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Direito Penal de Adolescentes - Karyna Batista Sposato

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  • ISBN 978-85-02-20637-3

    Sposato, Karyna BatistaDireito penal de adolescentes : elementos para uma teoria garantista / Karyna Batista

    Sposato. So Paulo : Saraiva, 2013.Bibliografia.

    1. Direito penal - Brasil 2. Menor - Responsabilidade penal - Brasil I. Ttulo.CDU-343.5(81)

    ndices para catlogo sistemtico:

    1. Brasil : Direito penal juvenil 343.5(81)

    Diretor editorial Luiz Roberto CuriaGerente de produo editorial Lgia Alves

    Assistente editorial Olvia de Quintana Figueiredo PasqualetoProdutora editorial Clarissa Boraschi Maria

    Produtor multimdia William PaivaArte, diagramao e reviso Know-how Editorial

    Servios editoriais Camila Artioli Loureiro, Kelli Priscila Pinto, SuraneVellenich e Tatiana dos Santos Romo

    Capa Mayara EnohataProduo eletrnica Know-how Editorial

    Data de fechamento da edio: 25-7-2013

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  • Cdigo Penal.

  • Se as emoes variam de uma identificao positiva para uma identificao negativa comos adultos, em relao criana e ao adolescente o fenmeno ainda mais acentuado. Istoocorre ainda mais pela indiscutvel seduo que a infncia exerce, ao menos nos primeirosanos, como promessa de uma vida que se instala s em pureza e bondade. No entanto, e comotudo na natureza, a uma qualidade ope-se outra, o que deveria conduzir procura do todoque, em sua essncia, diferente da soma das partes. A humanidade, todavia, insiste emfragmentar sua percepo do imaturo, entendendo-o em razo de facetas isoladas. Assim dapureza perversidade, de alma abandonada infncia viciada, de carente pivete, a crianaflutua na conscincia grupal com reflexos no Direito.

    Maria Auxiliadora MinahimTrecho retirado da obra Direito penal da emoo a inimputabilidade do menor, 1992, p.

    118.

  • memria de meu pai, Nicodemo Sposato Neto, e de minha irm, Daniele.A minha me, Ivone,

    por acreditar sempre.A Gabriel e Jos Mrio,

    por tudo.

  • Agradecimentos

    Este trabalho, apresentado originalmente como tese de doutoramento no Programa de Ps-graduao em Direito/Doutorado da Universidade Federal da Bahia, no teria se realizadono fossem o apoio e o incentivo de muitas pessoas, a quem devo minha especial e sinceragratido.

    Professora Maria Auxiliadora Minahim, por suas instigantes contribuies, inquietaese valiosos direcionamentos, que fizeram toda a diferena para o desenvolvimento destetrabalho.

    Meu agradecimento de sempre ao professor Emilio Garcia Mendez, pela refernciaintelectual e tica que representa em minha trajetria acadmica e sua inestimvelcontribuio para a cincia do direito em matria de adolescentes. Ao professor MiguelCillero Bruol, pela disponibilidade e interlocuo sobre o tema to pouco ainda explorado.Ao professor Jos Eduardo Faria, que, mesmo distncia, com sua obra sempre se fezpresente, e ao professor Francisco Muoz Conde, cone e referncia no estudo do DireitoPenal e da Criminologia.

    Aos professores do Programa de Ps-graduao em Direito da Universidade Federal daBahia, Alessandra Rapassi Marcarenhas Prado e Sebastian Borges de Albuquerque Mello,pelas significativas sugestes ao trabalho e questes suscitadas por ocasio da banca dequalificao. E ao professor Srgio Salomo Shecaira, que, desde a orientao de minhadissertao de mestrado na Universidade de So Paulo, grande incentivador para acontinuidade dos meus estudos na temtica do Direito penal juvenil.

    minha famlia, o reconhecimento de que este caminho somente foi trilhado em nome dosensinamentos e do projeto de vida que me foi oportunizado; aos meus avs, Joaquim Baptista(in memorian) e Elza Collino, pela presena marcante e determinante em minha infncia eformao.

    s amigas Bianca Carlos de Souza Maas, Karla dos Santos Ramos e Denise Vitale, poiscada uma a seu modo foi fonte de incentivo, perseverana e entusiasmo para a realizao desteestudo, ora publicado.

    A Autora

  • Prlogo

    KARYNA BATISTA SPOSATO o UN SSIFO FELIZLa cuestin de los adolescentes infractores posee una relevancia que est lejos de ser obvia

    o evidente. Se trata de su carcter contaminante negativo sobre el conjunto de las polticassociales. Es la experiencia histrica concreta la que demuestra que quienes no la resuelvenadecuadamente acaban comprometiendo, en el peor de los sentidos el conjunto de las polticaspara la infancia.

    El brillante texto de Karyna Batista Sposato, Direito penal de adolescentes: elementos parauna teoria garantista, que aqu tengo el orgullo y la honra de prologar, est destinado a ladifcil tarea de construir una dogmtica penal en este campo. Este libro se inscribe de plenoderecho en una rica tradicin iniciada por juristas de la talla de Joo Batista Costa Saraiva yAfonso Armando Konzen, entre muchos otros.

    Se trata, como se seal, de una complicada tarea que se enfrenta a tres problemas dediversa naturaleza. En el plano cultural, al intento desesperado de la vieja cultura tutelarque se aferra a una desesperada lucha por la sobrevivencia. Esto, a travs del desarrollo denuevas versiones corporativistas que encuentran en el neomenorismo actual un punto deconfluencia y, sobre todo, de resistencia a la consideracin de los adolescentes comoverdaderos sujetos de derechos y responsabilidades. En el plano de la poltica social, alcreciente uso de instrumentos penales encubiertos como herramienta privilegiada de laasistencia social. Me refiero especialmente al uso bastardo de la privacin de libertadcomo forma de poltica social reforzada para enfrentar uno de los mas graves problemassociales actuales. Los jvenes pobres que en las periferias urbanas no estudian ni trabajan.Por ltimo, y se trata aqu del aspecto sobre el que menos se ha reflexionado, en el planojurdico penal propiamente dicho. Me refiero a la indiferencia, cuando no al rechazo liso yllano, de la dogmtica penal de adultos a considerar con seriedad la cuestin de la dogmticapenal adolescente. Justo es reconocer, en ese pramo conceptual y en esa renuncia a lacoherencia, a la excepcin que representan tres figuras significativas del derecho penal. Merefiero al jurista chileno Juan Bustos, a la enorme figura de Luigi Ferrajoli y, en el Brasil, a ungran jurista todava poco conocido en el resto de la regin como es Srgio Salomo Shecaira.

    Es en este contexto de la indiferencia y de un sentido comn inclinado a las solucionessimples de la crueldad bondadosa que emana del neomenorismo que debe valorarse elenorme esfuerzo de Karyna Sposato.

    No faltar quien denomine a la tarea realizada y por realizar de jvenes juristas brasileoscomo la autora de este libro como un verdadero trabajo de Ssifo. Se trata en todo caso de unesfuerzo similar al del desarrollo de la teora y la prctica democrtica acosada pormesianismos y autoritarismo varios. Quien lea o relea con alguna atencin el maravilloso yclsico trabajo de Albert Camus (El Mito de Ssifo), encontrar escondida entre susmejores lneas una olvidada frase que afirma que: es necesario imaginarse un Ssifo feliz.

  • San Jos, Costa Rica, septiembre de 2012.Emilio Garcia Mendez

  • Prefcio

    KARYNA BATISTA SPOSATO ou UM SSIFO FELIZA questo dos adolescentes infratores possui uma relevncia que est longe de ser bvia ou

    evidente. Trata-se de seu carter negativo e contaminante sobre o conjunto das polticassociais. a experincia histrica concreta que demonstra que aqueles que no a resolvemadequadamente acabam por comprometer, no pior dos sentidos, o conjunto das polticas para ainfncia.

    O brilhante texto de Karyna Batista Sposato, Direito penal de adolescentes: elementos parauma teoria garantista, que aqui tenho o orgulho e a honra de prefaciar, est destinado difciltarefa de construir uma dogmtica penal neste campo. Este livro se inscreve de pleno direitonuma rica tradio iniciada por juristas do porte de Joo Batista Costa Saraiva e AfonsoArmando Konzen, dentre muitos outros.

    Trata-se, como se assinalou, de uma complicada tarefa que enfrenta a trs problemas denatureza distinta. No plano cultural: a tentativa desesperada da velha cultura tutelar por suasobrevivncia. Isso, atravs do desenvolvimento de novas verses corporativistas queencontram no neomenorismo atual um ponto de confluncia e sobretudo de resistncia considerao dos adolescentes como verdadeiros sujeitos de direitos e responsabilidades. Noplano da poltica social: a crescente utilizao de instrumentos penais encobertos comoferramenta privilegiada de assistncia social. Refiro-me especialmente ao uso bastardo daprivao de liberdade como forma de poltica social reforada para enfrentar um dos maisgraves problemas sociais atuais. Os jovens pobres que nas periferias urbanas no estudamnem trabalham. Por ltimo, e correspondente ao aspecto de menor reflexo at o momento, noplano jurdico penal propriamente dito. Refiro-me indiferena e inclusive recusa veementeda dogmtica penal de adultos de considerar com seriedade a questo da dogmtica penaladolescente. Justo reconhecer, nesse marasmo conceitual e nessa renncia coerncia, aexceo que representam trs figuras significativas do direito penal. Refiro-me ao juristachileno Juan Bustos Ramirez, enorme figura de Luigi Ferrajoli e, no Brasil, a um juristaainda pouco conhecido no resto da regio, como Srgio Salomo Shecaira.

    Neste contexto de indiferena e de um senso comum inclinado s solues simples dacrueldade bondadosa que emana do neomenorismo, que se deve valorizar o enormeesforo de Karyna Sposato.

    No faltar quem denomine a tarefa realizada e ainda por realizar de jovens juristasbrasileiros, como a autora deste livro, como um verdadeiro trabalho de Ssifo. Trata-se emtodo caso de um esforo similar ao do desenvolvimento da teoria e da prtica democrtica,acuada por messianismos e autoritarismos vrios. Quem ler ou reler com alguma ateno omaravilhoso e clssico trabalho de Albert Camus (O Mito de Ssifo) encontrar escondidaentre suas melhores linhas uma esquecida frase que assim afirma: necessrio imaginar-secomo um Ssifo feliz.

  • San Jose da Costa Rica, setembro de 2012.Emilio Garcia Mendez

  • Sumrio

    Agradecimentos

    Prlogo

    Prefcio

    Apresentao

    PARTE I Sistema e Estrutura do Modelo de Justia Penal Juvenil Brasileiro

    Notas Introdutrias

    1 Configurao do Direito Penal de Adolescentes no Brasil

    1.1 A democratizao brasileira e a Constituio Federal de 1988

    1.2 O Estatuto da Criana e do Adolescente e o direito penal deadolescentes

    1.2.1 O conceito de ato infracional

    1.2.2 Distino entre medidas de proteo e medidas socioeducativas

    1.3 Concluses preliminares

    2 Modelos de Responsabilidade Penal de Adolescentes e a Regulao daJustia Penal de Menores de Idade no Brasil

    2.1 Modelo punitivo ou etapa penal indiferenciada

    2.2 Modelo de proteo ou etapa tutelar

    2.3 Modelo educativo ou de bem-estar

    2.4 Modelo de responsabilidade ou etapa garantista

    2.5 Modelo misto

    2.6 Dificuldades para o reconhecimento de um modelo puro no sistema de

  • justia juvenil brasileiro

    2.6.1 Da negao da natureza penal

    2.6.2 Indeterminao das medidas aplicadas

    2.6.3 Recusa imputabilidade

    2.7 Concluses preliminares

    3 Ambiguidades do Modelo de Responsabilidade do ECA: ausncia degarantias e amplo arbtrio judicial

    3.1 Primeiros esclarecimentos

    3.2 Interpretao do Estatuto e padro decisrio no direito penal deadolescentes

    3.3 Discurso jurdico e implicaes para o sistema penal juvenil brasileiro

    3.4 Concluses preliminares

    PARTE II Fundamentos da Responsabilidade Penal de Adolescentes

    Notas Introdutrias

    4 Elementos Pressupostos da Responsabilidade Penal de Adolescentes

    4.1 O direito penal juvenil ou o direito penal de adolescentes

    4.2 O conceito material de ato infracional

    4.3 A natureza jurdica da medida socioeducativa

    4.4 Inimputabilidade penal etria e menoridade penal

    4.4.1 Consideraes iniciais

    4.4.2 Sobre a imputabilidade

    4.4.2.1 Capacidade de ao

    4.4.2.2 Capacidade de dever

  • 4.4.2.3 Capacidade de pena

    4.4.2.4 Capacidade de entender e querer

    4.4.2.5 Capacidade de compreender a ilicitude do fato e de atuarconforme esta compreenso

    4.4.2.6 Capacidade de motivao

    4.4.3 Conceitos e fundamentos da imputabilidade

    4.5 Consideraes preliminares

    5 Culpabilidade e Responsabilidade Penal Juvenil

    5.1 Introduo ao conceito normativo de culpabilidade

    5.2 Modernas teorias da culpabilidade

    5.2.1 Responsabilidade e finalidades preventivas em Claus Roxin

    5.2.2 Funcionalismo e fidelidade ao direito em Gunther Jakobs

    5.2.3 Responsabilidade e proporcionalidade em Winfried Hassemer

    5.2.4 Motivao e combinao entre dogmtica e poltica criminal emFrancisco Muoz Conde

    5.3 Consideraes sobre a culpabilidade

    6 Tendncias Poltico-criminais em Matria de Responsabilidade Penal deAdolescentes

    6.1 Consideraes gerais

    6.2 Diferenas relativas idade penal

    6.3 O debate da reduo da idade penal no Brasil

    6.3.1 Impedimentos constitucionais reduo da idade penal

    6.3.2 Da inconstitucionalidade das propostas de reduo da idadepenal e violao da constituio material

  • Concluses

    Apndice 1 RefernciasMarcos de idade de responsabilidade penal na histriajurdica brasileira

    Apndice 2 Quadro sintico

    Apndice 3 Idade de responsabilidade penal juvenil em diferentes pases(Tabela comparativa)

  • Apresentao

    Muito embora o tema da adolescncia em conflito com a lei venha ganhando cada vez maisespao em discusses cientficas e acadmicas, no que concerne ao tratamento dispensadopelo Direito, so escassos os trabalhos e aportes cientficos, sobretudo em Direito Penal.

    Assim, este livro, fruto de minha tese de doutoramento, surge no seguimento de umatrajetria de estudos e pesquisas aplicadas no campo do Direito penal juvenil e da disciplinajurdica voltada responsabilizao de adolescentes pela prtica de infraes penais.Representa ainda como que o cumprimento voluntrio e obstinado de uma promessa que seconstruiu ao lado de colegas, mestres e comigo mesma de contribuir para a consolidaodoutrinria sobre o tema.

    O objetivo central oferecer elementos para uma Teoria da Responsabilidade deAdolescentes, destacando-se, preliminarmente, que tal intento no seria alcanvel sem antesreunir o que desponta como sedimentado no campo da responsabilidade penal juvenil.

    Por isso, para o desenvolvimento desta tarefa, o trabalho est dividido em duas partes. Aprimeira, denominada Sistema e Estrutura do Modelo de Justia Penal Juvenil brasileiro,desenvolve-se em trs captulos. O que se pretende detalhar o modelo de regulao dajustia penal de menores de idade no Brasil, de modo a fazer sobressair em suas diversascategorias, os juzos poltico-criminais que lhe so subjacentes, sem deixar de assinalar asfragilidades ou, conforme denominadas no trabalho, as ambiguidades dogmticas do sistema.

    Dessa maneira, o primeiro captulo da primeira parte trata de recuperar as distintaslegislaes e regras em matria de responsabilidade dos menores de 18 anos, possibilitando,atravs de um apanhado histrico do tratamento jurdico conferido responsabilidade domenor de idade no ordenamento jurdico brasileiro, identificar a influncia do saber penal emsua configurao. O segundo captulo cuida de descrever os modelos de responsabilidade eregulao de justia juvenil, analisando criticamente as caractersticas do modelo adotado noSistema brasileiro.

    O terceiro captulo, que encerra essa parte, discute questes de interpretao,especificamente relacionadas imposio da medida mais severa do Sistema, qual seja, ainternao, demonstrando que a prevalncia de argumentos extrajurdicos e a textura aberta dealguns dispositivos legais exigem uma formulao dogmtica mais consistente.

    A partir dessas reflexes, evidencia-se a premente necessidade de uma doutrina jurdicaslida, capaz de fazer avanar a compreenso jurdico-social da problemtica do crimecometido por adolescentes e, de igual maneira, assentar determinados princpios najurisprudncia nacional.

    Considerando que traar elementos de uma Teoria da Responsabilidade Penal deadolescentes importa revisitar todo o repertrio penal at hoje construdo para explicar erefletir sobre a responsabilidade penal de todo e qualquer indivduo, a segunda parte dotrabalho, intitulada Fundamentos da Responsabilidade Penal do Adolescente, tambm

  • composta por trs captulos, tem incio com o quarto captulo, que detalha os chamadoselementos pressupostos da responsabilidade penal juvenil.

    Esse captulo adota uma perspectiva descritivo-analtica para definir e conceituar o Direitopenal juvenil, o ato infracional, as medidas sancionatrias aplicveis aos adolescentes,chamadas de medidas socioeducativas no ordenamento jurdico brasileiro, e o conceito deinimputabilidade penal etria, que fundamenta e legitima a existncia de um sistema penaldiverso do tradicional de adultos para a imputao de responsabilidade aos menores de 18anos. So assim entendidos como pressupostos da responsabilidade penal juvenil e, por isso,elementos da teoria que se pretende esboar.

    Destaque-se que esse captulo culmina com a discusso do conceito de imputabilidade esuas repercusses para a menoridade penal. Como resultado, apresentam-se, com base naopinio de distintos autores, possibilidades de conceber a inimputabilidade penal etria comouma imputabilidade sui generis dos adolescentes, a qual, ainda que lhes afaste do sistemapenal tradicional de adultos, no deixa de atribuir-lhes responsabilidade de natureza penal.

    Desse modo, ganha especial relevncia o aprofundamento no tema da culpabilidade em suasmais modernas abordagens com vistas a aprofundar a delimitao conceitual dainimputabilidade penal etria. Sendo assim, o quinto captulo, denominado Culpabilidadde eResponsabilidade Penal Juvenil, discute a culpabilidade a partir de seus dois grandesatributos conforme a doutrina contempornea: a fundamentao da pena e seu limite,destacando suas repercusses sobre a responsabilidade penal de adolescentes.

    Por derradeiro, o sexto e ltimo captulo apresenta as principais tendncias contemporneasem matria de responsabilidade penal de menores de idade, favorecendo uma leituracomparativa e de fundo constitucional do modelo brasileiro.

    Em sntese, o trabalho se estrutura reunindo elementos histricos, dogmticos, poltico-criminais e de direito comparado, com vistas a oferecer as primeiras bases de uma Teoria daResponsabilidade Penal de Adolescentes.

    Funda-se na necessidade de alicerar uma doutrina adequada a atender aplicao e execuo de medidas socioeducativas destinadas a adolescentes autores de ato infracional,definitivamente como matria jurdico-penal.

    Se o Direito penal juvenil, ou o aqui denominado Direito penal de adolescentes, , ao finale ao cabo, Direito Penal, basear-se- tambm na culpabilidade, ainda que diferenciada emrelao culpabilidade do adulto, mas ainda assim culpabilidade. Assume-se, por isso, nestelivro, o desafio de uma construo dogmtica da Responsabilidade Penal de adolescentes, querevisita os principais elementos da responsabilidade penal e procura inspirar uma novaconcepo de culpabilidade na matria.

  • PARTE ISistema e Estrutura do Modelo de Justia Penal

    Juvenil Brasileiro

  • Notas Introdutrias

    O objetivo central de oferecer elementos para uma Teoria da Responsabilidade deAdolescentes exige preliminarmente destacar que uma teoria serve ou deve funcionar comosistema conceitual[1], destinado a fornecer tanto as normas metodolgicas para a adequadaproduo de um saber, como as categorias gerais desse modelo de conhecimento.

    No campo do Direito e da Filosofia do Direito, muitos autores[2] j trabalharam a ideia deteoria[3] ou sistema conceitual. Como esclarece Tercio Sampaio Ferraz Jr.[4], o pensamentosistemtico, sobretudo no comeo do sculo XVII, em estreita conexo com o problema dacerteza na discusso teolgica, foi transposto da teoria da Msica e da Astronomia para aTeologia, para a Filosofia e para a Jurisprudncia. Nesse sentido, uma Teoria Geral acaba porcorresponder a uma ordem teleolgica de princpios e enunciados gerais, capaz de elev-losao grau mximo de generalizao til e condens-los indutivamente a partir do confronto dediversos ramos a ela subjacentes.

    No dizer de Canaris, o papel do conceito de sistema justamente traduzir e realizar aadequao valorativa e a unidade interior da ordem jurdica, sendo que a ideia do sistemajurdico justifica-se a partir de um dos mais elevados valores do Direito, nomeadamente doprincpio da justia e das suas concretizaes no princpio da igualdade e na tendncia para ageneralizao[5]. Assomam-se outros postulados, tais quais a segurana jurdica, aestabilidade e a continuidade da legislao como razes para o Direito ordenar-se comosistema, e no para vir a ser uma multiplicidade inabarcvel de normas singulares, desconexase em demasiado fcil contradio umas com as outras.

    Assim, uma Teoria da Responsabilidade de Adolescentes ser necessariamente parcial, umavez que, em face da Teoria Geral da Responsabilidade penal, concentra-se em analisar algunsaspectos metodolgicos, parte do todo, como esforo reflexivo e metodolgico que tem comofoco o adolescente quando autor de infrao penal. Ainda que parcial e ocupando-se deinstitutos especficos, peculiares e algumas vezes autnomos, no se desliga de todo orepertrio penal at hoje construdo para explicar e refletir sobre a responsabilidade penal detodo e qualquer indivduo. Mais que isso, funda-se na compreenso de que a responsabilidadepenal do adolescente corporifica o Direito penal juvenil, ou o Direito penal de adolescentes,como campo prprio do Direito e subsistema do Direito Penal.

    Fato que tal questo referente aplicao e execuo de medidas socioeducativasdestinadas a adolescentes autores de ato infracional no encontra a ateno devida no campodo Direito e menos ainda do Direito Penal. Por fora de uma tradio tutelar[6], desenhou-seao longo da histria do Direito da Criana e do Adolescente uma suposta autonomia damatria de responsabilizao dos menores de idade, afastando de sua interpretao osprincpios processuais-penais de garantia[7] e, de igual maneira, dificultando qualquerreflexo de natureza dogmtica e/ou poltico-criminal acerca das consequncias e da naturezada interveno penal sobre os adolescentes.

  • Como se a matria infracional existisse em total divrcio do saber penal, ao longo dahistria do Direito penal juvenil[8] procurou-se ocultar a influncia das diferentes correntes dacincia penal. Contudo, muito embora o estudo da temtica carea de elementos de conexo,no se pode negar que, medida que determinadas vises se consolidavam no Direito penalde adultos, naturalmente influenciariam as teses e as doutrinas justificantes da aplicao desanes a adolescentes autores de infrao penal, por mais que se desejasse negar e afastar talrealidade dos procedimentos e da construo terica especfica.

    Como possvel constatar ao longo da histria, envolvidas em um discurso de assistncia eeducao, as sanes aplicadas aos adolescentes, denominadas medidas socioeducativas,operaram e ainda operam um exerccio do poder punitivo sobre os adolescentes e jovens,muitas vezes mais agudo e desmedido que qualquer outro[9].

    Dessa forma, ainda se faz necessria a superao dos sistemas tutelares fundados nas ideiasde inferioridade e incapacidade do adolescente e, portanto, de sua irresponsabilidade penal.Sob a gide de um sistema tutelar de proteo, realizam-se manifestaes arbitrrias do poderpunitivo sobre a categoria adolescentes em conflito com a lei, quando o discurso e apercepo do senso comum reforam, no sentido inverso, um sentimento de impunidade,indiferena penal e suposta benevolncia da legislao especial no trato da questo.

    Se, de um lado, a experincia brasileira denota, em termos legislativos, o abandono doMenorismo[10], com a ratificao da Conveno Internacional das Naes Unidas sobre osDireitos da Criana e a adoo do Estatuto da Criana e do Adolescente, Lei n. 8.069/90; deoutro, as prticas institucionais padecem com a persistncia de uma lgica tutelar ecorrecional em seus procedimentos. Fala-se aqui no s dos programas de execuo dasmedidas sancionatrias ou socioeducativas, mas tambm de igual modo do funcionamento doSistema de Justia (Judicirio, Ministrio Pblico e Defensorias).

    A imposio de medidas socioeducativas como antdoto situao de vulnerabilidade[11]do adolescente reflete a resistncia em superar o paradigma das legislaes de menores, ouseja, a chamada Doutrina da Situao Irregular, fundada numa ideologia tutelar, teraputica ehigienista. Vale dizer que a situao irregular legitimou durante mais de seis dcadas umainterveno[12] estatal, no raro violenta, no estado perigoso sem delito, verificvel dentre osmenores de idade.

    E no seria exagerado observar que na atualidade, aps mais de 22 anos de entrada emvigor da Lei n. 8.069/90, no Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA) permanece vivo umdireito penal do autor[13] nos procedimentos da Justia da Infncia e Juventude em matriainfracional.

    Um adolescente infrator representa no imaginrio coletivo o portador do mal, o portadorda violncia. Norbert Lechner discute as reaes violncia e delinquncia, apontando suadimenso como reflexo dos medos ocultos ou interiores de uma sociedade. Ele pondera queprovavelmente nenhuma representao do imaginrio coletivo seja to funcional como ainterpretao da delinquncia juvenil, que resulta emblemtica por sua irracionalidade eimprevisibilidade[14]. O impacto social dos fatos delituosos cometidos por adolescentes e suaforte repercusso pblica, que em muitas ocasies, excedem os marcos de proporcionalidadeem relao preocupao com a criminalidade adulta, corrupo, ao comrcio ilcito de

  • drogas e outras expresses de violncia que afetam nossa sociedade, pode se explicar pelafalta de discusso das reais causas da violncia e, tambm por que no dizer? , pela buscade um bode expiatrio[15].

    Ao que tudo indica, esta a realidade que se constata no s na interpretao da norma nosjuizados especializados, fruns da infncia e juventude, mas com igual intensidade naexecuo das medidas impostas no mbito dos programas governamentais e unidades deinternao do atual chamado Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo SINASE[16]brasileiro.

    As medidas socioeducativas, aplicadas muitas vezes sem a observncia do devido processolegal e do contraditrio, constituem uma ferramenta de reforo da excluso a que muitos ou aesmagadora maioria dos adolescentes esto expostos. A ironia que no momento de suaimposio, as medidas socioeducativas se sustentam num discurso compensatrio, j que osadolescentes envolvidos com a prtica de infraes penais sempre revelam, em alguma fasede suas vidas, direitos negligenciados, desde famlias problemticas, violncia domstica,baixa escolaridade, defasagem escolar, precria insero no mercado de trabalho, abandono evivncia institucional em abrigos ou vivncia de rua. Desse modo, a medida acaba sedefinindo em razo de uma condio do adolescente e afastando-se da anlise do atoinfracional praticado, no que concerne sua legalidade, autoria e, sobretudo, proporcionalidade da resposta sancionatria.

    Paradoxalmente, a execuo da medida refora a mesma negligncia j conhecida por partedos jovens, quando no aperfeioa a segregao por intermdio de prticas de violncia,humilhao e constrangimentos[17].

    Ou seja, a condio social do adolescente ainda o principal fundamento utilizado para aimposio de uma medida socioeducativa. Tal distoro revela, portanto, que muitas vezes ocaso exigiria uma medida de proteo, legalmente prevista no art. 101 do ECA. A matriaoriginariamente de ordem social se converte em penal. E o que era uma questo de polticapblica, em um passe de mgica, passa a ser questo de polcia.

    Trata-se daquilo que Francisco Muoz Conde caracteriza como uma reduo do EstadoSocial e um aumento do Estado Policial, penal e penitencirio[18]. No caso dos adolescentes,predomina forte resistncia em reconhecer que as chamadas medidas socioeducativas so emverdade sanes jurdico-penais; dizer, so penas.

    Consequentemente, a delimitao da natureza e da finalidade da medida socioeducativa, oconceito de ato infracional e as discusses sobre imputabilidade, culpabilidade e menoridadepenal situam-se como os elementos basilares para esboar a teoria que se pretende. Partindodo pressuposto que a medida socioeducativa tem natureza penal, uma vez que representa oexerccio do poder coercitivo do Estado e implica necessariamente uma limitao ou restriode direitos ou de liberdade, de uma perspectiva estrutural qualitativa, no difere das penas.Isso porque cumpre o mesmo papel da pena no controle social formalizado, possuindofinalidades e contedo similares.

    Destaque-se que a medida socioeducativa, assim como a pena o , deveria condicionar-seao princpio da legalidade, haja vista que o Estatuto da Criana e do Adolescente utilizoucomo tcnica a tipificao delegada, ou seja, a aplicao dos tipos penais de adultos para

  • definir as infraes do sistema de justia juvenil. Desse modo, refora-se o entendimento damedida socioeducativa como espcie de sano penal, uma vez que representa a resposta doEstado diante de um ato infracional[19] praticado por adolescentes e revela a mesma seleodas condutas antijurdicas que se exerce para a imposio de uma pena.

    Perante o exposto, evidencia-se que as medidas socioeducativas e sua execuo no sedissociam, portanto, da poltica criminal. E revestem-se de uma feio extremamenteimportante, pois constituem o sistema formalizado de controle penal sobre a adolescncia[20],subsistema do sistema penal.

    A natureza penal das medidas impe uma incidncia restrita e limitada aos casos de estritanecessidade. Vale dizer que a imposio de uma medida socioeducativa no podefundamentar-se em condies pessoais dos adolescentes, tais como a falta de respaldofamiliar, a baixa escolarizao, a presena de algum sofrimento psquico, entre outrascircunstncias que no traduzem a prtica de um ilcito penal, e que denotam, sobretudo, aausncia de uma poltica de ateno adolescncia e juventude em suas necessidades.

    Ou seja, se a legalidade pressuposto necessrio para a aplicao de uma pena segundo afrmula clssica Nulla poena el nullum crimen sine lege, tambm o para a imposio deuma medida socioeducativa[21].

    O catlogo de fatos punveis aos adolescentes nunca poder ser mais amplo que o dosadultos, mas sim se recomenda que seja mais restrito. As razes para postular essadescriminalizao primria para adolescentes decorrem de sua situao particular diante doEstado e suas normas. Essa a posio decorrente de uma Teoria do Sujeito Responsvelformulada por Bustos Ramirez e Hormazbal Malare, que concebe a discusso deresponsabilidade com relao a uma pessoa determinada em um marco social concreto.

    Segundo os autores, como ser detalhado ao longo do trabalho, o problema daresponsabilidade no diz respeito unicamente ao indivduo ao qual se atribui um ato, e sim aoEstado no que concerne sua capacidade ou legitimao poltica para exigirresponsabilidade. Em outras palavras, a capacidade que possui o Estado de exigir aobservncia de suas proibies ou mandatos no a mesma com relao a todas as pessoas. Adimenso ou intensidade dessa capacidade de exigir varia de acordo com cada pessoa, darelao com suas circunstncias pessoais e de sua relao com o Estado.

    Consequentemente, o Estado somente pode exigir responsabilidade pelo comportamentoantinormativo se disponibilizou todos os elementos necessrios para que a resposta fosseconforme a norma. Esclarecem ainda os autores, que todas as garantias prprias do direitopenal de adultos devem ser asseguradas ao adolescente e, de acordo com o princpio dointeresse superior da criana ou adolescente e o dever de proteo do Estado, tais garantiasdevem ser ainda superiores, de forma a impedir qualquer prejuzo ao seu desenvolvimento eformao[22]. Mas essa talvez seja uma discusso demasiado sofisticada para o nosso sistemaque sequer se reconhece penal.

    importante frisar que o reconhecimento do carter penal e sancionatrio da medidasocioeducativa no retira a tarefa e o desafio pedaggico que se colocam para a Justia daInfncia e Juventude e para os programas de atendimento socioeducativo. Esse aspectorelaciona-se, em primeiro lugar, com a identificao das finalidades a que se destinam as

  • sanes e sua interface com as demais polticas e, em segundo, com a concepo doadolescente, enquanto sujeito, titular de direitos.

    Comeando pelo segundo ponto destacado, a identificao do adolescente como sujeito dedireitos no se constitui em mero enunciado terico desprovido de consequncias prticas.

    Como leciona Mary Beloff[23], a partir da Conveno Internacional das Naes Unidassobre os Direitos da Criana e do Adolescente, os adolescentes so responsveis pelosdelitos que cometem de maneira especfica. A responsabilidade justamente o ponto departida da abordagem que considera o jovem como sujeito de direito. decorrncia do direitoa ser como e tambm do direito a ser responsvel pelo que faz. Sendo assim, no marco daConveno, ser sujeito de direitos significa que crianas e adolescentes so titulares dosmesmos direitos de que gozam todas as pessoas e mais direitos especficos que decorrem dacondio de pessoa que est crescendo, em desenvolvimento. Nem meia pessoa, nem pessoaincompleta, menos ainda incapaz; simplesmente se trata de uma pessoa que est em fase deintenso desenvolvimento, uma vez que as pessoas so pessoas completas em cada momento deseu crescimento.

    Essa concepo coloca em xeque o conceito de inimputabilidade aplicado aos menores deidade, historicamente concebido como ausncia de responsabilidade. Tomando o conceito deinimputabilidade do Cdigo Penal Brasileiro e sua interpretao, permanece em termosdoutrinrios o critrio biopsicolgico que pode ser traduzido em desenvolvimento biolgico(maturidade/imaturidade) e desenvolvimento psicolgico (sade mental). Para os menores de18 anos, o art. 27 do Cdigo Penal brasileiro declara a inimputabilidade, fundadaexclusivamente na causa etria. Como ensina Alberto Silva Franco, o dficit de idade, por sis, faz da pessoa um inimputvel[24].

    O que no significa que a inimputabilidade dos menores de 18 anos exclua suaresponsabilidade por ilcitos penais e autorize uma indiferena penal diante do cometimentode um ato tpico e antijurdico. Da emerge a necessidade de uma adequada Teoria daResponsabilidade Penal de adolescente, que inclua o reconhecimento de uma culpabilidadeespecfica aos menores de idade.

    Portanto, a discusso no se encerra em incorporar as garantias de direito penal de adultosaos adolescentes. No se pretende que os Estados Nacionais reconheam crianas eadolescentes como sujeitos de direitos e ento os tratem como adultos, e sim que os tratemcomo pessoas em desenvolvimento. O desafio, portanto, maior e mais complexo; no bastaaplicar o direito penal tradicional aos adolescentes; preciso que o direito penal juvenil seconsolide como tal e seja mais benigno que o direito penal[25].

    Emerge tambm, dessa forma, a necessidade de construo e consolidao de umverdadeiro devido processo em matria penal de adolescentes, ainda incipiente quando seobserva que as regras da presuno da inocncia, o direito a apresentar e contestar provas, odireito a defesa tcnica e a julgamento por um rgo jurisdicional competente, independente eimparcial, sem demora, o direito de no ser obrigado a prestar testemunho ou declarar-seculpado, o direito a reviso e impugnao da sentena, o respeito a sua integridade eintimidade durante o procedimento de apurao de responsabilidade, o direito a medidasalternativas internao durante o processo, e o princpio da proporcionalidade, dentre

  • outros, parecem fico cientfica e excentricidade dos instrumentos internacionais secontrastados realidade.

    A no afetao de direitos no atingidos pela sentena tambm artigo de luxo em setratando do sistema de justia juvenil. Embora parea evidente que a privao da liberdadeno seja sinnimo da privao ou restrio de todos os direitos dos adolescentes, sosistemticas as violaes de direitos humanos em todos estados da federao: restrio avisitas familiares, isolamento de 24 horas, regimento interno baseado em castigo e premiaoso alguns episdios da histria recente no cenrio nacional.

    Todas essas questes reforam o principal objetivo deste trabalho: no apresentar umateoria pronta e acabada, mas, sim, oferecer elementos de reflexo sobre o tema que, emborade inegvel relevncia, tem merecido pouca ou nula ateno dos doutrinadores.

    O primeiro passo nessa empreitada reconhecer e compreender a configurao do Direitopenal de adolescentes preconizado pelo Estatuto da Criana e do Adolescente, emconsonncia com os princpios constitucionais e fundamentais do Estado Democrtico deDireito.

  • 1 O vocbulo sistema tambm empregado por Tercio Ferraz Jr. para designar uma ordem complexa, dotada de estruturainterna e cujos elementos se diferenciam entre si, mas se unificam pelos objetivos comuns (FERRAZ JR., Tercio Sampaio.Introduo ao estudo do direito tcnica, deciso, dominao. So Paulo: Atlas, 1988).2 A exemplo de Karl Larenz, cujo legado se traduz em reconhecer que a ideia de sistema consubstanciou na cincia jurdicauma herana da doutrina de Direito natural. Em suas palavras: O Sistema significa aqui, portanto, muito mais do que meraclareza ou facilidade de domnio de uma certa matria: significa a nica maneira possvel por que o esprito cognoscenteconsegue assegurar-se da verdade: o critrio da racionalidade intrnseca, como exigncia imprescindvel da verdadeiracientificidade (LARENZ, Karl. Metodologia da cincia do direito. Traduo Jos Lamego. 3. ed. Lisboa: FundaoCalouste Gublbenkian, 1997, p. 21). E de Coing, que tambm teceu consideraes sobre o sistema jurdico, compreendido comoteoria quando equivalente a uma soma de princpios racionais. Alis, para ele, a hiptese fundamental de toda Cincia a deque uma estrutura racional, acessvel ao pensamento, domine o mundo material e espiritual (COING apud CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemtico e conceito de sistema na cincia do direito. 4. ed. Lisboa: Fundao CalousteGublbenkian, 2008, p. 14).3 Foi Karl Popper, em sua obra A lgica da pesquisa cientfica, quem traou elementos para submeter criticamente as teorias prova dos fatos e selecion-las de acordo com os resultados obtidos, atravs da deduo lgica e da comparao dosresultados. Para tanto, Popper indica quatro diferentes linhas para submeter uma teoria prova: a) comparao lgica dasconcluses umas com as outras, para se testar a coerncia interna do sistema; b) investigao da forma lgica da teoria, comobjetivo de determinar se ela apresenta carter de uma teoria emprica, cientfica ou tautolgica; c) comparao com outrasteorias, para ver se h avano de ordem cientfica; e d) comparao da teoria por meio de aplicaes empricas das conclusesque dela se possam deduzir (POPPER, Karl. A lgica da pesquisa cientfica. So Paulo: Cultrix. 1996, p. 33).4 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introduo ao estudo do direito tcnica, deciso, dominao, op. cit.5 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemtico e conceito de sistema na cincia do direito, op. cit., passim.6 A tradio tutelar aqui mencionada corresponde consolidao da Etapa Tutelar do Direito penal juvenil, que se realizou apartir de uma profunda interferncia das reas da Medicina, da Psicologia e da Assistncia na construo normativa dosCdigos de Menores e na construo do trinmio Periculosidade-Menoridade-Pobreza. Emilio Garcia Mendez, ao recuperar asatas do Primeiro Congresso Internacional de Menores, realizado em Paris em junho de 1911, esclarece-nos os objetivos efundamentos que nortearam a criao das Justias de Menores, evidenciando seu matiz penal e repressivo e a fixao dacategoria sociopenal do Menor para designar as crianas e adolescentes abandonados, pervertidos ou em perigo de s-lo: Hojeme sinto muito feliz de poder transmitir uma f profunda ao futuro dos tribunais para crianas. Tenho a certeza de que emalguns anos todos os pases civilizados os tero completamente organizados. Esses tribunais se transformaro, em todas aspartes, em centros de ao para a luta contra a criminalidade juvenil. No somente ajudando-os a recuperar a infncia decada,mas tambm a preservar a infncia em perigo moral. Esses tribunais podero transformar-se, alm disso, em auxiliares daaplicao das leis escolares e das leis do trabalho. Em torno deles se agruparo as obras admirveis da iniciativa privada, semas quais a ao dos poderes pblicos no pode ser eficaz. Ao mesmo tempo que mantm a represso indispensvel,subministraro uma justia iluminada, apropriada aos que devem ser julgados. Sero, ao mesmo tempo, a melhor proteo dainfncia abandonada e culpvel e a salvaguarda mais eficaz da sociedade. Discurso proferido na sesso de abertura doCongresso, pelo deputado e membro da Academia Francesa, Paul Deschanel. A mentalidade dominante entendia que oabandono moral e material constitua-se em um passo para a criminalidade. Alerta-nos ainda, o autor, que, seguramente sob omanto da proteo, no foram poucos os casos de simulaes e acusaes de crianas para que a ao protetora do Estadopudesse se realizar em seu benefcio, em franca ocultao da realidade punitiva exercida sobre crianas e adolescentes.Caracterizada basicamente pelo despojamento de todas as garantias formais do processo penal em nome da proteo-represso, a Etapa Tutelar promove, atravs da unio do Direito com a Assistncia Social, uma Nova Justia e o saneamentomoral da sociedade (GARCIA MENDEZ, Emilio. Infncia e cidadania na Amrica Latina. So Paulo: Hucitec/IAS, 1998).7 Como ser objeto de anlise detalhada neste trabalho, e conforme aponta o principal expoente do garantismo penalcontemporneo, Luigi Ferrajoli, o maior desafio ao garantismo na atualidade elaborar tcnicas de decidibilidade no planoterico, torn-las vinculantes no plano normativo e assegurar sua efetividade no plano prtico (FERRAJOLI, L. Derecho yrazn: teora del garantismo penal. 4. ed. Madri: Trotta, 2000). Mais que isso, afirmar que o campo de atribuio deresponsabilidade penal de adolescentes e consequente imposio de sanes jurdico-penais, como so as medidassocioeducativas, encontra-se divorciado dos princpios processuais-penais de garantia, significa reconhecer uma dupla violaode direitos: de um lado, o no reconhecimento dos adolescentes como titulares do direito ao devido processo legal e,simultaneamente, por outro lado, a negao da natureza penal da restrio da liberdade que resulta da imposio das medidas aeles impostas.8 Em trabalho publicado em 2006 pela Editora Revista dos Tribunais, sob o ttulo O Direito penal juvenil, resultado de minha

  • dissertao de mestrado junto ao Departamento de Direito Penal e Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade deSo Paulo (USP), defendi a existncia e a validade de um Direito penal juvenil brasileiro, a partir do estudo da construo doDireito da Criana e do Adolescente, da organizao do Sistema de Justia da Infncia e Juventude brasileira e da matriapertinente responsabilizao de adolescentes autores de ato infracional no Estatuto da Criana e do Adolescente. O mesmoposicionamento compartilhado por outros estudiosos do tema, como Joo Batista Costa Saraiva, Ana Paula Motta Costa,Srgio Salomo Shecaira, Afonso Armando Konzen, Flvio Amrico Frasseto, dentre outros (SPOSATO, Karyna Batista. Odireito penal juvenil. So Paulo: RT, 2006).9 A falta de racionalidade na aplicao das medidas se revela ora pela ausncia de proporcionalidade, ora por justificativasfundadas em necessidades de proteo ao adolescente, e no em seu agir. Como se poder constatar em inmeros casos, osadolescentes so privados de sua liberdade em razo de sua situao de vulnerabilidade social ou pessoal e em nome de suaproteo, no de sua responsabilizao.10 Por Menorismo se quer referir o conjunto de princpios e regras fundado na doutrina da Situao Irregular, correspondendoao tratamento dispensado aos menores de idade a partir de uma suposta abordagem autnoma do Direito Penal e, por isso,desvinculada dos princpios de garantia: contraditrio, ampla defesa, equilbrio entre acusao e defesa. E que, no campo daexecuo de sanes e programas especficos, caracteriza-se por uma interveno sem prazo determinado e altamentecorrecional. Nas lies de Luigi Ferrajoli, o paradigma paternalista do direito menoril resultava de sua natureza informal ediscricionria, sempre consignado a um suposto poder bom que invariavelmente atuaria no interesse superior do menor.Como tambm aponta brilhantemente Joo Batista Costa Saraiva, esse pressuposto resultou dramaticamente desmentido pelarealidade, transformando-se o sistema da Doutrina da Situao Irregular na ausncia absoluta de regras, possibilitando elegitimando os piores abusos e arbitrariedades (SARAIVA, Joo Batista Costa. Compndio de direito penal juvenil:adolescente e ato infracional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 30).11 Dados do Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada (IPEA) na pesquisa Mapeamento da situao das unidades deexecuo de medida socioeducativa de privao de liberdade ao adolescente em conflito com a lei (2006)demonstraram que quanto aos quesitos escolaridade, ocupao e rendimento, a maior parte dos adolescentes privados deliberdade no Brasil no frequentava a escola quando praticou o delito (51%) e no trabalhava (49%), sendo que, entre os quetrabalhavam, cerca de 40% exerciam ocupaes no mercado informal. Em relao ao grau de instruo, observou-se que 89%dos adolescentes internados no concluram o ensino fundamental, apesar de se encontrarem em uma faixa etria (16 a 18anos) equivalente do ensino mdio.12 A Doutrina da Situao Irregular sustentou-se durante a vigncia dos dois Cdigos de Menores: o conhecido Cdigo MelloMatos, de 1927, que a inaugura; e depois, sob a gide do Cdigo de Menores de 1979, que a atualiza, sendo somente revogadacom a entrada em vigor do ECA em 1990.13 Vale retomar as lies de Zaffaroni sobre o Direito penal do autor como o conjunto das teorias que concebem a explicaoda pena em caractersticas dos autores dos delitos. Esse Direito penal imagina que o delito um estado do autor, sempreinferior s demais pessoas consideradas normais. Esse estado de inferioridade tem, para alguns, natureza moral e, para outros,natureza mecnica; ou seja, para os primeiros, o homem que incorre na prtica de delitos coloca-se em estado de pecado penal,em consequncia, a reprovao e a pena devem adequar-se ao grau de perverso pecaminosa de sua conduta. Para ossegundos, o delito sinaliza uma falha, indicando um estado de perigo ou perigosidade, e as agncias jurdicas constituemaparatos mecanicamente determinados a corrigir ou neutralizar as peas que falham. Em ambas as concepes, o criminalizado um ser inferior (ZAFFARONI, Eugenio Ral; SLOKAR, Alejandro; ALAGIA, Alejandro. Derecho penal: parte general. 2.ed. Buenos Aires: Ediar, 2002).14 LECHNER, Norbert. Los ptios interiores de la democracia: subjetividad y poltica. 2. ed. Mxico/DF: Fondo de CulturaEconmica, 1995.15 Winfried Hassemer trabalha com a chamada Teoria do Bode Expiatrio para demonstrar que, no que tange ideia dereprovao presente nas sanes e disseminada no senso comum, a sociedade afetada pelo mal o projeta sobre a pessoaindividual, e acaba por desejar que esta seja afastada ou expulsa. A identificao de um bode expiatrio resulta, portanto, de ummecanismo psicossociolgico diante do crime e da violncia (SPOSATO, Karyna Batista. Culpa e castigo: modernas teorias daculpabilidade e limites ao poder de punir. Revista Brasileira de Cincias Criminais, n. 56, set./out. 2005. So Paulo: RT).16 O Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) corresponde poltica de atendimento aprovada em 2006pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criana (Conanda) para a implementao das medidas socioeducativas no Brasil. Frutode um intenso processo de construo e discusso coletiva desde 1999, tendo contado com a participao de representantesgovernamentais e no governamentais, especialistas na rea e diversos atores sociais do Sistema de Garantia de Direitos daCriana e do Adolescente, possui como princpio norteador de todo o Sistema a integrao da poltica socioeducativa com os

  • demais sistemas, como a Sade, Educao, Assistncia Social, Justia e Segurana Pblica. Por isso, o SINASE pode serconcebido como um conjunto ordenado de princpios, regras e critrios, de carter jurdico, poltico, pedaggico, financeiro eadministrativo, que envolve desde o processo de apurao de ato infracional at a execuo de medida socioeducativa, incluindoos sistemas estaduais, distrital e municipais, bem como todas as polticas, planos e programas especficos de ateno aoadolescente em conflito com a lei. Dessa forma, o SINASE se constitui como a organizao nos trs nveis de governo (federal,estadual e municipal) dos equipamentos destinados execuo das medidas socioeducativas, em superao aos modelos Febem(herana da Funabem, cuja lgica se amparava nos grandes complexos de privao de liberdade e na natureza de instituiestotais das unidades sem comunicao com as polticas setoriais).17 So inmeros os relatrios de organizaes de direitos humanos que atestam o alto grau de violncia no interior das unidadesde internao. Apenas a ttulo ilustrativo, podemos citar o relatrio da Anistia Internacional Aqui ningum dorme sossegadode 1999, os relatrios anuais do Centro de Justia Global, os relatrios da Human Rights Watch Verdadeiras Masmorrassobre o Rio de Janeiro e outras unidades no norte do pas.18 MUOZ CONDE, Francisco. As reformas da parte especial do direito penal espanhol em 2003: da tolerncia zero ao direitopenal do inimigo. Revista Eletrnica de Cincias Jurdicas RECJ. Disponvel em:. Acesso em: 2 jan. 2005.19 Na letra do Estatuto da Criana e do Adolescente, precisamente no art. 103, descreve-se o ato infracional como todaconduta equivalente a crime ou contraveno penal.20 Se o Direito penal representa o sistema de controle social formalizado, tomando as lies de Zaffaroni, naquilo que especfico, o Direito penal juvenil representa o mesmo controle formalizado dirigido especialmente aos adolescentes.21 Ainda que parea bvio sinalizar a incidncia da legalidade como condio da aplicao de qualquer medida socioeducativa,casos como o de um adolescente internado por trfico de drogas que no portava droga alguma, ou por receptao sem estarna posse da coisa roubada so aberraes jurdicas que se repetem nas varas da infncia e juventude pelo pas.22 BUSTOS RAMIREZ, Juan; HORMAZBAL MALARE, Hernn. Nuevo sistema de derecho penal. Madrid: Trotta,2004.23 BELOFF, Mary. Responsabilidad penal juvenil y derechos humanos. Revista Justicia y Derechos del Nio, Buenos Aires:UNICEF, n. 2, 2001.24 FRANCO, Alberto Silva; STOCCO, Rui (Coords.) Cdigo Penal e sua interpretao jurisprudencial. 1, 6. ed. SoPaulo: RT, 1997. v. 1, t. t.25 Entre os estudiosos do tema, h consenso relativamente ao Direito penal juvenil ser um verdadeiro Direito penal, pormadaptado s necessidades dos adolescentes e em considerao ao fato de que adultos e adolescentes possuem realidadesdistintas. O menor de idade possui traos sociais prprios, uma personalidade prpria que est em constante, vertiginosa econtnua evoluo. Conforme assinala Boldova Pasamar, o direito est obrigado a assumir tais diferenas no tocante suaregulao e, em concreto, o Direito penal deve aceitar tais diferenas estabelecendo um Direito penal juvenil distinto do Direitopenal dos adultos (BOLODOVA PASAMAR, Miguel Angel. Lecciones de las consecuencias jurdicas del delito. GRACIAMARTIN (Coord.) Valencia: Tirant lo Blanch, 2004, p. 431).

  • 1Configurao do Direito Penal

    de Adolescentes no Brasil

    Este captulo procura descrever a construo normativa da responsabilidade penal doadolescente no Brasil, com base no Estatuto da Criana e do Adolescente (Lei n. 8.069/90) e apartir da democratizao brasileira e da constitucionalizao do Direito da Criana e doAdolescente.

    1.1 A democratizao brasileira e a Constituio Federal de 1988Com a democratizao e a posterior promulgao da Constituio Federal de 1988, tem

    incio uma nova etapa do Direito penal de adolescentes[26], intitulada Garantista, em face deefetivas garantias que so incorporadas aos procedimentos de apurao da responsabilidadedos menores de idade, bem como execuo das medidas judiciais impostas.

    Em primeiro lugar, foroso reconhecer que a Constituio brasileira de 1988 uma dasrepresentantes do que se conhece por constitucionalismo dirigista ou de carter social,iniciado com a Constituio mexicana de 1917 e a Constituio de Weimar de 1919[27], comforte influncia do modelo alemo do segundo ps-guerra, assim como da Constituioportuguesa, adotada depois da derrubada do regime salazarista, nos anos 1970.

    Como toda Constituio social, estabelece obrigaes positivas para o Estado na reasocial, buscando regulamentar as atividades econmicas, assim como configurando rgospara a implementao de suas polticas pblicas, que podem inclusive constituir agenteseconmicos diretos[28].

    A Constituio de 1988, ainda que elaborada num contexto de franco reducionismo dosdireitos de carter social, adotou a roupagem do Estado de Bem-Estar Social, o que se podecompreender pela prpria histria brasileira marcada por profundos padres de desigualdadee represso de suas demandas bsicas durante um longo perodo de regime ditatorial.

    Com a participao intensa da sociedade civil, jamais verificada antes na histria do pas, etambm sob forte influncia corporativa, a Constituio de 1988 se configurou numcompromisso entre os diversos setores articulados que detinham, naquele momento, parcelasde poder.

    Pode-se ver, como adverte Oscar Vilhena Vieira, um compromisso maximizador, atravs doqual distintos setores lograram alcanar a constitucionalizao de seus interesses substantivos.Consequentemente, efeitos colaterais so produzidos por essa intensa constitucionalizao;dentre eles, o prprio envelhecimento precoce do texto constitucional[29]. Se de um lado garantida a rigidez e, portanto, tambm a perenidade a uma infinidade de assuntos e temas, deoutro, quando as circunstncias se modificam e quase inevitvel no pensar numa mudana

  • na Constituio.Em outro sentido, pondera Lus Roberto Barroso que, a despeito da compulso

    reformadora, a Constituio brasileira vem consolidando um verdadeiro sentimentoconstitucional e absorvendo graves crises polticas dentro do quadro de legalidadeconstitucional, talvez no campo dos direitos da infncia e juventude esta viso seja a que maisse aproxima do cenrio atual[30].

    Fato que a Constituio Federal de 1988 inaugura um novo paradigma, de dupladimenso: comprometimento com a efetividade de suas normas; e desenvolvimento de umadogmtica da interpretao constitucional[31]. Em outras palavras, tal paradigma permitereconhecer sua fora normativa, o carter vinculativo e obrigatrio de suas disposies,superando a concepo anterior de ser a Constituio apenas um conjunto de aspiraespolticas e uma convocao atuao dos Poderes Pblicos.

    Como ensina Lus Roberto Barroso, essas transformaes alteraram significativamente aposio da Constituio na ordem jurdica brasileira. Um dos efeitos mais visveis foi a perdade preeminncia do Cdigo Civil mesmo no mbito das relaes privadas, em que seformaram diversos microssistemas (consumidor, criana e adolescente, locaes, direito defamlia)[32]. E assim como sucedeu na Alemanha, aps a Segunda Guerra, a Lei Fundamentalbrasileira passou ao centro do sistema jurdico.

    No caso brasileiro, o novo Direito constitucional coincide com a redemocratizao ereconstitucionalizao do pas, o que o reveste de caractersticas bastante particulares,afetando o modo de olhar e interpretar todos os demais ramos do Direito, sobretudo nodesafio de superao de histricas desigualdades e desvios no campo da economia e dapoltica.

    Esse fenmeno de ler e apreender toda a ordem jurdica atravs da lente da Constituio foidenominado por Gomes Canotilho como filtragem constitucional, na medida em que todos osinstitutos, inclusive do direito infraconstitucional, so reinterpretados pela tica constitucionalcom o objetivo de consagrar os valores enunciados na Constituio[33]. E ainda que oconstitucionalismo, por si s, no seja capaz de sanar todos os problemas sociais, no se podenegar sua importante contribuio.

    A Constituio Federal de 1988 traduz para a realidade brasileira a ideia deneoconstitucionalismo[34] e de constitucionalizao de distintos ramos infraconstitucionais doDireito. Da ser considerada uma Constituio material[35], que funciona como limite ougarantia e ao mesmo tempo como norma diretiva fundamental[36]. Evidentemente, aconstitucionalizao no absoluta, mas comporta diferentes graus ou estgios deimplementao, e pode-se adotar como chave de leitura a premissa do constitucionalismo dosdireitos, a partir da considerao de que os direitos e liberdades fundamentais vinculam todosos poderes pblicos e originam direitos e obrigaes, no se resumindo a meros princpiosprogramticos.

    Assim sendo, princpios, diretrizes e valores que se fazem presentes no texto constitucionalde 1988 revelam essa perspectiva. Nas palavras de Luis Prieto Sanchs, no h problemajurdico que no possa ser constitucionalizado, e isso significa que devemos descartar aexistncia de um mundo poltico separado da ou imune influncia constitucional[37].

  • O art. 5 da CF/1988, ao tratar dos direitos e garantias fundamentais, demonstrainequivocamente a constitucionalizao de diversos ramos infraconstitucionais, com especialimportncia aos efeitos limitadores produzidos no ius puniendi do Estado[38], pois, se de umlado a Constituio Federal a primeira manifestao legal da poltica penal de um Estado,de outro ela que confere maior racionalidade ao sistema.[39]

    Nas palavras de Ral Zafaronni, o estatuto poltico do Estado a primeira manifestaolegal da poltica penal. E no so poucas as abordagens que revelam a inegvel relao entrea Constituio, o poder punitivo e o Direito penal. Pelo menos quatro formas de dilogo entrea Constituio e o Direito Penal podem ser por ora explicitadas: a Constituio como estruturafundante do Direito Penal e do poder punitivo, a Constituio como fonte do Direito Penal, aConstituio como filtro do Direito Penal e, por fim, a Constituio como fator de evoluopara a cincia penal[40].

    Na primeira perspectiva, da Constituio como estrutura fundante, destaca-se oposicionamento do penalista italiano Nuvolone[41], segundo o qual as Constituies, a exemploda Constituio italiana, contm princpios fundamentais de carter penal, alm do fato de quesua articulao no tocante aos direitos de liberdade reflete necessariamente na lei penal. Paraele, possvel identificar normas da Constituio que dizem respeito formulao do preceitoprimrio do ponto de vista objetivo e subjetivo; e normas referentes aos preceitos secundriose, portanto, pertinentes matria das sanes.

    Como fonte do Direito Penal, a Constituio considerada o primeiro e privilegiadoterreno de nascimento e de desenvolvimento da ateno aos princpios constitucionaisinformadores do Direito Penal, sobretudo por que, em matria penal, a lei assume umsignificado maior do que em qualquer outro ramo jurdico; de outra parte, no exagero dizerquer o Direito Penal funda-se na Constituio, pois suas normas ou so formalmenteconstitucionais ou so autorizadas ou delegadas por outras normas constitucionais. Destaque-se que a atual configurao do Direito penal de adolescentes tem como fonte a normaconstitucional que define a idade de imputabilidade penal plena e autoriza aos menores deidade a aplicao das regras da legislao especial, no caso especfico, o Estatuto da Crianae do Adolescente[42].

    J o papel da Constituio como filtro do Direito Penal evidencia-se pela efetivanecessidade de que as normas penais e, consequentemente, todo o funcionamento do sistemade controle penal formal se deem em conformidade com o esprito da Constituio. E,finalmente, destacar a Constituio como mecanismo de evoluo para a cincia penal implicareconhecer sua funo crtica, interpretativa e dogmtica.

    Em sntese, como tambm leciona Maurcio Antnio Ribeiro Lopes, h uma autnticaformatao do Direito Penal pela Constituio e sua fora normativa, de forma a impedir queo Direito Penal seja legislado com a mesma flexibilidade com que se legisla ordinariamentesobre outras matrias infraconstitucionais[43].

    No campo dos Direitos da Criana e do Adolescente e, especificamente do Direito penaljuvenil, o Captulo VII da Constituio que rene os principais dispositivos constitucionais,merecendo especial meno o art. 227, V; e art. 228 da CF/1988.

    O art. 227 da CF/1988 determina que os direitos de crianas e adolescentes devam ser

  • assegurados com absoluta prioridade, obrigando no s ao Estado, mas tambm famlia e sociedade na sua garantia:

    dever da famlia, da sociedade e do Estado assegurar criana e ao adolescente, com absolutaprioridade, o direito vida, sade, alimentao, educao, ao lazer, profissionalizao, cultura, dignidade, ao respeito, liberdade e convivncia familiar e comunitria, alm de coloc-los a salvo de todaforma de negligncia, discriminao, explorao, violncia, crueldade e opresso.

    O 3 do mesmo artigo define a proteo especial, detalhando cada um de seus aspectos:O direito a proteo especial abranger os seguintes aspectos:I idade mnima de quatorze anos para admisso ao trabalho, observado o disposto no art. 7, XXXIII;II garantia de direitos previdencirios e trabalhistas;III garantia de acesso do trabalhador adolescente escola;IV garantia de pleno e formal conhecimento da atribuio de ato infracional, igualdade na relaoprocessual e defesa tcnica por profissional habilitado, segundo dispuser a legislao tutelarespecfica;V obedincia aos princpios de brevidade, excepcionalidade e respeito condio peculiar depessoa em desenvolvimento, quando da aplicao de qualquer medida privativa de liberdade;VI estmulo do Poder Pblico, atravs de assistncia jurdica, incentivos fiscais e subsdios, nos termos dalei, ao acolhimento, sob a forma de guarda, de criana ou adolescente rfo ou abandonado;VII programas de preveno e atendimento especializado criana e ao adolescente dependente deentorpecentes e drogas afins (grifo nosso).

    Finalmente, o art. 228 da CF/1988 trata da responsabilidade penal diferenciada aosmenores de 18 anos, ecoando a mesma regra do art. 27 do Cdigo Penal vigente: Sopenalmente inimputveis os menores de dezoito anos, sujeitos s normas da legislaoespecial.

    Como j assinalado, a constitucionalizao do Direito da Criana e do Adolescente noBrasil operada pela Carta Constitucional de 1988, que adota de forma clara e taxativa umsistema especial de proteo aos direitos fundamentais de crianas e adolescentes.

    Esse sistema tem sua raiz na conformao dos direitos elencados nos arts. 227 e 228 daCF/1988 como direitos humanos e, consequentemente, como manifestaes da prpriadignidade humana, que o fundamento do Estado Democrtico de Direito brasileiro[44].

    De fato, a mudana de paradigma e a introduo de um novo Direito da Criana e doAdolescente no ordenamento brasileiro encontram suas origens na ratificao da Convenosobre os Direitos da Criana em 1989[45], na Campanha Criana e Constituinte e logo naentrada em vigor da prpria Constituio. Esse processo de alterao jurdica e social possuium enorme significado, o qual Emilio Garcia Mendez definiu como a conjuno de trscoordenadas fundamentais: infncia, lei e democracia[46].

    Portanto, uma breve recuperao do que foi o processo popular de construo daConstituio de 1988, no campo dos direitos da infncia e adolescncia, permite identificartrs aspectos centrais.

    O primeiro, j externado por Luigi Ferrajoli, de que no s a democracia garante a lutapelos direitos, mas tambm, e fundamentalmente, a luta pelos direitos garante ademocracia[47]; o segundo, a capacidade de o Direito influenciar a poltica social, a partir darelao entre a condio jurdica e a condio material da infncia; e, por ltimo, mas no

  • menos importante, a descoberta emprica de que os problemas da infncia so problemas dademocracia[48].

    A partir de 1985, no bojo da Conveno Constituinte, o movimento de luta pelos direitos dainfncia reuniu 250 mil assinaturas e articulou-se em torno de duas Emendas Constituio.Seu resultado foi a introduo dos princpios bsicos de proteo e garantia de direitos dacriana e do adolescente no texto constitucional de 1988. As reivindicaes da CampanhaCriana e Constituinte traduziam em exata medida a necessidade de substituio do paradigmatutelar/menorista pelo garantista, com incidncia em todas as polticas de ateno infncia ejuventude, inclusive para os infratores.

    Tal introduo correspondia ao consenso na comunidade internacional acerca danecessidade de polticas especiais para a infncia e adolescncia e ao que posteriormente seconstituiu nos princpios inaugurados pela Conveno Internacional das Naes Unidas sobreos Direitos da Criana.

    Diversos dispositivos da Constituio Federal de 1988 revelam a superao da doutrina dasituao irregular e, por consequncia, da legislao menorista. Como j mencionado, o art.227 da CF/1988 um dos pilares da constitucionalidade do novo Direito que tomava forma eimplicava a deslegitimao do velho Direito do Menor, presente na legislao anterior (oCdigo de Menores de 1979).

    Ao estabelecer a prioridade absoluta da criana e do adolescente no ordenamento jurdicobrasileiro, o referido artigo, entre outros aspectos, indica que enquanto o antigo direito noera o direito de todos os menores de idade, mas somente dos menores de 18 anos em situaoirregular, o novo Direito da Criana o direito de todas as crianas e adolescentes. Trata-sedo reconhecimento da igualdade jurdica entre todas as crianas e todos os adolescentes, que,possuindo o mesmo status jurdico, gozam da mesma gama de direitos fundamentais,independentemente da posio que ocupam na sociedade[49].

    De acordo com a sistemtica anterior, o menor de idade abandonado, ou vtima de maus-tratos familiar, ou privado de sade ou educao era considerado em situao irregular. Com aregra da prioridade absoluta, esto em situao irregular os pais ou responsveis que nocumprem os deveres do poder familiar e o Estado que no oferece as polticas sociaisbsicas, ou ainda as prestaes positivas que a Constituio lhe incumbe.

    Fala-se, portanto, de uma inegvel constitucionalizao do Direito da Criana e doAdolescente fundada em dois aspectos principais: o quantitativo, relacionado positivao dedireitos fundamentais exclusivos de crianas e adolescentes, que se somam aos demaisdireitos fundamentais dos adultos; e o qualitativo, relacionado estruturao peculiar dodireito material de crianas e adolescentes. Ambos os aspectos aparecem de forma evidentenas regras elencadas pelo art. 227 da CF/1988.

    Aquilo que particular de crianas e adolescentes encontra-se descrito no 3 do art. 227da CF/1988[50], j detalhado neste item. Para Martha de Toledo Machado, estes direitosespeciais configuram direitos da personalidade infanto-juvenil.

    J no tocante ao tratamento repressivo a condutas antissociais ou ilcitas de menores de 18(dezoito) anos de idade, a norma constitucional, portanto, reforou o dispositivo do art. 27 do

  • CP/1940 adotando a presuno absoluta de inimputabilidade aos menores de 18 anos. Odireito inimputabilidade penal e os direitos excepcionalidade e brevidade na privao deliberdade so direitos individuais e, como tais, considerados clusulas ptreas daConstituio[51].

    Conforme se pode observar, a Constituio democrtica de 1988, ao constitucionalizar oDireito da Criana, ps em evidncia a necessidade de reformulao da legislao especialinfraconstitucional para crianas e adolescentes como condio para o alinhamento entre osavanos da normativa internacional, da prpria construo normativa constitucional e dalegislao ordinria.

    No por acaso, dois anos aps a Constituio, o Estatuto da Criana e do Adolescente, Lein. 8.069, de 13-7-1990, entra em vigor instrumentalizando os mandamentos constitucionais daprioridade absoluta por meio do que se convencionou chamar de Doutrina Jurdica daProteo Integral, que por sua vez, corresponde a uma sntese do pensamento do legisladorconstituinte a partir de garantias substanciais e processuais destinadas a assegurar os direitosconsagrados.

    inegvel, desse modo, a relao intrincada entre a Constituio Federal de 1988 e oEstatuto da Criana e do Adolescente. Contemporneos ao consenso na comunidade dasnaes acerca da necessria proteo especial s crianas e adolescentes, amboscaracterizam-se pelo forte teor programtico de suas disposies[52].

    Assim sendo, as disposies da Lei n. 8.069/90 demonstram com clareza a influncia dosprincpios fixados pela Conveno Internacional das Naes Unidas sobre os Direitos daCriana, que de modo unssono traduzem a afirmao histrica dos direitos humanos. No casode crianas e adolescentes, o reconhecimento da condio peculiar de pessoa emdesenvolvimento uma decorrncia lgica do princpio da dignidade da pessoa humana.

    O processo de constitucionalizao da normativa da criana e do adolescente operousubstantivas transformaes, a comear pela superao da categoria de menoridade, comodesqualificao e inferiorizao de crianas e jovens, agora em condies de igualdadeperante a lei, e a incorporao do devido processo legal e dos princpios constitucionaiscomo norteadores das aes dirigidas infncia e, ao mesmo tempo, limites objetivos aopoder punitivo sobre adolescentes autores de infrao penal.

    No tocante aos princpios constitucionais do Direito da Criana e do Adolescente, o pontode partida a proteo integral como linha mestra que rene e harmoniza todos os demaisprincpios em um conjunto sistmico.

    A proteo integral deve ser concebida como a doutrina jurdica que sustenta todo atualDireito brasileiro da Criana e do Adolescente. Seu significado est em reconhecer que todosos dispositivos legais e normativos tm por finalidade proteger integralmente as crianas e osadolescentes em suas necessidades especficas, decorrentes da idade, de seu desenvolvimentoe de circunstncias materiais. A proteo integral, no entanto, deve se materializar por meiode polticas universais, polticas de proteo ou polticas socioeducativas[53], conforme anecessidade. Trata-se de um princpio norteador que deve obter implementao concreta navida das crianas e dos adolescentes sem qualquer distino.

  • Como argumenta Martha de Toledo Machado, muito embora a tendncia majoritria dadoutrina seja identificar apenas trs grandes princpios quais sejam, a proteo integral, orespeito condio peculiar de pessoa em desenvolvimento e a prioridade absoluta , pareceemergirem do processo de constitucionalizao do Direito da Criana, cinco princpiosgerais: a) princpio da proteo integral; b) princpio do respeito condio peculiar depessoa em desenvolvimento; c) princpio da igualdade de crianas e adolescentes; d)princpio da prioridade absoluta; e e) princpio da participao popular na defesa dos direitosde crianas e adolescentes[54].

    Ressalte-se ainda que, em matria de responsabilidade penal de adolescentes, como sedesdobra das prprias normas constitucionais de limitao do ius puniendi e de fixao dainimputabilidade penal, outros princpios devem ser considerados, tais como: a) princpio dareserva legal; b) princpio da excepcionalidade da privao de liberdade; c) princpio docontraditrio; e d) princpio da ampla defesa.

    Resta inconteste que todo o processo de constitucionalizao da matria revogou a arcaicaconcepo tutelar do menor em situao irregular, estabelecendo que a criana e o adolescenteso sujeitos de direitos, e no mais objetos da norma, remodelando, consequentemente, aJustia da Infncia e da Juventude[55] e abandonando o conceito de menoridade comosubcategoria da cidadania.

    A substituio do Cdigo de Menores de 1979 pelo Estatuto da Criana e do Adolescente,em 1990, consolidou uma verdadeira revoluo paradigmtica, uma revoluo cultural,considerando que as piores atrocidades contra a criana foram cometidas numa poca em que,em nome do amor, reinavam os ideais de messianismo, de subjetivismo e dediscricionariedade, conforme assinala Garcia Mendez: Tratava-se (e trata-se ainda),sobretudo, de eliminar as boas prticas tutelares e compassivas. (...) Tratava-se (e trata-seainda) de substituir a m, porm tambm a boa vontade, nada mais mas tambm nada menos pela justia[56].

    Com referncia responsabilidade dos adolescentes, o Estatuto da Criana e doAdolescente ensaia demarcar um fim das ambiguidades existentes entre a proteo e aresponsabilizao do adolescente autor de infrao penal, porm sem completo sucesso.

    Ora, o adolescente pessoa entre 12 (doze) e 18 (dezoito) anos de idade , quando autor deconduta contrria lei penal, dever responder a um procedimento para apurao de atoinfracional, sendo passvel, se comprovadas a autoria e a materialidade do ato, de aplicaode uma medida socioeducativa prevista no Estatuto da Criana e do Adolescente. A criana(pessoa com at doze anos de idade incompletos), ao praticar ato contrrio lei penal ficarsujeita aplicao de uma medida protetiva, tambm prevista no referido Estatuto, e conformea necessidade, porm sem sua submisso a processo de apurao de responsabilidade.

    Alguns autores, a exemplo de Martha de Toledo de Machado, advertem que prevalece umaboa dose de ambiguidade em razo da redao dos arts. 105 e 112 do Estatuto, uma vez que seautoriza a imposio de medida de proteo criana que praticar crime, atribuindosubliminarmente um carter sancionatrio a essa classe de medidas em franco desvirtuamentode sua natureza. Por outro lado, quando o art. 112 refere que medidas de proteo podem seraplicadas em decorrncia da prtica de atos infracionais por adolescente, refora-se ainda

  • mais a confuso conceitual[57]. Acrescenta ainda a autora:A interpretao desvirtuada do art. 112, que leva a concluir que as medidas socioeducativas teriam carterprotetivo, a qual, tambm com bastante frequncia, tem levado limitao de incidncia do contraditrio eda ampla defesa. Ou ainda aplicao de medidas socioeducativas em hiptese em que elas no seriamnecessrias, sob o ngulo do interesse social pela paz pblica, com prejuzos s clusulas dainimputabilidade penal garantista, da excepcionalidade e brevidade na privao de liberdade[58].

    1.2 O Estatuto da Criana e do Adolescente e o direito penal deadolescentes

    O Estatuto da Criana e do Adolescente, Lei n. 8.069/90, como visto, opera o alinhamentonecessrio entre os compromissos assumidos pelo Brasil na esfera internacional de proteodos direitos humanos de crianas e adolescentes, sobretudo pela ratificao da ConvenoInternacional das Naes Unidas sobre os Direitos da Criana, e o novo modelo constitucionaladotado em 1988, que teve repercusses significativas na normatizao dos direitos dainfncia e juventude de maneira geral e com especial relevncia no tocante responsabilidadedos adolescentes.

    Por essa razo, diz-se Garantista a etapa inaugurada com a adoo do Estatuto da Criana edo Adolescente que, nas palavras de Emilio Garcia Mendez, tem uma dupla caracterizao[59]:respeito rigoroso pelo imprio da lei, prprio das democracias constitucionais baseadas naperspectiva de direitos humanos hoje normativamente estabelecidos, e a existncia demecanismos e instituies idneas e eficazes para a realizao efetiva dos direitosconsagrados.

    Para Luigi Ferrajoli, o Estado Constitucional de Direito um novo modelo de direito e dedemocracia[60], e, por isso, o garantismo, define o autor, a outra cara do constitucionalismo,na medida em que lhe correspondem a elaborao e a implementao das tcnicas de garantiaidneas para assegurar o mximo grau de efetividade dos direitos constitucionalmentereconhecidos. Alm disso, sua concepo do paradigma democrtico conduz garantia detodos os direitos, no somente os direitos de liberdade, mas tambm os direitos sociais.Garantia que se estabelece tambm diante de todos os poderes, no s dos poderes pblicos,mas tambm dos poderes privados, e em terceiro lugar, garantia em todos os nveis, domsticoe internacional[61].

    Nesse sentido, a primeira regra importante a derivada do art. 2 da Lei infraconstitucionalque define a criana e o adolescente, para seus efeitos, a partir do estabelecimento de faixasde idade. Assim: Considera-se criana para os efeitos desta Lei, a pessoa at doze anos deidade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade. Admitindo opargrafo nico a aplicao excepcional do Estatuto s pessoas entre dezoito e vinte e umanos de idade nos casos expressos em lei.

    Em seguida, merece meno o art. 104 do Estatuto da Criana e do Adolescente, quereproduz a norma constitucional da inimputabilidade e as disposies do art. 26 do CdigoPenal: So penalmente inimputveis os menores de dezoito anos, sujeitos s medidasprevistas nesta Lei. E o pargrafo nico assinala ainda que, para os efeitos da lei, deve serconsiderada a idade do adolescente data do fato.

  • Observa-se, portanto, que da combinao das disposies retrocitadas decorre adelimitao da responsabilidade penal juvenil fixada aos 12 (doze) anos idade de incio ecompreendida na faixa etria de 12 (doze) a 18 (dezoito) anos, destacando-se ainda que ser aidade do agente no momento do cometimento do ato aquela considerada para fins deresponsabilidade penal.

    Assoma a definio de ato infracional como toda conduta descrita como crime oucontraveno penal, nos termos do art. 102 do ECA, como a garantia da legalidade em matriade imputao de responsabilidade dos adolescentes. Ora, somente as condutas equiparveis acrimes ou contravenes podero ser objeto de sano jurdico-penal, no mais se admitindono novo modelo de responsabilidade que situaes ambguas, de risco ou vulnerabilidade,fundamentem a imposio de uma medida coercitiva, como so as medidas socioeducativas.

    1.2.1 O conceito de ato infracionalEm face do princpio da legalidade, a definio de ato infracional, ao remeter-se conduta

    descrita como crime, est diretamente relacionada atribuio da pena pelo direito penalcomum[62]. Resulta claro e evidente que a existncia do ato infracional restringe-se shipteses legais aptas a sancionar o adulto[63].

    Adotou-se, portanto, tcnica de tipificao delegada, pois tudo o que considerado crimepara o adulto tambm em igual medida considerado para o adolescente. Ao adolescente,contudo, imputa-se a mesma responsabilidade em face do crime ou da contraveno penal[64],em que pesem as diferenas substantivas entre essas duas espcies de delito.

    A conduta praticada pelo adolescente somente se afigurar como ato infracional se, esomente se, contiver os mesmos aspectos definitrios da infrao penal. Por conseguinte, ocritrio de identificao dos fatos de relevncia infracional a prpria pena criminal, o queimplica que a definio de ato infracional est inteiramente condicionada ao Princpio daLegalidade.

    Resulta que o ato infracional somente existe se houver figura tpica que o preveja. Oambguo desvio de conduta, que no Cdigo de Menores sustentava-se sob a gide do art. 2,no mais suficiente para legitimar o exerccio do poder punitivo sobre adolescentes.Conforme sublinha Saraiva, exclui-se, no modelo de responsabilidade atual, a ideia doambguo desvio de conduta; vazio de contedo tpico[65], a imposio de uma medidasocioeducativa somente admitida, portanto, se a conduta atribuda ao adolescentecorresponder a uma das condutas tpicas extradas do ordenamento penal positivo.

    Ao lado do princpio da legalidade, observa-se a incidncia da tipicidade como limite dainterveno penal sobre adolescentes. O ato infracional s existe na estrita demonstrao daprtica de uma figura tpica, de fato penalmente tpico, ou seja, da exata correspondncia entreo agir do adolescente e a descrio contida na lei penal incriminadora.

    O conceito de tipo, do qual deriva a tipicidade, foi introduzido por Belling na dogmticapenal[66] apresentando pelo menos trs abordagens: a) o tipo como descrio docomportamento proibido, integrado por todas as suas caractersticas subjetivas, objetivas,descritivas e normativas; b) o tipo de injusto como descrio da leso do bem jurdico,compreendendo os fundamentos positivos da tipicidade (descrio do comportamento

  • proibido) e os fundamentos negativos da antijuridicidade (ausncia de causas de justificao);e c) o tipo de garantia (tipo em sentido amplo) vinculado realizao da funo poltico-criminal atribuda ao princpio da legalidade, compreendendo todos os pressupostos dapunibilidade: alm dos caracteres do tipo de injusto (tipicidade e antijuridicidade), tambm oscaracteres da culpabilidade como fundamentos de reprovao do autor pela realizao do tipode injusto.

    Considera-se que a tipicidade qual est vinculada a definio de ato infracional pode serlida como a tipicidade derivada do tipo de garantia, em todas as suas dimenses.

    Portanto, a conduta do adolescente configura ato infracional quando possui tipicidade[67].Sendo a tipicidade corolrio do princpio da legalidade, Czar Roberto Bittencourt, em seuTratado de Direito Penal[68], refora ainda que o tipo exerce funo limitadora eindividualizadora de condutas humanas penalmente relevantes. a relevncia penaldecorrente da previso tpica do ato infracional que autoriza a imposio de uma medidasocioeducativa como resposta quando haveria a pena criminal para o adulto.

    Consequentemente, o adolescente, segundo as regras do Estatuto e da Constituio, jamaispoder ser destinatrio de uma medida socioeducativa quando seu agir se fizer insuscetvel dereprovao estatal[69]. Alis, pacfico o entendimento na doutrina estrangeira de que oadolescente no pode ser punido em situao na qual o adulto no seria, acrescentando-seainda que, mesmo quando autorizada a reprovao, no pode o adolescente ser punido maisseveramente do que o adulto em idntica situao delitiva. Aflora, portanto, que todas ascausas de exculpao, bem como todas as causas de extino da punibilidade, devem serobservadas quando da prtica da infrao por um adolescente, tema este que ser melhor emais profundamente analisado no decorrer deste trabalho.

    No tocante antijuridicidade da conduta praticada como elemento que permite vincular aao do sujeito ao desrespeito da ordem jurdica, imperioso considerar que para o atoinfracional ser tambm a antijuridicidade a marca distintiva de demonstrao da relevnciapenal ou infracional, pois ainda que nem toda conduta antijurdica seja delito, todo delitocontm antijuridicidade, na medida em que representa uma quebra ordem jurdica e aodireito positivo.

    O ato infracional, portanto, corresponde a um fato tpico e antijurdico, previamentedescrito como crime ou contraveno penal. Impe a prtica de uma ao ou omisso e apresena da ilicitude para sua caracterizao.

    Se todo crime, quando praticado por um adolescente, ato infracional e o mesmo vale paratoda contraveno penal, tem-se, em termos conceituais, que ato infracional toda condutatpica (crime ou contraveno penal), antijurdica e culpvel[70] (punvel/reprovvel).

    Adota-se de plano, neste trabalho, o contributo de Claus Roxin que considera perfeitamenteadmissvel a culpabilidade do adolescente, inclusive admitindo o autor que os adolescentessejam jurdico-penalmente responsveis e, para tanto, distinguindo conceitualmenteculpabilidade de responsabilidade[71].

    Em no havendo tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade no que se refere reprovabilidade da conduta praticada, no h que se falar em imposio de medida

  • socioeducativa.A culpabilidade[72], por sua vez, o aspecto que estabelece a conexo necessria entre a

    ao e o sujeito. Os elementos que integram a culpabilidade, tais como a reprovabilidade daconduta e a conscincia da ilicitude, so imprescindveis para a existncia do ato infracional.A verificao da culpabilidade o que confere legitimidade imposio de uma medida emprejuzo de outra, ou seja, a anlise da culpa individual o que permite a escolha da medidamais adequada ao caso concreto.

    Considerando ainda que o modelo presente no Estatuto da Criana e do Adolescente o daresponsabilidade, evidente que os adolescentes devem responder por seus atos na medida desua culpabilidade, uma vez que possuem capacidade valorativa e liberdade da vontade paraaderir ao ilcito ou no, inclusive com a possibilidade de diferentes graus de participao.

    Por ltimo, assim como o crime, o ato infracional s tem existncia diante de um nexo decausalidade entre a conduta e o resultado danoso, ou seja, mediante a existncia de umaconduta dolosa ou ao menos culposa.

    Conclui-se preliminarmente que o conceito de ato infracional parte, portanto, da mesmaseleo de condutas tipificadas na definio de crime e contraveno penal, na medida em quetais figuras representam contrariedade ordem jurdica em sentido amplo, afetando bensjurdicos determinados em sentido estrito.

    Ademais, adstrito ao princpio da legalidade, o conceito de ato infracional exige que aimposio de medida socioeducativa seja fundamentada na prtica de conduta tpica,antijurdica e culpvel.

    1.2.2 Distino entre medidas de proteo e medidas socioeducativasOutro elemento de enorme significado no modelo de responsabilidade penal juvenil,

    adotado pelo Estatuto da Criana e do Adolescente, repousa sobre a distino imperiosa entremedidas de proteo e medidas socioeducativas.

    Como j delineado, a partir da entrada em vigor do ECA, em 1990, a legislao brasileirafixou a responsabilidade penal juvenil aos 12 (doze) anos. A criana, conforme lecionaAmaral e Silva, estando abaixo dessa idade, fica isenta de responsabilidade, devendo serencaminhada ao Conselho Tutelar e podendo ser submetida a medidas protetivas cominterveno administrativa no seio da famlia, submetendo-se pais e responsveis a restriese penas impostas pela Justia, a depender do caso[73].

    As medidas de proteo esto reguladas pelo art. 98 do ECA:As medidas de proteo criana e ao adolescente so aplicveis sempre que os direitos reconhecidosnesta Lei forem ameaados ou violados: I. Por ao ou omisso da sociedade ou do Estado; II. Por falta,omisso ou abuso dos pais ou respons