabetismo, nas últimas eleições mu-

nicipais, o levantamento promovido pela Justiça Eleitoral14 identifica,

num total 130.469.549 eleitores, 8.097.513 analfabetos, 20.367.757 que

sabem ler e escrever, 44.456.754 que possuem o primeiro grau incom-

pleto e só 10.129.580 concluíram o primeiro grau.

Estes registros são corroborados por pesquisa produzida pelo jornal

Folha de S. Paulo, que aponta o triste fato de um em cada cinco jovens não

terem completado o ensino fundamental15. Apenas 3,49% dos eleitores

têm diploma de ensino superior, sendo que os Estados de Rio de Janeiro,

São Paulo, Rio Grande do Sul e Santa Catarina detém o maior número

de eleitores com ensino superior. Os Estados do Norte e Nordeste, Ma-

ranhão e Piauí destacam-se como os de menor percentual de eleitores

formados em universidades. Demais disso os problemas de evasão e de

reprovação importam em significativa exclusão educacional, colocando

a educação brasileira, no quesito matemática, na 53a posição no ranking

Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa) e da Organização

12. O Estado de S. Paulo, 21 jul. 2001, p. A 17.

13. El País, 9 dez. 2001, p. Internacional 5. 14. Fonte: TSE, divulgando o perfil do eleitorado de 2008, em 15 jul. 2008.

15. Folha OnLine, 21 jan. 2008.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), no quesito

ciências na 52a e quesito leitura na 48ª16.

A Educação sob o Impacto das Recomendações Extraídas dos

Documentos Internacionais

Partindo de clássicas assertivas, que erigem e reconhecem o pata-

mar da educação como fator essencial no desenvolvimento do indivíduo

e da coletividade social, registrando, destarte, impositivas as providên-

cias, no espectro nacional e internacional, em prol do robustecimento

da qualidade e da garantia de acesso a todos à educação, clamam esses

documentos por medidas concretas a incidir tanto na estrutura como,

ainda, no processo de aprendizagem. E isto, no sentido de viabilizar a

universalização e fomentar a equidade no campo da instrução, buscan-

do, em pleno processo de mundialização, orientar as novas gerações

para o progresso socioeconômico, cultural, para a tolerância e para as

inevitáveis exigências de cooperação internacional.

Dentre as recomendações que, de forma especial, vem enfatizadas

na já aludida Declaração Mundial sobre Educação Para Todos, reclama

peculiar atenção a necessidade de promover condições propícias e forta-

lecer os campos da cooperação e da associação.

Em verdade, como Rawls observa na sua Teoria da Justiça, a socie-

dade deve ser compreendida como “um empreendimento cooperativo

para a vantagem mútua (e) esse empreendimento é tipicamente marca-

do por um conflito e também por uma identidade de interesses”. Avul-

ta da teoria defendida pelo ilustre filósofo de Harvard, a relevância do

envolvimento coletivo da sociedade, por intermédio de todos os setores

que a compõem, para o cumprimento das metas e objetivos que busca

alcançar (Rawls, 1997, p. 580, grifo nosso).

Daí, natural e lógica a recomendação que emana da referida Decla-

ração Mundial sobre Educação Para Todos. Esta, ao reclamar a interve-

niência da sociedade, no que toca a suportes para a educação, eviden-

16. Idem, ibidem.

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cia, exatamente, o espírito participativo, hoje dominante, e que implica,

mais, no reconhecimento de que não há como atribuir, isoladamente, ao

Estado a responsabilidade prioritária de proporcionar educação. Insiste,

pois, o documento, na evidência da necessidade de “cooperação e de asso-

ciação entre todos os subsetores” (Rawls, 1997, p. 229, grifo nosso). Invoca

a atuação conjunta dos órgãos governamentais e das Organizações não

Governamentais (ONGs), do setor privado, das comunidades locais, dos

grupos religiosos e da família.

A seu turno, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia,

resultante do tratado de Nice, de 7 de dezembro de 200017, cuida deste

tema por intermédio dos seus artigos 14 (Direito à Educação), 21 (A

Não-Discriminação) e 24 (Direitos da Criança), onde registra-se a pre-

valência do interesse da criança e o dever das autoridades e da sociedade

na observância desta imposição de privilegiamento.

O campo da educação, portanto, sob forte influência do impacto

participativo, passa a demandar ações concretas de índole coletiva dire-

cionadas à garantia de melhores condições para o aprendizado. E, para

tanto, são convocadas todas as forças sociais. Sob essa nova roupagem,

especial atenção é atribuída ao papel desempenhado pelos educadores

e pela família. A instrução e o preparo desses representa fator de realce,

que não pode ser ignorado, conduzindo a sociedade a um repensar cole-

tivo quanto à garantia de meios adequados a oferecer um nível de ensino

compatível com as exigências do século XXI e, notadamente, com as re-

comendações da ONU que já anteviam os desafios desses novos tempos.

Na realidade, o ensino e a pesquisa, no novo modelo, abandonam

a exclusiva esfera estatal, passando a referenciar “uma visão ampliada e

um compromisso renovado”, envolvendo esse compromisso toda a so-

ciedade e, de modo particular, a família que, a seu turno, deve assumir

17. A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia foi elaborada na expecta-

tiva de que integrasse o Tratado de Constituição para a Europa, o qual, no entanto não foi

subscrito, sendo objeto de negativa, por intermédio de referendo, na Holanda e na França em

2005. Portanto, referida Carta de Direitos Fundamentais, na Europa, ainda está sendo objeto

de estudos, aperfeiçoamento e continua sem implementação. Ver Code de Droit International

dês Droits de l’Homme, Bruxelas, Bruylant, 2005. Ver ainda, Carta dos Direitos Fundamentais

da União Europeia (Riquito et al., 2001).

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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sua parcela de responsabilidade na educação dos que irão construir a

história do século XXI. Somente nos termos de uma educação insuflada a

partir de toda uma coletividade, norteada pelo princípio participativo e

desenvolvida em bases comunitárias, é que, os objetivos delineados para

a preservação dos direitos humanos e, consequentemente, da própria

dignidade, se tornarão viáveis.

A Realidade Brasileira

A Constituição atual, conhecida como a “Constituição cidadã”, ró-

tulo que lhe foi acoplado ao final dos trabalhos constituintes, por oca-

sião de pronunciamento do presidente da constituinte18, inovou ao con-

templar, no seu título II, o já célebre catálogo dos direitos, um extenso rol

de direitos e garantias. No entanto alterou a tradicional posição do tema

e, deste molde, buscou o constituinte, no dizer de Raul Machado Horta,

“conferir-lhe precedência” (Horta, 1995, p. 240), sem que esse posicio-

namento, contudo, viesse a estabelecer uma hierarquia entre as normas

constitucionais. Pretendeu, presume-se, assegurar “impregnação valora-

tiva” a esses dispositivos, “sempre que forem confrontados com atos do

legislador, do administrador e do julgador” (Horta, 1995, p. 240).

Acompanhando, porém, a tradição pátria, o texto atual cuidou do

tema adotando um tom moderno e ampliou o elenco já preconizado

pelos antigos documentos para agasalhar os direitos da segunda e da

terceira geração, enfocando direitos coletivos e sociais e oferecendo nu-

anças de extrema contemporaneidade ao sistema de tutela engendrado.

Em verdade a elaboração do documento constitucional de 1988 re-

sultou de influências de grupos e facções políticas representativas dos

mais diferentes e diversificados setores da sociedade e o quadro decor-

rente dessa espiral de ações de interveniência configura a radiografia

exata do espírito ávido por garantias à liberdade reinante naquele mo-

18. Em data de 27 de julho de 1987, ao defender o projeto de constituição em tramitação

de duros ataques quanto a sua possível eficácia, o presidente da constituinte, deputado Ulys-

ses Guimarães proclamava, em pronunciamento pela TV, em cadeia nacional, que se cuidava

de uma “Constituição cidadã, porque recuperará como cidadãos milhões de brasileiros”.

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mento histórico. Daí, embora, própria a vocação do nosso Direito Cons-

titucional em acolher e oferecer o superior status da Lei Maior ao tópico

“direitos e garantias fundamentais”, o modelo atual oferece peculiarida-

des, a começar pelas figuras introduzidas e pela singular topografia, vez

que, como acima apontado, estreia o posicionamento dessa matéria logo

no começo do texto, no seu título II.

O tratamento do tópico educação é identificado, ao longo de toda

a textura constitucional. De forma sucinta e sistematizada, o analista

vai se deparar com a seguinte lista de preceitos abordando a questão

educacional:

Art. 5o, IV; e XIV;Art. 6o, caput, (D. Sociais) – Cap. II do Tit. II;Art. 7o, XXV – assistência a dependentes e filhos de 0 a 5 anos;Art. 23, V – competência comum – promoção da educação;Art. 24, IX e XV – competência concorrente. Normas gerais e específicas;Art. 30, VI (competência comum envolvendo obrigação do município),Art. 205 (Sec. I, Cap. III, Tit. VIII – Da Ordem Social);Art. 206 – princípios de regência do ensino;Art. 207 – universidades – a autonomia universitária;Art. 208 – educação dever do Estado;Art. 209 – ensino privado – regras de atendimento;Art. 210 – formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos,

nacionais e regionais; Ensino religioso e língua portuguesa (§ 1o); Art. 211 – organização do sistema federal de ensino.Art. 212 – 18% União e 25% Estados e municípios;Art. 213 – direção dos recursos públicos.

Reflexo do ambiente de elevada permeabilidade em relação a ideias

e mecanismos aptos a integrar as ideias de cooperação e associação como

indissociáveis do setor educacional, a Lei Fundamental de 1988, no seu

título VIII, “Da Ordem Social”, passa a definir, no seu art. 205, os respon-

sáveis pela implementação desse direito: “Art. 205 – A educação, direito

de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada

com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da

pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para

o trabalho”.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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E mais, no dispositivo seguinte, arrola o texto constitucional a base

principiológica a nortear o desenvolvimento do ensino, indigitando:

Art. 206 – [...] I. Igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;II. Liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte

e o saber;III. Pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de insti-

tuições públicas e privadas de ensino;IV. Gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;V. Valorização dos profissionais do ensino, garantidos, na forma da lei, planos

de carreira para o magistério público, [...] e ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos;

VI. Gestão democrática do ensino público, na forma da lei;VII. Garantia de padrão de qualidade.

Identifica-se, nessa linha, um inequívoco privilegiamento das re-

comendações extraídas dos documentos internacionais, a preocupação

em robustecer as condições de eficácia do cânone isonômico, a intensa

exigência de políticas de apoio para a garantia do aprendizado básico

dos adultos e das crianças.

Enfim, transluz clara a perspectiva do constituinte em oferecer

maior favorecimento ao direito à educação, ampliando o território cons-

titucional com os elementos, decorrentes das declarações contemporâ-

neas, a buscar concretização fática à prerrogativa de educação que, a par

de inerente ao ser humano, configura exigência no tocante ao próprio

desenvolvimento da humanidade.

A preocupação com o tratamento constitucional da educação, entre

nós – um estado federal, em que a Magna Lei assegura autonomia em

relação aos entes federados, vem refletida, ainda, nos textos constitucio-

nais produzidos pelos Estados-membros e municípios. Nesta esteira, a

Constituição do Estado de São Paulo cuida deste tema no capítulo III,

seção I, do seu título VII (arts. 237 a 258). Relevância especial assume o

art. 249 que impõe oito anos de duração obrigatório do ensino, a partir

da idade de seis anos. A seu turno, o art. 255 impõe a reserva e destina-

ção de 30% da receita dos impostos para o incremento da educação e,

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não ignorando a exigência de controle obriga a publicação trimestral

das receitas arrecadadas e das transferências efetuadas (art. 256).

O município de São Paulo, de sua parte, não ignorou a essenciali-

dade deste direito e, buscando, a par do seu reforço, também, a previsão

clara da responsabilidade local no implemento da educação, preconizou

como dever do Poder Municipal assegurar ensino fundamental e edu-

cação infantil (art. 7o, VI Lei Orgânica do Município de São Paulo). O

detalhamento vem oferecido pelo documento municipal ao longo dos

arts. 200-211 (título VI, capítulo I), havendo, em simetria com o dispo-

sitivo estadual, a previsão de reserva e destinação de 31% dos recursos

resultantes de impostos, ao cumprimento do dever no tocante ao imple-

mento do direito à educação.

É certo que, apesar dos esforços dos constituintes que visaram as-

segurar estatura constitucional a esse direito e, inspirados em modelos

subtraídos de modernas deliberações internacionais, cuidaram da ques-

tão educacional robustecendo-a com a indicação da necessidade de co-

operação e associação das forças e grupos sociais para a concreção do

processo de aprendizagem e de transmissão do conhecimento, ainda

restam falhas acentuadas; portanto um intenso trabalho de se alcançar

no espaço educacional o ponto ideal. Basta verificar a resolução adota-

da pelo governo brasileiro, em decorrência dos debates verificados no

âmbito da Conferência Internacional contra o Racismo, realizada pela

ONU em Durban, na África do Sul, em setembro de 2000, de promover a

reserva de vagas para negros nas universidades.

As Ações Afirmativas. O Modelo de “Cotas”

A previsão de cotas reservadas aos de raça negra, indicador preciso

da influência da mobilização dos grupos sociais em prol do desenvolvi-

mento do setor educacional, é tema discutido em sede muito explorada

nos últimos quarenta anos: as affirmative actions ou programas de ações

afirmativas visando a implementação de políticas de inserção social pela

via da educação.

Pois bem, ensina a professora Fernanda Dias Menezes de Almeida

que as denominadas ações afirmativas consubstanciam-se “em proce-

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

33

dimentos destinados à concretização do direito à igualdade” (Almeida,

2004). E aduz mais o fato de que programas afirmativos “designa o con-

junto de políticas públicas ou particulares destinadas a corrigir dese-

quilíbrios que desfavorecem grupos minoritários, impedindo ascensão

social, cultural, política, econômica etc.”. Paulo Lucena de Menezes, com

longa e profunda pesquisa na matéria, esclarece: “Ação afirmativa, nos

dias correntes, é um termo de amplo alcance que designa o conjunto de

estratégias, iniciativas ou políticas que visam favorecer grupos ou seg-

mentos sociais que se encontram em piores condições de competição

em qualquer sociedade [...]” (Menezes, 2001, p. 27).

Em verdade, embora possa se vislumbrar programas de ações afir-

mativas buscando a inserção de setores menos aquinhoados na popula-

ção ativa e produtiva da sociedade, a exemplo das políticas de admissão

no mercado de trabalho de negros, de deficientes físicos, de mulheres

na política, enfim, políticas de capacitação e privilegiamento no ense-

jo de nulificar o desequilíbrio que as condições deficitárias introduzem

no cenário social, fato é que as políticas afirmativas praticadas no pa-

norama educacional conquistaram maior notoriedade, perseguindo a

inserção, notadamente, dos afro-descendentes no mundo universitário,

autorizando a capacitação deste contingente de desfavorecidos median-

te o acesso a educação superior.

Interessante, a esse passo, verificar a trajetória destes programas

que encontram sua certidão de nascimento na política inovadora pra-

ticada no governo Kennedy, que utilizou pela primeira vez a expressão

ação afirmativa quando da criação do “Equal Employment Opportunity

Commission” (EEOC). Certo é que este projeto introduzia medidas bus-

cando alargar a isonomia quanto às oportunidades no campo do tra-

balho. Ao longo da evolução histórica, contudo, o objetivo perseguido

passou a se concentrar no acesso às universidades, como vem demons-

trado na Tabela 1.

Em cenário brasileiro, principalmente, sob a égide da Constituição

de 5 de outubro de 1988, a técnica das ações afirmativas conquistou de

imediato discípulos, difundindo-se por meio de medidas tendentes a

ampliar o leque de oportunidades de acesso à educação superior, princi-

palmente para os afro-descendentes e a população de baixa renda. Neste

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MONICA HERMAN S. CAGGIANO

34

sentido, no âmbito federal é de se destacar a Lei n. 10.558/02, docu-

mento que instala o Programa de Diversidade na Universidade, a Lei

n. 10.678/03, que preconiza a criação da Secretaria Especial de Políticas

de Promoção de Igualdade Social, o Decreto n. 4228/02, que institui,

no âmbito da Administração Pública Federal, o Programa Nacional de

Ações Afirmativas, e, mais recentemente, a Media Provisória n. 213, de

10 de setembro de 2004, que institui o Programa Universidade para to-

dos – Prouni, importante instrumento de política positiva de inserção e

que vem sendo discutida no âmbito das ADIs 3330, 3314 e 3379, junto ao

Supremo Tribunal Federal.

No âmbito dos Estados-membros, Amazonas, Mato Grosso do Sul,

Minas Gerais e Rio de Janeiro contam com legislação própria, discipli-

nando a prática de ações afirmativas, acolhendo a técnica de cotas para o

ingresso nas universidades. Em Alagoas, o ingresso pela técnica de cotas

na Universidade Federal é regulado pela Resolução 09/2004 – Cepe, de

10 de maio de 2004. Em Brasília, Distrito Federal, a matéria é tratada por

via de um Plano de Metas de Inserção Social da Universidade de Brasília,

aprovado pelo Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Cepe), em 6 de

junho de 2003. No Estado de São Paulo, o tema é disciplinado por via de

dois decretos: Decreto Estadual n. 48.328/03 – cria o Programa de Ações

Afirmativas do Estado de São Paulo e Decreto Estadual n. 49.602/05 –

institui o Sistema de Pontuação Acrescida para afros e egressos ensino

público para Escolas Técnicas (Etes) e Faculdades de Tecnologia (Fa-

tecs). E, o Município de Piracicaba se destaca com legislação própria,

tendo editado a Lei Municipal n. 5.202/02. Oportuno, por derradeiro,

o registro da original e especialíssima técnica idealizada no Estado de

São Paulo, oriunda de aplicações no âmbito da Universidade Estadual de

Campinas (Unicamp) e que, pelos bons resultados, foi remodelada para

o ingresso nas Fatecs estaduais. Trata-se do sistema de pontuação acres-

cida, que confere aos afro-descendentes, aos egressos de escolas públicas,

índios e aos menos favorecidos, um acréscimo na pontuação, desde que

atinjam a nota de corte. Não adotam, contudo o método da reserva de

vagas, ou seja, as cotas.

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DIR

EIT

O À

ED

UC

ÃO

: ASP

EC

TO

S CO

NST

ITU

CIO

NA

IS

35

Tabela 1. Políticas de ação afirmativa nos governos norte-americanos

1935 6 de marçode 1961governoKennedy

governo Lyndon Johnson(1963-1969)

governoRichardNixon(1969-1974)

governoJimmy Carter(1977-1981)

governoRonaldReagan(1981-1989)

governoBush(1989-1993)

governoBill Clinton(1993-2001)

governoGeorg W.Bush(2001-2009)

Legislação tra-

balhista (The

1935 National

Labor Relac-

tion Act)

Evitou-se dis-

c r i m i n a ç ã o

a operários e

sindicalistas,

garantindo-se

seus cargos.

Ordem Executiva

10925 do presiden-

te J. F. Kennedy. Foi

o primeiro a usar

a expressão “Ação

Afirmativa”. Criou

a Equal Employ-

ment Opportunity

Commission (EE-

OC)

Proibida a discri-

minação feita por

instituições gover-

namentais com ba-

se em cor, religião e

nacionalidade para

a contratação de

funcionários.

Mais: estimulou-se

a contratação de

minorias.

Criados mecanismo e estratégias

de combate e de superação das de-

sigualdades raciais e de gênero.

Nixon era con-

servador e ini-

migo das ações

afirmativas.

O interesse de

Nixon era ape-

nas angariar elei-

torado negro a

votar no Partido

Republicano.

Plano Philadel-

phia: estímulo à

contratação de

minorias (racial

e gênero) por

companhias e

entidades edu-

cacionais.

Caso Regents of

the University

of California v.

Bakke

A Faculdade de

Medicina da

Universidade da

Califórnia re-

servou dezesseis

das cem vagas

para estudantes

p e r t e n c e n t e s

às minorias. A

Suprema Cor-

te decidiu, que

os direitos do

ve s t i b u l a n d o

branco, Alan

Bakke ficaram

violados com o

plano de Ação

Afirmativa desta

Universidade.

Reagan possuía

tendência anti-

ações afirmati-

vas. Fora eleito

com o auxílio

da classe média

branca (avessa

aos avanços da

política de ações

afirmativas).

Bush não era

muito afeito aos

progressos dos

direitos civis.

A Suprema corte

voltou a decidir

casos que choca-

ram a comuni-

dade de direitos

humanos.

A Civil Rights

Acto foi vetada

por Bush, em

outubro de 1990.

No anos seguin-

te, foi promulga-

da, ajudando as

vítimas de dis-

criminação.

Clinton conta-

va com o apoio

da comunidade

negra.

Estabeleceu em

governo mais

intervenciona-

lista, com ações

impactantes na

diminuição da

d e s i g u a l d a d e

entre os grupos

raciais.

Atualmente, a

Suprema Corte

dos Estados Uni-

dos tem decidido

contrariamente

às políticas pú-

blicas que ado-

tem critérios de

favorecimento

das minorias.

1964 1965

“Civil Rights Act”

Artigo VII. Visa a

garantia do prin-

cípio da igualda-

de na contrata-

ção e promoção

de seus emprega-

dos, pertencentes

às minorias.

Lindon John-

son era efusivo

defensor das

Ações Afirmati-

vas. Discursou

em 1965 para os

alunos de Har-

vard University.

PERÍODO

Direito_E

ducação Final.indd 35

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MONICA HERMAN S. CAGGIANO

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Forçoso convir que a necessidade de satisfazer as cambiantes de-

mandas que o século XXI insinua induz a uma atuação perseverante

tanto do Estado, como, ainda, a imposição de envolver nessa tarefa a

sociedade civil e todos os elementos que a compõem. Exige um esforço

conjunto. Uma constante ação cooperativa, a associação, visando pata-

mares conformes aos princípios proclamados nas declarações, enfim a

mobilização da comunidade social para o ensino em níveis que atendam

às expectativas internacionais de educação.

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Introdução

Ao estudarmos o direito à educação no sistema jurídico brasileiro

observamos um notável avanço em sua proteção e promoção a partir

da Constituição Federal de 1988, não só com referência às constituições

brasileiras anteriores como também em relação à garantia dos demais

direitos sociais.

Essas previsões produzem importantes consequências jurídicas

e políticas, em termos de agregação do interesse público em âmbito

nacional, que podem ser identificadas, pelo menos, em dois aspectos

principais. O primeiro diz respeito ao pacto federativo, no qual se ins-

tala uma forma de cooperação efetiva e eficaz no campo educacional, o

segundo à afirmação da dimensão democrática do direito à educação.

Ambos aspectos se inter-relacionam na medida em que o dever do Esta-

do se efetiva por meio de ações integradas e coordenadas de todos os en-

tes federados, insinuando um federalismo cooperativo, com resultados

altamente positivos para a ampliação do exercício do direito à educação,

em seus diferentes níveis, tanto na esfera pública quanto na privada.

De fato, dentre as inúmeras transformações operadas no Brasil após

a edição da Constituição de 1988, destaca-se o considerável progresso

Os Estados e o Direito à Educação na Constituição de 1988:

Comentários Acerca da Jurisprudênciado Supremo Tribunal Federal

Nina Beatriz Stocco Ranieri

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NINA BEATRIZ STOCCO RANIERI

40

dos níveis educacionais da população em geral e dos jovens em particu-

lar, tendo-se alcançado, praticamente, a universalização do ensino fun-

damental1. Dados do recente estudo da Organização das Nações Unidas

para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) sobre os primeiros anos

da educação fundamental no Brasil – Uma Visão dentro de Escolas Pri-

márias2 – demonstram, igualmente, que apenas 10% dos estudantes no

Brasil se encontram hoje em escolas privadas e que um em cada dois

alunos encontra-se matriculado em escolas cuja maioria, ou todos os

alunos, são provenientes de famílias com pais que não haviam comple-

tado a educação primária.

Não há dúvida de que esse resultado advém do enfrentamento pú-

blico de questões recorrentes da educação brasileira, tais como univer-

salização, financiamento, garantias de acesso e permanência na escola,

qualidade do ensino, dentre outras. A atuação do poder público nos

últimos vinte anos assume especial relevância quando consideramos o

atraso secular da educação no Brasil, notadamente da educação pública,

em comparação a outros países da América Latina, como a Argentina e

o Uruguai, que já no início do século XX haviam universalizado a educa-

ção fundamental (Fausto & Devoto, 2004; Marcílio, 2005, dentre outros

autores).

A participação dos Estados e Municípios nesse processo tem sido

significativa, podendo-se concluir que a discriminação de competências

educacionais promovida pela Constituição Federal – ao combinar a atri-

buição de encargos educacionais aos entes federados, em grau de gene-

ralidade crescente, com a obrigatoriedade de aplicação de percentuais

fixos da receita de impostos no financiamento da educação – tem sido

eficaz. Este modelo beneficia-se da organização federativa dos sistemas

de ensino no Brasil, levando em conta o princípio da descentralização

normativa e executiva que lhe é inerente.

Do ponto de vista jurídico, inúmeros são os aspectos que podem ser

analisados a respeito da organização federativa dos sistemas de ensino

1. Cf. Inep/Ministério da Educação. Censo Escolar 2006, que aponta aproximadamente

56 milhões de matrículas na Educação Básica.

2. Cf. www.unesco.org.br

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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e de seus efeitos na ampliação dos meios de acesso e permanência na

escola. Um dos mais complexos é o das competências legislativas con-

correntes dos Estados-membros, devido à tênue distinção entre normas

gerais e normas suplementares de educação, até porque, neste campo, a

distinção entre o interesse nacional e o regional é praticamente inexis-

tente. O tema torna-se ainda mais árduo quando se trata de analisar a

intervenção dos Estados-membros no domínio econômico, em circuns-

tâncias nas quais a matéria de direito econômico ou do consumidor se

sobrepõe à educacional.

Este artigo visa demonstrar, em linhas gerais, a problemática ine-

rente à atuação legislativa dos Estados na educação, por via da juris-

prudência recente do Supremo Tribunal Federal (STF), em situações de

controle abstrato de constitucionalidade. O objetivo é identificar as di-

ficuldades jurídicas de implantação do programa normativo assumido

pela Constituição Federal de 1988 nessa área, sob a ótica federativa.

A relevância do tema para o Estado Democrático de Direito revela-

se no fato de que a educação consiste tanto em direito individual como

direito coletivo, além de ser uma habilitação de caráter instrumental.

Essas duas dimensões, inter-relacionadas, permitem a difusão da demo-

cracia, dos direitos humanos e da proteção do meio ambiente, valores

cruciais no mundo contemporâneo.

A forma democrática de vida, disse Anísio Teixeira, “[...] funda-se

no pressuposto de que ninguém é tão desprovido de inteligência que

não tenha contribuição a fazer às instituições e à sociedade a que perten-

ce [...]” (Teixeira, 1968). Tal crença, prossegue, equivale a uma hipótese

político-social que, para se confirmar, exige da sociedade que ofereça, a

todos os indivíduos, acesso aos meios de desenvolver suas capacidades,

a fim de habilitá-los à maior participação possível nos atos e instituições

em que transcorra sua vida, participação que é essencial à sua dignidade

de ser humano (Teixeira, 1968, p. 14).

O Direito a Educação na Constituição Federal de 1988

A Constituição brasileira, ao definir o dever do Estado com a edu-

cação (art. 205) e o seu comprometimento com o desenvolvimento na-

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NINA BEATRIZ STOCCO RANIERI

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cional e com a construção de uma sociedade justa e solidária (art. 3o),

individualiza a educação – direito de todos – como bem jurídico, dado o

seu papel fundamental para o desenvolvimento da pessoa e ao exercício

dos demais direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais.

Nesse sentido, o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é qualifi-

cado como direito subjetivo (art. 208, § 1o), assegurando a sua univer-

salização, bem como a progressiva universalização do ensino médio sob

a égide da equidade (art. 206), dentre outros princípios que orientam a

atividade educacional.

Para garantir o exercício do direito, no que diz respeito ao dever

do Estado, a Constituição discrimina encargos e competências precisas

para os sistemas de ensino da União, dos Estados e dos Municípios (art.

211), e os correspectivos percentuais da receita de impostos para aplica-

ção na manutenção e desenvolvimento do ensino (arts. 22, XXIV, 24, VIII,

30, VI, 208 e 212).

Neste modelo, a partir da ênfase à competência genérica comum,

dá-se a indicação dos níveis de atuação prioritária, mas não exclusiva,

para cada esfera de governo, à exceção do federal, o que reclama e evi-

dencia a necessidade de organização dos respectivos sistemas em regi-

me de colaboração, especialmente enfatizado com referência ao ensino

obrigatório. Assim, compete aos municípios atuar prioritariamente no

ensino fundamental e na educação infantil, aos estados e Distrito Fede-

ral no ensino fundamental e médio, e à União atuar supletivamente para

garantir a equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo

de qualidade de ensino, mediante assistência técnica e financeira aos es-

tados, Distrito Federal e municípios, em todos os níveis de ensino (art.

211, § 1o).

A competência coordenadora da União em matéria de política na-

cional de educação é reforçada, na legislação infraconstitucional, pelo

art. 8o da Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB (Lei n. 9.394, de

20.12.1996), visando articular os diferentes níveis (básico e superior) e

sistemas de ensino. Esta previsão complementa a norma genérica dos §

2o e 3o do art. 211, o que significa que, sob a coordenação da União, todos

os entes políticos atuarão na educação infantil, e no ensino fundamen-

tal, médio e superior, atendida a seguinte regra: municípios prioritaria-

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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mente no ensino fundamental e na educação infantil; estados e Distrito

Federal no ensino fundamental e médio; sendo que o não oferecimento

do ensino obrigatório pelo poder público, ou sua oferta irregular, im-

portará a responsabilidade da autoridade competente (art. 208, § 3o).

Em razão de a Constituição Federal não ter indicado nenhum nível

de ensino para a atuação prioritária da União, reforça-se a sua ação su-

pletiva e redistributiva em todos os níveis. Considerando-se o amplo es-

copo desta atribuição (todos os níveis de ensino), fica claro que à União

compete oferecer o ensino superior à ausência do seu oferecimento pe-

las demais esferas de governos. Como estas devem se ocupar priorita-

riamente da educação básica, a competência da União, em relação ao

ensino superior, é residual.

Cabe também à União intervir nos estados e no Distrito Federal, em

hipótese de não aplicação, na educação, do mínimo exigido da receita

resultante de impostos estaduais, na forma do art. 34, VII, “e”, organizar

o seu sistema de ensino e o dos territórios (art. 211, § 1o), financiar as

instituições de ensino público federais; autorizar e avaliar os estabeleci-

mentos de ensino de seu sistema (art. 206, VII), inclusive os particulares

(art. 209, II).

Para os estados, o Distrito Federal e municípios, restam os encargos

federativos de execução dos planos nacional e estaduais de educação, à

vista do dever do Estado para com a educação (CF, art. 205), e por força

dos artigos 10 e 11, da LDB. Há também os encargos de organização,

manutenção e desenvolvimento dos respectivos sistemas de ensino, em

relação aos quais deverá ser aplicado, no mínimo, 25% da receita resul-

tante de impostos (na forma do art. 212); e, no âmbito destes, a autori-

zação e avaliação das instituições de ensino.

No plano das competências legislativas reserva-se à União compe-

tência privativa para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacio-

nal (CF, art. 22, XXIV), e para estabelecer o plano nacional de educação

(art. 214), e competência concorrente à dos estados e Distrito Federal

para legislar sobre educação mediante normas gerais (CF, art. 24, IX). A

competência dos estados e municípios, neste cenário, é bastante restri-

ta, posto que remanescente, limitada a baixar normas complementares

para os respectivos sistemas de ensino.

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NINA BEATRIZ STOCCO RANIERI

44

Para suportar tais encargos foram garantidos recursos à manuten-

ção e desenvolvimento do ensino, por meio de vinculação de receita tri-

butária, na forma do art. 212: a União aplicará anualmente nunca menos

de 18%; os Estados e Municípios 25%, no mínimo, aí incluída a receita

proveniente das transferências.

No campo do financiamento da educação obrigatória, alem da pre-

visão do art. 167, IV, que permite a vinculação da receita de impostos

para a manutenção e desenvolvimento do ensino, instituiu-se um efi-

ciente sistema de distribuição de recursos públicos, baseado no número

de matrículas em educação básica, nas redes estaduais, municipais e do

Distrito Federal. A distribuição foi assegurada inicialmente pelo Fundo

de Desenvolvimento do Ensino Fundamental – Fundef (Emenda Cons-

titucional n. 14, de 12.9.1996), posteriormente ampliado para incluir

a educação infantil e o ensino médio, no hoje denominado Fundo de

Desenvolvimento do Ensino Básico – Fundeb (art. 60, do Ato das Dis-

posições Constitucionais Transitórias, com a redação da Emenda Cons-

titucional n. 53, de 19.12.2006).

A Constituição Federal também prevê a destinação de recursos pú-

blicos às escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, em caráter

de fomento, atendidas as condições fixadas nos seus incisos do art. 213.

Esta previsão, por evidente, deve ser conjugada à do art. 205 no qual,

expresso o dever do Estado para com a educação, indica-se a necessá-

ria colaboração da sociedade, o que se reforça em face do art. 209, que

permite o oferecimento do ensino pela iniciativa privada, observadas

as normas gerais de educação e de autorização e avaliação de qualidade

pelo poder público.

No que diz respeito ao exercício do direito à educação, já assegu-

rado indiretamente pelo conjunto das previsões constitucionais antes

indicadas, merecem destaque o seu reconhecimento como direito in-

dividual e a qualificação do ensino fundamental como direito público

subjetivo, tal como previsto nos arts. 205 e 208 § 1o, respectivamente.

Tais previsões facultam ao indivíduo, aos grupos ou categorias, às asso-

ciações, entidades de classe, organizações sindicais ou entes estatais per-

sonalizados, como é o caso do Ministério Público, demandar a garantia

ou tutela do interesse individual, coletivo ou público, por intermédio

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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dos mecanismos previstos na própria Constituição Federal, como a ação

civil pública, mandado de segurança, mandado de injunção, ação direta

de inconstitucionalidade por omissão, dentre outros3.

Notamos, ainda, a extensão da titularidade do direito subjetivo à

educação a grupos de pessoas indeterminadas, como as gerações futu-

ras, por exemplo. É o que se comprova, a partir da previsão do art. 6o,

em face do conteúdo do art. 210 (relativo aos conteúdos mínimos para o

ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e

respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais), e de seu

§ 2o (que, como exceção à regra geral de utilização da língua portuguesa

no ensino fundamental, assegura às comunidades indígenas a utilização

de línguas maternas).

Além disso, o direito à educação beneficia-se das garantias consti-

tucionais próprias aos direitos e garantias fundamentais, expressas no

§ 1o, do art. 5o e do § IV, inciso IV, do art. 60, e também das normas

internacionais relativas a direitos humanos, conforme assegura o § 2o,

do art. 5o.

De todas as disposições constitucionais apontadas resultam, ine-

quivocamente, avanços relevantes na promoção, proteção e exercício

do direito à educação, em benefício da ampliação das possibilidades de

participação do indivíduo na elaboração dos valores da sociedade a que

pertence, como já indicado.

A recente jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em matéria

educacional tem acompanhado esta evolução, sendo inegável a amplia-

ção da atuação da Corte no que concerne à implementação de políticas

públicas educacionais, em particular no que se refere à educação infantil

e fundamental, de competência dos municípios4.

3. A propósito, consultar Ranieri (1994).

4. Cf. AI 455802 (relator ministro Marco Aurélio, DOU de 5.3.2004), AI 411518 (relator

ministro Marco Aurélio, DOU de 3.3.2004), AI 475571-8 (relator ministro Arco Aurélio, DOU

de 31.3.2004 ), RE 401880 (relator ministro Eros Grau, DOU de 28.9.2004), RE 402024 (relator

ministro Carlos Velloso, DOU de 27.10.2004), RE 410715 (relator ministro Celso de Mello,

DOU de 8.11.2005), RE 438493 (relator ministro Joaquim Barbosa, DOU de 12.12.2005), RE

293412 (relator ministro Eros Grau, DOU de 29.5.2006).

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No que diz respeito às competências concorrentes dos Estados-

membros, entretanto, tem se mostrado dúbia, não sedimentada, sendo

razoável supor que o baixo número de demandas levado ao conheci-

mento da Corte e as dificuldades inerentes à efetivação de direitos sociais

contribuam para tanto. Contudo, de modo geral, apesar da pouca mar-

gem de ação legislativa deixada aos estados pela Constituição Federal,

observamos que entre ambiguidades, avanços e retrocessos, a garantia

dos meios de acesso e permanência na escola têm sido ampliados.

É o que passamos a demonstrar, com a observação de que a escolha

dos acórdãos deve-se às particularidades do caso analisado, bem como à

qualidade do debate realizado no Plenário do STF, sem pretender exaurir

todas as decisões referentes ao tema.

O Supremo Tribunal Federal e as Competências Concorrentes

em Matéria Educacional

O Caso das Mensalidades Escolares. Garantia dos Meios de

Acesso e Permanência na Escola e Iniciativa Privada

ADIN 1.007-75. Requerente: Confederação Nacional dos Estabeleci-

mentos de Ensino (Confenen). Requeridos: governador do Estado de

Pernambuco e Assembléia Legislativa do Estado de Pernambuco. O Tri-

bunal Pleno decidiu, por maioria de votos, pela procedência da ação,

acompanhando o voto do relator, ministro Eros Grau6.

A Confenen pleiteou a declaração de inconstitucionalidade da Lei

10.989/93, do Estado de Pernambuco, que fixava o último dia do mês,

em que ocorreria a prestação dos serviços educacionais, para o paga-

mento das mensalidades escolares.

O governador do Estado em sua manifestação asseverou que, dada

a inexistência de lei federal que disponha sobre a oportunidade do pa-

5. Entende-se ADIN como abreviatura de Ação Direta de Inconstitucionalidade.

6. Brasil, Supremo Tribunal Federal, Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade. Lei

n. 10.989/93 do Estado de Pernambuco. Educação: Serviço público não privativo. Mensalida-

des escolares. Fixação da data de vencimento. Matéria de direito contratual. Vício de iniciati-

va, ministro relator Eros Grau, DOU de 24.2.2006.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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gamento das mensalidades escolares, o Estado Pernambucano exerceu

a competência legislativa plena. A Assembléia Legislativa, por sua vez,

fez notar que a lei impugnada propunha-se, tão-somente, a evitar o pri-

vilégio, das escolas, de receber antecipadamente a remuneração pelos

serviços prestados.

A Corte não vislumbrou, no texto normativo, legislação sobre edu-

cação ou ensino, mas matéria de direito contratual, de competência

privativa da União. Afastou também, na situação examinada, eventual

relação de consumo, o que ensejaria a competência concorrente do Es-

tado, na forma do art. 24, V, da Constituição Federal. O argumento cen-

tral, nos votos vencedores (ministros Nelson Jobim, Sepúlveda Pertence,

Carlos Velloso, Marco Aurélio, Ellen Gracie, César Peluso e Eros Grau),

foi o de que não seria viável instituir tratamento diferenciado para o

vencimento de obrigações, sob o manto das peculiaridades estaduais,

não obstante eventuais abusos do poder econômico (matéria já enfren-

tada pela Corte, no início dos anos de 1990, em face de lei federal).

Chamam atenção, nos debates, as distinções feitas pelo ministro

Eros Grau entre “cidadão” e “agente econômico”, em face da relação con-

tratual que se instaura perante as instituições de educação privadas:

[...] a relação contratual de que se cuida não é travada entre prestador de ser-viço e mero consumidor, porém aquele e usuário de serviço público, isto é, cidadão. Daí porque não há pura e simplesmente, na hipótese, uma relação de consumo, o que ensejaria a ponderação do disposto no art. 24, inciso V, da Constituição do Brasil. As relações de consumo são acessíveis unicamente a quem possa ir ao mer-cado portando moeda suficiente para adquirir bens e serviços, situação bem diversa daquela em que se situa o cidadão usuário do serviço público (p. 15).

E mais:

[...] Não posso reduzir o cidadão a um agente econômico que tem direitos

porque travou relações com um produtor de bens ou de serviços e que, atuando no mercado e tendo pago o custo, o preço desses bens, desses serviços, merece proteção jurídica. Não! A proteção jurídica que o usuário do serviço público merece do or-denamento jurídico é anterior ao seu ingresso no mercado. Ele a obtém na medida em que participa, como cidadão, do Estado (p. 19).

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Não concordando com esta posição, o ministro Carlos Britto mani-

festou-se no sentido de “[...] que o cidadão, o consumidor e o usuário de

serviço público merecem proteção do Estado, cumulativamente. Uma

coisa não exclui a outra. A ordem jurídica protege o cidadão, o con-

sumidor e o usuários, cumulativamente”. Propôs, ainda, que o Estado

tome decisões de mercado, e que saia em defesa do consumidor, prin-

cipalmente do consumidor de atividade educacional, que é um direito

social (p. 20 e ss.). O entendimento foi acompanhado pelos ministros

Celso de Mello e Joaquim Barbosa, para reconhecer a possibilidade de

interferência estatal no âmbito das relações firmadas entre os donos de

estabelecimentos educacionais e os pais de alunos, a fim de proteger e

salvaguardar o direito à educação (p. 30 e ss).

Neste caso, ainda que não seja ampliada a proteção do direito à edu-

cação, a oposição que se instala entre as duas correntes contribui para

promover o necessário debate acerca das relações de mercado no campo

da educação, no que concerne à regulação de abusos do poder econômi-

co e das relações de consumo.

Para a primeira corrente, impõe-se a prevalência da matéria contra-

tual, de caráter geral e de competência da União, uma vez que o sistema

de produção, fundado em contratos, padeceria de insegurança jurídica

se perturbado por diferentes normas, em diferentes estados. Por outro

lado, percebemos no voto do relator e em suas manifestações posterio-

res, que a categorização da educação como “serviço público”, não priva-

tivo do Estado, visa, exatamente, fazer com que a matéria “subexamine”

transcenda o campo meramente contratual da iniciativa privada, de tal

forma que se imponha induvidosamente a natureza pública da educa-

ção. Esta posição, de resto sempre adotada pelo ministro Eros Grau, não

é aqui considerada suficiente para fundamentar a constitucionalidade

da legislação estadual, como ocorreu em outros casos.

Para a segunda corrente, os problemas relacionados às mensali-

dades escolares envolvem diretamente o direito à educação e, conse-

quentemente, à cidadania, o que não exclui, como vimos, a defesa do

consumidor. Sua regulação, portanto, favoreceria a proteção dos alunos,

principalmente dos carentes.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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Não há dúvida de que esta última posição, ainda que minoritária,

apresenta, de forma mais simples, maior garantia de acesso à educação.

A natureza pública da educação advém de seu caráter democrático, em

benefício da ampliação das possibilidades de exercício da cidadania, in-

dependentemente de sua conceituação como serviço público. Ademais,

o ensino, na iniciativa privada, esta condicionado pela atividade estatal

de controle e avaliação, bem como pelo atendimento de normas gerais,

nos termos do art. 209 da Constituição.

O mesmo debate já havia sido desenvolvido anteriormente, por

ocasião do julgamento da ADIN 1.266-5, com resultados diferentes como

veremos a seguir.

O Caso do Material Escolar. Garantia de Acesso e Permanência

na Escola e Iniciativa Privada

ADIN 1.266-5/BA. Requerente: Confederação Nacional dos Estabe-

lecimentos de Ensino – Confenen. Requeridos: governador do Estado

da Bahia e Assembléia Legislativa do Estado da Bahia. O Tribunal Ple-

no, por maioria de votos, acompanhou o voto do relator, ministro Eros

Grau, para julgar improcedente a ação7.

A Confenen, com fundamento no art. 103, IX, da Constituição Fe-

deral, requereu a declaração de inconstitucionalidade da Lei n. 6.586/94,

do Estado da Bahia, que regulamenta a adoção de material escolar e de

livros didáticos pelos estabelecimentos de ensino particulares de educa-

ção básica.

A finalidade da lei consistia em assegurar ao aluno, e a seus respon-

sáveis, garantias de acesso e permanência na escola, especificamente em

relação ao material a ser utilizado durante o período letivo, tais como:

ciência da quantidade, vedação da indicação de preferência por marca

ou modelo de qualquer item; possibilidade de entrega do material em

uma única vez ou de forma parcelada etc.

7. Brasil, Supremo Tribunal Federal, Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade. Lei

n. 6.584/94 do Estado da Bahia. Adoção de material escolar e livros didáticos pelos estabele-

cimentos particulares de ensino. Serviço público. Vício formal. Inexistência, ministro relator

Eros Grau, DOU de 23.9.2005.

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NINA BEATRIZ STOCCO RANIERI

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A propósito, afirmou o relator: “[...] que os serviços de educação,

seja os prestados pelo Estado, seja os prestados por particulares, configu-

ram serviço público não privativo, isto é, podem ser prestados pelo setor

privado independentemente de concessão, permissão ou autorização.

São, porém, sem sombra de dúvida, serviço público. O Estado membro

detém competência para legislar sobre a matéria, nos termos do art. 24,

IX, da Constituição” (ADIN 1.266-5, p. 102). De outra parte, sustentou o

ministro Joaquim Barbosa, em apoio à tese de que embora a educação

não tenha a natureza de serviço público, tal como sustentado pelo rela-

tor, remanesce a competência concorrente do Estado para legislar sobre

educação, dada a sua natureza de direito fundamental (p. 107).

Neste caso, a Corte afirmou a competência concorrente dos Esta-

dos-membros, em benefício da maior proteção aos direitos fundamen-

tais, mesmo interferindo em relações privadas. Em situações análogas,

pronunciou-se posteriormente no mesmo sentido, como demonstram

os acórdãos proferidos na ADIN 682-7, relativa à Lei n. 9.346/90 do Esta-

do do Paraná, DJ 11.5.2007, e na ADIN 3.669-6, relativa à Lei Distrital n.

3.694, de 8.11.2005, DJ 29.6.2007, dentre outras.

Importante notarmos que o entendimento da Corte, neste caso,

não se constituiu em precedente para o julgamento da ADIN 1.007-7/

PE, antes comentada. Aqui, entendeu-se que o disposto no art. 209 da

Constituição Federal, relativo à liberdade de ensino conferida à inicia-

tiva privada, não fora afrontado pelo Estado da Bahia, com exceção do

voto do ministro Marco Aurélio (p. 104).

O mais curioso é que a argumentação do relator, acerca da natureza

jurídica da educação, como de serviço público não privativo, embora

não fosse acolhida pelos demais ministros, constituiu o fundamento de

seu voto, para afastar a ingerência indevida da lei estadual no domínio

privado.

Tanto neste caso como no anterior, o debate acerca deste ponto

específico – educação como serviço público não privativo – produziu

posicionamentos diversos e inconclusivos, posto não ser o objeto espe-

cífico da questão levada à corte.

O ministro Carlos Britto, por exemplo, entendeu que “saúde públi-

ca e educação são atividades ambivalentemente estatais e privadas, ou

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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seja, mistamente públicas e privadas, porque admitem duas titularida-

des, os dois senhorios”, excluindo ambas da área dos serviços públicos,

até porque o art. 175 da Constituição Federal deixa claro que serviço

público é aquele titularizado pelo Estado (pp. 105-106). Já o ministro

Sepúlveda Pertence concluiu que, em termos constitucionais, “o ensino

privado não é serviço público; é uma atividade privada, mas porque im-

bricada com o direito à educação, sujeita a regulamentações públicas”

(p. 107). Para o ministro Joaquim Barbosa “a fundamentalidade desse

direito é que leva à legitimação da atuação do Estado, no sentido de

disciplinar essa prestação” (p. 108). O ministro Gilmar Mendes, por ou-

tro lado, manifestou-se no sentido de que não é necessário converter a

educação em serviço público, nem chegar a um meio termo, “porque é

comum o entendimento de que é passível de regulação a matéria por

parte do Estado” (p. 108).

Ao que tudo indica, esse debate deve se reproduzir em situações

análogas. O problema que se põe nessa definição diz respeito à tormen-

tosa conciliação entre Estado de Direito e Estado Social.

O Estado de Direito é um conceito formalmente jurídico, não o sen-

do do Estado Social. As limitações do primeiro são de natureza técnica,

voltadas à preservação do dualismo Estado/sociedade, do que resulta a

circunscrição do fenômeno do poder ao seu contorno constitucional.

No Estado Social, ao contrário, pressupõe-se um Estado politicamente

ativo, que desempenha funções interventivas, e que praticamente des-

conhece aquele dualismo. Em o desconhecendo, é até mesmo possível

que algumas intervenções venham a ultrapassar os limites de controle

do Estado de Direito, alterando o caráter geral das normas em nome

da legitimação de aspirações sociais, e relativizando as suas funções de

bloqueio do modelo constitucional tradicional8.

Observamos a mesma situação no caso a seguir comentado.

8. Cf. Nina Ranieri, Educação Superior, Direito e Estado. São Paulo, Edusp/Fapesp,

2000, p. 269.

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NINA BEATRIZ STOCCO RANIERI

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O Caso da Meia-entrada em Espetáculos Esportivos, Culturais

e de Lazer. Garantia de Acesso à Educação e Intervenção no

Domínio Econômico

ADIN 1.950-3/SP. Requerente: Confederação Nacional do Comér-

cio – CNC. Requerido: governador do Estado de São Paulo e Assembléia

Legislativa do Estado de São Paulo. O Tribunal Pleno, por maioria de

votos, acompanhou o voto do relator, ministro Eros Grau, para julgar

improcedente a ação9.

Na ADIN 1.950-3, relativa à Lei n. 7.844/92, do Estado de São Pau-

lo (3.11.2005), volta a ser debatida a intervenção do Estado na ordem

econômica, em face do dever de garantir o acesso à educação e à cultura

(arts. 23, V, 205, 208, 215 e 217), com resultado favorável à ampliação do

direito à educação.

A referida lei assegura aos estudantes regularmente matriculados em

estabelecimentos de ensino de educação básica do Estado de São Paulo,

o pagamento de meia-entrada em espetáculos esportivos, culturais e de

lazer. Entendendo haver afronta aos arts. 170 e 174 da Constituição Fede-

ral, por indevida intervenção do Estado-membro no domínio econômi-

co, a Confederação Nacional do Comércio (CNC) propôs a ação direta.

Desta feita, em oposição às razões que determinaram a inconstitu-

cionalidade da lei pernambucana antes comentada (ADIN 1007), a Corte

reconheceu a prevalência do direito à educação sobre a livre iniciativa,

bem como a constitucionalidade da competência concorrente estadual,

nos termos do art. 24, I, por maioria de votos, nos termos do voto do

relator, ministro Eros Grau.

Asseverando não se tratar de matéria de direito civil – como ocor-

rera no caso da lei pernambucana – posicionou-se o ministro Eros Grau

pela preservação do interesse da coletividade no seguinte sentido:

9. Brasil, Supremo Tribunal Federal, Ementa: Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei

n. 7.844/92, do Estado de São Paulo. Meia entrada assegurada aos estudantes regularmente

matriculados em estabelecimentos de ensino. Ingresso em casas de diversão, esporte, cultura

e lazer. Competência concorrente entre a União, Estados-membros e o Distrito Federal para

legislar sobre direito econômico. Constitucionalidade. Livre iniciativa e ordem econômica.

Mercado. Intervenção do Estado na economia, ministro relator Eros Grau, DOU de 2.6.2006.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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No caso, se de um lado a Constituição assegura a livre iniciativa, de outro de-termina ao Estado membro a adoção de todas as providências tendentes a garantir o efetivo exercício do direito à educação, à cultura e ao desporto (arts. 23, inciso V, 205, 208, 215 e 217, § 3o, da Constituição). Ora, na composição entre esses princípios e regras há de ser preservado o interesse da coletividade, interesse público primário. A superação da oposição entre os desígnios do lucro e de acumulação de riqueza da empresa e o direito de acesso à cultura, ao esporte e ao lazer, como meio de comple-mentar a formação dos estudantes, não apresenta maiores dificuldades (p. 63).

Nos debates, salientam-se as posições contrárias dos ministros Mar-

co Aurélio e César Peluso, por vislumbrarem interferência indevida do

Estado, manifestada pelo tabelamento do valor de prestação de contra-

to. Notável o contra-argumento apresentado pelo relator às observações

do ministro Peluso, afirmando que a meia-entrada faz parte da cultura

brasileira e, portanto, deve ser mantida, no que foi acompanhado pelos

ministros Carlos Britto e Sepúlveda Pertence (fls. 73 e 74).

O Caso dos Cursos de Graduação na Área da Saúde. Competência

Concorrente e Organização Federativa dos Sistemas de Ensino

ADIN 3.098/SP. Requerente: governador do Estado de São Paulo.

Requerido: Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo. O Tribunal

Pleno, por inanimidade, julgou procedente a ação10.

Neste caso, diversamente dos anteriores, o STF apreciou matéria na

qual não se manifestava tão equívoca a conciliação entre Estado de Direi-

to e Estado Social. A flagrante inconstitucionalidade facilitou o posicio-

namento da Corte, fundado em normas educacionais, exclusivamente.

A Lei n. 10.860, de 31.8.2001, do Estado de São Paulo, estabeleceu

requisitos para criação, autorização de funcionamento, avaliação e reco-

nhecimento dos cursos de graduação na área da saúde, das instituições

públicas e privadas de educação superior, determinando que os pedidos

de criação dos referidos cursos, por universidades e demais instituições

10. Brasil, Supremo Tribunal Federal, Ementa: Constitucional. Educação. Lei de Dire-

trizes e Bases da Educação. Lei n. 9.394, de 1996. Competência legislativa concorrente: CF,

art. 24. Competência estadual concorrente não-cumulativa ou suplementar e competência

concorrente estadual cumulativa, ministro relator Carlos Velloso, DOU de 10.3.2006.

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NINA BEATRIZ STOCCO RANIERI

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de educação superior, deveriam ser encaminhados ao Conselho Estadu-

al de Educação e submetidos à prévia avaliação do Conselho Estadual

de Saúde.

Sustentou o requerente afronta aos arts. 22, XXIV, e 24, IX, § 1o e § 2o,

da Constituição Federal, por violação da competência da União e, por

consequência, contrariedade ao art. 209, da Constituição Federal. Este

entendimento foi acompanhado pelo relator ministro Carlos Velloso,

que confirmou ter a lei estadual excedido a competência concorrente

suplementar, uma vez que editada quando já existente a lei de diretri-

zes e bases e sem qualquer conexão a peculiaridades locais. Além dis-

so, dispunha sobre instituições que não integravam o sistema de ensino

paulista, invadindo a esfera de competências da União. Nesses termos,

claro estava que a Lei n. 10.860, de 31.8.2001, do Estado de São Paulo

não cuidava de matéria de competência concorrente suplementar ou de

competência plena, em virtude de lacuna11.

Destaca-se no voto do relator a clareza da análise do art. 24, da

Constituição Federal, quanto às hipóteses em que o direito federal afas-

ta o direito estadual de suplementação e em que a legislação estadual

preenche a lacuna deixada pela legislação federal, exercendo competên-

cia legislativa plena para atender a suas peculiaridades. In casu, a edi-

ção da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.394, de

20.12.1996) afastou a possibilidade da lei estadual cuidar da matéria.

A propósito, o ministro Nelson Jobim apontou “uma espécie de re-

serva de mercado paulista em relação à autorização desses cursos, en-

trando exatamente no sistema (o que) criaria uma situação curiosa: as

universidades federais estariam sujeitas à autorização do Conselho de

Saúde” (fls. 117).

Nos debates, por sua vez, destaca-se a posição do ministro Carlos

Britto, restritiva em relação ao âmbito da competência concorrente dos

Estados no que diz respeito à atuação da iniciativa privada na área edu-

11. Situação análoga foi igualmente examinada pelo Supremo Tribunal Federal, nos

autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.399-8, São Paulo, em face da Lei Estadual

n. 9.164/95, que estabelecia a exigência de formação específica par o exercício do magistério.

Relator ministro Maurício Correa, m.v., j. 3.3.2004, DJU 11.6.2004.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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cacional, mercê do art. 209, I, da Constituição. No seu entender, a exi-

gência de atendimento das normas gerais de educação nacional excluiria

os Estados da competência legiferante para conformar a atividade priva-

da em tema de ensino (fls. 116).

Esta é uma posição isolada que, se sedimentada, criaria dificuldades

para os Estados-membros normatizarem os seus respectivos sistemas de

ensino (que na educação básica, incluiu as instituições privadas de en-

sino, cf. art. 17 da LDB), conforme assegurado pelo art. 10, V, da LDB, e

para fazer frente aos encargos decorrentes da previsão do art. 23, V da

Constituição Federal.

O Caso da Expedição de Certificado de Conclusão do Ensino

Médio Independentemente do Número de Aulas Frequentadas

por Alunos do 3o Ano do Ensino Médio. Princípio da Igualdade e

Garantia de Acesso ao Ensino Superior

ADIN 2.667-4/DF. Requerente: Confederação Nacional dos Estabele-

cimentos de Ensino – Confenen. Requerida: Câmara Legislativa do Dis-

trito Federal. Tribunal Pleno, por unanimidade, acompanhou o voto do

relator, ministro Celso de Mello, para julgar procedente a ação12.

A Lei n. 2.912, de 22 de fevereiro de 2002, do Distrito Federal, de-

terminou aos estabelecimentos de ensino que expedissem o certificado

de conclusão do ensino médio, em favor de alunos da terceira série do

ensino médio, que, independentemente do número de aulas por eles fre-

quentadas, comprovassem aprovação em vestibular para ingresso em ní-

12. Brasil, Supremo Tribunal Federal, Ementa: Ação Direta de Inconstitucionalidade –

Lei distrital que dispõe sobre a emissão de certificado de conclusão do curso e que autoriza

o fornecimento de histórico escolar para alunos da terceira série do ensino médio que com-

provarem aprovação em vestibular para ingresso em curso de nível superior – Lei distrital

que usurpa competência legislativa outorgada à União federal pela Constituição da República

– Considerações em torno das lacunas preenchíveis – Norma destituída do necessário coe-

ficiente de razoabilidade – Ofensa ao princípio da proporcionalidade – atividade legislativa

exercida com desvio de poder – Plausabilidade jurídica do pedido – Deferimento da medida

cautelar com eficácia ex tunc. A usurpação da competência legislativa, quando praticada por

qualquer das pessoas estatais, qualifica-se como ato de transgressão constitucional, ministro

relator Celso de Mello, DOU de 12.3.2004.

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NINA BEATRIZ STOCCO RANIERI

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vel superior. Determinava, ainda, que a expedição do diploma se fizesse

em tempo hábil, de modo que o aluno pudesse matricular-se no curso

superior para o qual fora habilitado.

Vetada a lei distrital pelo governador, com fundamento no art. 22,

XXIV, da Constituição Federal, a Confederação Nacional dos Estabele-

cimentos de Ensino – Confenen, independentemente de prévia solici-

tação de informações à Câmara Legislativa, ajuizou ação direta de in-

constitucionalidade, com pedido de medida cautelar, com a finalidade

de impugnar a referida lei. A medida liminar foi deferida em votação

unânime pelo Tribunal Pleno, com eficácia ex-tunc, acompanhando o

voto do ministro Celso de Mello, relator.

O ministro Celso de Mello, relator, deferiu o pedido de liminar, com

fundamento na desnecessidade de atuação normativa do DF, em face

existência da legislação nacional sobre a matéria e da inexistência de pe-

culiaridades locais que justificassem a necessidade de atendimento pela

referida norma distrital.

Em seu voto enfatizou a afronta à Lei n. 9.394/96, no concernente à

obrigatoriedade de cumprimento, pelo aluno, de conteúdos mínimos e

de carga horária mínima de oitocentas horas, distribuídas em duzentos

dias de efetivo trabalho escolar (conforme já assinalado enfaticamente

pelo Conselho Nacional de Educação), e o tratamento discriminatório

assim instituído entre cidadãos brasileiros, em desrespeito ao princípio

da isonomia.

Mais ainda, apontou a falta de atendimento, pelo legislador dis-

trital, de padrões mínimos de razoabilidade, fundados no princípio da

proporcionalidade, este último qualificado, pela jurisprudência da Cor-

te, como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material

dos atos estatais. “Não se pode desconhecer que as normas legais [...]

devem ajustar-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o

princípio do substantive due process of law (art. 5o, LIV) [...]”.

A norma inscrita no art. 5o, LIV, da Constituição, reafirmou, propor-

ciona um decisivo fator obstativo que deslegitima a edição de atos legis-

lativos revestidos de conteúdo arbitrário ou irrazoável, como é o caso.

Neste caso, aventou-se, desde logo, a matéria educacional, não se

apresentando qualquer dúvida acerca da abrangência nacional Lei de

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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Diretrizes e Bases da Educação (Lei n. 9.394/96) e da impossibilidade de

legislação estadual suplementar. A Corte manifestou-se veementemente

contra o “desvio de poder legislativo” em que incorreu a Câmara Legis-

lativa do Distrito Federal, enfatizando a noção de que a prerrogativa de

legislar outorgada ao Estado constitui atribuição jurídica essencialmen-

te limitada.

Considerações Finais

Nos cinco casos comentados, notamos que as questões levadas ao

conhecimento do STF, em sede de controle normativo abstrato, mais

suscitaram discussões relativas à matéria de direito econômico, direi-

to civil, direito do consumidor, conexas à problemática educacional do

que, propriamente, a análise desse conteúdo específico vis-à-vis a com-

petência estadual concorrente.

É bem verdade que são tênues e duvidosos os limites entre a lei de

diretrizes e bases da educação nacional, as normas gerais de educação

e a suplementação normativa possibilitada aos Estados-membros, em

especial quando o caso não apresenta inconstitucionalidades flagran-

tes. Ainda assim, nem sempre a finalidade da lei estadual tem sido vista

pela Corte como um fator que possibilite interpretação mais benéfica

à afirmação do direito à educação, embora esta posição não pareça se

apresentar como regra.

Foi o que ocorreu, por exemplo, em termos de maior restrição ao

exercício da competência concorrente estadual, na Ação Direta de In-

constitucionalidade n. 1.007-7, julgada em 31.8.2005, que teve por obje-

to a análise de constitucionalidade da Lei n. 10.989, de 7.12.1993, do Es-

tado de Pernambuco, em face de matéria considerada pela Corte como

de direito civil.

Por outro lado, na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.266-

5, referente à Lei n. 6.586/94, do Estado da Bahia (6.4.2005), a Corte

se manifestou em sentido contrário, entendendo prevalecer a matéria

educacional sobre os demais aspectos de direito econômico, posição

reafirmada posteriormente na Ação Direta de Inconstitucionalidade n.

1.950-3, relativa à Lei n. 7.844/92, do Estado de São Paulo (3.11.2005).

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NINA BEATRIZ STOCCO RANIERI

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Observamos também que em situações nas quais a atuação legis-

lativa estadual é de manifesta inconstitucionalidade, por afronta ao art.

24, IX, § 2o e 3o, da Constituição Federal (como o demonstra a Ação

Direta de Inconstitucionalidade n. 3.098-1, relativa à Lei n. 10. 860, de

31.8.2001, do Estado de São Paulo), a matéria educacional tem sido mais

facilmente focada. Sob este ângulo, a apreciação da Ação Direta de In-

constitucionalidade n. 2.667-4, referente à Lei n. 2.912, de 22.2.2002, do

Distrito Federal, é paradigmática.

Em todos os casos, porém, entre ambiguidades, avanços e retroces-

sos, a jurisprudência do STF propiciou significativos avanços na proteção

do direito à educação e da definição do âmbito e dos limites da atuação

estatal, sendo notáveis as discussões acerca da possibilidade de inter-

venção do Estado no domínio econômico para realização do programa

educacional enunciado pela Constituição.

Não é simples a compatibilização do Estado de Direito ao Estado

Social. Se por um lado se faz necessário garantir que valores comuns

sejam admitidos pelos grupos envolvidos, o que constitui um problema

eminentemente político, de outro, impõe-se um quadro constitucional

rigoroso, balizando a atuação do Estado, o que é um problema exclusi-

vamente jurídico.

Em outra oportunidade concluímos, que a grande dificuldade desta

compatibilização reside em impedir que as chamadas funções sociais do

Estado se transformem em funções de dominação, o que também seria

propiciado pelo puro formalismo. Este é o desafio que se apresenta à for-

mulação e implementação de uma política de educação no Brasil, desa-

fio que não é inédito nem exclusivo da área educacional. A Constituição

Federal de 1988 exige do Estado a responsabilidade pela transformação

social, sendo pressuposto desta função a articulação e a qualificação do

interesse público e do interesse individual, na linha de princípio do Es-

tado Social.

Não há dúvida de que a atuação do Supremo Tribunal Federal ofe-

rece um panorama privilegiado dessa situação, como procuramos de-

monstrar.

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Paulo, Imprensa Oficial.RANIERI, Nina. 1994. Direito ao Desenvolvimento e Direito à Educação – Relações

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Introdução

Em uma democracia fundada na tripartição das funções do Estado,

o Judiciário tem um papel de relevo na realização dos direitos humanos,

assegurando a sua prevalência em situações de ameaça ou remediando

uma violação já consumada.

O presente trabalho tem por objetivo analisar os mecanismos exis-

tentes para o desempenho da função judicial – e, devido à similaridade

de propósito, também aqueles de caráter “quase-judicial” – em relação a

um direito humano específico: o direito à educação.

Para tanto, inicia-se com uma investigação acerca da “justiciabilida-

de” do direito à educação, haja vista que, assim como ocorre com outros

direitos econômicos, sociais e culturais, a crença de que sua implemen-

tação depende sempre de uma atuação positiva do Estado faz com que

se alegue que o Judiciário não teria legitimidade ou competência para

tomar decisões que, direta ou indiretamente, afetam o desenho de polí-

ticas públicas ou a alocação de recursos no orçamento estatal.

Uma vez firmado o protagonismo do Judiciário nessa seara, parte-

se para a apresentação de um panorama dos principais mecanismos ju-

O Poder Judiciário e oDireito à Educação

Eduardo Pannunzio

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EDUARDO PANNUNZIO

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diciais e quase-judiciais disponíveis para se fazer valer o direito à educa-

ção, tanto no plano doméstico quanto internacional.

Na terceira parte do trabalho, é então avaliado como os órgãos

responsáveis pelo funcionamento desses mecanismos têm atuado. Na

esfera doméstica, isso é feito por meio do exame da jurisprudência do

Supremo Tribunal Federal (STF), desde a data da promulgação da Cons-

tituição Federal de 1988 até os dias atuais. No campo internacional, pela

análise das deliberações dos órgãos ligados à Organização das Nações

Unidas (ONU) e à Organização dos Estados Americanos (OEA).

Por fim, este trabalho se encerra com algumas conclusões feitas com

base nas considerações apresentadas nas seções precedentes.

A Justiciabilidade do Direito à Educação

Há mais de cinquenta anos, a Declaração Universal dos Direitos

Humanos já consagrava a educação como um direito humano1. Essa con-

cepção foi confirmada e aprofundada em diversos outros instrumentos

internacionais editados nas décadas seguintes, com destaque para o Pac-

to Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc) da

Organização das Nações Unidas (ONU)2, celebrado em 1966 e incorpo-

rado ao ordenamento jurídico brasileiro em 1992, com a publicação do

Decreto n. 591.

O mesmo ocorreu no plano jurídico interno. A Constituição Federal

não apenas contemplou os direitos decorrentes dos tratados ratificados

pelo Estado Brasileiro3 o que inclui, evidentemente, o direito à educação

tal como estabelecido no Pidesc, entre outros –, como elevou a educa-

ção à categoria de direito fundamental, incluindo-a no rol dos direitos

de caráter social4 que integram o seu título II, dedicado justamente aos

“Direitos e Garantias Fundamentais”.

1. Cf. Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Resolução da Assem-

bléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) n. 217 A (III), de 10.12.1948, art. 26.

2. Cf. Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, promulgado pelo

Decreto n. 591/92, art. 13.

3. Cf. Constituição Federal, art. 5o, § 2o.

4. Idem, art. 6o.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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Essa categorização não é livre de consequências, principalmente no

que se refere ao acesso ao Judiciário por parte dos titulares desse direito.

Vejamos.

O Valor Agregado da Abordagem de Direitos Humanos

Reconhecer a educação como um direito humano não é uma mera

operação retórica. Ao contrário, implica a sujeição a um marco concei-

tual e normativo específico, com importantes desdobramentos. Para os

objetivos deste trabalho, é suficiente mencionar dois deles.

Em primeiro lugar, tratar uma determinada utilidade como um di-

reito humano significa que ela não pode ser vista como caridade (Office

of the United Nations High Commissioner for Human Rights, 2008c)

nem como uma commodity cuja distribuição é determinada pelo merca-

do (Leary, 2003, pp. 481-493, especialmente p. 482), mas sim como uma

prerrogativa (entitlement) (Osmani, Nowak & Hunt, 2008) especialmen-

te forte que os indivíduos possuem como uma questão de direito.

Como lembra Dworkin (1977, p. 90), a proposição que descreve um

direito constitui um argumento de princípio. Trata-se de um parâmetro

que reclama aplicação devido a uma exigência de equidade, justiça ou

qualquer outra dimensão da moralidade, independentemente da even-

tual circunstância de favorecer ou prejudicar a consecução de algum ob-

jetivo coletivo de caráter econômico, político ou social (Dworkin, 1977,

pp. 22 e 91). Este é, sem dúvida, o caso dos direitos humanos, fundados

naquilo que o filósofo denomina “um dos mais fundamentais de todos

os princípios morais”: o princípio da humanidade compartilhada, se-

gundo o qual toda vida humana possui um valor intrinsecamente rele-

vante e igual (Dworkin, 2003).

Isso não significa, evidentemente, que direitos são absolutos, no

sentido de que devem invariavelmente triunfar; afinal, isso conflitaria

com a própria noção dworkiana de princípios, que, diferentemente de

regras, não funcionam sob a lógica do tudo-ou-nada (Dworkin, 1977,

p. 24). No entanto, notadamente quando se está diante de direitos em

face do Estado, o “peso” que tais prerrogativas assumem vis-à-vis outros

objetivos políticos é especialmente forte. O próprio Dworkin consegue

aventar unicamente três hipóteses em que um direito dessa natureza

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EDUARDO PANNUNZIO

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poderia sofrer alguma limitação: quando se demonstrar que os valores

protegidos pelo direito não estão realmente ameaçados; quando ele pu-

der prejudicar o exercício de um outro direito de importância equiva-

lente; ou, finalmente, quando a sua concretização seja capaz de gerar um

custo totalmente excepcional e elevado à comunidade (Dworkin, 1977,

p. 200).

Em suma: quando direitos humanos estão em jogo, a presunção é

por sua prevalência sobre considerações de outra ordem. Esta própria

constatação equivale a um princípio sem o qual não há como se compre-

ender – e, quanto menos, justificar – a prática política de uma comuni-

dade que resolveu incorporar seriamente o ideal dos direitos humanos.

O segundo desdobramento que importa realçar, no presente traba-

lho, é que a categorização da educação como direito humano implica a

sua sujeição aos princípios que são comuns ao “direito dos direitos hu-

manos” (Robinson, 2008).

Essa abordagem deve assegurar, por exemplo, um papel importante

para o princípio da não-discriminação nas decisões relacionadas à edu-

cação, enfatizando a necessidade de se promover a igualdade entre os in-

divíduos e, portanto, garantindo uma especial atenção a grupos sociais

mais vulneráveis (Robinson, 2008).

Participação é outro princípio de direitos humanos de grande im-

portância para a educação (Robinson, 2008). Ele determina que políti-

cas educacionais devem ser elaboradas, executadas e monitoradas com o

ativo e efetivo envolvimento daqueles que serão por elas afetadas e pela

sociedade civil em geral.

Mais significante ainda, uma abordagem de direitos humanos à

educação traz à tona o princípio da accountability (Robinson, 2008).

Se políticas educacionais estão ligadas a direitos, os seus aspectos subs-

tantivos e procedimentais não estão sujeitos à discricionariedade de go-

vernos. Muito ao contrário, estão eles vinculados por parâmetros que

devem ser seguidos como obrigações legais e que, portanto, podem ser

reclamados por indivíduos como prerrogativas jurídicas.

É nesse sentido que se costuma falar na “justiciabilidade” dos di-

reitos humanos, ou seja, na possibilidade de serem invocados perante

o Poder Judiciário (ou outro órgão com funções análogas) e aplicados

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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pelos juízes (Sheinin, 2001, pp. 29-54, especialmente p. 29), em benefício

de seus titulares.

Afirmar, portanto, que a educação é um direito humano implica o

reconhecimento de que, sempre que essa prerrogativa estiver sob ameaça

ou tiver sido violada, o(s) seu(s) titulares devem poder recorrer ao Judici-

ário a fim de obter um provimento capaz de assegurar a sua prevalência.

Resistências à Justiciabilidade dos Direitos Sociais

No campo dos direitos humanos civis e políticos (como o direito

à integridade física, à liberdade de locomoção ou à liberdade religiosa,

entre outros), parece já estar sedimentada a ideia de que são eles perfei-

tamente passíveis de escrutínio pelo Judiciário. Não obstante, quando se

trata de direitos humanos econômicos, sociais e culturais – a exemplo

do direito à educação –, a sua justiciabilidade nem sempre é aceita sem

alguma resistência.

Esse tratamento diferenciado tem origem na crença, largamente

difundida, de que enquanto os direitos civis e políticos funcionariam

como barreiras à ação estatal, de modo a preservar uma esfera privada

aos indivíduos – e, nesse contexto, a edição de leis seria suficiente para

protegê-los –, os direitos econômicos, sociais e culturais demandariam,

além disso, uma atuação positiva dos governos para criar as condições

necessárias à sua realização (Arambulo, 1999, p. 60). Dessa premissa se-

gue a conclusão de que os tribunais não teriam legitimidade ou com-

petência para julgar decisões relacionadas a esta segunda categoria de

direitos, por envolver a definição de políticas públicas ou a alocação de

recursos (Hunt, 1996, pp. 24-26), as quais deveriam ser deixadas, quase

que exclusivamente, ao poder discricionário dos governos.

O argumento, contudo, é frágil em vista das teorias da tipologia das

obrigações do Estado, inicialmente desenvolvida por Henry Shue. De

acordo com a sua “tipologia tripartida de deveres”, o reconhecimento

de um “direito básico” dá luz a deveres para o Estado em três diferentes

níveis:

a. um dever de evitar privar qualquer titular daquele direito das

condições necessárias a seu exercício;

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EDUARDO PANNUNZIO

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b. um dever de proteger os indivíduos de terem o seu direito violado

por outras pessoas; e

c. um dever de ajudar aqueles que não podem satisfazer o direito

por si próprios (Shue, 1996, p. 52 e ss.).

Apesar do conceito de “direitos básicos” de Shue – isto é, direitos

cuja realização é “essencial para a realização de todos os outros direi-

tos” (Shue, 1996, p. 19) – não necessariamente corresponder ao dos di-

reitos humanos, a teoria parece ser perfeitamente passível de aplicação

a estes últimos. Asbjørn Eide, por exemplo, desenvolveu com sucesso

essas ideias para indicar que os deveres do Estado em relação aos direi-

tos econômicos, sociais e culturais também incluem obrigações em três

diferentes níveis:

a. de respeitar os recursos individuais, permitindo às pessoas que

possam satisfazer suas necessidades por si próprios;

b. de proteger os indivíduos da interferência de “sujeitos agressivos”

no exercício de sua liberdade de ação; e

c. de ajudar e satisfazer aqueles que não possuem recursos suficien-

tes para fazer frente às suas necessidades (Eide, 2001, pp. 9-28, especial-

mente pp. 23-24).

A tipologia é válida tanto para direitos civis e políticos (que po-

dem ser relacionados aos conceitos de Shue de “direitos de segurança” e

“liberdades”) quanto para direitos econômicos, sociais e culturais (que

se encaixam na sua proposta de “direitos de subsistência”). O direito à

segurança pessoal5, por exemplo, impõe ao Estado a obrigação de

a. evitar violar a segurança pessoal de qualquer indivíduo;

b. de proteger os indivíduos frente a violações por parte de outros

particulares; e

c. de ajudar aqueles cuja segurança pessoal tenha sido violada ou

esteja exposta a isso.

A obrigação “a” poderia ser ilustrada com a determinação para que

o Estado adote medidas para assegurar que os seus agentes não inter-

5. Vide Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, promulgado pelo Decreto n.

592/92, art. 9o.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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firam, fora das hipóteses da lei, na segurança pessoal dos indivíduos.

A estruturação e funcionamento de um sistema de segurança pública

eficiente para proteger a segurança individual poderia decorrer da obri-

gação “b”. Finalmente, o Estado teria ainda o dever de promover uma

investigação séria sempre que alguém tiver o seu direito violado e, tam-

bém, de garantir à vítima alguma forma de compensação, em virtude da

obrigação “c”.

O mesmo enfoque pode ser aplicado aos direitos econômicos, so-

ciais e culturais. O direito à educação demanda, por exemplo, que o

Estado:

a. respeite a liberdade dos pais de escolher as escolas que seus filhos

irão frequentar;

b. proteja os indivíduos contra ações de outros particulares que

possam ameaçar o seu direito à educação, como o aumento abu-

sivo de preços das mensalidades escolares; e

c. disponibilize um sistema público e gratuito de ensino, ou ofereça

bolsa em instituições particulares, para aqueles que não possuem

condições de arcar com os custos de sua própria educação.

Fica claro, portanto, que ambas as categorias de direitos demandam

uma atuação positiva do Estado a fim de serem plenamente realizadas,

principalmente nos níveis secundário e terciário de deveres. Constitui

uma simplificação inadequada sustentar que os direitos civis e políticos

podem ser satisfeitos apenas pela legislação, assim como que os direitos

econômicos, sociais e culturais sempre demandam um papel ativo por

parte dos governos. Como demonstrado anteriormente, algumas vezes

o Estado deve abster-se de praticar um determinado ato (no exemplo

dado, evitar o cerceamento à liberdade de escolha da escola dos filhos)

para prestar deferência a esta categoria de direitos, especialmente quan-

do o nível primário de deveres é que está em foco.

Sempre que se pretender comparar as obrigações do Estado em re-

lação a essas duas categorias de direitos é fundamental garantir que o

mesmo nível de deveres esteja sob análise. Concentrar-se no nível pri-

mário ao se examinar os direitos civis e políticos e, ao revés, no nível ter-

ciário quando são os direitos econômicos, sociais e culturais que estão

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EDUARDO PANNUNZIO

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em jogo é nada mais do que privilegiar, sob um precário disfarce, uma

categoria de direitos em detrimento da outra.

No entanto, isso é o que parecem fazer aqueles que se recusam a ad-

mitir a justiciabilidade dos direitos econômicos sociais e culturais. Afi-

nal, problemas de legitimidade e competência dos tribunais para decidir

sobre as obrigações do Estado nos níveis secundário e terciário não são

exclusividade desta categoria de direitos, aparecendo igualmente para os

direitos civis e políticos. Se ambas as categorias tiverem os seus correla-

tivos deveres analisados no mesmo nível, as dificuldades de justiciabili-

dade serão comuns a ambas.

A título ilustrativo, note-se o que ocorre em relação ao direito à

segurança pessoal. Caso o Estado falhe em cumprir com o seu dever de

proteger e, em razão disso, os indivíduos começam a ser afetados por

atos de violência na sua vida cotidiana, como os tribunais podem re-

solver este problema sem considerar temas de políticas públicas? Se de-

tentos estão cumprindo suas sentenças em penitenciárias superlotadas

porque o Estado paralisou a construção de novos estabelecimentos e,

nesse contexto, estão sujeitos a tratamento cruel, desumano ou degra-

dante, como esta evidente violação do artigo 7o do Pacto Internacional

de Direitos Civis e Políticos pode ser remediada sem considerar questões

de políticas públicas?

Esse dilema, entretanto, está longe de ser insuperável. O fato de o

Judiciário ter de avaliar a compatibilidade de políticas públicas a parâ-

metros legais não significa que ele terá de formular decisões nesta área e,

assim, substituir o papel de governos eleitos. Como Paul Hunt assinala,

com base na lição de Mureinik, “[...] A função das cortes não é a de anu-

lar uma decisão ilegal e substituí-la pela sua própria. [...] elas estariam

revendo escolhas políticas, e não fazendo-as” (Hunt, 1996, p. 67).

Trata-se, como se vê, de um juízo semelhante ao das decisões do STF

brasileiro que apreciam a constitucionalidade das leis. Ao ditar a incons-

titucionalidade de um determinado diploma normativo, a Corte retira-

lhe a eficácia, mas não edita uma nova lei para substituí-la – encargo

primariamente atribuído ao Congresso Nacional. O mesmo vale para o

campo das políticas públicas: um eventual juízo de inconstitucionalida-

de não levará o Judiciário a sobrepor-se ao Executivo, mas assegurará,

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

69

sim, que as escolhas feitas no âmbito deste poder sejam compatíveis com

o primado dos direitos humanos.

Em suma: mesmo quando levantam questões de políticas públicas

ou alocação de recursos, os direitos econômicos, sociais e culturais – o

que inclui, por suposto, o direito à educação – deve ser plenamente pas-

síveis de adjudicação. Esta é uma consequência inevitável do reconhe-

cimento, pelo Estado brasileiro, do direito à educação como um direito

humano.

Mecanismos Judiciais e Quase-judiciais de Proteção do

Direito à Educação

Fixadas as premissas para a justiciabilidade do direito à educação,

vejamos agora quais são os mecanismos judiciais ou quase-judiciais6,

tanto domésticos quanto internacionais, que podem ser acessados pelos

titulares do direito.

Ressalte-se que a análise a seguir não tem a pretensão de apresen-

tar uma relação exaustiva desses mecanismos, mas apenas de traçar um

panorama das principais vias de acesso para a reclamação do direito à

educação.

Mecanismos Domésticos

A maioria dos mecanismos disponíveis no direito brasileiro não são

exclusivos para o direito à educação, sendo normalmente aplicáveis a

direitos públicos subjetivos em geral. A única exceção talvez resida na

ação judicial prevista no artigo 5o, § 3o, da LDB – Lei de Diretrizes e Bases

da Educação Nacional (Lei n. 9.394/96), estabelece que: “Qualquer das

partes mencionadas no caput deste artigo (cidadão, grupo de cidadãos,

associação comunitária, organização sindical, entidade de classe ou ou-

tra legalmente constituída, e, ainda, o Ministério Público) tem legitimi-

dade para peticionar no Poder Judiciário, na hipótese do § 2o do art. 208

6. Por mecanismos “quase-judiciais” entendem-se aqueles que, embora dotados de

competência para decidir sobre a aplicação do direito à educação, não têm poderes para fa-

zer valer, por si só, a sua decisão, dependendo da colaboração de outro órgão ou do próprio

Estado.

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da Constituição Federal7, sendo gratuita e de rito sumário a ação judicial

correspondente.”

Dessa forma, o direito à educação pode ser protegido pelos seguin-

tes mecanismos judiciais:

a. mandado de segurança: previsto na Constituição Federal e regula-

mentado pela Lei n. 1.533/51, o mandado de segurança pode ser

individual8 ou coletivo9 e destina-se a proteger qualquer direito

“líquido e certo” (ou seja, que não demanda instrução probató-

ria), não amparado por habeas corpus, sempre que alguém sofrer

violação ou houver justo receio de sofrê-la10;

b. mandado de injunção: igualmente previsto na Constituição, o

mandado de injunção aplica-se naquelas hipóteses em que a fal-

ta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos di-

reitos e liberdades constitucionais11, como o direito à educação,

tendo o Judiciário o papel de apontar a regulamentação aplicável

até eventual edição da norma12;

7. Constituição Federal, art. 208: “O dever do Estado com a educação será efetivado

mediante a garantia de: I. ensino fundamental, obrigatório e gratuito, assegurada, inclusive,

sua oferta gratuita para todos os que a ele não tiveram acesso na idade própria; II. progressi-

va universalização do ensino médio gratuito; III. atendimento educacional especializado aos

portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino; IV. educação infantil,

em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade; V. acesso aos níveis mais eleva-

dos do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um; VI. oferta

de ensino noturno regular, adequado às condições do educando; VII. atendimento ao educan-

do, no ensino fundamental, através de programas suplementares de material didático-escolar,

transporte, alimentação e assistência à saúde. § 1o O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é

direito público subjetivo. § 2o O não-oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público,

ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente. § 3o Compete

ao Poder Público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e

zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela frequência à escola.”

8. Ver Constituição Federal, art. 5o, LXIX. 9. Idem, art. 5o, LXX.10. Cf. Lei n. 1.533/51, art. 1o. Caso o titular do direito seja criança ou adolescente, há

também, no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90), previsão expressa da possibilidade de recurso ao mandado de segurança no Estatuto da Criança e do Adolescente. Vide Lei n. 8.069/90, art. 212, § 2o.

11. Cf. Constituição Federal, art. 5o, LXXI.12. Há, pelo menos, um caso de mandado de injunção relacionado ao direito à educação

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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c. ação popular: também de base constitucional, a ação popular tem

por objetivo anular ato lesivo ao patrimônio público ou de enti-

dade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao

meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural13, podendo

ser manejada por qualquer cidadão. Encontra-se regulamentada

pela Lei n. 4.717/65;

d. ação civil pública: embora prevista na Constituição Federal ape-

nas entre as atribuições do Ministério Público14, como instru-

mento para a promoção de interesses difusos e coletivos, a Lei n.

7.347/85 ampliou a relação dos legitimados a propô-la, estenden-

do-a também às associações constituídas há mais de um ano15;

e. ação direta de inconstitucionalidade: de competência originária

do STF, a ação direta de inconstitucionalidade é regulamentada

pela Lei n. 9.868/99 e destina-se a declarar a incompatibilidade

de lei ou ato normativo federal ou estadual frente a dispositivos

da Constituição16, incluindo aqueles atinentes ao direito à edu-

cação. No entanto, são poucos os entes legitimados a utilizá-la17,

estando fora do alcance direto de cidadãos e da maioria das enti-

dades da sociedade civil;

f. arguição de descumprimento de preceito fundamental: a ADPF tem

por objetivo evitar ou reparar lesão a “preceito fundamental”18,

no STF. Trata-se do MI 727, impetrado por um estudante de pós-graduação que sustentava que a ausência de legislação federal garantindo aos estudantes o direito ao pagamento de meia passagem nos ônibus interestaduais prejudicava o seu acesso à educação. A Corte negou se-guimento ao mandado, sob a alegação de que o texto constitucional não impunha ao Estado o dever de legislar sobre a concessão de benefícios aos estudantes nos meios de transporte inte-restaduais. Vide STF, MI 727, relator ministro Eros Grau, decisão monocrática de 4.10.2005. Disponível em http://www.stf.gov.br, acesso em 21 jun. 2008.

13. Cf. Constituição Federal, art. 5o, LXXIII.14. Idem, art. 129, III.15. Cf. Lei n. 7.347/85, art. 5o, V.16. Cf. Constituição Federal, art. 102, I, “a”.17. Idem, art. 103.18. Nem a Constituição Federal nem a Lei n. 9.882/99 definem “preceito fundamen-

tal”, mas, como asseverou o ministro Gilmar Mendes, quando do julgamento da ADPF 33, “ninguém poderá negar a qualidade de preceitos fundamentais da ordem constitucional aos

direitos e garantias individuais” (entre eles o direito à educação). Vide STF, ADPF 33, relator

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resultante de ato do Poder Público, quando inexistir outro meio

eficaz para sanar a violação19. É também de competência origi-

nária do STF20 e os legitimados a propô-la são os mesmos da ação

direta de inconstitucionalidade21. Encontra-se regulamentada

pela Lei n. 9.882/99;

g. ação judicial da LDB: além das ações constitucionais acima elenca-

das, é importante ressaltar, como já mencionado, que a LDB pre-

vê uma ação judicial, de rito sumário e gratuita, no caso de não-

oferecimento do ensino obrigatório pelo poder público ou de

sua oferta irregular. Apesar da amplitude desse mecanismo – que

pode ser acessado por qualquer cidadão, dentre outros legitima-

dos –, ele aparentemente tem sido pouco utilizado no Brasil.

A par das ações judiciais acima apontadas, vale mencionar ainda a

existência de mecanismos quase-judiciais previstos na legislação brasilei-

ra. Dentre eles, destacam-se:

a. no âmbito geral, o direito de petição aos poderes púbicos, previsto

no artigo 5o, XXXIV, “a”, da Constituição Federal como um ins-

trumento para a “defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abu-

so de poder”, independentemente do pagamento de taxas;

b. no âmbito específico da educação, o Conselho Nacional de Edu-

cação (e órgãos análogos instituídos no âmbito dos sistemas es-

taduais e municipais de ensino), com atribuições normativas,

deliberativas e de assessoramento ao Ministro de Estado da Edu-

cação, de forma a assegurar a participação da sociedade no aper-

feiçoamento da educação nacional22;

c. no âmbito específico do direito à educação de crianças e ado-

lescentes, os conselhos tutelares, que possuem competência para

requisitar serviços públicos na área de educação, bem como para

ministro Gilmar Mendes, acórdão de 7.12.2005. Disponível em http://www.stf.gov.br, acesso

em 21 jun. 2008.

19. Cf. Lei n. 9.882/99, art. 4o, § 1o.20. Cf. Constituição Federal, art. 102, § 1o.21. Cf. Lei n. 9.882/99, art. 2o, I.22. Cf. Lei n. 4.024/61, art. 7o, com a redação conferida pela Lei n. 9.131/95.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

73

representar junto à autoridade judiciária nos casos de descum-

primento de suas deliberações23.

Mecanismos Internacionais

Em vista do fato de o direito à educação ser reconhecido em instru-

mentos internacionais do qual o Estado brasileiro é parte, se o Judiciá-

rio local falhar em oferecer uma resposta efetiva a eventuais violações

abrem-se as portas para recurso aos mecanismos internacionais.

Esses mecanismos podem integrar o Sistema Global de Proteção

dos Direitos Humanos, estruturado junto à ONU; ou o Sistema Intera-

mericano de Proteção dos Direitos Humanos, estabelecido junto à OEA.

Mecanismos do Sistema Global (ONU)

No âmbito da ONU, é possível citar ao menos três importantes me-

canismos que cumprem funções de proteção do direito à educação e

aspectos a ele relacionados:

a. Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Cdesc): es-

tabelecido pela Resolução do Conselho Econômico e Social

1985/17, é o órgão composto por experts independentes que

monitora a implementação do Pacto Internacional dos Direitos

Econômicos, Sociais e Culturais, incluindo os seus artigos 13 e

14, voltados ao direito à educação. Diferentemente do que ocorre

com o Comitê de Direitos Humanos (órgão encarregado de su-

pervisionar o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos), o

Cdesc não tem competência para receber reclamações por parte

de indivíduos, muito embora há muito se discuta a assinatura de

um Protocolo Adicional ao Pacto Internacional de Direitos Eco-

nômicos, Sociais e Culturais para superar essa limitação (Office

of the United Nations High Commissioner for Human Rights,

2008b). Não obstante, o Comitê recebe informações por parte

de organizações não-governamentais, as quais podem ser úteis

quando da avaliação dos relatórios que os Estados são obrigados

23 Cf. Lei n. 8.069/90, art. 136, III.

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EDUARDO PANNUNZIO

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a apresentar periodicamente (Office of the United Nations High

Commissioner for Human Rights, 2008d).

b. Relator Especial para o Direito à Educação: “relator especial” é o tí-

tulo dado a indivíduos que atuam, em nome da ONU, com man-

dato conferido pelo seu Conselho de Direitos Humanos, para

investigar, monitorar e sugerir soluções para problemas de direi-

tos humanos. Desde 1998, há um relator rspecial para o Direito à

Educação, que realiza visitas aos países, submete relatórios sobre

temas específicos ao Conselho de Direitos Humanos e – o que

é de especial relevo para os propósitos deste trabalho transmi-

te comunicações aos Estados em vista de alegadas violações ao

direito à educação, inclusive aquelas originárias de reclamações

individuais (Office of the United Nations High Commissioner

for Human Rights, 2008d);

c. Ceart – Comitê de Experts sobre a Aplicação da Recomendação Re-

ferente ao Status dos Professores: o Ceart é o resultado de uma

iniciativa conjunta da Organização Internacional do Trabalho

(OIT) e da Organização das Nações Unidas para a Educação, a

Ciência e a Cultura (Unesco) e tem por objetivo supervisionar

a implementação da Recomendação Referente ao Status dos

Professores, adotada em 1966 e complementada em 1997 com

a Recomendação Referente ao Status do Pessoal de Ensino da

Educação Superior. O Comitê pode receber de associações na-

cionais e internacionais de professores denúncias de violações

dos dispositivos da Recomendação (International Labour Orga-

nization, 2008a).

Mecanismos do Sistema Interamericano (OEA)

No domínio da OEA, é interessante destacar que a Convenção Ame-

ricana de Direitos Humanos, de 1969, não apresenta um amplo catálogo

de direitos econômicos, sociais e culturais, limitando-se a estabelecer o

compromisso dos Estados-partes de “adotar providência, tanto no âm-

bito interno como mediante cooperação internacional, especialmente

econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efe-

tividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização

dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na

medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios

apropriados”24 (destaques acrescidos).

Essa aparente lacuna foi suprida, no entanto, em 1988, com a ado-

ção do Protocolo Adicional em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais

e Culturais (“Protocolo de São Salvador”)25, que dedica um amplo artigo

(13) ao direito à educação. Mais ainda: o Protocolo estabelece expressa-

mente que o direito à educação pode ser objeto do sistema de reclama-

ções individuais previsto na Convenção Americana, do qual participam

a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, sediada em Washing-

ton, EUA, e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, cuja sede en-

contra-se em São José, Costa Rica26.

Dessa forma, qualquer pessoa, grupo de pessoas ou organização

não-governamental pode apresentar reclamações27 sobre violações do

direito à educação, tal como estabelecido no Protocolo Adicional, à Co-

missão Interamericana. Tem início então um processo que poderá resul-

tar na divulgação de um relatório em que o órgão em geral torna pública

a sua decisão e recomendações28; ou, ao revés, na submissão do caso à

Corte Interamericana, na hipótese de o Estado envolvido ter reconhe-

cido a jurisdição desta29 – o que é o caso do Brasil desde 1992, quando

foi editado o Decreto n. 4.463. Nesta última situação, a Corte poderá

determinar que seja assegurado à vítima a realização do direito violado,

incluindo compensação pelos eventuais danos causados30.

24. Cf. Convenção Americana de Direitos Humanos, promulgada pelo Decreto n. 678/92, art. 26.

25. Vide Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos em Maté-ria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, promulgada pelo Decreto n. 3.321/99.

26. Idem, art. 19 (6).27. Cf. Convenção Americana de Direitos Humanos, promulgada pelo Decreto n.

678/92, art. 44.28. Idem, art. 51 (3).29. Note-se que, na forma do art. 61 (1), da Convenção Americana, apenas os Estados-

partes e a Comissão têm o direito de submeter um caso à Corte, não se estendendo essa prer-rogativa diretamente ao cidadão, grupo de cidadãos ou organização não-governamental.

30. Cf. Convenção Americana de Direitos Humanos, promulgada pelo Decreto n. 678/92, art. 63 (1).

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EDUARDO PANNUNZIO

76

A Aplicação Jurisprudencial do Direito à Educação

Pois bem. Devidamente afirmada a justiciabilidade do direito à

educação e apresentado um panorama geral dos mecanismos domésti-

cos e internacionais para fazer valer essa prerrogativa, resta ver como, na

prática, os órgãos encarregados de sua implementação têm atuado.

No domínio interno, optou-se por centrar foco em um desses ór-

gãos: o STF, que desempenha o nobre papel de Corte Constitucional bra-

sileira. A escolha deveu-se, de um lado, aos estreitos limites deste traba-

lho e, de outro, ao impacto que as decisões do STF, como órgão de cúpula

do Judiciário, exercem sobre todos os demais tribunais e juízes do país.

Já na esfera internacional, buscou-se apontar os pronunciamentos

dos órgãos da ONU e da OEA mencionados na seção anterior que digam

respeito especificamente ao direito à educação no Brasil, não tendo sido

consideradas as decisões que tratem dessa prerrogativa de forma genéri-

ca ou vinculada a outras realidades nacionais.

A Jurisprudência do STF após a Constituição de 1988

A fim de identificar a jurisprudência da Corte acerca do direito à

educação, procedeu-se a uma intensa pesquisa nos acórdãos disponi-

bilizados no portal eletrônico do STF na internet31, com base nos meca-

nismos de busca ali disponíveis. Tendo em vista as naturais limitações

desse método, os resultados abaixo apresentados não têm a pretensão

de constituir um levantamento exaustivo das decisões da Corte, embora

ofereçam um material certamente representativo das posições por ela

adotadas.

Esclareça-se que, para esta pesquisa, foram selecionados tão-so-

mente acórdãos, ficando de fora as decisões monocráticas adotadas pelos

ministros do STF. Do mesmo modo, optou-se por promover um recorte

temporal, incluindo-se apenas as decisões proferidas a partir da data de

promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988.

Com base nesses parâmetros, foram então localizados 33 acórdãos,

conforme a Tabela 1.

31. Site: http://www.stf.gov.br.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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Tabela 1. Acórdãos selecionados

Processo n. Tipo Ano

1 51 Ação direta de inconstitucionalidade 1989

2 319Questão de ordem na ação direta de inconstitucionali-dade

1993

3 155.772 Agravo regimental no agravo de instrumento 1993

4 1.042 Ação direta de inconstitucionalidade 1994

5 1.511 Medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade 1996

6 22.111 Recurso ordinário em mandado de segurança 1996

7 123 Ação direta de inconstitucionalidade 1997

8 490 Ação direta de inconstitucionalidade 1997

9 640 Ação direta de inconstitucionalidade 1997

10 163.231 Recurso extraordinário 1997

11 578 Ação direta de inconstitucionalidade 1999

12 606 Ação direta de inconstitucionalidade 1999

13 1.749 Ação direta de inconstitucionalidade 1999

14 241.757 Ação direta de inconstitucionalidade 1999

15 2.667 Medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade 2002

16 2.316 Agravo regimental na petição 2003

17 2.643 Ação direta de inconstitucionalidade 2003

18 2.806 Ação direta de inconstitucionalidade 2003

19 2.997 Medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade 2003

20 3.324 Ação direta de inconstitucionalidade 2004

21 1.007 Ação direta de inconstitucionalidade 2005

22 1.950 Ação direta de inconstitucionalidade 2005

23 3.098 Ação direta de inconstitucionalidade 2005

24 362.074 Agravo regimental no recurso extraordinário 2005

25 410.715 Agravo regimental no recurso extraordinário 2005

26 436.210 Agravo regimental no recurso extraordinário 2005

27 436.996 Agravo regimental no recurso extraordinário 2005

28 3.512 Ação direta de inconstitucionalidade 2006

29 465.066 Agravo regimental no recurso extraordinário 2006

30 820 Ação direta de inconstitucionalidade 2007

31 845 Ação direta de inconstitucionalidade 2007

32 3.669 Ação direta de inconstitucionalidade 2007

33 384.201 Agravo regimental no recurso extraordinário 2007

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EDUARDO PANNUNZIO

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Do total de acórdãos, 14 (42%) foram proferidos na década de 1990

e 19 (58%), já nos anos 2000 (58%); nada menos do que 13 (39%) dos

acórdãos foram adotados entre 2005 e 2008 apenas. Esses dados sugerem

que a jurisprudência do STF acerca do direito à educação é não apenas

relativamente incipiente, quando analisada à luz do grande volume de

casos julgados anualmente pela Corte, como recente.

Gráfico 1. Número de acórdãos por ano

No que se refere ao tipo de processo em que proferidas as decisões,

tem-se a seguinte distribuição:

Tabela 2. Tipo de processo em que proferidos os acórdãos

Tipo Quantidade Percentual

Ação direta de inconstitucionalidade 19 58%

Agravo regimental no recurso extraordinário 6 18%

Medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade 3 9%

Agravo regimental na petição 1 3%

Agravo regimental no agravo de instrumento 1 3%

Questão de ordem na ação direta deinconstitucionalidade

1 3%

Recurso extraordinário 1 3%

Recurso ordinário em mandado de segurança 1 3%

Observa-se que grande maioria dos acórdãos (dezenove) foram

proferidos no âmbito de ações direta de inconstitucionalidade. Quando

consideradas também as decisões adotadas no julgamento de medidas

cautelares e questões de ordem nas ações diretas de inconstitucionalida-

de, esse percentual salta para 23 (70%), evidenciando que os acórdãos

do STF em relação ao direito à educação estão sendo proferidos, funda-

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

79

mentalmente, no exercício do controle concentrado da constitucionalida-

de de leis a atos normativos, sendo residuais as decisões tomadas como

tribunal revisor de julgados de instâncias inferiores.

Finalmente, no que toca à temática central discutida em cada um

desses acórdãos, a distribuição constatada foi a seguinte:

Tabela 3. Temáticas centrais discutidas nos acórdãos

Temática N. de decisões Processos n.

Eleição direta para escolha de dirigentes de instituições públicas de ensino

7 (21%)51, 123, 490, 578, 606, 640 e 2.997

Mensalidades de escolas particulares 6 (18%)319, 1.007, 1.042, 3.512, 155.772 e 163.231

Direito de atendimento em creche e pré-escola a crianças de 0 a 6 anos

5 (15%)410.715, 436.996, 463.210, 465.066, 384.201

Repartição de competências 5 (15%)1.749, 2.316, 2.667, 3.098 e 3.669

Transferência de alunos da universidade privada para a pública

2 (6%) 3.324 e 362.074

Adequação do calendário escolar aos dias de guarda das diferentes religiões

1 (3%) 2.806

Autonomia universitária 1 (3%) 1.511

Dever do Estado de assegurar acesso à cultura como decorrência do direito à educação

1 (3%) 1.950

Direito à meia-passagem a estudantes nos transportes coletivos

1 (3%) 845

Isenção da taxa de inscrição para vesti-bular

1 (3%) 2.643

Legitimidade da função regulatória do Estado

1 (3%) 22.111

Oferecimento de ensino obrigatório a pessoas portadoras de deficiência

1 (3%) 241.757

Vinculação de recursos à educação 1 (3%) 820

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Como se nota, a temática em que se encontrou o maior número de

pronunciamentos do STF é a referente à eleição direta para a escolha de

dirigentes de instituições públicas de ensino, estabelecida em leis estadu-

ais. A Corte tem derrubado esse tipo de previsão, sob o argumento que é

da competência privativa do Chefe do Poder Executivo o provimento de

cargos em comissão em escolas públicas.

Em relação à segunda das temáticas mais presentes, a das mensali-

dades das escolas particulares, o STF declarou a constitucionalidade da

fixação de critérios para o reajuste das mensalidades em três acórdãos

(processos n. 319, 3.512 e 155.772), desde que isso seja feito pela União,

e não pelos Estados (cf. processos n. 1.007 e 1.042). Ademais, assentou

a competência do Ministério Púbico para, por via de ação civil pública,

impugnar mensalidades abusivas ou ilegais (cf. processo n. 163.231).

No que se refere ao direito de atendimento em creche e pré-escola,

trata-se da temática em que a Corte melhor adentrou na análise do sen-

tido e alcance do direito à educação, com destaque às decisões proferidas

nos processos n. 410.715 e 436.996 em que se firmou que “a educação

infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não

se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente dis-

cricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de

puro pragmatismo governamental”, razão pela qual

[...] embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prer-

rogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao

Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas

hipóteses de políticas públicas definidas na própria Constituição, sejam estas im-

plementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão – por importar em

descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter

mandatório – mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos

sociais e culturais impregnados de estatura constitucional.

A competência do Judiciário para proteger o direito à educação,

diante da omissão do Executivo, foi também afirmada nos processos n.

384.201, 463.210 e 465.066.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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Tendo em vista que tanto a União quanto os estados e o Distrito Fe-

deral têm competência para legislar sobre educação32, cabendo à primei-

ra a edição de “normas gerais” e aos demais a elaboração de legislação

“suplementar”33, e que a fronteira que separa essas dois domínios nem

sempre é de fácil identificação, não surpreende averiguar que a temá-

tica da repartição de competências entre as unidades federadas tenha

também ocupado a Corte em cinco decisões (processos n. 1.749, 2.316,

2.667, 3.098 e 3.669).

A quinta das temáticas mais presentes na jurisprudência do STF cor-

responde à da transferência de alunos de universidade privada para a

pública. A Corte teve a oportunidade de declarar inconstitucional uma

leitura da LDB que permita essa passagem, sob o argumento de que é

fundamental garantir-se a “congeneridade das instituições envolvidas”

(processos n. 3.324 e 362.074).

Por fim, constatou-se a existência de ao menos uma decisão para os

seguintes assuntos: adequação do calendário escolar aos dias de guarda

das diferentes religiões, o qual está fora da alçada dos estados (processo

n. 2.806); autonomia universitária, da qual, segundo o STF, não decorre

a inconstitucionalidade da lei que institui o “provão” como instrumento

de avaliação das universidades (processo n. 1.511); dever do Estado de

assegurar acesso à cultura, razão pela qual declarou constitucional lei

que assegura meia-entrada aos estudantes matriculados em estabeleci-

mentos de ensino (processo n. 1.950); direito à meia-passagem a estu-

dantes nos transportes coletivos, cuja constitucionalidade foi igualmen-

te reconhecida pela Corte (processo n. 845); isenção da taxa de inscrição

para o vestibular, passível de ser instituída pelos Estados (processo n.

2.643); legitimidade da função regulatória do Estado, pois embora o

ensino seja livre à iniciativa privada, é necessário que sejam atendidas

certas condições (processo n. 22.111); oferecimento de ensino obriga-

tório a pessoas portadoras de deficiência, cujo descumprimento enseja

a responsabilidade da autoridade competente (processo n. 241.757); e

32. Cf. Constituição Federal, art. 24, IX.33. Idem, art. 24, § 1o e 2o.

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vinculação de recursos à educação, tendo o STF declarado inconstitu-

cional a determinação de aplicação de parte dos recursos destinados à

educação na “manutenção e conservação das escolas públicas estaduais”,

em vista da vedação constante do artigo 167, IV, do texto constitucional

(processo n. 820).

A Jurisprudência dos Órgãos Internacionais em Relação ao Brasil

Se na jurisprudência interna as manifestações relacionadas ao direi-

to humano à educação ainda são escassas – ao menos no que se refere ao

STF –, o case law internacional é ainda menor em relação ao Brasil.

Particularmente no âmbito Cdesc, essa constatação não surpreen-

de. Afinal, como ressaltado acima, ainda hoje o órgão não detém com-

petência para receber demandas individuais de violação a direitos eco-

nômicos, sociais ou culturais. Por essa razão, a principal oportunidade

que possui para se manifestar sobre o tema é quando da análise dos

relatórios periódicos dos Estados membros (country reports).

No caso do Brasil, isso ocorreu em uma única oportunidade, até

agora. Foi no ano de 2003, quando o Comitê analisou o relatório inicial

do Brasil em relação à implementação do Pacto Internacional de Di-

reitos Econômicos, Sociais e Culturais. Em suas conclusões (concluding

observations), no que se relaciona especificamente ao direito à educação,

o Cdesc enfatizou como positiva a aprovação da Emenda Constitucional

n. 14 – que instituiu o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do

Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef) e, assim,

reorganizou o sistema de ensino fundamental e vinculou mais recur-

sos à educação – bem como a criação de um relator especial indepen-

dente para o direito à educação (United Nations Economic and Social

Council, 2003, parágrafos 11-12). Entretanto, manifestou preocupação

em relação à inexistência, na prática, de mecanismos efetivos (judiciais

ou extrajudiciais) para assegurar a prevalência de direitos econômicos,

sociais e culturais, e com a elevada taxa de analfabetismo então infor-

mada ao órgão, de 13,3% da população no ano de 1999 (United Nations

Economic and Social Council, 2003: parágrafo 18 e 39). Dessa forma,

solicitou ao Brasil que adote medidas para combater o analfabetismo

e que informe, em seu próximo relatório ao Comitê, as providências

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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adotadas e os resultados obtidos (United Nations Economic and Social

Council, 2003, parágrafo 63)34.

De outra parte, no que se relaciona à atuação do relator especial da

ONU para o Direito à Educação, não foi possível identificar medidas di-

rigidas especificamente ao Brasil. É certo que providências adotadas em

relação a eventuais demandas individuais são mantidas sob confidencia-

lidade até serem incluídas no relatório anual que o expert apresenta ao

Conselho de Direitos Humanos da ONU (Office of the United Nations

High Commissioner for Human Rights, 2008d) – razão pela qual não

se pode descartar a hipótese de que o relator tenha adotado ações em

relação ao governo brasileiro que ainda não foram publicizadas –; no

entanto, nos casos já tornados públicos não se visualizou nenhum rela-

tivo ao Brasil.

Apesar disso, cumpre esclarecer a existência de menções ao Bra-

sil em, pelo menos, duas manifestações do relator especial. A primeira

foi no relatório apresentado em 2004 à extinta Comissão de Direitos da

ONU, em que se destacou que o Brasil, juntamente com alguns outros

países, tinha feito grande progresso na realização do direito à educação

de meninas (United Nations Economic and Social Council, 2004, pará-

grafo 37). A segunda refere-se às respostas a um questionário formulado

pelo Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos em 2007,

quando, indagado sobre boas práticas de combate ao racismo, discrimi-

nação racial, xenofobia e outras formas de intolerância, o relator citou

o processo iniciado com a emenda feita à LDB pela Lei n. 10.639/03, que

incluiu no currículo escolar o ensino da histórica e da cultura africana e

afro-brasileira – posteriormente ampliado para abranger também a his-

tória e cultura dos povos indígenas (Office of the United Nations High

Commissioner for Human Rights, 2008a).

Até o presente momento, o relator especial para o Direito à Educa-

ção não fez nenhuma visita oficial ao Brasil, à diferença de diversos ou-

tros relatores da ONU, como o relator sobre a tortura ou o relator sobre

34. Registre-se que o Estado brasileiro já apresentou o seu segundo relatório periódico,

no ano de 2007, motivo pelo qual em breve o Cdesc deve publicar as suas novas constatações

e recomendações em relação ao país.

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execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias. No entanto, vale con-

signar que a professora Karatina Tomasevki, quando exercia a função

de relatora especial para o Direito à Educação, esteve no Brasil no ano

de 2003 para participar, entre outras atividades, do Fórum Mundial da

Educação (Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais,

2008); não foi possível localizar, contudo, nenhum registro oficial desta

visita no âmbito da ONU.

Ainda no âmbito do Sistema Global de Proteção dos Direitos Hu-

manos, no que diz respeito ao terceiro dos mecanismos apontados na

seção precedente – o Ceart –, cumpre esclarecer que os relatórios dispo-

nibilizados pelo órgão tampouco registram o processamento de denún-

cias envolvendo o Estado brasileiro (International Labour Organization,

2008b).

No Sistema Interamericano de Proteção de Direitos Humanos, a re-

alidade não se distancia muito daquela em nível global. Isso porque não

se localizou nem um único caso brasileiro, tanto na Comissão quanto

na Corte Interamericana de Direitos Humanos, que abordem de forma

específica ou mais aprofundada o direito à educação. O máximo que se

logrou identificar foram cinco decisões da Comissão em que a temática

foi tangenciada.

A primeira e mais antiga delas deu-se, em 1985, no caso dos índios

yanomami (Resolução n. 7.615), em que os peticionários alegaram, en-

tre outras ofensas, violação do direito à educação tal como consagrado

pela Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem. Em sua

decisão, a Comissão recomendou ao Brasil que os programas educacio-

nais “[...] sejam levados a cabo em consulta com a população indígena

afetada e com a assessoria de competente pessoal científico, médico e

antropológico”.

A segunda oportunidade ocorreu em 2002, quando a Comissão de-

clarou a admissibilidade do caso “Adolescentes em Custódia da Febem”

(Informe n. 39/02), fundada em violações de diversos direitos humanos,

dentre os quais o direito à educação previsto no art. 13 do Protocolo de

São Salvador. Embora tenha considerado prima facie que os fatos apre-

sentados podem efetivamente caracterizar esse ilícito, até o presente a

Comissão não se pronunciou sobre o mérito do caso.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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Além disso, em 2006 houve, perante a Comissão, um acordo de

solução amistosa para o caso “Meninos Emasculados do Maranhão”

(Informe n. 43/06) em que o Estado brasileiro comprometeu-se a ado-

tar diversas providências para melhorar a atenção escolar destinada às

crianças e adolescentes da região metropolitana de São Luís, bem como

a utilização do ambiente escolar para atividades desportivas e culturais.

Naquele mesmo ano, a Comissão declarou admissível o caso “Membros

da Comunidade Indígena de Ananas e Outros” (Informe n. 80/06), fun-

damentado também em possível violação do direito à educação.

Paralelamente a essa quatro decisões, adotadas no exame de de-

mandas litigiosas, a Comissão abordou o tema em seu relatório sobre

a Situação dos Direitos Humanos no Brasil, de 1997. O fez ao notar a

situação “grave” em que se encontrava a educação no país, eis que mais

de três milhões de crianças estavam fora da escola em 1992, e a distor-

ção em favor das classes mais ricas nos gastos sociais realizados pelo go-

verno (Comissão Interamericana de Direitos Humanos, 1997, capítulo

II). Ademais, alertou para violações específicas cometidas em relação a

grupos mais vulneráveis, como crianças e adolescentes, povos indígenas,

mulheres e outros grupos vítimas de discriminação racial (Comissão In-

teramericana de Direitos Humanos, 1997, capítulos V, VI, VIII e IX).

Esse rápido retrato da jurisprudência internacional permite con-

cluir que questões relacionadas ao direito à educação no Brasil não têm

ocupado um lugar proeminente na atuação dos órgãos responsáveis

pelo monitoramento da situação dos direitos humanos no país. É im-

possível investigar, nos estreitos limites deste trabalho, as causas por trás

dessa realidade, mas não se pode deixar de aventar que, possivelmente,

ela se deve a uma baixa litigiosidade em questões relacionadas ao direito

à educação ou, o que é mais provável, a um conhecimento ainda inci-

piente das possibilidades abertas pelos mecanismos internacionais de

proteção dos direitos humanos.

Conclusão

O presente trabalho buscou demonstrar que o direito à educação,

a exemplo dos demais direitos humanos (civis, políticos, econômicos,

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sociais ou culturais), é perfeitamente passível de adjudicação pelo Judi-

ciário. Afinal, ao contrário do que se costuma afirmar, dele nem sempre

decorre a necessidade de atuações positivas por parte do Estado e, mes-

mo quando isso acontece, os tribunais têm como assegurar a proteção

do direito sem invadir o terreno próprio dos poderes Executivo ou Le-

gislativo.

Ademais, procurou-se evidenciar como os cidadãos brasileiros e de-

mais indivíduos residentes no país têm à disposição uma série de meca-

nismos judiciais ou quase-judiciais nos casos de ameaça ou de violação

ao direito à educação, tanto na esfera doméstica quanto internacional.

Finalmente, este trabalho tratou de investigar como órgãos com

competência para servir como guardião do direito à educação têm lida-

do com o assunto. Nesse sentido, demonstrou-se que a jurisprudência do

STF, desde o advento da Constituição Federal de 1988, ainda é relativa-

mente incipiente e recente, constituindo-se precipuamente de decisões

proferidas no âmbito de processos de controle de constitucionalidade de

leis e atos normativos (ações diretas de inconstitucionalidade). Ademais,

foram indicadas as temáticas relacionadas ao direito à educação que, até

aqui, dominaram o debate na Corte – que, de modo geral, tem adotado

uma interpretação favorável à efetivação do direito nos casos que lhe são

submetidos. De outra borda, demonstrou-se que a temática do direito à

educação no Brasil ainda não foi abordada, de modo específico ou mais

aprofundado, pelos órgãos internacionais de monitoramento.

Pode-se concluir, assim, que o Judiciário tem um papel relevantíssi-

mo na promoção e proteção do direito à educação, principalmente nos

casos em que o Executivo ou o Legislativo omitem-se no cumprimento

de seus deveres; e que o Brasil dispõe de mecanismos que permitem,

ainda que de forma não plenamente satisfatória, o exercício dessa atri-

buição. A jurisprudência do STF, ainda que em estágio inicial, comprova

essa assertiva. Além disso, há uma plêiade de mecanismos internacionais

que podem ser acionados quando os tribunais deixarem de cumprir o

seu papel, apesar de esse recurso aparentemente ainda não estar sendo

plenamente explorado.

De qualquer modo, é importante lembrar que todas essas instân-

cias – e, em especial, o Judiciário – funcionam por meio do impulso dos

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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atores legitimados a provocá-lo. A ampliação e qualificação de seu papel

passam, portanto, não apenas por uma crescente capacitação dos juízes

ou membros que as compõem, mas também por uma tomada de consci-

ência, por parte daqueles atores – dentre os quais incluem-se os cidadãos

e as organizações não-governamentais –, para as oportunidades abertas

pelos mecanismos judiciais e quase-judiciais disponíveis.

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O Ensino Religioso nas Escolas Públicas Brasileiras: do Direito à Liberdade de Crença e Culto ao Direito à Prestação

Estatal Positiva

Salomão Barros Ximenes

Introdução

Neste artigo procuramos analisar a previsão constitucional de oferta

de ensino religioso nas escolas públicas e sua regulamentação infracons-

titucional, apontando as principais questões daí advindas. Vale adiantar

que, no caso do ensino religioso, a resposta a muitas das questões não

respondidas no âmbito federal encontra-se nos sistemas estaduais e mu-

nicipais de ensino, uma vez que a atual redação da Lei de Diretrizes e

Bases da Educação Nacional (LDB) – Lei n. 9.394/1996 delega a essas

esferas da federação competência absoluta para dispor sobre os conte-

údos e a forma de implementação da disciplina. Ressalte-se que este é o

único exemplo de conteúdo curricular obrigatório cujas diretrizes não

são estabelecidas pela União, que, com essa postura, não exercita a com-

petência legislativa do art. 22, inciso XXIV da Constituição1. Essa situação

levou a regulamentações muito distintas no âmbito dos estados e muni-

1. Constituição Federal de 1988, art. 22, XXIV: “Compete privativamente à União legis-lar sobre: [...] XXIV – diretrizes e bases da educação nacional”.

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SALOMÃO BARROS XIMENES

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cípios, sendo que um bom exemplo se verifica na divergência de concep-

ções entre os sistemas estaduais do Rio de Janeiro e de São Paulo2.

O mundo jurídico é parte do mundo social e político, por esse mo-

tivo, muitas das explicações para as opções dos legisladores e tribunais

não devem ser procuradas unicamente nos códigos e na Constituição.

Tendo isso em mente, começamos o artigo com uma rápida revisão das

formas de previsão do ensino religioso no constitucionalismo brasileiro,

com a qual veremos que este tema sempre esteve associado às definições

sobre a própria configuração de nosso Estado. Atualmente, a já mencio-

nada delegação aos sistemas estaduais e locais de ensino, ao tempo que

multiplica os espaços de decisão sobre os conteúdos e as formas de im-

plementação, inviabiliza a constituição, neste tema específico, de conteú-

dos mínimos referentes a uma base curricular comum. Também remete

a milhares de sistemas de ensino o embate histórico em torno da secula-

rização do Estado, o qual, muito mais que na declaração formal de sepa-

ração entre este e a igreja, expressa-se nos debates cotidianos dos valores

que animam a vida pública. Sobre isso, o recente julgado do Supremo

Tribunal Federal (STF) na ADI n. 35103, proposta pelo Procurador-Geral

da República contra a Lei n. 11.105/2005, que dispõe sobre as pesquisas

com células-tronco embrionárias, na qual atuou como Amicus Curiae

a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB); representou, sem

dúvidas, uma vitória da razão laica frente a Igreja Católica.

É justamente nos campos da sexualidade e da reprodução (temas

a serem obrigatoriamente trabalhados nas escolas) que têm se apresen-

tado os maiores confrontos públicos entre setores laicos e setores reli-

giosos. Temas caros à cidadania como o aborto e união civil de pessoas

do mesmo sexo são inconciliáveis com os dogmas religiosos, razão pela

qual estudiosos como Flávia Piovesan, defendem o Estado laico como

“garantia essencial para o exercício dos direitos humanos” (2006, p. 20),

2. Para um aprofundamento da questão da distinta e por vezes contraditória regula-

mentação do ensino religioso nos sistemas estaduais consultar: Luiz Antônio Cunha, Auto-

nomização do Campo Educacional: Efeitos do e no Ensino Religioso. Disponível em http://

www.luizantonio.cunha.nom.br/.

3. Supremo Tribunal Federal – STF, ADI n. 3510.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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o que se mostra compatível com o exercício do direito fundamental à

liberdade de crença e culto:

Confundir Estado com religião implica a adoção oficial de dogmas incontestá-veis, que, ao impor uma moral única, inviabilizam qualquer projeto de uma socie-dade aberta, pluralista e democrática. A ordem jurídica em um Estado Democrático de Direito não pode se converter na voz exclusiva da moral de qualquer religião. Os grupos religiosos têm o direito de constituir suas identidades em torno de seus princípios e valores, pois são parte de uma sociedade democrática. Mas não tem o direito de pretender hegemonizar a cultura de um Estado constitucionalmente laico (Piovesan, 2005, p. 20).

No entanto, analisando o atual contexto, a autora identifica mo-

vimentos contrários: “se de um lado o Estado contemporâneo busca

separar-se da religião, esta, por sua vez, busca adentrar os domínios do

Estado” (Piovesan, 2005, p. 20). Como concluímos ao final desse texto,

o ensino religioso na Constituição Federal de 1988 e, principalmente, a

partir de sua regulamentação na Lei n. 9.475, de 22 de julho de 1997 que

alterou a redação original da LDB, representam indubitavelmente este

esforço de adentrar o domínio da esfera pública estatal, inclusive com o

direcionamento de recursos públicos para sua oferta.

Feitas essas considerações, poderíamos perfeitamente concluir nos-

so estudo declarando a completa incompatibilidade entre a natureza

laica do Estado brasileiro e a oferta obrigatória de ensino religioso nas

escolas públicas estatais. Contudo, apesar de plenamente defensável, tal

postura em nada contribuiria com o conhecimento adequado do pro-

blema: do ponto de vista jurídico, além de um direito de liberdade, re-

lacionado ao direito fundamental a professar e difundir crença e culto

religioso, o ensino religioso configura-se hoje no Brasil como um direito

público subjetivo, encontrando-se em acelerado estágio de expansão e

implementação nas escolas do país.

Por isso, os problemas realmente colocados dizem respeito à com-

patibilização, nas leis e nas políticas públicas, dos preceitos constitucio-

nais já mencionados, ou seja, cabe perguntar se existe um modelo de

implementação do ensino religioso que se adeque ao caráter laico do

Estado e que respeite a diversidade de conteúdos curriculares, opiniões

políticas e crenças religiosas existentes na escola pública. Neste artigo

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não pretendemos abarcar tal magnitude de problemas, mas esperamos

contribuir com a compreensão dos desafios que nos são colocados, reto-

mando a origem dos institutos no constitucionalismo brasileiro e pro-

curando interpretá-los no atual contexto jurídico.

O Direito à Educação e o Ensino Religioso no

Constitucionalismo Brasileiro

Em seu estudo sobre os reflexos da laicidade estatal e da liberdade

religiosa na jurisdição constitucional brasileira, Letícia Martel ressalta

“que ao longo da história republicana a relação entre o ensino e a laici-

dade estatal foi uma polêmica constante” (2007, p. 22), sendo que “um

dos grandes objetos de disputa foi e continua sendo a oferta da disci-

plina de ensino religioso, de matrícula facultativa, no ensino público

fundamental, prevista por sucessivas Constituições, inclusive a vigente”

(Martel, 2007, p. 23).

A Constituição do Império de 1824, seguindo a tradição do período

colonial, não deixava margem de dúvida quanto ao caráter confessional

do Estado: “Art. 5o A religião catholica apostólica romana continuará

a ser a religião do Império. Todas as outras religiões serão permitidas

com seu culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas,

sem forma exterior de Templo”. Não havia disposição específica sobre

ensino religioso, tampouco sua ausência poderia ser notada, uma vez

que o direito à educação de então, como assinala Marcos Augusto Ma-

liska, era “fortemente caracterizado pela participação da Igreja Católica

no processo de educação do povo” (2001, p. 22). Ou seja, a omissão não

se devia a pouca importância dada ao tema, mas sim ao fato inconteste

que educação era sinônimo de educação religiosa.

Maliska também ressalta, em relação à Constituição Imperial de

1824, certa tendência à incorporação em nosso sistema jurídico do ideá-

rio advindo da Revolução Francesa, com a positivação dos direitos civis e

políticos dos cidadãos brasileiros. Tal influência, quando mesclada a um

regime monárquico conservador, acabou por produzir “alguns extremos

que, em essência, são inconciliáveis, como liberdade e escravidão, unici-

dade religiosa e garantia das demais religiões” (2001, p. 22).

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Apesar desses primeiros traços de liberalismo, foi somente com a

conquista da República que o debate sobre o Estado laico ganhou relevo

no Brasil, com o consequente reflexo na esfera do ensino. Efetivamen-

te, a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891

dispunha: “Art. 72 [...] Parágrafo 6o Será leigo o ensino ministrado nos

estabelecimentos públicos”. Com este dispositivo, o ensino religioso nas

escolas públicas foi suprimido durante as quatro primeiras décadas da

República. Para substituir a disciplina religiosa, foi introduzida a educa-

ção moral e cívica.

Ao comentar a questão do ensino religioso, Aristides Milton apre-

senta uma leitura de época plenamente aplicável aos dias presentes, afir-

mando:

Sobreleva acrescentar – que é dever dos pais e das mães de família, e ao mesmo tempo compete aos clérigos de cada confissão, dar ao ensino religioso a quantos estão sob seus cuidados, ou procuram sinceramente obtê-lo; visto que o civil e o eclesiástico têm suas espheras distintas e delimitadas. E assim como ensinar a scien-cia incumbe aos instituidores, ensinar a religião pertence aos padres, que aliás no lar encontram – regra geral – auxiliares preciosas e sinceras. [...] A sciencia se funda na experimentação, ao passo que a religião apóia-se na revelação e no milagre. Não é justo, pois, confundi-las; e daih logicamente procede a escola chamada leiga, que nossa Constituição adoptou, e opõe-se à escola religiosa ou confessional (Milton, 1898, pp. 382-383).

No entanto, a laicização do ensino público não passou ao largo das

pressões dos setores católicos. Estas iniciaram-se logo da publicação da

carta republicana, sendo que entre 1891 e 1931 vivenciamos um gran-

de embate entre os setores laicos e o campo católico, com vitória deste

último. É o que registra Carlos Roberto Jamil Cury, em texto no qual

aborda a recorrência histórica desse enfrentamento em torno do ensino

religioso e destaca a singularidade histórica da Constituição de 1891:

Entretanto, desde a proibição do ensino religioso nas escolas oficiais em 1891, a Igreja católica se empenhou no restabelecimento desta disciplina ora no âmbito dos estados, ora no âmbito nacional, sobretudo por ocasião de mudanças constitu-cionais. [...] bem-sucedida por ocasião da reforma educacional do ministro Fran-cisco Campos na década de 1930, a disciplina retornou às escolas públicas através de decreto.

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Com efeito, o ensino religioso aparece em todas as constituições federais desde 1934, sob a figura de matrícula facultativa. Mas é importante ressalvar que, desde o decreto sobre o ensino religioso de 1931 até hoje, tal disciplina sempre foi caracterizada como de matrícula facultativa para uma oferta obrigatória, embora sob as leis orgânicas do Estado Novo até 1946 ela também fosse de oferta facultativa (Cury, 2004, pp. 14-15).

É importante ter em mente que vivenciávamos (como atualmente)

um momento de expansão do ensino público, sobretudo nos estados

mais ricos da federação, que tirava a escola pública de uma situação de

inexistência prática e a colocava no centro dos debates nacionais, ani-

mados por diferentes vertentes ideológicas e posições políticas de atores

sociais descontentes com a política da Velha República – trabalhadores

fabris, intelectuais urbanos, artistas modernistas, militares insurgentes

etc. Luiz Antônio Cunha registra a posição ativa da hegemonia católica

nesse cenário, colocando-se ao lado do status quo: [...] a militância católica, organizada sob a liderança do cardeal Sebastião

Leme e de um verdadeiro aparato de produção e difusão ideológica, logrou situar-se, no campo político, como solução eficaz para a produção da ordem, ameaçada, primeiro, pelos movimentos dos trabalhadores dos anos de 1910, depois, pelas in-surreições militares dos anos de 1920 (Cunha, 2007, p. 287).

Com isso, obtém os primeiros avanços institucionais no campo do

ensino religioso e da atenuação da laicidade estatal. Foi no Estado de

Minas Gerais, tradicional beneficiário do regime, onde a Igreja Católi-

ca conseguiu progredir na transgressão da norma constitucional: “Em

1928, o presidente mineiro Antônio Carlos de Andrada autorizou, por

decreto, o ensino do catecismo nas escolas mantidas pelo governo esta-

dual, uma vez por semana, dentro do horário normal de aulas” (Cunha,

2007, p. 288) – estava aberto o caminho para a retomada do ensino reli-

gioso nas escolas do país.

Finalmente, em 30 de abril de 1931 é estabelecido o Decreto n.

19.941, o qual facultava o oferecimento, “nos estabelecimentos públi-

cos de ensino primário (no Rio de Janeiro), secundário e normal, da

instrução religiosa. Não obrigava, mas facultava a oferta desse ensino”

(Cunha, idem).

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O passo seguinte seria sua obrigatoriedade, com o caráter faculta-

tivo da frequência matrícula. A Constituição de 1934 rompe definitiva-

mente com o ensino laico, dispondo sobre o ensino religioso em termos

que se repetiriam até a atualidade: “Art. 153: O ensino religioso será de

frequência facultativa e ministrado de acordo com os princípios da con-

fissão religiosa do aluno, manifestada pelos pais ou responsáveis, e cons-

tituirá matéria dos horários nas escolas publicas primarias, secundarias,

profissionais e normais” (grifo nosso).

Vale ressaltar que a é justamente a Constituição de 1934, que pela

primeira vez no país, sob influência da tradição constitucional alemã,

eleva o direito à educação à “categoria de direito subjetivo público” (Ma-

liska, 2001, p. 26), além de construir a estrutura do direito constitucio-

nal à educação que hoje conhecemos: declaração de direitos, atribuições

dos entes federados, vinculação de recursos ao ensino, papel normativo

do Conselho Nacional de Educação, previsão de um Plano Nacional de

Educação e, como já mencionado, ensino religioso obrigatório nas esco-

las públicas, sendo a frequência facultativa.

No entanto, com o advento do Estado Novo e de um novo texto

constitucional – a Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937, o

ensino religioso passa a ser facultativo, ficando adstrito às escolas primá-

rias: “Art. 113: O ensino religioso poderá ser contemplado como matéria

do curso ordinário das escolas primárias. Não poderá, porém, constituir

objeto de obrigação dos mestres ou professores, nem de frequência com-

pulsória por parte dos alunos” (grifo nosso). Por outro lado, parecendo

retomar a educação moral e cívica da Primeira República, em substitui-

ção ao ensino religioso obrigatório, a nova Constituição de 1937 estabe-

leceu a “obrigatoriedade do ensino cívico, ao lado da educação física e

dos trabalhos manuais, em todas as escolas primárias, normais e secun-

dárias, públicas e privadas” (Cunha, 2007, p. 290). Sob o signo do ideário

fascista, seu objetivo maior era fomentar o espírito patriótico e o de-

senvolver histórico do povo brasileiro, fortalecendo a unidade nacional.

Tratava-se de difundir um novo culto, em substituição a Deus entrava “o

culto ao regime e à pessoa do ditador” (Herkenhoff, 1987, p. 41).

O direito subjetivo público à educação é banido, sendo que o texto

de 1937 incorpora o ensino no capítulo dedicado à família, “prioriza a

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escola particular como mecanismo de efetivação do direito do cidadão à

educação, não a mencionando como um dever do Estado, ao qual é reser-

vado um papel subsidiário nesta tarefa, revelando uma concepção priva-

tista” (Oliveira, 1995, p. 78). Até aqui, é importante notar que parece ha-

ver um pêndulo no qual de um lado se coloca o fortalecimento do ensino

religioso na escola pública e de outro o fortalecimento da função privada

na educação, ou seja, quanto mais importante se torna a escola pública na

promoção do ensino, mais pressão o Estado sofre para garantia do ensino

religioso. Essa hipótese será confirmada nas constituições seguintes.

Com a redemocratização do país, a Assembléia Constituinte de 1946

retoma a base da Constituição de 1934 em relação ao direito à educação

e, consequentemente, a obrigatoriedade de oferta do ensino religioso,

silenciando, no entanto, quanto à etapa de ensino em que deveria ser

ministrado: “Art. 168. [...] V – O ensino religioso constitui disciplina dos

horários das escolas oficiais, é de matrícula facultativa e será ministrado

de acordo com a confissão religiosa do aluno, manifestada por ele, se for

capaz, ou pelo seu representante legal ou responsável”.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, sancionada pelo

presidente João Goulart na vigência da Constituição de 1946, em 20 de

dezembro de 1961 (Lei n. 4.024) regulamenta o ensino religioso em seu

art. 97, transcrevendo literalmente o supracitado art. 168 da Constitui-

ção de 1946, com uma modificação que contrariava a Igreja Católica: o

ensino religioso seria ministrado “sem ônus para os poderes públicos”.

Desse modo, não caberia ao Estado, por meio das escolas públicas, re-

munerar os professores de ensino religioso, restando à disciplina reli-

giosa recorrer ao voluntariado dos fiéis ou à remuneração por entidade

religiosa. Assim dispunha a LDB de 1961:

Art. 97 O ensino religioso constitui disciplina dos horários das escolas oficiais, é de matrícula facultativa, e será ministrado sem ônus para os poderes públicos, de acordo com a confissão religiosa do aluno, manifestada por ele, se for capaz, ou pelo seu representante legal ou responsável.

§ 1o A formação de classe para o ensino religioso independe de número míni-mo de alunos.

§ 2o O registro dos professores de ensino religioso será realizado perante a autoridade religiosa respectiva (grifo nosso).

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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Comentando os parágrafos deste dispositivo de nossa primeira LDB,

Luiz Antônio Cunha explica o sentido pretendido:

(O) ER não dependeria do número de alunos interessados, eliminando a in-terpretação inercial gerada pelo decreto de 1931, que estipulou um limite mínimo para sua viabilização. O outro parágrafo dizia que o registro dos professores do ensino religioso seria realizado perante as autoridades dos respectivos credos, vale dizer, que o poder público abria mão desse poder em proveito da Igreja Católica, principalmente, e de outras entidades que se propusessem a disputar a hegemonia religiosa no espaço das escolas públicas (Cunha, 2007, p. 294).

Apesar, como adiante justificaremos, de nos parecer que esta seria

uma forma de compatibilizar, na institucionalidade constitucional atual

(similar à de 1946), a previsão de ensino religioso ao caráter laico do

Estado; o fato de a Constituição prever este ensino como obrigatório

nas escolas públicas e a LDB vedar a oneração estatal gera um problema

de difícil enfrentamento do ponto de vista jurídico. A nosso ver, a opção

regulamentar da LDB de 1961, por eximir o Estado do custeio do ensino

religioso, descaracteriza-o enquanto parte do direito público subjetivo à

educação, esvaziando, do ponto de vista da exigibilidade, esse conteúdo.

Afinal, na prática não se pode exigir do Estado o oferecimento de um

serviço público no qual se encontra ele impedido de aplicar recursos por

expressa disposição legal.

Nesse contexto, em que o ensino religioso seria assegurado nas es-

colas públicas por atores diferentes do Estado, fazia sentido a não pre-

ocupação com o número mínimo de alunos (fator diretamente relacio-

nado aos custos da educação) e a vinculação dos docentes diretamente

aos organismos religiosos.

No entanto, mudança significativa ocorre com a revisão da LDB em

1971 (Lei n. 5.692), no contexto do Ato Institucional n. 5, de 13 de de-

zembro de 1968, sendo que o ensino religioso passa a ser obrigatoria-

mente ofertado tanto no primeiro como no segundo graus de ensino:

Art. 7o Será obrigatória a inclusão de Educação Moral e Cívica, Educação Física, Educação Artística e Programas de Saúde nos currículos plenos dos estabe-lecimentos de lo e 2o graus, observado quanto à primeira o disposto no Decreto-Lei n. 369, de 12 de setembro de 1969.

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Parágrafo único. O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disci-plina dos horários normais dos estabelecimentos oficiais de 1o e 2o graus.

Percebe-se a exclusão da vedação de ônus para os cofres públicos,

retomando-se a força normativa do ensino religioso frente ao Estado.

Outro fator importante é que, não somente no aspecto geográfi-

co, as disciplinas Educação Moral e Cívica e Ensino Religioso estiveram

materialmente relacionadas durante o recente período ditatorial. Como

registra Luiz Antônio Cunha, na Moral e Cívica também havia forte in-

fluência católica, sendo que suas finalidades “representavam uma sóli-

da fusão do pensamento reacionário, do catolicismo conservador e da

doutrina de segurança nacional, conforme era concebida pela Escola

Superior de Guerra”4. Fato que ganhou ares de oficialidade através pa-

recer aprovado pelo Conselho Federal de Educação (Parecer n. 94/71),

da lavra do arcebispo-conselheiro Luciano José Cabral Duarte, no qual

proclamava-se ser a religião a base da moral a ser ensinada. Prevenindo-

se dos eventuais questionamentos, o parecer afirmava tratar-se da “reli-

gião natural”, a qual emanaria de uma razão crítica.

Sobre esta confusão entre Estado e Igreja Católica, na qual esta por

muitas vezes na história do país assumiu o papel de legitimadora de re-

gimes ilegítimos do ponto de vista social e jurídico, Letícia Martel recor-

re aos clássicos estudos empreendidos pelo brasilianista Keneth Serbin,

no qual se destaca mais uma vez o papel desempenhado pelo ensino

religioso e o acesso ao fundo público:

4. Cunha descreve detalhadamente os fins últimos da educação moral e cívica: “a. a defesa do princípio democrático, pela preservação do espírito religioso, da dignidade da pes-soa humana e do amor à liberdade com responsabilidade, sob a inspiração de Deus; b. a preservação, o fortalecimento e a projeção dos valores espirituais e éticos da nacionalidade; c. o fortalecimento da unidade nacional e do sentimento de solidariedade humana; d. o culto à Pátria, aos seus símbolos, às suas tradições, instituições, e aos grandes vultos de sua história; e. o aprimoramento do caráter, com apoio na moral, na dedicação à família e à comunidade; f. a compreensão dos direitos e deveres dos brasileiros e o conhecimento da organização sociopolítico-econômica do país; g. o preparo do cidadão para o exercício das atividades cívicas, com fundamento na moral, no patriotismo e na ação construtiva, visando ao bem co-mum; h. o culto da obediência à lei, da fidelidade ao trabalho e da integração na comunidade” (Cunha, 2007, pp. 295-297).

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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Analisando as relações Estado/Igreja Católica no Brasil no período 1930-1964,

o autor concluiu que se processou uma intensa simbiose entre o Estado e a Igreja Católica. Em uma via, a igreja fornecia o aparato moral necessário à sustentação dos governos, e, como retorno, recebia fundos públicos que garantiam a sua hegemonia. Os fundos destinaram-se a três áreas preferenciais: a. educação (colégios católicos, universidades pontifícias e seminários); b. assistência social, inclusive no âmbito da saúde (Santas Casas); c. cultura. Ademais, as isenções e imunidades fiscais não eram concedidas mediante requisitos objetivos, mas segundo padrões que ofere-ciam ampla margem interpretativa. No campo educacional, Serbin detectou que tais benefícios foram ligados à capacidade de preparação moral dos estudantes e, por conseguinte, privilegiaram os educandários católicos. Nas primeiras fases do regime militar, o pacto moral continuou, sendo atingido apenas no processo de abertura (Martel, 2007, pp. 22-23).

O ensino religioso, segundo avaliação de Luiz Antônio Cunha, foi

utilizado pelo campo religioso para instrumentalizar o campo político

para “propósitos hegemônicos, pela ação no campo educacional” (2007,

p. 300). Por outro lado, a educação moral e cívica “representou tentativas

do campo político de instrumentalizar o campo religioso para propósi-

tos igualmente hegemônicos, pela mesma via da escola pública” (idem,

ibidem). Esse aparelhamento mútuo serviu para a inserção dos ensina-

mentos religiosos no material didático da educação moral e cívica, ex-

pressando de forma objetiva uma sintonia entre ambas as disciplinas,

sendo a Igreja Católica a entidade religiosa que mais contribuiu.

Anteriormente à revisão da LDB e ao Ato Institucional n. 5, a Cons-

tituição promulgada em 1967 havia praticamente repetido o texto de

1946, com menos destaque, entretanto, para a condição de adequação

à confissão religiosa dos estudantes ou de seus pais: “Art. 168. [...] IV –

O ensino religioso de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos

horários normais das escolas oficiais de grau primário e médio”. Esta

redação foi mantida após a Emenda Constitucional n. 1, de 1969.

No processo da Constituinte de 1988 “parecia que se restabeleceria

uma aliança entre liberais, socialistas e religiosos evangélicos, em defesa

da laicidade” (Cunha, 2006, p. 4), capaz de suplantar a visão confessio-

nal, no entanto, a atual Constituição retoma a tradição hegemônica de

garantia do ensino religioso nas escolas públicas – este, no entanto, é o

tema adiante tratado.

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Constituição Federal de 1988 e Lei de Diretrizes e Bases da

Educação Nacional – LDB (Lei n. 9.394/1996):

O Ensino Religioso como Direito à Liberdade de Professar

Crença e Culto e a Dimensão Negativa do Dever Estatal

A Constituição de 1988, ao dispor sobre a organização do Estado,

funda-se na ideia de laicidade, vedando aos entes federados “estabelecer

cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcio-

namento ou manter com eles ou seus representantes relações de depen-

dência ou aliança, ressalvadas, na forma da lei, a colaboração de interesse

público (art. 19, I). Ou seja, ao mesmo passo que positiva a separação

entre Estado e igreja, a Constituição deixa em aberto a possibilidade de

colaboração entre ambos, a ser regulada em lei. Não nos parece, entre-

tanto, que esta autorização pontual legitime a atuação confessional do

Estado, mesmo se adstrita a situações específicas. Ademais, nesta cola-

boração, não pode o Estado atuar em benefício de uma denominação

religiosa específica sem que viole a vedação imposta no mesmo artigo:

“É vedado [...] criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si”

(art. 19, III), considerando-se aí, evidentemente, diferenciações indevi-

das entre nacionais de distintas crenças, ateus ou agnósticos.

Analisando esse dispositivo constitucional, José Afonso da Silva

afirma haver três possíveis sistemas de relação entre Estado e igreja: 1.

confusão, quando ambos se confundem numa mesma institucionalida-

de, como é o caso dos Estados islâmicos; 2. união, quando há relação

jurídica concernente à organização e funcionamento de ambos, como

era o caso do regime imperial brasileiro; e 3. separação, quando não há

determinação organizativa e operativa entre ambos, assegurando-se a

liberdade religiosa, sendo o caso do Estado laico brasileiro desde a Cons-

tituição de 1891. No entanto, segundo o jurista, ao longo do tempo “[...]

houve pequenos ajustes quanto às relações Estado-igreja, passando de

uma separação mais rígida para um sistema que admite certos contac-

tos” (Silva, 2001, pp. 229-230). Essa separação flexível é possibilitada pela

autorização da Constituição (art. 19, I) para a “colaboração de interesse

público”. O autor admite a dificuldade em determinar juridicamente os

limites dessa colaboração, mas, para ele, não há dúvida que “[...] não

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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poderá ocorrer no campo religioso. Demais, a colaboração estatal tem

que ser geral a fim de não discriminar entre as várias religiões” (Silva,

2001, p. 230).

É nesse contexto que deve ser interpretada a disposição constitucio-

nal sobre o ensino religioso nas escolas públicas:

Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artís-ticos, nacionais e regionais.

§ 1o O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos ho-rários normais das escolas públicas de ensino fundamental (grifo nosso).

A Constituição de 1988 retoma os elementos normativos do ensino

religioso estabelecidos em nosso direito constitucional a partir da Cons-

tituição de 1934 – oferta obrigatória nos horários normais e matrícula

facultativa, com duas diferenças: restringe ao ensino fundamental (neste

trabalho não nos dedicaremos a analisar a adequação pedagógica dessa

medida) e exclui qualquer menção ao caráter do ensino religioso.

Retomando a conclusão de José Afonso da Silva, esse último fato

nos permitiria concluir que de forma a impedir o contato entre Esta-

do e igreja no âmbito religioso, a Constituição sinalizava no sentido de

que deveria ser abolida, na escola pública, a modalidade confessional de

ensino religioso, ou seja, o ensino atrelado a uma determinada denomi-

nação religiosa.

No entanto, este ensino é bastante comum nos dias de hoje, inver-

tendo-se o sentido da interpretação do autor: antevendo que o ensino

religioso conformaria-se como verdadeira catequização em determi-

nados casos, o constituinte encontrou na matrícula facultativa o meio

de compatibilização com as liberdades fundamentais de crença, culto e

organização religiosa. Essa parece ser a interpretação corrente no meio

jurídico nacional.

No artigo 213 da Constituição, fica mais explícita a flexibilização

da relação entre Estado e igreja, quando a Constituição autoriza a desti-

nação de recursos públicos para as escolas particulares comunitárias, fi-

lantrópicas e confessionais. Ou seja, além de financiar o ensino religioso

nas escolas públicas, o Estado está autorizado a financiar diretamente a

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formação de quadros religiosos em escolas declaradamente confessio-

nais. Neste caso, não há como deixar de privilegiar determinadas deno-

minações religiosas, pois, como se sabe, nem todas as religiões dispõe da

mesma estrutura institucional e hierárquica da Igreja Católica, exigida

para que acessem os recursos estatais.

Após 1988, embora tenha ocorrido “o enfraquecimento da posição

laica, pela derrota sofrida na Assembléia Constituinte” (Cunha, 2006, p.

4), seguiu-se o embate entre os campos laico e confessional, a partir do

qual “o Congresso Nacional criou, anos mais tarde, uma limitação para

o ER nas escolas públicas. Na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Na-

cional (9.394/96), o dispositivo constitucional sobre o ER foi incorpora-

do, com a restrição de ser oferecido ‘sem ônus para os cofres públicos’”

(Cunha, 2006, p. 4).

Retomava-se a tradição da LDB de 1961, inclusive quanto à previsão

do caráter confessional do ensino, ao qual se agrava de modo inédito

uma segunda opção – o ensino interconfessional. Tal disposição – en-

sino confessional sem ônus – parece-nos uma tentativa de composição

das diferentes posições em um mesmo artigo, fato recorrente na tradi-

ção cordial brasileira. Vejamos a redação original da LDB de 1996:

Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, sendo oferecido, sem ônus para os cofres públicos, de acordo com as preferências manifestadas pelos alunos ou por seus responsáveis, em caráter:

I. confessional, de acordo com a opção religiosa do aluno ou do seu responsá-vel, ministrado por professores ou orientadores religiosos preparados e credenciados pelas respectivas igrejas ou entidades religiosas; ou

II. interconfessional, resultante de acordo entre as diversas entidades religiosas, que se responsabilizarão pela elaboração do respectivo programa (grifo nosso).

No entanto, como poucas vezes se viu na história legislativa do país,

em pouco tempo houve alteração desse dispositivo, caindo mais uma

vez em nossa história a vedação de financiamento estatal ao ensino reli-

gioso nas escolas públicas. Luiz Antônio Cunha, em artigo já menciona-

do, narra o contexto social e político em que se aprovou a nova redação

do artigo 33, acima referido:

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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Um projeto de lei proposto pelo Ministro da Educação, três meses após a pro-mulgação da LDB, determinava mudança no artigo sobre o ER nas escolas públicas. Esse projeto foi fundido, no Congresso Nacional, a dois outros, de iniciativa parla-mentar. Os três projetos foram gerados no campo da centro-direita do espectro po-lítico, mas o relator do projeto substitutivo, que logrou aprovação, foi um deputado sacerdote católico, militante de partido de centro-esquerda, padre Roque (PT-PR) (Cunha, 2006, p. 5).

A professora, Roseli Fishmann, da Faculdade de Educação da Uni-

versidade de São Paulo, que na época era integrante da equipe que ela-

borava os Parâmetros Curriculares Nacionais da Educação Básica do

MEC, relata:

Dizia-se à época que o Ministro da Educação, pressionado por essa demanda de ter de dar alguma resposta quando o papa chegasse ao Brasil, e considerando a afinidade e a confiança pessoal, teria encomendado logo ao (depois falecido) de-putado Nelson Marchezan, um dispositivo que serviria de emenda à LDB naquele artigo específico, e que desse conta de superar todos os problemas apontados.

Contudo, o mais pitoresco foi a tranquilidade com que o Congresso entregou o projeto de lei de Nelson Marchezan a um relator que não teria como ser isento (foi relator o deputado padre Roque), por ser religioso da confissão historicamente dominante, sendo finalmente aprovada a emenda à LDB, lei complementar à Cons-tituição Federal, por acordo de lideranças, às vésperas do recesso parlamentar, em pleno mês de julho, férias escolares (Fishmann, 2006, pp. 6-7).

Ambos os relatos narram o momento político destacando o papel

da Igreja Católica junto ao Congresso Nacional. Também colhemos o

depoimento de Carlos Roberto Jamil Cury sobre o assunto, que destaca

o papel desempenhado pelo Conselho Nacional de Educação (CNE):

Em parecer normativo relativo ao assunto, ainda na vigência da primeira re-dação do art. 33, o Conselho Nacional de Educação (CNE), através do parecer CNE n. 05/97 se pronunciou a fim de dirimir a questão relativa aos ônus financeiros da oferta desta disciplina pelo poder público já que “haveria violação do art. 19 da Constituição Federal que veda a subvenção a cultos religiosos e a igrejas”. E afirmava também: [...] por ensino religioso se entende o espaço que a escola pública abre para que estudantes, facultativamente, se iniciem ou se aperfeiçoem numa determinada religião. Desse ponto de vista, somente as igrejas, individualmente ou associadas, poderão credenciar seus representantes para ocupar o espaço como resposta à de-manda dos alunos de uma determinada escola (p. 2). Essa redação não agradou

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várias autoridades religiosas, em especial as católicas, cujo objetivo inicial era pres-sionar a presidência da República a fazer uso do seu direito de veto. O próprio Executivo assumiu, então, o compromisso de alterar o art. 33 mediante projeto de lei, daí resultando a Lei n. 9.475/97 (Cury, 2004, pp. 7-8).

Ou seja, na visão de Cury, amparado na interpretação do CNE à re-

dação original do art. 33 da LDB, havia até então uma lógica, baseada no

caráter laico do Estado determinado no art. 19, I da Constituição, que

assim funcionaria: o Estado abriria as escolas públicas para que as dife-

rentes denominações religiosas lá ofertassem, de modo associado (in-

terconfessional) ou individualmente (confessional), o ensino religioso,

sendo este facultativo aos estudantes. Caberia portanto às organizações

religiosas que assim entendessem, ocupar, sem ônus para as administra-

ções públicas, o espaço a elas disponibilizado nas escolas, arregimentan-

do dentre seus fiéis e sacerdotes os professores de ensino religioso. Caso

as confissões religiosas não disponibilizassem tal ensino, não caberia ao

Estado assegurá-lo.

Com isso, poder-se-ia dizer que a Constituição Federal, uma vez

que autorizava regulamentação nos termos do texto original da LDB, não

estabelece, em princípio, o ensino religioso no rol dos deveres positivos

do Estado quanto ao direito à educação. Não poderia, portanto, até a

reforma de LDB em 1997, o cidadão exigir do Estado a oferta de ensino

religioso enquanto direito público subjetivo, quando este não estivesse

organizado em determinada escola, pois esta tarefa caberia diretamen-

te ao setor religioso privado, que atuaria nas escolas públicas com base

na margem de liberdade concedida pelo Estado. A este, por outro lado,

caberia tão-somente não embaraçar a realização do ensino religioso nas

escolas e protegê-lo contra eventuais ameaças de terceiros.

A Reforma da LDB pela Lei n. 9.475/1997:

O Ensino Religioso na Dimensão Positiva do Dever Estatal

No entanto, assim como já ocorrera no episódio da revisão da regu-

lamentação do ensino religioso na LDB de 1971, esta interpretação preci-

sou ser refeita com a edição da Lei n. 9.475, de 22 de julho de 1997, que

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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a partir das pressões das entidades e grupos religiosos altera o art. 33 da

LDB, o qual passa a vigorar com a seguinte redação:

Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da for-

mação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas pú-

blicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa

do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo.

§ 1o Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição

dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e

admissão dos professores.

§ 2o Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes

denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso (grifo

nosso).

A nova redação suprime a expressão “sem ônus para os cofres pú-

blicos”, tacitamente afirmando o financiamento público. Além disso, de-

termina que o ensino religioso é “parte integrante da formação básica do

cidadão”, ou seja, enquanto tal passa a ser passível de exigibilidade jurí-

dica, cabendo ao Estado assegurá-lo independentemente da posição das

organizações religiosas. De fato, assim surgem os primeiros julgados, em

sede de Ação Civil Pública, determinando ao Estado a oferta de ensino

religioso nas escolas públicas:

Ementa: Apelação Cível. Ação Civil Pública. Ensino Religioso não oferecido

nas escolas estaduais do Município de Paraíba do Sul. Procedência do pedido. En-

sino Religioso. Previsão nacional inserida na Constituição Federal e na Lei de Di-

retrizes e Bases, na forma facultativa. Disciplina obrigatória neste Estado, na forma

do disposto na Lei Estadual n. 3.459/2000, art. 1o Resolução que não tem poder

para modificar o texto de lei. Obrigação ao oferecimento da disciplina. Honorários

Advocatícios. Ministério Público. Confusão. Órgão mantido pelo Estado, como a

Defensoria Pública. Aplicação, por semelhança, da Súmula n. 80 deste Egrégio Tri-

bunal de Justiça. Provimento parcial do recurso, somente para excluir a condenação

ao pagamento de honorários advocatícios5.

5. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) – Décima Câmara Cível, Proc. n. 2006.001.08880 – Apelação Cível, Des. Gilberto D. Moreira – Julgamento em 5.9.2006.

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SALOMÃO BARROS XIMENES

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Inclusive extensível, numa posição que nos parece inadequada, por

previsão expressa de uma lei estadual carioca (Lei n. 3.459/2000), à edu-

cação infantil:

Ementa: Ação Civil Pública. Ensino Religioso. Estabelecimento de ensino esta-dual. Obrigatoriedade. Abrangência da medida. Apelação Cível. Ação Civil Pública. Ensino Religioso. Escolas da Rede Pública do Estado do Rio de Janeiro. A Lei n. 3459/00 que dispõe sobre o Ensino Religioso Confessional nas Escolas da Rede Pú-blica de Ensino do Estado do Rio de Janeiro determina que o ensino religioso é de matrícula facultativa, parte integrante da formação básica do cidadão, constituin-do disciplina obrigatória dos horários normais das escolas públicas, na Educação Básica. O inciso I, do artigo 21 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, define como Educação Básica: a Educação Infantil, o Ensino Fundamental e o En-sino Médio. A disciplina de ensino religioso deve ser oferecida, também, aos alunos das classes de educação infantil e classes de jovens e adultos nas escolas estaduais do Município de Três Rios e Comendador Levy Gasparian. Descabida condenação do Estado do Rio de Janeiro em honorários advocatícios em favor do Ministério Público, que é um órgão do próprio Estado. Incidência da Súmula 80, TJRJ. Recurso parcialmente provido6.

Ou seja, não por disposição da Constituição, mas em decorrência

do que determina a Lei n. 9.475/1997, podemos dizer que o ensino reli-

gioso, apesar de facultativo, passa a compor o rol dos deveres positivos

do estado quanto à educação, sendo inclusive exigível em caso de omis-

são estatal.

Considerações Finais

Feito esse resgate da trajetória do ensino religioso na legislação fe-

deral, podemos perceber a magnitude da reforma promovida pela Lei n.

9.475/1997 em relação a postura estatal frente ao tema do ensino religio-

so nas escolas públicas: de um direito de liberdade, vinculado especifica-

mente à liberdade de crença e culto, a ser exercido inclusive no espaço da

escola pública, sem ônus para o Estado, de quem se cobrava tão-somente

6. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) – Décima Quinta Câmara Cível, Proc. n. 2005.001.45451 – Apelação Cível, Des. José Pimentel Marques – Julgamento em 17.5.2006.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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uma postura negativa de não intervenção e de proteção contra ameaças

a seu exercício; passamos a um direito a prestações positivas do Estado,

que deverá organizar-se no sentido de prover administrativa e financei-

ramente sua rede de ensino das condições objetivas de oferta do ensino

religioso, independentemente de requerimento das próprias organiza-

ções confessionais.

Com isso, passa o ensino religioso a ser defendido como parte do

direito à educação, assim como, por exemplo, o ensino de língua por-

tuguesa e matemática. A única diferença, no caso, reside na esfera de

liberdade do estudante em não frequentá-lo, não mais na postura estatal

quanto à sua oferta.

A nosso ver essa não é a melhor solução para a questão, pois o en-

sino religioso deve sim ser visto como um direito, exercido, no entanto,

na esfera privada, sendo proposto, organizado e custeado pelas organi-

zações religiosas interessadas. Nesse sentido, precisamos avançar rumo a

uma reforma constitucional.

Atualmente, a alteração da posição estatal em relação ao ensino re-

ligioso, bem como sua incorporação, inclusive em termos de financia-

mento, ao rol dos deveres estatais, apresenta aos educadores, gestores

públicos e operadores jurídicos uma complexidade sem precedentes e

de difícil resolução, envolvendo aspectos que vão desde a administração

e organização escolar ao exercício das liberdades de cátedra e de crença.

Questões como a formação exigida para que o professor lecione ensino

religioso, sua forma de contratação, sua vinculação com as organizações

religiosas, a organização curricular, a forma de avaliação, a frequência e

carga-horária em que deve ser ofertado etc., passam a povoar o universo

dos debates sobre sua implantação no país.

No entanto, a maior complexidade decorrente da forma de imple-

mentação do ensino religioso nas escolas públicas brasileiras, deve-se à

absoluta delegação de competência aos sistemas de ensino para regu-

lamentar “os procedimentos para a definição dos conteúdos” e estabe-

lecer “as normas para a habilitação e admissão dos professores” (Lei n.

9.475/1997, art. 33, § 1o), gerando grandes desigualdades de interpreta-

ção e de nível de implementação. É imperioso lembrar que ao falarmos

de delegação aos sistemas de ensino estamos nos referindo, potencial-

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SALOMÃO BARROS XIMENES

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mente, a mais de cinco mil unidades próprias, formadas por estados,

Distrito Federal e municípios7. Contudo, esses são temas a serem trata-

dos em outra oportunidade.

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7. A LDB (Lei n. 9.394/1996, art. 11) atribui aos municípios a faculdade de criar sis-temas de ensino próprios, integrar-se ao sistema estadual ou compor com este um sistema único de educação básica.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

109

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI n. 3.510-DF. Relator: ministro Carlos Ayres Brito. Disponível em www.stf.gov.br.

TJRJ. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Décima Quinta Câmara Cível, Proc. n. 2005.001.45451 – Apelação Cível, Des. José Pimentel Marques – Julga-mento em 17.5.2006. Disponível em www.tj.rj.gov.br.

_____. Décima Câmara Cível, Proc. n. 2006.001.08880 – Apelação Cível, Des. Gilberto D. Moreira – Julgamento em 5.9.2006. Disponível em www.tj.rj.gov.br.

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II

OS SISTEMAS DE ENSINO EO MINISTÉRIO PÚBLICO

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113

Introdução

A experiência tem revelado que, indo muito além da seara da pró-

pria, a educação tem chegado aos domínios do Direito, exigindo dos

juristas e profissionais militantes uma atuação interdisciplinar, influen-

ciando e sofrendo influências diversas. A educação tem sido discutida

entre os juristas, inclusive como prioridade absoluta de modo a comba-

ter a pobreza, o subdesenvolvimento econômico e social, chegando até a

criminalidade, esta afeta diretamente aos domínios do Direito, enquan-

to aqueloutras de forma indireta, mas de toda forma evidenciando que

qualquer tentativa de solução para os graves problemas que enfrenta-

mos, passa pela priorização da educação.

Embora os benefícios sejam visíveis em muitos países que realmen-

te priorizaram a educação, não é possível, segundo entendemos, depo-

sitar nela toda a responsabilidade pelo avanço (ou não) do país, senão a

concreta esperança de um amanhã melhor do que o hoje. Não há solu-

ção mágica. Todavia, as gerações vindouras serão bem mais esclarecidas

e conscientes de seus direitos e deveres, caso fizermos uma opção clara

e firme pela educação da geração presente. Para isso é preciso que os

indivíduos aprendam a conhecer, a fazer, a viver juntos e a ser, como

As Instituições de Educação Superiore as Autoridades Estatais:

Autonomia e Controle

Eduardo Martines Júnior

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EDUARDO MARTINES JÚNIOR

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ensina Delors (2001), apresentando uma visão moderna do conceito de

educação, sustentada nesses quatro pilares.

É bom dizer que esses quatro pilares da educação não estão restritos

à aplicação nas escolas, antes, pelo contrário, englobam todas as formas

de educação e vão desde o nascimento, até o final da vida. Delors adverte:

Numa altura em que os sistemas educativos formais tendem a privilegiar o acesso ao conhecimento, em detrimento de outras formas de aprendizagem, impor-ta conceber a educação como um todo. Esta perspectiva deve, no futuro, inspirar e orientar as reformas educativas, tanto em nível da elaboração de programas como da definição de novas políticas pedagógicas.

Finalizando, estamos com Delors (2001, p. 103) ao dizer que não é

mais possível alguém adquirir na juventude uma gama de conhecimen-

tos, ainda que vastos, julgando-os bastante para o resto da vida, dado

que a evolução do mundo em velocidades fantásticas exige contínua

atualização dos saberes. Afirma ele:

[...] as missões que cabem à educação e as múltiplas formas que pode revestir fazem com que englobe todos os processos que levem as pessoas, desde a infância até ao fim da vida, a um conhecimento dinâmico do mundo, dos outros e de si mesmas, combinando de maneira flexível as quatro aprendizagens fundamentais descritas no capítulo anterior. É este continuum educativo, coextensivo à vida e am-pliado às dimensões da sociedade, que a Comissão entendeu designar, no presente relatório, pela expressão “educação ao longo de toda a vida”. Em seu entender, é a chave que abre as portas do século XXI e, bem além de uma adaptação necessária às exigências do mundo do trabalho, é a condição para um domínio mais perfeito dos ritmos e dos tempos da pessoa humana (Delors, 2001, p. 104).

Como se vê, o conceito atual de educação é muito mais amplo que

aquele fundado na mera transmissão do conhecimento. Não se pode

deixar de dizer que o processo educativo, ainda que baseado no apro-

veitamento da experiência anterior, não se limita apenas àquilo que se

ensina e se aprende nos bancos escolares. Vai muito além, e incorpora

valores socialmente relevantes para cada distinta sociedade, inovando

com alguns e aprimorando os existentes.

Adorno (2003) referiu-se à “produção de uma consciência verdadei-

ra”, dizendo que uma democracia deve operar de acordo com seu concei-

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

115

to, razão pela qual exige pessoas emancipadas. Diz ainda: “Uma demo-

cracia efetiva só pode ser imaginada enquanto uma sociedade de quem é

emancipado” (Adorno, 2003, p. 141). Em seguida, o autor pondera:

A educação seria impotente e ideológica se ignorasse o objetivo de adaptação e não preparasse os homens para se orientarem no mundo. Porém ela seria igual-mente questionável se ficasse nisto, produzindo nada além de well adjusted people, pessoas bem ajustadas, em consequência do que a situação existente se impõe pre-cisamente no que tem de pior. Nestes termos, desde o início existe no conceito de educação para a consciência e para a racionalidade uma ambiguidade. Talvez não seja possível superá-la no existente, mas certamente não podemos nos desviar dela” (Adorno, 2003, p. 143).

De fato, a educação deve ter um espectro amplo, desenvolvendo o

ser humano em todas as suas facetas, efetivamente o preparando para a

vida social, a familiar, para o trabalho e, de modo especial, para o exer-

cício da cidadania. Nesse sentido, relevante se mostram ainda, a edu-

cação ambiental, a educação inclusiva, a educação do consumidor, que

se inserem no contexto da vida moderna como uma exigência, com a

consciência dos indivíduos sobre a busca constante de desenvolvimento

econômico-social, sem deixar de proteger o meio-ambiente, sem deixar

de enxergar as pessoas diferentes por qualquer razão, como iguais de-

tentores de direitos etc. Ensinar isso hoje é garantir o sucesso das futuras

gerações, pois a humanidade deve se desenvolver respeitando valores

que nos são caros.

É considerável o espaço dedicado à educação pela Constituição de

1988, tendo o artigo 205 firmado o dever do Estado e da família para

com ela, promovida e incentivada com a colaboração da sociedade. De

fato, só a educação será capaz de permitir o exercício da cidadania e só

ela fará com que os brasileiros eliminem as gritantes desigualdades –

das mais variadas ordens – que teimam em existir entre nós. Mas qual

o significado do vocábulo Estado? Estaria a Constituição se referindo

aos Poderes Legislativo e Executivo tão-somente? Pretendemos dar am-

plitude maior a esse vocábulo e nele incluir o Ministério Público, ente

estatal diferenciado, ao qual foram cometidas relevantes funções, dentre

as quais se destacam a defesa da ordem jurídica, do regime democrático,

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dos interesses sociais e individuais indisponíveis, bem como o zelo pelo

efetivo respeito dos Poderes Públicos aos direitos assegurados no Texto

Maior, promovendo o inquérito civil e a ação civil pública para a prote-

ção dos direitos difusos e coletivos. Assim, no exercício de suas funções,

embora seja ente estatal, pode o Ministério Público se voltar contra o

próprio Estado.

A relevante e difícil tarefa de educar exige a atuação de muitos ato-

res e órgãos governamentais. A família e a sociedade igualmente são cha-

madas a assumir seus papéis. Sob o ponto de vista do Estado, a educação

está distribuída em sistemas, previstos na Constituição e detalhados na

Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, bem como na Consti-

tuição Estadual e em leis e normas estaduais. De algum tempo para cá

o Ministério Público tem atuado no campo educacional com ênfase em

pontos específicos, mas a tendência é no sentido de alargar o campo de

atuação, colocando-se como mais um ente estatal a serviço da educação.

A somatória de esforços é positiva, segundo entendemos, mas exige

focalização em pontos cuja relevância justifique a atuação conjunta de

todos os entes estatais envolvidos, permitindo maior probabilidade de

sucesso na decisão e implantação de políticas públicas. Sobre os sistemas

de ensino e o Ministério Público na educação é que trataremos a seguir.

Educação na Constituição e na LDB

O tema educação é tratado na Constituição de 1988 em diversas

passagens do texto. O mais importante deles está no artigo 6o, pelo qual

a educação ganha o status de direito social e, via de consequência, direito

fundamental do ser humano. O detalhamento desse fundamental direito

vem no artigo 205 e seguintes, com a educação dignificada como sendo

direito de todos e dever do Estado e da família, promovida e incentivada

com a colaboração da sociedade, tendo por objetivos o desenvolvimento

da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação

para o trabalho.

Depois de fixar os princípios básicos da educação, a Lei Maior orga-

niza os sistemas de educação, em obediência ao princípio federativo por

nós adotado. Assim sendo, nos termos do artigo 221 compete à União

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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organizar o sistema federal de ensino e dos territórios, bem como exer-

cer função redistributiva e supletiva, de modo a garantir equalização de

oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade. Aos estados

e Distrito Federal foi garantida a organização de seus próprios sistemas

de ensino, bem como determinada a atuação prioritária no ensino fun-

damental e médio. Finalmente, também os municípios poderão orga-

nizar seus sistemas de ensino, cabendo-lhe atuar prioritariamente na

educação fundamental e infantil.

A regulamentação foi feita pela Lei n. 9.394/96, a chamada Lei de

Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), com fundamento em re-

gra de competência prevista no inciso XXIV do artigo 22 da Constituição,

segundo o qual compete privativamente à União legislar sobre diretrizes

e bases da educação nacional. O artigo 9o e seguintes da LDB fixam as

competências de cada sistema, cabendo à União estabelecer as compe-

tências e diretrizes para a educação infantil, o ensino fundamental e o

ensino médio, bem como baixar normas gerais sobre cursos de gradua-

ção e pós-graduação (incs. IV e VII do art. 9o). Prevê-se ainda a existência

de um Conselho Nacional de Educação (§ 1o do art. 9o), cuja estrutura

e funções estão elencadas na Lei n. 4.024, de 20 de dezembro de 1961,

com a redação dada pela Lei n. 9.131, de 24 de novembro de 1995, como

se verá a seguir. Também nessa lei fica claro o dever do sistema nacional

de ensino de fixar as diretrizes curriculares tanto para a educação básica

(infantil, fundamental e média), quanto para a educação superior. Para

os Estados e municípios a LDB reservou uma série de competências, in-

clusive baixar normas complementares para os seus próprios sistemas.

Por fim, aos estabelecimentos de ensino coube elaborar e executar sua

proposta pedagógica, respeitadas as normas comuns e aquelas do seu

sistema de ensino (art. 12 da LDB). Obviamente que por tais razões, as

propostas não podem ser descoladas das diretrizes curriculares e nem

das normas complementares baixadas nos sistemas estaduais e munici-

pais ao qual estejam ligados.

Em resumo, pode-se dizer que à União compete editar as normas ge-

rais e as diretrizes curriculares; aos estados e municípios cabe baixar nor-

mas complementares aos seus sistemas de ensino; e aos estabelecimentos

de ensino a tarefa de elaborar e executar suas propostas pedagógicas.

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EDUARDO MARTINES JÚNIOR

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Os Órgãos Educacionais Estatais

O Conselho Nacional de Educação

Vista a relevância do tema educação, cumpre agora procurar mos-

trar como atuam os atores do cenário educacional na prática.

Como visto, o sistema nacional previsto na LDB contempla a exis-

tência do Conselho Nacional de Educação (CNE), em cujo rol de funções

está (em conjunto com o Ministério da Educação) a edição de diretrizes

curriculares nacionais, para todos os níveis de ensino. O CNE aprova o

parecer relatado por um dos conselheiros que contêm a fundamenta-

ção e uma proposta de resolução, indo à homologação pelo Ministro

da Educação. Se homologado o parecer e a proposta de resolução, final-

mente é concretizada a norma que a todos obriga. Essa é a norma usual

e conhecida nos sistemas educacionais, ressaltando-se que a própria LDB

fixa como princípio de ministração do ensino o pluralismo de ideias e

de concepções pedagógicas (inc. III do art. 3o), tendo por limite os cur-

rículos e os conteúdos mínimos fixados nas diretrizes (inc. IV do art.

9o). No que diz respeito ao ensino superior cabe à União baixar normas

gerais sobre os cursos (inc. VIII do art. 9o), bem como deliberar sobre as

diretrizes curriculares dos cursos superiores (alínea “c”, do § 2o, do art.

9o, da Lei n. 4.024/61, com a redação dada pela Lei n. 9.131/95).

O Conselho Estadual de Educação

No que concerne ao sistema estadual, o artigo 237 da Constituição

paulista repete, de maneira geral, os princípios estabelecidos na Carta

Política. Institui o sistema estadual de ensino (artigo 238 e 239), discipli-

nando como se organizarão, impondo aos municípios a responsabilida-

de prioritária pelo ensino fundamental. Consagra o Conselho Estadual

de Educação – CEE (artigo 242) como órgão cuja tarefa é de normatizar e

deliberar sobre o sistema de ensino estadual, além de exercer funções de

consultoria. Essas disposições estão de acordo com a Constituição Fede-

ral e com a Lei n. 9.394/96, particularmente o artigo 17 que disciplina o

sistema estadual de ensino, dentre outras.

Resta dizer que em relação ao Conselho Estadual de Educação, a

Constituição Estadual foi regulamentada pela Lei n. 10.403, de 6 de ju-

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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lho de 1971, vinculando-o à Secretaria de Estado da Educação. No âmbi-

to estadual, são exarados pareceres e indicações que, eventualmente, po-

dem gerar projeto de deliberação, espécie normativa própria do Órgão,

posteriormente homologada pelo titular da Pasta da Educação. O CEE é,

portanto, o órgão deliberativo, normativo e consultivo do sistema esta-

dual de ensino, cabendo-lhe as competências ditadas pela Constituição

Federal, Constituição Estadual, Lei de Diretrizes e Bases da Educação

Nacional e a lei estadual regulamentadora.

O Ministério Público na Questão Educacional

Com a Constituição Federal de 1988 o Ministério Público avan-

çou significativamente, fortalecendo-se como instituição, à qual coube

o qualificativo de “permanente e essencial à função jurisdicional” como

quer o artigo 127. Todavia, mais que uma atuação no campo jurisdi-

cional, a Lei Maior reserva ao Ministério Público incumbências nitida-

mente extraprocessuais, como na defesa da ordem jurídica, do regime

democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Depois

de fixar os alicerces de atuação, no artigo 129 fixou-se as funções institu-

cionais, em rol aberto e que apenas exemplifica concretamente, em quais

situações jurídicas e quais instrumentos utilizará o Ministério Público.

Importa que nem a Constituição Federal ou a Constituição Estadual,

nem a Lei n. 8.625, de 12 de fevereiro de 1993 (Lei Orgânica do Minis-

tério Público), ou a Lei Complementar n. 75, de 20 de maio de 1993

(Lei Orgânica do Ministério Público da União), ou a Lei Complementar

Estadual n. 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério

Público do Estado de São Paulo), passaram perto de limitar as funções

ministeriais à seara jurisdicional, ao contrário, pois é função institucio-

nal do Ministério Público exercer a defesa dos direitos assegurados nas

Constituições Federal e Estadual (art. 103, inc. VII da LC n. 734/93, in-

cumbindo ao promotor de justiça atender a qualquer do povo, tomando

as providências cabíveis (art. 121, inc. II da LC 734/93). Já a LC 75/93,

convenhamos, é muito mais abrangente e consagra diversas hipóteses

de atuação ministerial fora do Judiciário (art. 5º), com a utilização de

instrumentos elencados nos artigos 6o, 7o e 8o da norma. De toda forma,

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EDUARDO MARTINES JÚNIOR

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não só pode como deve o Ministério Público atuar nas questões educa-

cionais, seja administrativamente ou judicialmente1.

Relativamente à educação de maneira geral, já afirmamos2 que ela é

a medida do desenvolvimento social, cultural e econômico de um povo.

Se a ele é oferecida educação de qualidade, certamente terá maior faci-

lidade de alcançar o pleno desenvolvimento. A educação é, para o con-

junto da sociedade, a solução viável de oferecimento de oportunidades

de crescimento e desenvolvimento sustentável, com inclusão social, com

preservação do meio ambiente e, de resto, afirmação da cidadania como

um todo. O Brasil precisa de investimentos nos variados setores eco-

nômicos, com geração de empregos, de renda, afastando-nos da pobre-

za. Todavia, a busca do status de país desenvolvido não pode significar

desrespeito a valores que a própria Constituição consagra. Desse modo

estaremos garantindo um futuro melhor ao Brasil, com a atual geração

preparando aqueloutras vindouras, para conquistar um degrau acima

na escala do desenvolvimento econômico e social. Segundo Durkheim

(1978):

A educação é a ação exercida, pelas gerações adultas, sobre as gerações que não se encontrem ainda preparadas para a vida social; tem por objeto suscitar e desen-volver, na criança, certo número de estados físicos, intelectuais e morais, reclamados pela sociedade política, no seu conjunto, e pelo meio especial a que a criança, parti-cularmente, se destine (Durkheim, 1978, p. 41).

A preparação das futuras gerações, para que a consciência de defesa

e preservação dos valores definitivamente incorporados no pensamento

da sociedade, é árduo mister e exige incansável aperfeiçoamento, sobre-

tudo considerando as contínuas e crescentes adversidades. Cabe a nós

alterar o resultado do jogo:

1. Defendemos esse entendimento em tese de doutorado no programa de pós-gradu-

ação em Direito da Pontifica Universidade Católica de São Paulo, sub-programa de Direito

Constitucional, sob o título: Educação, Cidadania e Ministério Público, com a orientação da

professora doutora Maria Garcia, 2006.

2. Nosso, op. cit., passim.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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[...] quer dizer, já não foi possível existir sem assumir o direito e o dever de optar, de decidir, de lutar, de fazer política. E tudo isso nos traz de novo à imperio-sidade da prática formadora, de natureza eminentemente ética. E tudo isso nos traz de novo à radicalidade da esperança. Sei que as coisas podem até piorar, mas sei também que é possível intervir para melhorá-las (Freire, 1996, p. 52).

Portanto, se ao Ministério Público incumbe a defesa do direito à

educação como um todo, deve a Instituição velar pela sua efetiva im-

plantação, dando cumprimento ao disposto na Constituição Federal.

Conclusões

A educação é tema destacado na ordem constitucional, merecendo

a especial atenção do Estado, da família e da sociedade. Nesse sentido, a

Constituição e demais normas aplicáveis tratam dos sistemas educacio-

nais e seus órgãos, quer os legislativos ou os executivos, corporificando

uma complexa estrutura que foge aos padrões.

A existência de uma repartição de competências, em obediência ao

princípio federativo, vem complementada pela existência dos Conselhos,

quer o Nacional ou os Estaduais, órgãos incumbidos de expedir normas

gerais e que a todos os envolvidos na matéria educacional obrigam. O

Conselho Nacional de Educação, atuando junto ao Ministério da Edu-

cação, edita resoluções, além de exarar pareceres. No âmbito regional, o

Conselho Estadual de Educação normatiza os sistemas por deliberações,

em articulação com a Secretaria de Educação, além de igualmente exarar

pareceres e indicações. Possível ainda a existência de Conselhos Munici-

pais de Educação que somados às Secretarias Municipais de Educação,

tornam realmente complexo o chamado sistema educacional.

O Ministério Público galgou notável crescimento na Constituição

de 1988, passando de um órgão com atuação meramente judicial, para ir

além e assumir a função de defensor dos direitos constitucionais da so-

ciedade. Sendo defensor dos direitos do povo, natural que possa e deva

exigir o direito à educação, base do desenvolvimento da sociedade. É

nessa linha de atuação que o Ministério Público deve atuar, influencian-

do e exigindo a concretização do fundamental direito à educação.

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EDUARDO MARTINES JÚNIOR

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FREIRE, Paulo. 1996. Pedagogia da Autonomia: Saberes Necessários à Prática Edu-cativa. São Paulo, Paz e Terra.

MARTINES JÚNIOR, Eduardo. 2006. Educação, Cidadania e Ministério Público: O Artigo 205 da Constituição e sua Abrangência. São Paulo, tese de doutorado em Direito Constitucional, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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Introdução

A declaração do direito à educação está presente na legislação bra-

sileira desde o Império, com a gratuidade do ensino primário, sendo

aperfeiçoada do ponto de vista jurídico, desde a Constituição Federal

de 1934 (Oliveira, 2007a). Entretanto, a promulgação deste direito na

Constituição Federal de 1988 (CF/88), com seu detalhamento na legisla-

ção complementar, Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 – ins-

tituído pela Lei n. 8.069 de 1990 (ECA/90), Lei de Diretrizes e Bases da

Educação – Lei n. 9.394 de 1996 (LDB/96), não são suficientes para que

todos os cidadãos brasileiros tenham acesso à escola, permaneçam nela

e ainda a concluam com qualidade.

Os dados educacionais sobre acesso indicam que a universalização

completa do atendimento no ensino fundamental, única etapa da edu-

cação básica considerada obrigatória, não se concretizou, apesar de sua

crescente expansão na década de 1990, atingindo 97% na taxa de escola-

rização líquida. Na educação infantil, de acordo com os dados do último

Censo Demográfico do IBGE de 2000, apenas 9,4 % das crianças de zero

a três anos tinham acesso à creche, e a pré-escola era frequentada por

61,4 % das crianças de quatro a seis anos; no ensino médio, a taxa de

Atuação do Ministério Público para a Proteção do Direito à Educação Básica

Adriana A. Dragone Silveira

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ADRIANA A. DRAGONE SILVEIRA

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escolarização líquida, em 2000, era 33,3%, evidenciando o baixo per-

centual de atendimento da população jovem (Inep/MEC, 2004). O índice

de analfabetismo no Brasil entre a população de 15 anos ou mais era de

10,5% em 2004.

No contexto de ampliação de direitos, a CF/88 também aperfeiçoou

os mecanismos jurídicos para a sua proteção: ação civil pública, man-

dado de injunção, mandado de segurança coletivo. Neste rol destaca-se

também o papel atribuído ao Ministério Público (MP) para a defesa dos

direitos sociais (Duarte, 2003). Instituição concebida, no novo marco

legal brasileiro como “permanente, essencial à função jurisdicional do

Estado, incumbindo-lhe a defesa jurídica, do regime democrático e dos

interesses sociais e individuais indisponíveis” (CF/88, art.127).

O MP tem sua atuação fortalecida com o ECA/90, ao explicitar os

direitos infanto-juvenis, inclusive os educacionais, e ao prever as funções

da instituição para a proteção desses direitos.

A atuação do MP, definida pelo ECA (art. 201), se desenvolve de di-

versas formas, judicial ou administrativamente. Entre elas, destacam-se:

instaurar Inquérito Civil e promover a Ação Civil Pública para a defesa

dos interesses individuais, difusos ou coletivos1 relativos à criança e ao

adolescente; inspecionar entidades e programas de atendimento desti-

nados à criança e ao adolescente. Compete-lhe, também, adotar medidas

administrativas ou judiciais no caso de irregularidades; instaurar proce-

dimentos administrativos; instaurar sindicância, requisitar diligências

investigatórias e determinar a instauração de inquérito policial para

apuração de ilícitos ou infrações às normas de proteção à infância e à ju-

1. Os direitos difusos e coletivos são definidos de acordo com a sua divisibilidade, abran-

gência e origem. Difusos são “são compartilhados por um grupo indeterminável de lesados;

o objeto desses interesses é indivisível; o grupo está unido por uma situação de fato comum

(exemplo: uma ação destinada a obter a reparação cível pela lesão ao meio ambiente, em pre-

juízo dos moradores de uma região; uma ação civil pública destinada a impedir uma propa-

ganda enganosa pelo rádio ou pela televisão)”; os coletivos: “aqueles que estão compartilhados

por um grupo determinável de lesados; o objeto desses interesses é indivisível; o grupo está

unido por uma relação jurídica básica comum, que deve ser resolvida de maneira uniforme

para todo o grupo (exemplo: uma ação coletiva que vise a anular uma cláusula abusiva num

contrato de adesão)”. Mazzilli, 2004, p. 76, grifos do autor.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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ventude; zelar pelo efetivo respeito aos direitos e garantias legais assegu-

rados às crianças e aos adolescentes, promovendo as medidas judiciais e

extrajudiciais cabíveis; fiscalizar o processo de escolha dos membros do

Conselho Tutelar; fiscalizar o ingresso no cadastro de doações; fiscalizar

entidades e programas de proteção ou socioeducativos; e intervir nos

atos infracionais cometidos por adolescentes.

Este artigo analisa em dois municípios do interior paulista, a atu-

ação do MP para a proteção do direito à educação básica, tendo como

objetivos averiguar os diferentes tipos de atuação – judicial e extrajudi-

cial – desenvolvidos pelos promotores de justiça da Infância e Juventude,

além de caracterizar as consequências da ação do MP para a garantia do

direito à educação básica.

O estudo foi realizado nas Promotorias da Infância e Juventude de

Rio Claro e Ribeirão Preto, municípios do interior do Estado de São

Paulo, sendo consideradas ambas Comarcas de 3a entrância para pro-

gressão na carreira no MP. A pesquisa abrangeu as ações desenvolvidas

pelos promotores de justiça no período de 1997 a 2004, tendo em vista

que as alterações no financiamento da Educação, com a Emenda Cons-

titucional n. 14, de 1996, e a introdução do Fundo de Manutenção e De-

senvolvimento do Ensino Fundamental (Fundef), com a focalização de

prioridades no ensino fundamental ocasionaram impactos no padrão

de oferta e atendimento das demais etapas da educação básica.

Para a coleta de dados, recorreu-se a dois procedimentos: análise

documental dos procedimentos extrajudiciais, ações judiciais e outros

documentos elaborados pelas Promotorias de Justiça, com vistas à pro-

teção do direito à educação básica; e entrevista com os Promotores de

Justiça da Infância e Juventude dos municípios selecionados.

A escolha pela análise da atuação da Promotoria de Justiça da Infân-

cia e Juventude considerou que no estado de São Paulo os representantes

do MP, nesta Promotoria de Justiça, devem atuar na proteção integral

dos direitos da criança e do adolescente, incluindo os direitos educa-

cionais, além de serem contemplados nesta faixa etária os alunos que se

enquadram na educação básica.

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ADRIANA A. DRAGONE SILVEIRA

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Do Reconhecimento do Direito à Educação Básica na

Legislação Brasileira aos seus Mecanismos de Proteção

O direito à educação, incluído no rol dos direitos humanos pela De-

claração Universal dos Direitos Humanos de 1948, compreende além da

dimensão individual a social. A educação é imprescindível para o com-

pleto desenvolvimento pessoal, fundamental para o acesso aos demais

bens e serviços disponíveis na sociedade e necessário para o desenvolvi-

mento econômico, político e social de um país.

No Brasil a educação é reconhecida também como um direito fun-

damental, consagrada pelo Estado com regras constitucionais. Como

direito inalienável do cidadão impõe ao Estado o dever de oferecê-la

gratuitamente, para que seja acessível a todos os cidadãos.

Na CF/88 o direito à educação é declarado no conjunto dos direitos

sociais (art. 6o) e como direito de todos e dever do Estado e da família

visa ao “pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício

da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (art. 205). De acordo

com Duarte (2003) o direito à educação é o direito social mais “reforçado

em termos de proteção jurídica” no sistema constitucional brasileiro.

O art. 208 da CF/882 explicita os deveres do Estado para com a edu-

cação, possibilitando a sua eficácia (Motta, 1997), como: ensino fun-

damental obrigatório e gratuito; ensino médio gratuito; atendimento

educacional especializado aos educandos com necessidades especiais,

preferencialmente na rede regular de ensino; atendimento em creche e

pré-escola às crianças de zero a cinco anos; programas suplementares

de material didático escolar, transporte, alimentação e assistência saúde.

O ECA/90 apresenta alguns aspectos do direito à educação que são

complementares a CF/88, é o caso, da possibilidade de discussão pelas fa-

mílias dos critérios de avaliação rendimento escolar adotados pela escola

e acesso à escola pública e gratuita próxima de sua residência, declaração

esta que favorece a possibilidade de exigência do transporte escolar gra-

2. O artigo 208 da CF/88 foi alterado pela Emenda Constitucional (EC) n. 14/1996 e

pela EC n. 53/2006.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

127

tuito na impossibilidade de atendimento do educando na escola próxi-

ma de sua residência (Oliveira, 1995).

No conjunto de inovações da CF/88 está a declaração expressa do

ensino obrigatório como direito público subjetivo, sendo que o “não-

oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta ir-

regular, importa responsabilidade da autoridade competente” (art. 208,

§ 1o e 2o). Esta declaração reforça a importância do direito à educação,

pois o direito público subjetivo constitui-se em instrumento jurídico

de controle da ação estatal, possibilitando ao cidadão, investido de seus

direito, exigir judicialmente do Estado o cumprimento de seus deveres

(Duarte, 2004).

A LDB/96 no que se refere ao direito público subjetivo acrescenta

as partes que poderão acionar o Poder Público para exigi-lo: qualquer

cidadão, grupo de cidadãos, associação comunitária, organização sindi-

cal, entidade de classe ou outra legalmente constituída, e o MP. A mesma

LDB/96 ainda explicita que a negligência da autoridade competente não

oferecendo o ensino obrigatório, ou seja, o ensino fundamental, implica

em crime de responsabilidade.

Assegurar o direito à educação não se encerra em garantir a todos

igualdade de condições de acesso e permanência e à gratuidade do en-

sino público é preciso que o ensino tenha “padrão de qualidade”. O tex-

to constitucional apenas determinou que o ensino deve ter qualidade

como um dos princípios pelos quais o ensino deve ser ministrado (art.

206), mas não definiu clara e objetivamente o que viria a ser “qualidade”

dentro do contexto escolar. A LDB/96 define como padrões mínimos de

qualidade de ensino: “[...] a variedade e quantidade mínimas, por alu-

no, de insumos indispensáveis ao desenvolvimento do processo ensino-

aprendizagem” (art. 4o, inc. IX).

A incorporação do princípio constitucional de qualidade de ensino,

a partir da CF/88 não foi suficiente para que se estabelecesse uma forma

de proteção junto ao Poder Judiciário, sendo necessário à construção

de indicadores de qualidade, passíveis de serem exigidos judicialmente

(Oliveira e Araújo, 2005).

As políticas de democratização do ensino, implementadas nos últi-

mos anos, tiveram como prioridade a expansão do acesso ao ensino fun-

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damental. Com isso, novos desafios surgem como consequências dessas

reformas: o atendimento da demanda crescente nas demais etapas da

educação básica e na educação superior e, principalmente, a necessida-

de de solucionar a exclusão do acesso ao conhecimento, buscando uma

educação com padrões de qualidade (Oliveira, 2007b). Uma questão cla-

ra diante desses desafios é a insuficiência dos investimentos financeiros

em educação para responder às necessidades impostas pela evolução no

quadro de matrículas, que vem crescendo desde a década de 1970 (Pinto,

2000). Esse fato leva a pensar no principal entrave para as políticas edu-

cacionais: a escassez de recursos para as áreas sociais.

A CF/88 trouxe importantes conquistas para o direito à educação,

tendo a sua elaboração acontecida em um período de fim do regime

militar, num processo de redemocratização do país e de participação da

sociedade civil em seus novos rumos sociais e políticos. Dessa forma,

ela é considerada como uma tentativa de construção de um Estado de

bem-estar social no Brasil ao reconhecer para seu povo amplos direitos

sociais. Entretanto, o direito à educação, assim como as demais políticas

sociais, sofrem interferência de orientações econômicas para a redução

dos gastos sociais, com finalidades de garantir as metas de estabilidade

monetária, o controle da inflação e o equilíbrio fiscal, de maneira a gerar

sistemas de ensino mais eficientes com menores gastos.

Essa mudança na concepção do Estado, na oferta e manutenção das

políticas sociais, remete às lições de Bobbio (2004), destacando que o

momento atual não seria de buscar fundamentos para os direitos do

homem, mas de colocar as condições para a realização dos direitos pro-

clamados, principalmente com os direitos sociais. Assim sendo, o im-

portante é saber como garantir esses direitos que, apesar de serem reco-

nhecidos em declarações, são constantemente violados.

O direito à educação, já garantido na legislação, pode ter sua prote-

ção favorecida pela atuação do MP, que com a CF/88 e o ECA/90, vai além

das tradicionais funções criminais, assume a função zelar pelos direitos

e garantias legais. Desta forma pode constituir-se em mais um aliado à

educação, impetrando ações na Justiça, assim como atuando extrajudi-

cialmente, cobrando junto aos órgãos públicos o direito à educação de

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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todos os cidadãos brasileiros, não apenas o seu ingresso e permanência

na escola, mas o direito a um ensino de qualidade.

No caso da educação, a requisição judicial deste direito pode ser

realizada por meio de instrumentos processuais como o Mandado de

Segurança, o Mandado de Injunção e a Ação Civil Pública.

Na atuação extrajudicial, o MP pode firmar Compromisso de Ajus-

tamento de Conduta com o infrator (ECA, art. 211), o que possibilita,

sem ter que recorrer ao Poder Judiciário, a definição de prazos e condi-

ções para a concretização dos direitos pelo infrator.

Para instruir os procedimentos administrativos, o membro do MP

pode expedir notificações para colher depoimentos ou esclarecimentos,

assim como exigir informações, exames, perícias e documentos de au-

toridades municipais, estaduais e federais, da administração direta ou

indireta. Cabe-lhe, também, promover inspeções a instituições particu-

lares e instituições privadas e ainda requisitar informações e documen-

tos a particulares e instituições privadas.

Caracterização das Promotorias de Justiça da Infância e

Juventude de Rio Claro e Ribeirão Preto

Para empreender as possibilidades e limites do Ministério Público

para a proteção do direito à educação básica, buscou-se analisar a atua-

ção de duas Promotorias da Infância e Juventude do Estado de São Pau-

lo. Apresenta-se a seguir uma breve caracterização dos dois municípios

e as características das duas promotorias de justiça, que embora estejam

na mesma classificação para promoção no MP, apresentam estruturas

física e pessoal muito diferenciadas. Cabe ainda destacar que o estudo

não objetivou comparações, considerando que cada promotor de justiça

tem independência no exercício de suas funções, estando sua atuação

também vinculada ao contexto social de cada município.

Rio Claro

O município de Rio Claro está localizado a leste do Estado de São Pau-

lo e distante da capital 157 km. Em 2005, a estimativa de seus habitantes

chegava a 185.131, considerado um município de médio porte no Estado.

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Em 2004 atuavam na Comarca de Rio Claro sete promotores de

justiça. Quatro deles desenvolviam suas atividades junto às duas Varas

Criminais e os demais nas três Varas Cíveis. As atividades da promotoria

da Infância e Juventude eram exercidas por dois promotores de justiça:

o 5o e o 7o promotor de justiça.

O MP ocupava as dependências de um prédio, junto com o Poder

Judiciário. Não havia um espaço único ao MP, as salas dos promotores

de justiça eram distribuídas pelo fórum. O espaço era pequeno e havia

promotores de justiça que não possuíam sala confortável, dificultando,

principalmente, o atendimento de um número maior de pessoas.

O 5o promotor de justiça ingressou no MP em 1988 e trabalhava em

Rio Claro desde 1992. Nas promotorias especializadas, atuava na área da

Infância e Juventude, Habitação e Urbanismo e Acidentes de Trabalho.

Com a vinda do 7o promotor de justiça para a Comarca de Rio Cla-

ro, no segundo semestre de 1999, as funções na Promotoria da Infância

e Juventude foram divididas. O 5o promotor de justiça passou a atuar

somente em casos envolvendo menores infratores, ficando a cargo do

novo promotor os demais casos. O 7o promotor de justiça desempenha-

va, além da Infância e Juventude, funções na Promotoria da Cidadania

e na área Criminal. Cada promotor de justiça era auxiliado por um ofi-

cial de promotoria e por um estagiário. Os dois promotores indicaram a

necessidade de equipar as promotorias com profissionais para o melhor

andamento dos processos.

As prioridades de atuação eram definidas em uma das reuniões

mensais. As prioridades definidas por esse 5o promotor nos últimos anos

foram a construção da unidade da Fundação Estadual do Bem-estar do

Menor (Febem) e a garantia do acesso da criança e do adolescente à

escola. Para o 7o promotor, constou como prioridade a verificação das

crianças em situação irregular, as que ficam esmolando nas ruas e, junta-

mente, procurar conhecer melhor o problema da evasão escolar.

Ribeirão Preto

Considerado um município de grande porte no Estado, Ribeirão

Preto localiza-se na região nordeste do Estado de São Paulo, a 313 km da

capital. A população estimada, em 2005, foi de 543.885 habitantes.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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O MP em Ribeirão Preto, diferentemente de Rio Claro, possuía uma

estrutura, tanto física como de pessoal, mais ampla e específica o que

possibilita, sem o objetivo de estabelecer comparações, depreender ou-

tras possibilidades de ações dos membros do MP para a proteção do di-

reito à educação básica.

O MP em Ribeirão Preto, funcionado em prédio próprio, estava

organizado em duas promotorias, uma de Justiça Criminal e uma de

Justiça Civil. Integravam a área civil oito promotores de justiça. Na área

da Infância e Juventude também havia mais um promotor que atuava

somente nos atos infracionais e outros seis promotores que dividiam os

processos versando sobre guarda, tutela e adoção.

O promotor da justiça da Infância e Juventude, com a atuação ana-

lisada neste trabalho, ingressou no MP em 1984. Trabalhava no muni-

cípio de Ribeirão Preto desde 1994. Nas Comarcas em que trabalhou,

sempre atuou na área da Infância e Juventude, entretanto, o fazia de

maneira mais especializada nos últimos anos. Além dessa área, atuava

como responsável pela Promotoria de Justiça do Meio Ambiente e de

Conflitos Fundiários.

Na Promotoria da Infância e Juventude, a sua atuação estava dire-

cionada para a área de direitos difusos e coletivos, que seria o contro-

le das políticas públicas e o cumprimento dos direitos fundamentais,

fazendo, também, o acompanhamento de medidas sócio-educativas de

internação de uma das unidades da Febem. A equipe de apoio era com-

posta por dois oficiais de promotoria, um assistente técnico e vários es-

tagiários.

Para definir o Programa de Atuação Local e as prioridades, a Pro-

motoria da Infância e Juventude de Ribeirão Preto realizava, anualmen-

te, audiências públicas, com a participação da sociedade civil. Entre as

indicações aprovadas na audiência pública de 2004, para integrar as

prioridades do Programa de Atuação Local, a educação apareceu como

primeira, com a adoção das medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis

para assegurar: o atendimento da educação infantil; o direito da criança

e do adolescente de estudar na escola mais próxima de sua residência,

com especial atenção no que tange à descentralização das escolas de en-

sino médio; o direito à educação do egresso da Febem; a gestão demo-

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crática do ensino, por meio da instalação e do adequado funcionamento

dos Conselhos Escolares; medidas para garantir a educação ambiental

nas escolas públicas; e a promoção de seminário sobre gestão democrá-

tica do ensino.

Do trabalho do MP em Ribeirão Preto destaca-se também a ex-

periência da “Promotoria de Justiça da Comunidade”, desde 2003. Esse

trabalho era realizado pelo promotor de justiça da Infância e Juventude

e pelo promotor de justiça da Habitação e Urbanismo. Os promotores

de justiça, os oficiais de promotoria e um procurador do Estado, neste

trabalho deslocam-se até uma região carente da cidade para fazer o aten-

dimento à população.

Medidas Adotadas pelas Promotorias de Justiça para a

Proteção do Direito à Educação

A atuação da Promotoria da Infância e Juventude de Rio Claro, no

período definido para a pesquisa, envolveu oito ações, sendo sete judi-

ciais e um procedimento extrajudicial, além das medidas administrati-

vas de cunho mais informal, por meio de ofícios ou de telefonemas para

a requisição de vagas, por escolas próximas das residências dos educan-

dos e a atuação com relação à evasão escolar.

Os processos judiciais constituem-se de uma Ação Civil Pública e

de seis mandados de segurança, ambos demandando acesso à educa-

ção. A primeira ação solicitava do município o oferecimento de vagas

de ensino fundamental, complementares àquelas oferecidas pela rede

estadual, processo que enfatizou a divisão de competências para o aten-

dimento nessa etapa da educação básica entre o município e o Estado,

tendo como “pano de fundo” a discussão da municipalização do ensino

fundamental. O mandado de segurança requisitava matrícula em esco-

la próxima da residência, sendo que, no total, foram instaurados seis

mandados requisitando o mesmo direito. O procedimento extrajudicial

envolveu a discussão por acesso à educação infantil em creches e pré-

escolas, próximas da residência, para aquelas crianças que não haviam

conseguido vagas na rede municipal pública.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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Das atuações dos promotores de justiça da Infância e Juventude de

Rio Claro para a efetivação do direito à educação, nota-se que todas es-

tão vinculadas às demandas por acesso à educação. Todavia o 5o promo-

tor de justiça declarou que, apesar de não haver reclamações, percebia

a falta de qualidade do ensino nas escolas por meio do contato com os

menores infratores, quando esses apenas “desenhavam os nomes”, mes-

mo estando na sexta série, por exemplo. O promotor de justiça reconhe-

ceu a dificuldade que o MP tem para atuar na garantia de um ensino de

qualidade; todavia, apontou para a possibilidade de trabalho coletivo

dessa instituição com professores e pais.

Devido ao excesso de atividades, incluindo audiências, processos,

atendimento ao público e atuação em diversas áreas, os promotores de

justiça de Rio Claro declararam que, às vezes, se torna difícil a participa-

ção em eventos, fazer visitas e realizar audiências públicas.

Quanto à análise sobre a atuação do MP para a garantia do direito à

educação, o 5o promotor de justiça de Rio Claro, considera que a insti-

tuição cumpriu a sua parte, “porque cumpriu a função de modificador

da realidade social, ao menos a vaga está sendo garantida, sendo agora

preciso trabalhar a questão da qualidade”. Para o 7o promotor, seria im-

portante que a população tivesse consciência dos limites do MP e, prin-

cipalmente, do que sejam os direitos coletivos, pois não é em todos os

casos que cabe atuação do MP, sendo importante divulgar “quais são as

funções e de que maneira essas funções podem ser exercidas”.

Da atuação do MP em Rio Claro para a garantia do direito à edu-

cação evidenciam-se as características estruturais da instituição no mu-

nicípio e a atuação dos promotores de justiça em diversas áreas como

condições potencializadoras que dificultam uma intervenção mais espe-

cializada na Infância e Juventude, principalmente na garantia dos inte-

resses difusos e coletivos.

Em Ribeirão Preto, a atuação da Promotoria de Justiça da Infância

e Juventude para a garantia do direito à educação envolveu diferentes

solicitações, totalizando 53 documentos analisados, desde a requisição

do acesso e permanência à educação infantil, ao ensino fundamental e

médio, às escolas próximas da residência; questionamentos sobre a qua-

lidade da educação; incentivos à gestão democrática do ensino público;

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e diversos outros assuntos, como controle da evasão e financiamento da

educação.

Dos processos judiciais e procedimentos extrajudiciais instaurados

pela Promotoria da Infância e Juventude envolvendo o direito à educa-

ção, 32 podem ser considerados como requisitando o direito ao acesso

e à permanência em escolas da educação básica. Essas ações envolveram

solicitações por vagas em escolas próximas à residência, abertura de no-

vas vagas, matrículas em creches e pré-escolas e outras que discutiam as

medidas adotadas pelas escolas para o impedimento da permanência do

aluno, como expulsão de alunos, cobrança de taxas e uniformes.

Além dos procedimentos extrajudiciais e ações civis públicas in-

gressadas judicialmente, exigindo o direito ao acesso à educação e per-

manência na trajetória escolar, outras ações questionaram como estava

sendo ofertado o ensino. Ao todo, dezesseis processos discutiram pro-

blemas que se associam à qualidade da educação, com discussões sobre

condições dos equipamentos escolares; falta de professores e funcioná-

rios para o adequado funcionamento da escola e questões pedagógicas

envolvendo currículo e atendimento pedagógico.

A adoção de medidas judiciais e extrajudiciais para assegurar o

princípio constitucional da gestão democrática do ensino constava do

Programa de Atuação Local, assim como do Plano de Atuação do MP do

Estado de SP, na área da Infância e Juventude. Segundo o promotor de

justiça, a melhoria da qualidade da escola pública, com o atendimento

dos interesses da população, seria possível com a concretização da gestão

democrática, com a efetiva participação de todos os segmentos interes-

sados. Para estimular o princípio da gestão democrática, a promotoria

de justiça incentivou a formação dos grêmios estudantis e estava desen-

volvendo ações para o efetivo funcionamento dos conselhos de escolas,

principalmente criando Conselhos Regionais de Conselho de Escola.

Da análise da ação da Promotoria da Infância e Juventude de Ribei-

rão Preto, destaca-se como característica principal da atuação o campo

extrajudicial, pois, de todos os documentos analisados, apenas 9% das

discussões foram para a decisão judicial. Para o promotor de justiça, a

ação judicial deve ser “excepcional”, devendo buscá-lo somente quando

não é possível uma solução no âmbito extrajudicial.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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A estrutura da Promotoria da Infância e Juventude, da forma como

está composta em Ribeirão Preto, gera um diferencial na atuação en-

volvendo as demandas educacionais. O trabalho do assistente técnico é

fundamental e tem colaborado muito, segundo o promotor de justiça.

O promotor de justiça destacou que a educação já estava com uma

prioridade no plano de atuação no Estado de São Paulo, mas que para se

tornar realidade, era necessário instrumentalizar os promotores de jus-

tiça da Infância e Juventude com capacitação técnica e suporte material

para que eles pudessem, de fato, cumprir suas atribuições, além de “mo-

bilizá-los no sentido de abraçar essa prioridade”. Também enfatizou a

necessidade de outra forma de cobrança do trabalho do promotor. Para

ele, a corregedoria, além de conferir o cumprimento dos prazos, deveria

verificar se os promotores estão cumprindo a estratégia institucional.

Acredita-se que essa aproximação do MP em Ribeirão Preto junto à

sociedade, aliada às condições educacionais do município, evidenciada

na caracterização do atendimento à educação básica, é impulsionadora

para as diferentes e expressivas ações da Promotoria da Infância e Juven-

tude para a proteção do direito à educação básica.

Algumas Considerações a Respeito da Proteção dos Direitos

Educacionais por meio da Atuação do Ministério Público

A proteção do direito à educação pelo MP, nos municípios analisa-

dos, ensejou número reduzido de solicitações para o acesso ao ensino

fundamental. Estas ações foram rapidamente solucionadas, tendo em

vista a expressa declaração desta etapa da educação básica como direito

público subjetivo (CF/88, art. 208).

O direito à educação não está garantido somente pela oferta de va-

gas, mas é necessário que o aluno estude em escola próxima à residência,

como garante o ECA (art. 53, inc. V), para que ele possa ter mais con-

dições de frequentar as aulas e permanecer na escola. Esse assunto foi

requisitado nas duas Promotorias de Justiça. Em Rio Claro, o direito foi

assegurado por meio de mandados de segurança. No entanto, em Ribei-

rão Preto, a atuação do promotor de justiça deu-se extrajudicialmente,

no diálogo com as escolas, com a Secretaria Municipal de Educação e

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Diretoria Regional de Ensino, processo este nem sempre favorável às ne-

cessidades das crianças e adolescentes. A dificuldade de concretização

deste direito revela o número excessivo de alunos nas salas de aulas e a

falta de planejamento e construção de escolas, agravado em parte, neste

município, pelo Programa de Reorganização das Escolas da Rede Públi-

ca Estadual, que ocasionou a divisão da oferta do ensino fundamental

em escolas diferentes. As constantes queixas por vagas próximas as resi-

dências dos alunos conduziram o promotor de justiça de Ribeirão Preto

a discutir a construção e/ou ampliação de equipamentos escolares, espe-

cialmente nas regiões periféricas, com grande demanda de vagas.

Ainda com relação ao acesso à educação básica, a requisição à creche

e pré-escola foi abordada nas duas promotorias, evidenciando a neces-

sidade de ampliação de vagas. A declaração da educação infantil como

um dever do Estado pela primeira vez na CF/88 se dá em um contexto de

importantes discussões teóricas sobre o papel da educação infantil e de

organização da sociedade civil, principalmente de movimentos mulhe-

res trabalhadoras, em favor do atendimento às crianças pequenas antes

da etapa escolar obrigatória (Corrêa, 2007). Contudo, esse processo se

dá em um momento de priorização dos recursos ao ensino fundamental

com a EC-14/96 e criação do Fundef (Pinto, 2000).

A requisição pela ampliação do atendimento da educação infantil,

tanto em Ribeirão Preto pela via judicial, como em Rio Claro pelo en-

tendimento dos promotores de justiça na representação encaminhada

por alguns cidadãos, evidenciou a posição de não-obrigatoriedade do

atendimento à educação infantil, constituindo-se de norma programá-

tica, que deveria ser atendida na medida do possível pelo poder público

municipal, de acordo com as suas possibilidades. Em processo judicial

semelhante, que também requisitava o direito a matrícula de criança em

creche, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou em 2005 um recur-

so extraordinário interposto pelo MP de São Paulo, pois o Tribunal de

Justiça de São Paulo considerou a oferta da educação infantil como um

ato discricionário da administração pública. No entanto, o relator do

Recurso, Celso de Mello, considerou que a educação infantil “por qua-

lificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em

seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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da administração pública, nem se subordina a razões de puro pragma-

tismo governamental” (STF, Recurso Extraordinário n. 410715/SP). Esta

decisão corrobora para a efetivação do direito à educação infantil para

todas as famílias que assim o desejarem.

A efetivação do direito à educação infantil estava sendo realizada,

ainda que de maneira mais lenta que a desejada, principalmente em Ri-

beirão Preto, por meio da atuação extrajudicial do MP, com pressões

junto ao poder público municipal, requisitando o direito indisponível

de acesso à creche e à pré-escola individualmente, nomeando as crian-

ças que seus pais ou responsáveis requisitavam a vaga. Entretanto, as

inúmeras requisições individuais ocupam tempo maior de trabalho dos

promotores de justiça, o que pode inviabilizar uma atuação em outras

áreas e na busca pela realização de políticas públicas pelo município que

contemplem um número maior de crianças.

Entre as argumentações para a negativa do direito à educação infan-

til alguns processos evidenciaram debates sobre a prioridade do ensino

fundamental em relação ao atendimento pelo município das crianças de

zero a seis anos. De acordo, com Sena (2004), na definição de respon-

sabilidades entre os entes da administração pública, a CF/88 determina

como abrangência prioritária de atuação dos municípios o ensino fun-

damental e a educação infantil, não hierarquizando prioridades para o

atendimento.

Ainda versando sobre o acesso à educação básica, o direito ao ensi-

no médio foi requerido em Ribeirão Preto, mas ainda de maneira mais

tímida do que à educação infantil. Esses processos versaram sobre a

ampliação do atendimento ao ensino médio em algumas localidades,

evidenciando a necessidade de construção de equipamentos escolares,

pois muitos alunos obtinham a vaga em escolas muito distante de sua

residência, o que dificulta a sua permanência.

Sobre a qualidade do ensino e a atuação do MP para a sua proteção

o estudo das promotorias de justiça evidencia a dificuldade para a exi-

gibilidade do cumprimento deste direito. No que se refere às condições

da estrutura do prédio escolar a ação do MP foi mais efetiva, no entanto,

os processos que questionavam a falta de professores e funcionários nas

unidades escolares, principalmente na rede estadual de ensino, e a or-

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ganização do currículo e atendimento pedagógico oferecido aos alunos

não foram solucionados prontamente, tendo o promotor de justiça de

Ribeirão Preto, uma atuação mais extrajudicial, discutindo com dife-

rentes segmentos, principalmente por meio do Conselho Regional de

Conselho de Escola, as soluções para estes problemas, acreditando na

melhoria da escola pública por meio da gestão democrática.

A estratégia de atuação mais extrajudicial do MP no que diz respeito

à qualidade de ensino evidencia, como afirma Oliveira (2007a), o desa-

fio de pesquisa para “identificar em que consiste a qualidade a que todos

têm direito, de forma a que seja possível exigi-la na justiça, como se faz

com a vaga” (p. 39).

Da análise da atuação das duas promotorias pesquisadas é possível

constatar que a prática mais constante de diálogo com comunidade, as-

sim como outras características estão mais relacionadas ao perfil de cada

promotor de justiça. Desta forma é preciso considerar alguns princípios

constitucionais que regem a instituição.

O MP está estabelecido em três princípios: unidade, indivisibilida-

de e independência (CF/88, art. 127 § 1o), sendo, então, como afirma

Paula (2000), uma instituição “[...] cujas funções são únicas e exercidas

por representantes que atuam em nome do Ministério Público, gozando

seus membros de plena liberdade no que tange à formação de convicção

jurídica e de ampla autonomia de atuação nos casos que lhe são afetos”

(2000, p. 194).

Segundo Kerche (2002), a estrutura do MP é diferenciada de ou-

tras agências estatais, pois com uma “estrutura monocrática”, o “pro-

curador-geral não pode exigir que um determinado promotor, em suas

atividades-fim, deva agir desse ou daquele modo e não está autoriza-

do, por exemplo, a trocar um membro do Ministério Público no meio

de um caso” (pp. 95-96). Essa garantia pode dificultar o trabalho, mas

constitui-se uma segurança para a sociedade, pois um membro do MP

não pode ser substituído para atender a pressões internas e externas à

instituição. No entanto, essa garantia impossibilita, ainda segundo Ker-

che (2002) Martinez Júnior (2006) e Silva (2001), a criação de políticas

institucionais.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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Destaca-se como uma possibilidade para potencializar a atuação do

MP, além de minimizar a vinculação da atuação ao perfil do promotor,

a participação mais ativa da sociedade civil organizada, instruindo o MP

com suas reais demandas, por meio de representações, estimulando a

realização de audiências públicas. Essas ações em conjunto também po-

tencializam o poder de pressão do MP junto aos órgãos públicos.

Ao afirmar que a demanda da sociedade civil torna a atuação do MP

mais efetiva e frequente, cabe ressaltar que conselheiros (Conselho Tute-

lar, Conselho dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes, da Educação,

de Acompanhamento e Controle Social do Fundeb) e os representantes

das Associações Comunitárias, de bairros e/ou de moradores necessitam

entender quais são as funções da instituição e as suas possibilidades de

atuação, pois os promotores de justiça são requisitados com frequência a

solucionar problemas que seriam destinados à Defensoria Pública.

Da análise da atuação das duas Promotorias de Justiça destacam-se

ainda a diferenciação de estrutura física e da equipe de apoio, caracte-

rísticas essas que podem influenciar em uma atuação mais ampla e ativa

dos membros do MP para a proteção dos direitos sociais, incluindo o

direito à educação. Na Promotoria de Justiça de Rio Claro os promoto-

res atuavam em um número maior de áreas do que em Ribeirão Preto,

além de não contar com a presença de um profissional mais especializa-

do, como o assistente técnico em Ribeirão Preto, que possibilitava uma

orientação mais especializada na área, auxiliando o desenvolvimento de

diferentes trabalhos.

O MP, como instituição independente dos demais poderes do Esta-

do, no exercício de suas funções determinadas pela própria Constituição

e leis infraconstitucionais, pode-se constituir em mais um aliado da so-

ciedade civil na busca da concretização da educação para todos os cida-

dãos brasileiros, cobrando do Estado o cumprimento de seus deveres.

Entretanto, como também destaca o trabalho de Souza Júnior (2006) a

instituição apresenta limitações de ordem histórica, material, cultural. É

preciso, também de acordo com Castilho (2006), que a instituição assu-

ma a educação como uma de suas prioridades de atuação, com a criação

de promotorias especializadas, centros de apoio operacional, que seus

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ADRIANA A. DRAGONE SILVEIRA

140

membros participem nos conselhos e fóruns em prol da devida efetiva-

ção dos direitos educacionais.

E ainda, como evidencia Martinez Júnior (2006) é preciso que a

atuação do MP seja mais abrangente, cobrando o cumprimento do direi-

to fundamental à educação junto ao Poder Público, família e sociedade,

não devendo se limitar à requisição de vagas, e a posteriori, mas partici-

pando ativamente na formulação e fiscalização da implementação das

políticas públicas para a educação.

Neste artigo buscou-se apresentar, a partir do estudo de caso de

duas Promotorias de Justiça, as possibilidades e os limites do MP para a

efetivação do direito à educação. Como visto pelos dados educacionais

brasileiros, a declaração do direito na legislação não se faz suficiente é

preciso que a sociedade se organize para fazer os valer. Nesse contexto, o

MP é uma instituição, dentre as demais existentes em nossa sociedade,

que pode contribuir para defender, frente ao Estado, violações dos direi-

tos consagrados na legislação.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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III

O DIREITO À QUALIDADE NA EDUCAÇÃO

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145

Introdução

Ensaia-se, com olhar de simplicidade, uma visão do direito à edu-

cação de qualidade sob a luz da teoria neoconstitucioalista. Necessário

reconhecer-se simples, posto que o próprio pressuposto teórico com que

se pretende trabalhar, o neoconstitucionalismo, merece reflexões muito

mais elaboradas do que as breves considerações feitas aqui. Da mesma

forma, dar conteúdo jurídico, portanto exigível, à expressão direito à

educação de qualidade, constitui tarefa impossível de ser realizada em

algumas poucas páginas.

Inicia-se, assim, com uma despretensiosa exposição do que se en-

tende por esse novo modelo jurídico, para que com suas cores, sequen-

cialmente, analise-se o direito à qualidade na educação. Por fim, serão

visitadas algumas perplexidades que o cotidiano tem apresentado a essa

combinação.

Desenvolvimento de um Novo Pressuposto Jurídico

Com intuito ilustrativo, uma análise da jurisprudência do Supremo

Tribunal Federal permite fundamentar as premissas com que aqui se

Direito à Educação de Qualidade na Perspectiva Neoconstitucionalista

Erik Saddi Arnesen

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ERIK SADDI ARNESEN

146

pretende trabalhar, ou seja, buscam demonstrar a existência no ordena-

mento e na prática jurídica brasileira de pressupostos suficientes para

se tomar o direito constitucional à educação de qualidade como direito

subjetivo plenamente exigível judicialmente e diretamente acessível pelo

particular, seu titular. Nesse sentido, foram selecionadas as seguintes de-

cisões (Tabela 1):

Tabela 1. Decisões do STF concernentes ao direito à educação

Tipo Número Relator Demandante DemandadoData de

Julgamento

Data de

Publicação

Agravo Re-

gimental em

Recurso Extra-

ordinário

241.757-2Maurício

Corrêa

Associação dos

Deficientes

Auditivos do

Maranhão

Município

de São Luís

(MA)

29.06.1999 20.04.2001

Decisão

Monocrática

em Agravo de

Instrumento

455.802Marco

Aurélio

Ministério Pú-

blico do Estado

de São Paulo

Município de

Santo André

(SP)

07.02.2004 05.03.2004

Decisão

Monocrática

em Agravo de

Instrumento

411.518Marco

Aurélio

Ministério Pú-

blico do Estado

de São Paulo

Município de

Santo André

(SP)

03.03.2004 26.03.2004

Decisão

Monocrática

em Agravo de

Instrumento

475.571-8Marco

Aurélio

Ministério Pú-

blico do Estado

de São Paulo

Município de

Santo André

(SP)

03.03.2004 31.03.2004

Decisão

Monocrática

em Agravo de

Instrumento

474.444Marco

Aurélio

Thiago Inácio

Calado represen-

tado po Enedina

da Silva Calado

Município de

Santo André

(SP)

05.03.2004 31.03.2004

Decisão

Monocrática

em Recurso

Extraordinário

401.673Marco

Aurélio

Ministério pú-

blico do Estado

de São Paulo

Município de

Santo André

(SP)

26.03.2004 19.04.2004

Decisão

Monocrática

em Recurso

Extraordinário

401.880 Eros Grau

Ministério Pú-

blico do Estado

de São Paulo

Município

de São Paulo

(SP)

27.08.2004 28.09.2004

Decisão

Monocrática

em Recurso

Extraordinário

431.773Marco

Aurélio

Ministério Pú-

blico do Estado

de São Paulo

Município de

Santo André

(SP)

15.09.2004 22.10.2004

Decisão

Monocrática

em Recurso

Extraordinário

402.024Carlos

Velloso

Ministério Pú-

blico do Estado

de São Paulo’

Município de

Santo André

(SP)

05.10.2004 27.10.2004

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

147

(cont.) Tipo Número Relator Demandante DemandadoData de

Julgamento

Data de

Publicação

Decisão

Monocrática

em Agravo de

Instrumento

509.347Sepúlveda

Pertence

Ministério Pú-

blico do Estado

de São Paulo

Município de

São Bernardo

do Campo

(SP)

16.12.2004 09.02.2005

Decisão

Monocrática

em Recurso

Extraordinário

410.715Celso de

Mello

Ministério Pú-

blico do Estado

de São Paulo

Município do

Santo André

(SP)

27.10.2005 08.11.2005

Agravo Re-

gimental em

Recurso Extra-

ordinário

410.715-5Celso de

Mello

Ministério Pú-

blico do Estado

de São Paulo

Município de

Santo André

(SP)

22.11.2005

Votação

Unânime

03.02.2006

Decisão

Monocrática

em Recurso

Extraordinário

436.996Celso de

Mello

Ministério Pú-

blico do Estado

de São Paulo

Município de

Santo André

(SP)

26.10.2005 07.11.2005

Decisão

Monocrática

em Recurso

Extraordinário

438.493Joaquim

Barbosa

Ministério Pú-

blico do Estado

de São Paulo

Município de

Santo André

(SP)

20.11.2005 12.12.2005

Decisão mo-

nocrática em

Recurso

463.210Carlos

Velloso

Ministério Pú-

blico de Estado

de São Paulo

Município de

Santo André

(SP)

07.11.2005 17.11.2005

Agravo Re-

gimental em

Recurso Extra-

ordinário

463.210-1Carlos

Velloso

Ministério Pú-

blico do Estado

de São Paulo

Município de

Santo André

(SP)

06.12.2005

Votação

Unânime

03.02.2006

Decisão

Monocrática

em Recurso

Extraordinário

467.255Celso de

Mello

Ministério Pú-

blico do Estado

de São Paulo

Município

de São Paulo

(SP)

22.02.2006 14.03.2006

Decisão

Monocrática

em Recurso

Extraordinário

472.707Celso de

Mello

Ministério Pú-

blico do Estado

de São Paulo

Município

de São Paulo

(SP)

14.03.2006 04.04.2006

Decisão

Monocrática

em Recurso

Extraordinário

293.412 Eros Grau

Ministério Pú-

blico do Estado

de São Paulo

Estado de

São Paulo e

Município

de Presidente

Venceslau

15.04.2006 29.05.2006

Agravo Re-

gimental em

Recurso Extra-

ordinário

384.201Marco

Aurélio

Ministério Pú-

blico do Estado

de São Paulo

Município de

Santo André

(SP)

26.04.2007 03.08.2007

Decisão

Monocrática

em Agravo de

Instrumento

564.035Carmen

Lúcia

Ministério Pú-

blico do Estado

de São Paulo

Município

de São Paulo

(SP)

30.04.2007 15.05.2007

Fonte: elaboração própria.

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ERIK SADDI ARNESEN

148

Ressalte-se que a seleção de tais decisões é meramente exemplifica-

tiva, objetivando tão somente a conclusão acerca da natureza das nor-

mas relacionadas ao direito à educação e, eventualmente, também em

relação às demais normas de direito educacional.

Com o objetivo de se demonstrar esse ponto de vista, pode-se ini-

ciar pela apresentação da mais antiga dentre as decisões selecionadas: a

contida no acórdão ao Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n.

241.757-2. O Recurso Extraordinário n. 241.757 teve negado seu segui-

mento por decisão monocrática do ministro Mauricio Corrêa, à qual foi

interposto Agravo Regimental do qual foi relator. Votaram pela negativa

de provimento, além deste, os ministros Néri da Silveira e Nelson Jobim,

restando vencido o ministro Marco Aurélio.

Naquele momento, logrou vitória o entendimento segundo o qual

não cabia ao Poder Judiciário intervir diretamente para fazer efetivar o

direito à educação de portadores de deficiência. As palavras do ministro

Néri da Silveira expressa o posicionamento dos demais:

Não há dúvida nenhuma de que essas disposições postas na Constituição (re-lacionadas ao direito à educação) têm um sentido social de extraordinária abran-gência. O constituinte inseriu-as num avanço significativo neste plano. Mas, pare-ce-me que o mandado de segurança não é, de fato, a via adequada para a fruição desses direitos contemplados no texto constitucional. Não tenho essas normas, desde logo, como autoaplicáveis. Penso que elas possuem um conteúdo predominantemente programático e dependeriam de procedimentos de integração (STF, RE-AgR 241757, relator ministro Maurício Corrêa, DJ 24.04.2001 (grifo nosso).

O voto vencido do ministro Marco Aurélio, entretanto, impressiona

pelo arrojo e reflete o que parece ser a posição atual do Supremo Tribu-

nal Federal. Mencionou o artigo 208, inc. III, da Constituição Federal,

que determina ser dever do Estado o “atendimento educacional espe-

cializado aos portadores de deficiência”, para afirmar que: “Esse preceito

tornou-se, desde logo, com a promulgação da Carta, auto-aplicável, e,

portanto, veio à baila com força suficiente a compelir a pessoa jurídica

de direito público a viabilizar o acolhimento desses deficientes na rede

pública” (STF, RE-AgR 241757, relator ministro Maurício Corrêa, DJ

24.04.2001).

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

149

Sobre os direitos relacionados à educação elencados na Constitui-

ção, acrescentou: “Penso que as normas constitucionais são auto-aplicá-

veis. Não há em qualquer delas a remessa à lei regulamentadora, a não

ser quanto à definição do que se entenda – isso já temos – como escolas

comunitárias, confessionais ou filantrópicas” (STF, RE-AgR 241757, rela-

tor ministro Maurício Corrêa, DJ 24.04.2001).

Com a mesma intenção de assentar o pressuposto para a compre-

ensão que se pretende quanto à concepção atual do direito fundamen-

tal à educação pelo Supremo Tribunal Federal, é interessante apontar a

alteração no padrão decisório do ministro Eros Grau. No Recurso Ex-

traordinário 401.880, cujo julgamento foi proferido em 27 de setembro

de 2004, figurava como demandante o ministério público do Estado de

São Paulo, que pleiteava em face do município de São Paulo a realiza-

ção de matrículas na rede pública municipal de ensino fundamental. Na

oportunidade, em decisão monocrática, o ministro entendeu pela não

exigibilidade direta das normas constitucionais relacionadas ao direito

social à educação, em especial aquela contida no § 2o do artigo 211, so-

bre a qual afirmou: “O preceito inscrito no artigo 211, § 2o, da Constitui-

ção – ‘Os municípios atuarão prioritariamente no ensino fundamental

e pré-escolar’ – é norma programática que encontra sua concretização

por meio de leis que visem implementar as políticas públicas” (STF, RE

401880, relator ministro Eros Grau, DJ 28.09.2004).

Ocorre que algum tempo depois, em 15 de abril de 2006, por oca-

sião do julgamento do Recurso Extraordinário 293.412, também em

decisão monocrática, o jurista alterou substancialmente sua posição. O

demandante era novamente o Parquet paulista; demandados o Estado de

São Paulo e do município de Presidente Venceslau. O pleito, no entanto,

desta vez ia além da garantia de matrícula. Buscou o ministério público

garantir pela via judicial que estado e município fornecessem transporte

escolar gratuito a alunos domiciliados em assentamentos da municipa-

lidade, como expressão de efetivação do direito à educação. Diante da

decisão proferida, obteve êxito em sua demanda. O ministro Eros Grau,

diferentemente do que havia feito em 2004, entendeu desta vez que: “A

educação é um direito fundamental e indisponível dos indivíduos. É de-

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ERIK SADDI ARNESEN

150

ver do Estado propiciar meios que viabilizem o seu exercício. A omissão

administrativa impede que o Poder Público cumpra integralmente de-

ver a ele imposto pela própria Constituição do Brasil” (STF, RE 293412,

relator ministro Eros Grau, DJ 29.05.2006).

Afirmou ser esse o posicionamento do Supremo Tribunal e, citando

o ministro Celso de Mello, afirmou:

[...] (a) educação infantil, por qualificar como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da administração pública, nem se subordina a razões de puro prag-matismo governamental. [...] Os municípios [...] não poderão demitir-se do man-dado constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo artigo 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa fator de limitação da discricionariedade político-administrativa dos entes municipais [...]. Embora resi-da, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário de-terminar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políti-cas públicas definidas pela própria Constituição, sejam essas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão – por importar em descumprimento dos encargos políticos-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório – mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais impreg-nados de estatura constitucional (STF, RE 293412, relator ministro Eros Grau, DJ 29.05.2006).

É de grande relevância perquirir sobre o que o cerne dessa diferen-

ça entre o entendimento dos ministros Maurico Corrêa, Nelson Jobim

e Néri da Silveira no Agravo Regimental em Recurso Extraordinário

241.757-2 e o apresentado pelo ministro Marco Aurélio em seu voto

vencido, bem como do aparente realinhamento de posicionamento do

ministro Eros Grau entre 2004 e 2006 pode representar à ciência jurídica.

A história constitucional, de modo geral, nos apresenta duas gran-

des tradições constitucionais (Sanchís, 2003). Uma, observada em linhas

gerais na tradição constitucionalista norte-americana, traz a Constitui-

ção como regra do jogo, constituindo um critério mínimo de divisão de

competências sociais e políticas para a produção de regras. É a corren-

te a que adere Kelsen (1984) na definição de sua constituição material,

como “norma positiva ou normas positivas através das quais é regulada

a produção de normas jurídicas gerais”. Entendida dessa forma, a Cons-

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

151

tituição exerce a função de apenas assegurar aos indivíduos autonomia

para que, tanto quando sujeitos privados como quando agentes políti-

cos (Sanchís, 2003, p. 125), possuam ampla segurança e liberdade para,

democrática e igualitariamente, determinarem os rumos tanto de suas

vidas particulares como da comum. O conteúdo constitucional é um

conteúdo de limites e procedimentos dirigidos ao legislador, sem pres-

crever, ou prescrevendo ao mínimo, determinações substanciais.

Desse modelo constitucional sucinto é que se extraem as garantias

constitucionais dos indivíduos e grupos face o poder do Estado assim

como a própria ideia de supremacia da constituição. Se são suas normas

que organizam o poder de legislar, limitando e repartindo as competên-

cias entre os órgãos produtores de normas (entre os quais o legislador

ordinário), a elas é, por lógica, juridicamente superior. O Judiciário, em

especial, assume grande relevância nesse modelo. Porque cumprir-lhe-á

efetivamente assegurar a aplicação das normas constitucionais, garan-

tindo os indivíduos.

A outra tradição verificada na doutrina constitucional é aquela for-

mada por Constituições de forte conteúdo substancial, representando

um guia axiológico bastante detalhado à sociedade, e que historicamen-

te esteve ligada a momentos de transformação social e política (Sanchís,

2003, p. 125). Trata-se do constitucionalismo continental europeu, ori-

ginado nas vontades transformadoras da Revolução Francesa, que ao

longo dos séculos foi muito além dos limites ao poder estatal e consti-

tucionalizou demandas sociais como educação, saúde, direitos do tra-

balhador, meio ambiente etc., pormenorizando juridicamente no texto

constitucional quase todos os espaços da vida do indivíduo.

Todo esse ambicioso programa, contudo, figura separado da socie-

dade pela figura do legislador, responsável por captar a abstrata vontade

geral e traduzi-la institucionalmente. Porque dessa forma inacessíveis, as

normas constitucionais enfraquecem diante do incontrastável legalismo

das maiorias democráticas, incapazes de condicioná-los. As Constitui-

ções desse modelo são carentes de instrumentos aptos a garantir a força

de seu texto porque o poder constituinte pretende perpetuar-se no dire-

cionamento da sociedade através de seu titular, o povo. Contudo, a au-

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ERIK SADDI ARNESEN

152

toridade desse povo se dissolve ao ter de ser expressada pelo legislador,

debilitando-o quando em confronto com os interesses do governo.

No entanto, contemporaneamente entre nós, e já há algumas déca-

das nos sistemas jurídicos europeus ocidentais, o modelo constitucio-

nal vem assumindo nova estrutura, que tem sido tratada, com crescente

frequência, por neoconstitucionalismo. Pode-se entender que a novi-

dade do modelo neoconstitucionalista é reunir elementos dessas duas

tradições constitucionais mencionadas: a concepção lógica de suprema-

cia constitucional e as garantias jurisdicionais para assegurá-la de um

modelo de constituição sintética, concebida como pacto mínimo; e um

forte conteúdo normativo material (substancial), relacionado à concep-

ção de constituição como uma ordenação articulada, que busca regular

os mais diversos aspectos da vida social e política. Em seu bojo temos

“una Constituición transformadora que pretende condicionar de modo

importante las decisiones de la mayoría, pero cuyo protagonismo funda-

mental no corresponde al legislador, sino a los jueces” (Sanchís, 2003, p.

126). São os instrumentos judiciais de garantia, disponíveis à efetivação

de um vasto rol substancial de direitos constitucionais, que alteram es-

sas posições. Importante notar que esses juízes não são somente aqueles

de um Tribunal Constitucional. Serão os juízes das instâncias comuns,

jurisdição de que usufruem todos os cidadãos, aqueles que assegurarão

a aplicação direta das normas constitucionais. Pelo contrário, a própria

existência de um tribunal constitucional é herança da tradição de cons-

tituição como regra de poder.

Porque agora garantidas judicialmente, de programáticas as cons-

tituições substanciais passam a ser normativas. Isso significa que não há

mais o filtro de eficácia representado pelo legislador; suas disposições,

sejam sobre direitos individuais, sejam sobre condições do local de tra-

balho consubstanciam obrigações diretamente acessíveis e exigíveis pelo

particular, de modo independente, em suas relações privadas ou face ao

Estado.

Por tais elementos, diz-se que o neoconstitucionalismo enseja um

novo modelo de estado de direito, talvez mais completo por submeter

também o poder do legislador, através da constituição. A esse novo tipo

de Estado a doutrina chama de Estado Constitucional de Direito.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

153

Se possível conceber a Constituição brasileira de 1988 como ex-

pressão neoconstitucionalista, o enfoque seria o de uma constituição de

amplo conteúdo substancial, razão pela qual condiciona a maior parte

das decisões de modo crucial, totalmente garantida judicialmente. Isso

significa que as normas constitucionais não se dirigem ao legislador. Sua

eficácia não depende de nenhuma vontade intermediária; garantidas na

via judicial, estabelecem direitos e obrigações que são diretamente exi-

gíveis. O impacto dessa concepção sobre o direito à educação e normas

relacionadas é evidente. Relaciona-se a isso a importância de se reconhe-

cer força deôntica imediata, por exemplo, à norma contida no artigo 205

da Constituição Federal.

Esse esforço deve passar por considerações sobre qual a efetiva po-

sição dos direitos fundamentais, e talvez especificamente daqueles rela-

cionados à educação, no Brasil, utilizando-se, por exemplo, os critérios

de regulação com maior hierarquia, maior força jurídica, maior impor-

tância e maior indeterminação (Alexy, 2003, p. 32 e ss).

Quanto ao critério de maior hierarquia, este encontra-se satisfeito

pela simples presença dos direitos fundamentais na Constituição bra-

sileira de 1988. Do mesmo modo a maior força encontra-se garanti-

da posto que condicionam a atuação dos poderes do Estado, existindo

instrumentos jurisdicionais capazes de garantir tal vinculação. Algum

espaço para questionamento, quanto a algumas normas de direitos fun-

damentais do ordenamento pátrio, há em relação aos critérios de maior

importância do objeto e máximo grau de indeterminação. No entanto,

esse não parece ser o caso do direito à educação, nem tampouco do di-

reito à sua qualidade.

Pode-se, também, investigar sobre a constitucionalização do orde-

namento brasileiro. Guastini (2003) apresenta sete condições que per-

mitem identificar se um determinado ordenamento está ou não consti-

tucionalizado (Guastini, 2003, p. 50 e ss.). São elas:

a. Rigidez constitucional: tratar-se de uma constituição escrita e ga-

rantida contra a legislação infraconstitucional por força de sua

hierarquia superior, contando mesmo com um mínimo axioló-

gico inalterável.

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b. Garantia jurisdicional da constituição: possibilidade de controle

de constitucionalidade das normas infraconstitucionais através

do poder judiciário.

c. Força vinculante da constituição: aceitação pela cultura jurídica

do caráter normativo e não meramente programático das dispo-

sições constitucionais.

d. Sobre interpretação da constituição: postura assumida, princi-

palmente pelos membros do Judiciário, de interpretação exten-

siva do texto constitucional de modo que restem poucos espaços

de liberdade ao legislador.

e. Aplicação direta das normas constitucionais: acessibilidade dos

particulares aos direitos constitucionais.

f. Interpretação conforme das leis: prática judicial no sentido de in-

terpretar as leis sempre na direção axiológica indicada pelo texto

constitucional.

g. Influência da constituição sobre as relações políticas.

Importante ter claro que o resultado de tal verificação não será ab-

soluto, podendo ser dividido em graus de constitucionalização. Apenas

as duas primeiras são condições indispensáveis. Contudo, considera-se

evidente que ambas estejam presentes no Brasil. Quanto às demais, de

modo geral, percebe-se que surgem com cada vez maior frequência na

prática jurídica brasileira.

É o que se pode depreender das decisões selecionadas, em especial

se comparadas ao que se decidia em tempos passados, exemplificado pe-

los votos vencedores no Agravo Regimental em Recurso Extraordinário

241.757-2.

O que se pretende nesse tipo de análise é a negação da visão das

normas de direitos fundamentais aos moldes da tradição constituciona-

lista da República de Weimar. Pretende-se a compreensão de um direito

à educação cuja efetivação não conceba as disposições a ele referentes

como declarações programáticas. Pelo contrário, deve-se compreender

que as normas constitucionais sobre o tema educacional são passíveis de

controle e garantia judiciais imediatos, não havendo espaço para argu-

mentos de que sua efetivação depende da conveniência política.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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As decisões selecionadas do Supremo Tribunal Federal permitem

vislumbrar a necessária difusão na cultura jurídica, sobretudo na juris-

prudência, porque pela voz de seu órgão máximo, de uma concepção

vinculante de Constituição, que atribui direitos desde logo exigíveis.

Nesse sentido, confira-se decisão da lavra da ministra Cármen Lú-

cia, proferida no Agravo de Instrumento 564.035/SP:

[...] educação compõe o mínimo existencial, de atendimento estritamente obrigatório pelo poder público, dele não podendo se eximir qualquer das entidades que exercem as funções estatais. O mínimo existencial afirma o conjunto de direitos fundamentais sem os quais a dignidade da pessoa humana é confiscada. E não há de se admitir ser esse princípio mito jurídico ou ilusão da civilização, mas dado consti-tucional de cumprimento incontornável, que encarece o valor de humanidade que todo ser humano ostenta desde o nascimento e que se impõe ao respeito de todos (STF, AI 564035, relator ministra Carmen Lúcia, DJ 15.05.2007).

Na mesma linha, é contundente a decisão do ministro Marco Auré-

lio no Recurso Extraordinário 431773/SP:

[...] consubstância dever do Estado a educação, garantido o atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade. O estado – União, Esta-dos propriamente ditos, ou seja unidades federadas, e municípios – deve aparelhar-se para a observância irrestrita dos ditames constitucionais, não cabendo tergiversar mediante escusas relacionadas com a deficiência de caixa. Eis a enorme carga tribu-tária suportada no Brasil a contraria essa terna lengalenga (STF, RE 431773, relator ministro Marco Aurélio, DJ 22.10.2004).

Mas não apenas no Supremo Tribunal encontra-se a tendência.

Permita-se mencionar dois trechos de decisões do Superior Tribunal de

Justiça sobre o tema educacional. Ao decidir sobre o direito constitucio-

nal à creche, o ministro Luiz Fux, relatando o acórdão, afirma que:

[...] ressoa inconcebível que direitos consagrados em normas menores como circulares, portarias, medidas provisórias, leis ordinárias tenham eficácia e os di-reitos consagrados constitucionalmente, inspirados nos mais altos valores éticos e morais da nação sejam relegados a segundo plano. Prometendo o Estado o direito à creche, cumpre adimpli-lo, porquanto a vontade política e constitucional, para utilizarmos a expressão de Konrad Hesse, foi no sentido da erradicação da miséria

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intelectual que assola o país (STJ, RE 575.280/SP, Rel. p/ acórdão ministro Luiz Fux, Primeira Turma, DJ 25.10.2004).

Relatando outro acórdão, também relacionado à educação infantil,

o mesmo ministro Luiz Fux é ainda mais contundente: “[A] Constitui-

ção não é ornamental, não se resume a um museu de princípios, não é

meramente um ideário, reclama efetividade real de suas normas” (STJ, RE

771.616/RJ, relator ministro Luiz Fux, Primeira Turma, DJ 01.08.2006).

Os trechos selecionados permitem vislumbrar a possibilidade de

um efetivo modelo constitucional substancial garantido. É alto o valor

da concepção de que os direitos fundamentais em geral são a todos ga-

rantidos de maneira incondicionada, independentemente da conjuntu-

ra política, até mesmo contra a vontade da maioria. Isso permitiria, por

exemplo, enxergar como violação do poder público o não cumprimento

das promessas constitucionais que constam, por exemplo, do artigo 205

da Constituição, violação esta passível de controle pelo Judiciário.

Os enunciados do artigo 6o (direito social à educação), do artigo

205, 208 e 211 da Constituição Federal, dentre outros igualmente rela-

cionados ao tema, são normativos e, portanto, trazem consigo conteúdo

deôntico (prescrição). Apesar de aparentemente óbvia, essa constatação

traz grande conforto argumentativo. Admitindo-se que se trate de enun-

ciados normativos de direitos fundamentais, torna-se possível conceber

os direitos fundamentais relacionados à educação, de implementação

ainda tão restrita, como mais que apenas boas ideias para o futuro, fru-

to retórico de um momento pós-autoritário. Permite concebê-los não

como expectativas, mas como exigências reais de prestações fáticas cuja

satisfação não é disponível.

Por sua vez, a referência à vontade da maioria não é singela. Vem

como lembrança da objeção democrática corriqueiramente feita ao ne-

oconstitucionalismo. No entanto, entende-se que o modelo de Estado

Constitucional de Direito, substancial e garantista, introduz uma di-

mensão substancial também na democracia, tornando necessariamente

inerentes a ela os direitos fundamentais (Ferrajoli, 1999, p. 23 e ss.).

Assim, além da democracia formal ou política, fala-se em democra-

cia material ou substancial. Enquanto a primeira relaciona-se ao modo

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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de produção das decisões de Estado, segundo regras formais, a segun-

da refere-se ao que pode ser decidido ou ao que deve ser decidido pela

maioria, à luz dos direitos fundamentais, sob pena de invalidação da

decisão ou da ausência de decisão. A democracia política adquire, assim,

vínculos de substância, que podem ser negativos nos casos de direitos de

liberdade, ou positivos, nos casos de direitos sociais. “Ninguna mayoría,

ni siquiera por unanimidad, pudede legítimamente decidir la violación

de um derecho de libertad o no decidir la satisfacción de um derecho

social” (Ferrajoli, 1999, p. 24).

Importante que se compreenda que o modelo neoconstitucionalis-

ta não descreve mera filosofia de justiça de traços jusnaturalistas. Pelo

contrário, identifica um modelo institucional específico, cuja dinâmica

demanda sua própria estrutura de interpretação. Evidente que depende

também de uma prática social específica. Já se apontaram certas carac-

terísticas do Estado Constitucional de Direito relacionadas a certas pos-

turas sociais face à constituição. No entanto, não parece que apenas tal

praxis pudesse forjar o modelo neoconstitucionalista, sem o auxílio de

instrumentos institucionais como as garantias jurisdicionais de efetiva-

ção de direitos constitucionalmente previstas1.

A origem da transformação do Estado de Direito Legalista ao novo

modelo, quer-se crer, é social. Trata-se de uma mudança de postura face

ao caráter neutro da lei geral e abstrata expressada pelo legislador. So-

bretudo diante do desgaste provocado pelo período que envolve as duas

guerras mundiais, a constitucionalização do direito surge a partir de

uma percepção social de que a compreensão liberal da lei, como expres-

são independente da vontade geral e abstrata da nação, pode constituir

uma perigosa farsa.

Perigo comprovado, entre outros exemplos, pelas experiências to-

talitárias europeias das décadas de 1930 e 1940 do século XX, cuja visão

otimista2 da atuação do poder e da autoridade em benefício da nação

1. Para posição contrária, ver Pozzollo (2006, p. 78).

2. Citando Luigi Ferrajoli, Luis Pietro Sanchís explica que “[t]odos os totalitarismos

comportam uma visão otimista do poder; ‘ao contrário, o pressuposto do garantismo é sem-

pre uma concepção pessimista do poder, seja quem for que o possua, posto que se encontra

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viabilizou que aqueles estados adotassem as soluções institucionais dis-

criminatórias e aviltantes contra apátridas e minorias que a História in-

felizmente a todos fez conhecer. Esse processo, todavia, deixou evidente

a insuficiência da concepção legalista de direito, afastada de qualquer

atribuição de conteúdo moral, e cujo suporte no ordenamento advém

exclusivamente da não negação às normas formais de sua produção.

A crise da legislação ordinária, oriunda da percepção da lei como

ato permeado pelos mais diversos, por vezes nocivos, interesses, alia-

da a tudo o que representaram as duas grandes guerras terminará por

questionar a capacidade do direito “para ordenar adequadamente a vida

social e política e suporá a definitiva superação do estado legislativo de

direito como modelo de ordenação social e a necessidade de reformular

e restaurar a eficácia do direito como limite ao poder”3.

No momento pós-Segunda Guerra Mundial, a demanda presente em

todos os setores sociais é a da atribuição de forte conteúdo axiológico-

social ao ordenamento, que declarasse direitos e garantisse a proteção e o

desenvolvimento dos indivíduos. Esse “novo ethos político que resultava

da superação da concepção liberal da separação da sociedade e estado

traduzia-se, agora, num esforço cada vez mais crescente de instituciona-

lizar um estado que se caracterizasse como social, conformando, portan-

to, desde um novo tipo de relação estabelecida entre Estado, cidadãos e

sociedade, a uma ordem normativa capaz de direcionar a própria ordem

econômica e social em função da promoção da dignidade humana”4.

Conforme aponta Barroso5, essa foi a forma como a constituciona-

lização se deu na Europa. No Brasil, o Estado Constitucional de Direito

exposto, em todo caso, à falta de limites e garantias e a degenerar em despotismo’”. Em Luis

Pietro Sanchís, “Constitucionalismo e Garantismo”, Revista de Direito do Estado, n. 7, Rio de

Janeiro, 2007.

3. Écio Oto Ramos Duarte, Neoconstitucionalismo e Positivismo Jurídico: Uma Intro-

dução ao Neoconstitucionalismo e às Formas Atuais do Positivismo Jurídico. São Paulo, Landy,

2006, p. 19.

4. Écio Oto Ramos Duarte, op. cit., p. 19.

5. Luís Roberto Barroso, Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito: O

Triunfo Tardio do Direito Constitucional no Brasil, p. 4. Disponível em www.georgemlima.xpg.

com.br/barroso.pdf.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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começa a se forjar, eminentemente, no momento da redemocratização

com a Constituição de 1988, possivelmente em função da mesma vonta-

de socialmente compartilhada de que permanecesse a equidade. Nas pa-

lavras do jurista, observou-se nesse período de quase vinte anos o surgi-

mento entre nós de um “sentimento constitucional”, ainda tímido, mas

já suficiente para ser celebrado, porque começa a afastar dos brasileiros

a histórica indiferença face ao texto constitucional.

O Conteúdo do Direito à Qualidade

Todo esse esforço teórico, no entanto, fica sem sentido se não for

possível ao aplicador do direito constitucional (na ótica até aqui traba-

lhada o juiz) definir o conteúdo da prescrição do direito à qualidade da

educação.

A educação constitui um direito subjetivo público. Significa que en-

volve uma relação em que um sujeito determinado possui um interesse

juridicamente protegido. Essa proteção jurídica, por sua vez, organiza-se

por meio da existência oposta de um dever. Segundo Kelsen, “o direito

do credor é protegido pelo dever jurídico do devedor” (1984, p. 194).

Essencial, portanto, ter claro qual a prestação (dever) envolvida na rela-

ção estabelecida pelo direito à educação. Na Constituição brasileira esse

conteúdo é esclarecido pelos artigos 205 e 206. O primeiro individualiza

os sujeitos sobre quem recai o dever, o Estado e a família. Estipula tam-

bém, ainda que com máxima abstração, diretrizes mínimas ao conteúdo

do direito: “desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da

cidadania e sua qualificação para o trabalho”. É, porém, determinação,

não poesia jurídica. Já o artigo 206, por sua vez, enumera os princípios

que devem fundamentar o ensino no país. Destaque-se seu inciso VII,

que garante um padrão de qualidade.

O intérprete percebe com facilidade que o interesse juridicamente

protegido não é aquele de ter todo o grupo social em idade escolar fisica-

mente dentro de estabelecimentos de ensino. Não se menospreza a uni-

versalização do acesso à rede de ensino. Contudo, este somente pode ser

entendido como o primeiro momento da tarefa do Estado (e em algum

grau da família) de efetivar o direito à educação. Nesse sentido, Oliveira

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atribui “importância significativa à universalização do acesso ao ensino

fundamental, posto que esta faz com que ‘as contradições mudem de lu-

gar’, passando a concentrar-se na expansão das etapas posteriores a este e

na qualidade da educação básica, notadamente do ensino fundamental”

(Oliveira, 2007, p. 666).

Conforme a apresentação do autor, nas últimas três décadas, perío-

do em que o ensino fundamental praticamente se universalizou, direção

para a qual também caminha o ensino médio, as contradições na deman-

da por educação transferiram-se progressivamente no processo educati-

vo, na medida em que o problema imediato anterior era resolvido.

O primeiro objetivo teria sido o aumento da rede física, configuran-

do a demanda pela expansão do número de vagas nas séries de acesso.

Resolvida essa questão, o passo seguinte apresenta-se como a necessida-

de de reduzir os índices evasão escolar, criando condições para que os

alunos concluíssem o ensino fundamental.

Ligada à necessidade de controle da evasão veio a demanda pela

redução da repetência e dessa forma a regularização do fluxo de escola-

rização, homogeneizando os índices de matrículas ao longo das séries do

ensino fundamental. Inúmeras soluções, tais como a “adoção de ciclos,

da promoção automática e de programas de aceleração da aprendiza-

gem” (Oliveira, 2005, p. 10), foram encontradas para resolver o proble-

ma do progresso no sistema educacional.

A ineficácia do direito à educação, como se vê, tem passado por di-

ferentes momentos do processo educativo. Já não se encontra no tempo

do acesso inicial, nem tampouco representada pelas barreiras à passa-

gem aos níveis seguintes (como foi o caso do Exame de Admissão ao Gi-

násio). Aos poucos, também deixa de existir no fluxo dentro do sistema,

à medida que este se regulariza.

Pois bem, não causa embaraço afirmar que a dimensão de ineficácia

do direito à educação encontra-se hoje, sobretudo, naquilo que se refe-

re à garantia de qualidade. Essa constatação não é privilégio nacional.

Brown, ao iniciar reflexão sobre a qualidade na educação, afirma que “a

questão da quantidade é urgente que se torna compreensível, embora

não de bom senso, esquecermos inteiramente da qualidade” (tradução

livre de Brown, 1957, p. 361). Importante retomar o fundamento te-

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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órico do neoconstitucionalismo para se remarcar que não se trata de

mera demanda social, surgida da percepção de uma nova contradição.

Trata-se de um direito constitucional, diretamente acessível, passível de

ser garantido juridicamente através do Judiciário. Para tanto, porém, é

necessário que haja, ao menos na cultura jurídica, definição do dever

envolvido nessa obrigação pública.

Muitos elementos poderiam ser oferecidos a uma definição jurídi-

ca, não pedagógica, de educação de qualidade, tais como estrutura física,

currículo, material de ensino, recursos de aprendizado, diplomação do

corpo docente etc. No entanto, pensando nesses elementos como pres-

tações do Estado por meio de intervenções diretas no sistema, deve-se

ter em mente a necessidade de equilíbrio, apontada por De Groof, “entre

liberdade e, dessa forma, responsabilidade das administrações das esco-

las, universidades e outras instituições de educação superior de um lado,

e o papel diretivo do governo de outro” (De Groof, 1998, p. 2).

Segundo a opinião de De Groof (1998), a qualidade, tomada como

algo a que o aluno tem direito, refere-se à intervenção do Estado. O de-

ver do Estado em relação a essa dimensão do direito à educação avalia-se

(e se efetiva) quanto à qualidade de sua intervenção no processo educa-

cional. Nesse sentido, afirma, a qualidade da intervenção estatal é me-

lhor avaliada em função dos esforços que faz para promover qualidade

nas instituições de ensino. Essa ideia, qual seja, a de que o dever do Es-

tado quanto à qualidade avalia-se do ponto de vista de sua obrigação de

garantir um processo educacional confiável e livre de defeitos, é extre-

mamente interessante para a pretensão de efetivação jurisdicional dessa

dimensão do direito à educação.

Porque, ao menos do ponto de vista jurídico, a eficácia da qualidade

não deve ser pensada sob a mesma estrutura lógica utilizada para resol-

ver contradições de quantidade. Ao juiz não pode ser imputada a tarefa

da análise fria de índices numéricos, sob pena de ser captado por per-

versões a eles inerentes, incapazes de serem percebidas sem a formação

técnica adequada.

Medidas como a construção de escolas, eliminação de barreiras de

acesso, adoção de ciclos, adoção de promoção automática, são todas sus-

cetíveis de provocar grande impacto em índices de eficiência do sistema

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educacional. Contudo, relacionam-se todas com dimensões do direito à

educação que não são aquela da qualidade.

Oliveira (2007, p. 10) menciona um novo indicador de qualidade

que vem sido introduzido no Brasil. Trata-se da medida de qualidade

através da capacidade cognitiva dos alunos, medida através de testes pa-

dronizados em larga escala. Mas mesmo tais exames, muitas vezes, são

imperfeitos por não eliminarem da medição as diferenças sociais, vez

que acabam não considerando na avaliação o resultado em função do

ponto de partida. O estudante que parte de um nível intelectual alto,

em função de condições familiares e socioeconômicas favoráveis, pode

apresentar progresso muito inferior que um estudante que parte de um

nível baixo, em função de condições desfavoráveis, e ainda assim apre-

sentar um resultado objetivo superior a ele.

Há ainda o vício possível de, num esforço de melhorar indicadores,

direcionar a educação tão-somente para o sucesso no teste.

Não parece, portanto, que o paradigma da produtividade pura possa

servir de parâmetro ao aplicador do direito quando da garantia da edu-

cação de qualidade. Tomar dela o produto como instrumento de con-

trole ganha ares de imperfeição. A função do juiz restaria mais efetiva se

relacionada ao controle do processo de aprendizagem. Obviamente não

lhe caberia avaliar estratégias pedagógicas. Mas a prática jurisprudencial

sobre o tema, em reiteradas decisões, é capaz de delimitar um mínimo

de responsabilidade, extraída da própria compreensão de dignidade hu-

mana, que possa ser exigível do Estado na condução da educação. Algo

como um mínimo de estrutura física e de condições sanitárias, o já exis-

tente mínimo de dias letivos, um máximo de abstenção de professores,

um mínimo de recursos educativos aos alunos.

A perspectiva neoconstitucionalista demanda essa postura dos juí-

zes. Tomando a constituição como conjunto de normas de vinculação

direta, cabe-lhes prover a efetivação, o que se faz por meio das categorias

jurídicas conhecidas.

Já foi dito aqui que no neoconstitucionalismo os juízes ocupam

posição de protagonistas. Deixar a definição jurídica (exigível) de qua-

lidade ao Executivo ou ao Legislativo seria reintroduzir um elemento

de intercalação entre sociedade e Constituição. Tem-se a consciência do

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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extremamente amplo debate na psicologia e na pedagogia em torno do

que seja educação de qualidade. O Judiciário, entretanto, para além do

direito, não é um órgão técnico. Seria possível, nesse sentido, fazer a dis-

tinção de educação de qualidade definida para fins de política pública e

educação de qualidade definida para fins de proteção jurídica.

Importante ter claro que não se pode pretender do juiz o desempe-

nho de personagem psicólogo ou pedagogo. Porém é tarefa sua, no Es-

tado Constitucional de Direito, determinar uma definição jurídica para

esse direito. Daí falar-se em mínimo de responsabilidade por parte do

Estado na condução do processo educacional. Porque se trata de ideia

que remete ao princípio da dignidade humana, passível de ser mais fa-

cilmente assimilado e trabalhado pelo Judiciário através de critérios de

razoabilidade. Nesse esforço é que deve buscar apoio nas outras ciências,

bem como em demandas sociais. Por sua vez, faz-se menção à reiteração

jurisprudencial como fonte dessa conceituação jurídica de educação de

qualidade por ser ela o elemento que atribui racionalidade e segurança

ao sistema (a análise jurisprudencial permite ao particular conhecer o

conteúdo de seu direito; o que esperar da decisão judicial).

Considerações Finais

Há, por fim, uma peculiaridade em relação ao sistema educacional

brasileiro, ligada à questão da qualidade, sobre a qual devem ser tecidos

alguns comentários, ainda que de modo singelo, como uma sugestão de

tema para um próximo estudo. Trata-se da interface entre a qualidade

da educação e a exploração desta pela iniciativa privada.

Com fundamento na abertura conferida pela norma do artigo 209

da Constituição Federal, a educação no país encontra-se, de modo di-

ficilmente reversível, inserida na roda do moinho satânico de que fala

(Polanyi, 2000). Na sociedade da informação, à medida que o mercado

cria relações de dependência cada vez maiores com o conhecimento, tal

como ocorreu com o trabalho, a terra e o dinheiro em outra ocasião, tam-

bém a educação vai ganhando a categorização de mercadoria fictícia.

Qualificar de fictícia a assemelhação de educação a mercadoria é

ação de extrema relevância, que, acredita-se, deve estar sempre presente

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no raciocínio do estudioso do tema. De fato, na sociedade contemporâ-

nea, parece sem retorno a organização da educação num mercado, com

oferta, demanda e agentes econômicos concretos, sobretudo no âmbito

de sua exploração pela iniciativa privada. A essa composição, o conceito

de mercadoria é essencial.

Todavia, não se pode perder de vista que, em sua essência, não é à

venda e ao comércio que se destina a atividade educacional6. No âmago,

a finalidade da educação é divulgação do conhecimento, de modo a pro-

mover o crescimento intelectual de todos os indivíduos e garantir, as-

sim, o desenvolvimento conjunto do corpo social. Ainda que organizada

numa estrutura semelhante a um mercado, esse é o conteúdo que deve

prevalecer na exploração da atividade educacional, e não meramente a

aferição de lucro (que, todavia, não se condena de antemão).

Essas constatações têm importante implicação no que diz respeito

à qualidade da educação. Porque é através de sua garantia que, ao abrir

à iniciativa privada a exploração do ensino, o artigo 209 da Constitui-

ção mantém-na, por critérios de autorização e avaliação de qualidade

pelo poder público, como responsabilidade última do Estado. Mantém-

na como direito subjetivo público, diretamente acessível e exigível pelo

particular através da via judicial.

O problema, como aponta (Ranieri, 2005, pp. 58-70), é que as re-

gulações relativas à autorização e o controle são no mais das vezes vagas

e incertas, mecanismo que não tem favorecido o controle de qualidade

também no âmbito da exploração privada de ensino. Nas palavras da

autora, “pelo contrário, enseja questionamentos acerca da legalidade e

legitimidade do controle que exercem. Isso não só o enfraquece como

provoca um alto grau de incerteza relativa aos referenciais legal e admi-

nistrativo inseridos no sistema jurídico. O procedimento desencadeia

táticas defensivas por parte dos grupos afetados e tende a relativizar o

direito em sua generalidade abstrata”.

Conclui-se afirmando o grande desenvolvimento que a perspectiva

neoconstitucionalista pode trazer ao debate do direito à educação e, em

6. Nesse sentido, ver a explicação de Polanyi (2000, p. 94) cerca da natureza de merca-

doria fictícia do trabalho, da terra e do dinheiro.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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especial, do direito à educação de qualidade. Seja quanto à efetivação

pública do direito, seja no momento de garanti-lo na exploração pri-

vada, a Constituição Federal atribui ao indivíduo o poder de, de for-

ma independente, acessá-la diretamente e cobrar, através do Judiciário,

a eficácia não de um programa, de um ideário, mas da norma que lhe

confere um direito público subjetivo em todas as suas dimensões.

Quanto à dificuldade de atribuição de conteúdo ao direito à qualida-

de de ensino, parece que, nessa perspectiva neoconstitucionalista, de pro-

tagonismo judicial, o melhor caminho a ser trilhado é o da realização da

dignidade humana. Somente dessa forma o direito não será à nota, não

será à aprovação, noções de fácil maquiagem, o direito será à educação.

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Introdução

A discussão sobre qualidade em educação assumiu grande visibili-

dade no debate público e faz parte do rol de preocupações, não só dos

especialistas da área da pedagogia, mas também de outras áreas de co-

nhecimento como a economia e a administração.

O direito pouco a pouco também vai tomando parte nessa impor-

tante questão educacional, talvez ainda sem o volume de produção aca-

dêmica que o tema merece.

De toda sorte, a questão da qualidade do ensino possui elementos

que a todos parece interessar e é notável o apelo que o assunto desperta

na população. Os meios de comunicação de massa, em geral, e especifi-

camente os jornais e revistas dedicam espaço, editoriais e cadernos es-

peciais sobre o tema. A publicação de resultados de avaliações de ensino,

por exemplo, é sempre notícia que aparece em primeira página dada a

sua repercussão pública.

Vivemos um período histórico em que o ensino fundamental1, en-

contra-se, salvo exceções, praticamente universalizado no país, de forma

1. O art. 21 da Lei n. 9394/96 (LDB) divide a educação escolar em educação básica

Padrão de Qualidade do Ensino

Marcelo Gasque Furtado

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MARCELO GASQUE FURTADO

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que o caminho da superação do problema do acesso a vagas no sistema

educacional começou a abrir uma nova senda de preocupações para o

direito à educação. Segundo Oliveira (1996, p. 61) “a questão da quali-

dade, ou temática da qualidade, substitui a temática mais tradicional da

igualdade e da igualdade de oportunidades, e nessa perspectiva ela fun-

da um novo centro para a elaboração de políticas educacionais”.

É certo que a falta de vagas continua sendo um problema sério no

país, principalmente na etapa da educação infantil na modalidade cre-

che, mas parece que cada vez mais o direito à educação vai se ampliando

para abarcar preocupações que vão além da mera obtenção de matrícula

para incluir o padrão de qualidade das vagas oferecida.

Se todos os setores da sociedade concordam com a ideia de que a

educação deve ter qualidade, uma noção mais precisa do que seria essa

qualidade do ensino parece perdida em uma cacofonia dentro da qual as

vozes do debate destoam e tecem suas próprias concepções de qualidade

no setor.

Não há propriamente uma unanimidade em torno do que é quali-

dade do ensino e dado que o tema, como apontamos, desperta a atenção

e interesse em múltiplas áreas de saber, pois parece guardar em si um

ideal de concretização complexo que solicita esforços complementares,

a nossa intenção é oferecer ao debate um viés jurídico-constitucional

recorrendo a uma singela reflexão a partir da Constituição Federal que

apresenta a garantia de padrão de qualidade como princípio a reger a

forma em que o ensino será ministrado no país (art. 206, VII).

Antes, porém, apresentaremos a problemática conceitual de quali-

dade do ensino e traçaremos, brevemente, o contexto histórico de sua

emergência.

(composta por educação infantil, ensino fundamental e ensino médio) e ensino superior. A educação infantil é oferecida em creches para crianças de até três anos e em pré-escolas, para crianças entre quatro e cinco anos. O ensino fundamental tem duração de nove anos, sendo o seu acesso obrigatório às crianças a partir dos seis anos de idade e o ensino médio é a etapa final do ensino básico, com duração de três anos.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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Qualidade do Ensino: Problemas Conceituais

A noção de qualidade do ensino é um daqueles conceitos que gera

para si concordância imediata de todos assim que é enunciado, mas que

causa grande divergência assim que a mera aceitação da ideia geral é

substituída por uma análise mais minuciosa sobre o conteúdo abarcado

pela noção.

Ora qualidade parece não ir além de um certo consenso difuso,

dentro do qual há o enaltecimento do ensino oferecido pelas escolas

privadas, notadamente na esfera de educação básica e a concomitante

“estigmatização”2 do ensino público como o âmbito da falta de qualida-

de; ora qualidade parece excessivamente vinculada à ideia de avaliação,

como se avaliação por si só fosse sinônimo de qualidade; ora o ensino

de qualidade parece ser aquele que dá conta de formar o aluno dentro

de certa concepção de educação ou mais instrumental (passar no vesti-

bular, por exemplo) ou mais humanística, entre outras inúmeras possi-

bilidades de se entender qualidade do ensino. As diferentes visões sobre

qualidade do ensino é destacada por Carvalho:

A exemplo do que acontece com outros “objetos” do discurso social de ampla visibilidade política e notável repercussão nos meios de comunicação de massa, o conceito de “qualidade do ensino”, em seu uso corrente, oferece uma série de riscos aos intelectuais e pesquisadores que sobre ele se debruçam. Dentre eles, o de ser tratado não como uma expressão polissêmica, capaz de nos remeter a diferentes in-terpretações e categorizações de uma variedade de experiências, vivências e práticas sociais, mas como uma entidade fixa e imutável, cuja presença essencial seríamos capazes de detectar – ou cuja grandeza pudéssemos medir – de forma inequívoca e a-histórica (2007, p. 307).

[...] atendo-nos a alguns atores sociais é pouco provável que por exemplo, a Fiesp e a CUT, o Estado e a família, os professores e os responsáveis pelas políticas públicas tenham, todos, as mesmas expectativas sobre o que venha a ser educação de qualidade. [...]

Para uns, a educação de qualidade deve resultar na aquisição de diferentes “competências”, que capacitarão o aluno a se tornarem trabalhadores diligentes; para outros, líderes contestadores, cidadãos solidários, empreendedores de êxito,

2. Sobre essa questão, ver o elucidativo artigo “A Estigmatização da Escola Pública”, Azanha, 1995.

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MARCELO GASQUE FURTADO

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pessoas letradas, consumidores conscientes. Ora, é evidente que embora alguma dessas expectativas sejam compatíveis, outras são alternativas ou conflitantes, pois a prioridade de um aspecto pode dificultar ou inviabilizar outro. Uma escola que te-nha como objetivo maior – e, portanto, critério máximo de qualidade – a aprovação no vestibular pode buscar a criação de classes homogêneas e alunos competitivos, o que impede a oportunidade de convivência com a diferença e reduz a possibilidade de se cultivar o espírito de solidariedade.

Por outro lado, para certas correntes de pensamento, a própria ideia de que uma escola de “qualidade” deve desenvolver “competências” ou “capacidades” pode com-prometer o ideal educativo, já que competência e capacidade, não revelam em seu uso comum um necessário compromisso ético para além da eficácia (2007, pp. 328-329).

Além disso, o uso comum da expressão “qualidade do ensino”, ora

pode estar se referindo ao cumprimento do que seria esperado do pro-

cesso educativo, de acordo com dada concepção de educação; ora pode

estar se referindo a um plus de excelência, em que se leva em conta não

apenas o que é meramente esperado, mas a contínua melhoria.

É importante lembrar que “qualidade” guarda um sentido de exce-

lência aplicável aos processos das corporações privadas que, diante da

acirrada competitividade do mercado, buscam a melhoria de produtivi-

dade, maximização de resultados, diminuição de prejuízos. Esse sentido

corporativo de “qualidade”, onde está implícita a noção de eficiência,

acabou migrando para outros setores da sociedade, inclusive para a área

de educação.

Tanto a escola privada como também a escola pública absorveram

um vocabulário típico das relações de mercado, do mundo do consumo

e do ambiente corporativo com palavras tais como “satisfação”, “eficiên-

cia”, “resultados”, “qualidade” etc.

A pergunta que seria pertinente fazer é em que medida seria apro-

priada essa passagem de noções advindas das relações das organizações

empresariais privadas para as instituições de ensino, considerando que

no campo educacional parece não ser facilmente aceitável conceber, por

exemplo, resultados com variações mínimas de características no senti-

do de uma produção industrial em série, já que se lida com a formação

de seres humanos, que são individualmente únicos.

Por isso, causa um certo mal-estar a muitos pesquisadores da área

da pedagogia, a unanimidade no discurso social que atribui qualidade

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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ao ensino que almeja resultados utilitários, como a aprovação em vesti-

bulares concorridos.

O sucesso na aprovação em vestibulares por si só significa qualidade

de ensino? Para a educação da rede pública de ensino esse também é o

critério de qualidade?

Ainda que os exames vestibulares sejam um dado da realidade social ao qual uma escola não pode se furtar, isso não implica tomá-los como meta – não raro exclusiva − a ser atingida pela escola pública. Inclusive, se as escolas públicas de São Paulo, por exemplo, tivessem como meta a aprovação de seus alunos nos vestibula-res mais concorridos, estariam inevitavelmente fadadas ao fracasso, já que a oferta de vagas no ensino superior nessas universidades é notadamente menor do que o número de alunos que concluem o ensino médio (Silva, 2008, p. 76).

Por isso, o autor do excerto acima discute em sua tese de doutorado

um sentido de qualidade para a escola pública, algo que não seja mera-

mente instrumental e utilitário mas vinculado aos interesses públicos

que a educação deveria servir.

Esse quadro de dificuldades no estabelecimento de uma ideia mais

precisa do que seja qualidade em educação justifica a nossa preocupação

em lançar um olhar sobre qualidade a partir da própria Constituição

Federal.

A Emergência do Tema “Qualidade do Ensino”

As preocupações contemporâneas com a qualidade na educação

coincidem com os acontecimentos da política e economia internacio-

nais, em especial a partir da década de 1980 do século XX.

É preciso destacar, em primeiro lugar, o papel da globalização, a

internacionalização da economia e o quadro de competitividade entre as

nações gerando o discurso da educação enquanto elemento propiciador

de diferencial na concorrência além de peça chave para o desenvolvi-

mento dos países periféricos.

Além disso, com a queda do Muro de Berlim, houve uma certa una-

nimidade em torno de políticas de natureza neoliberal a ensejar refor-

mas visando a maior eficiência do Estado e dos serviços por ele manti-

dos, trazendo para dentro da estrutura estatal formas de administração

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típicas das corporações privadas, onde a noção de “qualidade” já tinha

livre trânsito.

Também é importante destacar que o avanço tecnológico das últi-

mas décadas tem repercutido de forma marcante na empregabilidade

das massas trabalhadoras exigindo uma educação cada vez mais espe-

cializada afinada com esse novo panorama.

No Brasil, segundo Oliveira e Araújo (2005), a concepção de quali-

dade sofreu mudanças de enfoque na história recente da educação na-

cional sendo percebida, segundo os autores, de três formas diferentes:

universalização do acesso ao ensino, fluxo do aluno dentro do sistema

escolar e avaliações por meio de testes.

Em um primeiro momento, a qualidade foi discutida em função do

processo de universalização do acesso ao ensino obrigatório e gratuito

de oito anos, ocorrido na segunda metade do século XX. Falar em ensino

público obrigatório e gratuito até esse período, era falar de um proces-

so de escolarização primária com duração de quatro anos. A etapa do

processo de escolarização que hoje chamamos de “ensino fundamental”

era claramente cindida após o término dos quatro primeiros anos do

primário, já que o acesso à etapa posterior do ensino, o ciclo ginasial do

ensino secundário, era dificultado pelo chamado “exame de admissão”

que tinha características similares ao atual vestibular para universidades

públicas: extrema dificuldade, sucesso reservado às classes economica-

mente mais privilegiadas e exclusão da grande maioria.

Entretanto, esse estado de coisas começou a ser alterado com as mu-

danças sociais advindas do intenso processo de industrialização do país,

êxodo rural, migrações internas, intenso processo de urbanização e das

pressões das populações excluídas da escolarização de duração mais am-

pla. A necessidade de estender a escolaridade obrigatória de oito anos para

todos, flexibilizando-se o exame de admissão, passou a ser uma exigência

política daquele período histórico e culminou com a Lei n. 5692/71 que

apresenta o ginásio como sequência natural do primário, conforme art.

18: “O ensino de 1o grau terá a duração de oito anos letivos [...]3.

3. Atualmente, por conta das alterações no art. 32 da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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Nesse processo, houve reação de parte da imprensa que se posicio-

nou contrariamente ao que era chamado pejorativamente de “massifi-

cação” do ensino. Os próprios professores da rede pública mostraram-se

arredios já que a mudança implicava em alterar práticas pedagógicas às

quais estavam acostumados e lidar com um alunado de extratos popula-

res, desconhecedores da linguagem, valores e signos até então cultivados

em uma instituição escolar de elite.

Vem dessa época o saudosismo, que ecoa até os dias de hoje, em

relação aos supostos “bons tempos” em que a escola pública tinha qua-

lidade e que seria preciso recuperar os padrões que o ensino público

teve no passado. O problema é que a escola do passado respondia às

necessidades do passado. A qualidade que a ela se atribuía não pode ser

reproduzida nos dias de hoje pois implicaria em um quadro excludente

da maioria da população.

Sob a perspectiva dos segmentos privilegiados da coletividade, a qualidade do ensino público realmente pode ter piorado: os grupos privilegiados já não encon-tram na escola pública os padrões de ensino que recebiam num passado recente. Mas sob a perspectiva das classes subalternas, a situação não é a mesma. A relação, aqui, se inverte, pois, à medida, que veio conquistando a possibilidade de matrícula, a população passou a contar com serviços antes inacessíveis. Para quem não tinha acesso à educação escolar, mesmo este ensino de má qualidade representava uma melhoria. Isso não significa, obviamente que as deficiências da escola pública sejam aceitáveis. Mas as avaliações da qualidade da escola pública não podem ignorar as transformações qualitativas introduzidas no ensino no processo de sua extensão às classes populares (Beisiegel, 2005, p. 151).

Durante o período em que a tônica da qualidade era a ampliação do

acesso, a prioridade era a geração de novas vagas. Note-se que o proble-

ma do acesso não está de todo resolvido, mas uma vez minimizado, sur-

ge, a partir da década de 1990, o segundo enfoque da qualidade, agora

calcado no fluxo do aluno no sistema de ensino fundamental.

na Constituição Federal pela Emenda n. 53/2006, o ensino fundamental obrigatório passou a

ter duração de nove anos, iniciando-se aos seis anos de idade. Na verdade, não se acrescentou

um ano a mais de escolarização, mas simplesmente retirou-se um ano da pré-escola para

classificá-lo com educação fundamental.

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Segundo Oliveira e Araújo (2005, p. 10) “a partir da comparação

entre a entrada e a saída de alunos do sistema de ensino, era medida a

qualidade da escola. Se a saída se mostrasse muito pequena em relação à

entrada, a escola ou o sistema como um todo teria baixa qualidade [...]”. A questão do fluxo diz respeito, portanto, às preocupações que en-

volvem a permanência e evolução do aluno na escola, recebendo a edu-

cação no tempo previsto, sem o abandono dos estudos antes de terminar

o processo educativo. Assim, o enfoque da qualidade passa a se deter em

métodos para correção de desvios na progressão do aluno no sistema,

como a repetência e a evasão escolar, o que originou, por exemplo, o

regime de progressão continuada.

Considerando que a questão do fluxo esteja minorada (embora não

de todo solucionada, assim como o acesso a vagas também não está de

todo resolvido), e que, em tese, a maioria permanece e progride na es-

cola até o fim da etapa obrigatória, o foco da qualidade volta-se, mais

recentemente, para os resultados obtidos após o processo de escolariza-

ção, por meio de avaliações cognitivas dos estudantes com testes padro-

nizados4, em larga escala.

Não se põe em questão o fato de a prática escolar produzir resultados. Aliás, seria inusitado que, após um processo de escolarização, compreendendo as etapas da educação básica, por exemplo, não esperássemos alguns resultados, muitos deles óbvios como o aprendizado da leitura, escrita e noções de cálculo. Mas outros tipos de resultados esperados de um processo de escolarização podem não ser objetivos ou claramente mensuráveis através de exames padronizados. Pense-se, por exem-plo, que um “resultado” a ser apresentado pela escola é o de formar cidadãos [...] (Silva, 2008, p. 24).

O problema apontado no excerto acima é uma grande preocupação

dos educadores com o uso de testes no campo do ensino: a crença acrí-

tica de que avaliações cognitivas possam revelar tudo o que seria impor-

tante em um processo educativo. Sem cair nessa distorção, é importante

4. São exemplos desses testes o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), o Exa-

me Nacional do Ensino Médio (Enem), o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes

(Enade), esse último voltado para avaliação do ensino superior, entre outros

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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frisar que avaliação é um mero indicador que precisa de uma herme-

nêutica de resultados competente para de fato auxiliar na elaboração de

políticas públicas na área de educação.

Qualidade de Ensino na Constituição de 1988 e na LDB

Diz a Constituição Federal de 1988: “Art. 206 O ensino será minis-

trado com base nos seguintes princípios: [...] VII. Garantia de padrão de

qualidade.

O status constitucional dado ao tema da qualidade do ensino é ex-

clusividade da Carta de 1988, não encontrando antecedentes na história

constitucional brasileira. Na verdade, a preocupação com a questão da

qualidade em todos os setores da vida contemporânea, inclusive, mas

não somente, na área de educação, faz parte, como já nos referimos ante-

riormente, de desdobramentos históricos de maior amplitude ocorridos

em especial, nas décadas finais do século XX e com repercussões sociais,

econômicas e políticas em escala planetária.

Mas a Constituição não apresenta uma definição de qualidade do

ensino que possa dirimir as divergências de entendimento que aponta-

mos anteriormente. Como se nota, a garantia de “padrão de qualidade”

é apresentada como um princípio constitucional.

Sem a pretensão de discutir as concepções e a complexidade que

envolvem doutrinariamente a ideia de “princípio” no âmbito do Direito

Constitucional, admitamos a perspectiva de que: “os princípios são nor-

mas imediatamente finalísticas. Eles estabelecem um fim a ser atingido

[...] A instituição do fim é o ponto de partida que procura por meios.

Os meios podem ser definidos como condições (objetos, situações) que

causam a promoção gradual do conteúdo do fim” (Ávila, 2008, p. 79).

Assim, o princípio do art. 206, VII, traz em si a finalidade de ob-

tenção de qualidade do ensino, sendo pertinente pensar quais seriam as

condições que contribuiriam para a materialização dessa finalidade.

Recorrendo à leitura privilegiada da Constituição feita por alguns

renomados constitucionalistas que publicaram obras que se destinam

a comentar a Constituição de 1988 artigo por artigo ou apor notas ao

texto constitucional, podemos tentar colher lições no que tange ao en-

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tendimento desses juristas sobre a concretização da qualidade, ao co-

mentarem o art. 206, VII.

Ferreira Filho (1999, p. 244) faz uma nota simples onde demonstra

alguma desconfiança sobre a exequibilidade da qualidade: “a busca da

qualidade do ensino é, sem dúvida, um princípio louvável. Garanti-la,

porém, é uma promessa nem sempre executável.

Silva (2006, p. 789) procura identificar com objetividade o que

comporia a ideia de padrão de qualidade:

O padrão de qualidade do ensino depende de fatores intrínsecos e de fatores

extrínsecos. Os primeiros estão vinculados à organização dos estabelecimentos es-

colares, que hão de estar aparelhados com o instrumental adequado a cada tipo de

habilitação que oferecem, desde o preparo da criança para as sucessivas etapas do

ensino até sua formação profissional – o que envolve a boa formação dos profissio-

nais do ensino em cada uma dessas etapas, mas também requer a permanente aten-

ção dos poderes públicos para com as condições materiais das escolas, tais como as

tecnologias modernas de ensino, como a informatização dos estabelecimentos de

ensino. Os segundos significam oferecer condições econômicas adequadas às famí-

lias para que seus filhos tenham condições de auferir um bom aprendizado, porque

o padrão de qualidade do ensino só se afere no rendimento escolar dos estudantes,

e isso não depende apenas da boa qualidade dos professores, mas também, e prin-

cipalmente, da predisposição do alunado para o aprendizado – o que, na mais das

vezes, depende de uma boa alimentação e da posse de material escolar apropriado.

Bastos (2000) comenta o inciso também descrevendo as condições

em que a qualidade seria observada:

O inc. VII do art. 206 da Constituição assegura a garantia do padrão de qua-

lidade de ensino. Esta deve ser obtida por várias formas, entre elas a contratação e

manutenção de professores qualificados nas escolas, boas instalações das institui-

ções de ensino, laboratórios modernos, computadores, bibliotecas e material didá-

tico de boa qualidade e acessível a todos (Bastos, 2000, p. 535).

Ferreira (1995, pp. 86-87), que ao comentar o art. 205 da CF escreve

um longo texto em forma de artigo, verdadeiramente primoroso e raro

em obras de cunho jurídico, ao analisar o art. 206, VII, foca na formação

de professores dizendo que

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[..] a garantia do padrão de qualidade é importante para o sucesso da educação e da formação da cidadania. Para manter-se tal padrão de qualidade, os professores deverão estar habilitados para ministrar aulas, permitindo-se-lhes a participação em cursos de especialização e aperfeiçoamento.

O padrão de qualidade deve ser o melhor possível, daí a necessidade de re-muneração razoável para os professores, material didático acessível para os alunos, laboratórios, tudo formando um complexo indispensável para a manutenção de levado padrão educacional, útil para o processo democrático de nobilitação da pes-soa humana

Bulos (2000, p. 1197) comenta que “a qualidade referida não é so-

mente a interna, apurada através de exames de avaliação escolar, como

provas, testes, trabalhos de pesquisa, monografias etc., mas também a

externa, mediante a qual o ensino será aferido pelos padrões e necessi-

dades da sociedade”.

Com base nessas indicações, poderíamos dizer que, para os juristas

que comentam o art. 206, VII da CF, o padrão de qualidade do ensino

seria atingido por uma série complexa de meios que envolveria: condi-

ções materiais para o ensino, tanto das instituições de ensino (existência

em número suficiente, boas condições do edifício escolar, do equipa-

mento físico disponível, limpeza e manutenção efetivos, fornecimento

regular de água, energia elétrica etc.) como dos alunos (fornecimento

de material escolar, merenda, transporte etc.); condições dos recursos

humanos ligados ao ensino (formação adequada, atualização constante,

remuneração condigna etc.); condições de natureza pedagógica (currí-

culos adequados, metodologias apropriadas ao perfil do alunado etc.)

resultados cognitivos do processo de aprendizagem aferíveis por meio

de avaliações etc.

De maneira geral, esses comentários parecem tender a uma percep-

ção do tema da qualidade ligado a necessidades do sistema público de

educação.

De fato, quando se fala e qualidade do ensino, a imaginação cos-

tuma ser preenchida por problemas como superlotação de salas, falta

de professores, professores despreparados, condições insalubres, falta de

segurança etc., questões muito fortemente ligadas às percepções de qua-

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lidade do sistema público. Entretanto, o art. 206, VII é aplicável tanto ao

ensino ministrado em instituições públicas quanto privadas.

Além de aparecer na enunciação de um dos princípios que norteam

a forma como será ministrado o ensino no nosso país, a ideia de quali-

dade ainda é mencionada no texto constitucional nos arts. 209, II; 211, §

1o; 214, III e no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT),

no art. 60, VI e § 1o; reformulados pela Emenda Constitucional 53/06.

Com exceção do art. 209, II, todas essa outras menções são destinadas

especificamente ao ensino público:

Art. 209. O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condi-ções: [...]

II. autorização e avaliação de qualidade pelo poder público (grifo meu). [...]Art. 211, § 1o A União organizará o sistema federal de ensino e o dos territó-

rios, financiará as instituições de ensino públicas federais e exercerá, em matéria educacional, função redistributiva e supletiva, de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino mediante as-sistência técnica e financeira aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios (grifo meu). [...]

Art. 214. A lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração pluria-nual, visando à articulação e ao desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis e à integração das ações do poder público que conduzam à: [...]

III. melhoria da qualidade do ensino (grifo meu).Art. 60 (ADCT). Até o 14o (décimo quarto) ano a partir da promulgação desta

Emenda Constitucional, os estados, o Distrito Federal e os municípios destinarão parte dos recursos a que se refere o caput do art. 212 da Constituição Federal à manutenção e desenvolvimento da educação básica e à remuneração condigna dos trabalhadores da educação, respeitadas as seguintes disposições [...].

VI. até 10% (dez por cento) da complementação da União prevista no inciso V do caput deste artigo poderá ser distribuída para os Fundos por meio de programas direcionados para a melhoria da qualidade da educação, na forma da lei a que se refere o inciso III do caput deste artigo (grifo meu). [...]

§ 1o A União, os estados, o Distrito Federal e os municípios deverão assegurar, no financiamento da educação básica, a melhoria da qualidade de ensino, de forma a garantir padrão mínimo definido nacionalmente.

Há nessas outras menções, as ideias de “avaliação” de qualidade,

“melhoria” de qualidade e “padrão mínimo” de qualidade.

A ideia de “avaliação” pelo poder público das condições de ofere-

cimento de educação por parte das entidades privadas decorre do inte-

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resse público envolvido na atividade educacional. A ideia de “melhoria”

não parece estar ligada imediatamente a uma concepção de que a edu-

cação pública deve ser cada vez melhor, mas da constatação implícita de

que, grosso modo, tudo está muito ruim nessa área e é preciso garantir,

no mínimo, uma melhora das condições de penúria vigentes.

Chama a atenção as menções a “padrão mínimo” contidas no art.

211, § 1o, e também no Ato das Disposições Constitucionais Transitó-

rias, art. 60 § 1o.

O próprio princípio do art. 206, VII, é enunciado tão somente como

“padrão”, sem o qualificativo mínimo. Quando se fala em “padrão”, no

uso comum da palavra, está presente a ideia de especificações normati-

vas emanadas desse padrão, enquanto um modelo a ser seguido. Quan-

do se diz “padrão mínimo de qualidade”, como no art. 211 § 1o, a ideia

de “modelo” evidentemente permanece, mas a adjetivação “mínimo”

impõe uma padronização menos exigente no que concerne à excelência

e mais próxima de um patamar de essencialidade que, se respeitado, não

se incorrerá em prejuízos graves. Mas o que seria esse padrão mínimo

para o ensino público?

A LDB prevê em seu artigo, 4o, IX: “Art. 4o O dever do Estado com

educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de: [...] IX.

padrões mínimos de qualidade de ensino, definidos como a variedade e

quantidade mínimas, por aluno, de insumos indispensáveis ao desenvol-

vimento do processo de ensino-aprendizagem”.

Pela leitura do artigo, a dúvida sobre o que seria o “padrão mínimo”

de qualidade transfere-se para determinar o que seria variedade e quan-

tidade mínimas de insumos por aluno5.

5. Está pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal a Arguição de Descum-

primento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 71 impetrada em 2005, pela Confederação Na-

cional dos Trabalhadores em Educação, por ocasião da edição de decretos do Executivo vei-

culando um método de cálculo do valor mínimo por aluno, em desacordo com o estabelecido

pela regras do Fundo de Desenvolvimento do Fundamental (Fundef). Um dos pedidos da

ação é a fixação pelo Executivo do padrão mínimo de qualidade, imprescindível para calcular

o valor mínimo por aluno. Se o pedido no tocante ao descumprimento às regras do Fundef

ficou prejudicado, em função de sua substituição pelo Fundeb, voltado para educação básica,

subsiste o problema de saber o que seria o padrão mínimo de qualidade.

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Com base na LDB, Liberati (2004, p. 257), sem a preocupação em

definir quantidades mínimas de insumos por aluno, mas interessado em

identificar o conteúdo material do direito à educação, aponta como uma

das facetas desse conteúdo, a qualidade do ensino, e com o objetivo de,

segundo suas palavras, “salientar a materialidade do direito à educação

de qualidade”, aponta alguns indicadores retirados da prática escolar:

[...] gestão da escola [LDB, art. 3o, VIII]; a utilização do tempo [LDB, art. 24, I], a organização do espaço [LDB, arts. 4o, IX, 25,74 e 75], a valorização dos profissionais da educação [LDB, art. 67, II], a composição dinâmica do currículo escolar [LDB, arts. 9o, IV, 26, 27 e 28], a orientação didático-pedagógica, as formas de avaliação [LDB, art. 24, V], a participação dos pais na escola [LDB, art. 14, II], o reconhecimento da comunidade e o apoio das autoridades.

[...] cada um desses indicadores de qualidade de ensino (podem surgir ou-tros!) é considerado direito material à educação de crianças e adolescentes e pode ser protegido por ações judiciais e extrajudiciais de qualquer espécie (ECA, art. 209), com a utilização de todos os instrumentos legais de exegibilidade previstos na legis-lação (ECA, art. 212).

Para o autor, portanto, a própria legislação infraconstitucional ofe-

rece as diretrizes para a determinação da qualidade a ser obtida judicial-

mente, se for o caso.

Considerações Finais

Embora a expressão qualidade do ensino possa provocar entendi-

mentos conflitantes sobre o seu verdadeiro conteúdo, é possível encon-

trar na Constituição Federal e na LDB, caminhos para o estabelecimento

de uma concretude para o conceito.

Mesmo reconhecendo que possa haver certo grau de incerteza

quanto ao significado de “padrão de qualidade” no contexto da própria

Constituição Federal, o recurso aos comportamentos concretos neces-

sários à realização da finalidade embutida no princípio da garantia de

padrão de qualidade, dão mais clareza ao significado do princípio.

Na área da pedagogia, quando se fala em “ensino de qualidade”, é co-

mum apontar-se a ambiguidade da ideia de qualidade e criticar-se certas

unanimidades que consideram aprovação nos vestibulares ou resultados

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de avaliações cognitivas como sinônimos de qualidade. Ao pensar juri-

dicamente o problema da qualidade do ensino há um certo conjunto

de elementos cuja ausência implicam em evidente déficit de qualidade e

esvaziamento do direito à educação tais como higiene das dependências

do estabelecimento escolar, formação contínua de professores, apoio ao

aluno (material escolar, transporte, merenda) etc. Sob esse enfoque, a

qualidade é uma dimensão intrínseca ao direito de todos à educação.

Dessa forma o próprio direito à educação sofre um alargamento em

suas preocupações na medida em que não se trata mais de meramente

garantir vagas no sistema de ensino, mas também garantir a qualidade

do ensino oferecido.

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IV

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO PRIVADO

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Introdução

Diante da classificação constitucional da educação como um direito

fundamental, mais precisamente, um direito social, e em virtude da sua

caracterização, na essência, como um tipo de serviço público prestado

pelo estado, o que se pretende é analisar se esse atributo de serviço pú-

blico é perdido quando o serviço passa a ser prestado por instituições

privadas.

E o seu fundamento pode ser encontrado na significante divergên-

cia existente, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, acerca da na-

tureza desse tipo de serviço: se trata-se efetivamente de um serviço pú-

blico ou de uma relação de consumo, onde o aluno paga pela qualidade

do serviço oferecido.

A fim de tornar mais didático nosso estudo, pretendemos dividi-lo em

três tópicos. No primeiro deles, analisaremos a divergência entre o conceito

de educação privada como serviço público ou mera relação de consumo.

Para tanto, faremos um estudo sobre a recente jurisprudência hoje predo-

minante no Supremo Tribunal Federal para pontuarmos a questão.

Em seguida, nosso objetivo será trabalhar, especificamente, o con-

ceito de serviço público, suas origens, caracterização e, principalmente,

A Natureza Jurídica do Serviço Prestado pelas Instituições Privadas de Ensino:

Controvérsias sobre o Tema

Luiz Gustavo Bambini de Assis

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LUIZ GUSTAVO BAMBINI DE ASSIS

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seu enquadramento no ordenamento jurídico brasileiro. Recorreremo-

nos à doutrina estrangeira e nacional para melhor explicitar o conceito.

Por fim, almeja-se discutir o conceito de direito público subjetivo e

de que maneira ele está ligado ao serviço prestado na área da educação.

Esse ponto será importante para que possamos estabelecer uma conexão

entre o conceito de serviço público, de direito público subjetivo e suas

aplicações no campo do ensino privado.

Construídas as premissas baseadas na doutrina e na jurisprudência,

podemos, por fim, apresentar nossas conclusões acerca do tema.

Divergência entre o Conceito de Educação Privada como

Serviço Público ou mera Relação de Consumo

Não é de hoje que a nossa Suprema Corte vem se debruçando sobre

como melhor conceituar o ensino privado, assim está interpretado esse

tema na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.266/BA, relator ministro

Eros Grau, cuja ementa abaixo transcrevemos:

Ementa: Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei n. 6.584/94 do Estado da Bahia. Adoção de material escolar e livros didáticos pelos estabelecimentos par-ticulares de ensino. Serviço Público. Vício Formal. Inexistência. 1. Os serviços de educação, seja os prestados pelo Estado, seja os prestados por particulares, configuram serviço público não privativo, podendo ser prestados pelo setor privado independen-temente de concessão, permissão ou autorização. 2. Tratando-se de serviço público, incumbe às entidades educacionais particulares, na sua prestação, rigorosamente acatar as normas gerais de educação nacional e as dispostas pelo Estado-membro, no exercício de competência legislativa suplementar (§ 2o do art. 24 da Constituição do Brasil). 3. Pedido de declaração de inconstitucionalidade julgado improcedente (grifos nossos).

Ao entender que a natureza do serviço prestado é eminentemente

pública, o relator admite que às instituições de ensino privado, esteja

autorizado prestar um serviço de natureza pública, não privativo e que,

portanto, pode ser delegado ao particular por meio de um ato adminis-

trativo meramente autorizativo.

Ressalte-se que a autorização, nas palavras de Celso Antonio Ban-

deira de Mello (2008, p. 430) é “ato unilateral, pelo qual a Administra-

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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ção, discricionariamente, faculta o exercício de atividade material, tendo

como regra, caráter precário”, ou seja, trata-se de ato sem maiores for-

malidades, que prescinde de contrato ou lei para existir.

É de se ver que em seu voto divergente, o ministro Marco Aurélio

entendeu que há uma diferença entre o ensino público específico e aque-

le prestado pelas instituições privadas. A seu ver, não há falar em au-

sência de distinção entre esses dois tipos de serviços, um prestado pelo

Estado e outro pelo particular.

Maior divergência ainda se instaura entre o ministro Carlos Bri-

to e o relator. O primeiro vem afirmar o quanto segue: “Quero deixar

registrado que não tenho a educação enquanto modalidade de serviço

público. Com respeito à opinião do eminente Ministro-Relator, entendo

que o artigo 175 da Constituição deixa claro que o serviço público é aque-

le titularizado pelo poder público, ou seja, de senhorio exclusivo do poder

público” (grifos nossos).

No que responde o ministro-relator, Eros Grau: “Exatamente por

ser serviço público é que a Constituição diz, depois, que é livre no senti-

do de que, apesar de ser serviço público, é não privativo. Esse é o enten-

dimento que se tem adotado ultimamente”.

Em seu voto, explicita o ministro Sepúlveda Pertence não tratar-se

o ensino privado de serviço público e sim de atividade privada, mas por

estar relacionada a um direito fundamental, está sujeita às regulamen-

tações estatais. Este posicionamento acabou sendo acompanhado pelo

ministro Joaquim Barbosa1.

A mesma discussão reaparece no julgamento da ADI 1.007/PE, cujo

relator é também o ministro Eros Grau. Ao apartear o ministro Carlos

Brito em seu voto, o ministro Joaquim Barbosa faz questão de deixar

claro que o serviço prestado por instituições privadas não é objeto de

consumo, mas sim um direito fundamental que, em última análise, deve

ser entendido como uma prestação estatal.

1. Os votos e suas fundamentações foram retirados de um programa específico do Su-

premo Tribunal Federal denominado “Consulta 2000”, que traz toda a discussão e o conteúdo

dos votos em arquivo pdf.

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LUIZ GUSTAVO BAMBINI DE ASSIS

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No fundo, trava-se uma divergência no seguinte sentido: para al-

guns ministros, não obstante existir uma relação de consumo no caso

em comento, essa também há que ser tutelada pelo Estado, que deve

atuar em defesa do consumidor2. Para outros, não há falar em relação

de consumo entre o estudante e a instituição privada, mas sim em ser-

viço público. Por essa razão, a atividade econômica acaba tutelada pelo

Estado.

Essas referências que levantamos, mais especificamente nas duas

ações de controle concentrado de constitucionalidade citadas, alerta-

nos para essa divergência acerca da natureza do serviço em questão. Em

uma tentativa de colaborar com o debate, partamos para uma análise

dos conceitos propriamente ditos.

O Conceito de Serviço Público

Trabalharemos, a partir de agora, o conceito do termo “serviço pú-

blico”. As diversas formas de desempenho das atividades de estado, seja

em seu sentido estrito quando prestada pelo próprio estado, seja em seu

sentido amplo quando desempenhada pela iniciativa privada3, é que traz

2. Conclusão extraída da explicação apresentada pelo ministro Eros Grua na ADI 1.007,

mais especificamente às fls. 18-21.

3. A diferenciação entre os conceitos “atividade econômica em sentido estrito” e “ati-

vidade econômica em sentido amplo” são trazidas por Eros Grau (2003, p. 91) em sua obra

A Ordem Econômica na Constituição de 1988, 8. ed. São Paulo, Malheiros. O autor faz uma

distinção interessante, pela qual considera o conceito atividade econômica em sentido amplo

um gênero, da qual são consideradas espécies os conceitos de serviço público e atividade

econômica em sentido estrito. O estado pode desempenhar atividades monopolizadas que,

a priori, podem ser caracterizadas como atividades privadas, ou melhor, como atividades a

serem prestadas pela iniciativa privada. O professor de Direito Econômico citado chega a

caracterizar essa atividade como sendo de intervenção estatal, a “atuação do estado além da

esfera do público, ou seja, na esfera do privado (área de titularidade do setor privado)”, carac-

terizando o termo “intervenção” ainda como “a intervenção na esfera de outrem”. Todavia, o

estado desempenha também atividades que são inerentes à sua essência, que são a base de sua

razão e existência. A prestação de serviços públicos é um exemplo desse tipo de, nas palavras

do professor Eros, atividade estatal legítima, não caracterizada como intervenção, pois é jus-

tamente uma função inerente, uma tarefa precípua do ente público. É através da prestação de

serviços públicos que a interação entre o estado e a sociedade encontram seu ponto de maior

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sentido à existência dessa relação entre estado e sociedade, tão estudada

desde o século XVII, a partir das teorias de contrato social.

É com as palavras da professora Cristiane Derani (2002, p. 61) que

podemos corroborar nossa tese, quando afirma que: “O estado encontra

sua legitimidade nos serviços que presta à coletividade. O poder público

não pode se legitimar pela sua origem, mas somente pelos serviços que

presta conformemente às regras do direito”.

Assim, não há como dissociar a existência do estado da sua finali-

dade primordial, que visa à satisfação dos interesses da sociedade bra-

sileira.

Hely Lopes Meirelles (2001, p. 116) vem caracterizar o conceito de

administração pública, em sentido material, como o conjunto de fun-

ções necessárias ao serviço público em geral. Ressalta ainda que em

acepção operacional, a administração seria todo o aparelho do estado

preordenado à realização de serviços, visando à satisfação das necessida-

des coletivas. Das presentes assertivas podemos constatar que uma das

principais metas da administração pública é a realização das necessida-

des da sociedade.

O conceito de serviço público nasce na França, com León Duguit

(1923, p. 54) e a chamada Escola de Serviço Público, para quem esse ser-

viço é o fundamento, a premissa do poder governamental. Em sua famosa

obra Traité de Droit Constitutionnel, o autor chega a subordinar o direito

administrativo, seus princípios e bases à noção de serviço público4.

O autor classifica o estado como sendo uma cooperação de serviços

públicos que são organizados e controlados pelos governantes, o que

demonstra a necessidade de disponibilidade do estado para a prestação

do serviço em questão.

tangenciamento. É através da prestação desses serviços públicos que o estado é capaz de fazer

valer a execução de suas políticas públicas planejadas que visem à promoção dos direitos.

4. De acordo com o autor: “No berço da Nação, no limite do território ocupado por essa

nação os governantes devem empregar suas forças para organizar e controlar o funcionamen-

to dos serviços públicos. Assim, os serviços públicos são um elemento do Estado”. (Tradução

própria.)

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André de Laubadère (1988, p. 19) relaciona diretamente a noção

de serviço público com a noção de interesse geral, que pode vir a ser

traduzido pela noção de interesse público5. Assim, o conceito de serviço

público afirma-se como sendo a própria existência do direito adminis-

trativo, a base de formação do Estado contemporâneo que se aperfeiçoa

na busca das garantias das liberdades individuais e coletivas.

Parece-nos que o conceito de serviço público só tende a ser aperfei-

çoado na medida em que o estado liberal, seguido das revoluções sociais

do século XIX e da presença do estado de bem-estar social no século XX,

surge na tentativa de garantir direitos individuais e sociais.

Leon Duguit (1923, p. 54) continuará defendendo as delimitações

da ação estatal que devem ter como fulcro a plena garantia das liberda-

des individuais. Se o estado agir de maneira a privilegiar indivíduo ou

minoria, estará agindo em desacordo com o interesse público6.

E, assim, o autor condiciona a correta forma de atuação estatal à

prestação dos serviços públicos, cujo escopo é justamente, nas palavras

do autor francês, o desenvolvimento e a interdependência social, que é

de tal natureza que só pode ser realizada a partir da intervenção da força

governamental7.

Essa subordinação da ação estatal à prestação de serviços públicos

ganha linearidade a partir do momento em que as ações do Estado pas-

5. O autor afirmará: “O elemento essencial da definição do serviço público é a noção

de interesse geral. O serviço público tem por finalidade der satisfação ao interesse público. O

Estado exerce uma atividade em serviço público ao invés de entregá-la à iniciativa privada

por entender que o interesse público envolvido na questão é incompatível com os interesses

da iniciativa privada. É assim, a satisfação de um interesse geral que justifica e move o serviço

público. Esta ideia define serviço público e o distingue dos interesses privados da Adminis-

tração”. (Tradução própria.)

6. Na mesma obra citada, o autor francês menciona: “Les gouvernants [...] ne peuvent

em aucune façon faire une chose qui, pour une classe, une minorité ou même um Seul in-

dividu, serait um entrave quelconque a la satisfaction des besoins communs a tous les hom-

mes”, ou seja, não é possível ao agente político agir em benefício de uma classe ou um grupo

minoritário de pessoas, em detrimento à defesa do interesse comum a todos os homens. Essa

assertiva corrobora a tese de que o serviço público está diretamente relacionado à noção de

interesse público.

7. Idem, p. 55.

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sam a ser limitadas, não podendo ser arbitrárias e contrárias à defesa dos

interesses coletivos e individuais.

Trata-se da noção de responsabilidade do estado perante seus atos,

que ganha contorno a partir das revoluções liberais dos séculos XVII e

XVIII, fundamentada na ideia de defesa da liberdade e propriedade dos

indivíduos, que finalmente ganha consistência e forma a partir das revo-

luções sociais vividas no mundo no século XIX.

Desta forma, passa a estar presente o fundamento de que o estado

pode ser responsabilizado por atos praticados por seus agentes políti-

cos ou públicos. Essa noção advém de teorias modernas, encontrando

maior respaldo a partir das famosas decisões do Conselho de Estado

francês, que traz à baila a noção de responsabilidade do estado perante

a sociedade e encontra seu marco no famoso caso “Decisão Rothschild”,

que data de 18558.

Apenas após a Revolução Industrial do século XIX, do surgimento

dos movimentos sociais e dos direitos que chamamos de segunda gera-

ção, ou seja, os direitos sociais e coletivos, é que passamos a ter um estado

balizado pelos direitos dos cidadãos, um estado ciente dos seus deveres e

obrigações e, consequentemente, ciente da sua responsabilidade.

As constituições formuladas a partir desse período passaram a as-

segurar os direitos e garantias individuais e coletivos, bem como os de-

veres do poder público como um instrumento interventor e gerador de

políticas de bem estar social que garantissem os direitos do homem.

Nas palavras do professor José Cretella Jr. (2002, p. 231):

O direito francês corrige o princípio da irresponsabilidade do poder público, admitindo a possibilidade de uma responsabilização pessoal dos funcionários, por

8. A decisão proferida pelo Conselho de Estado francês parte do raciocínio de que cabe

à administração, sob o império da lei, regular as condições do serviço público que por ela deva

ser assegurado. Deve a administração assegurar a boa relação do serviço que é prestado entre

os agentes públicos que o executam e a população que por ele é beneficiada. Foi incisiva a de-

cisão desse caso no sentido de que essa relação entre o estado e a sociedade não deve ser consi-

derada e analisada no âmbito do direito civil, como acontece nas relações de particular contra

particular. Por se referir à responsabilidade do Estado, em caso de culpa, negligência ou erro

cometido por um agente da administração, é lícito que seja tratada por regras diferentes.

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atos relativos as suas funções diante das jurisdições civis, mas o artigo 75 da Cons-tituição do Ano VIII, que subsiste depois desta, subordina o exercício da ação de responsabilidade a uma autorização dada pelo Conselho de Estado.

Segundo o professor Edimir Netto de Araújo (1975, p. 4), a partir

das sentenças prolatadas pelo Tribunal de Conflitos na época de 1873,

fica reconhecida a legitimidade desse tribunal para decidir sobre os ca-

sos de responsabilidade do estado.

Isto corrobora a tese do fortalecimento do direito administrativo

como um ramo autônomo da ciência do direito. Mais do que isso, a con-

solidação do conceito de responsabilidade do estado perante seus atos

fortalece também a noção do conceito de serviço público, pois se trata

de uma atividade inerente do estado, que tem justamente por objetivo a

promoção da segurança dos direitos individuais e sociais.

Leon Duguit (1923, p. 63) novamente traz à tona a concretude des-

sa relação existente entre a responsabilidade do estado e a prestação do

serviço público, alegando que se este não for executado em benefício da

comunidade, é responsabilidade do estado reverter essa situação9.

Evidente, pois, a relação direta que passa a existir a partir do aper-

feiçoamento do conceito de responsabilidade do estado e a prestação de

serviço público. Por muito tempo a noção de ligação estrita entre ambos

exigiu do Estado o resguardo de determinadas atividades monopolís-

ticas, a fim de garantir a promoção de direitos individuais e sociais, no

escopo de não ser responsabilizado pelo desrespeito a esses princípios.

Todavia, a partir do desenvolvimento do estado e de suas relações

com o meio social, a atividade de prestação de serviço público foi, paula-

tinamente, sendo reformulada e compartilhada entre estado e iniciativa

privada. Muitas vezes dentro da própria administração pública, o con-

ceito de atividade privada servia para diferenciar o serviço público de

outras funções exercidas pelo próprio estado.

9. Ao afirmar, na mesma obra já citada que os serviços públicos são estabelecidos e

devem funcionar de acordo com o interesse de todos. Se o seu funcionamento irregular cau-

sar prejudicialidade ao particular, o prejuízo deve ser suportado pelos bens que são afetos à

prestação do serviço determinado ou pelo conjunto de bens afetos ao serviço público, carac-

terizando-se dessa forma a responsabilidade do estado.

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Os autores franceses citados analisam esse aspecto com muita acui-

dade em suas clássicas obras do direito administrativo. Laubadère (1988,

p. 20) é enfático ao afirmar a possibilidade de o estado vir a prestar ser-

viços públicos que visem ao ganho financeiro, afirmando que os serviços

públicos industriais ou comerciais estão classificados em uma categoria

especial que permite a preocupação de possível ganho financeiro.

Essa ideia toma corpo no século XX, também no Brasil, que passa

a contar com um parque industrial público que viria a prestar serviços

de relevância para o país, sob a ótica da comunhão entre desempenho e

exploração da atividade econômica.

Duguit (1923, p. 57) ressalta que a característica do serviço pú-

blico não implicará no seu monopólio pelo governo ou seus agentes,

podendo ser prestado pelo particular, citando como exemplo o ensino

e a assistência.

O autor afirma que é relativamente fácil enumerar as diversas ati-

vidades que servem de suporte ao serviço público, não sendo inútil ob-

servar que uma de suas características não implica em monopólio ao

proveito dos governos e seus agentes e que certas atividades podem ser

livremente exercidas pelo particular. Além disso, chega a discordar de

grande parte da doutrina francesa que entende não ser possível o exercí-

cio de serviços públicos pela iniciativa privada.

A doutrina clássica do direito administrativo, porém, mostra-se

atenciosa com a relação direta entre o desenvolvimento da sociedade e a

complexidade para a prestação de determinados serviços. Leon Duguit

(1923, p. 57) é quem também chama a atenção para o assunto:

Tudo o que podemos alegar é que, na medida em que a civilização se desen-volve, o número de atividades suscetíveis de servir de suporte aos serviços públicos aumenta, e o número de serviços públicos parece crescer nesta proporção. É lógico [...] à medida que a civilização progride, a intervenção dos governantes deve ser mais frequente, pois a ele cabe realizar os interesses da civilização.

Nessa lógica, temos o desenvolvimento social atrelado à ideia de

maior intervenção do estado por meio da prestação de serviços públicos.

Assim pensava a doutrina clássica e é esse um ponto essencial a ser ana-

lisado: em que medida deve o estado atuar e até que pondo a delegação

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de um serviço ao ente privado não descaracteriza o conceito de serviço

público?

Podemos constatar, à luz do quanto exposto, que a participação do

particular no desempenho de atividades revestidas de interesse público

não é algo original da doutrina recente. A própria tradição da Escola

de Serviço Público francesa trabalha com a hipótese da participação da

iniciativa privada na prestação de serviços públicos sem que, com isso,

tal atividade venha a ser descaracterizada.

A Educação como Direito Público Subjetivo

Resta saber, então, a natureza do direito à educação. Caracterizá-lo

como um direito público subjetivo ou não importa em diferentes atitu-

des, por parte do estado, na sua promoção e efetivação.

O direito à educação, considerado pela doutrina como sendo de se-

gunda geração ou segunda dimensão, é resultado de conquistas sociais,

fruto das lutas dos homens e dos povos ao longo de séculos e séculos.

Se, por um lado, o fim do período absolutista, no início da Idade

Moderna, cristalizado com as revoluções liberais na França e na Amé-

rica, trataram de positivar os primeiros direitos nas declarações que

elaboraram, sendo esses os direitos considerados de primeira geração

(Vida, Liberdade e Propriedade), é certo que a evolução humana e do

direito não se estagnaram nesse momento.

Os movimentos sociais que eclodiram na Europa no período pós

Revolução Industrial deram à constitucionalização de direitos um novo

caminho. Se, em um primeiro momento, positivaram-se os direitos in-

dividuais, ou seja, aqueles que traziam garantias aos indivíduos frente a

um estado despótico, em um segundo momento, o que se pretendeu foi

positivar direitos que não só asseguravam a integridade física e patrimo-

nial do indivíduo, mas também a integridade de seus valores sociais e

culturais, tornando-o mais cidadão e integrante do mundo.

Costuma-se dizer, e isso sem exagero, que os direitos de primeira

geração, segundo Norberto Bobbio (2000, pp. 320-370), podem ser con-

siderados negativos, porquanto exigiriam uma omissão do estado frente

aos direitos individuais conquistados. Nessa esteira, caberia ao estado

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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respeitar esses direitos, não os afrontado, mas simplesmente não agindo

para fazê-los valer, uma vez que se tratam de direitos naturais, inerentes

ao homem.

Já os direitos de segunda geração podem ser considerados positivos,

por exigirem do estado uma ação específica para a sua afirmação. É o

próprio ente público, através da prestação de serviços públicos, ou seja,

por sua atuação e não mais por sua omissão, que dará guarida a essa

nova gama de direitos.

Tem-se que, daí, a história seguiu seu curso e positivou aqueles di-

reitos da fraternidade ou até mesmo de terceira geração, principalmen-

te após o fim do período das grandes guerras, quando a humanidade

buscou a construção de uma sociedade mais justa, humana e fraterna,

consubstanciada na criação da Organização das Nações Unidas em 1945

e com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948 (Cf. Com-

parato, 2006, p. 320).

É de se ver, pois, que a promoção dos direitos de segunda geração,

de igualdade ou sociais demandam do estado uma atuação constante,

e que depende da efetiva prestação de serviços públicos para verem-se

consolidados.

De acordo com o professor Gilberto Bercovici (2001, p. 132):

[...] o objetivo primordial do estado social, assim, torna-se a busca da igualda-de, com a garantia da liberdade. O estado não se limita mais a promover a igualdade formal, a igualdade jurídica. A igualdade procurada é a igualdade material, não mais perante a lei, mas através da lei. O que o estado busca garantir é a igualdade de oportunidades, o que implica na liberdade, justificando a intervenção estatal.

Assim, ao positivar os direitos sociais, a Constituição Cidadã de

1988 não poderia agir diferente. E justamente por esse motivo é que

constitucionalizou o direito à educação como um direito de todos, e

dever do Estado, consoante consta do caput do art. 205.

Essa questão acabou reconhecida pela Suprema Corte do país,

mais recentemente com a decisão proferida no Recurso Extraordinário

538.924/GO, relator ministro Ricardo Lewandowski: “A promoção dos

direitos de segunda geração, de igualdade ou sociais, demandam do Es-

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tado uma atuação constante, e que depende da efetiva prestação de ser-

viços públicos para verem-se consolidados”.

Nas palavras de José Afonso da Silva (2007, p. 785):

A Constituição de 1988 eleva a educação ao nível dos direitos fundamentais do homem, quando a concebe como um direito social (art. 6o) e direito de todos (art. 205), que, informado pelo princípio da universalidade, tem que ser comum a todos. [...]

Vale dizer: todos têm direito à educação, e o Estado tem o dever de prestá-la, assim como a família. Isso significa, em primeiro lugar, que o estado tem que se apare-lhar para fornecer, a todos, os serviços educacionais, oferecer ensino, de acordo com os princípios e objetivos estatuídos na Constituição. Essas normas constitucionais – re-pita-se – tem, ainda, o significado jurídico de elevar a educação à categoria de serviço público essencial, que ao poder público impende possibilitar a todos (grifos nossos).

E, ao fazer uma interpretação sistêmica de nossa Constituição, não

deixou o constitucionalista de observar que,

A consecução prática dos objetivos da educação, consoante o art. 205 – pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qua-lificação para o trabalho –, requer que o poder público organize os sistemas de ensino público, para cumprir com o seu dever constitucional para com a educação, mediante prestações estatais que garantam, no mínimo, os serviços consignados no art. 208 (grifos nossos).

Nessa linha, cumpre-nos analisar o conceito de direito público sub-

jetivo e a sua relação direta com o direito à educação.

Afirmamos que esse direito de segunda geração tende a exigir do

estado uma ação, ao contrário da omissão atinente aos direitos de li-

berdade. Mas essa ação diz respeito apenas ao indivíduo que quer ver

um direito assegurado ou a uma coletividade? Porque se falamos em

direitos sociais, não há falar em direitos de um, mas sim do direito de

uma coletividade.

Nesse sentido, como bem observa Clarice Seixas Duarte (2003, p.

74): “Quando a teoria dos direitos públicos subjetivos foi elaborada,

pensava-se apenas na possibilidade da titularidade individual de direitos

contra o Estado, mais especificamente, contra a administração pública.

Hoje é preciso examinar se os titulares dos direitos subjetivos, no lado

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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ativo, podem ser apenas os sujeitos isoladamente considerados ou uma

coletividade”.

É dizer, pois, que a teoria do direito subjetivo nasce justamente

para assegurar aos indivíduos que o Estado não venha a atuar em des-

favor dos direitos de liberdade. Resta saber se esse direito perece ou não

quando estudamos os direitos de segunda geração.

Para a autora citada, não há falar em direito subjetivo sem norma

que o preveja, isto é, sem a existência do direito objetivo que, por sua vez,

pode estar positivado ou não. Assim, ao citar Jhering e sua importância

para a evolução da metodologia jurídica, a autora chama a atenção para

o fato de, para que saibamos ou não se estamos diante de um direito

público subjetivo, “é preciso verificar se a lei que beneficia o indivíduo

em questão foi feita para seu interesse individual ou apenas no interesse

público” (Duarte, 2003, p. 118). Nesse sentido, é o fim, ou o sentido te-

leológico da lei que deve ser buscado.

Os métodos práticos de interpretação já assim nos ensinaram. É di-

zer que “as normas devem ser aplicadas atendendo, fundamentalmente,

ao seu espírito e à sua finalidade” (Barroso, 2006, p. 138).

A positivação dos direitos sociais tem por objetivo alcançar uma

coletividade, não apenas o indivíduo. Com isso deve o estado, em uma

democracia, envidar todos os esforços necessários para fazer valer esses

direitos.

Interessante notar que o regime democrático, além dos benefícios

trazidos com a sua criação, como a legítima representação popular, a pos-

sibilidade de se refletir, com maior eficiência, a vontade da população nas

diretrizes políticas é capaz, ainda, de trazer mais inovações positivas.

Refiro-me especificamente ao fato de o regime democrático, quanto

mais evoluída for a democracia de um país, permitir a manutenção de

programas e políticas públicas que passam a ser de estado e não mais de

governo.

Não é novidade afirmarmos que a educação tem um tratamento

diferenciado no texto constitucional no que se refere à destinação de

recursos públicos. O próprio art. 212 da Carta Maior trata especifica-

mente do montante a ser aportado por cada ente da federação na área

da educação.

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Embora a não afetação de recursos públicos seja um imperativo or-

çamentário, nas palavras de José Afonso da Silva (2007, p. 799): “Nesse

caso (do art. 212), a vinculação aparece como exceção ao princípio da

não afetação. [...] No entanto, a própria norma tem sentido extensivo, na

medida em que a vinculação não é de valor fixo, mas de um mínimo”.

Buscou o constituinte elevar o direito à educação a um patamar de

destaque em relação aos outros encargos a serem providos pelo estado.

Com isso, todas as políticas públicas voltadas para o campo da promo-

ção desse direito social não podem estar divorciadas desse contexto.

Para melhor entendermos o raciocínio, importa pontuarmos o

conceito de política pública. Para a professora Cristiane Derani (2002, p.

239), trata-se de “atos oriundos das relações de forças na sociedade. São

as diversas formas de sua materialização. [...] As políticas são chamadas

de públicas, quando estas ações são comandadas pelos agentes estatais e

destinadas a alterar as relações sociais existentes”.

Para Muller e Surel (1998, p. 16), trata-se de um “programa de ação

governamental para um setor da sociedade ou um espaço geográfico”,

que para obter o êxito necessário, precisa perdurar não só no espaço,

mas também no tempo.

Eis o sentido do direito à educação para a Constituição que hora com-

pleta os seus vinte anos. Um direito a ser oferecido pelo Estado que, por

meio de políticas públicas, deve prestá-los aos diretamente interessados.

Além do mais, foi o próprio texto constitucional que em seu art.

208, § 1o, positivou o acesso ao ensino obrigatório e gratuito como um

direito subjetivo. Ora, se o acesso ao ensino é um direito subjetivo, colo-

cando-se como uma obrigação a ser provida, como não entender como

subjetivo o direito à educação nas instituições privadas, se elas só exis-

tem para prestar um serviço quando o Estado não é capaz de realizá-lo

para toda a coletividade?

Melhor dizendo, se o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é um

direito subjetivo, e não se trata de um direito individual, mas social,

como não caracterizar a educação, independentemente dos meios como

é prestada, como um direito público subjetivo?

Ademais, o próprio Supremo Tribunal Federal parece já ter pacifica-

do a questão. É o que podemos constatar ao analisar o Recurso Extra-

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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ordinário 472.207/SP, relator ministro Celso de Mello: “O direito à edu-

cação necessita ter eficácia. Sendo considerado como um direito público

subjetivo do particular, ele consiste na faculdade que tem o particular de

exigir do Estado o cumprimento de determinadas prestações”.

No mesmo sentido, RE 467.255/SP e RE 410.715/SP, ambos de relato-

ria do ministro Celso de Mello, também na decisão proferida no Agravo

de Instrumento 476.367/SP, o então ministro Sepúlveda Pertence tam-

bém concebeu o direito à educação como sendo subjetivo:

O juiz deu ao caso solução adequada, não tendo a sentença o condão de oca-sionar ingerência do poder judiciário na esfera da administração pública, mas ape-nas o de garantir a efetivação do dever constitucional de fazer respeitar-se direito público subjetivo. Ao descumprir tais preceitos legais a autoridade violou direito líquido e certo da criança.

Percebe-se, pois, que a questão tem sido objeto de atenção de nossa

Suprema Corte e a tendência é do reconhecimento do direito à educação

como sendo público e subjetivo. Por essa razão, não obstante ser pres-

tado pela iniciativa provada, o serviço educacional, na sua essência, não

perde as características do serviço público.

Conclusão

A partir da celeuma estabelecida acerca da natureza jurídica do ser-

viço de educação prestado pelas instituições privadas, faz-se necessário

pontuarmos tratar-se ou não de um serviço público típico ou outra no-

menclatura.

É de se ver que no direito brasileiro, essa questão leva à cisão de

pensamento entre os estudiosos do direito administrativo e do direito

econômico. Para os administrativistas de maneira geral, o que define se

o serviço é público ou não é a titularidade de quem o presta, enquanto

que para os teóricos do direito econômico, o que vale é a natureza do

serviço prestado.

A clássica teoria do serviço público trabalha com a hipótese de par-

ticipação da iniciativa privada na prestação desse tipo de atividade, sem

que isso descaracterize a sua natureza. Em outras palavras, não importa

a titularidade de quem o presta, mas a sua natureza específica.

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Vimos também que a educação pode ser considerada um direito

público subjetivo e, com isso, alçar-se ao patamar de um direito funda-

mental. Assim, a sua efetivação pela administração torna-se algo impe-

rioso.

Diante de tudo o que aqui foi colocado, nos inclinamos no sentido

de caracterizar como serviço público a prestação educacional, mesmo

quando efetivada pela iniciativa privada. Não obstante a delegação dessa

função, pelo Estado, dar-se por meio do precário instrumento da auto-

rização administrativa, há um controle direto sobre a atividade prestada

pelo particular, apenas justificável diante da grandeza e importância do

direito fundamental tutelado.

Assim, o interesse público envolvido coloca o direito à educação

como sendo público e objetivo. Mais do que isso, o direito à educação

terá sempre a natureza de um serviço público, devendo assim ser en-

tendido sob pena desse serviço tornar-se negociável economicamente, o

que – é certo – traria prejuízos incomensuráveis à sociedade brasileira.

Referências Bibliográficas

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Introdução

A trajetória histórica dos direitos humanos é um forte indicador da

constante preocupação do homem com a educação. Desde a Declaração

francesa de 1789, impõe-se a necessidade de assegurar acesso à educação

e aos meios direcionados à emancipação intelectual e política do ser hu-

mano, integrante da comunidade social.

Nos dias atuais, é indiscutível o reconhecimento do direito à edu-

cação como um direito fundamental inserido na cotidiana realidade so-

cial e individual. A garantia deste direito envolve não apenas a instrução

como um processo de desenvolvimento individual, mas, também o di-

reito a uma política educacional que ofereça aos integrantes da comuni-

dade social instrumentos a alcançar os seus fins (Caggiano, 2002).

Todavia, nem sempre foi assim o tratamento dado à educação.

No panorama nacional brasileiro, o reconhecimento constitucional

do direito à educação ganhou força somente a partir da Constituição

Brasileira de 1934. Promulgado o texto constitucional, a formulação de

uma política educacional e a execução de um plano científico, específico

A Expansão do Ensino Superior no Brasil: A Opção pelo Privado

Fernanda Montenegro de Menezes

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FERNANDA MONTENEGRO DE MENEZES

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para executá-la, tornou-se um imperativo a Cargo do Conselho Nacio-

nal de Educação (art. 152 do texto de 19341).

O caráter nacional da atividade educacional enquanto obra comum

dos entes federados firmou-se, no entanto, a partir da atribuição confe-

rida à União para traçar, privativamente, as diretrizes da educação na-

cional e pela divisão de encargos na área da educação (art. 150 do texto

de 1934):

Art. 150. Compete à União: a. fixar o plano nacional de educação, compreen-sivo do ensino de todos os graus e ramos, comuns e especializados; e coordenar e fiscalizar a sua execução, em todo o território do país; b. determinar as condições de reconhecimento oficial dos estabelecimentos de ensino secundário e complementar deste e dos institutos de ensino superior, exercendo sobre eles a necessária fiscali-zação; c. organizar e manter, nos Territórios, sistemas educativos apropriados aos mesmos; d. manter no Distrito Federal ensino secundário e complementar deste, superior e universitário; e. exercer ação supletiva, onde se faça necessária, por defi-ciência de iniciativa ou de recursos e estimular a obra educativa em todo o país, por meio de estudos, inquéritos, demonstrações e subvenções.

Art. 151. Compete aos Estados e ao Distrito Federal organizar e manter sis-temas educativos nos territórios respectivos, respeitadas as diretrizes estabelecidas pela União (grifo nosso).

Neste sentido, a Constituição de 1934 representou um marco para

efetivação do direito à educação como norma jurídica fundamental no

Brasil, considerando que possibilitou a fixação de importantes atribui-

ções ao Estado e, em especial, a previsão de construção de um plano

nacional de educação.

Ao longo de décadas, portanto, a evolução e o reconhecimento do

patamar da educação como fator essencial no desenvolvimento do in-

divíduo e da coletividade social permitiu que o direito à educação fosse

inserido no nicho dos direitos fundamentais, tornando-se elemento es-

sencial de toda e qualquer Constituição.

1. “Art. 152. Compete precipuamente ao Conselho Nacional de Educação, organizado

na forma da lei, elaborar o plano nacional de educação para ser aprovado pelo Poder Le-

gislativo e sugerir ao Governo as medidas que julgar necessárias para a melhor solução dos

problemas educativos bem como a distribuição adequada dos fundos especiais”.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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Mais recentemente, ainda em território nacional, a Constituição

Federal de 1988 – no seu extenso rol de direitos e garantias – erigiu o

direito à educação ao catálogo dos direitos fundamentais. Este impor-

tante leque de normas educacionais positivadas pode ser identificado,

portanto, ao longo de todo o texto constitucional brasileiro.

Neste contexto, a doutrina e a jurisprudência são contundentes em

relação tratamento do direito e educação, conforme aponta a decisão do

Ministro Ricardo Lewandowski no Recurso Extraordinário 500.171-7 –

Goiás:

A vigente Carta Magna positivou o direito à educação, retirando-o do limbo destinado às obrigações genéricas do Estado para com a cidadania. No dizer de José Afonso da Silva ela guindou a educação ao nível dos direitos fundamentais do homem, quando a concebe como um direito social (art. 6o) e direito de todos (art. 205), que, informado pelo princípio da universalidade, tem que ser comum a todos.

A educação, com efeito, mereceu especial relevo no texto magno, configuran-do, a teor do art. 205, não apenas um direito de todos, mas um dever do Estado e da família, sendo promovida e incentivada com a colaboração da sociedade. Ela visa, segundo estabelece o artigo em tela, ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu pre-paro para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (grifo nosso).

Que o direito à educação é um direito fundamental, não há nenhu-

ma dúvida. Busca-se, no entanto, através da criação de políticas públicas

e programas governamentais a implementação e efetivação deste direito.

No presente estudo, faremos, no entanto, um recorte. Buscaremos

destacar as formas mais utilizadas pelo governo para efetivação do di-

reito à educação, mais especificamente, para efetivação do direito à edu-

cação superior através de programas implementados em instituições

privadas, bem como analisar o processo histórico de surgimento e de

expansão do ensino superior privado no Brasil. É o que verificaremos

na próxima seção.

O Cenário Brasileiro do Ensino Superior Privado

No Brasil, ao longo de muitas décadas, prevaleceu a quase exclusi-

vidade da atividade estatal na área do ensino superior. Durante muitos

anos este quadro pouco se alterou: a ideia de participação da iniciativa

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privada na área educacional não era facilmente aceita. A ausência de

previsão legal da exploração da atividade educacional pela iniciativa

privada nas Constituições Brasileiras de 1824 (Império) e de 1891 (Re-

pública) reforça a ideia do predomínio da educação superior estatal du-

rante um longo período que marcou a história nacional2. Da Colônia à

República o ensino superior foi eminentemente público e privativo do

poder central (Ranieri, 2000).

Pioneira no reconhecimento dos estabelecimentos particulares

de ensino, a Constituição de 1934, em seu artigo 150, caput, previu “o

reconhecimento dos estabelecimentos particulares de ensino somente

quando assegurarem a seus professores a estabilidade, enquanto bem

servirem, e uma remuneração condigna”. As Constituições de 1937 e de

1946, embora não trouxessem tais condições, proclamaram a liberdade

de ensino à iniciativa privada.

A Lei n. 4.024, de 20 de dezembro de 1961, que deu o primeiro tra-

tamento de diretrizes e bases para o ensino no Brasil, fazia apenas refe-

rência à possibilidade de manutenção de instituições isoladas de ensino

particular. A liberdade de iniciativa particular prevista na LDB de 1961

assegurou às universidades particulares posição de igualdade em relação

às universidades públicas3.

A Constituição Federal de 1967 e a Emenda Constitucional n. 1/69

garantiram expressamente o ensino livre à iniciativa particular, com

previsão de amparo técnico e financeiro dos poderes públicos, inclusive

mediante bolsas de estudos4.

2. O fato do reconhecimento constitucional do direito à educação só ganhar força a

partir da Constituição de 1932 explica a ausência de previsão legal do ensino particular nas

Constituições de 1824 e de 1891. Isto, no entanto, não significa a inexistência de instituições

privadas de ensino superior na época.

3. “Art. 3o O direito à educação é assegurado: I. pela obrigação do poder público e pela

liberdade de iniciativa particular de ministrarem o ensino em todos os graus, na forma de lei

em vigor; [...]. Art. 5o São assegurados aos estabelecimentos de ensino públicos e particulares

legalmente autorizados, adequada representação nos conselhos estaduais de educação, e o

reconhecimento, para todos os fins, dos estudos neles realizados”.

4. Art. 20, § 2o da Constituição de 1967 e art. 19, § 2o da Emenda Constitucional n. 1, de

17 de outubro de 1969.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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Neste contexto, abertura de espaço ao setor privado passou a ser,

nas últimas quatro décadas, uma realidade cada vez mais presente.

Na década de 1960, período em que o país caminhava para a rápida

industrialização, o processo desenvolvimentista eclodiu e sua popula-

ção passou a exigir educação de qualidade para enfrentar os anseios do

novo mercado competitivo e promissor. Neste contexto, as escolas par-

ticulares foram conclamadas pelo Estado a criarem cursos superiores. É

justamente neste período, em pleno regime militar, que se desenvolve a

primeira expansão do nível superior no país, mediante a criação de ins-

tituições de ensino superior privado. Verificou-se, portanto, um tardio

processo de flexibilização do ensino particular (Barros, 2005).

O início da década de 1970 até o final da década de 19905, políticas

fragmentadas, de curto prazo, produziram uma efetiva expansão do sis-

tema educacional (Ranieri, 2000), tanto em razão do regime de financia-

mento público, quanto em relação às autorizações para funcionamento

de novos cursos e instituições privadas, facilitadas devido à crescente

demanda por educação superior.

O cenário atual, no entanto, é diferente. Concomitantemente à ele-

vação dos custos do ensino superior público para o Estado – que não

consegue atender à incessante demanda da população por mais vagas

– assiste-se ao vertiginoso aumento das instituições privadas dedicadas

ao ensino superior.

No Brasil, assim como em toda a América Latina, as recentes mu-

danças no ensino superior têm caminhado para um numero cada vez

maior de vagas no ensino privado e, há quem diga, para o sucateamento

do ensino público6. Para alguns estudiosos, as reformas educacionais, na

América Latina, que tiveram início na década de 1980, período do fim

da ditadura militar em diversos países, culminaram com o estabeleci-

5. A atual Constituição Federal Brasileira de 1988 é expressa ao mencionar que o ensino

é livre à iniciativa privada, atendidas duas condições: cumprimento das normas gerais da

educação nacional e autorização e avaliação de qualidade pelo poder público. O art. 7o, III,

da atual LDB (Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996) acrescenta uma terceira condição:

capacidade de autofinanciamento para as instituições privadas.

6. Neste sentido, ver Righetti e Shober (2004).

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mento de condições econômicas, políticas e sociais fundamentais para

implementação de “reformas neoliberais baseadas no ajuste fiscal, na

privatização e na desregulação do mercado” (yarzábal, 2001).

Como característica destas reformas, houve um desproporcional

acréscimo do número de instituições privadas de ensino superior na

América Latina, em especial no Brasil, Colômbia, Chile, El Salvador e

República Dominicana (Righetti & Shober, 2004), países com altos índi-

ces de desemprego, caracterizados por povos em busca de certificação e

inserção no competitivo mercado de trabalho.

Apesar da crítica deste viés neoliberal adotado pelo Estado, a verda-

de é que, conforme restará demonstrado, o Estado não teria condições

de suprir as vagas de ensino superior na velocidade exigida pela socieda-

de, nas últimas décadas, de acordo com a crescente demanda por ensino

superior de qualidade.

A sociedade brasileira clama pelo incremento no número de vagas

nas universidades. Sobretudo com a expansão da economia e a inser-

ção de tecnologias mais sofisticadas nos meios de produção, o trabalho

qualificado passou a ser a regra e não a exceção, como outrora. É neste

contexto que se insere a Reforma Universitária e, como consequência,

o Prouni – Programa Universidade para Todos, como opção do Estado

pela democratização do ensino, por meio das instituições privadas.

A Política de Expansão de Vagas nas Instituições Privadas:

O Caso Prouni (Lei n. 11.096, de 20 de dezembro de 2005)

O Prouni, instituído pela Medida Provisória 213/04, convertida na

Lei n. 11.096, de 20 de dezembro de 2005, é destinado à concessão de

bolsas de estudo integrais e bolsas de estudo parciais de 50% ou de 25%

para estudantes de cursos de graduação e cursos sequenciais de forma-

ção específica, em instituições privadas de ensino superior, com ou sem

fins lucrativos7.

7. Art. 1o da Lei 11.096, de 13 de janeiro de 2005, que institui o Programa Universidade

para Todos – Prouni.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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O Programa abrange duas modalidades de benefícios: bolsas de

estudo integral, concedida a brasileiros não portadores de diploma de

curso superior, cuja renda familiar mensal per capita não exceda o valor

de até 1,5 salário-mínimo e as bolsas de estudo parciais de 50% ou de

25%, concedidas a brasileiros não-portadores de diploma de curso su-

perior, cuja renda familiar mensal per capita não exceda o valor de até

três salários-mínimos, mediante critérios definidos pelo Ministério da

Educação (art. 1o, § 1 o e § 2o da Lei n. 11.096).

De acordo com o artigo 2o da Lei n. 11.096, a bolsa de estudos será

destinada a: 1. estudante que tenha cursado o ensino médio completo

em escola da rede pública ou em instituições privadas na condição de

bolsista integral; 2. estudante portador de deficiência, nos termos da lei

e 3. professor da rede pública de ensino, para os cursos de licenciatura,

normal superior e pedagogia, destinados à formação do magistério da

educação básica, independentemente da renda a que se referem os § 1o e

2o do art. 1o desta Lei.

Em troca da concessão de bolsas de estudo, as instituições de ensino

privado que aderem ao programa recebem uma série de benefícios fis-

cais: isenção do Imposto de Renda das pessoas jurídicas, da contribuição

social sobre o lucro líquido, contribuição social para financiamento da

seguridade social e contribuição para o programa de integração social,

durante todo o período de vigência do termo de adesão.

A proposta, apesar de aprovada e implementada, encontra-se sob

análise da mais alta Corte Constitucional Brasileira. O Supremo Tribu-

nal Federal deverá verificar, em meados de 20098, a legalidade do sistema

de cotas criado pelo Prouni. No dia 2 de abril de 2008, o ministro Car-

los Ayres Brito votou pela constitucionalidade do programa, contestado

pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confe-

nem), pelo Partido dos Democratas (DEM) e pela Federação Nacional

dos Auditores Fiscais da Previdência Social (Fenafisp) nas Ações Diretas

de Constitucionalidade n. 3330, 3314 e 3379. O julgamento foi inter-

8. Segundo informações retiradas do site do Supremo Tribunal Federal, a legalidade do

Programa poderá passar pelo crivo do Tribunal ainda no ano de 2008.

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FERNANDA MONTENEGRO DE MENEZES

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rompido pelo ministro Joaquim Barbosa, que pediu vista do processo,

para melhor análise da questão.

Além da ausência de requisitos constitucionais de relevância e ur-

gência necessários para a edição da Medida Provisória 213/04 que ins-

tituiu o programa, os textos trazidos pelas ADINs alegam ser o Poder

Executivo incompetente para “ofertar” renúncia fiscal como contrapar-

tida para adesão ao programa a entidades beneficentes de assistência

social que, pela Constituição Federal, já têm imunidade tributária. Tais

argumentos foram absolutamente rechaçados tanto no voto do ministro

Ayres Britto, quanto no parecer do então Procurador Geral da Repúbli-

ca, Cláudio Fonteles, elaborado na ADI 33309.

Outro argumento trazido pelas ADINs é de que o art. 2o da Lei n.

11.096/05 violaria o caput e os incisos I e LIV do art. 5º da Constituição Fe-

deral (princípio constitucional da isonomia e da não discriminação), ao

conceder bolsas integrais aos alunos da rede pública de ensino e estabele-

cer o critério racial para preenchimento dessas vagas. Segundo a decisão

do ministro Ayres Britto, mais uma vez, não assiste razão às autoras:

O substantivo “igualdade”, mesmo significando qualidade das coisas iguais (e, portanto, qualidade das coisas idênticas, indiferenciadas, colocadas no mesmo plano ou situadas no mesmo nível de importância), é valor que tem no combate aos fatores de desigualdade o seu modo próprio de realização. Quero dizer: não há outro modo de concretizar o valor constitucional da igualdade senão pelo decidido combate aos fatores reais de desigualdade. O desvalor da desigualdade a proceder e justificar a imposição do valor da igualdade.

Com efeito, é pelo combate eficaz às situações de desigualdade que se concre-tiza, em regra, o valor da igualdade (valor positivo, aqui, valor negativo ou desvalor, ali). Isto porque no ponto de partida das investigações metódicas sobre as coisas ditas humanas, ou seja, até onde chegam as lentes investigativas dos politicólogos, historiadores e sociólogos acerca das institucionalizadas relações do gênero huma-no, o que se comprova é um estilo de vida já identificado pela tarja das desigualda-

9. Quanto ao primeiro argumento, o procurador geral da República Cláudio Fonteles,

com base na exposição de motivos do Prouni, alegou em seu parecer que 37,5% das vagas nas

faculdades particulares (cerca de meio milhão) estariam ociosas. Neste sentido, tornar-se-ia

imperativo que tais medidas fossem adotadas imediatamente, via medida provisória, em prol

do aumento do número de bolsas de estudos para alunos de baixa renda.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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des (culturais, políticas, econômicas e sociais). O desigual a servir como empírico portal da investigação científica e, daí, como desafio de sua eliminação pelas normas jurídicas.

E ainda:

Nessa vertente de ideias, anoto que a desigualação em favor dos estudantes que cursaram o ensino médio em escolas públicas e os egressos de escolas privadas que hajam sido contemplados com bolsa integral não ofende a Constituição pátria, porquanto se trata de uma descrímen que acompanha a toada da compensação de uma anterior e factual inferioridade. Isso, lógico, debaixo do primacial juízo de que a desejada igualdade entre partes é quase sempre obtida pelo gerenciamento do entre-choque de desigualdades (uma factual e outra jurídica, esta última a contrabalançar o peso da primeira) (grifos nosso).

A questão é controvertida. Segundo estudiosos do tema, o Prouni

violaria sim, de início, o princípio constitucional que assegura a todos os

brasileiros e estrangeiros residentes no país o direito à educação. A “esco-

lha” dos destinatários do programa (conf. art. 2o da Lei n. 11.096/2005),

portanto, feriria diretamente o princípio constitucional que garante

educação a todos. Nesta hipótese, assinala a professora Nina Ranieri, “o

Prouni deveria atender não só aos professores da educação básica, como

também aos da educação infantil” (Abmes, 2004).

Por fim, atacando o último argumento das ADINs, de que o artigo 7o

da Lei n. 11096/05 desrespeitaria o princípio da autonomia universitária

garantida pelo art. 207 da Constituição Federal, o ministro Ayres Britto

é claro:

[...] o Prouni é, salientemente, um programa de ações afirmativas, que se ope-racionaliza mediante concessão de bolsas a alunos de baixa renda e diminuto grau de patrimonialização. Mas um programa concebido para operar por ato de adesão ou participação absolutamente voluntária.

Incompatível, portanto, com qualquer ideia de vinculação forçada. E precisa-mente um programa de adesão ou vinculabilidade espontânea por efeito mesmo daquele princípio da autonomia universitária que é, repise-se, de estatura constitu-cional (art. 207, CF).

Confrontados todos os argumentos que questionam a constitucio-

nalidade do programa Universidade para Todos – Prouni, resta saber

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FERNANDA MONTENEGRO DE MENEZES

212

qual será a interpretação dada pelos outros ministros do Supremo Tri-

bunal Federal para os questionamentos acima explicitados.

Sob o aspecto político, de acordo com Nina Ranieri, verifica-se “[...]

uma retirada do poder público do financiamento direto da educação e

seu descomprometimento com a própria avaliação” (Abmes, 2004). Ob-

serva, ainda, que o programa não se estendeu às instituições de ensino

superior públicas que não gozam de isenção, representando uma falta de

compromisso com a oferta na escola pública de ensino superior.

Neste contexto, o programa favoreceria as instituições privadas de

ensino superior e acabaria por manter o sistema de ensino nos moldes

privatizantes traçados durante a década de 1990. Conforme assinalam

Valente e Helene (2004): “O que o Prouni faz é aumentar as isenções

fiscais para as instituições e ensino superior privadas que, com poucas

exceções, não prestam contas de como as usam, remuneram de forma

ilegal seus sócios, não tem transparência na concessão de bolsas e ma-

quiam balanços” (Valente e Helene, 2004).

Seria, assim, uma medida de impacto popular, privatista, assisten-

cialista e de baixo custo orçamentário.

A questão é mais política do que propriamente jurídica. A verdade

é que, embora represente uma proposta avançada de ocupação de vagas

no ensino privado, o Prouni traz uma noção falsa de democratização do

ensino: não atua em todos os níveis de ensino, não assegura a permanên-

cia do aluno na escola e não avalia a qualidade do ensino ministrado.

A criação do Prouni revela, nitidamente, a atual tendência do Es-

tado brasileiro em relação à educação: o apoio à expansão de vagas nas

instituições privadas superiores, de forma a amenizar o déficit educa-

cional público e a incapacidade do Estado em prover novas vagas na

velocidade que a sociedade contemporânea exige.

A Proliferação de Vagas no Ensino Privado e o Importante

Papel do Estado Fiscalizador

Ainda como reflexo do fenômeno de aumento das vagas no ensi-

no privado, observou-se, desde a segunda metade da década de 1990,

uma maior flexibilidade do MEC na autorização de abertura de novas

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

213

instituições de ensino privado em todo o território brasileiro. Segundo

o Censo da Educação Superior realizado pelo MEC, entre 1998 e 2002,

ainda no governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) – quando

houve a maior expansão do ensino superior privado brasileiro nos últi-

mos anos – criavam-se, em média, 4,5 cursos por dia (Barros, 2005). O

pico, no entanto, ficou registrado em 2002, quando 2.244 novos cursos

de graduação obtiveram autorização para funcionamento.

De fato, o governo Fernando Henrique Cardoso trocou o viés da

política de concessão de licenças para o funcionamento de novos cursos

superiores, conferindo maior liberalidade e velocidade à concessão de

licenças simultaneamente a um maior vigor e rigor na fiscalização dos

cursos existentes. Isto significou, na prática, o desenvolvimento de um

Estado regulador de serviços de educação superior, diverso do antigo

Estado prestador direto da educação de terceiro grau.

E não é só. Ainda, conforme levantamento feito pela Secretaria de

Educação Superior do MEC, antes de completar o primeiro mandato do

governo Luiz Inácio Lula da Silva, foram autorizados a funcionar mais

1.769 novos cursos superiores, sendo 1.245 em 2003 e 515 entre janeiro

a 31 de maio de 2004, significando, em média, a abertura de 3,4 cursos

por dia.

Segundo Barros (2005), a única razão pela qual se pode explicar

a alucinante velocidade na ampliação de cursos privados está na meta

estabelecida pelo Plano Nacional de Educação, aprovado pela Lei n.

10.172, de 9 de janeiro de 2001 (Barros, 2005). O Plano estabelece como

meta “prover, até o final da década, a oferta de educação superior para,

pelo menos, 30% da faixa etária de 18 a 24 anos”.

Para suprir a falta ou insuficiência de investimentos nas universida-

des públicas, o Estado passa, portanto, a subsidiar vagas em instituições

de ensino superior privado como opção para expansão de vagas e demo-

cratização do ensino de qualidade.

A questão é: seria esta a melhor forma de democratizar o ensino?

Por óbvio, são vários os aspectos positivos desta política. Além da

inegável velocidade na criação de novas vagas, há um desdobramento

que começa a ser percebido no ambiente educacional brasileiro, qual

seja, os benefícios, para os alunos, da competição entre várias institui-

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FERNANDA MONTENEGRO DE MENEZES

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ções privadas, que passaram a ter que investir em qualidade por uma

questão de sobrevivência mercadológica. Na verdade, a expansão das

vagas permitiu algo que até há pouco tempo não se via no Brasil: um

razoável leque de escolhas para o pretendente ou candidato a um cur-

so superior. O jovem ou mesmo o adulto que necessita de educação de

terceiro grau passou a ter maior opção de escolha, frente à recentíssima

“concorrência” no setor.

A concorrência que começa a se estabelecer no Brasil, decorrente da

deliberada política estatal de estímulo à proliferação de vagas no sistema

privado de ensino, inspirou-se principalmente na experiência america-

na, onde há muitas décadas a qualidade de ensino é bem mais ditada

pela disputa por alunos entre instituições de ensino do que propriamen-

te pela regulação estatal.

Não obstante, pelas especificidades da realidade brasileira, por uma

certa vulnerabilidade do público universitário e pela dificuldade no es-

tabelecimento de parâmetros ou referenciais nesta recente guinada na

política de ensino superior do país, não há como, no Brasil, deixar ape-

nas à “mão invisível do mercado” a regulação do ensino. Aqui, as organi-

zações do Estado não podem deixar de atuar fortemente na fiscalização

das instituições privadas, já que o abandono ou negligência desta ativi-

dade pode acarretar o black-out do sistema. Imaginemos instituições de

má-qualidade concorrendo e deixando o estudante livre para escolher

entre a ruim e a pior, numa espiral negativa que pode resultar no atraso

e no próprio engessamento do desenvolvimento econômico, em plena

“era do conhecimento”.

Mas, se o Estado tem deficiências crônicas para ampliar o sistema

público de ensino superior, parece ter também suas mazelas no exercí-

cio desta tão fundamental “função reguladora”. Sim, porque a fiscali-

zação constante e concomitante de todas as instituições privadas exige

equipe, preparo, estrutura, austeridade e um acervo considerável de

critérios, parâmetros e experiências que os órgãos estatais ainda não

conseguiram formar.

Neste ambiente, parece que a fiscalização das instituições privadas

é enormemente falha, o que permite a convivência do estudante com

desvios, irregularidades e falhas graves cometidas pela sua universida-

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

215

de, quase sempre não detectadas pelos radares da atividade fiscalizadora

do Estado. No ambiente jurídico, o exemplo maior desta distância entre

quantidade e qualidade no ensino superior é o resultado dos exames

promovidos pela Ordem dos Advogados do Brasil, sendo que há, até

com certa frequência, faculdades de Direito que graduam hordas de jo-

vens despreparados e incapazes para o exercício da advocacia.

Resta claro que as consequências da abertura desenfreada de novos

cursos nas últimas décadas coloca em dúvida o próprio planejamento

educacional do Estado Brasileiro. A evidência é de que, de fato, este não

reúne, em razão de suas limitações materiais e financeiras, condições

adequadas para exercer com eficiência a função fiscalizadora sobre esta

atividade pública essencial.

Novas Perspectivas para a Expansão do Ensino no Brasil

O Estado brasileiro, ao optar pelo estímulo à expansão de vagas no

ensino superior pela via privada, parece ter falhado na concomitante

preparação de estruturas eficientes de acompanhamento da qualidade

do ensino. Resta saber, no entanto, se esta deficiência é crônica ou cir-

cunstancial, se é transitória ou será permanente. Constatada a incapa-

cidade do Estado em gerar vagas no sistema público na velocidade e

quantidade que a sociedade contemporânea exige, a constatação futura

da incapacidade estatal em fiscalizar a qualidade de ensino do sistema

privado poderá causar uma insuperável crise de identidade da política

educacional nacional, com consequências de difícil reparação.

Em 2008, políticas de expansão de vagas no ensino superior público

têm surgido com grande expressão, principalmente, no Estado de São

Paulo10. Tais ações, no entanto, muito recentes, dependem ainda de um

intenso trabalho do governo para o alcance da verdadeira “democrati-

zação do ensino”.

10. O Decreto n. 53.536, de 9 de outubro de 2008, instituiu o Programa Universidade

Virtual do Estado de São Paulo – Univesp, objetivando a expansão do ensino superior público

no Estado de São Paulo, por meio de tecnologias de informação, além de outros instrumentos

que visem à ampliação do número de vagas oferecidas no ensino público e à crescente quali-

dade no Estado de São Paulo.

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FERNANDA MONTENEGRO DE MENEZES

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A esperança é de que, num futuro próximo, as universidades pú-

blicas e privadas possam contar com um número suficiente de vagas

para estudantes. A construção de ambientes de ensino cada vez mais

acessíveis e qualificados é uma necessária e desafiadora proposta para o

futuro.

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Introdução

O que é Educação? Dentre as diversas acepções possíveis, adotamos,

para elaboração desse artigo, o entendimento consubstanciado no art.

205 da Constituição Federal: a educação é um processo de formação

do indivíduo que visa ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo

para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. O ordenamento jurídico brasileiro permite o exercício da atividade

educacional pela iniciativa privada, de forma a complementar a atuação

estatal. Ensina Nina Beatriz Ranieri que “na tarefa educacional, devem

ser consideradas as esferas pública e provada numa relação comple-

mentar e não dicotômica e excludente, como o fez o Estado-polícia”

(Ranieri, 2000).

A oferta da educação pelo Estado e a exploração desta atividade por

particulares têm características diferentes. No primeiro caso, temos um

serviço público puro, regido por preceitos constitucionais; no segundo

caso, temos um serviço privado, regido pela relação contratual estabe-

lecida entre instituição de ensino e seus alunos e, consequentemente,

pelos princípios contratuais.

A Exploração da Atividade Educacional pela Iniciativa Privada e seus Limites Legais

Luiz Tropardi Filho

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LUIZ TROPARDI FILHO

220

A Constituição Federal atualmente vigente alterou esse modelo,

passando as instituições de ensino privadas a se submeterem ao dirigis-

mo estatal.

Esta alteração ocorreu, em primeiro lugar, em razão da expressa

previsão de que a educação formal é dever do Estado, impondo-se a este

a obrigação de tutelar e fiscalizar a prestação dos serviços educacionais

(art. 205 e 206 da Constituição Federal).

Por outro lado, com a normatização de vários microssistemas (Es-

tatuto da Criança e do Adolescente, Código de Defesa do Consumidor,

Lei do Direito Autoral, entre outros), forçoso reconhecer que as relações

jurídicas de direito privado passaram a receber um tratamento social,

buscando-se equilibrar a proteção legal da autonomia das vontades e do

interesse coletivo.

O direito educacional, nesse contexto, sofreu intensa modificação,

principalmente com a promulgação da Lei n. 9.634/1996, denominada

Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), restando questões ainda

polêmicas na doutrina e na jurisprudência, entre as quais a responsabi-

lidade civil das instituições de ensino em função dos serviços educacio-

nais prestados, notadamente com relação à determinação da adequação

e propriedade destes serviços.

Convém assinalar, ainda, que a LDB é norma principal e organiza-

cional, necessitando, pois, de regulamentação, que se dá através da edi-

ção de normas diversas (leis, portarias e resoluções). E são estas normas,

constitucional e/ou infraconstitucionais que limitam a atividade do par-

ticular na área educacional.

A Evolução do Ensino Superior Privado no Brasil

Conforme ensina Nina Beatriz Ranieri, no período colonial, o en-

sino superior era atribuição privativa do poder real, servindo de ferra-

menta para a “formação de uma ideologia de unidade nacional, capaz

de justificar a continuidade dos modelos social, econômico e político”

(Ranieri, 2000). Reflexo desse fato e das reformas pombalinas1 ocorridas

1. A respeito das reformas pombalinas, leciona Laerte Ramos de Carvalho que “não se

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

221

em Portugal, na Constituição do Brasil Império (1824) não havia previ-

são legal de exploração da Educação por particulares.

A proclamação da República altera este cenário, muito embora a

Constituição de 1891 também seja silente no tocante à exploração da

atividade educacional por particulares. Nesse período é criado o Con-

selho de Instrução Superior e aprovado o regulamento das instituições

de ensino jurídico (Decretos n. 1.232-F e 1.232-G). A legislação passa

a permitir a existência de estabelecimentos particulares, denominadas

faculdades livres, sob concessão do poder público.

Em 1o de janeiro de 1901, é publicado o Decreto n. 3.390, que apro-

va o código dos institutos oficiais de ensino superior e secundário. Nas

palavras de Frauches e Fagundes, “o decreto prevê a existência de esta-

belecimentos de ensino superior ou secundário fundados pelos Esta-

dos, pelo Distrito Federal ou por ‘qualquer associação ou indivíduo’, aos

quais o governo poderá ‘conceder os privilégios dos estabelecimentos

federais congêneres’” (Frauches & Fagundes, 2005, p. 309).

O Conselho de Instrução Superior é substituído em 1911 pelo Con-

selho Superior de Ensino2, que por sua vez é substituído pelo Conselho

Nacional de Ensino em 19253.

Em 1931, ocorre uma nova mudança. Através do Decreto n. 19.851,

de 11.4.1931, é criado o Conselho Nacional de Educação, em substituição

ao Conselho Nacional de Ensino. A referida norma prevê a exploração

da atividade educacional por particulares ao dispor que as universidades

poderão ser criadas e mantidas pela União, Estados (respectivamente,

universidades federais e estaduais) ou sob a forma de fundações ou de

associações, por particulares (universidades livres). É importante ressal-

tratava de uma simples transferência de mando (das ordens religiosas para o poder real), mas

dos próprios fins e objetivos do ensino, de tal modo que uma nova pedagogia, solidamen-

te fundamentada nas razões da filosofia moderna, tomasse o lugar da pedagogia escolástica

de que se tornaram expressão altamente significativa, em Portugal, as escolas dos jesuítas”

(Carvalho, 1978). Diante disso, a educação passou a ter um objetivo mais amplo: conservar a

união da sociedade civil.

2. O Conselho Superior de Ensino foi criado através do Decreto n. 8.659, de 5.4.1911.

3. O Conselho Nacional de Educação foi criado através do Decreto n. 16.782-A, de

13.1.1925.

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LUIZ TROPARDI FILHO

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tar que a norma veda a exploração da atividade educacional com finali-

dade lucrativa, uma vez que estabelece como formas de organização da

mantenedora somente a fundação ou associação.

A Constituição de 1934 prevê, pela primeira vez, a atuação do par-

ticular na área educacional, no artigo 150: “Compete à União: [...] f.

reconhecimento dos estabelecimentos particulares de ensino somente

quando assegurarem a seus professores a estabilidade, enquanto bem

servirem, e uma remuneração condigna”. Adiante, no artigo 154, o le-

gislador constituinte beneficia com imunidade tributária os estabele-

cimentos particulares de educação, gratuita, primária ou profissional,

considerados idôneos.

A Constituição de 1937, em seu artigo 128, dispõe que a arte, a ciên-

cia e o ensino são livres à iniciativa individual e a de associação de pes-

soas coletivas públicas e particulares. A Constituição de 1946 mantém

a previsão legal para atuação do particular na área educação, conforme

artigo 167, e, de forma definitiva, condiciona tal atuação às normas que

regulamentam a atividade educacional4.

Em 20 de dezembro de 1961 é publicada a primeira Lei de Diretri-

zes e Bases da Educação nacional (Lei n. 4.024/1961). Conforme ensina

Frauches e Fagundes, “a liberdade de ensino é a marca mais significativa

da primeira LDB, assegurando igualdade entre estabelecimento de ensino

públicos e particulares ‘legalmente autorizados’. Abandona-se a expres-

são ‘universidade livre’ ou ‘faculdade livre’ para designar as instituições

privadas de ensino superior” (Frauches e Fagundes, 2005, p. 311).

A LDB de 1961 criou o Conselho Federal de Educação, o qual subs-

tituiu o Conselho Nacional de Educação. Em 1968, a LDB foi alterada

pela Lei n. 5.548/68 e pelo Decreto-lei n. 464/69, notadamente no que se

refere ao ensino superior (Reforma Universitária de 1968).

A LDB, com a alteração de 1968, inaugurou o primeiro período de

expansão de instituições de ensino superior no Brasil. Sobre o tema, es-

creve Luiz Antônio Cunha que “as instituições privadas receberam in-

4. CF 1946 – “Art. 167. O ensino dos diferentes ramos será ministrado pelos Poderes

Públicos e é livre à iniciativa particular, respeitadas as leis que o regulem” (grifo nosso).

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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centivos diretos e indiretos inéditos, que, aliados à representação majo-

ritariamente privatista do Conselho Federal de Educação, propiciaram

um surto de expansão” (Cunha, 2004). As instituições privadas multipli-

caram-se em número e tamanho.

Atualmente, a atividade educacional é regulamentada, principal-

mente, pela Constituição Federal de 1988 e pela atual LDB. O artigo 205

da Constituição Federal dispõe que a educação é direito de todos e dever

do Estado e da família e será promovida e incentivada com a colabo-

ração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu

preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Neste mesmo sentido, dispõe o art. 2o, da LDB5.

Não obstante, o art. 209 da Constituição Federal permitiu a explo-

ração da atividade educacional pela iniciativa privada, impondo, para

tanto, o respeito a duas condições: I. cumprimento das normas gerais da

educação nacional; e II. autorização e avaliação e qualidade pelo poder

público.

A autorização para exploração da atividade educacional pela ini-

ciativa privada também foi prevista no art. 7o da LDB6, desde que aten-

didos, além dos requisitos previstos nos incisos I e II do artigo 209, a

capacidade de autofinanciamento da instituição de ensino. Diante disso,

indubitável que a Constituição Federal e a LDB prevêem a coexistência

da escola pública e da escola privada, sendo certo que esta atua mediante

autorização do Estado. Além disso, as normas atualmente vigentes pas-

saram a prever um terceiro tipo de instituição de ensino: as instituições

de ensino privadas com finalidade lucrativa.

Sendo assim, a normatização da Educação no Brasil apresenta um

conflito aparente: a exploração da atividade educacional por particulares

ocorre de acordo com o princípio da livre iniciativa, conforme disposto

5. Art. 2o A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade

e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do edu-

cando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

6. Art. 7o O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições: I. cum-

primento das normas gerais da educação nacional e do respectivo sistema de ensino; II. au-

torização de funcionamento e avaliação de qualidade pelo Poder Público; III. capacidade de

autofinanciamento, ressalvado o previsto no art. 213 da Constituição Federal.

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LUIZ TROPARDI FILHO

224

no caput do artigo 209 da Constituição, ou está sujeita à intervenção

estatal, como demonstram os incisos do mesmo artigo? É o que passare-

mos a analisar no item seguinte.

O Princípio da Autonomia Privada e a Atividade Educacional

Como dito acima, de acordo com o artigo 209 da Constituição Fe-

deral, o ensino é livre à iniciativa privada. Nas palavras de José Afonso

da Silva, “a liberdade de iniciativa envolve a liberdade de indústria e co-

mércio ou liberdade de empresa e a liberdade de contrato” (Silva, 1992).

Trata-se de princípio relacionado ao ideal liberal, ou seja, a possibilidade

de os indivíduos atuarem com autonomia jurídica, desenvolvendo livre-

mente a atividade escolhida, sem a intervenção estatal.

A liberdade de iniciativa econômica coaduna-se com o princípio

da livre concorrência. Celso Ribeiro Bastos, por sua vez, leciona que “a

livre concorrência é um dos alicerces da estrutura liberal da economia e

tem muito que ver com a livre iniciativa. É dizer, só pode existir a livre

concorrência onde há livre iniciativa. [...] Assim, a livre concorrência é

algo que se agrega à livre iniciativa, e que consiste na situação em que se

encontram os diversos agentes produtores de estarem dispostos à con-

corrência de seus rivais” (Bastos, 2002, p. 807).

José Afonso da Silva define o princípio da livre concorrência nos

seguintes termos:

[...] a livre concorrência está configurada no art. 170, IV, como um dos princí-pios da ordem econômica. Ele é uma manifestação da liberdade de iniciativa e, para garanti-la, a Constituição estatui que a lei reprimirá o abuso de poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros. Os dois dispositivos se complementam no mesmo objetivo. Visam tutelar o sistema de mercado e, especialmente, proteger a livre concorrência contra a tendência açambarcadora da concentração capitalista. A Constituição re-conhece a existência do poder econômico. Este não é, pois, condenado pelo regime constitucional. Não raro esse poder econômico é exercido de maneira anti-social. Cabe, então, ao Estado coibir este abuso (Silva, 1992, p. 674).

No que se refere à exploração da atividade educacional no Brasil, é

possível afirmar que os princípios da livre iniciativa e da livre concor-

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rência não são exercidos em sua plenitude, uma vez que o ordenamento

jurídico pátrio estabelece algumas limitações, entre os quais o da função

social da empresa7.

Nesse contexto, os princípios da livre iniciativa e da livre concor-

rência têm sua aplicação reduzida e condicionada às políticas públicas

econômicas, de modo a assegurar “a existência digna de todos, confor-

me ditamos da justiça social” (Silva, 1992, p. 692). É o que se verifica

na exploração dos serviços educacionais: dada a relevância social e o

interesse coletivo envolvidos, o princípio da livre iniciativa, previsto no

artigo 209 da Constituição Federal, e o princípio da livre concorrên-

cia, inerente ao primeiro, têm sua abrangência reduzida, em função dos

preceitos da justiça social. Essa limitação, registre-se, é prevista no art.

170, parágrafo único, da Constituição Federal: “é assegurado a todos o

livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de

autorização de órgãos públicos salvo nos casos previstos em lei” (grifo do

autor). É o que ocorre no presente caso, visto que, nos termos do art.

209 da Constituição Federal, a atividade educacional está condicionada

ao credenciamento e fiscalização do Estado, bem como ao cumprimento

das normas gerais de educação.

Sobre o tema, Gabriela Giannella Samelli, citando Vicente Ráo, de-

fende que “o liberalismo não exclui a legitimidade da intervenção do

Estado quando age, nas relações particulares, por normas jurídicas posi-

tivas, quando e enquanto for necessário”8.

Para melhor ilustrarmos a relevância social da prestação dos ser-

viços educacionais, necessário analisarmos a natureza jurídica de tais

serviços, o que se fará no próximo item.

7. Sobre a função social da empresa, ensina Eros Grau que “o princípio da função so-

cial da propriedade, para logo se vê, ganha substancialidade precisamente quando aplicado à

propriedade dos bens de produção, ou seja, na disciplina jurídica da propriedade de tais bens,

implementada sob o compromisso de sua destinação. A propriedade sobre a qual em maior

intensidade refletem os efeitos do princípio é justamente a propriedade, dinâmica, dos bens

de produção. Na verdade, ao nos referirmos à função social dos bens de produção em dina-

mismo, estamos a aludir à função social da empresa” (Grau, 1981, p. 128).

8. Trecho extraído da dissertação de mestrado A Prestação de Serviços Educacionais, de-

fendida na USP em 2002, sob orientação do professor Álvaro Villaça de Azevedo.

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LUIZ TROPARDI FILHO

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Natureza Jurídica dos Serviços Educacionais por Particulares

Não há que se questionar a natureza pública dos serviços educa-

cionais prestados pelo Estado. Resta analisar se a prestação dos serviços

por particulares tem o condão de alterar a natureza jurídica dos serviços

educacionais.

Di Pietro (2007) ensina que há dois conceitos possíveis de serviços

públicos: amplo e restrito. De acordo com o conceito amplo, os servi-

ços públicos abrangem todas as funções do Estado. Entre os juristas que

adotam o conceito amplo estão Cretella Jr. (1980)9 e Hely Lopes Meirel-

les10. O conceito restrito, por sua vez, caracteriza o serviço público como

atividade exercida pelo Estado, excluindo, assim, as funções legislativas e

jurisdicional. Adotam este conceito Celso Antônio Bandeira de Mello11 e

a própria Di Pietro (2007)12.

De qualquer forma, é certo que os serviços públicos devem: a. obje-

tivar o interesse coletivo; b. ser prestados pelo Estado; e c. prestados atra-

vés de procedimento de direito público. Interessa-nos analisar o segundo

item, ou seja, de que o serviço público deveria ser prestado pelo Estado.

Carlos Roberto Jamil Cury, ao analisar a prestação de serviços edu-

cacionais, defende a ideia de concessão de serviço público, porém com

9. De acordo com José Cretella Junior, serviço público “é toda atividade que o Estado

exerce, direta ou indiretamente, para satisfação das necessidades públicas mediante procedi-

mento típico do direito público” (Cretella Jr., 1980).

10. Para Hely Lopes Meirelles, serviço público é “todo aquele prestado pela Adminis-

tração ou por seus delegados, sob normas e controles estatais, para satisfazer necessidades

essenciais ou secundárias da coletividade, ou simples conveniências do Estado” (Meirelles,

2003, p. 319).

11. Para Celso Antônio Bandeira de Mello, “serviço público é toda atividade de ofe-

recimento de utilidade ou comodidade material fruível diretamente pelos administradores,

prestados pelo Estado ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de direito público – por-

quanto consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais – instituído pelo

Estado em favor dos interesses que houve definido como próprios no sistema normativo”

(Mello, 1975, p. 20).

12. Segundo Di Pietro (2007, p. 90), serviço público é “toda atividade material que a

lei atribui ao Estado para que a exerça diretamente ou por meio de seus delegados, com o

objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas, sob regime jurídico total ou

parcialmente público”.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

227

ressalvas. Para o autor, somente os estabelecimentos privados sem fina-

lidade lucrativa atuariam em nome do Estado, mediante concessão. Os

estabelecimentos privados com finalidade lucrativa, por possuírem uma

visão possessiva (ou seja, de se beneficiar financeiramente de tais servi-

ços), atuariam em nome próprio e estariam sujeitos exclusivamente aos

preceitos do direito privado: “assim, a Constituição redefine a situação:

aquele ensino privado (art. 209), voltado para o lucro (por oposição à

letra do art. 213), é, no seu teor, tipicamente capitalista. Em oposição

a ele, as outras modalidades indicadas (art. 213 e art. 150, VI, c) teriam

uma presença não tipicamente capitalista dentro de uma economia de

mercado” (Cury, 1992). O autor fundamenta sua tese de que os estabele-

cimentos privados sem finalidade lucrativa atuam por concessão no fato

de que as mesmas estão autorizadas a receber recursos públicos.

Sobre o tema, ensina Ranieri (2003) “[...] embora a atividade pri-

vada seja livre, sujeita a todos aqueles princípios informadores da ativi-

dade econômica, o fato é que, do ponto de vista prático, estamos diante

de uma concessão, tal como via Marquês de Pombal: a educação naquela

época era definida como um jus regio, permitido o seu exercício, excep-

cionalmente, à iniciativa privada (no caso, religiosa apenas)”.

Não partilhamos deste posicionamento13. Entendemos que os ser-

viços prestados pelos estabelecimentos privados, com ou sem finalidade

lucrativa, são essencialmente privados, mas com interesse socioeconô-

mico coletivo. Tratam-se, pois, de serviços privados, mas de interesse

público. Estes serviços privados de interesse público relacionam-se com

o conceito de Constituição Econômica, defendida por Gilberto Bercovici

(1988), ou seja, a inserção de assuntos econômicos no texto constitucio-

13. Corroborando nosso entendimento no sentido de que não há delegação de serviço público ao particular, transcrevemos, a seguir, decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, em que se declarou a Justiça Federal incompetente para julgar matéria relativa a ensino superior privado: “Conflito de Competência. Mandado de Segurança. Ensino Supe-rior. Ato Administrativo de dirigente de faculdade particular. Justiça Estadual. Compete à justiça estadual processar e julgar mandado de segurança investindo contra ato administra-tivo de dirigente de faculdade particular” (STJ, CC 19279, Processo 199700100782 – RS, DJ 09.12.1997, p. 64585).

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LUIZ TROPARDI FILHO

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nal, definidores dos parâmetros para elaboração da política econômica

do Estado.

O interesse público dos serviços educacionais decorre da própria

Constituição, vez que a norma constitucional elevou a educação à ca-

tegoria dos direitos fundamentais e sociais (art. 205, combinado com o

art. 6o da CF/88), mais precisamente direito da segunda geração, em fun-

ção de que se pode afirmar tratar-se de dever do Estado, a ser prestado

segundos os princípios constitucionais aplicáveis.

Por se tratar de serviço privado de interesse público, a atividade

educacional deve se submeter ao dirigismo estatal. Nas palavras de Sa-

muel Pontes do Nascimento, Antonio Roberto W. de Carvalho e Gio-

vani Clark, “a exploração econômica do ensino superior, apesar de re-

gida pelo princípio da livre iniciativa, não se escusa à atuação do poder

público que, através de normas e órgãos executivos, realiza funções de

controle do serviço, objetivando assegurar a todos uma existência digna,

promovendo a defesa dos direitos do consumidor e a livre concorrência,

conforme os ditames da justiça social (CF/88, art. 170, caput, IV e V)”14.

Limitações à Atuação do Particular na Área Educacional

Diante do exposto, temos que a atuação do particular na área edu-

cacional dá-se na esfera privada, mas condicionada ao interesse social, e

que, pela relevância jurídica da educação, a livre iniciativa do particular

é relativizada pela função social da empresa e pelos preceitos da justiça

social. Sendo assim, temos que a primeira e mais importante limitação à

atuação dos particulares na atividade educacional é justamente o fato de

se tratar a Educação de direito fundamental e social, de interesse geral.

Outro exemplo da limitação em referência é a submissão das insti-

tuições privadas à autorização e avaliação de qualidade pelo poder pú-

blico (artigo 209 da Constituição Federal). O particular, embora esteja

sob fiscalização do poder público, uma vez autorizado pelo Estado, atua

14. Samuel Pontes do Nascimento; Antonio Roberto W. de Carvalho e Giovani Clark,

O Ensino Privado Superior pela Ótica das Relações de Consumo. Disponível em www.scielo.

com.br.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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ao seu lado, mas não em seu nome. Porém, para que a instituição privada

possa atuar, necessário se faz o credenciamento desta no Ministério da

Educação, bem como a autorização de curso para que possa funcionar.

Inquestionável a necessidade de se submeter o curso e seu projeto

pedagógico a prévia autorização do MEC, como forma de se garantir a

qualidade dos serviços prestados, mas, a nosso ver, a obrigatoriedade

de credenciamento da instituição de ensino privada no MEC caracteriza,

claramente, uma ingerência estatal infundada na livre iniciativa.

A esse respeito, merece nota a distinção criada no sistema brasi-

leiro entre mantida e mantenedora. A primeira é a instituição de ensi-

no propriamente dita, responsável por todos os aspectos acadêmicos e

pedagógicos; a segunda é a provedora de recursos financeiros e gestora

administrativa da instituição.

Embora o MEC não interfira na constituição e no funcionamento da

mantenedora, condiciona a criação da mantida, e uma não vive sem a

outra. Sendo assim, verifica-se uma clara e expressa violação ao disposto

no artigo 5o, XVIII, da Constituição Federal: “a criação de associações e,

na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo

vedada a interferência estatal em seu funcionamento”.

Uma vez credenciada a mantida e autorizados os cursos, a instituição

de ensino privado exerce suas atividades educacionais, em caráter relati-

vamente precário, uma vez que está sujeita às avaliações de qualidade15.

A avaliação de qualidade é realizada pelo MEC através do Sistema

Nacional de Avaliação da Educação Superior – Sinaes, instituído pela

Lei n. 10.861/2004 e regulamentado pela Portaria MEC n. 2.051/2004.

Abrange três aspectos: institucional, cursos e auto-avaliação. Se os resul-

tados forem considerados insatisfatórios, a instituição é obrigada a assi-

15. Convém registrar que todas as instituições de ensino privadas estão submetidas ao

sistema federal de ensino e, portanto, sujeitas ao sistema de avaliação adotado pelo MEC. Vale

destacar que é adotado um mesmo sistema de avaliação para todas as instituições do territó-

rio nacional, desconsiderando-se, assim, as peculiaridades de cada região e as singularidades

de cada instituição de ensino. Em outras palavras, o MEC emprega os mesmos padrões de qua-

lidade tanto para universidades, comprometidas com pesquisa e extensão, quanto para insti-

tuições não-universitárias, que têm como único objetivo o ensino de cursos de graduação.

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LUIZ TROPARDI FILHO

230

nar um protocolo de compromisso16, estabelecendo metas e prazos para

solução das desconformidades apontadas. Não cumprido o protocolo,

são aplicadas penalidades17, que têm seu ápice no fechamento de cursos

e descredenciamento de instituições de ensino.

Por fim, é importante ponderar que o Conselho Nacional de Edu-

cação não participa do processo de avaliação. Em substituição, foi criado

ao Conaes – Comissão Nacional de Avaliação do Ensino Superior, órgão

colegiado composto por cinco integrantes do Governo, um representan-

te docente, um discente e um técnico-administrativo, bem como cinco

cidadãos de notório saber científico indicados pelo MEC18.

Outro aspecto a ser considerado é a da autonomia universitária. Nos

termos do artigo 207 da Constituição Federal, as universidades gozam

de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e

patrimonial. Tal prerrogativa, vale reiterar, aplica-se somente às univer-

sidades, públicas ou privadas, excluindo, assim, as instituições não uni-

versitárias (faculdades, centros universitários e institutos superiores).

Contudo, observa-se que somente as universidades públicas gozam

da autonomia em sua plenitude, tal como prevista na norma constitu-

cional. Às universidades privadas são impostas algumas restrições.

A esse respeito, vale destacar o ensinamento de Nina Beatriz Stocco

Ranieri: a autonomia universitária, que abrange três aspectos – didático-

16. Nos termos do art. 10 da Lei n. 10.861/2004, deverão constar do protocolo de com-

promisso os seguintes itens: I. o diagnóstico objetivo das condições da instituição; II. os en-

caminhamentos, processos e ações a serem adotados pela instituição de educação superior

com vistas na superação das dificuldades detectadas; III. a indicação de prazos e metas para

o cumprimento de ações, expressamente definidas, e a caracterização das respectivas respon-

sabilidades dos dirigentes; IV. a criação, por parte da instituição de educação superior, de

comissão de acompanhamento do protocolo de compromisso.

17. São penalidades previstas na Lei n. 10.861/2004: I. suspensão temporária da abertura

de processo seletivo de cursos de graduação; II. cassação da autorização de funcionamento da

instituição de educação superior ou do reconhecimento de cursos por ela oferecidos; III. ad-

vertência, suspensão ou perda de mandato do dirigente responsável pela ação não executada,

no caso de instituições públicas de ensino superior.

18. Uma das críticas feitas ao Conaes é a falta de representantes das instituições de en-

sino privadas na Comissão, gerando questionamentos acerca da imparcialidade do órgão na

execução de seus trabalhos.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

231

científica, administrativa e de gestão financeira – refere-se à instituição

mantida e não à mantenedora (Ranieri, 2003, pp. 29-47). Porém, a ins-

tituição mantida, por definição, não possui capacidade administrativa e

de gestão financeira, tarefas que competem à mantenedora.

Assim, algumas medidas que limitam a atuação da mantenedora,

como a necessidade de cumprir os preceitos da Lei n. 9.870/99, que esta-

belece parâmetros para fixação do valor de suas anuidades, e da Portaria

n. 40/2007, que proíbe a cobrança de taxa para expedição de diplomas,

não implicam em violação ao preceito constitucional em comento.

Por outro lado, a submissão das universidades privadas a avaliações

realizadas pelo MEC, bem como a necessidade de se credenciar a abertura

de novos campi fora da área de atuação da universidade e de se autorizar

a criação de novos cursos ferem a autonomia universitárias garantida

constitucionalmente a estes estabelecimentos.

Assim, é imprescindível que se garanta às universidades privadas o

pleno gozo da autonomia universitária, para que possam exercer suas

atividades livremente no tocante ao ensino, pesquisa e divulgação de

ideias, sem interferência do poder público e do mercado.

Cumpre analisar, por fim, a questão da capacidade de autofinan-

ciamento da instituição de ensino. A LDB, ao prever a participação da

iniciativa privada na atividade educacional, dispõe, em seu art. 7o, adi-

cionou, ao rol trazido pelo art. 209 da Constituição Federal, uma tercei-

ra condição: capacidade de autofinanciamento, ressalvado o previsto no

art. 213 da Constituição Federal19.

Diante disso, a LDB extrapolou a norma constitucional ao prever

que a atuação da iniciativa privada na atividade educacional está con-

dicionada à sua capacidade de autofinanciamento. Resta, portanto, que

se o financiamento da instituição de ensino originar-se de políticas pú-

blicas, ter-se-ia um investimento político público e social e os serviços

19. A regra de comprovação da capacidade de autofinanciamento, excetuam-se as insti-

tuições enquadradas no artigo 213 da Constituição Federal: escolas comunitárias, confessio-

nais ou filantrópicas, definidas em lei, que recebem recursos públicos mediante a comprova-

ção da finalidade não lucrativa e assegurem a destinação de seus patrimônio a outra escola

comunitária, filantrópica ou confessional, ou ao poder público.

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LUIZ TROPARDI FILHO

232

educacionais, nesta hipótese, jamais poderia receber um tratamento de

bem econômico de caráter privado.

A contrario sensu, as instituições de ensino com comprovada capa-

cidade de autofinanciamento estariam totalmente sujeitas às normas do

direito privado, não havendo lugar para a ingerência estatal.

Não há qualquer justificativa para a inclusão, na LDB, da obrigato-

riedade da capacidade de autofinanciamento das instituições de ensino

privadas. Ademais, integra o rol de princípios em que está baseada a

ordem econômica nacional a liberdade de exercício da atividade eco-

nômica, independente de comprovação de capacidade de autofinancia-

mento!

Na mesma linha, o Decreto n. 3.860/2001 impõe às mantenedoras

de instituições de ensino a obrigação de comprovar sua regularidade

perante a Fazenda Nacional para solicitar autorização, reconhecimen-

to ou renovação de reconhecimento de cursos. Procurou o legislador

certificar-se da capacidade da mantenedora de prover a mantida dos

recursos necessários, de forma a garantir continuidade na prestação de

serviços. Nada mais descabido, uma vez que a qualidade do curso não

guarda nenhuma relação com a regularidade fiscal da mantenedora da

instituição de ensino20.

20. A exigência contida no art. 20 do Decreto n. 3.860/2001 foi recentemente questio-

nada na medida cautelar proposta pelo Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabeleci-

mentos de Ensino Superior no Estado de São Paulo (Semesp), processo n. 2006.61.00.09158-6,

em trâmite perante a 4a Vara Federal de São Paulo. Transcrevemos o trecho da decisão: “Desta

forma, entendo abusiva e ilegal a exigência de comprovação de regularidade fiscal, previden-

ciária e perante o FGTS, para recebimento e processamento de pedido de reconhecimento e

renovação de reconhecimento de curso superior, instituída mediante decreto, uma vez que

extrapola os limites do seu poder regulamentar, a imposição de exigências não previstas em

lei, mormente quando utilizadas como modalidade de coação para o recebimento de tributos

como no caso” (grifo do autor).

Igual entendimento foi adotado na decisão proferida nos autos do processo n.

2005.34.00.010501-8, proposto por Sociedade Educacional Tuiuti Ltda., em trâmite perante

a 4a Vara Federal do Distrito Federal, conforme demonstra o trecho a seguir transcrito: “Com

efeito, assiste razão à ora agravante no que acentua inexistir qualquer lei (no estrito sentido

material do termo) a amparar a exigência. [...] Por ilustrativas, recordem-se as Súmulas n. 70,

323 e 547 do eg. STF, que, mutatis mutandis, em essência ajustam-se à hipótese sub examine:

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

233

A Intervenção do Estado no Domínio Econômico:

A Lei n. 9.870/99.

A publicação da Lei n. 9.879/99, que dispõe sobre o valor total das

anuidades escolares e dá outras providências, legitimou a intervenção

do Estado no domínio econômico. De fato, a referida norma legal es-

tabelece vários critérios a serem verificados pelas instituições de ensino

no reajuste de suas anuidades e semestralidades. Além disso, estabelece

limites a serem respeitados pelas instituições privadas.

Ora, é regra primordial de qualquer ordem econômica que os pre-

ços sejam estabelecidos pelo mercado, de acordo com os princípios eco-

nômicos, entre os quais o da oferta e da procura e o da concorrência.

Em outras palavras, cada instituição de ensino privada deveria estar

livre para definir seus preços, de acordo com a demanda, os custos da

atividade, o poder aquisitivo de seus alunos e as práticas de seus con-

correntes.

Porém, tal prerrogativa foi tirada das instituições de ensino priva-

das pelo Estado, que intervém na economia, impondo parâmetros de

valores praticados por tais instituições. Estes parâmetros, infelizmente,

distanciam-se dos custos, cada vez mais elevados diante das melhorias

constantes que as instituições de ensino privadas foram obrigadas a ado-

tar frente a um mercado cada vez mais profissional e competitivo.

Além do acima exposto, há outra deformidade na norma legal em

comento. Embora o artigo 5o da referida lei autorize as instituições de

ensino a indeferirem a renovação da matrícula de alunos inadimplentes,

não há nada que autorize o desligamento do aluno durante o semestre.

Sendo assim, basta ao aluno pagar a primeira parcela da anuidade ou

semestralidade para que tenha assegurado o direito de frequentar o pe-

ríodo letivo.

– Súmula 70: Inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para co-

brança de tributo.

– Súmula 323: É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para paga-

mento de tributo.

– Súmula 547: Ao contribuinte em débito, não é lícito à autoridade proibir que adquira es-

tampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais”.

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LUIZ TROPARDI FILHO

234

Diante disso, as instituições de ensino são obrigadas por lei a cum-

prirem sua obrigação até o final, mesmo sem receber a contraprestação

devida pelo aluno, o que caracteriza, em última análise, o enriqueci-

mento sem causa do aluno, prática, aliás, há muito repudiada em nosso

ordenamento.

O Crescimento da Atuação Privada no Segmento Educacional

Conforme mencionado anteriormente, a legislação brasileira vigen-

te atualmente permite a coexistência de instituições públicas e privadas.

Na prática, o que se verifica é um significativo aumento na partici-

pação do particular na prestação desse serviço, incentivada por vários

aspectos, entre os quais destacamos a ampliação da camada média, ávida

pela obtenção do grau superior, então símbolo de prestígio econômico

e social, pela existência de diversos dispositivos legais, como a previsão

de incentivos fiscais para as instituições privadas, e, principalmente, pelo

sucateamento das instituições públicas, bem como pela falta de incenti-

vo estatal na criação de novos estabelecimentos de ensino.

Até 1996, as mantenedoras das instituições de ensino privadas eram

sempre constituídas sem finalidade lucrativa. Este cenário foi alterado

com a atual LDB, que inovou ao prever a existência de instituições de en-

sino privadas com finalidade lucrativa, gerando uma crescente profissio-

nalização dos mantenedores educacionais, processo este que resultou na

realização de oferta pública de ações por alguns desses mantenedores.

A nova realidade, embora apresente algumas desconformidades,

não é negativa. Os empreendimentos educacionais mantidos pela ini-

ciativa privada, além de sua relevante função social, respondem mais

rapidamente às aspirações da sociedade. Essas instituições são mais ágeis

na implementação dos projetos e na mudança dos programas em an-

damento, com capacidade extraordinária de adaptação a novos para-

digmas, valores e crenças, numa sociedade em constante mutação. Em

reportagem publicada na edição 2067, ano 41, n. 26, da Revista Veja

(“Educação vai à Bolsa de Valores”), a jornalista Camila Pereira apon-

ta diversos benefícios advindos com o processo de capitalização e pro-

fissionalização das instituições de ensino, tais como redução do valor

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

235

das mensalidades, avanços na infraestrutura e até mesmo a melhoria

da qualidade de ensino. Não obstante, a profissionalização e inclusão

desses estabelecimentos no mercado trazem, como consequência direta,

a necessidade de estes estabelecimentos melhorarem a sua prestação de

serviços, investindo em infraestrutura e corpo docente, objetivando a

oferta de ensino de qualidade, de modo a se manterem num mercado

crescente e competitivo.

Nesse cenário, necessário se faz um Estado atento e ativo, pronto

para desempenhar as funções interventistas previstas em lei sem inviabi-

lizar o crescimento do segmento educacional. Não há que se criar meca-

nismos reguladores da atividade educacional, que limitariam ainda mais

a atuação dos estabelecimentos privados. Deve-se cumprir o disposto

na Constituição Federal, dentro de seus limites, de modo a assegurar a

qualidade dos serviços prestados.

Conclusão

Nos termos do art. 209 da Constituição Federal, é livre à iniciati-

va privada a exploração da atividade educacional, desde que atendidas

as seguintes condições: a. cumprimento das normas gerais da educação

nacional; b. autorização e avaliação de qualidade pelo poder público.

O artigo 170, IV, da Constituição Federal, por sua vez, dispõe que a or-

dem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre

iniciativa, deve ser orientada por diversos princípios, dentre os quais o

princípio da livre concorrência.

Os dois artigos, embora contraditórios em princípio, devem ser

analisados em conjunto. Isso porque a iniciativa privada, em razão da

relevância e interesse social da educação, direito fundamental e social,

não é exercida em sua plenitude, limitada pelos ditames da justiça social,

em observância à função social da empresa.

Quaisquer limitações à atuação da iniciativa privada na área edu-

cacional que seja pautada nos conceitos acima são justas e desejáveis.

Contudo, o que se verifica atualmente é a proliferação de normas in-

fraconstitucionais que ferem, sem qualquer justificativa ou consistência,

a técnica adotada pela Constituição Federal. Tais limitações devem ser

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LUIZ TROPARDI FILHO

236

afastadas, de modo a garantir o desenvolvimento pleno e eficaz das ins-

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instituições públicas.

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V

EDUCAÇÃO E INCLUSÃO

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A Educação Indígena e oPapel do Estado

Sabine Righetti

Introdução

Recentemente, a imprensa mundial divulgou, sem economia de

espaço, as imagens de um grupo de indígenas isolados, encontrado no

Acre, próximo à fronteira do Brasil com o Peru. As imagens, que fo-

ram coletadas por uma equipe da Fundação Nacional do Índio (Funai)

entre final de abril e maio de 2008, fizeram brasileiros e estrangeiros

atentarem ao fato de que o Brasil é um dos poucos países do mundo (se

não o único) que ainda preserva, com dificuldades e muitas limitações,

alguns povos indígenas isolados, que desde a época do “descobrimen-

to” permaneceram afastados de todas as transformações ocorridas no

país e mantêm as tradições culturais de seus antepassados, sobrevivendo

da caça, da pesca, da coleta e da agricultura incipiente (como os índios

fotografados, que mantinham uma grande área de roçado próxima às

malocas).

O Brasil, de acordo com dados da Funai, concentra hoje aproxi-

madamente 460 mil índios integrados ou em vias de integração, dis-

tribuídos entre 225 sociedades indígenas (aldeias), que perfazem cerca

de 0,25% da população brasileira. Além destes, há entre 100 e 190 mil

índios vivendo fora das terras indígenas, inclusive em áreas urbanas, e

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SABINE RIGHETTI

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aproximadamente 55 grupos de índios isolados, sobre os quais ainda

não há informações objetivas1.

Nunca, em nenhum outro momento histórico, o país esteve tão

pressionado pela sociedade civil, por meio da imprensa e de organiza-

ções não-governamentais (ONGs), do Brasil e do mundo, a olhar com

cuidado especial para a questão indígena visando a sua preservação. Esse

movimento tem suas raízes na década de 1970, quando teve início um

apoio na luta em defesa da identidade indígena, incluindo a necessidade

de formulação de políticas públicas voltadas à saúde, à educação e ao

bem-estar social dessas comunidades (Righetti, 2005).

A explicação para essa pressão social é simples: a preservação do

restante da cultura indígena presente no país depende de ações que ga-

rantam a sustentabilidade ambiental das áreas de reserva indígena (o

habitat natural desses povos), e de suas proximidades, e que perpetuem

os costumes, línguas e tradições desses povos.

Tais ações e políticas públicas devem ser voltadas tanto diretamente

para as comunidades indígenas, quanto para o restante da população

brasileira (“tradicional”), por meio, por exemplo, de iniciativas de cons-

cientização e de informação sobre a preservação das culturas indígenas.

Na academia, as discussões sobre a sustentabilidade da cultura

indígena brasileira permeiam, sobretudo, os campos da sociologia e

da antropologia. Mas as ações voltadas à causa indígena são garanti-

das por instrumentos jurídicos, na forma da criação de instituições,

de fundações, de decretos ou de leis. Nesse sentido, dado o objetivo do

presente trabalho, faz-se fundamental valer a discussão aqui tecida de

um memorial dos instrumentos institucionais recentes destinados aos

povos indígenas.

1. A Funai não tem um dimensionamento exato das regiões habitadas por índios isola-

dos. O número de grupos isolados é uma estimativa feita a partir do trabalho das chamadas

Frentes de Contato, que atuam nos Estados do Amazonas, Pará, Acre, Mato Grosso, Rondônia

e Goiás desde 1987.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

243

Os Instrumentos Jurídicos e Institucionais dos Índios

Um dos passos mais significativos na instrumentação jurídica nacio-

nal, no sentido de proteção às comunidades indígenas, foi dado ainda du-

rante o período ditatorial brasileiro, na instituição da Fundação Nacional

do Índio (Funai), por meio da Lei n. 5.371, de 5 de dezembro de 1967.

A criação da Funai extinguiu automaticamente o Serviço de Prote-

ção aos Índios (SPI), o Conselho Nacional de Proteção aos Índios (CNPI)

e o Parque Nacional do Xingu (PNX), concentrando as funções voltadas

à causa indígena por meio de uma instituição de patrimônio próprio e

com personalidade jurídica de direito privado.

De acordo com os termos da lei, a Funai surgiu com o objetivo de

estabelecer as diretrizes e garantir o cumprimento da política indigenis-

ta, baseada principalmente em quatro princípios: 1. respeito à pessoa do

índio e às instituições e comunidades tribais; 2. garantia à posse perma-

nente das terras que habitam e o usufruto exclusivo dos recurso natu-

rais e de todas as unidades nelas existentes; 3. preservação do equilíbrio

biológico e cultural do índio, no seu contacto com a sociedade nacional

e 4. resguardo à aculturação espontânea do índio, de forma que sua evo-

lução socioeconômica se processe a salvo de mudanças bruscas.

Na década seguinte à criação da Funai, ainda sob o período ditatorial,

é então disposto o Estatuto do Índio, por meio da Lei n. 6001, de 19 de

dezembro de 1973, que regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e

das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e

integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional.

De acordo com os termos do Estatuto do Índio, a proteção das leis

vigentes no país é, então, estendida aos índios e às comunidades indí-

genas, nos mesmos termos em que se aplicam aos demais brasileiros,

resguardados os usos, costumes e tradições indígenas, bem como as con-

dições peculiares reconhecidas.

O artigo 4o da Lei n. 6001, que trata das Normas e Definições, sub-

divide os índios em três grupos2:

2. O Estatuto do Índio de 1973 não deixa clara a metodologia usada na classificação

do índio isolado, parcialmente integrado ou integrado. De acordo com a material da Funai,

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I. Isolados – Quando vivem em grupos desconhecidos ou de que se possuem poucos e vagos informes através de contatos eventuais com elementos da comu-nhão nacional.

II. Em vias de integração – Quando, em contato intermitente ou permanente com grupos estranhos, conservem menor ou maior parte das condições de sua vida nativa, mas aceitam algumas práticas e modos de existência comuns aos demais setores da comunhão nacional, da qual vão vez mais para o próprio sustento.

III. Integrados – Quando incorporados à comunhão nacional e reconhecidos no pleno exercício dos direitos civis, ainda que conservem usos, costumes e tradi-ções característicos da sua cultura.

Assim, o grupo que representa os índios incorporados à comunhão

nacional tem reconhecido o pleno exercício dos direitos civis, ainda que

conservem usos, costumes e tradições característicos da sua cultura.

Como define o parágrafo 8o do Artigo 7o, em sequência, que trata da

Assistência ou Tutela:

Art. 7o Os índios e as comunidades indígenas ainda não integrados à comu-nhão nacional ficam sujeitos ao regime tutelar estabelecido nesta Lei.

§ 8o São nulos os atos praticados entre índios não integrados e qualquer pessoa estranha à comunidade indígena quando não tenha havido assistência do órgão tutelar competente.

Isso significa que a condição indígena garante a aplicação de legis-

lação especial e que, no caso de condenação do índio por infração penal,

a pena deverá ser atenuada, tal como define o artigo 56, que trata dos

Princípios das Normais Penais.

Art. 56. No caso de condenação de índio por infração penal, a pena deverá ser atenuada e na sua aplicação o juiz atenderá também ao grau de integração silvícola.

Parágrafo Único. As penas de reclusão e de detenção serão cumpridas, se pos-sível, em regime especial de semiliberdade, no local de funcionamento do órgão federal de assistência aos índios mais próximo da habitação do condenado.

a própria definição do que é ser índio é polêmica: “Um grupo de pessoas pode ser considerado

indígena ou não se estas pessoas se considerarem indígenas, ou se assim forem consideradas

pela população que as cerca. Mesmo sendo o critério mais utilizado, ele tem sido colocado em

discussão, já que muitas vezes são interesses de ordem política que levam à adoção de tal defini-

ção, da mesma forma que acontecia há quinhentos anos” (ver Funai: http://www.funai.gov.br).

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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A abordagem da causa indígena sob a previsão do desaparecimen-

to físico dos índios e a postura integracionista que buscava assimilar

os índios à comunidade nacional, porque os entendia como categoria

étnica e social transitória e fadada à extinção, foram abandonadas na

Constituição Brasileira promulgada em 1988, que reconheceu aos índios

o direito de ser e de manter-se como índio.

Sob essa concepção inovadora, a questão indígena é abordada no

tratamento dos princípios fundamentais, dos direitos e garantias funda-

mentais, das atribuições do congresso nacional, dos tribunais regionais

federais e dos juízes federais, das funções essenciais à justiça, dos princí-

pios gerais da atividade econômica, da cultura e, mais especificamente,

dos índios.

A Constituição de 1988 reforçou, nos artigos 231 e 232, o caráter tu-

telar do Estado3 em relação aos indígenas, já apresentado pelo Estatuto

do Índio de 1973:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, lín-guas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicional-mente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o ministério público em todos os atos do processo.

A Constituição de 1988 não menciona a tipologia apresentada no

Estatuto do Índio, de 1973, que classifica os índios como isolados, par-

cialmente integrados e integrados, o que tem dado margem para debates

no campo do direito civil. Nessa discussão, alguns autores defendem a

aplicabilidade do princípio da igualdade da Constituição (artigo 5o, que

afirma que todos brasileiros são iguais perante a lei, sem distinção de

3. A tutela do Estado em relação aos índios tem sido pauta de discussões de autores que, como Souza Filho (1993), questionam até que ponto o regime tutelar orfanológico (que

o Estado exerce sobre os órfãos) pode, no caso dos índios, ser caracterizado como uma forma de discriminação ou de opressão.

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SABINE RIGHETTI

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qualquer natureza) e outros autores intercedem pela não imputabilida-

de dos índios, conforme o Estatuto do Índio4.

Outro debate presente na questão indígena, que ultrapassa o cam-

po do direito civil e atinge uma discussão mais ampla, sobre os direitos

humanos, centra-se no tema da universalização dos direitos humanos,

no Brasil abordada por autores como Piovesan (1999). Entende-se

como “universalização dos direitos humanos” a aplicação dos princí-

pios da Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela

Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, a

todo ser humano, indepedente de sexo, idade, grupo social, etnia ou

nacionalidade.

Nesse contexto, cabe a discussão: até que ponto as práticas especí-

ficas de algumas culturas, como a cultura indígena, devem ser punidas

caso firam algum dos princípios da Declaração Universal dos Direitos

Humanos, de 1948, da qual o Brasil é signatário?5 Caso sejam punidas,

como se aplicará a punição (de maneira diferenciada)? A universaliza-

ção dos direitos humanos deve ultrapassar as especificidades de cada

cultura, como as culturas dos povos indígenas? Cabe à justiça brasileira

– idealizada e concebida em uma sociedade totalmente distinta da indí-

gena – refletir sobre tal sociedade? Essa prática, por si só, não seria uma

forma de autoritarismo e de opressão?

Posta essa reflexão e dada uma breve síntese do tratamento jurídico

que tem sido dado às questões indígenas no Brasil e suas repercussões, é

4. Um exemplo de discussão na defesa de que, com exceção dos índios isolados, os

demais devem responder como cidadãos comuns em processos penais, é o projeto de lei do

Senado – PLS 00216/2008, de 29 de maio de 2008 , apresentado pelo senador Lobão Filho

(PMDB-MA), em tramitação, que altera o art. 56 da Lei n. 6.001, de 19 de dezembro de 1973,

para estabelecer critérios de imputabilidade de índios.

5. Nesse cenário da discussão, encaixa-se, por exemplo, o projeto de lei – PL 1057/2007 –,

de autoria do deputado Henrique Afonso (PT-AC), que atualmente está aguardando parecer.

O projeto “dispõe sobre o combate a práticas tradicionais nocivas e à proteção dos direitos

fundamentais de crianças indígenas, bem como pertencentes a outras sociedades ditas não

tradicionais”. O projeto é conhecido como Lei Muwaji, em homenagem a uma mãe da tribo

dos suruwahas, que se rebelou contra a tradição de sua tribo e salvou a vida da filha, que seria

morta por ter nascido deficiente.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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possível explorar, então, o tema central deste trabalho: o direito do índio

à educação e o papel do Estado nessa atividade.

Entende-se, neste trabalho, o direito à educação como um direito

fundamental de segunda geração6, com caráter social e assistencial.

Educação Indígena

Como lembra Cunha (2005), desde o século XVI, logo após a chega-

da dos portugueses ao Brasil, a educação escolar no país atinge comuni-

dades indígenas, pautada, a princípio, pela catequização feita pelos mis-

sionários jesuítas e, posteriormente, pela integração forçada dos índios

à sociedade nacional, pelos programas de ensino do extinto Serviço de

Proteção aos Índios.

Nas últimas duas décadas, a partir da mobilização dos próprios ín-

dios e de movimentos relacionados à causa indígena, a política educa-

cional voltada para os índios começou a apresentar mudanças, princi-

palmente a partir da Constituição Federal, promulgada em 1988, e da

legislação subsequente7.

O artigo 210o da Constituição Nacional, embora reafirme a imposi-

ção da língua portuguesa no ensino fundamental brasileiro – posta em

prática, inicialmente, no século XVIII, pelo Marquês de Pombal –, asse-

gura às comunidades indígenas a possibilidade de também utilizar nas

escolas suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem:

Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artís-ticos, nacionais e regionais.

6. Os direitos de primeira geração correspondem aos direitos civis e políticos, com base

no princípio da liberdade. Os direitos de segunda geração têm caráter econômico, social e

cultural, como o direito ao lazer, ao trabalho, à saúde e outros, correspondendo ao princípio

da igualdade. Os direitos de terceira geração correspondem à fraternidade, como direito ao

desenvolvimento, à paz e ao meio ambiente sadio. Juntos, eles compõem a tríade liberdade,

igualdade e fraternidade.

7. Vale destacar, no entanto, que as práticas de educação e de catequização indígena

ainda persistem no Brasil, como aponta Amoroso (1998).

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SABINE RIGHETTI

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§ 2o O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, as-segurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.

Vale destacar que, de acordo com dados da Funai, pelo menos 180

línguas8 são faladas pelos membros das sociedades indígenas presentes

no Brasil, que pertencem a mais de trinta famílias linguísticas diferen-

tes9 que, de acordo com a Funai, permanecem em constante processo de

modificação e de re-elaboração, independente do contato com as socie-

dades de origem europeia e africana.

Depois da Constituição de 1988, outros instrumentos dispuseram

sobre a educação indígena, como o Decreto n. 26, de 4 de fevereiro de

1991, que, no uso da atribuição conferida pelo artigo 84o, inciso IV, da

Constituição de 1988, e tendo em vista o Estatuto do Índio, determinou:

Art. 1o Fica atribuída ao Ministério da Educação (MEC) a competência para co-ordenar as ações referentes à educação indígena, em todos os níveis e modalidades de ensino, ouvida a Funai.

Art. 2o As ações previstas no art. 1o serão desenvolvidas pelas secretarias de educação dos estados e municípios em consonância com as secretarias nacionais de educação do Ministério da Educação.

A transferência de responsabilidade e de coordenação das iniciativas

educacionais em Terras Indígenas do órgão indigenista (Funai) para o

MEC, em articulação com as secretarias estaduais de educação, através de

Decreto da Presidência da República (n. 26/1991), abriu a possibilidade,

ainda não efetivada, de que as escolas indígenas fossem incorporadas

aos sistemas de ensino do país, com o objetivo de encerrar a recorrente

8. De acordo com informações da Funai, cerca de 1.300 línguas indígenas diferentes

eram faladas no Brasil há quinhentos anos. O desaparecimento de tantas línguas representa

uma enorme perda para a humanidade, pois cada uma delas expressa todo um universo cul-

tural, uma vasta gama de conhecimentos, uma forma única de se encarar a vida e o mundo.

9. O fato de diferentes sociedades indígenas falarem línguas pertencentes a uma mesma

família não faz com que seus membros consigam entender-se mutuamente. Um exemplo

disso se dá entre o português e o francês: ambas são línguas românicas ou neolatinas.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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transferência de responsabilidades do órgão indigenista para missões re-

ligiosas no atendimento das necessidades educacionais indígenas.

Alguns anos depois, o governo federal instituiu a Lei de Diretrizes e

Bases (LDB), n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que dedica dois arti-

gos das disposições gerais ao ensino voltado para os índios:

Art. 78. O Sistema de Ensino da União, com a colaboração das agências fede-rais de fomento à cultura e de assistência aos índios, desenvolverá programas inte-grados de ensino e pesquisa, para oferta de educação escolar bilingue e intercultural aos povos indígenas, com os seguintes objetivos:

I. proporcionar aos índios, suas comunidades e povos, a recuperação de suas memórias históricas; a reafirmação de suas identidades étnicas; a valorização de suas línguas e ciências;

II. garantir aos índios, suas comunidades e povos, o acesso às informações, conhecimentos técnicos e científicos da sociedade nacional e demais sociedades in-dígenas e não-índias.

Art. 79. A União apoiará técnica e financeiramente os sistemas de ensino no provimento da educação intercultural às comunidades indígenas, desenvolvendo programas integrados de ensino e pesquisa.

§ 1o Os programas serão planejados com audiência das comunidades indíge-nas.

§ 2o Os programas a que se refere este artigo, incluídos nos planos nacionais de educação, terão os seguintes objetivos:

I. fortalecer as práticas sócio-culturais e a língua materna de cada comunidade indígena;

II. manter programas de formação de pessoal especializado, destinado à edu-cação escolar nas comunidades indígenas;

III. desenvolver currículos e programas específicos, neles incluindo os conteú-dos culturais correspondentes às respectivas comunidades;

IV. elaborar e publicar sistematicamente material didático específico e dife-renciado.

A partir da LDB, surge uma demanda, por parte dos próprios indíge-

nas, por um ensino diferenciado em suas comunidades (Cunha, 2005),

tema abordado no Plano Nacional de Educação (PNE), Lei n. 10.172, de

9 de janeiro de 2001. De acordo com o texto referente ao diagnóstico da

educação indígena no Brasil, presente no PNE, a transferência da respon-

sabilidade pela educação indígena da Funai para o MEC, realizado pelo

Decreto n. 26/1991, abordado anteriormente, representou uma simples

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SABINE RIGHETTI

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transferência de atribuições e responsabilidades, sem um processo de

instituição de parcerias entre órgãos governamentais e entidades ou or-

ganizações da sociedade civil:

A transferência da responsabilidade pela educação indígena da Funai para o MEC [...] representou uma mudança em termos de execução: se antes as escolas indígenas eram mantidas pela Funai (ou por secretarias estaduais e municipais de educação, através de convênios firmados com o órgão indigenista oficial), agora cabe aos estados assumirem tal tarefa. A estadualização das escolas indígenas e, em alguns casos, sua municipalização, ocorreram sem a criação de mecanismos que assegurassem uma certa uniformidade de ações que garantissem a especificidade destas escolas (Educação Indígena – Diagnóstico PNE/2001).

Conforme a análise exposta no PNE de 2001, não há, ainda, uma cla-

ra distribuição de responsabilidades entre a União, os estados e os mu-

nicípios, o que dificulta a implementação de uma política nacional que

assegure a especificidade do modelo de educação intercultural e bilíngue

às comunidades indígenas. E, indo além: “Há também a necessidade de

regularizar juridicamente as escolas indígenas, contemplando as experi-

ências bem-sucedidas em curso e reorientando outras para que elabo-

rem regimentos, calendários, currículos, materiais didático-pedagógicos

e conteúdos programáticos adaptados às particularidades étno-culturais

e linguísticas próprias a cada povo indígena”.

A construção de escolas indígenas é abordada recorrentemente em

projetos de lei atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados,

como o PL 468/2007, do deputado federal Geraldo Resende (PPS-MS),

que sugere a construção de escola indígena em Dourados (MS), ou do PL

281/2007, do deputado federal Vander Loubet (PT-MS), que faz a mesma

sugestão para o município de Porto Murtinho (MS).

A regularização das escolas indígenas, proposta pelo PNE de 2001, há

tempos é um tema polêmico na discussão da educação indígena. Alguns

estudiosos, como Cavalcanti (1999), questionam o papel da escolariza-

ção de índios, posto que não se sabe qual é, precisamente, o significado

cultural da demanda dos índios por escolas.

Nessa linha de debate abordada por Cavalcanti (1999), incidimos

na questão do direito à educação como um direito fundamental, de

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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segunda geração, de obrigação do Estado. E aqui cabe um questiona-

mento: mesmo considerando as especificidades, cabe ao Estado garan-

tir educação, na sua forma adotada pela sociedade dita “tradicional”, às

populações indígenas que, em seu histórico e tradição, não fizeram uso

dessa forma de educação?

Sem o objetivo de responder tal pergunta, que muito provavelmen-

te não tem, ainda, uma resposta ou uma reflexão suficiente, vale ascen-

der um debate trazido por Cunha (2005): recentemente, algumas escolas

indígenas, em que as aulas eram ministradas apenas em língua indígena,

têm solicitado o ensino de português, que passou a representar um ins-

trumento na luta pelos direitos dos índios, encabeçada pelos próprios

indígenas e pelos movimentos relacionados.

O fenômeno revela uma nítida mudança de paradigma10 no papel

assistencial do Estado em relação aos índios, até então vigente, para dar

lugar a um movimento amparado pela sociedade civil e promovido pe-

los próprios índios na luta pelos seus direitos.

Recentemente, os indígenas têm participado mais ativamente de

fóruns organizados pelo MEC em parceria com a Funai, de audiências

públicas e de outras reuniões (Cunha, 2005). Dado esse fenômeno, os

próprios índios não poderiam, então, concentrar o poder de decisão so-

bre o tipo de ensino que terão (se terão) e, indo além, de escolherem se

o ensino deve ser na sua língua nativa ou bilíngue (incluindo o portu-

guês)? Ou o próprio fenômeno, por si só, já representa uma integração

progressiva dos índios na sociedade “tradicional”, o que contraria os ob-

jetivos de preservação da cultura indígena?

Dentro do debate da educação indígena, surge um novo debate re-

ferente à formação de professores para a educação indígena: no Brasil

apenas duas universidades oferecem graduação específica para índios

10. O conceito de “paradigma” (ou “modelo vigente”) refere-se à análise de Thomas

Kuhn (1987) em relação à produção científica. A teoria de Kuhn (1987), aplicada ao presente

trabalho, tem o objetivo de mostrar que o paradigma vigente de que o Estado tem um papel

assistencial em relação aos índios tem sido quebrado e, no lugar, surge um movimento em

que os próprios índios e movimentos relacionados passam a exigir os seus direitos e a guiar

tomadas públicas de decisão.

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SABINE RIGHETTI

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que desejam se tornar professores para a educação indígena. A pioneira

foi a Universidade do Estado do Mato Grosso (Unemat), que criou a pri-

meira turma de indígenas em 2001, reunindo índios estudantes de onze

estados diferentes. Graduados em 2006, os novos professores indígenas

ficaram habilitados em licenciatura de ciências sociais, línguas, artes e

literatura e ciências da matemática.

Em 2003, a Universidade Federal de Roraima (UFRR) criou, com a

mesma finalidade, a Licenciatura Intercultural. Na UFRR, desde 2007, os

índios também podem se inscrever no vestibular dos cursos tradicionais

de graduação. Os candidatos devem apresentar registro administrativo

indígena expedido pela Funai, carta de indicação da comunidade indí-

gena e documento no qual se comprometem a trabalhar pelo seu povo e

sua região após a conclusão do curso.

A Universidade Federal do Amazonas (Ufam) estuda a implantação

do curso de Licenciatura Indígena em Políticas Educacionais e Desen-

volvimento Comunitário, ministrado em línguas indígenas no Amazo-

nas. A proposta tem o apoio do MEC e deve ser realizada em parceria

com a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e

com o Instituto de Desenvolvimento em Política Linguística (Ipol).

Enfim, se o oferecimento de educação indígena, suas práticas, suas

metodologias e sua instrumentação jurídica, estão longe de ser um con-

senso e constituem uma fogueira de debates, o debate sobre a formação

de professores voltados para a prática dessa educação está apenas come-

çando a soltar suas faíscas.

O Direito do Habitante “Tradicional” à Educação para

Cultura Indígena

Como mencionado no início deste trabalho, tão importante quanto

a discussão sobre a educação indígena, voltada para os índios, é a educa-

ção para a promoção e preservação da cultura indígena, voltada à socie-

dade dita “tradicional”. Tal atividade depende de políticas públicas e de

ações para disseminar a cultura indígena, com o objetivo de incentivar

a sua preservação.

Além de iniciativas educacionais pontuais, como, por exemplo, a

realização de mostras e de exposições sobre cultura indígena, a inserção

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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da temática indígena na escola e no currículo escolar tem se mostrado

fundamental. O debate sobre essa inserção tem caminhado junto, porém

com menos força, com as discussões sobre a inclusão de temáticas afro-

brasileiras no currículo escolar, já prevista na LDB de 2003.

Inserir a temática do índio na escola, obviamente, significa ir além

de atividades já realizadas nas escolas e que se restringem, por exemplo,

nas comemorações do Dia do Índio (19 de abril), atividades essas que,

muitas vezes, podem contribuir para uma mitificação do índio e um dis-

tanciamento do conceito real da cultura indígena (Freire, 2002). Trata-se

de inserir a temática efetivamente no currículo escolar.

Recentemente, o avanço, do ponto de vista jurídico, foi grande: o

estudo da história do povo indígena no Brasil será obrigatoriamente in-

cluído no currículo escolar, de acordo com a Lei n. 11.465/08, sanciona-

da pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, e publicada

no Diário Oficial da União em 11 de março de 2008. A lei altera um

artigo da LDB e substitui a Lei n. 10.639/2003, que já previa a inclusão da

temática afro-brasileira nos currículos das redes de ensino.

Agora, as escolas de ensino fundamental e médio, tanto públicas

quanto privadas, devem conferir o ensino da história e cultura dos po-

vos indígenas. De acordo com a nova lei, todas as disciplinas, especial-

mente história, geografia e literatura, devem incorporar a contribuição

dos negros e indígenas à cultura brasileira.

Se de fato praticada, a iniciativa pode contribuir para mudar a per-

cepção que se tem do índio e para avançar no campo das políticas, edu-

cacionais ou não, voltadas à causa indígena nas próximas gerações.

Considerações Finais

O presente artigo teve o objetivo de trazer uma reflexão sobre as

recentes discussões no campo da educação indígena no Brasil, partindo

de uma contextualização dos instrumentos jurídicos e institucionais dos

índios, tais como a criação da Funai (Fundação Nacional do Índio), em

1967, do Estatuto do Índio, em 1973.

O artigo ressalta uma mudança na abordagem da causa indígena

a partir da Constituição Brasileira de 1988, posto que, anteriormente à

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SABINE RIGHETTI

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Constituição, prevalecia a ideia de previsão de desaparecimento físico

dos índios e, desse modo, o governo assumia uma postura integracio-

nista que buscava assimilar os índios à comunidade nacional. Depois da

Constituição de 1988, o Brasil assume a cultura indígena e dá ao índio e

o direito de ser índio e de preservar a sua cultura e seus costumes.

Especificamente sobre à educação indígena, é abordada a inserção

desta temática na Constituição de 1988 e na legislação subsequente,

como LDB, de 1996, e o PNE, de 2001.

O debate proposto baseia-se na ideia de educação como um direito

fundamental, de segunda geração, de obrigação do Estado. No entanto,

o texto traz uma série de reflexões e questionamentos acerca do papel do

Estado na educação especificamente indígena (se realmente existe esse

papel) e, indo além, questiona se a educação nos moldes “tradicionais”

deve, de fato, ser oferecida aos índios, mesmo que sejam consideradas as

suas especificidades e sua língua tradicional no processo educativo.

O artigo levanta ainda a questão da formação de professores para a

educação indígena e os recentes movimentos da própria causa indígena

pare receber educação em português, dado que conhecer a língua portu-

guesa é um instrumento para os índios exigirem seus direitos. Caracte-

rizo esse movimento, em os índios tomam as rédeas da sua causa, como

uma “mudança de paradigma”, já que coloca em xeque o papel tutelar do

Estado em relação a eles.

Por fim, o texto aborda a questão da educação indígena para o habi-

tante dito “tradicional”, ou seja: a inserção da temática indígena no cur-

rículo escolar com o objetivo de disseminar a sua cultura e sua história.

O trabalho não tem o comprometimento de esgotar o assunto, mas

de trazer uma contribuição para a reflexão sobre a temática. Em rela-

ção à instrumentação jurídica sobre a educação indígena, o país ainda

patina, por exemplo, criando resoluções que transferem responsabilida-

des sem o acompanhamento de um processo de instituição de parcerias

entre órgãos governamentais e entidades ou organizações da sociedade

civil (como o Decreto n. 26/91, que transferiu da Funai ao MEC a atribui-

ção da educação indígena).

Discussões nesse sentido são essenciais em várias áreas do conheci-

mento, principalmente em um momento em que, como apresentado no

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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início no texto, o Brasil enfrenta pressões nacionais e internacionais para

preservar a cultura indígena. Posto que o país concentra hoje apenas

0,25% de índios, do total de sua população, e que mais de 1.100 línguas

indígenas já desapareceram do país desde a época do “descobrimento”,

de acordo com dados da Funai, pode-se dizer que reflexões sobre a ques-

tão indígena, atualmente, são mais do que fundamentais: são urgentes.

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Introdução

Nunca, em nenhum outro momento da história, o tema das ações

afirmativas esteve tão presente nos discursos políticos, na mídia, nos

movimentos sociais e nas discussões populares. Entendemos, neste tra-

balho, ação afirmativa como o conjunto de estratégias, iniciativas ou

políticas que visam favorecer grupos ou segmentos sociais que se en-

contram em piores condições de competição em qualquer sociedade em

razão, na maior parte das vezes, da prática de discriminações negativas,

sejam elas presentes ou passadas (Menezes, 2001). Em outras palavras,

trata-se de medidas que visam eliminar desequilíbrios existentes entre

determinadas categorias sociais até que eles sejam neutralizados.

A ação afirmativa possui uma nítida finalidade: implementar efeti-

vamente uma igualdade concreta (igualdade material), que a isonomia

(igualdade formal garantida na Constituição Federal de 1988), por si só

não consegue proporcionar (Menezes, 2001, p. 27).

Em relação à sua aplicação, a fixação de cotas é, ressalte-se, apenas

uma das modalidades existentes de ação afirmativa. Neste sentido, po-

demos citar outras hipóteses de aplicação de ação afirmativa, reconhe-

cidos, por exemplo, pelo governo norte-americano: a reformulação de

Ações Afirmativas e Cotas no Ensino Superior: uma Reflexão sobre o

Debate Recente

Camila Magalhães, Fernanda Montenegro Menezes e Sabine Righetti

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MAGALHÃES, MONTENEGRO E RIGHETTI

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políticas de contratação e promoção de desempregados, levando-se em

conta fatores que estão associados aos grupos que se pretende beneficiar

e a oferta de treinamento específico para minorias, tendentes a corrigir

algum desequilíbrio existente (Menezes, 2001).

A ideia de implantação de cotas visa limitar um número máximo

(teto) ou número mínimo (piso) de pessoas em uma determinada fun-

ção, atividade, curso e afins. No primeiro caso (teto), o objetivo é, ba-

sicamente, evitar abusos1. No segundo caso (piso), a meta é a inclusão

social por meio de uma fixação de um mínimo de pessoas que represen-

tam uma minoria desprivilegiada.

Na legislação brasileira há exemplos de cotas para inclusão. A Lei

n. 9.504, de 30 de setembro de 1997, que estabelece normas para as elei-

ções, define no 3o parágrafo do artigo 10o que “cada partido ou coligação

deverá reservar o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidatu-

ras de cada sexo”. Na prática, essa lei possibilita que pelo menos 30% dos

candidatos sejam mulheres – por isso a lei ficou popularmente conheci-

da como a “lei de cotas para mulheres em partidos políticos”. No mesmo

caminho, a Lei n. 7.853, de 24 de outubro de 1989, que dispõe sobre o

apoio às pessoas portadoras de deficiência, garante, em seu artigo 2o,

parágrafo único, referente à área da formação profissional e do traba-

lho, “a promoção de ações eficazes que propiciem a inserção, nos setores

públicos e privado, de pessoas portadoras de deficiência”. Embora a Lei

n. 7.853 não aborde especificamente as cotas, os portadores de necessi-

dades especiais passaram a contar, em alguns concursos públicos, com

uma quantidade mínima de vagas (piso)2.

Outro exemplo de cotas mínimas estabelecidas, alvo do presente

artigo, diz respeito ao estabelecimento de cotas para estudantes egressos

1. Hoje em dia, por exemplo, há um debate instalado no Brasil – bastante polêmico, por

sinal – sobre a criação de um possível projeto de lei com o objetivo de limitar a contratação

de parentes de primeiro e segundo grau para cargos exercer cargos públicos (tem-se falando

de um a dois parentes por cargo executivo).

2. A inclusão de portadores de deficiência física por meio de cotas em concurso público

pode ser considerada uma medida importante, porém simplista, já que não considera se, de

fato, o portador terá condições de trabalhar no posto assumido. Por exemplo: há, nos prédios

públicos, amplas condições para cadeirantes se locomoverem? Certamente não há.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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de escolas públicas, em especial pretos, pardos e indígenas3, nas institui-

ções públicas federais de educação superior. Merece destaque na aná-

lise da implementação da política de cotas raciais no acesso ao ensino

superior, posto que as universidades públicas desempenham um papel

fundamental no desenvolvimento e solidificação de uma democracia

capaz de representar as diferentes identidades culturais formadoras da

sociedade, a partir da construção de um espaço público apto à produ-

ção de um conhecimento mais plural, fruto de diferentes experiências e

visões de mundo4.

A educação, conforme os princípios da Lei de Diretrizes e Bases (LDB

– 1996), é um dever da família e do Estado “inspirada nos princípios de

liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o

pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da

cidadania e sua qualificação para o trabalho” (art. 2o). Assim, o acesso à

educação é uma maneira de garantir uma sociedade democrática, igua-

litária e desenvolvida tanto para seu exercício de cidadania, quanto para

o mercado de trabalho.

Tratando-se de educação superior, vale destacar que, em um país

com desigualdades sociais extremas como o Brasil, o ingresso na univer-

sidade representa também ascensão social. Em todas as regiões brasilei-

ras, o rendimento para cada ano adicional de escolaridade em relação

ao ensino médio completo é muito expressivo: quem cursa um ano de

ensino superior no Brasil tem um ganho de 50% em relação à situação

de um indivíduo que tivesse apenas o ensino médio5. E nesse contexto

3. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) separa a população brasileira

em brancos, pretos, pardos e indígenas ou amarelos.

4. De acordo com o pensamento de Silva e Silvério (2003): “Negros na universidade,

pois, tem de deixar de ser reivindicação do Movimento Negro para converter-se em com-

prometimento do poder público, compromisso das instituições de ensino, para que repare o

secular déficit de educação da população negra, produzido por organização social excludente,

discriminatória, racista. Compromisso e comprometimento que exigem quebra do domínio

intelectual, político, material, centrado numa única visão de mundo, de ciência, de cidadania

de origem europeia e estadunidense, requer diálogo entre estas visões e outras, como as de

raiz africana, indígena, asiática”.

5. Para as pessoas que têm quinze anos de escolaridade, que em média coincide com

o nível de ensino superior completo, o rendimento passa a ser 117% superior ao de indi-

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MAGALHÃES, MONTENEGRO E RIGHETTI

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em que o ingresso no ensino superior significa quase lineramente ascen-

são social, os negros correspondem, hoje, a apenas 2% do contingente de

universitários, apesar de representarem 45% dos brasileiros6.

O debate sobre as cotas no ensino superior – em especial as cotas

raciais – é polêmico e está longe de chegar a um consenso, inclusive em

grupos como os do movimento negro. De um lado, há a afirmativa de

que um impulso como o das cotas seria capaz propulsionar uma mu-

dança social maior. De outro lado, especialistas advertem para o fato de

que a própria existência de cotas seria uma forma de descriminação.

O presente artigo não tem a pretensão de esgotar o tema, mas sim

de fornecer subsídios para uma discussão especialmente do ponto de

vista jurídico, partindo da premissa de que a educação, independente da

raça ou classe social, é um direito de todos.

História das Ações Afirmativas

As ações afirmativas (affirmative actions) ganharam notoriedade

pública internacional na década de 1960, quando políticas de combate

à discriminação foram implantadas nos Estados Unidos como forma de

promover a igualdade entre negros e brancos norte-americanos. Neste

período, o então presidente Jonh Keneddy publicou o Decreto n. 10.952,

de 6 de Março de 1961, que criou a “Equal Employment Opportunity

Commission” (EEOC)7, buscando assegurar total isonomia entre traba-

lhadores no campo de trabalho.

Percorrendo a história norte-americana, podemos identificar uma

série de fatos e decisões históricas que contribuíram para o desenvolvi-

víduos com as mesmas características de idade, gênero, raça e região geográfica, mas que

possuem apenas o ensino médio. Já para os indivíduos com dezessete anos de estudo, isto é,

que possuem pós-graduação ou fizeram cursos de graduação de mais longa duração (como

medicina), o retorno no rendimento é 285% superior ao dos indivíduos com apenas o ensino

médio (Vogt, 2008).

6. De acordo com material institucional da Universidade Nacional de Brasília (UnB) so-

bre sua política de cotas. Disponível em: http://www.unb.br/admissao/sistema_cotas/index.

php, acesso em nov. 2008.

7. O Decreto n. 10.952/61 foi pioneiro na utilização da expressão “Ação Afirmativa”.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

261

mento e, ao final, para o declínio das ações afirmativas no país. De fato,

a política adotada por cada um dos governos norte-americanos contri-

buiu efetivamente para a trajetória das ações afirmativas.

Inicialmente, faz-se necessária a contextualização do princípio da

igualdade jurídica veiculada pela décima quarta emenda constitucional

norte-americana – a equal protection clause – cuja disposição estabelece

que nenhum Estado poderá “negar a qualquer pessoa sob sua jurisdição

a igual proteção das leis”8.

A igualdade jurídica veiculada pela décima quarta emenda nem

sempre foi aplicada de maneira uniforme nos tribunais norte-america-

nos. Após anos da edição da emenda, somente nas últimas décadas, a Su-

prema Corte tem assegurado a aplicação efetiva deste princípio, apoiada

em critérios fortalecidos e bem definidos.

Ocorre que o posicionamento inicialmente emcampado pela Su-

prema Corte nos primeiros casos envolvendo a equal protection clause9

deu margem ao desenvolvimento de uma doutrina que veio a ser iden-

tificada como separate but equal – separados mas iguais –, amplamente

adotada no período compreendido entre 1896 e 1954 (Menezes, 2001).

Segundo tal doutrina, a segregação racial seria admitida na presta-

ção de serviços ou como criterio genérico de tratamento, desde que os

“separados” tivessem as mesmas condições, dentro de um mesmo pa-

drão para todas as raças. Neste sentido, proibia-se que a segregação fosse

utilizada a pretexto da discriminação e da exclusão racial.

Muito embora a doutrina “separados, mas iguais” tenha perdurado

durante quase um século, a partir da década de 1950 ela foi afastada em

importantes decisões da Suprema Corte, que tinham por objeto justa-

mente o tema no qual ela se originou: a segregação racial adotada nas

instituições de ensino.

8. Constituição dos Estados Unidos da América – Emenda XIV. “Nenhum Estado pode-

rá... negar a qualquer pessoa sob sua jurisdição a igual proteção das leis”.

9. Neste sentido vide Strauder v. State of West Virginia 100 US 303 (1879) e Pace v.

Alabama 106 US 583 (1883).

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Page 248: Direito à educação: aspectos constitucionais; 2009unesdoc.unesco.org/images/0018/001876/187688por.pdf · 7 9 Apresentação Nina Beatriz Stocco Ranieri I. OS ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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Em 1954, a decisão proferida no emblemático caso Brown v. Board

of Education of Topeka10 representou, portanto, um marco do direito

constitucional norte-americano no rompimento da doutrina “separa-

dos, mas iguais”. Na decisão, reforçou-se o entendimento de que a dou-

trina, que permitia a segregação racial em escolas, mas exigia que as ins-

talações e “facilidades” educacionais11 para os afro-americanos fossem da

mesma qualidade que a dos brancos – nunca daria aos afro-americanos

o mesmo padrão de qualidade de educação recebidas pelos brancos.

A decisão proferida no caso endossou o descontentamento dos ne-

gros com as políticas discriminatórias adotadas nos Estados Unidos e

colaborou para o surgimento de vários movimentos em defesa dos di-

reitos humanos. Evidenciou-se que as manifestações do judiciário eram

insuficientes para conter a intensa onda discriminatória.

É neste contexto – de profundo descontentamento e de crescimento

de movimentos de direitos civis – que surgem os primeiros avanços das

políticas de ações afirmativas nos Estados Unidos.

Durante o governo Lyndon Johnson (1963-1969) – efusivo defen-

sor de Ações Afirmativas foram criados mecanismos e estratégias de

combate e de superação das desigualdades raciais, culminando, em 1964

com a aprovação do Civil Rights Act12, da Lei de Direitos Civis (1964)

e da Lei de Direito ao Voto (1965). O governo Richard Nixon (1969-

1974), no entanto, representou um retorno conservador no que tange à

política de ações afirmativas. Apesar da elaboração do Plano Philadélfia,

que estimulou a contratação de minorias por companhias e entidade

10. O Brown v. Board of Education de Topeka (cidade norte americana situada no Es-

tado de Kansas) foi um caso judicial iniciado contra o Distrito Escolar de Topeka, em nome

de Linda Brown, uma aluna da terceira série que era forçada a caminhar 1,6 quilômetro para

estudar em uma escola para afro-americanos, enquanto que uma escola para alunos brancos

estava distante apenas sete quateirões de sua casa.

11. O termo “facilidades educacionais”, aqui aplicado, leva o sentido de laboratório e

outras formas de infra-estrutura para a educação como no seu original em inglês “educational

facilities”.

12. O artigo V do documento Civil Rights Act previa a garantia do princípio da igualda-

de na contratação e promoção dos trabalhadores, pertencentes às minorias.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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educacionais, os vários programas de incentivo à isonomia no trabalho

falharam em suas tarefas.

Em 1978, em pleno governo Jimmy Carter (1977-1981), a Suprema

Corte dos Estados Unidos pronunciou-se no emblemático caso Regents

of the University of California v. Bakke, no qual o candidato Alan Bakke,

reprovado no processo seletivo do curso de medicina da Universidade

da Califórnia discutiu a reserva de dezesseis das cem vagas destinadas a

estudantes pertencentes às minorias. A Suprema Corte decidiu, por cin-

co a nove votos, que o vestibulando branco Alan Bakke teve seus direitos

violados com o plano de Ação afirmativa dessa Universidade.

Comentando a decisão, Dworkin (2005), esclarece que:

Em 1978, no famoso processo Bakke, a Suprema Corte decretou que os planos de admissão sensíveis à raça não violam a 14a emenda da Constituição dos Estados Unidos, que declara que “nenhum estado poderá negar a qualquer pessoa a igual proteção das leis”, contanto que tais planos não estipulem cotas fixas para qualquer raça ou grupo, porém considerem raça somente como fator dentre outros.

O Juiz Lewis Powell, em seu parecer no famoso veredicto da Su-

prema Corte no processo Bakke, decidiu, portanto, que as preferências

raciais são constitucionais se sua finalidade for aumentar a diversidade

racial entre os alunos, não estipulando cotas fixas para as minorias, mas

levando em consideração a raça como um fato dentre muitos outros.

Mas, muitas vezes, não é possível definir as características que dis-

tinguem o sistema de cotas das políticas de ações afirmativas, admitidas

atualmente pela Suprema Corte do Estados Unidos. Nas palavras de Me-

nezes (2001): “Este dilema, na prática norte-americana, termina sendo

solucionado por exclusão: os sistemas de cotas são, de plano, considera-

dos inconstitucionais (razão pela qual eles são evitados), enquanto que

a constitucionalidade das outras modalidades de ação afirmativa acaba

sendo apreciada, de forma isolada, em cada caso específico”.

O programa de ações afirmativas nos Estados Unidos foi apoiado

com força até a década de 1980, quando Ronald Reagan foi eleito presi-

dente (1981-1989) e introduziu a ideia de que ação afirmativa era uma

espécie de “discriminação às avessas” (Anderson, 2004). Efetivamente, o

desmantelamento das políticas de ação afirmativa nos EUA se iniciou em

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1995, durante o mandato de Bill Clinton (1993-2001), quando a Univer-

sidade da Califórnia as aboliu13. O entendimento atual é que, para terem

o efeito desejado – de inclusão social - as cotas são necessárias por um

uma geração (25 anos). Assim, na segunda geração, a política de cotas

pode ser reduzida ou extinta.

É fato, portanto, que a implantação de programas e políticas de in-

clusão social de minorias, com vistas a conferir tratamento isonômico

entre os indivíduos, não é um assunto novo no cenário mundial. Em-

bora o tratamento das cotas no ordenamento jurídico norte-americano

possa servir como referencial para a aplicação de uma eficiente política

de ações afirmativas, a história traçada ao longo de todos estes anos e,

em especial, a realidade brasileira mostra-se completamente distintas da

norte-americana. Por isso, vale uma caracterização especial do contexto

brasileiro.

O Racismo no Brasil14

Desde o final do século XIX, o antropólogo maranhense Raimundo

Nina Rodrigues, apontado como pioneiro dos estudos africanos no Bra-

sil, tem trabalhado nos estudos voltados para a questão negra no país e,

mais especificamente, para o racismo. Em 1900, já havia publicado no

Jornal do Comércio o que viria a ser depois capítulo do livro póstumo Os

Africanos no Brasil, de 1933.

Nessa mesma década de 1930, Gilberto Freyre consolidou-se como

intelectual abordando o tema na obra Casa Grande e Senzala, publicada

pela primeira vez em 1933. Nesse período, irrompia no Brasil uma série

de reivindicações dos que lutavam para que assuntos de seu interesse

fossem abordados na mídia e para que termos preconceituosos fossem

dispensados dos textos jornalísticos. O negro está presente na mídia com

sua imagem comumente ligada à força muscular (esportes, principal-

13. Nesse período, em meados da década de 1990, tem início a discussão sobre as ações

afirmativas no Brasil.

14. Os conceitos de racismo e raça são entendidos e trabalhados como construções

sociais, que somente se eivam de sentido quando inseridos num contexto valorativo, no qual

práticas discriminatórias dirigidas a determinados grupos são recorrentes.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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mente o futebol, e subemprego), à música (samba) e a crimes (na seção

policial). Antes disso, a presença dos negros nos jornais era um modo de

legitimar a escravidão, tal como o trecho transcrito a seguir, uma crítica

ao movimento da Mocidade Negra.

Continua o nosso reacionário: Por que motivo os negros, em grande maioria, moram nos cortiços? A resposta, asseguro-lhe, é muito fácil: a pouca valia que im-primem aos seus trabalhos; a pouca ou nenhuma cultura e a acentuada dolência dos seus passos; a inércia e a falta de vontade e iniciativa para uma reação na trilha do progresso, são as causas principais que obrigam os negros às misérias do cortiço. (O trecho transcrito faz parte do editorial Ironia de um congresso, do jornal Folha da Manhã – atual Folha de S.Paulo –, publicado num domingo, 12 de janeiro de 1930.)

Com a ditadura militar e a repressão à imprensa e aos movimen-

tos sociais, nas décadas de 1960 e 1970, a cobertura das questões raciais

pela imprensa continua deficitária. É como se mostrar questões raciais

na grande mídia significava assumir que esses problemas existiam (Ri-

ghetti, 2003).

A nova Constituição Federal de 1988 passou a considerar o racis-

mo como crime, o que foi regulamentado no ano seguinte, pela a Lei n.

7.716, do deputado negro Carlos Alberto Caó (por isso, ficou conhecida

como Lei Caó). A partir de então, expressões que destacavam a cor de

pele da pessoa citada sumiram das notícias jornalísticas, o que refletiu

até nos manuais de redação (Righetti, 2003).

Além da mídia, a própria inserção da temática dos negros na edu-

cação é recente e foi inicialmente institucionalizada no artigo 26 da Lei

de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB – Lei n. 9.394, de 20

de dezembro de 1996), que estabeleceu as diretrizes e bases da educação

nacional:

Art. 26. Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base na-cional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela.

§ 4o O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das dife-rentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matri-zes indígena, africana e europeia (grifo nosso).

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Porém, somente em 2003, a Lei Federal n. 10.639, de 9 de janeiro,

alterou a LDB (Lei n. 9.394), acrescentando a ela dois artigos (art. 26-A e

art. 79-B). Dessa forma, a lei incluiu, efetivamente, no currículo oficial

da rede de ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-

Brasileira.

Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e par-ticulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.

§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contri-buição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.

§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão minis-trados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.

A nova Lei Federal n. 10.639/03 incluiu também no calendário das

escolas o dia 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra

(art. 79-B)15. A partir da LDB tem início uma movimentação no sentido

de inserir a história da África nos materiais didáticos e, com isso, desper-

tar o interesse para a questão negra no Brasil.

Mas uma mudança marcante no debate sobre as relações raciais no

Brasil16 é recente e marcada pela III Conferência Mundial das Nações

Unidas de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e In-

tolerância Correlata, realizada em Durban, na África do Sul, em 2001.

Pela primeira vez, desde o fim da escravidão, o Estado brasileiro reco-

nhece, perante a comunidade internacional, a persistência do racismo

nessa sociedade e como este se apresenta como variável relevante na de-

terminação das desigualdades socioeconômicas entre brancos e negros

no Brasil.

15. Vale destacar que a alteração da LDB de 1996 pela nova lei federal de 2003 resultou

em um “reaquecimento” do debate sobre o movimento negro no Brasil.

16. Ressalta-se que o movimento negro, refletindo as demandas daqueles que sofrem

o preconceito, é personagem principal da luta política pelo rompimento com determinados

paradigmas sociais não mais aceitáveis eticamente.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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Reconhece também que as estruturas e práticas do colonialismo

levaram à discriminação racial, mostrando-se necessária a implementa-

ção de políticas públicas especificamente voltadas para efetiva inclusão

da população negra nas mais diferentes esferas sociais17.

Além da herança deixada pelas práticas escravistas18, foi difundido

socialmente o mito da democracia racial brasileira, da sociedade mesti-

ça, em que brancos e negros são iguais perante a lei19, silenciando sobre a

diversidade étnica formadora da sociedade e contribuindo para a cons-

trução de um tipo de racismo bastante particular no Brasil20.

17. Declaração e programa de ação adotados na III Conferência Mundial de Combate

ao Racismo, Discriminação Racial, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata,

2001, Durban, África do Sul: Artigo 13. Reconhecemos que o colonialismo levou ao racismo,

discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata, e que os Africanos e afrodescendentes,

os povos de origem asiática e os povos indígenas foram vítimas do colonialismo e continuam

a ser vítimas de suas consequências. Reconhecemos o sofrimento causado pelo colonialismo

e afirmamos que, onde e quando quer que tenham ocorrido, devem ser condenados e sua re-

corrência prevenida. Ainda lamentamos que os efeitos e a persistência dessas estruturas e prá-

ticas estejam entre os fatores que contribuem para a continuidade das desigualdades sociais e

econômicas em muitas partes do mundo ainda hoje; Artigo 17. Enfatizamos que a pobreza, o

subdesenvolvimento, a marginalização, a exclusão social e as disparidades econômicas estão

intimamente associadas ao racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata,

e contribuem para persistência de práticas e atitudes racistas que geram mais pobreza; Artigo

32. Reconhecemos o valor e a diversidade da herança cultural dos africanos e afrodescenden-

tes e afirmamos a importância e a necessidade de que seja assegurada sua total integração à

vida social, econômica e política, visando a facilitar sua plena participação em todos os níveis

dos processos de tomada de decisão.

18. Ressalta-se que, para alguns autores, as políticas imigratórias do início do século

XX, voltadas aos europeus e asiáticos, deram continuidade a práticas observadas na escravi-

dão, como tráfico de pessoas, espancamentos, ausência de contratos de trabalho, entre outros

(Almeida, 2004).

19. A igualdade entre brasileiros está assegurada nos artigos 3o e 5o da Constituição Fe-

deral de 1988: Art. 3o Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

§ IV. promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quais-

quer outras formas de discriminação. Art. 5o Todos são iguais perante a lei, sem distinção

de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a

inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos

termos seguintes.

20. Guimarães (1999) entende o mito democrático como uma teria tão persuasiva

quanto à ideologia, definindo-o como “uma ideologia historicamente dada, materializada em

práticas sociais, em políticas estatais e em diversos discursos literários e artísticos”, defenden-

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Diferentemente do que ocorreu, por exemplo, nos Estados Unidos

e na África do Sul, onde a discriminação racial foi institucionalizada por

meio de leis segregacionistas, o discurso jurídico brasileiro, estabelecen-

do uma igualdade abstrata, acabou por gerar uma anulação cultural dos

negros (não-reconhecimento) sob dois aspectos elementares na forma-

ção da sua identidade: o de ser negro em sua própria subjetividade e

enquanto grupo étnico-racial.

Com efeito, a manipulação discursiva do conceito da igualdade ab-

soluta, que não considera a diversidade humana e a sua vertente do di-

reito à diferença, não foi capaz de superar as desigualdades estabelecidas

entre brancos e negros até o presente momento, verificadas a partir dos

dados estatísticos em diferentes níveis (educação, emprego, violência

urbana, renda etc.), mesmo sem ser a população negra uma minoria

propriamente dita21.

Segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano de 2005, ela-

borado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento

(Pnud):

As políticas de ação afirmativa justificam-se no Brasil porque as diferenças raciais persistem ao longo das décadas, seja em fases de crescimento, seja em fases de desaceleração da economia. [...] O Estado deve administrar a tensão existente entre a necessidade do reconhecimento das singularidades de determinado grupo e a exigência da superação das desigualdades. Reconhecer a diferença cultural implica estabelecer uma democracia multicultural.

Ronald Dworking (2005), defensor da implementação desses princí-

pios nos EUA, afirma que programas desse tipo são necessários e válidos,

enquanto os negros dentro da comunidade não tenham conquistado a

do que, somente a partir da reconstrução do conceito de raça e, com isso, o aparecimento de

uma identidade negra, é que se poderá pensar na superação do racismo.

21. De acordo com o IBGE, com base no levantamento da Pesquisa Nacional por Amos-

tra de Domicílios de 2007, somente 12% de negros e pardos estão entre o 1% mais rico, en-

quanto os brancos formam 86,3% do grupo. Já entre os 10% mais pobres figuram 73,9% de

negros e pardos contra 25,5% de brancos: “os grupos raciais subalternizados [...] padecem de

uma precária inserção social ao longo dos 120 anos. Esta precária inserção social não é expli-

cada pelo ponto de partida, mas pelas oportunidades diferenciadas a eles oferecidas”.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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liberdade de se autodeterminarem, por meio de escolhas próprias sobre

qual papel deseja exercer socialmente, pois onde o racismo se faz presen-

te, ao negro cabe o enquadramento no modelo representativo cultural-

mente estabelecido, impondo-lhes um estilo de vida reduzido, uma vez

que não são reconhecidos como indivíduos titulares de direitos22.

A Fundamentação Jurídica

O debate jurídico sobre o sistema de cotas para o ensino superior,

basicamente, gira em torno de duas ideias: da inconstitucionalidade das

cotas, a partir de uma interpretação de que os direitos de todo e qual-

quer brasileiro são iguais, e da constitucionalidade da política, pela in-

terpretação de trata-se de uma política de promoção da inclusão que,

inclusive, pode ser realizada com base em princípios estabelecidos por

cada universidade pública.

Um dos argumentos vigentes no debate sobre a inconstitucionali-

dade das cotas é a inexistência, na jurisprudência nacional, de separa-

ção racial para qualquer finalidade. Esse tratamento – de separação por

raças – feriria o princípio fundamental de igualdade entre os cidadãos,

garantido, na Constituição Brasileira de 1988, pelo artigo 5o (princípio

da isonomia). “Art. 5o Todos são iguais perante a lei, sem distinção de

qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros resi-

dentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualda-

de, à segurança e à propriedade”.

A partir dessa linha de argumentação, o próprio levantamento do

sistema de cotas raciais no ensino superior “estimula” ou, até mesmo,

“desenvolve” um sentimento nacional de racismo, de competição entre

22. Reza o artigo 33 da Declaração da III Conferência de Durban: “Consideramos essen-

cial que todos os países da região das Américas e de todas as outras áreas da Diáspora africa-

na, reconhecerem a existência de sua população de descendência africana e as contribuições

culturais, econômicas, políticas e científicas feitas por esta população e a reconhecerem a

persistência do racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata que os afeta

especificamente, e reconhecemos que, em muitos países, a desigualdade histórica em termos

de acesso, inter alia, à educação, ao sistema de saúde, à moradia tem sido uma causa profunda

das disparidades sócio-econômicas que os afeta”.

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raças – inclusive nas vagas dos vestibulares para ingresso em universida-

des públicas. Por esse entendimento, haveria, nas cotas, um tratamento

discriminatório contra determinadas pessoas23.

Por outra interpretação, favorável às cotas, há a ideia de que tal

política de cotas poderia ser considerada constitucional já que tem por

objetivo remediar situações desvantajosas a um grupo social (no caso,

os negros). Assim, as cotas raciais nas universidades, enquanto política

pública de um Estado Democrático de Direito, para alcançar efetivida-

de deve também justificar-se juridicamente, identificando as normas

constitucionais que se colocam em tensão no debate, a fim de solu-

cionar o conflito gerado pela implementação de políticas públicas não

universalistas24.

Um dos pontos de partida é a constatação de que a universalização

do ensino fundamental e o crescimento do ensino médio, cujos objetivos

principais são de formação do cidadão e preparo para a vida, não foram

eficazes na equiparação qualitativa entre as escolas públicas e particula-

res, pondo-se necessariamente em conflito o direito à igualdade, tradu-

zido pelo forte argumento do mérito no êxito do vestibular, e o direito

à educação, nos seus aspectos de acesso e permanência. Na maioria das

vezes, os egressos de escolas privadas continuam vários passos a frente

dos egressos de escolas públicas no caminho ao ensino superior.

Vale destacar também o princípio da autonomia universitária25, que

garante que cada instituição pública de ensino superior tenha liberda-

de administrativa, financeira e pedagógica – o que incluiu, obviamente,

23. Vale destacar que, apesar do princípio da igualdade constante na Constituição Fe-

deral de 1988, permanece, no país, uma série de tratamentos desiguais entre pessoas. Por

exemplo, citamos o art. 295, do Código de Processo Penal (Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de ou-

tubro 1941), que garante prisão especial, com uma série de benefícios, a ministros do Estado,

portadores de diploma de ensino superior, magistrados, entre outros.

24. Ressalta-se que o silêncio e a falta de debate sobre a diversidade, estabelecido duran-

te todo o século XX, contribuiu decisivamente para dificultar o debate envolvendo a questão

racial no Brasil.

25. De acordo com Ranieri (2005) significado mais amplo e genérico de autonomia de-

signa poder de autodeterminação, exprimindo a ideia de direção própria: “autonomia indica

a competência de autonormação, ou seja, a possibilidade de dar-se um ordenamento jurídico,

o que consiste em poder funcional derivado, circunscrito ao peculiar interesse da entidade

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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a liberdade para desenvolver sistemas de ingressos que possam incluir

ações afirmativas como as cotas. A autonomia universitária é assegurada

pela Constituição Brasileira de 1988, no artigo 207:

Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, adminis-trativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indisso-ciabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.

§ 1o É facultado às universidades admitir professores, técnicos e cientistas es-trangeiros, na forma da lei. (Incluído pela Emenda Constitucional n. 11, de 1996.)

§ 2o O disposto neste artigo aplica-se às instituições de pesquisa científica e tecnológica. (Incluído pela Emenda Constitucional n. 11, de 1996.)

Os antropólogos da Universidade de Brasília (UnB), José Jorge de

Carvalho e Rita Segato, que elaboraram o programa de política de cotas

para negros naquela universidade, aprovado em 2003, entendem tal po-

lítica como medida estrutural de correção das desigualdades raciais, pois

o objetivo da prestação é a igualização de situações sociais desiguais.

De acordo com as projeções do Instituto de Pesquisa Econômica

Aplicada (Ipea), se a educação brasileira continuar progredindo no mes-

mo ritmo de hoje, em treze anos os brancos devem alcançar a média de

oito anos de estudo e os negros só atingirão essa meta daqui a 32 anos.

Portanto, só daqui a três décadas brancos e negros ficariam a par no en-

sino e concorreriam em pé de igualdade a uma vaga no ensino superior

público. Com isso, o Brasil arcaria com o ônus de perder os talentos de

mais de uma geração de jovens negros em sua quase totalidade (Carva-

lho e Segato, 2002). Dados também do Ipea revelam que dos 22 milhões

de brasileiros que vivem abaixo da linha de pobreza, 70% são negros; en-

tre os 53 milhões de pobres do país, 63% são negros (Henriques, 2003).

Pesquisas realizadas pela UnB comprovam, ainda, o déficit de ren-

da dos estudantes negros em relação aos demais estudantes. Os dados

apontam que 57,7% dos candidatos de cor preta possuem renda familiar

inferior a R$ 1.500 reais, já em relação ao grupo de cor branca esse per-

centual é bem menor, 30%. A mesma disparidade é verificada quando se

que o detém, e limitado pelo ordenamento geral em que se insere, sem o qual, ou fora do qual,

não existiria” (Ranieri, 2005, p. 20).

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analisa o percentual de pessoas com renda acima de R$ 2,5 mil: 46,6%

dos candidatos de cor branca estão nessa categoria, enquanto o percen-

tual no grupo de cor preta é de 20,4%26.

Diante dos dados, impende estabelecer um conceito de princípio e

o instrumento jurídico de composição dos conflitos instaurados na rela-

ção de tensão entre eles. Fazendo uso da teoria de Alexy (1997), de distin-

ção entre princípios e regras, os princípios são normas que ordenam que

algo seja realizado na maior medida possível, diante das possibilidades

jurídicas e fáticas (da realidade) existentes, sendo caracterizados como

“mandamentos de otimização” que podem ser cumpridos em diferentes

graus a depender das condições fáticas e jurídicas de realização.

Os princípios denotam que algo deve ser realizado somente a prima

facie, pois, no caso concreto, não conduz a um resultado definitivo. O

princípio não determina como resolver definitivamente a tensão com

razões opostas de outras normas, carecendo de um “conteúdo de deter-

minação” frente as possibilidades fáticas de sua realização, significando

dizer que a razão dos princípios apenas apontam uma direção que não

contém uma decisão definitiva.

Em contrapartida, as regras seriam normas que contêm determi-

nações no âmbito do que é jurídica e faticamente realizável, ou seja, são

normas válidas se seus comandos puderem ser totalmente cumpridos;

se a razão da norma fracassa frente a impossibilidades jurídicas e fáticas,

não cabendo a introdução de uma cláusula de exceção, a referida regra

deve ser declarada inválida27.

Assim, a oposição de princípios não se encontra na dimensão de va-

lidade das normas, pois, tem-se como premissa que todos os princípios

são igualmente válidos, assim, a solução da oposição no caso concreto,

se concentra na dimensão do peso de cada principio, haja vista as suas

razões não serem absolutas ou definitivas, determinando direitos ou de-

veres apenas prima facie.

26. Informações do material “Sistema de Cotas para Negros” da UnB. Disponível em:

http://www.unb.br/admissao/sistema_cotas/index.php, acesso em nov. 2008.

27. Segundo Silva (2003), na teoria de Alexy, as regras expressam direitos ou deveres

definitivos, que devem ser realizados exatamente nos termos exigidos pela norma.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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Então, numa relação de tensão entre dois princípios aos quais o Es-

tado está vinculado pela Lei Fundamental, a solução deve ser tomada

por meio de uma ponderação sobre qual dos interesses opostos no caso

concreto possui o maior peso, com respeito às possibilidades fáticas e

jurídicas do seu cumprimento. Quando tomados em si mesmos, esses

princípios conduzem a resultados distintos, significando dizer que cada

um deles limita a possibilidade jurídica de realização do outro28.

Somente através da análise das condições do caso concreto, bus-

cando uma solução que não lesione um direito fundamental protegido

pelo ordenamento jurídico, a oposição de princípios deve ser soluciona-

da por meio do sopesamento, isto é, qual princípio tem peso maior sob

aquelas circunstâncias do caso em questão.

Sopesamento ou ponderação entre pesos é aqui compreendida

como diálogo entre os mandamentos dos princípios colidentes e as con-

dições suas de realização (fáticas e jurídicas) no caso concreto. Não é

uma escolha do que seja ontologicamente melhor, pois a restrição do

alcance de uma norma de direito fundamental impõe o exercício argu-

mentativo, não havendo qualquer fórmula ou parâmetro de otimização

na solução do conflito, apenas a Lei Fundamental.

Com efeito, a política pública de cotas raciais, gerando uma relação

de tensão entre os direitos fundamentais à igualdade de quem presta

o vestibular e à educação de quem não se encontra em condições se-

melhantes de competitividade, impõe, segundo Alexy, uma necessária

restrição a um dos princípios; por meio do sopesamento, ou seja, tendo

como ponto de equilíbrio a própria sistemática constitucional, diante

das condições da realidade brasileira e das desigualdades entre brancos e

negros, necessário se mostra o diálogo entre as razões determinadas por

28. Segundo a explicação de Luis Virgílio Afonso da Silva, “[...] importante, nesse ponto,

é a ideia de que a realização completa de um determinado princípio pode ser – e frequente-

mente é – obstada pela realização de outro princípio. Essa ideia é traduzida pela metáfora

da colisão entre princípios, que deve ser resolvida por meio de um sopesamento, para que se

possa chegar a um resultado ótimo. Esse resultado ótimo vai sempre depender das variáveis

do caso concreto [...]”.

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MAGALHÃES, MONTENEGRO E RIGHETTI

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ambos os princípios para se chegar a solução da aparente colisão no caso

concreto, qual deles teria peso maior.

Uma consideração deve ser exposta: a restrição ao princípio da

igualdade resultante do sopesamento dos princípios fundamentais em

tensão, na verdade, é atuante apenas em um dos aspectos dessa relação

de tensão, pois, em última instância, a máxima realização do direito à

educação dos negros, em decorrência das condições fáticas da realidade

brasileira, sugere à máxima realização do direito à igualdade, quando se

tem como referencial do sopesamento a sistemática jurídica da Consti-

tuição Federal de 1988.

Ainda, remanesce a mesma reflexão, se a relação de tensão se estabe-

lece eventualmente entre o direito fundamental à educação e a vertente

da não-discriminação do direito à igualdade, pois, por uma primeira

análise, a efetividade das cotas raciais pode conduzir à efetividade do

último para o grupo socialmente discriminado.

Experiências no Brasil

O debate sobre as ações afirmativas e cotas no ensino superior pú-

blico brasileiro ganhou força em meados da década de 1990, em especial

com o PL 73/99, de Nice Lobão (PFL-MA), que dispôs sobre o ingresso

nas universidades federais e estaduais, estipulando a reserva de 50% das

vagas para serem preenchidas mediante seleção de alunos nos cursos de

ensino médio – cota universitária29.

Outros PLs foram subsequentes, como o PL 3627 de 2004, que está

arquivado, versou sobre a instituição do Sistema Especial de Reserva de

Vagas para estudantes egressos de escolas públicas, em especial negros e

indígenas, nas instituições públicas federais de educação superior.

A primeira instituição federal de ensino superior a implementar o

sistema de cotas foi a Universidade de Brasília (UnB), que aprovou em

junho de 2003, após cinco anos de discussão, um plano de metas para

integração racial e étnica (já mencionado anteriormente). O sistema

29. O PL 73/99 ainda aguarda encaminhamento. A última ação foi em 20 de maio de

2008, quando não foi apreciado.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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atraiu 4,4 mil estudantes de um total de 23,5 mil inscritos – 18,6% dos

candidatos. Para eles, foram destinados 20% do total de vagas de cada

curso oferecido no 2o vestibular de 2004, 392 de 1.994. Desse número, os

cotistas foram 37830.

No ano seguinte, em 2004, a Universidade Federal da Bahia (UFBA),

estado que concentra a maior população preta e parda do país de acordo

com dados do IBGE31 – 15,7% e 63,4%, respectivamente, num total de

79,1% da população preta ou parda no estado – instituiu sua política de

cotas, integralmente transcrita no Manual do Candidato 2005. Pelo sis-

tema, há seis categorias32 de inscrição dos candidatos, de acordo com cor

e com sistema em que concluiu o ensino médio (público ou privado).

De acordo com Queiroz e Santos (2006), em um trabalho de análise

da política de cotas, o vestibular com reserva de vagas proporcionou

“uma revolução na UFBA”, pois fez ingressar, nos cursos mais competi-

tivos, uma parcela considerável de estudantes oriundos de escolas pú-

blicas. Cursos como Medicina, Arquitetura e Urbanismo, Odontologia,

Ciências da Computação, entre outros, que tinham uma participação

média de 27% de estudantes de escolas públicas, passou para 43%.

As iniciativas de cotas mencionadas, na UnB e na UFBA, foram re-

produzidas, de diferentes maneiras, em outras instituições federais de

ensino superior do país. No estado de São Paulo, já existem políticas de

30. Vale dizer que o Sistema de Cotas da UnB integra uma “comissão para averiguação

da raça” dos candidatos. Essa questão evidencia uma polêmica debatida até os dias de hoje:

como avaliar a “raça” de uma pessoa? Quem estaria apto a fazer isso? Não cabe, neste artigo,

um aprofundamento deste debate, mas é importante mencionar a sua existência.

31. Os dados são da última Pesquisa por Amostra em Domicilio (PNAD) do IBGE, rea-

lizada em 2006.

32. As categorias são: Categoria A (36,55%): candidatos de escola pública que se decla-

raram pretos ou pardos. Categoria B (6,45%): candidatos de escola pública de qualquer etnia

ou cor. Categoria D (2%): candidatos de escola pública que se declararam índio-descendentes.

Categoria E (55%): todos os candidatos, qualquer que seja a procedência escolar e a etnia ou

cor. Não sendo preenchidas todas as vagas das Categorias A e B, elas são prioritariamente pre-

enchidas por candidatos de escola particular que se declararam pretos ou pardos (inscrição de

Categoria C). Permanecendo vagas abertas, elas são preenchidas por candidatos com inscrição

da Categoria D. Não sendo preenchidas todas as vagas da Categoria D, elas são preenchidas

por candidatos com inscrição da Categoria E

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cotas e outras ações afirmativas implementadas, o que será apresentado

a seguir.

Experiências no Estado de São Paulo

O Estado de São Paulo concentra um total de 819 mil vagas no en-

sino superior público e privado33 e integra as principais universidades

do país: Universidade de São Paulo (USP), Universidades Estadual de

Campinas (Unicamp) e Universidade Estadual “Júlio de Mesquita Filho”

(Unesp), sendo as duas primeiras elencadas entre as principais univer-

sidades da América Latina. O Estado também integra 33 Faculdade de

Tecnologia (Fatecs).

Em 2003, o Decreto Estadual n. 48.328, de 15 de dezembro de 2003,

determinou a criação, junto a Secretaria da Justiça e da Defesa da Cida-

dania, da Comissão de Coordenação e Acompanhamento das Políticas

de Ações Afirmativas para Afrodescendentes, composta por representan-

tes de várias secretarias, de universidades públicas e de outras instâncias

de governo, entre elas o Conselho de Participação e Desenvolvimento da

Comunidade Negra.

Pouco depois a discussão das políticas de ação afirmativa ganhou

força, concomitantemente ao crescimento dos movimentos de inclusão

racial. Em uma dessas grandes universidades – a Unicamp – foi instituí-

do, em 2004, o primeiro programa de ação afirmativa sem cotas implan-

tado em uma universidade brasileira: o Programa de Ação Afirmativa e

Inclusão Social (Paais), que visa estimular o ingresso de estudantes da

rede pública e “estimular a diversidade étnica e cultural”34. Os estudan-

tes que optarem pelo Paais na inscrição para o vestibular recebem uma

pontuação a mais nota final do vestibular, proporcionalmente a seu de-

sempenho na prova. Candidatos autodeclarados pretos, pardos e indíge-

33. Os dados são de 2006 e foram coletados por meio do projeto Sistema Integrado de

Informação sobre o Ensino Superior do Estado de São Paulo (Siesp-SP), com base no Sistema

de Informações, Pesquisas e Estatísticas Educacionais (Inep).

34. De acordo com material institucional da Unicamp. Disponível em: http://www.

comvest.unicamp.br/paais/paais.html

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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nas que tenham cursado o ensino médio em escolas públicas terão, além

dos trinta pontos adicionais, mais dez pontos acrescidos à nota final.

O Paais já traz resultados significativos de inclusão e rompe com

ideias comumente difundidas sobre uma possível queda de qualidade na

universidade causada por programas de inclusão. Nota-se, por exemplo,

que o número de estudantes egressos de escolas públicas aumentou de

28% (antes do Paais, em 2004) para 34,1% (depois do Paais, em 2005).

De acordo com os últimos dados, do vestibular 2008, o número de egres-

sos de escola pública era 32%. Vale destacar ainda que anos 2006, 2007 e

2008 a relação de matriculados na Unicamp oriundos de escola pública

foi maior do que a relação dos inscritos no vestibular oriundos de escola

pública. Nota-se também que o número de estudantes pretos, pardos e

indígenas também aumentou após a implantação do Paais, passando de

11,6% antes do Paais (em 2004) para 15,7% depois do Paais (em 2005).

Também em 2004, a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)

instituiu um programa de cotas para candidatos que se autodeclararem

com cor de pele preta, parda ou indígena e tenham cursado o ensino

médio integralmente em escolas públicas, com o oferecimento de 10% a

mais de vagas em cada curso.

Em 2005, considerando a política de ações afirmativas para afrodes-

cendentes instituída pelo Decreto Estadual n. 48.328 já mencionado, e

considerando a necessidade da “criação de condições para a superação

acadêmico-intelectual dos graduados na rede pública de ensino”, o go-

verno estadual instituiu o Decreto Estadual n. 49.602, de 13 de maio de

2005, que determinou o sistema e pontuação acrescida para afrodescen-

tes egressos do ensino público nas Escolas Técnicas Estaduais (Etecs) e

Fatecs. O artigo 7o determina ainda a proposta de estudos para nortear

o sistema de pontuação acrescida nas universidades estaduais paulistas:

“Art. 7o A Secretaria da Ciência, Tecnologia, Desenvolvimento Econômi-

co e Turismo proporá às Universidades Estaduais a realização de estudos

visando a implantação dos princípios e diretrizes que norteiam o Siste-

ma de Pontuação Acrescida de que trata este decreto”.

O Decreto Estadual n. 49.602 reitera os rumos do caminho que a

Unicamp já havia traçado: o Estado de São Paulo trabalha no sentido de

instituir ações afirmativas com fator racial para egressos de escolas pú-

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blicas, e não política de cotas ou reserva de vagas. Nesse sentido seguiu

também a política da Universidade de São Paulo (USP), que implemen-

tou em 2007 o Inclusp, programa que combina a inclusão social com o

mérito acadêmico por meio de três tipos de bonificação35 que podem

resultar em um bônus de até 12% da nota do vestibular dependendo do

desempenho do candidato.

O pouco tempo de funcionamento do Inclusp dificulta uma avalia-

ção mais profunda, mas destacamos algumas observações. Nota-se que

desde a implantação do programa, o número de ingressantes na USP que

cursaram todo o ensino médio em escolas públicas aumentou um pou-

co: de 2.248 alunos (em 2006), para 2.719 (em 2007). Em seguida, houve

uma queda: 2.713 (em 2008).

De acordo com as primeiras avaliações feitas pela pró-reitoria de

graduação da USP, o desempenho acadêmico dos alunos que ingressa-

ram na USP beneficiados pelo programa (nota média 6,3) é maior do que

aluno “não-Inclusp” (nota média 6,2) o que, assim como o programa o

Paais da Unicamp, mostra que, ao contrário do que se imaginava, um

possível fraco desempenho acadêmico dos alunos poderia reduzir a qua-

lidade geral do ensino oferecido pela universidade pública.

A Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp)

ainda não tem um programa específico de ações afirmativas como a

Unicamp, a USP e a Fatec, apesar de já ter anunciado que está estudando

essa possibilidade, e não conta com programa de cotas como a Unifesp.

Mas a Unesp possui o programa de cursinhos pré-vestibulares gratui-

tos36 mantidos pela instituição como uma forma de política de inclusão

35. Os sistemas de bônus do Inclusp são: universal (até 3% sobre a nota do vestibular),

Enem (até 9% sobre a nota obtida no Exame Nacional do Ensino Médio – Enem) e Pasusp

(até 12% na nota).

36. Oferecidos gratuitamente, os cursinhos da Unesp preparam os estudantes egressos

da rede pública para os exames vestibulares de universidades públicas e particulares. Atual-

mente são oferecidas cerca de 3.800 vagas, em 22 campi. Os candidatos devem comprovar

carência socioeconômica. Nos vestibulares realizados no final de 2007, os pré-vestibulares

ajudaram a aprovar 1.050 alunos, sendo 707 em universidades públicas. As informações são

do material institucional da Unesp. Disponível em: http://www.unesp.br/aci/cursinhos/. aces-

so em nov. 2008.

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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

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de alunos do ensino médio público. Atualmente, a universidade estuda

criar vagas nos cursos de graduação exclusivas para estudantes que fize-

ram o ensino médio nas escolas públicas. Seria uma espécie de programa

de cotas, só que com novas cadeiras, que ainda seriam criadas.

O debate sobre acesso no ensino superior público do Estado de São

Paulo tem se acirrado cada vez mais, principalmente diante de uma ob-

servada redução de inscritos gerais no vestibular, mais especificamente,

de uma queda dos inscritos egressos de escolas de ensino médio públi-

co. Além disso, mesmo diante da comprovação estatística de que alunos

matriculados no ensino superior público beneficiados com programas

de inclusão têm rendimento superior elevado, mantém-se o debate so-

bre a dificuldade de manutenção desses alunos – em geral, de baixa ren-

da – na universidade.

Considerações Finais

A eleição de Barack Hussein Obama nos Estados Unidos, mais de

quatro décadas após a aprovação da Lei de Direito ao Voto naquele país,

reascende um debate mundial sobre a efetividade das políticas de ações

afirmativas, em especial das cotas raciais.

O debate, por si só, especialmente em países que sofrem de uma

extremada desigualdade social como o Brasil, já é válido, mesmo que no

meio de tanta incerteza e de opiniões controversas. A discussão traz à

tona um assunto que, no contexto brasileiro, parecia escondido por uma

espécie de “vergonha social” ou por um imaginário coletivo cultural e

historicamente enraizados de que o país é livre do racismo.

A discussão das desigualdades sociais e raciais, com recorte espe-

cífico nas cotas para o ensino superior público, é controversa e, como

exposto no presente trabalho, divide opiniões inclusive de um mesmo

movimento (como o movimento negro). É importante destacar, no en-

tanto, que o apoio às cotas, no contexto brasileiro, é apoiado em todos os

segmentos sociais e nos níveis de renda e de escolaridade mais elevados:

de acordo com pesquisa DataFolha de 2006, 65% dos brasileiros apóiam

as políticas de cotas para negros nas universidades brasileiras (Queiroz e

Santos, 2006, pp. 718-719).

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Sem a pretensão de se chegar a qualquer tipo de conclusão, vale

ressaltar que as cotas raciais atingem apenas uma parte do problema, ou

seja, trata-se de um paleativo. Com a medida das cotas raciais no ensino

superior público, o governo pode deixar para segundo plano o problema

da educação.

É necessário refletir sobre uma política mais ampla de educação, que

fortaleça, sobretudo, o ensino médio público – onde a grande maioria

dos pretos, pardos e indígenas, de acordo com a classificação do IBGE,

faz sua escola. Mas, destacamos, a inexistência de um debate fortalecido

no ensino médio não exclui a necessidade de um debate ainda mais apri-

morado sobre o ensino superior. É preciso fortalecer ambos os debates,

garantindo que todas as raças e classes sociais estejam representadas no

ensino básico, médio e superior público e, assim, garantir o definitivo

Direito à Educação de todos os brasileiros.

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da para o concurso de provas e títulos para provimento de cargo de profes-sor titular, junto ao Departamento de Direito do Estado, na Universidade de São Paulo.

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Adriana A. Dragone Silveira

Pedagoga pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), mestre em educação pela Faculdade de Educação da USP (Feusp) na área de concentração Estado, Sociedade e Educação, e doutoranda pela mesma instituição. Participa do Cen-tro de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas em Educação (Cepppe/ Feusp). Contato: [email protected].

Camila Magalhães

Advogada. Mestranda em Direitos Humanos na Faculdade de Direito da Uni-versidade de São Paulo (Fdusp). Integrante do grupo de estudos Proteção In-ternacional ao Direito à Educação, da Cátedra da Unesco de Direito à Educação da Fdusp. Contato: [email protected].

Eduardo Martines Júnior

Promotor de Justiça em São Paulo. Professor de Direito Constitucional da PUC-

SP, da Escola Superior do Ministério Público e da Fadi/Sorocaba. Bacharel em Ciências Econômicas e em Ciências Jurídicas. Mestre e Doutor em Direito pela PUC-SP. Conselheiro Titular do Conselho Estadual de Educação de São Paulo. Presidente do Conselho Estadual de Acompanhamento e Controle Social do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – Ceacs-Fundeb. Contato: [email protected].

Sobre os Autores

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SOBRE OS AUTORES

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Eduardo Pannunzio

Advogado, pós-graduado em Direito Internacional dos Direitos Humanos pela Universidade de Essex (Reino Unido) e mestrando na área de Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, sob orientação da pro-fessora doutora Nina Beatriz Stocco Ranieri. Contato: [email protected]

Erik Saddi Arnesen

Advogado formado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Fdusp) e mestrando em Direito do Estado pela mesma instituição. Contato: [email protected]/[email protected]

Fernanda Montenegro de Menezes

Advogada, bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Macken-zie (2006), mestranda do programa de pós-graduação em Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie, aluna especial da disci-plina Aspectos Constitucionais do Direito à Educação I na pós-graduação stric-to sensu da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (1o sem. 2008). Atualmente exerce as funções de Chefe de Gabinete da Secretaria de Ensino Superior do Estado de São Paulo. Contato: [email protected]

Luiz Gustavo Bambini de Assis

Advogado e mestre pela USP. Doutorando em Direito do Estado pela mesma Instituição. Assessor de Ministro do Supremo Tribunal Federal. Ex-assessor especial da subchefia para assuntos jurídicos da Casa Civil da Presidência da República. Foi secretário parlamentar junto à liderança do governo no Senado Federal. Foi também diretor do Centro Acadêmico XI de Agosto, pesquisador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre o Negro no Brasil da Universidade de São Paulo (Neimb/USP), bolsista do CNPQ e assessor jurídico do gabinete da Prefeitura de São Paulo. Contato: [email protected].

Luiz Tropardi Filho

Advogado pela Universidade de São Paulo (USP), especialista em Direito Edu-cacional pelo Centro de Extensão Universitária (CEU) e mestrando em Direito Civil pela USP. Contato: [email protected]

Marcelo Gasque Furtado

Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), mestrando em Direitos Humanos pela mesma instituição; professor do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac-SP). Contato: [email protected]

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Monica Herman S. Caggiano

Professora Associada do Departamento de Direito do Estado, da Universidade de São Paulo. Mestre, doutora e livre-docente em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito pela mesma instituição. Presidente da comissão de pós-graduação da Fdusp. Professora titular de Direito Constitucional e Coordena-dora do curso de especialização em Direito Empresarial da Universidade Pres-biteriana Mackenzie. Assessora especial do governador do Estado de São Paulo (2006). Procuradora geral do município de São Paulo (1995-1996). Secretária dos Negócios Jurídicos do Município de São Paulo (1966). Procuradora do mu-nicípio de São Paulo (1972-1996).

Nina Beatriz Stocco Ranieri

Professora Doutora do Departamento de Direito do Estado, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Coordenadora da Cátedra Unesco de Direito à Educação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Au-tora de diversas obras relativas ao direito à educação e ao direito educacional, é membro do Conselho de Educação do Estado de São Paulo. Desde 2006, integra a Education Law Association (ELA), sediada na Universidade de Dayton (EUA) e a International Political Science Association (IPSA). Exerce atualmente as fun-ções de Secretária Adjunta de Ensino Superior do Estado de São Paulo. Contato: [email protected]

Sabine Righetti

Jornalista pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), especialista em jornal-ismo científico pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e mestre em política científica e tecnológica também pela mesma instituição. É pesqui-sadora associada ao Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor/Unicamp), onde desenvolve trabalhos nas áreas de mídia e ciência, percepção pública da ciência e da tecnologia e indicadores de cultura científica. Também é pesquisadora associada ao Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT) da Unicamp, onde trabalha com inovação no setor de mídia e desenvol-vimento indicadores de inovação. Contato: [email protected]

Salomão Barros Ximenes

Advogado, mestre em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará (UFC), é assessor da Ação Educativa Assessoria, Pesquisa e Informação.

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Título Direito à Educação: Aspectos Constitucionais

Coordenadora Nina Beatriz Stocco Ranieri

Organizadora Sabine Righetti

Capa Igor Daurício

Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica Adriana Garcia

Revisão de Texto Adriana Garcia

Divulgação Regina Brandão

Cinzia de Araujo

Secretaria Editorial Eliane dos Santos

Formato 16 x 23 cm

Tipologia Minion 11/15

Papel Cartão Supremo 250 g/m2 (capa)

Chamois Fine Dunas 80 g/m2 (miolo)

Número de Páginas 288

Tiragem 1000 CTP, Impressão e Acabamento Art Printer Gráficos Ltda

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