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f f f t' ( t t ~ l' . !;. L I·: F -; II :.1'. AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO Professor .da Faculdade de Direito da Universidade Católica (POrto) DIREITO .PENAL PARTE GERAL Questões Fundamentais Teoria Geral do Crime ·EDIÇÃO jfJ M'1'Qn>t::M<U Coimbra Editora 2008

Direito Penal - Parte Geral (Taipa de Carvalho) 1

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Livro de taipa de carvalho

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AMÉRICO TAIPA DE CARVALHOProfessor .da Faculdade de Direito da Universidade Católica (POrto)

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Coimbra Editora

2008

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ISBN 978-972-32-1618-9

Setembro de 2008

Depósito Legal o,' 281 09112008

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NOTA

Em Setembro de 2003, foi publicada a L' edição do livro DIREITOPENAL - PARTE GERAL - QUESTÕES FUNDAMENTAIS; emOutubro de 2004, foi publicada a L". edição do livro DIREITO PENAL- PARTE GERAL - TEORIA GERAL DO CRIME.

Esta 2.a edição, que agora vem a público através da Coimbra Edi-tora, contém, num só volume, as matérias tratadas nos dois volumesacabados de referir.

Como é natural, procurei ter em conta as alterações que - sobre-tudo nas matérias da "lei no tempo" e da "lei no espaço" - foramintroduzidas pelas Leis D.OS 48/2007, de 29 de Agosto, e 59/2007, de 4de Setembro.

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TÍTULO I

O PROBLEMA CRIMINAL-PENAL

1.0 CAPÍTULO

A CIÊNCIA GLOBAL DO DIREITO PENAL

L O sentido fundamental actual da designação "ciência global dodireito penal"

§ 1. A designação "ciência global do direito penal" foi criada, emfins do séc, XIX, pelo célebre penalista Franz v. Liszt, Segundo esteautor, o direito penal não se podia reduzir a uma tarefa meramente téc-nica, dogmática ou sistemática, de aplicação do direito penal legisladoao caso concreto.

Ao lado do direito penal em sentido estrito ou dogmática jurídico--penal, deviam colocar-se a política criminal e a criminologia, À poli-tica criminal cabia a função de propor ao legislador, numa perspectivade eficácia, as estratégias e os meios da luta contra a criminalidade, eas consequentes reformas legislativas do direito penal positivado.

Mas a eficácia da política criminal, no 'combate a criminalidade,não podia prescindir do conhecimento ernpírico da realidade dos facto-res sociais e psicológicos associados aos comportamentos criminosos.Assim, era considerada também como parte integrante da ciência penalem sentido amplo ou global a criminologia, dado que só esta ciênciaempírica permitia o conhecimento da realidade social criminal, conhe-cimento este indispensável à eficácia da política criminal.

Todavia, na construção de v. Liszt, a "ciência global do direitopenal", embora também abrangesse a política criminal e a crimínolo-

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12 Parte I - Questões Fundamentais Tttuio 1 - O problema criminol-penol l~

gia, O certo é que estas duas ciências criminais não passavam do esta-tuto de ciências auxiliares do direito penal ou dcgmática jurídico--penal, cabendo a esta o topo da hierarquia das ciências criminais. E,para 'acentuar esta primazia da dogmática jurídico-penal, o próprio v. Lisztformulou a conhecida frase de que «o direito penal (i. é, a dogmática jurí-dico-penal) constitui a barreira intransponivel da política criminal». Istoé, o direito penal ou dogmática jurídico-penal seria, dentro da "ciênciaglobal do direito penal", o depositário dos princípios normativos quegarantiam os direitos individuais fundamentais do delinquente, entre osquais se destacam os princípios da legalidade e da culpa. Estes princí-pios jurídico-penais é que decidiam sobre a legitimidade ou ilegitimidadedas estratégias e dos meios propostos pela política criminal para a redu-ção ou controlo eficazes da criminalidade.

Em síntese: o direito penal ou dogmática jurídico-penal operavasegundo critérios de legitimidade nonnativa; a política criminal ope-rava apenas segundo critérios pragmáticos de eficácia; a criminologia,

+o2.<..'ec"- o to como ciência empírica neutra, fornecia o conhecimento da realidade::,.hec.;l~~::~criminal, conhecimento necessário para a eficácia da política criminal que,," "" c, por sua vez, não podia deixar de estar limitada pelas exigências e prin-L-tilu..e- Lt.tI.

cípios normativos, sedeados na dogmática penal.

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§ 3. Foi mérito de autores como C. Roxin e H. Zipf o terem, nosanos 70 do séc. XX; reelaborado esta nova arrumação, dentro da chamada"ciência global do direito penal", da política criminal face à dogmáticajurídico-penal. E foi a partir daqui que se começou, com razão, a falar,relativamente ao direito penal stricto sensu, em "sistema penal aberto ".Aberto às directrizes da política criminal. Só que, há que acentuá-lo,agora a política criminal não é vista como uma mera "ciência" técnica,preocupada apenas com a eficácia da luta contra o crime, mas tambémcomo ciência normativa, preocupada com a legitimidade dos meios a uti-lizar nesse combate à criminalidade.

E, assim, se compreende que esta nova concepção da política cri-minal (cujo objectivo éa eficácia da luta contra a crirninalidade, mas efi-cácia limitada pela legitimidade dos meios que utiliza) tenha sido assu-mida pelas actuais Constituições do Estado de Direito Democrático eSocial. Na verdade, hoje, os principias fundamentais da politica criminalestão expressamente consagrados na Constituição: princípios da legali-dade, da máxima restrição da pena, da presunção de inocência, etc.,falando-se mesmo, e com acerto, de uma "Constituição político-crimi-nal" como parte integrante da Constituição Política Geral.

Como conclusão, pode dizer-se que a chamada "ciência global dodireito penal" compreende a política criminal, a dogmática jurídlco-penal e a críminologia, e que estas ciências, embora sejam autónomasentre si (pois cada uma tem um objecto imediato e um método especi-ficas), são complementares e interdependentes. Pois, todas elas têmpor objecto último e comum o crime, e todas elas são indispensáveis parauma abordagem, que se queira eficaz e justa, da delinquência. E, por-que complementares e interdependentes, é correcta a designação "ciên-cia global do direito penal" como conjunto da política criminal, da dog-mática penal- e da criminologia.

§ 2. Com a afirmação e consagração do Estado de Direito Mate-rial, a partir do termo da TI Grande Guerra, operou-se uma alteração narelação de subordinação da política criminal a dogmática jurídico-penal.A política criminal deixou o seu estatuto de mera ciência auxiliar dodireito penal em sentido dogmático para passar a ciência autónoma, face

:Jct.l.-ea C,-túviv"lao direito penal, passando mesmo a ser tida como motor dinamizador da1 dogmática penal e, portanto, a ocupar uma posição de supremacia face

,7 ao direito penal em sentido estrito. Verificou-se, assim, uma troca de posi-o!(yv",h~"- t .'L•.•.••."n~ões entre a política criminal e a dogmática penal: aquela passou de

J \ ciência auxiliar a ciência fundamental e primeira, enquanto a dogmáticav penal passou a ciência "subordinada" à política criminal, na medida em

L-'C~ {(},•.f'<lOUI!.. que passou a caber a política criminal não só a fixação dos objectivos aserem realizados através da dogmática penal, mas também os princípiosnormativos fundamentais, ético-individuais e ético-sociais, que devemorientar a construção dogmàtico-sistemàtica do direito penal e a inter-pretação e a aplicação deste aos casos concretos a decidir.

li. Política criminal, direito penal e criminologia

§ 4. A polltica criminal pode definir-se como o conjunto dosprincípios ético-individuais e ético-sociais que devem promover, orien-tar e controlar a luta contra a criminalidade. O objectivo ou função dapolítica criminal é a prevenção do crime e a confiança da comunidade

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14 Po/'te I - Questões Fundamentais Tttulo { - O problema criminal-penal 15

§ 5. O direito penal em sentido estrito ou dogmátlca jurídico--penal pode definir-se como a teorização das diferentes categorias ou ele-mentos constitutivos da infracção criminal, e das diferentes espécies deconsequências jurídicas do crime.

Esta teorização, que se traduz numa desconstrução-construção ana-Iitico-conceitual e sistemática do comportamento criminal, deve ser'orientada e dinamizada pelos princípios da política criminal e apoiada nosresultados ernpiricos da investigação criminológica. Daqui resulta acorrecção da actual consideração do direito penal ou dogmática penalcomo "sistema penal aberto".

É, portanto, de recusar, quer a dicotomia normativista, 'que auto-nomiza, de forma radical e antagónica, o "ser" e o "dever ser", isto é,os planos do histórico real concreto e dos valores transcendentes e imu-táveis (Kant, Binding), quer o .positivismo sociológico-jurídico, quetransforma o direito penal num mero instrumento de controlo e degarante da funcionalidade do sistema social (Jakobs).

§ 6. A criminologia é o ramo da ciência criminal que, baseadona observação 'e experimentação, estabelece a relação entre determi-nados factores (bio-psicológicos e sociais) e as diferentes espéciesde delinquência.

Assim, e a título de exemplo, será objecto da criminologia a inves-tigação das conexões entre o desemprego, a perda da auto-estima, amarginalização, a toxicodependência e a crirninalidade patrimonial,nomeadamente, o furto e o roubo. Da mesma forma, caberá à investi-gação criminológica a influência criminógena das políticas urbanísticasque remetam determinados grupos étnico-culturais para os subúrbiosdas grandes cidades - guettzação.

São dois os ramos da criminologia: a biologia criminal e a socio-logia criminal. A primeira, a biologia criminal, contra-se, fundamen-talmente, nos factores bio-psicológicos favoráveis à delinquência; asociologia criminal tem por objecto primordial a investigação dos fac-tores sociais (económicas, culturais, religiosos, ete.) geradores de com-portamentos desviantes.

Nesta introdução à visão global do direito penal, é de assinalar aimportância da 'chamada 'crimínologia nova ou criminologia crítica,que, surgida na década 60-70 do séc. XX, veio reagir contra o tradicionalestatuto de subordinação total da criminologia ao direito penal, afir-mando a sua autonomia na determinação do seu próprio objecto, e rei-vindicando uma função crítica da própria organização e funcionamentodas chamadas "instâncias formais de controlo do crime" (legislador,magistraturas, administração prisional).

social na ordem jurídico-penal, isto é, na afirmação e vigência efectivados valores sociais, indispensáveis à livre realização da pessoa de cadaum dos indivíduos integrantes da sociedade.

Esta prevenção do crime, esta luta contra a delinquência, não podefazer-se a todo custo; ela tem, sim, de realizar-se no respeito dos pró-prios valores e princípios que visa defender.

São, portanto, duas as coordenadas da política criminal: eficácia,quanto aos fins; Iegitlmídade (ético-Jurídica), quanto aos meios.

Assim, entre os princípios da política criminal de um Estado deDireito Democrático e Social, podem referir-se: o princípio da legali-dade, qual garantia contra a arbitrariedade judicial e administrativa; oprincípio da culpa, com a consequente recusa de qualquer forma de res-ponsabilidade penal objectiva; ° princípio da humanidade na definiçãolegal 'das penas (donde, a proibição da pena de morte e das penas degra-dantes da dignidade humana da pessoa do recluso) e na sua execução(donde, a recusa da prisão perpétua e das consequênciasjuridicas deduração indetenninada); o princípio da recuperação social do recluso,o que obriga à criação de estabelecimentos "penitenciários" adequados,e à modelação da execução da pena de prisão em condições que possi-bilitem tal recuperação.

§ 7. Uma vez que a política criminal e, portanto, o direito penalnão pode ser um instrumento ao serviço de um qualquer sistema social,então é indispensável o conhecimento 'da realidade individual e socialem que a justiça penal intervém. Por outra palavras: uma política cri-minal, para ser justa e eficaz, não pode esquecer as informações dadaspela criminologia, Eis a importância da críminologia para o direltopenal. O próprio princípio da culpa material jurídico-penal (i. é, ojuizo de culpa que não se reduza a lU11amera fórmula abstracta de res-ponsabilização penal) não pode deixar de ter em conta as condições emque se realizou a socialização primária (a fase infantil, que é aquelaem que se estrutura a personalidade) e, portanto, não pode desatender,

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l6 Parta I - Questões Fundamentais

no juizo da "culpa da personalidade", as condições familiares e sociaisanómicas, isto é, a inexistência das mais elementares regras axiológicasde relacionamento com o outro. Esquecer este condicionalismo é trans-formar a "culpa da personalidade" também num mero juízo formal,numa quase ficção, o que levaria a lançar contra esta "culpa da perso-nalidade" a mesma crítica que, maioritária e justificadarnente, se lançoucontra a tese da "culpa da vontade", alicerçada no indemonstrável livre-arbítrio. .

A sociedade e o estado já sabem, ou deveriam saber, que não ésomente com o aumento das polícias 'e com o agravamento das penas quea criminalidade diminuirá; mas é indispensável uma atenção às políticassociais da família, da infância, da escola, da juventude e do trabalho.Com efeito, ao lado de uma ética da responsabilidade individual, hátambém uma ética da corresponsabilidade social.

O direito penal não pode deixar de ser assumido como a ultimaratio da política social. Não pode o Poder (estadual ou internacional)recorrer ao direito penal como meio de "resolver" problemas que sópoderão ser solucionados, ou minirnizados, por políticas sociais.' E,nestes tempos de "globalização", serão vãs todas as tentativas de redu-zir a criminalidade nacional e transnacional, se o actual processo deglobalização seguir o rumo de um neoliberalisrno à escala mundial,absolutizando a economia de mercado, e subordinando à lógica desta associedades nacionais e internacionais. A economia de mercado tem deser assumida, na prática política, como meramente instrumental em rela-ção fi sociedade das pessoas.

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2. o CAPÍTULO

EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO PENAL

I. A importância da história do direito penal

§ 8. A análise de evolução das instituições jurídico-penais, aolongo das diversas etapas da história dos povos com característicassociais e culturais próximas, tem uma dupla importância: político-sociale jurídico-criminal,

Importância políticu-sccla], na medida em que, sendo o direitopenal um dos barómetros por excelência do modo de relacionamento entreo poder político e as pessoas e os grupos sociais a ele sujeitos, bem comoo melhor indicador dos valores dominantes em cada época, a história daevolução do direito penal é essencial para a caracterização política e socialda respectiva época histórica. É 'na configuração do direito penal de cadaépoca que podemos descobrir quais os 'seus valores estruturantes, qual asua estratificação social, como se exerce o poder político, etc.

E, obviamente, que também é inegável a sua importância jurí-dico-criminal. Pois a história da evolução do direito penal patenteia-nos a historicidade e a relatividade do próprio. direito penal. Revela-nosa historicidade do direito penal, quando nos comprova que O direito penalé a expressão das condições económicas; sociais, culturais, religiosas e poli-ticas, que caracterizam cada época. Mostra-nos a relatividade do direitopenal, ao nos patentear as alterações profundas que as instituições jurídico--penais sofrem com o decurso da evolução sócio-cultural dos povos.

§ 9. Está implícito, no que acabámos de escrever, que a história dodireito penal só terá utilidade e só não se transformará num trabalhoárido, estéril e fastidioso, se a procurarmos Inserir no contexto sócio-cul-tural da respectiva época. Acentuando esta necessidade da inserção

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18 Parte I - Questões F u/ldamenrais

sócio-cultural da história do direito - inserção que, como pareceevidente, tem uma importância acrescida, quando está em causa o direitopenal -, razão tinha alto Brunner, ao considerar a tendência para iso-lar a história do direito da história social geral como um grave vício meto-dológieo e como um dos principais factores do descrédito dos estudoshistórico-jurídicos. E Heinz Zipf, referindo-se à política criminal, escre-veu que esta «está sempre enquadrada num determinado marco culturale social e situa-se numa tradição à qual pode sentir-se mais ou menosvinculada, mas nunca a podendo negar como factor socialmente relevante.O homem insere-se na historicidade na qual se tem de realizar, prosse-guindo a criação em cada caso, e da qual não pode desprender-se».E, sem querer maçar o leitor, não resisto fi transcrever uma passagem davigorosa "História de Cristo" do maravilhoso escritor Giovanni Papini:«Os homens mal domados, mal jungidos à Lei, como se vêem no Maha-barata e na Iliada, no Poema de Izdubar e nos Livros das Guerras deJehovâ, teriam sido, sem o terror dos castigos dos Deuses, ainda maisferozes e desencadeados. Nesses tempos em que por um olho se pediaa cabeça, por um dedo um braço e por uma vida cento e vinte, a Lei deTalião, que pedia apenas olho por olho e vida por vida, era uma assi-nalada vitória de generosidade e da justiça, embora, hoje, depois deJesus, nos pareça pavorosa» (I).

H. O direito penal na alta Idade Média ou Reconquista Cristã(sécs, VIII-XII)

,§ la. Duas palavras devem ser ditas: uma sobre a divisão da IdadeMédia em alta Idade Média e baixa Idade Média; a segunda sobre aassociação entre alta Idade Média e Reconquista Cristã.

A distinção entre alta Idade Média e baixa Idade Média fun-damenta-se num conjunto de fenómenos sociais que; ocorridos a partir

(I) Sobre a historicidade do Direito Penal, 'ler AMÉRICa TAIPA os CARVALHO,

"Condicional idade Sócio-Cultural do Direito Penal», Boletim da Faculdade de Direitode Coilllbra - Estudos em Homenagem aos Profs. Manuel Paulo Merêa e GuilhermeBraga da Cruz, 1983,

Tttulo [ - O problema criminal-penal 19

da segunda metade do séc. XI, e dada a sua interacção, vieram dar aosúltimos séculos da Idade Média uma configuração especifica e muito dife-rente da que caracterizou os primeiros seis séculos da Idade Média,A seu tempo, veremos quais foram esses factores (cf. § 20 8S.).

§ 11. Quanto à associação entre a alta Idade Média e a Recon-quista Cristã, é evidente que não esquecemos que a Idade Média e,portanto, a alta Idade Média, enquanto primeira fase da Idade Média,começa com a queda do Império Romano do Ocidente, no ano 476.Simplesmente, entendemos prescindir do período da dominação visigó-tica na península ibérica, e começar a análise da alta Idade Média noperíodo da Reconquista Cristã, ou seja no início do séc, VIII, momentoa partir do qual se gerou e consolidou a nacionalidade portuguesa.

§ 12, O período situado entre o séc, VIII e o séc. XII caracterizou-sepor uma profunda instabilidade social e polftica. Pisando solo ibérico,em 711, os maometanos, num curto espaço de tempo, dominaram toda apeninsula, excepção feita ao reduto montanhoso das Astúrias, Iniciada,aqui, 'a plurissecular reacção contra a dominação sarracena, eis que segerou toda uma nova situação económica, social, política e jurídica,

A prioridade conferida à defesa militar das terras e populações járecuperadas aos árabes e à reconquista de novos territórios provocou umclima geral de insegurança na vida comunitária dos povos peninsulares.

O edifício político-jurídico que os monarcas visigóticos, inspira-dos na Roma Imperial, que tinha acabado de sucumbir, procuraramlevantar, em colaboração com os Concílios de Toledo, desmoronou-se porcompleto. À fraqueza do poder central segue-se a pulverização das ins-tituições sociais, políticas e jurídicas.

Em consequência, as populações sentem-se entregues a si mesmase só com as suas próprias forças poderão contar para se opor aos seusinimigos externos e internos.

§ 13. Esta insegurança e isolamento, consequência da inexístênciade uma autoridade pública forte e organizada e da perda do sentimentocomunitário nacional, teve, por uma dinâmica de compensação, o efeitopsicológico de fomentar uma intensa solidariedade entre os membros dasmicro-sociedades. Estava criado o ambiente psicossocíológico para que

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20 Parte i - Questões Fundamentais

duas instituições assumissem um papel vital nesta sociedade politica-mente desestruturada, papel que o direito haveria de reconhecer. Primeiro,a família; posteriormente, o município.

A solidariedade, o «um POl- todos e todos por um», naturalmente quesó se pode manter e frutificar na base do sentimento e dever de fideli-dade, lealdade e confiança entre os membros do respectivo grupo social.E, assim, efectivamente, aconteceu: o valor da fidelidade, interiorizadona sua indispensabilidade, é assumido como vital pelos referidos gruposSOCIais. .-:

§ 14. Esta consciência, individual e social, da essencialidade, paraa sobrevivência pessoal e comunitária, dos valores da solidariedade e dalealdade teve a sua projecção no direito penal da alta Idade Média.

No tocante à solidariedade familiar, a ofensa cometida sobre ummembro da comunidade doméstica era considerada como agravo a todaa família. Assim, a obrigação de reparar as ofensas sofridas recaíanão apenas sobre o directamente ofendido mas também sobre toda acolectividade familiar - eis a solidariedade penal activa .. Segundo asfontes jurídicas da época (os chamados «foros e costumes», «estatutosmunicipais» ou «fueros extensos», de origem predominantemente con-suetudinária), o ofendido e a sua família tinha o "direito de vingança"e os efeitos de exercício desta vindicta recaíam não só sobre o agres-SOl' como também sobre os seus familiares - eis a solidariedade penalpassiva.

A partir do séc. XI, vão os municípios desempenhar um papel vitalna defesa e promoção das respectivas populações. A grandeza do con-celho radicava na coesão dos seus habitantes, sendo esta coesão dina-mizada pela solidariedade municipal. De forma algo semelhante ao quese passou, e passava, com a solidariedade familiar, também, no cenáriojurídico municipal, se pode detectar, ao lado de uma solidariedade activa,uma solidariedade passiva. Assim, quanto à primeira, várias fontes daépoca '(p_ ex., foros e costumes da Guarda) consagravam o dever deauxílio mútuo dos convizinhos e referem a proibição de advogar causasde estranhos (ao município) contra os conterrâneos. Mas havia, também,uma certa responsabilidade colectiva, embora subsidiária, dos conce-lhos pelos delitos praticados por um dos seus membros, os "vicini"(cf. foros de Bragança, Trancoso, etc.).

Tltuio I - O problema criminal-penal 2J

§ 15. Sendo esta uma época de isolamento, de ausência de umpoder político forte e protector, de tumultos e guerras contra o inimigomouro e dos povos peninsulares entre si (Portugal, Leão, Castela, etc.),a paz entre os membros da mesma comunidade foi tida como o bem maispreciso e a melhor garantia da subsistência individual e colectiva. Massente e tem consciência de que a paz só se pode alcançar através da soli-dariedade entre os seus membros e que esta solidariedade, por sua vez,só pode converter-se em realidade viva na medida em que for dinami-zada pela lealdade e fidelídade mútuas. Efectivamente, solidariedade,fidelidade e.paz são assumidas pela consciência ético-jurídica de entãocomo valores fundamentais. Não admira que assim tenha sido, pois quea importância de determinados valores só se reconhece quando, preci-samente, tais valores se encontram em crise - tal como só nos aper-cebemos do bem saúde, quando estamos doentes. E, porque assim era,também natural foí que, numa perspectiva retribucionista, a pena apli-cável aos víoladores da fidelidade e da paz tenha consistido, exacta-mente, na perda da paz jurídica.

O mais grave de todos os delitos era a traição. Consistia estecrime dos crimes na violação de uma especial relação de fidelidade,existente entre o criminoso e a vitima, mediante a prática do homi-cidio, Traidor era, pois, um homicida qualificado pela ruptura dovínculo especial de fidelidade e lealdade que ligava o infractor àvítima.

Esta relação pessoal de fidelidade e solidariedade tinha por fonteso parentesco próximo ("comunidade de sangue"), a interdependênciaeconómica ("comunidade de vida" entre o senhor ou amo e o que lheprestava serviços domésticos ou agrícolas), as relações de confiançageradas, espontaneamente, entre determinadas pessoas (o "companheirode viagem", o convidado para um "colóquio a sós") ou, ainda, relaçõesde lealdade impostas pela ordem jurídica, em função da defesa e pro-moção de interesses económicas muito relevantes para a época (a "pazdo mercado").

Naturalmente que a pena aplicada ao traidor era a mais grave detodas: a perda absoluta da paz. Esta sanção tinha as seguintes con-sequências: o traidor ficava destituído da sua personalidade jurídica e,assim, qualquer membro da comunidade (concelho ou reino, consoantese tratasse de traição municipal ou de traição régia) O podia, impune-

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22 Parte [ - Questões Fundamentais

mente, matar; a sua casa era "derribada" (a casa, nesse período de inse-gurança generalizada, representava .o melhor refúgio de protecção); etodos os seus bens eram confiscados.

§ 16. Numa escala de gravidade decrescente, seguiam-se comocrimes muito graves e bornicldio simples, o rapto e a violação de mulhe-res. A pena aplicada a estes crimes era chamada inimicitia (o condenadoera declarado "inimigo") ou perda relativa da paz. Pena que tinha asseguintes consequências: o criminoso tinha de pagar uma determinadasoma pecuniária, denominada coima, calúnia ou multa (sendo uma partepara a vítima ou sua família e a outra para o erário público); tinha desair do concelho dentro de um prazo fixado; não saindo, podia ser mortopelo ofendido ou seus familiares.

§ 17. Para crimes menos graves, havia a pena chamada composí-çã? pecuniária, que se traduzia no pagamento de 'uma certa importân-ci~ ao ofendido,

Esta pena, com o decurso dos anos, começou também a ser utilizadacomo pena substitutiva da perda relativa da paz, no intuito de se evita-rem as sangrentas lutas entre as famílias do criminoso e da vítima, emque, muitas vezes, redundava a execução da perda relativa da paz.

§ 18. A titulo de curiosidade, interessa referir a pena da com-posição corporal ou "entrar às varas". Esta pena, descoberta pelohistoriador Paulo Merêa em alguns foros da região 'de Bragança, eraaplicada a crimes de ofensas corporais e tinha a curiosidade de consistirem provocar no agressor um ferimento ou golpe igual ao que ele tinhacausado na vítima. Daí a designação de "entrar às varas",.o que querdizer utilizar uma vara para medir a extensão do golpe causado, poisquy a sua punição era provocar-lhe um golpe igual (retribucionisrnotaliónico puro).

§ 19. A conclusão geral é a de que o direito penal da alta IdadeMédia é um direito penal de justiça privada. O crime era consideradocomo ofensa individual (excepção feita ao delito de traição), cabendo aosparticulares a efectivação da justiça penal, que assumia formas bárbarase cruéis,

Tltulo 1 - O problema criminal-penal 23

Mas, como salienta Alexandre Herculano e), era «impossível quenão sucedesse assim; que os hábitos selvagens e ferozes, adquiridos 110 meiode tão precária existência, e que a falta de auctoridade nos chefes (até por-que faltavam instituições civis) não fizessem com que em todas as pha-ses da vida se manifestassem as consequencias de semelhante situação».

Por outro lado, a relevância ético-jurídica concedida aos valoresda paz, da solidariedade e da fidelidade não significa senão a cons-ciência da sua imprescindibilidade face a um período histórico marcadopor uma profunda insegurança individual e colectiva.

Ill, O direito penal na baixa Idade Média (sécs, Xl1I-XV) e na IdadeModerna (sécs. XV-XVllI)

§ 20. A associação destes dois periodos históricos, vulgarmente tidospor muito diferentes e, por isso, autonomizados, carece de uma justifi-cação.

Para nós, são maiores as diferenças existentes entre a sociedadealtornedieval e a baixomedieval (e respectivos direitos penais) do que asexistentes' entre esta e a Idade Moderna. Efectivamente, se a história emgeral, tal como a natureza, não apresenta soluções de continuidade na suaevolução - natura non fit saltus, diziam os. latinos -, parece nãohaver dúvidas de que o período que vai do séc. XV ao séc. XVIII nãosó não apresenta qualquer ruptura face ao período da baixa Idade Médiacomo, até, pode ser visto, em muitos aspectos, como prolongamentonatural do processo histórico iniciado nos sécs. XII-XIII.

As características económicas, sociais, culturais, políticas e jurídi-cas da chamada Idade Moderna - ou, numa perspectiva mais político--jurídica, do período das Monarquias-Absolutas - começam a esboçar-see a desenvolver-se, quer a nível europeu em geral quer no palco penin-.sular em especial, a partir da baixa Idade Média, acabando por se revi-gorar e consolidar na Idade Moderna.

Reportando-nos ao direito penal, pode afirmar-se que a fisionomiade que se revestiu; no absolutismo monárquico, não foi mais do que

(2) Histõria de Portugal, 8,' ed., vm, pp. 183-184,

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24 Farte I - Questões Fundamentais

uma evolução na continuidade dos princípios e características funda-mentais do direito penal, afirmados a partir dos sécs, XII-XIII.

§ 21. Ultrapassada a fase de natural desagregação em que a EuropaOcidental mergulhou, na sequência do declínio e queda do ImpérioRomano do Ocidente, eis que, a partir dos sécs. XI-XII, uma interacçãode múltiplos factores vai gerar uma nova Europa que, alicerçada na tra-dição cultural greco-latina, reencontra, na sua caminhada histórica, novosfactores de progresso. A partir dos fins do séc. XI, processa-se uma pro-funda transformação na vida económico-social. Entre assuas princi-pais causas há que mencionar: o incremento do comércio e do artesanatoque, através da nova e dinâmica classe social dos mercadores (burgue-ses) e das corporações de artes e oficios (artesãos), muito contribuiupara a formação dos centros urbanos (as, agora, partes históricas dasactuais cidades) e para o fortalecimento do municipalismo medieval; oaumento demo gráfico e a emigração do campo para a cidade; as cruza-das que, apesar da sua motivação religiosa de libertar os Lugares San-tos, possibilitaram a descoberta de novas rotas e entrepostos comerciaismediterrânicos, para além de promoverem o intercâmbio e a aproxima-ção de diferentes povos cujas nacionalidades estavam em formação.

Paralelamente a estas transformações económico-sociais e, em certamedida, com elas relacionada, inicia-se, em Bolonha, a redescoberta dodireito romano-justinianeu, que, reorientado, mais tarde (séc. XIV), porBártolo e sua escola dos comentadores, irá ter influência decisiva na for-mação dos novos Estados europeus e na criação da unidade cultural euro-peia. É de todos conhecida a relevância do intercâmbio cultural que, desdeos sécs. XlI--XII1, se estabeleceu entre os estudiosos de vários países daEuropa, em tomo das ciências do direito romano e do direito canónico.

No plano cultural, não pode esquecer-se ou menosprezar-se a trans-cendente importância do reencontro com a filosofia e o pensamento helé-nícos, tarefa a que a Igreja Católica prestou um contributd fundamental.

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§ 22. No campo estritamente político-jurídico, o poder central vai-se,progressiva e firmemente, consolidando, acabando os monarcas por rei-vindicar para si os mesmos poderes que os imperadores romanos de ti-nham. À auctoritas universalis do império sucede a efectiva potestas dorei.' Este, à imitação do imperador romano cujo direito passa, agora, a ser

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Tltulo I - O problema criminoí-penol 2S

estudado e a inspirar as leis nacionais, vai chamar a si a primordial tarefade legislar para todo o território nacional, reduzindo, simultânea e con-sequentemente, O papel dos direitos consuetudinário e municipal.

Este fenômeno de centralização e fortalecimento do poder poli-tíco, inspirado no lema «unum imperiurn unum ius», toma-se patente, naPenínsula, a partir do seco XIII. Basta pensar, quanto a Portugal, na acti-vidade legislativa de D. Afonso 11 (Cortes de Coimbra, 1211), actividadeque e incrementada nos reinados seguintes. Relativamente a Castela, aextensa obra legislativa (Flores das Leis, Foro Real e, sobretudo, asSete Partidas) do rei sábio Afonso X, se, a um tempo, revela um nota-velmente profundo conhecimento do direito romano justinianeu e umatécnica jurídica admirável para um autor do séc, XIII, reflecte, tambéme de forma inequívoca, a preocupação centralizadora da época.

§ 23. O direito penal, como tónica sensível das transformaçõessociais, culturais e políticas, não podia deixar de reflectir os efeitos dastransformações operadas a partir dos sécs. XII-XIII.

De facto, o processo de centralização política, que se virá a conso-lidar na Idade Moderna, determinou, naturalmente, urna progressiva publí-

. cização dos ius puniendi: A baixa Idade Média constitui como que a char-neira entre um direito penal de justiça privativa (alta Idade Média) e umdireito penal público (Idade Moderna). Na verdade, o direito penal,vigente no período que vai do seco XIlI ao séc, XV, revela-se como umsistema misto: ao lado de um direito penal público que, sob a influênciado direito romano e do direito canónico, atribui à autoridade real o iuspuniendi, passa a considerar o crime como ofensa a toda a comum-da de nacional, começa a recorrer, com frequência, à pena de morte e evo-lui para a consagração do processo ínquísitórío, dizíamos que, lado alado com este direito penal oficial, sobrevive, ainda e até cerca do séc. XV,o tradicional direito de auto tutela, de cariz e influência gennânica. Com-preende-se que assim tenha sido. Não seria da noite para o dia que aspopulações iriam abandonar hábitos enraizados ao longo de vários sécu-los. E assim, é que os reis, apesar de se considerarem absolutos, tiveramde condescender com certas práticas de justiça privada.

§ 24. A nova teorização política (iniciada pelos "glosadores" dossécs. XI-XII1, desenvolvida pelos "comentadores" no séc. XIV, e siste-

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26 Parte I - Questões Fundamentais

matizada pelos "tratadistas" ou "praxistas" dos sécs. XV-XV1), conver-tendo o rei em senhor absoluto, detentor directo de um poder divino e, por-tanto, responsável somente perante Deus, titular exclusivo do poder legi-ferante (cquod principi placuit legis habet vigorern»), colocado acima dassuas próprias leis (cprinceps a legibus solutus»), administrador e juiz únicoe supremo, dizíamos, esta nova visão política, ao mesmo tempo que ferede morte as instituições político-sociais intermédias (municipais, senho-riais, corporativas), retira à solidariedade e à lealdade o conteúdo e a seivapsicossociológica e ético-pessoal que elas possuíam na alta ldade Média.

A concepção altomedieval da fidelidade ou lealdade, entra emcrise. Pois que, ao passaro monarca a considerar-se como senhor abso-luto e a deter um efectivo poder absoluto sobre o seu reino e os .seus súb-ditos, estes já não careciam, para a sua segurança frente aos Inimigosexternos e internos, de fazer apelo à lealdade reciproca dos membros domesmo grupo a que pertenciam. Agora, essa segurança devem elesprocurá-la no poder soberano absoluto do rei. Deixa, pois, a relação entreo monarca e os governados de ser uma relação de coordenação, de reei-procidade, mas de subordinação e de sujeição.

Assim, a noção e O sentimento de fidelidade pessoal são substituí-dos pelo conceito e pelo dever jurídico de sujeição ao rei.

Posto em causa o valor da lealdade nas suas características de espon-taneidade e 'pessoalidade do vínculo e de reciprocidade dos deveres, emcausa ficou ° crime de traição que na infracção daquele valor pessoaltinha a sua nota essencial. Esta crise do conceito altomediaval de traiçãoconsuma-se, nos sécs, XIV-XV, por influência da literatura jurídica italianabaixomedieval, acabando o crime de traição por se identificar com o «cri-

, meu Iesae maiestatis: do direito imperial romano.Traição passa a reduzir-se à traição régia e esta a ser sinónima de

crime de lesa-majestade. De ora em diante e até finais do séc. XVIll,o delito de traição converter-se-à num meio de protecção do poder polí-tico personificado no rei e na sua majestade. A figura da traição for-maliza-se e empobrece (J).

(3) Sobre a caracterização da Alta Idade Média e da Baixa Idade Média, e do res-pectivo Direito Penal, ver AMÉRICa TAIPA DE CARVALHO, «Condicionalidade Sócio-Cul-tural do Direito Penal» (cit. na nota I).

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Titula ( - O problema criminaí-penal 27

§ 25. O direito penal do período em análise caracteriza-se pela suadesumanidade, crueldade, desigualdade social, arbitrariedade e, conse-quentemente, pela sua natureza exacerbadamente repressiva e intimidativa.

A pena deixa de ter como objectivo principal o restabelecimento 'da ordem social e jurídica perturbada pelo delito, mediante a aplicação,ao infractor, de um castigo (mal) equivalente ao mal (dano) que ele cau-sou - retribucionismo objectivo; e passa a ter uma finalidade de inti-midação, muitas vezes de verdadeiro terror - prevenção geral de inti-midação. ' , ,

O terror intimidatório era potenciado, para além da gravidade dapena, pela barbaridade do modo de execução desta e pela publicidade dolocal onde as mais graves penas eram aplicadas (junto ao pelourinho, nocentro das vilas ou cidades) ou da condenação (marcas de ferro quentena testa ou no rosto).

§ 26. Havia as seguintes espécies de penas: penas capitais (mortesimples e morte cruel, i. é, precedida de tormentos); penas corporais(flagelação, mutilação, castração, etc.); penas contra a liberdade (degredo,desterro, servidão, galés); e penas pecuniárias (confisco e multa). No casodos mais graves crimes (de "lesa majestade divina", p. ex., sacrilégio,blasfémia, heresia; e de "lesa majestade humana", i. é, crimes contra orei, a corte ou o reino), havia, ainda, a pena da infâmia do condenado,a qual se transmitia aos seus descendentes, implicando, para estes, urnasérie de incapacidades sociais, profissionais e jurídicas (p. ex., incapa-cidade de herdar).

§ 27. A partir da baixa Idade Média, O rei, detentor da plenitudedo poder soberano, chama a si o direito de perdoar. Se só o rei podiafazer as leis e se só ele estava acima .das suas leis, então também só aele pertencia o direito de agraciar. E podia exercê-lo quando, como ea' quem quisesse. Era a arbitrariedade e a voluntariedade real que carac-terizavam o direito de conceder perdão (4).

C<) Sobre a história do direito de clemência, ver AMÉRICa T ArPA DE CARVALHO,«História do Direito de Clemência», in Estudos dedicados ao Prof Doutor Mário Júliode Almeida Costa, Universidade Católica Portuguesa, 2002, pp. 111-146.

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28 Parte I .-. Questões Fundamentais

Seguindo uma tradição, que remontava ao direito imperial romano,as medidas de clemência podiam consistir na amnistia (por motivos reli-giosos ou políticos), no indulto e na comutação (usada, muitas vezes, comobjectivos económicas - p. ex., substituição de penas corporais oumesmo de morte pelas penas de permanência nas colónias ultramarinasou das galés).

IV. O direito penal na Idade Contemporânea (2.' metade doséc. XVIll - séc. XX) e o Estado de Direito

§ 28. Somos chegados ao período histórico, correntemente desig-nado por Idade Contemporânea. E, porventura, ainda correctamentedenominado, apesar do propalado pós-modernismo como caracterizàdore diferenciado!' dos tempos actuais face aos tempos anteriores, que vãodos fins do séc, XVIII até mais ou menos à década de 80 do séc. XX.A verdade, porem, é que ainda parece ninguém saber quais as matrizesculturais. consistentemente estruturantes deste dito pós-modernismo. Seráa ausência ou o amolecimento das ideologias no sentido filosófico' e nosentido político-social? Será o pragmatismo imediatista? Será a renún-cia agnóstica aos ideais? Será a globalização do homo oeconomicusanestesiante do homo sapiens? Será a absolutização do "corno", des-prezando-se o porquê e o para quê? - Supomos e esperamos que nãoseja nada disto. É que, se foi criado o "forum económico mundial deDavos", logo surgiu o "forum social mundial de POlia Alegre" - aoredutor pragmatismo econornicista há-de contrapor-se uma nova ideologiacom renovados valores e ideais.

Feito este parêntese sobre a eventual gênese actual de um hipoté-tico novo ciclo da evolução histórica da humanidade, digamos que, ape-sar dos sinais de crise, os tempos actuais ainda se podem considerarabrangidos pela ainda chamada Idade Contemporânea. Com efeito, aestrutura social, cultural e política do tempo, em que nos é dado viver,ainda é a que foi gerada pela pluralidade e antagonismo das ideias e dasteorias que irromperarn entre os sécs. XVIII e XX, a que nos referire-mos. No campo politico e jurídico, a consagração do Estado de Direito,a partir da 2.' metade do séc, XVIII, foi a matriz essencial da IdadeContemporânea, ao estabelecer um corte radical com a teoria e a prática

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Titulo I - O problema crirninal-penal 29

política e jurídica do absolutismo monárquico da chamada Idade Moderna(sécs. XV-XVIII).

1. A ideologia da ilustração e O direito penal - o IlumínísmoCriminal

§ 29. O séc. XVIIl assinala uma profunda viragem na história dopensamento, da cultura, da sociedade em geral. Viragem que não deveser olhada como algo que abruptamente tivesse irrompido no espírito "ilu-minado" dos pensadores deste "século das luzes". Pois que os factores,que estiveram na origem deste novo ambiente cultural, político e jurídicode setecentos, já se vinham desenvolvendo de há muito, nomeadamentea partir dos sécs, XV-XVI. Entre eles, devemos destacar os Descobri-mentos, o Renascimento, a Reforma Protestante, a Revolução Cientí-fica e a Filosofia Racionalista.

É, todavia, no séc. XV1iI, que ganha forma e se sistematiza todo umconjunto de princípios que vão consagrar, no campo social, uma novafilosofia política, que se caracteriza pela substituição do teocentrismo peloantropocentrismo e pela .substituição do Estado Absoluto inonárquicopelo Estado de Direito.

§ 30. O novo ideário filosófico-político-juridico caracteriza-se peloindividualismo, pelo jusnaturalismo e pelo racionalismo,

Individualismo, ao afirmar-se o princípio da prioridade do indivíduoface ao Estado; aquele, o indivíduo passa de "sujeito" a cidadão, i. é, doestatuto de submissão ao Estado para o estatuto de autonomia individual.

Jusnaturalísmo, com a proclamação de um leque de direitos que,por natureza, pertencem a todo o indivíduo e que ao Estado apenascabe o dever de os reconhecer, legal' e praticamente.

Racíonalísmo, pois se passa a considerar a razão humana comofonte e critério da verdade e da justiça. À heteronornia e transcendên-cia da fundamentação na lei divina passa-se para a autonomia e imanênciado critério da verdade teórica e prática na razão humana.

§ 31. Esta nova filosofia política não podia deixar de se repercu-tir profundamente no direito penal. Assim, critica-se, frontal e global-mente, o direito penal então ainda vigente. Concretamente, o alvo dos

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3Q Parte I - Ques/Ües Fundamentais

ataque; situou-se na arbitrariedade da justiça criminal, na instrurnenta-lização política do "ius puniendi", na ausência de quaisquer garantias dedefesa-do arguido, no casuísmo, classismo e crueldade das penas.

Propõe-se um novo direito penal, uma nova política criminal queassenta nos seguintes princípios: contratualismo, utilitarisrno,'secularizaçãoe legalisrno.

§ :32. Recusando a estratificação social do Ancien. Régime e ocarácter autónomo e absoluto do poder real, o pensamento iluminista pro-clama, na linha da teoria de Rousseau, a igualdade de todos os indiví-duos .e estabelece, como fundamento do direito de punir, o "contratosocial", mediante o qual os cidadãos, detentores originários. do poder,delegam no Estado - contratualísmo - o direito de definir os cri-mes e de determinar as penas correspondentes, direito este que deveser exercido e limitado pelo critério da necessidade ou utilidade social-- utílítarismo: pena justa é a pena útil, i. é, a pena que é necessáriapara prevenir a prática do crime.

§ 33. A defesa da liberdade e da igualdade de todos os Cidadãosexigiu que os crimes e as penas respectivas estivessem, prévia e clara-mente, descritos na lei e que o juiz estivesse sujeito e uma rígida inter-pretação literal - legalismo/gal'antismo.

§ 34. A afirmação da autonomia da razão humana e do poder poli-tico face à lei divina e ao poder religioso conduziu à exclusão dos cri-mes religiosos e à negação da influência do direito canónico na legislação .criminal - secularização.

§ 35. Como conclusão pode dizer-se que vários dos princípiosfundamentais do direito penal actual nasceram com o iluminismo criminal.Entre 'eles, destacam-se os principias da legalidade, da celeridade pro-cessual (em conexão' com o fim preventivo-geral da pena) e o princípioda humanidade das penas e da sua aplicação, que iria levar à substitui-ção das penas corporais pela pena de prisão.

§ 36. Cabe, agora, fazer referência a alguns dos mais destacadospenalistas do "Iluminismo Criminal".

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Ttudo I - o problema ailllillal-pe~,al 31

Cesare Beccaria é, justamente, considerado como um dos primeirose mais importantes dinamizadores e difusores do novo ideário político--criminal do Ilurninismo. O seu pequeno, mas histórico livro Dei Deliuie delle Pene (Sobre os Delitos e as Penas), de 1764, constitui um marcona evolução do direito penal, evolução que, no caso, assumiu o carác-ter de uma verdadeira revolução ou ruptura como o direito penal cruele repressivo no seu tempo ainda em vigor.

Os princípios fundamentais defendidos por Beccaria foram: a fun-damentação da pena na necessidade social de prevenir o crime; a pro-porcionalidade entre a gravidade da pena e a gravidade do crime; oprincípio da legalidade dos 'delitos e das penas; o humanitarismo das reac-ções ao crime, propondo a abolição, salvo casos excepcionais, da penade morte e a substituição das penas corporais pela pena de prisão; e oprincípio da celeridade processual, considerando que. a eficácia preven-tiva da pena depende mais da rapidez na sua aplicação do que da suaseveridade.

§ 37. Anselm von Feuerbach, considerado pai da moderna ciênciado direito penal alemã e tendo sido o principal autor do Código Penalda Baviera de 1813, criou a chamada teoria da coacção psicológicada pena. Esta teoria parte do princípio hedonlstico de que o sentido eo fun da acção humana é a busca de prazer e, em correlação negativa,

. a fuga ao sofrimento. O crime reconduzir-se-ia, pois, a urna acção que,desencadeada pelo infractor para a satisfação do seu "ego", vai, ilegiti-mamente, causar sofrimento a outra pessoa.

Sendo esta, segundo Feuerbach, a explicação "científica" do crime,não haveria outro processo coerente de o legislador evitar o delito senãoatravés da ameaça de aplicação de um sofrimento a quem praticasse aacção prevista na lei penal. -

Nesta dialéctica psicológica prazer/desprazer (prazer, ligado à pra-tica da infracção; desprazer, contido na pena), naturalmente que a san-ção penal, se quer ser eficaz, há-de implicar um "quantum" de sofrimentosuperior ao prazer que O indivíduo (potencial delinquente) retiraria da con-duta proibida. Eis a teoria da prevenção geral de intimidação através domecanismo da coacção psicológica (psychologísche Zwang).

O momento fundamental desta intimidação-coacção reside naameaça contida na lei penal. .Todavia, caso esta ameaça não se revele

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32Porre I - Que.rtOes Fundamentais

suficientemente dissuasora, então a execução efectiva da pena reforçaráo efeito inibitório da ameaça legal, acabando esta por se tomar eficazmesmo face aos m1USrenitentes (insensíveis).

'Para Feuerbach, o princípio da legalidade era o resultado lógicoda conjugação de uma dupla exigência: a necessidade da defesa do indi-víduo face ao poder punitivo do Estado (garantia política) e a exigênciade prevenção geral (garantia de eficácia). O efeito dissuasor da pena sóse lograria na medida em que os factos prejudiciais à sociedade (os cri-mes) e os sofrimentos que lhe forem associados (as penas) estiverem, pré-via e claramente, descritos e estabelecidos na lei: nullum crimen, nullapoena sine lege, na formulação latina criada pejo próprio Feuerbach.

§ 38. Em Portugal, um dos maiores arautos do Iluminismo Criminalfoi Pascoal José de Mello Freire. Este autor seguiu, directamente, opensamento do italiano Beccaria.

Entre a obra de Mello Freire, destaca-se a elaboração de um pro-jecto de Código de Direito Criminal (1789) e de umas lições de direitopenal, intituladas Institutiones Iuris Criminalis Lusitani.

§ 39. Os princípios garantísticos do Iluminismo Criminal tiveram asua consagração constitucional na primeira Constituição Portuguesade 1822. Assim, O art. 10,0 desta primeira lei fundamental portuguesadeclarava: «nenhuma lei, muito menos a penal, será estabelecida semabsoluta necessidade»; e o art. 11.° estabelecia que «toda a pena deve serproporcionada ao delito e nenhuma deve passar da pessoa do delinquente.Ficam abolidas a tortura, a confiscação dos bens, a infâmia, o baraço eo pregão, a marca de ferro quente e todas as penas cruéis e infamantes».

Quanto à lei ordinária, depois da elaboração de vários projectos deCódigo (que não chegaram a ser aprovados), entre os QU1USo já referidode Mello Freire e O de José da Veiga de 1837, foi, finalmente, publi-cado, em 1852, o primeiro Código Penal Português. Este Código, querevogou, definitivamente, o livro V da Ordenações Filipinas (chamado"liber terribilis") e que se inspirou nos Códigos Penais francês de 1810,brasileiro de 1831 e espanhol de 1848, deu corpo a várias das propostasdo Iluminismo Criminal. Assim, consagrou: o princípio da legalidade;imputou à pena uma finalidade preventivo geral de intínúdaçâo, emboraesta finalidade de intimidação fosse limitada pela proporcionaJidade entre

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Tltulo 1 - O problema cruninal-penal 33

a gravidade da pena e a gravidade do crime; proibiu a aplicação analó-gica e a interpretação extensiva no âmbito da incriminação.

2, A filosofia idealista e a Escola Clássica (I" metade doséc, XIX)

§ 40. Na L" metade do séc, XIX, afirma-se uma nova concepçãodo direito penal, concepção que vem 'contrapor à visão pragmática eutilitária dos autores do Iluminismo Criminal urna perspectiva filosó-fico-metafisica do direito penal. Esta concepção, de que apresentaremosos pontos principais, ficou conhecida por Escola Clássica e inspirou-sena filosofia idealista alemã, nomeadamente no pensamento de Kant,expresso na sua obra Metafisica dos Costumes ("Grundlegung zur Metap-hysik der Sitten", 1785), mas também no de Hegel, contido na obraFundamentos da Filosofia do Direito ("GlUnd1inien der Philosophie desRects", 1821).

Estes filósofos, com o seu racionalismo gnoseológico é com a suaantologia idealista, procuraram refundamentar, ético-filosoficamente, odireito penal.

§ 41. Os postulados do chamado humanismo idealista, propostopor estes autores, eram: a dignidade da pessoa humana deve sempre serconsiderada como um fim em si mesma, como um valor absoluto- «Age sempre de modo que a humanidade, tanto na tua pessoa comona do outro, seja sempre considerada como fim, numa como meio»(Kant); a característica essencial desta dignidade é o livre-arbítrio, i. é,a capacidade de urna decisão absolutamente livre e incondicionada; a estaliberdade ontológica e radical corresponde uma responsabilidade éticaindividual autónoma e absoluta; esta.liberdade deve ser exercida no res-peito da norma fundamental da acção humana, norma que está inscritana consciência moral de cada um e que é racionalmente apreendida- «O imperativo categórico é, portanto, um só, e, sem dúvida, este: agesempre segundo uma máxima tal que possas querer, ao mesmo tempo,que ela se tome uma lei universal» (Kant).

§ 42. Esta antropologia tão racionalista e idealista pouco tinha quever com a concepção utilitária e hedonística da ideologia da "Ilustração",

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34 Parte I - Queslões Fundamentais

Ao homem dos sentidos e dominado pela busca do prazer sensível de umBentliam ou de um Feuerbach contrapõe-se a visão sublime e exaltantedo homem kantiano, iluminado apenas pela razão e norteado pela trans-cendente realização da Justiça.

Estes pressupostos racionalistas e idealistas provocaram uma pro-funda alteração da concepção do direito penal, nomeadamente nos pro-blemas da legitimação do ius puniendi e da finalidade da pena.

A Escola Clássica enfrentou a eterna e sempre recorrente questãoda legitimidade da pena, num momento histórico caracterizado pelosexcessos de terror cometidos durante a Revolução Francesa.

Esta questão foi resolvida através do principiada retribuiçãoética: a pena justa é a pena retributiva, i. é, aquela que corresponde àgravidade do ilícito e da culpa do infractor. Esta retribuição 'ética,imputada à pena, é uma exigência ontológica para o mau exercício dolivre-arbítrio, é um imperativo categórico da justiça. .

Para a Escola Clássica, a retribuição ético-jurídica é o único e abso-luto critério da aplicação e determinação da pena criminal. Para osautores desta Escola, o «se», Ó «quando» e o «como» da pena nãopodem ser influenciados por considerações heterónornas de utilidadesocial. Pois que tal dependência dos critérios pragmáticos 'da necessi-dade de defesa da sociedade conduziria à instrumentalízação politica dapessoa humana e à relativização do Direito. Instrumentalização e rela-tivização que, segundo os autores da Escola Clássica, é fomentada pelasteorias da: prevenção geral (pena como meio de intimidar a cornuni-dade) e da prevenção especial (pena como intimidação do delinquentepara que não reincida).

Assim, escreveu -Kant: «A pena judicial [... } não pode nunca seraplicada como meio para obter um outro bem, seja no interesse dodelinquente ou da sociedade civil, mas deve ser sempre e só aplicada aoréu porque ele delinquiu; com efeito, nunca o homem pode ser' tratadocomo simples meio para a realização das intenções de outro e ser incluídoentre os objectos do direito das coisas, do que o protege a suaperso-nalidade inata».

E Hegel, criticando os «superficiais pontos de vistal) das teoriasda «prevenção, intimidação, ameaça, correcção», afirma, contra a teoriada coacção psicológica de Feuerbach que (\0 Direito e a Justiça têmque ter o seu fundamento na liberdade e na vontade, e não na falta de

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Tttulo I - O problema criminal-penal 35

liberdade à qual se dirige a ameaça. Quando se fundamenta a penadesta maneira é como se ameaçássemos um cão com um pau, não sendoo homem tratado segundo a sua honra e liberdade, mas como um cão».E o mesmo, elevando o Direito a uma ordem absolutamente perfeita ecomo que transcendente, acrescenta: «o facto do delito não é um quidoriginário e positivo a que sobrevenha a pena como negação, mas é,sim, um quid negativo de modo que a pena é só a negação da negação»- teoria da retribuição jurídica da pena: a pena como reafirmaçãodo Direito.

§ 43. Como apreciação crítica da Escola Clássica, há que regis-tar o seu mérito, mas também o seu demérito,

O seu mérito esteve em ter elevado o principio da culpa indivi-dual a principio fundamental do direito. O seu demérito esteve em ter- a partir de um pretenso bumanismo que tem tanto de idealista comode irreal -:- absolutizado a liberdade (livre-arbítrio), a culpa, o direito,o crime e a pena, negando ou, pelo menos, menosprezando a historicí-dade e consequente relatividade de todas estas categorias. Não pode, comefeito e contra o que radicalmente proclamava a Escola Clássica, con-ceber-se a punição criminal, a pena, como um imperativo ético categó-rico, mas, pelo contrário, tem que ser, prática e humildemente, vistacomo uma necessidade pragmática de prevenção, geral e individual, daprática de futuros crimes. Utilizando as expressões latinas, não se pune'quia peccatum, mas, sim, ne peccetur; ou seja, a razão de ser da penanão olha ao passado, mas sim ao futuro: pune-se como prevenção denovos crimes, embora a punição pressuponha a culpa do que infringiu,e não possa ultrapassar o "grau" da .culpa do infractor.

3. A Escola Correcclonalista- e o humanitarismo penal (a par-tir de meados do séc, XIX)

§ 44. Inspirado no pensamento de Krause, Rõder veio defender,contra a Escola Clássica, uma concepção mais pragmática e realista dohomem e do direito penal.

Os princípios fundamentais do correccionalismo foram: ao lado deuma responsabilidade individual, há uma corresponsabilidade social;esta corresponsabilidadesocial vincula o estado a criar as condições para

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36 Parte J - Questões Fundamentais

o delinquente poder corrigir as suas tendências' para o crime e, assim,exercer a sua liberdade no respeito do direito; a pena é o meio para acorrecção do delinquente ~ fim de prevenção especial; enquanto nãoforem esgotadas todas as possibilidades de recuperação social, todo odelinquente deve ser considerado corriglvel.

. § 45.. O ideário correccionalista teve profunda influência na penín-sula ibérica e noutros países católicos (como, Bélgica e Polónia) .

. Levy Maria Jordão foi o grande divulgador, em Portugal, das ideiascorreccionalistas. Elaborou dois Projectos de C6digo·Penal (1861-64),que, assumiam os princípios correccionalistas, e que visavam a substituiçãodo Código Penal de 1852.

Apesar de não terem sido aprovados, as suas 'ideias tiveram grandeinfluência em várias e importantes leis penais, aprovadasna 2." metade'do séc. XIX, Foram elas: Lei de 1 de Julho de 1867, que aboliu apena de morte (para os crimes comuns, pois que, para os. crimes polí-ticos, já tinha sido abolida pelo acta adicional de 1852) e a pena de tra-balhos forçados, e que, no capitulo da execução da pena de prisão, aco-lheu O chamado "modelo penitenciário de Filadélfia"; e Lei de 6 deJulho de 1893, que criou os institutos da suspensão condicional da pena,e ·da liberdade condicional.

§ 46. Enquanto o Càdigo Penal de 1886 (que assumiu a ReformaPenal de 1884, e que substituiu o Código Penal de 1852) reflectiu uni.misto do retribucíonismo clássico e do humanitarismo correccionalista,já as reformas penitenciárias foram sempre no sentido de um aprofun-damento da execução da pena de prisão como meio de correcção do'delinquente.

Assim: a Lei de 29 de Janeiro de 1913 substituiu O "modelo peni-'tenciário de Filadélfia" (isolamento celular, nocturno e diurno) pelo"modelo penitenciário de Aubum", caracterizado pelo trabalho diurnoem comum; o Decreto 11. 026643, de 28 de Maio de 1936 (cujo pro-jecto foi da autoria de Beleza dos Santos), adoptou o chamado "modeloprogressivo ou irlandês", em que a execução da prisão ia desde umafase inicial de isolamento até à fase em que o preso podia conviver comos outros presos, e desempenhar cargos de confiança; finalmente, oDec-Lei n.o 265/79, de 1 de Agosto (cujo projecto foi da autoria de

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Tttulo I - O problema criminal-penal 37

Eduardo Correia), vai no sentido de que a execução da pena de prisãonão pode ignorar os direitos fundamentais do recluso, e deve ser orien-tada para a criação do sentido de responsabilidade do preso e para asua preparação para a vida em liberdade. Este Decreto-Lei tambémconsagrou a jurisdicionalização da execução das reacções criminaisprivativas da liberdade, através da criação dos Tribunais de Execuçãodas Penas (S).

4. O cientlsmo oitocentista e.a Escola Positiva (últimas déca-das do séc. XIX - primeiras décadas do séc. XX)

§ 47. A Escola Positiva recusou, frontal e globalmente, todos ospostulados filosófico-metafisicos da Escola Clássica, apresentando umapolítica criminal nova e radicalmente. oposta à da Escola Clássica.

§ 48. O positivismo jurídico-criminal foi o resultado da trans-posição, para a ciência penal, da mentalidade positivista da 2.a metadedo séc, XIX: substituição da razão ("deusa razão") pela experimentaçãocientífica ("deusa ciência").

Assim, o comportamento humano, individual e colectivo, e, portanto,o comportamento criminoso, passou a ser tratado como um puro fe116-meno natural, explicável pelo único (para eles) critério válido de conhe-cimento, que era o da investigação experimental.

Conclusão: contra o abstraccionismo e o dedutivismo rnetafísicos daEscola Clássica, passa-se para um reducionismo positivista-naturalista:redução do real ao empírico (positivismo ontológico), e redução dométodo de conhecimento à investigação experimental (positivismo epis-

. temológico).

§ 49. Comte, Darwin, Marx e Freud são símbolos destacados einfluentes na afirmação deste clima cientista, respectivamente, nos cam-pos sociológico, biológico, económico-social-cultural, e psicanalítico.

(I) Sobre a evolução hlstérica dos regimes de execução das penas privativas daliberdade (i.é, história do direito penitenciário), veja-se PAUJ..O PINTO.DE ALBUQU13RQUE,Direito Prisional Português e Europeu, Almedina, 2006.

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38 Parte 1- Questões Fundamentais

§.50. A Escola Positiva proclamou, contra a trilogia da Escola Clás-sica "liberdade, culpa, pena", a trilogia positivista "deterrninísmo, perl-gosídade, medidas de segurança". Toda a política criminal passa adever centrar-se na perigosidade do delinquente. Pois que, -afirmadoodeterrninismoda conduta humana (não sendo a liberdade senão a ignorânciada relação causal entre factores bio-psicológicos e/ou sociais e o com-portamento delinquente), a perigos idade do infractor é o único pressu-posto e critériojustificativo da intervenção da sociedade, através do Estado.

Assim, em vez da preocupação com as tipologias dos factos (poisque estes são apenas sintomas de determinada perigosidade), a preocu-pação e a investigação das diferentes espécies de perigosidade, i. é, dastlpologias de delinquentes. E, consequentemente, em vez de penas(que são castigo e pressupõem uma liberdade inexistente), medidas desegurança: segurança da sociedade, e, se possível, tratamento da peri-gosidade do delinquente. .

o. critério da definição dos crimes (reduzidos a meros fenômenoshumanos socialmente danosos) e da determinação das suas consequên-cias jurídicas dependeria apenas das concepções sociais do legislador: con-fluência do positivismo naturalista com o positivismo jurídico.

Donde, a conclusão: nada de retribuição (que pressupõe a culpa),nada de prevenção geral (que pressupõe a intirnidabilidade dos potenciaisdelinquentes), mas só prevenção especial de tratamento da perígosídade,ou de inocuização do delinquente, no caso dos delinquentes' incorrigíveis.

§ 5L A Escola Positiva dividiu-se em duas perspectivas e em doisramos: biologia criminal e sociologia criminal.

A biologia criminal: Lombroso, com o livro "L'Uomo Delin-quente" (1876), defende, inicialmente, uma explicação meramente. bio-lógica do crime (o atavismo do "delinquente nato"). Posteriormente, aco-lhe, ao lado da explicação biológica do criminoso-nato, propenso àcriminalidade violenta, a explicação bio-psicológica. Esta perspectiva,que se reconduz à aceitação de uma categoria de delinquentes com umcarácter incapaz de resistir às influências perniciosas da sociedade, expli-caria a chamada "criminalidade evolutiva", caracterizada pelo recurso àfraude e à burla.

A sociologia criminal: Ferri, com o seu livro "Sociologia Crirni-nale" (1892), acentuou os factores sociais como principais causas do

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Titulo 1 - O problema criminal-penai 39

crime. Esta via explicativa sociológica também foi seguida pela suacontemporânea escola franco-belga, nomeadamente por Lacassagne eG. Tarde (6).

§ 52. Apreciação crítica da Escola Positiva: o grande contri-buto, para o direito penal, foi ter chamado a atenção para a necessidadeda consideração da personalidade concreta do delinquente, o ter inter-pelado a doutrina e o legislador para a adopção de medidas alternativasà prisão, e ter elevado a criminologia à categoria de verdadeira ciência;os aspectos negativos foram a secundarização (e, por vezes, negação)das garantias legais e jurisdicionais do delinquente, e a negação de qual-quer dimensão ética do direito penal, assim se correndo o risco de redu-ção do direito penal a um mero conjunto de técnicas de um qualquerdefensismo social.

5. As Correntes Mistas do direito penal (desde fins do séc. XIXaté cerca da década de 70 do séc, XX)

§ 53. Razão de ordem: acabámos de ver como o iluminismo cri-minal em sentido estrito, a escola clássica e a escola positiva se apre-sentaram como teorias claramente estruturadas em posturas filosóficas eantropológicas radicalmente demarcadas, e como, consequente e coe-rentemente, conduziram a concepções globais do direito penal, claras eradicais. .

É também de salientar que, apesar do seu unilateralisrno radical, cadauma destas correntes ou escolas consagrou aspectos positivos funda-mentais do direito penal: o ilumínismo criminal afirmou a necessidadecivilizacional da defesa dos direitos fundamentais individuais frente aopoder punitivo do Estado; a escola clássica consagrou o princípio daculpa como condição irrenunciável da aplicação da pena; a escola posi-tiva radicou a justificação do direito penal na necessidade da defesa dasociedade contra a perigosidade dos delinquentes, elevando a prevençãoespecial à categoria de fun principal da pena.

(6) Sobre a perspectiva criminológíca da Escola Positiva, pode ver-se FIGUEI-REDO DIAS/COSTA ANDRADE, Criminoiogia, Coimbra Editora, 1984, pp. 10-19.

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40 Parte J - Q"eslões Fundamentais

§ 54. As correntes mistas ou "terceiras-vias" resultaram do reco-nhecimento destes contributos positivos, e da tentativa de articulaçãoconciliadora (síntese) destes contributos: garantias individuais, princí-pio da culpa, retribuição e prevenção geral e especial.

Certo é que tais tentativas não podiam lograr êxito completo.Pois que: ou se aceitava o livre-arbítrio (a absoluta liberdade de deci-são no momento do facto), e, então, a decisão e a determinação damedida concreta da pena deveria fazer-se em função da gravidade daculpa, imputando-se à pena uma natureza e uma função primordialmenteético-retributiva, e, assim, ficando reservada para a prevenção (geral eespecial) um papel secundário ou complementar; ou, pelo contrário, seoptava pela prevenção (especial e geral), e, então, tinha-se de subal-temizar o princípio da culpa, em matéria de fundamentação e deter-minação da pena.

§ 55. A primeira posição foi defendida pelas teorias. étlco-retrl-butivas ou neoclássicas (p. ex., Bettiol), que conferiam à culpa opapel fundamental na determinação da pena, ao -mesrno tempo queafirmavam que a pena justa (i. é, a pena correspondente à culpa) eraaquela que melhor cumpria as funções de prevenção, quer geral querespecial.

Mas estas teorias, quando colocadas diante da incontornável exis-tência da categoria dos imputáveis perigosos, ou tinham que juntar, aolado da pena referida à culpa, a medida de segurança para fazer face àperigosidade (sistema dualista), ou, então, tiveram que recorrer à chamada"culpa pela (não) formação da personalidade" (p. ex., Mezger, EduardoCorreia), considerando que a perigos idade dos imputáveis era tambémculposa, e, portanto, aos imputáveis perigosos só deviam ser aplicadaspenas (sistema rnonista),

§ 56 .. Outros autores, embora sem pôr de lado o princípio da culpa,optaram pela fundamentação e consideração da pena como uma neces-sidade social. Assim, imputaram à prevenção especial (e à prevençãogeral) o fim da pena. .

Relativamente à questão da liberdade, enquanto suporte do juizode culpa, recusavam-na enquanto livre-arbítrio ou "liberdade de indife-rença", defendendo uma como que concepção psicológica da liberdade,

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Túulo [ - o problema criminal-penai 41

da culpa e da responsabilidade individual e social. Assim, Marc Ancel,fundador da chamada "Nova Defesa Social", escreveu: a liberdade é«sentimento íntimo e natural da responsabilidade pessoal».

Este quadro de pensamento jurídico-penal também já tinha sido,anteriormente, proposto pela "Escola Moderna ou Sociológica" alemã(fundada por Franz vou Liszt, em [mais do séc. XIX) e pela "TerzaScuola" italiana (fundada por Carnevale e por Alimena, nos princípiosdo séc. XX).

Uma vez que estas doutrinas vinham na linha da escola correccio-nalista e da escola positiva (embora sem o radicalismo desta), é correctodesigná-las por correntes neopositivas .

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3.° CAPÍTULO

AS fRlNCIfAIS QUESTÕE~ fENAISNA ACTUALIDADE

SECÇÃO I

A fROCURA DO EQUILÍBRIO ENTRE .A GARANTIADOS DIREITOS INDIVIDUAIS FUNDAMENTAIS

E . A NECESSIDADE DA DEFESA DASOClEDADEE DOS BENS JtJlÚDICOS fESSOAlS E COMUNITÁRIOS

§ 57. A complexidade das sociedades actuais (ditas pós-modernas,em relação, claro, ao chamado "mundo ocidental") e as novas, complexase graves formas de criminalidade organizada, a nível nacional e transna-cional (terrorismo, tráfico de pessoas e de órgãos humanos, pedofilia, trá-fico de droga, de armas, e criminalidade económica), obrigam a repensaros tradicionais limites da investigação criminal (p. ex., os sigilos bancá-rio, fiscal e profissional, ou as figuras do agente infiltrado e do agente pro-vocador) e a acolher, como meios legítimos de investigação, fonuas que,até ao presente, eram consideradas ilícitas 0\1, no mínimo, nulas, isto é,insusceptíveis de alicerçar urna prova processual-penal (casos, p. ex., dasfiguras dos "arrependidos" e dos "agentes infiltrados"),

§58. Mas, se é certo que as sociedades actuais, quer a nível nacio-nal quer no Rlano internacional, não podem deixar de se defender con-tra_~~!~lli!Y..<tULgravesfuo.na,5...Ór criroinalida@, a verdade, porém, é que,mesmo neste novo co!ili',xto, continua a ter de se afirmar; firme e cla-ramente, que os fins niio justificam os mci9..•s, e que a paz juridica e os~ens jurí~~~,_~g~si~m:Q~!S (pessoais, comunitários e universais) nãoserão, a médio e a longo prazo, efectivamente protegidos através de

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Titulo f - O problema criminol-penal 43

meios preventivos e repressivos intrinsecamente ilícitos e manifesta-mente violadores dos mais elementares princípios emanados da dignidadeda pessoa humana - dignidade que tem que se reconhecer mesmo napessoa do mais perigoso criminoso. Assim, tem o 1t!Ú~ª,a políticacrimina1.~~jF.~19.JJ.~º.a1 (em sentido amplo) de reagir e de nãõCCder[tentação f~il de tentar im120ra "lei~9lSi~.çl.Q.,.Q,..,Ç~\!9.tQ,.

Ceder a tal tentação é, para além de ético-juridicamente reprovável,e de, político-criminalmente, s6 aparentemente e~, é, dizia, .;:squece!,em muitos casos, que o recursq,.";o direito p~~L~ectius, à repressãopenal) _I1.~?..E9i~_de~t1!..~~._~.~~?_~ltí!!E~...Q2lillgJ...QJ;jí!-J, ou seja,quer no pJa~llê.~~2.l!al quer no P~i9.ual, um recurso subsi-

.. diário das políticas económicas, sociais e de resgeÍto dos direitos huma-~~~ ~~ .P~~ .._~..5i9.ÜQ~~s~~w-·-'-7~--~~~----~-~.~

§ 59. Assim, e a título de exemplo, não pode aceitar-se a figurado "agente provocador", e deve a figura do "arrependido" ser objectode um tratamento jurídico-processual e penal cuidadoso, sob pena decorrer riscos insuportáveis o princípio da investigação da verdadematerial processual, e a justiça da decisão judicial condenatória. Ainda,como exemplo tremendamente preocupante da violação dos direitoshumanos fundamentais (do suspeito, do arguido ou do recluso, quenão deixa de ser pessoa), temos o caso ainda actual- do procedimentoque a única (para já e para os tempos mais próximos ... ) super-potên-cia económica e militar tem seguido relativamente aos talibãs e aosmembros da Al-Qaeda, Procedimento que se tem caracterizado poruma crassa e escandalosa violação dos mais elementares princípioshumanos e jurídicos, violação levada a cabo cinicamente por umEstado que, pretendendo apresentar-se como o paladino dos direitoshumanos, se tem recusado, arrogantemente, a ratificar o Tribunal PenalInternacional, aprovado pelo Tratado de Roma de 1998, que entrou emvigor em I de Julho de 2002 (1). O que também, infelizmente, se com-

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l~(1) Uma análise do EStatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional encontra-se

rio Volume Especial de 2006 da Revista Direito e Justiça da Universidade CatólicaPortuguesa, com o título O Tribunal Penal Internacional e a Transformação do DireitoInternacional,:',

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44 Parte I - Questões Fundamentais

preende, embora revolte. E compreende-se, se partirmos do pressupostoreal de que tal potência imperial age, de facto, como se fosse o ver-dadeiro e único polícia do mundo. Assim, o que lhe interessa sãoos tribunais penais internacionais ad 110c, pois que estes são constituídosem ft111ÇãO dos seus interesses político-económicas e estratégico-rnili-taresçjulgarn apenas determinadas e seleccionadas categorias de cri-minosos.

SECÇÃO Ilr

A DEFINIÇÃO DOS' BENS JURÍDICO-PENAISE O CONCEITO MATERIAL DE CRIME

§ 60. O direito penal tem a positiva função de tutela dos bensjurídicos fundamentais, isto é, dos valores individuais ·e comunitários~enciais à realí~ão ~~.SQ!lJe à convivência~l; por sua vez, asconsequências jurídicas do crime (as penas e as medidas de segurança)traduzem-se na privação ou restrição também de direitos fundamentais,nomeadamente, a liberdade.--'-Daqui resulta a importância fundamental da definição do conceitode bem jurídico-penal, e da determinação aproximada dos valores sus-~tíveis da qualificação de bens jurídico-penais. A própria construção

~LÇSi da doutrina geral da infracção criminal, bem como ~-Pl~ç.ão el.e~?l~t.~~..sJasm~ariadas guestões.lt0J!~ç2:P~11a.is,são ilu-minaçlJispela noção e definição do bem jurídico-penaL Isto é, tanto a

-;;trução dogn1~~~-"a-'~ct;Çãõ)mfdlêõ-E!?nais devem ser·jeJeoJ6glCo~ra~i~na~~n~~.{)E~~~,ta~aspelo objecto e_razãQ..9l<...ill.Àª-.MsÜaP~!1_~cque é o bem jurídico. Assim, p. ex., é decisivo o conceito de.~j,!:!!.~4JE<Q-12ar~~~_g':l:.~~2.L(in).Ü;gputabiU.9!l.9-~,_P_~_n.!1e da censurabili-dade",ou n~.Cl,__dQ_e!IQJQb.[La,ll!ftil!.c1e.

§ 61. Tendo em conta o referido carácter gravoso das consequên-das jurídicas do crime, a definição do ~l!!jy.rídicQ:p.~I].-ªL~~~!l}[email protected]ém o papel de critério da decisão legislativa criminalizador~_e,por-tãi;to:-d~-X~~i.4~1?,en.:t9.da!1preciax~-ª. d~~it~p;jl§r;;;;stituí90,

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Tltulo I - o problema criminal-penal 45

1. 'Recusa das concepções posítívístas, jusnaturalístas, moralistas esístêmíco- fun cíonalístas

§ 62. As considerações acabadas, de tecer levam-nos a recusar,liminarmente, o conceito posltívísta-Iegalísta de bem jurídico. Comefeito, uma tal perspectiva reconduziria o conceito de bem jurídico à von-tade do legislador ordinário; bem jurídico-penal seria todo e qualquer inte-resse a que o legislador decidisse atribuir protecção penal. Aqui, numatal perspectiva, o bem jurídico não possuía qualquer conteúdo materialpróprio, e seria não um prius condicionante da decisão criminalízadora,mas um mero posterius ou resultado desta autocrática e, portanto, insin-dicável decisão legislativa.

Uma tal concepção do bem jurídico-penal conduzia à afirmação deum conceito formal e positivista-legalista do crime. Estes conceitosformais e positivistas do bem jurídico e do crime só seriam compatíveiscom um Estado de Direito formalista, que mais não seria que uma dita-dura de uma qualquer conjuntura! maioria.

§ 63. Mas também é de recusar a aparentemente antípoda (em rela-ção à perspectiva positivista-legalista) perspectiva jusnaturalista, quereconduziria o universo dos bens,jurídico-penais a um pré-existente conjuntode valoresimutáveis e como que transcendentesà realidade históricahumana.

Não quero, com isto, negar a perenidade humana de certos valores;mas, sim, que os valores só se revelam na evolução histórica do concretoexistir humano.

Sinteticamente: a recusa da ultrapassada dicotornia radical ser edever-ser, realidade histórica e valores, implica a recusa dos conceitosjusnaturalistas de bem jurídico e de crime.

Diga-se, por último, que esta -perspectiva, embora possa ter umobjectivo salutar, que pode ser o de impedir a visão positivista-lega-lista (que, como foi referido, confere ao Estado um poder incontrolável),como foi o objectivo perseguido por alguns autores na Alemanha dopós-nazismo, tem ainda contra si o facto de impedira participação e odiálogo .dernocráticos, inerentes ao Estado de Direito pluralista.

§ 64. Num Estado de Direito Deinocrático e Pluralista, também éde recusar uma perspectiva e concepção moralista do bem jurídico.

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46 farte [ - Q"eJrõeJ Fundamentais

Sendo as sociedades diversamente plurais nas rnundividências religioso--morais (ou na recusa de qualquer concepção religiosa da moral, com aadesão: a uma simples moral humana), não pode um Estado de Direitopluralista assumir e impor a todos os seus cidadãos um conjunto devalores inspirados ou extraídos de uma determinada religião, por maisdominante (maioritária) que seja esta religião.

A,partir do momento histórico em que se autonornizararn e sepa-raram a "Cidade de Deus" e a "Cidade do Homem", mal 'irá a Reli-gião que pretenda servir-se do braço secular do Estado para Se impor aosmembros da sociedade; e a partir do momento histórico da consagraçãodo Estado de Direito democrático e plural, mal irá o Estado que pretendaimpor aos seus cidadãos um quadro de valores inspirados numa deter-minada confissão religiosa. Se tal acontecesse - e, infelizmente em mui-tos países de "religião oficial", .ainda acontece, nomeadamente paísesislâmicos -, a Religião negaria a sua dimensão espiritual e o seu ver-dadeiro meio de difusão que é o da mensagem persuasiva das cons-ciências; o Estado de Direito negar-se-ia na sua essencial característicada democraticidade e do respeito pelo pluralismo moral-religioso.

§ 65. Nas últimas décadas, tem sido defendida, por alguns autores(p, ex., Jakobs), uma concepção sociológica slstérníco-funclonalistado bem jurídico-penal. Segundo esta perspectiva, a principal funçãodo direito penal é a de garantir a funcionalidade do sistema social.Dada a complexidade dás sociedades actuais, o funcionamento eficaz dosistema social (relações ou interacções entre pessoas, entre a pessoa e osgrupos sociais, entre aquela, e. estes, e o estado) constituiria a razão deser do direito penal: garantir as condições mínimas da' convivênciasocial.' As normas jurídico-penais visariam, por outras palavras, garan-tir as expectativas de cada um na sua inter-acção social, isto é, a reac-ção que cada um pode, legítima e confiadamente, esperar do outro,

Assim, os bens jurídico-penais reconduzir-se-iam às expectativassociais de' acção, jurídico-penalmente garantidas, ou seja, às condiçõesda funcionalidade do sistema social.

O que é de criticar, e recusar, nesta concepção do direito penal e dosbens jurídico-penais é a negação (ou, pelo menos, não afirmação) da auto-nomia do direito penal para definir e decidir quais são os valores ou bens 'jurídicos a qualificar como bens jurídico-penais, isto é, quais os valores

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T(UC[o I - o problema criminal-penot 47

cuja lesão pode desencadear a aplicação de sanções que vão até à pri-vação da liberdade, Isto é, critica-se o esvaziamento êtico-axiolôgico dobem jurídico-penal, e a acentuação quase exclusiva da dimensão eficá-cia ou funcionalidade do sistema social. E é esta redução, como quemecanicísta do direito penal e do bem jurídico, que leva alguns autores(p, ex., Zaffaroni) a criticar, severa e asperamente, esta perspectivasociológico-funcionalista do direito penal e do bem jurídico. Assim, oreferido Zaffaroni escreve - porventura com algum exagero - que opensamentojurídico-penal de Jakobs (que, segundo aquele autor, remontaao funcionalismo sistémico-social de Parsons, e se inspira, directamente,na teoria sociológico-jurídica de Luhmann) contém as seguintes hete-rodoxias e perigos: transforma a funcionalidade do sistema social (axio-logicamente asséptico) em critério de legitimação do direito, penal e dedefinição-determinação dos bens jurídico-penais; subordina as decisõesindividuais às necessidades sociais do funcionamento eficaz do sistema,com o risco da transformação da pessoa individual em "autómatohumano"; secundariza e sacrifica, tal como o positivisrno jurídico-penaldos fins do séc. XIX, as garantias individuais, conquistadas pelo pen-samento penal liberal (o iluminismo criminal), no altar da funcionalidadesistérnico-social, chegando ao ponto de considerar o indivíduo comoum "suo-sistema fisico e psíquico"; presta-se à sua utilização pelas peri-gosas "doutrinas da segurança nacional".

2. A concepção ético-social do bem jurídico-penal, mediatízadapela Constituição 'Democrática

2.1. Critério ético-social: pessoa humana, sistema social e cons-ciência ético-social

§ 66. Recusados os critérios positivista-legalista, ontológico-jus-naturalista e moralista como critérios válidos, numa sociedade politica-mente estruturada nos princípios caracterizadores do actual Estado deDireito Democrático e Pluralista, não parece haver outro critério válidopara a definição do bem jurídico-penal e, consequentemente, para adefinição do conceito material de crime, senão o critério ético-social.Critério que significa que é na consciência ético-social de uma comu---_ ...•.•.,-------"'-----,....: ..-_..--...- •.......•.••...•_.....~~.

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48 Parte I - Questões Fundamentais

unidade hjstoricame~te situada num determinado tempo e espaço (pres-suposto que esta consciência se Rº§.SJil1).W1ify,s!a,rJ~y!eJ;nMte)que se há-debuscar a refêfêllci~y-;;:ay.-.9~fl~10_~~_P!.!!Ü~~1?~~()~p~~~~1..e_y'~ a~e..t~~~Úl~xã._(LçLa~.ºº~\!t!l~,çrim41_alizAy~s, .

§ 67 _ Assim, só deverão ser assumidos e qualificados como bensjurídico-penais os valores considerados, pelo ethos social comunitário,como essenciais ou indispensáveis para a realização-pessoal de cádaum dõSmiúnbrõti:fa"sociedade. Esta realização pessoal implica, não;Ó" áiúji;ç~:~o"dos-êfíí:êHos-liítr~l~,~ca!TI.ent~..i!l~r.ep.te.s.~l?.essoahumanaindividual (os chamados direitos humanos protegidos pelo tradicionaldirenop~nal clássico), mas também a garantia tutelada das condiçõessociais indispensáveis àquela realização -himali~s~o·~i:iQ.d.!yid~'~r(con:(fições"sociiils-eiras 'que sã~prote~J,9;~~.R~!~c.hi@~º-ºjr~ito.--R~~!..~c~-dário, administrativo 0\1 económico-social).',u PE"sTêCiítÚió aà;"}üllaa:mentâíTdad~ou essencialidade do valor oubem jurídico constitui o .12ressupostoirrenUl1ciável, e mínimo, ~-fl~ão do bem jurídico como bem jurídiCO-Renal.,A razão deste pres-

--;uposto mínimo irrenunciável está relacionada com a gravidade das con-seguências jurídicas dg crime;, traduzindo-se as penas e as medidas desegurança na""privação ourestriçâo de bensjurídicos funda.tll.ent.ais,nomeadamente a liberdade, tal só aparece, ético-social e ético-juridica-mente, justificado, quand~ tenham sido postos em causa os bens' oucondições ftmdamelltais da vida em sociedade. o

.Esta componente básica e irrenunciável do bem jurídico-penal cons-titui a dimensão axiológica fundamental do bem jurídico-penal, dimen-são esta que, na actuâljdad~,' é' fr~q~~ntemente vertid-;-pciadesignaçãodignidade ,penal do bem jurídico, ".

§ 68. Não basta, contudo.para a quaEficação.de um bem como bemjurídico-penal, que ele seja assumido pela consciência ético:Sõciãlcomo fun-damental, isto é, que tenha ~idade penal". É, aindanecessário que o~cursº-_ às genas criminais seja considerado indispensável e adequ~o àprotecção daqueles bens jurídicos fundamentais, Indispensável quer dizerque·âtutela daqueles bens fundamentais só pode ser conseguida através dor~cUr;"ãs--p~na-;cr,;mn;is;" ou' seja: quaisqu~r~(l~~as .sanções jll!í~i<;as(civis, disciplinares, contra-ordenacionais,etc:) seriam ineficazes ou insu-

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Titulo 1 - O problema criminal-penal

ficientes para uma protecção, mais ou menos eficaz, desses bens. E quer, ~.ainda, dizer que, r!!.-es-mo que as outras sanções jurídicas. nã.o,penaj,~,s,eJamineficazes para a tutela desses bens fundamentais, mesmo nesta hipótese,não será legítimo recorrer às sanções .Qenais, se estas se revelarem, ine-'--- _._---_ ..---_ ..- -- ... - .... --_ .... - - -,,----- - -ql.ü.Y9j;~!1!.e.'_~OJ:!l()_.inteiramenteineficazes para tutelar tais bens,

Esta exigência ou dimensão pragmática, complementar mas tam-bém irrenunciável e indispensável para a qualificação de um bem comobem jurídico-penal, costuma, actualmente, ser designada pela expres-são necessidade penal ou "carência de tutela penal",

- Este pressuposto da "necessidade penal" resulta e fundamenta-seno princípio político-criminal da pena como ,ultima ratio da políticasocial e da política juridica, princípio que é designado, na linguagem jurí-dica-penal, por princípio da intervenção mínima do direito penal ouda máxima restrição do direito penal, ou, por outras palavras, prillcípioda subsidiariedade do direito penal. .•

Este principio-pressuposto da "necessidade penal" também vai nalinha da função preventIva imputada, actualmente, à pena. Na verdade,numa c~ncepção ético-retributiva da~ esta' apareceria como umaexigência necessária de punição da lesf<) (ou colocação em perigo delesão) de um bem jurídico fundamental para a pessoa e para a sociedade,em que aquela se insere e de que depende na sua realização pessoal. Poisque, numa tal concepção, sempre a pena deveria ser efectivamente apli-cada ao agente censurável pela lesão de um bem íurldico, independen-temente da necessidade e eficácia preventivas da punição (punitur quiapeccatum est). Esta foi a concepção defendida pela Escola Clássica e,no essencial, acolhida, ainda, pelos neoclássicos.

2.2. Critério jurídico-constitucional do conceito material dobem jurídico-penal e do crime

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§ 69. A assunção deste critério ético-social para a definição dobem íurídico-penal e, consequentemente, para a definição do conceitomaterial de crime, corresponde à jJerspectíva racional-tdeológica dodireito penal, que é aquela que melhor se enquadra no actual Estado-de--Direito democrático, social e pluralista.

É, porém, visível que um tal critério ético-social é bastante vago~, Donde ser necessário procurar uma certa materlalização ou

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50 Parte I - QHestões Fundameltlais

concretízação deste critério. Ora, sendo a Constituição Democrática aprojecção e expressão jurídica fundamental da concepção ..ético-socialda comunidade sobre os princípios que devem estruturar o sistema social,é nela que devemos procurar a expressão e fundamento jurídico-consti-tucionais da definição do bem jurídico-penal (e, portanto; do conceitomaterial de crime), e o ~ritério material da determinação das condutassusceptiveis de serem objecto de uma decisão legislativa ordinária de cri-minalização-penalização.

Ora, efectivamente, a Constituição portuguesa proclama, logo noseu art. 1.", que «Portugal é uma República [... ] baseada na dignidadeda pessoa humana [ ... ) e empenhada na construção de uma sociedadelivre, justa e solidária». Daqui resulta que a pessoa. humana (com 9Sdireitos individuais que são inerentes à sua dignidade) é a pedra funda-mental e angular do sistema social e, portanto, do sistema jurídico; eresulta, ainda, a afirmação de que O sistema social (na multiplicidade dosseus subsistemas económico, ambiental, etc.) é essencial e codeterminanteda realização pessoal de cada um dos membros. do corpo social.

As "Constituições Democráticas e Sociais" do pós-segunda grandeguerra consideram, diferentemente das "Constituições Liberais" de finsdo séc, XVIII até meados do séc.XX, que o Estado e o Direito nãopodem ficar indiferentes à conformação do sistema social, uma vez queeste é condicionante da efectivação dos direitos humanos pessoais.E, assim e por isto, as Constituições Sociais, como, p. ex., a nossa,contêm, para além das partes dedicadas aos tradicionais 'direitos, liber-dades e garantias individuais (CRP, L" parte, título lI) e à organizaçãodo Poder Político (CRP, 3.' parte), uma parte dedicada à organização eco-nómica e social e aos direitos e deveres econórnicos e sociais (CRP,La parte, titulo 1lI, e 2.a parte).

A partir deste art, L" da CRP já se obtém um ponto de referênciapara a definição do bem jurídico-penal. Assim, só poderão ser consi-derados bens jurídico-penais os direitos inerentes à dignidade da pessoahumana, e os deveres essenciais à funcionalidade e justiça do sistemasocial. Eis o critério jurídico-constitucional a respeitar pelo legisladorordinário na concretização legal dos bens susceptíveis de tutela penal.Estes dois pilares fundamentais da Constituição, a pessoa humana e o sis-tema social, desenvolvem-se e concretizam-se nos direitos-deveres indi-viduais consagrados no título II da I: parte, e nos direitos-deveres

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Tftulo I - O problema criminal-penal

sociais, explícita ou implicitamente previstos no título III da 1:parte ena z.a parte da CRP.

É evidente que, como bem refere figueiredo Dias, não tem queexistir entre os bens ou valores (a que correspondem direitos-deveres)consagrados na Constituição e os bens jurídicos dignos de tutela penale, portanto, susceptíveis de fundamentarem a criminalização das condutasque os lesem ou ponham em perigo, não tem que existir, dizia, uma"relação de-identidade", bastando, sim, que entre a "ordem axiológicaconstitucional e a ordem legal dos bens jurídicos" exista uma "rela~ção de analogia mãterial". Isto é, o quadro de valores constitucio-~ais constitui, para o legislador ordinário, o quadro referencial dos valo-res susceptíveis de terem protecção penal.

Por sua vez, os arts. 17.0 e 18.0-2 da CRP estabelecem os pressu-Rostos da qualificação legal de um bem como bem jurídico-penal.O art. !2:.~_afirmaque o regime dos direitos, liberdades e garantias seaplíca,'não só a estes di~itos"gessoais mas também aos direitos funda-!?!1ftais de na!!!reza an~lo&a; Ou seja: o regime previsto no art. 18."-2aplica-se quer aos direitos-deveres pessoais, previstos no tírulo II da~arte 9.a CR,P e protegidos pelo direito penal tradicionall clássicoou primário (contigo globalmente no Código Penal), quer aos direitos~-deveres sociais, previstos no título m da L" parte e na 2." parte da CRP,e protegic!2.s pelo chamado (Üreit~ pen~i· administrativo, social ousecundário (contido, geralmente, em leis extravagantes, como o direitopenal do ambiente, fiscal, societário, etc.),

Partindo dopressu)?osto exacto de que não cabe ao direito penal(dada a gravidade das sanções que aplica) promover a consciencializa-ção étjco,so.cial e ~tico-juridica da import~cíãiundamental de certos·benspara a existência social humana, no presente ejl.2..P.i_tl!I9,mas, sim e aocontrário, o direito penal pressuRõe essacOl:iscienciaIiz-ªy~ então pareceficar claro que não há uma distinção substancial entre os bens jurídicosI?rotegic!.2spelo tradicional direito P_~!1~J...E.-L~s~coe os bens jurídicostutelados pero.?i~íf~ãisóiÚirõ~secundáriO. ---.-----

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§ 70. Mas a não ex.istência de uma dístinção material não significaqU~.E.ª-~~j~_~!:l!.~._~ife!e1.1y'.aquanto ao $!.ll,!1._~E!.SºI:1.s..c:!!!.n.Si.l!liz.!l.Ç-ªo "darelevância dessas duas categorias de bens jurídicos .dignos de tutelapenal. Esta diferença existe, pois parece evidente que está mais pro-

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52 Parte J - Questões FWldaJllentais

fundamente interiorizada a consciência da gravidade da lesão dos bensjurídicos pessoais do que a dos bens jurídicos sociais. Desde logo, por-que esta consciência ético-social dos bens jurídicos sociais é recente eestá relacionada com a crescente complexidade do sistema social.E acrescente-se que esta diferença, quanto ao grau de consciencialização,pode ter consequências no plano da dogmática jurídico-penal, por exem-plo, em matéria de erro sobre a ilicitude.

§ 71. O regime jurídico estabelecido pelo n." 2 do art, 18: da CRPcontém o critério juddico-constitucional da definição material do bem jurí-dico-penal. Este critério vincula, como é evidente, o legislador ordiná-rio na sua tarefa de determinação concreta dos bens jurídicos-penais,através da criminalização de determinadas condutas.

Na verdade, o art. 18.°-2, ao estabelecer que a restrição dos direi-tos, liberdades e garantias só é legítima quando tiver por objectivosalvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos,está a consagrar o pressuposto da dignidade penal (dimensão axioló-gica) do bem jurídico. Isto porque, traduzindo-se as sanções penais narestrição de direitos fundamentais (a liberdade, a propriedade, o exer-cício de profissões ou actividades), então tais sanções pressupõem queas condutas, a que se apliquem, lesem direitos pessoais ou interessessociais com dignidade constitucional. Não basta, porém, a dignidadeconstitucional-penal de um bem jurídico para que este possa transfor-mar-se, por decisão legislativa ordinária, num bem jurldico-penal.É que, por força da referida disposição constitucional, exige-se, adi-cionalmente, que tais restrições dos direitos, liberdades e garantiassejam consideradas' necessárias para salvaguardar os referidos benscom dignidade penal.

Esta exigência pragrnát~ da necessidade penal desdobra-se em trêsdimensões. São elas: inexistência ou insuficiência de outros meiossociais ou jurídicos (p. ex., civis, disciplinares ou contra-ordenacionais)para nina protecção eficaz destes bens jurídicos com dignidade penal; ade-quação das sanções criminais-penais a uma tutela relativamente eficaz des-ses bens; proporcionalidade entre a gravidade das sanções penais e a rele-vância pessoal e/ou social dos bens jurídicos lesados (ou postos emperigo) pejas condutas ilícitas - o que significa, por outras palavras, proi-bição de excesso punitivo.

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Tirula I - O problema criminal-penal 53

§ 72. Deste pressuposto da "necessidade penal" deriva que, teori-camente e em abstracto, seja de recusar a existência das chamadasinjunções constitucionais implícitas de crímínalízaçãu. Estas injun-ções significariam que, dada a essencialidade ou "dignidade penal" decertos valores consagrados na Constituição, teria o legislador ordináriode necessariamente criminalizar as condutas que os lesassem ou puses-sem em perigo.

A recusa destas imposições constitucionais assenta no facto de,como vimos, não bastar, para a criminalização, a dignidade penal oudimensão axiológica dos bens, exigindo-se, ainda, que, no plano prag-mático, a protecção desses bens encontre no recurso ao direito penal aforma adequada e única de protecção. Ora, pelo menos em teoria (e tal-vez que, em alguns casos, na prática), tem de aceitar-se a hipótese deexistirem valores que, apesar do seu carácter fundamental, possam' sermais eficazmente protegidos através de medidas jurídicas não penaisou tão s6 medidas sociais do que através de sanções penais (como, p. ex.,pode ser o caso do consumo de estupefacientes). Em tais casos, não sejustificaria a criminalização das condutas lesivas de tais valores, pois que,apesar da dignidade constitucional desses valores ou bens, não se veri-ficava O pressuposto da "necessidade da pena".

Isto não significa que não haja bens jurídicos, consagrados na Cons-tituição, que não tenham, forçosamente, de ser tutelados penalmente.É evidente que os há: p. ex., a vida, a integridade física e a liberdade;e, em relação a estes bens, recai sobre o legislador ordinário o dever decriminalizar as condutas que os lesem. Aliás, se é o próprio legisladorconstitucional que expressamente prevê a existência de crimes e depenas (CRP, art. 29.°), é porque há algumas condutas que, de facto,não podem deixar de ser criminalizadas pelo legislador ordinário.

Em conclusão: o que se pretende dizer, quando se nega a existên-cia de injunções constitucionais implícitas de criminalização, é que nãoé pelo facto de determinado valor ter uma essencial dignidade consti-tucional ("dignidade penal") que, necessariamente, terá de ser crimina-lizada a sua lesão; exige-se, complementarmente, que haja "necessidadepenal" no sentido acabado de referir. ~

Defender o contrã'rio, parece-me que só será aceitável para quementenda que o direito penal tem, parà além de uma função de eficazprotecção dos bens jurídicos, uma função simbólica. Ora, eu não par-

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54 Parte J - QUeJlôes Fundamentais

tilho de uma concepção simbólica do direito penal por duas razões: porum lado, acho que o mundo do simbólico está num plano de apelo cul-tural-espiritual muito acima do plano do' mínimo exigivel pelo direitopenal; por outro lado, atribuir ao direito penal um papel simbólico éabrir as portas à aceitação de "bodes expiatórios", o que o direito emgeral, e o direito penal em especial, deve evitar a todo o custo.

SECÇÃO III

O PROBLEMA DA RELAÇÃO ENTRE A CULPAl!~ A PREVENÇÃO NA DETERMINAÇÃO (LEGAL

E JUDICIAL) DA PENA: A ADOPÇÃODE UMA CONCEPÇÃO PREVENTIVO-ÉTICA

DO DIREITO PENAL E DA PENA

1. Breve referência à história da questão sobre os "fins da pena"

§ 73. Desde sempre, isto é desde que o poder politico existe, sem-pre se discutiu sobre qual o fim da pena: com que fim se pune quemcometeu uma infracção criminal?

Se remontarmos ao Antigo Testamento, veremos que, então, vigorouum retrlbucionismo objectivo, traduzido pelo aforismo taliónico "olhopor olho, dente por dente". Ou seja: tal a ofensa, tal a punição; donde adesignação talião, que derivou de talis, palavra latina que significa tal.

§ 74. Na Antiga Grécia, bem como na Antiga Roma clássica,também, inevitavelmente, os filósofos, os pensadores políticos e os juris-tas se debruçaram sobre o fundamento do direito de punir e sobre os finsda punição criminal, isto é, da pena. E, enquanto uns atribuíram à penauma função ou finalidade preventiva - "punitur ne peccetur", isto é,a pena tinha por finalidade prevenir a prática de actos criminosos, istoé, olha ao futuro -, já outros imputaram à pena uma finalidade retri-butiva - "punitur quia peccaturn est", ou seja, a pena tinha por fina-Iidade retribuir o. mal do crime com o mal da pena, olhava ao passado,era castigo expiatório.

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Titulo I - o problema criminal-penai 55

§ 75. Passando ao direito penal da alta Idade Média, verificamosque a pena assumiu uma finalidade acentuadamente retributlva,embora, evidente e inevitavelmente, tivesse um efeito dissuasor ou inti-midatório. Basta recordar e pensar nas penas da perda absoluta da paze da perda relativa da paz: aquele que infringisse, por actos objectiva-mente muito graves (p. ex., homicídio), os valores da paz e da solida-riedade, ficava, ipso facto, privado dessa paz e da solidariedade; logo,poderia ser morto.

Demonstrativo, ainda, desde retribucionismo objectivo era a figura,a que já fizemos' referência, da "composição corporal", designada pelaexpressão latina "intrare in fustem" ou pela expressão portuguesa "entraràs varas": se A provocou em B um ferimento com a extensão de 5 em,também sofria uma pena igual, isto é, um golpe corporal com o mesmocomprimento, 5 em.

§ 76. Por sua vez, vimos que, na baixa Idade Média e na IdadeModerna, a tónica do fim das penas foi a de uma exacerbada preven-ção geral de intimidação, por vezes, de verdadeiro terror penal. Bastarecordar a publicitação do crime e da pena, e a vexatória humilhaçãopública do condenado, bem como a chamada "pena de morte cruel",em que a execução mortal do condenado era precedida da aplicação depúblicos tormentos.

§ 77. Naturalmente que, em fins do séc, XVIII, com a queda dosabsolutismos monárquicos e a sua substituição pelo Estado de Direitoliberal, verificou-se, como vimos, uma alteração na perspectivação dodireito penal e na questão do fim da pena. A fundamentação e legiti-mação do direito penal passam a radicar na necessidade social de garan-tir os direitos individuais e a vida em sociedade; e a pena passa a ser vistacomo um mal, embora socialmente necessário, cuja finalidade é a de pre-venção geral de intimidação ou dissuasão da prática do crime, masdevendo estar a sua aplicação subordinada aos princípios da legalidadee da proporcionalidade.

~: § 78. Com a filosofia idealista alemã (fins do séc. xvm e prin-cípios do séc. XIX) e a Escola Clássica do direito penal, que naquelepensamento se alicerçou, operou-se, em matéria dos fins das penas, uma

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56 Parte I - Queslões Fundamentais

viragem de quase 180 graus. Com efeito, a Escola Clássica veio con-testar, vivamente, o então doutrinalmente dominante fim de prevençãode intimidação, advogando, ao invés, urna finalidade retrlbutíva para

a pena-- Kant, na sua "Metafísica dos Costumes", defendeu ~ porventura,

também por ter presenciado o regime de terror punitivo que se seguiuà Revolução Francesa, e com o objectivo de impedir que a prevençãogeral de intimidação conduzisse à instrumentalização da pessoa do infrac-tor - uma teoria ético-retributive da pena: a pena tinha por finalidadea retribuição ética do crime praticado e, portanto, a gravidade da penadevia corresponder, por imperativo categórico, à gravida4e do facto ilí-cito praticado e à gravidade da culpa do respectivo agente.

Por sua vez, Hegel, nos seus "Fundamentos da Filosofia do Direito",defendeu uma retribuição jurídica da pena. Concebendo o direito, enomeadamente o direito penal, como que uma incarnação absolutizadae perfeita da ordenação da vida em sociedade, viu no- crime a negaçãodessa "ordem de liberdade" e, então, atribuiu à pena a função de nega-ção dessa negação (que é o crime) e, portanto, uma finalidade de retri-buição jurídica. A pena visava, assim, repor a vigência da norma jurí-dica violada, visava, por outras palavras, a reafirmação da intangibilidade

do Direito.

§ 79. A Escola Correccionalista veio, a partir de meados doséc. XIX, contrapor-se à concepção ético-retributiva da pena da EscolaCléssica, acentuando a finalidade de prevenção especial positiva dapena. Esta tinha por objectivo primeiro actuar sobre o próprio delin-quente, contribuindo para a correcção das tendências criminosas doinfractor. Procurava-se, por outras palavras, a recuperação e integração

social do delinquente.

§ 80. JA a Escola positiva, a partir do último quartel do séc. XIX,partia de uma concepção determinista do comportamento humano e daconduta delinquente, e, consequentemente, defendia que a pena tinhauma finalidade preventivo-especial de neutralízação OÚ inocuização dodelinquente. E, nesta lógica, propunha que a categoriadas penas fosse,pura e simplesmente, substituída pela categoria das medidas de segu-

rança da sociedade.

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Título J - O problema ctiminai-penal 57

§ 81. Como já referimos (§§ 54 e ss. e 65), às visões radicais daEscola Clássica (finalidade ético-retributiva) e da Escola Positiva (fina-lidade exclusivamente preventiva) sucederam-se as correntes neoclás-sícas e neoposítívas, que procuraram conciliar as categorias da culpa eda prevenção na determinação da pena. As primeiras acentuaram, obvia-mente, a finalidade retributiva; as neopositivas (p. ex., a "Nova DefesaSocial") acentuaram a finalidade preventiva.

2. As teorias da "pena exacta", do "valor de emprego" e da "mar.gem de liberdade"

§ 82. Na 2.' metade do séc. XX, bem como na actualidade, per-maneceu e permanece vivo o debate sobre a relação entre a culpa e a pre-venção geral e especial (positiva e negativa, isto é', de integração sociale de intimidação) na escolha da pena e na determinação da sua medidaconcreta.

§ 83. Segundo alguns autores, a determinação da pena concreta,dentro dos limites mínimo e máximo da moldura penal legal, dependeriaexclusivamente da gravidade da culpa do infractor: tal quanto de culpa, talquanto de pena - teoria da pena exacta. As considerações preventivas,gerais e especiais, interviriam apenas, p. ex., na eventual substituição dapena de prisão por multa, ou na suspensão condicional da pena, quandotal fosse legalmente possível, e na fase de execução da pena.

Uma tal posição é seguramente de rejeitar: é que não só as exi-gências ou critérios preventivos não devem deixar de intervir na pr6priadeterminação judicial da pena, como, além disto, a culpa não é umagrandeza matemática. -

§ 84. Outros autores defendem que a culpa e a prevenção intervêmem momentos diferentes: a prevenção geral realiza-se pela ameaça penalcontida na lei; a culpa, e só a culpa, determinaria a medida da penaconcreta, enquanto que as razões de prevenção especial decidiriam, semqualquer intervenção da culpa, a eventual substituição judicial da penade prisão por uma pena não detentíva, e o modo de cumprir a pena deprisão - teoria do valor de elIlprego.

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58 Porre I - Questões Fundamenuiis

§ .85. Outra posição, que recebeu a designação de teoria da mar-gem de liberdade, propõe o seguinte esquema para a relação entre aculpa e a prevenção na determinação da pena: dentro da amplitude penallegal, isto é, dentro dos limites mínimo e máximo da pena estabelecidapelo legislador para cada crime, o juiz estabelecerá, num primeiromomento e apenas em função da gravidade da culpa, uma nova ampli-tude mais estreita da pena a aplicar ao infractor; e, dentro destes novoslimites minimo e máximo, que, obviamente, terão que respeitar os limi-tes legais mínimo e máximo, serão as necessidades de prevenção, gerale especial, que determinarão a exacta medida da pena.

§ 86. Ora, e em conclusão crítica, deve rejeitar-se qualquer umadestas três teorias sobre a relação entre a culpa e a prevenção na deter-minação da pena. E esta rejeição assenta, fundamentalmente, no factode todas elas atribuírem um papel decisivo à culpa na determinação dapena, 'reservando para as finalidades preventivas um papel complemen-tar e relativamente secundário, Assim, são teorias penais essencial-mente; ético-retributivas; quando a função do direito penal e da penanão pode deixar de ser essencialmente preventiva e, portanto, as neces-sidades de prevenção geral e especial devem assumir a prioridade nadeterminação da medida da pena e na escolha da espécie de pena. Istonão significa, de forma alguma, esquecer ou menosprezar o papel da culpanesta "questão; é evidente e irrenunciável que ela há-de constituir sem-pre, por exigência imperativo-constitucional da dignidade da pessoahumana, um limite, quer para o legislador quer para o juiz, na deter-minação (legal e judicial) da pena,

§ 87. E é esta razão, acabada de salientar, que nos leva a recusartambém aquelas posições que, como a de Jakobs, prescindem ou negam

.mesmo o papel da culpa na questão da determinação da pena, ao redu-zirem a culpa (e, assim, a desvirtuarem totalmente) à maior ou menornecessidade social de "estabilização contrafáctica das expectativas comu-nitárias na validade da norma violada". Esta construção de Jakobs, queparece não ser mais do que uma neo-hegeliana consideração da penacomo reafirmação da norma jurídica quebrantada pela infracção, deixa-ria a sorte da pessoa do delinquente inteiramente dependente das neces-sidades funcionais do sistema social; o que é lirninarmente de recusar.

Titulo I - O problema criminal.penal59

Mas também é de rejeitar posições, como a de Roxin, que diluem oprincípio da culpa na categoria mais ampla da "responsabilidade" penal.Com efeito, urna tal posição, para além de colocar, sob o mesmo deno-minador comum (que é a proposta categoria da responsabilidade), enti-dades de natureza essencialmente diversa - a realidade ético-pessoal daculpa e as realidades sociais das necessidades preventivas _, acabatambém por diluir o princípio da culpa nas necessidades preventivas dapena e, assim, por impedir que a culpa seja um consistente limite(máximo) à determinação da medida da pena. O que é de rejeitar, poisque também, nesta construção, a pessoa do infractor correria riscos deinstrumentalízação pelas necessidade sociais preventivas,

3. Concepção ético-retributiva, concepção ético-preventiva e con-cepção preventivo-ética da pena, na história recente do direitopenal português

§ 88. Pretendemos, agora, analisar, esquematicamellte, a evolução dopensamento do legislador penal português sobre o fundamento e a finali-dade da pena criminal, e apresentar o nosso próprio entendimento sobreesta questão do papel da culpa e da prevenção na determinação da pena,

3.1. Da concepção ético-retributi-va à concepção preventivo--ética da pena

§ 89. O CP de 1886, após a revisão de 1954 (Dec.-Lei n.O 39 688,de 5 de Junho), proclamava no seu art. 54,": «Para prevenção e repres-são dos crimes haverá penas e medidas de segurança»; mais à frente, oart, 84,0 do mesmo diploma estabelecia, também por força da redacçãointroduzi da em 1954, que: «A aplicação despenas, entre os limites fíxa-dos na lei para cada uma, depende da culpabilidade do delinquente,tendo-se em atenção à gravidade do facto criminoso, os seus resultados,a intensidade do dolo ou grau de culpa, os motivos do crime e a per-sonalidade do delinquente»,

Resulta claro destas disposições legais que o CI) de 1886, revistoem 1954, consagrava uma concepção ético-retributiva da pena.Embora a pena visasse a prevenção dos crimes, não deixava o legisla-

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Parte 1 - Questões Fundamentais60

dor de afirmar que ela, a pena, também tinha por objectivo reprimir(retribuir) o crime praticado, e, sobretudo, era bem claro ao estabelecerque a medida da pena dependia da medida da culpa do infractor.

§ 90_ Posteriormente, o CP de 1982, cujo anteprojecto foi da auto-ria de Eduardo Correia, estabeleceu, no seu art. 72,°-1, que «A deter-minação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, far-se-áem função da culpa, tendo ainda em conta as exigências de prevenção

de futuros crimes».Diante deste texto legal, parece clara uma evolução legislativa, pois

que, embora continue a atribuir-se à culpa o papel fundamental na deter-minação concreta da pena, não deixa de se acrescentar que o juiz deveatender também às exigências de prevenção. Assim, pode dizer-se queo CP de 1982 acolheu uma concepção ético-preventiva da pena.

§ 91. Finalmente, a Revisão de 1995 do CP de 1982 (Dec.-Lei11.0 48/95, de 15 de Março) culminou a evolução legislativa sobre o

- fundamento e as .finalidades da pena, concluindo e consagrando, numaviragem de praticamente 180 graus relativamente à concepção ético--retributiva da pena, uma concepção preventivo-ética da pena. Na ver-dade, segundo o ali. 40,· - colocado lógica e propositadamente à cabeçado título dedicado às consequências jurídicas do crime -, as finalida-des da pena (e da medida de segurança) são exclusivamente preventivas,desempenhando a culpa somente o papel de pressuposto (conditio -sinequa non} e de limite máximo da pena. Eis o teor do art, 40,°; n." 1_ «A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protec-ção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade»; n." 2_ «Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa».

Resulta, pois, do actual art, 40.", n,OS I e 2, que O fundamento legi-timador da aplicação de uma pena é a prevenção, geral e especial, eque a culpa do infractor apenas desempenha o (importante) papel depressuposto e de limite máximo da pena a aplicar, por maiores quesejam as exigências sociais de prevenção. Assim sendo, é correcta a afir-mação de que está subjacente ao ali. 40.0 uma concepção ,preventivo-éticada pena: pr-eventiva, na medida em que o fim legitimado!' da pena é aprevenção; ética, urna vez que tal fim preventivo está condicionado elimitado pela exigência da culpa.

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Titulo I - O problema criminal-penal 61

§ 92. Mas ainda não fica resolvida a questão dos fins da pena. Poisque, por um lado, não podemos descurar o art. 71.°-1, e, por outro lado,há ainda que ver que papel cabe à prevenção geral e que papel cabe àprevenção especial.

O art. 71.°-1 afirma que «A determinação da medida da pena, dentrodos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exi-gências de prevenção». Ora, diante deste teor literal, que impõe que o juizatenda, na determinação da medida da pena, à culpa do. agente, umintér-prete descomprometido seria levado a considerar que, embora as finalida-des da pena sejam preventivas, todavia o legislador entende que a via maisadequada, para realizar esse fim de prevenção, é a fixação da pena «em fun-ção [da gravidade ou medida] da culpa», embora, dentro dos limites mínimoe máximo da moldura determinada pela culpa (que não é susceptível de umadeterminação exacta), se façam sentir as exigências ou fins preventivos.E urna tal interpretação não era invalidada pelo capitular ali. 40.Q

, umavez que este, se é certo que diz que as finalidades da pena são preventi-vas, não nega que a culpa também possa intervir na determinação concretada pena, mas sim que a pena nunca pode ser superior à medida da culpa.

Com isto, apenas pretendo dizer que mesmo o actual Código Penal,apesar do art. 40.°, não se opõe a urna concepção ético-preventiva da penasemelhante à que é defendida pela "teoria da margem de liberdade",isto é, a uma concepção em que a prevenção é a finalidade legitimadorada pena, mas em que a culpa também desempenharia uma função nadeterminação da medida da pena, não sendo exclusivamente seu pres-suposto e seu limite máximo.

3.2. O meu entendimento sobre a relação entre a culpa e aprevenção

§ 93. Não é este, porém, o meu entendimento actual sobre a rela-ção entre a culpa e a prevenção, isto é, sobre o papel que cada uma des-tas categorias desempenha no direito penal e na determinação da pena.A exposição clara de uma teoria dos "fins das penas" pressupõe, comoexigências metodológicas indispensáveis, que, à partida, se defina, COmrigor, o fim do direito criminal-penal e os "fins" da pena, e, ainda, quese determine qual o verdadeiro sentido da recente categoria "fim deprevenção geral de integração" (ou prevenção geral positiva).

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62 Porte I - Questões FundamelHais

Efectivamente, tem sido a confusão acerca desta categoria que temperturbado e turvado as actuais posições sobre os "fins da pena": ora, unsfalam em «fim de estabilização contrafáctica das expectativas comuni-tárias na. validade da n0U11a violada» (p. ex., Jakobs, o autor que intro-duziu ou, pelo menos, maior influencia teve na introdução desta categoria110 discurso do "fim das penas"); já outros atribuem a tal categoria daprevenção geral de integração a função de «tutela necessária dos bensjurídico-penais no caso concreto» (p. ex., Figueiredo Dias); como aindaoutros a definem como fim de interiorização, pelos membros da comu-nidade, da relevância fundamental do bem jurídico lesado, para a vivên-cia social e para a realização pessoaL·

§ 9f1.. Por mim, entendo que o fim do direito criminal-penal (ou,pura e simplesmente, direito penal) é o de protecção dos bens jurídico--penais. As penas (tal como as medidas de segurança) são os meiosindispensáveis à realização desse fim de tutela dos bens jurídicos.

Daqui resulta que, quando se fala dos "fins da pena", em rigor se estáa falar de "fins't-meios, e não do verdadeiro fim ou fim-último. Ou seja:o problema, quando se fala dos fins da pena, que são "fins-meios" oufins imediatos, é o de saber como é que a pena há-de ser escolhida(pelo legislador e, depois, dentro do permitido pela lei, pelo juiz) edeterminada, em ordem a realizar-se aquela função ou finalidade (última)de protecção, no futuro, dos bens jurídicos lesados, não se esquecendo,obviamente, o imperativo constitucional da máxima restrição possível dapena, consagrado no art. 18.°-2 da CRP.

Por esta razão, considero que o n." 1 do art, 40.° é incoerente, namedida em que associa e pacifica fim e meio (1. é( "fim-último" e "fim-meio"): com efeito, «a reintegração do agente na sociedade», isto é, areinserção social do delinquente não é senão um dos meios de realizaro fim do direito penal que é a protecção dos bens jurídicos (ao contri-buir esta reinserção social para evitar a reincidência - prevenção espe-cial positiva),

§ 95. Vejamos, então, quais os critérios que, impostos pelo princí-pio constitucional da máxima restrição possível da pena (CRP, art, 18.°-2),hão-de orientar, quer o legislador quer o tribunal, na escolha e deter-minação da medida da pena.

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Titulo I - O problema crímirlal-pellal 63

À partida e em primeiro lugar, é de recusar a pena ético-retributiva,ou seja, é de rejeitar que a pena deva, sempre e necessariamente, serdeterminada pela gravidade da culpa do agente no caso concreto. Tendoa pena uma função-meio de prevenir a prática de crimes, ela há-de aten-der ao presente com os olhos no futuro. Ora, nomeadamente no caso deinfractores primários ou ocasionais, podem não se verificar nem a neces-sidade de prevenção geral, nem a de prevenção especial, e, portanto,não ser legítima a aplicação de qualquer pena. Isto nos leva a acolhera teoria da concepção unilateral da culpa: a chamada implicação uni-voca da culpa - toda a pena implica culpa, mas nem sempre a culpaimplica pena.

§ 96. Estabelecido que a legitimidade ético-jurtdíca (e mesmoconstitucional - CRP, art. 18.°-2) da pena está na necessidade deprevenção de futuros crimes, vejamos, então e agora, qual a dinâ-mica, quais os vectores da pena, para que esta cumpra, o melhor pos-sível, a sua função preventiva.

É claro que a prevenção. se dirige em dois sentidos, isto é, temdois objectivos e destinatários: o próprio infractor condenado e todos osoutros membros da comunidade.

Em relação ao próprio condenado, a função ("fim", na terminolo-gia tradícional e corrente) preventiva da pena designa-se por prevençãoespecial ou individual. E qual o sentido desta prevenção especial?- É duplo: ressocialização do delinquente, traduzída pela designação pre-venção especial positiva, e dissuasão da prática de futuros crimes, tra-duzida pela designação prevenção especial negativa.

§ 97. A função de ressocíalização não significa uma espécie de"lavagem ao cérebro", i. é, uma substituição da "mundividência" docondenado pela "mundividência" dominante na sociedade, mas, sim e ape-nas, uma tentativa de interpelação e consequente auto-adesão do delín-quente à indispensabilidade social dos valores essenciais (bens jurídico--penais) para a possibilitação da realização pessoal de todos e de cada1.UU dos membros da sociedade. Em síntese, significa uma prevenção dareincidência. Esta função da pena implica, como é evidente, profundasalterações das condições físicas e pessoais (como a estrutura arquitectónicados estabelecimentos prisionais, e a ocupação do tempo em actividades

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64 Parte r - Questões FIII.damelltais

profissionais e culturais) em que, geralmente, é cumprida a pena de pri-são; caso contrário, esta finalidade - que, repetida e nomeadamenteno caso português, tem sido considerada essencial para que a pena sejaverdadeiramente um meio de protecção dos bens jurídicos '- não secumprirá, tomando-se, pelo contrário, a prisão em meio de dessocializaçãoou de agravamento da desintegração social do delinquente.

;§ 98. Por sua vez, a dissuasão ("infimidação") do condenado éconatural à pena, e constitui também uma função da pena, que em nadaé incompatível com a referida função positiva de ressocialização. É quenão se trata de intimidar por intimidar, mas sim de uma dissuasàa (atra-vés do sofrimento que a pena naturalmente contém) humanamente neces-sária para reforçar no delinquente o sentimento da necessidade de seauto-ressocíalizar, ou seja, de não reincidir. E, no caso de infractores oca-sionais, a ter de ser aplicada uma pena, é esta mensagem punitiva dis-suasora o único sentido da prevenção especial.

§ 99, Ora, este sentido ou finalidade preventivo-especial, positivae negativa, da pena é tida em conta pelo legislador penal e deve sertambém concretizada pelo juiz, Quanto ao legislador penal, basta pen-sar na ideia-força da segunda parte do n." 1 do art. 40.

0«<A pena visa

a reintegração do agente na sociedade)}), no art. 42.0~1 (<<A execuçãoda pena de prisão [.,.) deve orientar-se no sentido' da reintegraçãosocial do recluso»), nos arts. 43.°, 44.°, 45.0 e 46.° (substituição daspenas curtas de prisão por multa, por "permanência na habitação", por"dias livres" ou pelo "regime de semidetenção", dada a constatação cTÍ-minológica de que as penas curtas de prisão continuada são crirninó-gerias), bem como no art, 70.0 (preferência pela pena' de multa emrelação à pena de prisão) e no art. 72.0-2-c) (atenuação especial dapena, quando o infractor, posteriormente ao crime, tenha praticadoactos reveladores do seu arrependimento, e, portanto, de que não carece

de ressocialização).

§ 100. Mas se toda esta gama de disposições demonstra que olegislador penal estabelece critérios (a respeitar pelo juiz nas decisões doscasos concretos) reveladores de que a pena tem uma função de preven-ção especial positiva de reintegração social, também é nítido que o

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Titulo I -r- O problema crimillal-pellal 65

mesmo legislador reconhece à pena um sentido de prevenção especialnegativa, isto é, de dissuasão. E, assim, é que, p. ex., no art. 43.°-1, olegislador acautela a hipótese de a substituição da pena curta de prisãopor pena de multa ou por outra pena não detentiva não constituir sufi-ciente prevenção da prática de futuros crimes, hipótese em que, então,apesar do reconhecimento (já referido) de que as penas curtas de prisãonão contribuem para a recuperação social do condenado, mesmo assimo juiz deverá condenar na pena de prisão', Ora, não é a prevenção geralque, nesta hipótese, determina tal solução, mas sim a prevenção especialnegativa ou de dissuasão individual.

A mesma ideia de prevenção especial negativa está subjacente aodisposto no art. 49.°-1 (conversão da multa não paga em prisão subsi-diária); e também me parece manifesta no art. 75.°-1, quando o juiz,no caso de reincidência, é obrigado à agravação da pena, se considerarque «a condenação ou as condenações anteriores não lhe [serviram] desuficiente advertência contra o crime». .

§ 101. O outro sentido da prevenção tem por destinatário toda acomunidade' social e cada um dos seus membros, os cidadãos em geral,É, portanto, um sentido e objectivo de prevenção geral. E, analogamenteao que se passa com a prevenção especial, também a prevenção geral temuma dupla dinâmica, também ela se desdobra e desenvolve num duplosentido: prevenção geral positiva ou de integração e prevenção geralnegativa ou de díssuasão.

§ 102. Prevenção geral positiva ou de integração significa quea pena é um meio de interpelar, a sociedade e cada um dos seus mem-bros, para a relevância social e individual do respectivo bem jurídicotutelado penalmente; por outras palavras, a pena serve a função posi-tiva de interiorização ou aprofundamento dessa ínteríorízação dosbens jurídico-penais. Ora, esta função da pena começa por se reali-zar com a criação da lei criminal-penal (interpelação legal) e con-suma-se com a aplicação judicial da pena e sua execução (interpelaçãojudicial e fáctica).

Naturalmente que quanto mais importante for o bem jurídico,mais intensa deve ser a interpelação. E, por isto, necessariamente quequanto mais grave for o crime (mais valioso o bem jurídico a prote-

j·Oir.l'enal

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66 Parte [ - Quesrões Fundamentais

ger) mais grave terá de ser a pena legal, e, no geral, também maior apena judicial.

Esta dimensão de interiorização torna-se. mais necessária relativa-mente às condutas lesivas de bens jurídicos que, embora merecedores datutela penal, a consciencialização da sua importância, para a vida dasociedade e das pessoas, ainda não é suficientemente profunda e gene-ralizada. Tal é o caso de muitos dos bens jurídicos protegidos pelodireito penal secundário ou económico-social (p. ex., direito penal doambiente, fiscal, da. segurança social).

Mas a prevenção geral positiva tem, ainda, a dimensão ou objec-tivo da pacificação social ou, por outras palavras, do restabelecimentoou revigorarnento da confiança da comunidade na efectiva tutelapenal estatal dos bens jurídicos fundamentais à vida colectiva eindividual.

Esta mensagem de confiança e de pacificação social é dada, espe-cialmente, através da condenação penal, enquanto reafirrnação efectivada importância do bem jurídico lesado.

§ 103. Mas também, da mesma fOIIDa que será irrealista conside-rar que a dissuasão individual não é uma função (um "fim") da pena,também não é menos irrealista afirmar que a dissuasão geral não é umdos sentidos ou (unções da pena, mas somente um seu efeito, lateral.Entendo que a pena também tem uma função de prevenção geralnegativa ou de díssuasão.

§ 104. Consideremos, agora, como intervêm e como se relacionama prevenção especial (positiva e negativa) e a prevenção. geral (positivae negativa) na determinação, legal e judicial, da pena, e na escolha daespécie de pena.

A resposta a esta questão parece-me dever ser a seguinte: o objec-tivo da pena, enquanto meio de protecção dos bens jurídicos, é a pre-venção especial, positiva e negativa (isto é, de recuperação social e/ou dedissuasão). É este o critério orientador, quer do legislador quer do' tribunal.

E, assim, quanto ao legislador, ele deve apresentar e, efectivamente,apresenta quer molduras penais suficientemente amplas, quer urna rela-tivamente ampla gama de espécies de penas. E, quanto ao juiz, deve esteseguir o critério estabelecido no art. 40,°-1-2: parte, e nos outros arti-

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Titulo I - o problema criminal-penai 67

gos acima já referidos. Por conseguinte, a determinação da medida dapena e a escolha da espécie da pena, quando legalmente permitida,reger-se-à pelo objectivo e critério da prevenção especial: recuperaçãosocial do infractor (prevenção especial positiva), desde que tal objectivonão seja incompatível com a necessidade mínima de dissuasão individual.Ou seja: o "fim" é a reintegração social do infractor, fim este que tem,como limite mínimo, a eventual necessidade de dissuasão do infractor daprática de futuros crimes.

§ 105. Porém, este critério da prevenção especial não é absoluto,mas antes duplamente condicionado e limitado: pela culpa e pela pre-venção geral.

Condicionado pela culpa, no sentido de que nunca O limite máximoda pena pode ser superior à "medida" da culpa, por maiores que. sejamas exigências preventivo-especiais. Isto é: mesmo que a perigosidade cri-minal do delinquente exigisse uma pena maior do que a gravidade daculpa, em ordem a uma adequada recuperação social do delinquentee/ou a uma socialmente necessária dissuasão do mesmo delinquente,nunca a pena pode ser superior à culpa. Numa palavra, a culpa cons-titui o limite máximo da pena determinada pelo critério da pre-venção especial.

Condicionado pela prevenção geral, no sentido de que nunca olimite mínimo da pena (ou a escolba de urna pena não detentiva) podeser inferior à medida da pena tida por indispensável para garantir amanutenção da confiança da comunidade na. ordem dos valores jurí-dico-penais violados e a correspondente paz jurídico-social, bem comopara produzir nos potenciais infractores uma dissuasão mínima. Emsíntese: a prevenção geral constitui o limite mínimo da pena deter-minada pelo critério da prevenção especial.

§ 106. Este limite mínimo da pena, imposto pelo fim ou necessi-dade da prevenção geral, coincide com o limite mínimo da moldurapenal estabelecida pelo legislador para o respectivo crime em geral.

Mas também, para o caso concreto, o legislador estabeleceu umlimite mínimo) em nome do mínimo da prevenção geral indispensável,limite que deverá ser respeitado pelo tribunal. São precisamente oscasos em que a pena concreta a aplicar seja superior a 5 anos de prisão,

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68 Parte [ - Questões Fundamentais

casos em que, mesmo que não haja nenhumas necessidades preventivo--especiais de recuperação social e de dissuasão individual' (porque nãohá qualquer fundado receio de reincidências), o tribunal não ·pode dei-xar de condenar na respectiva pena de prisão superior a.5 anos, uma vezque não é possível a suspensão 'da execução da pena (art. 50."-1), nem asua substituição por uma outra pena (art. 43.0 S5} Isto será a regra noscasos de crimes muito graves, embora possa haver excepções; quandohouver razões para a atenuação especial (art. 72.°), e desta atenuaçãoresulte a aplicação de uma pena concreta não superior a 5 anos de prisão.

Mesmo nos casos ele crimes de média ou de pequena gravidade, ouseja, de forma mais rigorosa, nos casos de penas concretas de prisãomédias ou curtas, também se afirma a exigência mínima da prevençãogeral. Quero dizer: nestes casos, mesmo que não se verifique a neces-sidade de prevenção especial (positiva e/ou negativa), a punição nãodeixará de existir, por força da exigência mínima da prevenção geral (deinterpelação-consciencialização da comunidade da importância dos bensviolados, e/ou de dissuasão dos membros da mesma comunidade).

Assim, é que, se, por um lado, as penas curtas de prisão (i. é, as nãosuperiores a 6 meses - agora, após a Revisão do CP de 2007, devendoentender-se: não superiores a 1 ano) e as penas médias de prisão (as nãosuperiores a 3 anos - agora, devendo entender-se: não superiores a5 anos) não devem ser aplicadas, quando não existir, no caso concreto,a-necessidade ou finalidade preventivo-especial (positiva e/ou negativa);já, por outro lado, por imposição da necessidade de um mínimo de pre-venção geral (positiva e/ou negativa), elas terão de ser substituídas pelapena de multa, por "permanência na habitação", ou pelas penas de pri-são "por dias livres" ou em "regime de semidetenção", ou por "pena sus-pensa" na sua execução (arts. 43"-1, 44.0-I-a), 45.°-1, 46.'°-1 e 50.°-1).Portanto, embora, nestes casos, se verifique a substituição por penasmais leves, não deixa, contudo, de haver punição. E tanto é assim que,se o condenado, p. ex., não pagar a multa, esta será substituída ou porprisão' (art, 49.°) ou por trabalho (art, 48."). Esta, digamos, puniçãomínima é fundamentada nas exigências mínimas da prevenção geraL

§ 107. Este discurso sobre a prevenção geral (positiva e negativa)como constitutiva do limite mínimo, abaixo do qual não pode descer apena, mesmo que não se verifique a necessidade preventivo-especial,

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TItulo 1 - O problema critninal-penal 69

positiva e/ou negativa, não é contraditado pela figura da dispensa depena, prevista 110 art. 74."-1. Com efeito, além de se exigir, como pres-suposto da dispensa de pena (prisão não superior a 6 meses, ou multanão superior a 120 dias), que a ilicitude do facto e a culpá do agente'sejam diminutas, e que não haja necessidade preventivo-especial (des-necessidade que se infere da circunstância do dano ter sido reparado),exige-se, ainda, que a tal dispensa da pena não se oponham razões deprevenção. Ou seja: é (também) pressuposto da não aplicação da penaa não existência da necessidade de prevenção geral (positiva e/ou nega-tiva). Daqui resulta a conclusão de que as razões de prevenção geralpodem impedir a dispensa da pena, isto é, a pura e simples isenção ounão aplicação da pena, apesar de não se afirmar, no caso concreto, qual-quer necessidade preventivo-especial .

Conclusão: não havendo necessidade de prevenção geral, e umavez que também não existe necessidade preventivo-especial, logicamente

. que não deverá ser aplicada qualquer pena.

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SECÇÃO IV

AS MEDIDAS DE SEGURANÇA

1. Génese histórica e progressiva inclusão das medidas ele segu-rança nos Códigos Penais

§ 108. Quando falámos (supra, § 47 5S.) da Escola Positiva,vimos que esta reagiu, frontal e radicalmente, contra o pensamentojurídico-críniinal da Escola Clássica, propondo a trilogia determinismo- perigosidade - medidas de segurança em vez da trilogia liber-dade - culpa - pena. Isto é, a sociedade, através do poder estatal, sópodia defender-se dos factos antissociais, chamados crimes, através demedidas de segurança, e não mediante a aplicação de penas, pois queestas, além de constituírem, para o delinquente, um castigo injusto (umavez que ele não tinha culpa pelo facto que praticou), seriamtambém ine-ficazes para a defesa da sociedade (pois que as penas abstralam dascausas, endógenas e exógenas, da perigosidade criminal do infractor).

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70 Farte I - Questões Fundamentais

Nesta linha positivístico-criminal, a Escola Positiva defendeu que,em y:ei das tipologias dos factos, o direito criminal devia' preocupar-see caracterizar as tipologias dos delinquentes e respectivas perigosida-des criminais, uma vez que os factos criminais praticados eram mero sin-toma; ou indício da perigosidade; por outro lado, e numa sequência coe-rente, as consequêncías jurídicas do crime, i. é, a forma de o Estado seproteger contra o delinquente, só poderiam ser medidas de segurança.Estas tinham por objectivo principal a defesa da sociedade, e por objec-tivo complementar o tratamento, médico-psiquiátrico ou psicológico--social, das causas da perigosidade criminal do infractor, a não ser queestivesse em causa um delinquente incorrigível - caso em que a medidade segurança apenas cumpria a sua função principal, neutralizando ou ino-cuizando o delinquente incorrigível através do internamento que pode-oria vir a ser perpétuo. .

Urna vez que as medidas de segurança (da sociedade) tambémdeviam, em princípio, procurar o tratamento científico do delinquente,passaram a ser designadas, também, por medidas de segurança e tra-

tamento.

§ 109. Apesar da rejeição dos pressupostos deterministas (do com-portamento humano em geral, e da conduta criminosa em especial) daEscola Positiva, e das consequências político-criminais que esta escoladeles retirou, a verdade é que a figura das medidas de segurança não maisdeixou de interessar à doutrina jurídico-penal, acabando por, progressi-vamente, vir a .ser acolhida pelos legisladores, nos respectivos CódigosPenais, ao lado das penas. Dado o seu carácter pioneiro, é legítimoreferir Carlos Stoss, autor que, pela primeira vez, em 1893, formulou, noseu Projecto de Código Penal suíço, um verdadeiro sistema de medidasde' segurança, ao lado do tradicional sistema de penas.

2. : O sistema monlsta e o sistema dualista das reacções criminais

§ 110. Apesar da introdução da categoria das medidas de segurançano direito criminal, foi, desde os fins do séc, XIXlprincípios do séc. XX,entendimento dominante que aos imputáveis "normais" só deviam seraplicadas penas, pois que, tratando-se de infractores com capacidade

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Título I - O problema criminal-penal 7l

de avaliação da ilicitude dos seus actos e de livre decisão, eles eram cul-pados e, consequentemente, sancionáveis com uma pena ("castigo"); já,quanto aos ínimputáveis, a sociedade só tinha legitimidade para sedefender deles através de medidas de segurança, que não de penas,pois que estas pressupõem a culpabilidade que, nos inimputávcis, nãoexiste.

Portanto, em relação aos claramente imputáveis e aos manifestamenteinimputáveis, não havia problema, pois era lógico que, considerado,relativamente aos primeiros, o crime como produto' do mau exercício dasua liberdade de opção e decisão (pelo ilícito), era legítima a sua puni-ção; e, quanto aos segundos, os inimputáveis, o Estado só tinha legiti-midade para se defender, a si e à sociedade, através de medidas nãopunitivas, mas sim de medidas administrativas de segurança que visavama neutralização (pelo internamento) e eventual- tratamento das causas(anomalias psíquicas ou graves perturbações da personalidade) da peri-gosidade criminal.

§ 111. o. problema complicou-se quando, a partir das primeirasdécadas do séc, XX, se constatou e tomou consciência de que haviauma categoria intermédia de delinquentes que, digamos, no momentoda prática do facto criminoso, nem eram plenamente imputáveis nemeram plenamente inimputáveis: não eram plenamente imputáveis, porque,diferentemente dos infractores comuns ou "normais", eram afectadospor determinadas tendências para a prática de crimes, o que lhes redu-zia a capacidade de avaliação e/ou de decisão; não eram plenamenteinimputáveis, pois que, apesar de diminuída a referida capacidade,estaexistia.

Esta categoria de delinquentes passou a ser designada por imputáveisperigosos ou delinquentes por tendência.

Ora, é em relação a esta categoria intermédia de delinquentes que,desde princípios do séc, XX até à actualidade, se levantou a discussãopolémica sobre o monismo ou dualismo das reacções criminais: aos"imputáveis perigosos" devem aplicar-se só penas ou penasmais medi-das de segurança?

§ 112. Os defensores do sistema dualista diziam e dizem, em síntese:sendo a medida da pena limitada pela medida da culpa, a pena do impu-

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72 Parte I - Questões Fundalllernais

tável perigoso tem de ser menor do que a que seria aplicável ao imputável"normal", pois que as suas tendências para o crime, congénitas ou adqui-ridas, lhe diminuem a liberdade de decisão e, consequentemente, a culpa;mas a defesa da sociedade e dos bens jurídicos não fica posta .em causa, namedida em que à pena, em função da culpa, há que adicionar a medida desegurança, em função da perigosidade criminal do infractor.

§ 113. A este dualismo das consequências jurídicas do crime, pra-ticado por um imputável perigoso ou por tendência, contrapuseram e con-trapõem (embora o seu número tenha vindo a diminuir) os defensores dosistema monista que, mesmo aos imputáveis perigosos ou por tendência,só devem ser aplicadas penas. Porém, uma vez que estes autores tambémdefendem uma concepção ético-jurídica da pena, no sentido de que não hápena sem culpa e de que a medida ou gravidade desta constitui o limitemáximo da pena, forarne são confrontados com a seguinte objecção poli-tico-criminal: se a pena dos imputáveis perigosos tem de ser menor, porforça da sua menor censurabilidade ou culpa, em virtude das suas ten-dências para o crime, então, vai ser precisamente em relação à categoriados delinquentes mais perigosos para a sociedade e para os seus bensjurídico-penais que a sociedade menos se pode proteger?1

Exposta a esta fundamentada e evidente contradição politico-criminal,os defensores da teoria ético-rnonista procurarn contorná-la através dacriação e construção da culpa referida à personalidade, ao lado e a acres-cer à tradicional figura da culpa referida e aferida 110 momento do facto.

§ 114. Os primeiros autores (p. ex., Mezger, Bockelmann, EduardoCorreia) apelam à culpa da vontade referida à personalidade, consi-derando que o imputável perigoso é culpado pelas suas tendências parao crime, urna vez que estas são o resultado de um reiterado exercício dolivre-arbítrio pelo ilícito criminal. Isto é, a personalidade perigosa doimputável com tendências para o crime seria o resultado de múltiplasdecisões da vontade livre do delinquente. Ou seja: a personalidadeperigosa do imputável com tendências para o crime é o produto dasoma de múltiplas "culpas da vontade" do delinquente. Assim, o impu-tável perigoso é objecto de um juizo de culpa pela não formação dapersonalidade adequada ao efectivo respeito pelos valores fundamentais

da vida em sociedade.

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Por esta via, os defensores do sistema monista pensaram ter resol-vido a mencionada objecção político-criminal que os dualistas lhe assa-cavam. É que, agora, contra-argumentavam: a defesa social não fica com-prometida com a via monista da exclusiva aplicação de penas, mesmono caso de imputáveis perigosos, dado que, se é certo que a culpa refe-rida ao momento da prática do facto ilícito é menor e, assim, menor éa pena, não se pode esquecer que a esta menor pena há que somar a penapela culpa pela não formação ela personalidade, acabando o tribunal porter de aplicar ao infractor imputável perigoso uma pena que não é infe-rior à que caberia a um imputável não perigoso.

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§ 115. Numa segunda fase; outros autores. (p. ex., Nowakowski,Gallas, Fígueíredo Dias), inspirando-se nas diversas correntes da filosofiaexistencialista (p. ex., K. Jaspers, G. MareeI, Sartre, Baptista Machado),defenderam uma nova concepção da culpa referida à personalidade, con-cretamente: uma culpa da personalidade. Partindo de uma "aberturaoriginária existencial", isto é, de uma plasticidade antropológica, a cujamo delação o homem, cada homem, não pode furtar-se, cada um vai-setornando responsável, ao longo da existência (ec-sistere), pelo "eu",pela personalidade que vai, necessariamente, construindo.

Neste contexto antropológico filosófico-existencial, muitas das ten-dências delinquentes dos imputáveis perigosos são O resultado censurá-vel do não cumprimento do dever existencial de "edificação" de uma per-sonalidade consciente e respeitadora dos valores essenciais em queassenta a vivência comunitária. Excluídas deste círculo da culpa dapersonalidade ficariam apenas as tendências criminosas congénitas eincorrigíveis.

§ 116. A verdade, porém, é que, pese embora o bom fundamentoantropológico desta culpa da personalidade, nem esta nem a culpa pela nãoformação da personalidade conseguem resolver o problema da categoriados imputáveis perigosos ou por tendência, no quadro do sistema monista.

Quer a teoria da culpa (da vontade) pela não formação da perso-nalídade quer a teoria da culpa (existencial) da personalidade não dão

,resposta suficiente ao problema dos imputáveis perigosos. Com efeito,se é certo que a vida em sociedade, que é o habitat natural do homem,faz recair sobre este o dever de educar (ex-ducere, isto é, modelar-se a

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74 Parte J - Queslões Fundamentais

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partir, das possibilidades múltiplas que se nos deparam, ao entrarmosna existência) a sua personalidade no respeito do "mínimo ético-jurídicofundamental", não é menos certo que a pedagogia e a psicossociologianos demonstram que o homem, no seu modo-de-ser, é, em grandemedida, o fruto das suas "circunstâncias", e que estas, nas primeiras edecisivas fases da existência de cada um, não são escolhidas por ele, mas,sim, impostas do exterior, impostas pela sociedade.

Em resumo, quer-se dizer o seguinte: não nascemos determinadospara o "bem" ou para o "mal", mas sim "abertos" à modelação da per-sonalidade num sentido ou noutro; só que a rnodelação ou estruturaçãoaxiológico-existencial se realiza nas fases iniciais da infância, e, portanto,num tempo em que o ser humano, ainda em formação da personali-dade, não é ele a decidir, mas sim os que o circundam, a sociedade emgeral, e a família e a escola em especial. Daqui, o sempre renovado apeloà consciência da importância determinante que as instâncias de sociali-zação primária (a família e a escola infantil) têm na formação da per-sonalidade. Isto é, não nascemos livres mas potencialmente livres, e apassagem da potência ao acto de ser livre depende, no início da exis-tência, mais dos outros do que de nós mesmos; pois que, quando atin-gimos a "idade da razão", a idade da opção consciente, já estamos rela-tivamente definidos na estrutura da nossa personalidade e, portanto,condicionados nas nossas decisões. Em conclusão, a abertura existen-cial com que nascemos, responsabiliza, em primeiro lugar, a família ea sociedade.

Transposto este discurso para o nosso problema das consequênciasjurídicas aplicáveis aos imputáveis perigosos ou por tendência, teremosde concluir que a culpa referida à personalidade não resolve O pro-blema, pois que esta culpa, em muitos casos de tendências adquiridas,não passa de uma ficção.

A conclusão não pode deixar de ser a de que o sistema monista (sópenas) deixa a sociedade, e os seus bens jurídicos, parcialmente des-protegida diante dos imputáveis perigosos ou por tendência. Pois. apena tem, necessariamente, de ser menor que a aplicável ao imputável"normal"; e este déíice de pena não pode, em muitos casos de imputá-veis perigosos, ser compensado por um acréscimo de pena em função deuma perigosidade culposa, precisamente porque esta perigos idade podenão poder ser censurável ao delinquente.

Título J - O problema criminal-penal 75

3. A positívação do sistema dualista no Código Penal de 1982

§ 117.. Como já escrevi em 1990 (8), o CP de 1982, arts, 83.° a 90.0,ao consagrar a pena relativamente indeterminada para os delinquentespor tendência, isto é, para os delinquentes imputáveis especialmenteperigosos, adoptou o sistema dualista. E esta afirmação fundamenta-seem duas razões ou argumentos: por um lado, o que separa o sistema dua-lista do sistema monista é, como já foi esclarecido, o modo como cadaum enfrenta a questão dos "imputáveis perigosos ou por tendência",advogando o primeiro sistema a aplicação de pena mais medida de segu-rança, enquanto que o segundo, o sistema monista, persiste na aplicaçãoexclusiva de penas; ora, e por outro lado, a nossa pena relativamente inde-terminada é, real e materialmente, um misto, um compósito de penamais medida de segurança; logo, a conclusão inevitável de que, a par-tir de 1982, o nosso Código Penal passou a ser dualista, apesar da "burlade etiquetas", isto é, da designação "pena" que pode enganar o menosatento à substância das figuras jurídicas.

Na verdade, na "pena" relativamente indeterminada, a parte da pri-vação da liberdade correspondente aos dois terços da pena que concre-tamente caberia ao crime cometido (arts. 83.°-2, 84.°-2 e 86.°-2) é, real-mente, uma pena determinada pela culpa do facto. Só que, por forçada tendência para o crime, esta culpa é considerada menor do que aque existiria e se afirmaria, se o crime tivesse sido praticado por umimputável "normal" ou ocasional e, por consequência, também a pena temque ser menor, isto é, igual aos referidos dois terços. Já o acréscimo deprivação da liberdade, que pode ir até 6, 4 ou 2 anos (arts. 83.°-2, 84.0-2e 86.°-2), é uma autêntica medida de segurança, assente e justíflcada(iustificada quanto à sua existência e aplicação, mas injustificada (9), porexagerada, quanto à sua possível duração) pela perigosidade criminaldo infractor, perigosidade demonstrada pela reiteração criminosa ante-rior (arts. 83."-1, 84.°-1 e 86.°-1).

(6) Em Sucessão de Leis Penais, 1.' ed., p. 9.(9) No sentido da excessiva e, por isso, inconstitucional amplitude da duração

da pena relativamente indeterrninada, ver TAIPA DE. CARVALHO, Sucessão de Leis Penais,3,' ed., 2008. p, 111.

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76Pa.rte I - Questões Flllldame/lt(l;s

4. O fim e as funções das medidas de segurança

§ 118. O fim, no sentido de verdadeiro objectivo ou "fim-último",das medidas de segurança é a protecção dos bens jurídico-criminais.Assim o refere a primeira parte do n." 1 do art, 40." Mas; diga-se, talreferência era desnecessária, pois que é evidente que, pressupondo asmedidas de segurança a perigosídade crímínal(que não apenas a peri-gosidade social) e traduzindo-se as verdadeiras e genuínas medidas desegurança na privação ou restrição do direito fundamental e constitu-cionalizado da liberdade, elas só se justificam como meio ao serviçodo [rol de protecção de outros bens jurídicos fundamentais, Ou seja:o princípio constitucional da proporcionalidade (CRP; art. 18.°-2)tanto se aplica às restrições da liberdade do infractor imputável (seja esteperigoso ou ocasional) como às restrições da liberdade do inirnputável,pois que este não deixa de ser titular dos direitos fundamentais por tera infelicidade de ser illimputável.

§ 119. As funções, objectivos imediatos ou "fins-meios", das medi-das de segurança são de prevenção especial de recuperação social doinimputável perigoso, através do tratamento da anomalia psíquica (casodos inimputáveis) ou da correcção da tendência criminosa (caso dosin1pl.ltáveisperigosos por tendência) e, ainda, de ínocuízação ou neu-rralízação da perigosidade criminal do infractor, através do interna-mente, enquanto aquela perigosidade persistir.

§ 120. Quanto à função de prevenção geral, há que distinguir ocaso dos inimputáveis do caso dos imputáveis perigosos ou por ten-dência.

§ 121. No caso dos inimputáveis, a única função que a medidade segurança desempenha é a de prevenção geral positiva de pacifi-cação social. Quebrantada ou perturbada a paz jurídica social pela prá-tica de um ilícito típico grave, compreende-se que, independentementedo eventual desaparecimento da perigosidade criminal, haja um mínimode tempo de privação da liberdade.

Assimse compreende o disposto no art, 91.°-2: «Quando o facto pra-ticado pelo inimputável conesponder a crime contra as pessoas ou a

Tttulo I - O problema criminal-penal 77

crime de perigo comum puníveis com pena de prisão superior a 5 anos,o internamente tem a duração mínima de 3 anos, salvo se a libertaçãose revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social.».- Diga-se que, embora recusemos que esta disposição configure urnapresunção absoluta de persistência da perigosidade (pois, se o fosse,então não poderia haver a ressalva da não imposição desse mínimode 3 anos), não deixamos de considerar excessiva essa duração. É que,para além de haver legislações (como, p. ex., o CP espanhol) que nãoestabelecem qualquer mínimo, acho que é exagerada esta duração, bas-tando, para a comprovação desta crítica, pensar que podem estar em causailícitos criminais cujos limites mínimos da pena aplicável são claramenteinferiores aos referidos 3 anos (cf arts, 272.°-2, 273.0-c), 277.°-1 e 280,"-a)),

Portanto, embora a medida de segurança aplicada a inimputáveistenha por primeira e principal função a prevenção especial de socialização(recuperação social) do inimputável e de neutralização da sua perigosi-dade criminal, ela também desempenha urna função secundária de pre-venção geral de pacificação social. É secundária esta função e, por isto,é que ela só se afirma nos casos de ilícitos criminais muito graves.

Donde, a conclusão final de que, nos casos em que há a necessidadesocial de pacificação, a respectiva dimensão da prevenção geral consti-tui o limite mínimo da medida de segurança privativa a liberdade.

,§ 122. Não partilho a ideia de que a medida de segurança aplicadaa inimputáveis desempenha, também, a função de prevenção geral de inte-gração no sentido de protecção da confiança comunitária nas normas,assim como rejeito que esta função esteja, patente ou latentemente, con-tida na mencionada disposição do n." 2 do art. 91.°, quando se refere à"defesa da ordem jurídica". .

A medida de segurança aplicada a inimputáveis não tem a fun-ção ou objectivo de prevenção geral de íntegração - seja no sentidode interiorização da relevância dos bens jurídicos violados, seja no sen-tido de tutela ou reforço da confiança da comunidade na vigência efec-tiva das normas penais -, precisamente porque nem uma, nem a outradestas dimensões da prevenção geral de integração são postas em causaou abaladas pelo ilícito criminal praticado pelo inimputável, A comu-nidade dos imputáveis sabe bem que o inimputável não é ético-juridi-camente motivável pelas normas penais. Logo, não se sente afectada,

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78 Parte I --Questões FWldamemaü

na sua consciência dos valores lesados pelo inimputável e na sua con-fiança na vigência efectiva das normas penais, pelo ilícito praticadopelo inimputável,

A única coisa que a comunidade sente, com o ilícito grave come-tido pelo inimputável, é o medo, a perturbação, o abalo social. E, poristo, é que poderá ter de haver um mínimo de duração da medida desegurança de internamente, para a respectiva pacificação social. .

§ 123. E a referência do art. 91.°-2 à «defesa da ordem [urí-dica» não deve ser interpretada no sentido da atribuição à medida desegurança da função de prevenção geral positiva de tutela da confiançacomunitária nas normas, mas sim no sentido de prevenção especial deinocuização da perigosidade do inimputável.

§ 124. Em síntese: a duração mínima de três anos da medida desegurança de internarnento não se impõe; quando se verifiquem, cumu-lativamente, a desnecessidade preventivo-especial de neutralização dapcrigosidade criminal do inimputável para os bens jurídicos (desneces-sidade a que se refere o art. 91.°-2, parte final, quando diz que o mínimode 3 anos não se aplica, quando a libertação for compatível com a«ordem juridica») e a desnecessidade' preventivo-geral de pacificaçãosocial (desnecessidade a que se refere a mencionada disposição legal,quando alude à compatibilidade da libertação com a «paz social»),

Conclusão: a exigência da duração mínima de 3 anos da medida desegurança de internamento desaparece, quando a libertação não consti-ruir perigo para os bens jurídicos, segundo um juizo de prognose, feitopelo tribunal, com apoio em parecer clínico-psiquiátrico, e não pertur-bar a paz social.

§ 125. Já, no caso dos imputáveis perigosos ou por tendência(CP, arts. 83." a 90.°), pode reconhecer-se que a parte de privação da liber-dade correspondente à medida de segurança (cf. § 117) desempenha, paraalém da função primária de prevenção especial (na dimensão de recuperaçãosocial, mas também no vector de neutralização da perigosidade criminal),a função secundária de prevenção geral, quer no sentido de pacificaçãosocial, quer no sentido de revigoramento da confiança jurídica da comu-nidade:na eficácia da tutela estalaI dos bens jurídico-criminais.

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Tttuio I - o problema criminal-pe"al,.~ 79

É que, embora também, nestes casos, a medida de segurançapressuponha a perígosidade criminal e vise actuar sobre esta perigo-sidade, não se pode esquecer que estamos perante delinquentes impu-táveis. Assim, apesar de se pode. e, porventura, dever considerarque tais delinquentes não são culpados dessa perigosidade, não deixarãoeles de "sentir" a razão do acréscimo .da medida de segurança à penaem que (em nome da culpa do facto) também são condenados; e,nesta mesma linha, também a sociedade verá reforçada a sua con-fiança na eficaz protecção dos bens jurídicos-penais, bem como apro-fundará a conscieucíalízação da relevância pessoal e comunitária dosbens jurídicos violados.

5. Medidas de segurança não privativas da liberdade aplicáveis aimputáveis?

§ 126. Que as há,há, bastando consultar-o CP, arts. 100." a 103. ";interdição de actividades, cassação da licença ou interdição da conces-são de licença de condução de veículo com .motor.

Que, por outro lado, estas medidas de segurança tanto podem seraplicadas a inimputáveis corno a imputáveis, eis também o que resultada leitura dos arts, 100.°-1 e 101.°-1 e 4.

Que, finalmente, não se trata de uma "burla de etiquetas", tal resultado n." 2 do art, 100.° (para o qual remete o n." 5 do art. 101."), ao per-mitir que o período de interdição da actividade, da cassação da licençaou da interdição de concessão da licença, possa ser prorrogado por outroperíodo de 3 anos, se o «tribunal considerar que aquele [o período deinterdição em que foi condenado] não foi suficiente para remover operigo que fundamentou a medida [de interdição]»,

Logo, à face do direito positivo, estamos diante de uma medida desegurança, e não de uma pena acessória.

§ 127. Sendo tudo isto verdade, no sentido de que é o que está esta-belecido no CP actual, não deixa de ser questionável este regime e estaqualificação como medidas de segurança das interdições de actividadese de licença de condução, quando estão em causa crimes cometidospor imputáveis.

....

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80Parte { - Questões Fundamentais

Com efeito, os pressupostos e a duração destas chamadas "medidasde segurança", quando estejam em causa imputáveis, não diferem dospressupostos e dos critérios da determinação concreta das penas aces-sórias. E, quanto à prorrogação, não se vê qual a vantagem e a neces-sidade práticas de tal prorrogação, para além de não se ver como seráviável o juizo prognóstico em que terá de se fundamentar a referida

prorrogação.

§ 128. Sinceramente, parece que a prorrogação teve apenas a fina-lidade 'de "demonstrar" que tais medidas são mesmo medidas de segu-rança, e não penas acessórias. Salvo melhor opinião, desde que funda-mentada, entendo que, no tocante aos imputáveis, a qualificação destasinterdições como medidas de segurança, em vez da sua qualificaçãocomo penas acessórias, é des/lecessária, é contraditória com o princí-pio de que, em regra, as medidas de segurança só são aplicáveis a inim-

putáveis, e parece ser artificial.

§ 129. É desnecessária, pois que os objectivos político-criminaisde neutralização temporária do «fundado receio de que possa vir a pra-'ticar outros factos da mesma espécie» no exercício das respectivas acti-vidades ou na condução rodoviária, e de dissuasão do infractor-conde-nado da prática de ilícitos criminais no exercício da sua actividade ouna condução mOlolizada, são objectivos inerentes à ratio das penas aces-sórias. Também estas só devem ser aplicadas (acrescendo à pena prin-cipal), quando o tribunal, na sua apreciação discricionária mas vinculada,entender que elas são necessárias para realizar os mencionados objecti-vos poHtico-criminais. Por isto é que a própria Constituição, art. 30.°-4,proibiu as penas acessórias automáticas.

§ 130. É contrária ao princípio geral de que as medidas de segu-rança têm como destinatários naturais os inimputáveis, ressalvando-se ape-nas os cásos dos semi-imputáveis e dos imputáveis perigosos ou portendência, em que à pena podia acrescer (caso dos semi-imputáveis) ouacrescerá mesmo (caso dos imputáveis perigosos) uma medida de.segu-rança. Mas repare-se que o CP, arts. 83.°-1,84.°-1 e 86.°-1, faz depen-der, e bem, a aplicação da medida de segurança (a parte da privação daliberdade não fundamentada na culpa - cf. § 117) da perigosidade

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Thulo [ - o problema criminal-penal 81

"demonstrada" pela prática anterior de um ou vários crimes. Pressupostoeste (a prática anterior de um ou mais crimes no exercício da actividadeou profissão, ou na condução rodoviária) que não é exigido para a apli-cação. das. ditas medidas de segurança não. privativas da liberdade, talcomo não é exigido para a aplicação das penas acessórias previstas nosarts. 66.0 a 69.°

Mais: que razão justifica a distinção que o CP estabelece entre umcrime cometido por um funcionário público ou equiparado, no exercício.da sua actividade pública, e um crime cometido por um profissionalprivado no exercício da sua actividade privada? Porquê estabelecerpara aquele a possibilidade de aplicação adicional de uma pena acessó-ria de proibição temporária do exercício da função (arts. 66.° e 67.°), epara este (o profissional privado) estabelecer uma medida de segurançade interdição temporária do exercício da sua actividade (art, 100.0)?

§ 131. Parece ser artificial, pois que, pelo que se disse, não hárazões político-criminais para se qualificar estas proibições e interdi-ções como medidas de segurança, quando estejam em causa imputá-veis. Em rigor material, estas "medidas de segurança" são verdadeiraspenas acessórias. E, assim, é injustificada a possibilidade, conferida aotribunal, de poder prorrogar as referidas interdições por um períodode 3 anos (art. 100.°-2). Injustificada e perigosa, uma vez que tal pror-rogação, a ser decretada, não poderá deixar de depender de um juizoquase arbitrário do tribunal, na medida em que o «fundado receio» deque possa vir a reiterar é uma fórmula (um critério?!) demasiado vaga,que tudo permite. Ora, há que não esquecer que estão em causa direi-tos fundamentais.

§ 132. Conclusão: estas medidas de segurança não privativas daliberdade (arts. 100.0 a 103.°) só são razoáveis, quando estejam em causainimputáveis; relativamente a imputáveis, elas são desnecessárias, incoe-rentes, e perigosas quanto à possibilidade da sua prorrogação. Tendo emconta os pressupostos e os objectivos da sua aplicação, a sua qualifica-ção e o seu regime deviam ser o das penas acessórias.

§ 133. Diga-se, para terminar, que, assim, cai por terra o argumentoque Roxin pretende retirar da "medida de segurança" de inibição de

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82 Parte I - Quescões FUlldamenrai:r

conduzir (ou de exercer determinada actividade) para fundamentar asua afirmação de que também as medidas de segurança em geral têm umaf1U1Çãode prevenção geral de integração e de dissuasão. Com efeito, seé evidente que, p. ex., a inibição de conduzir «tem, na maior parte doscasos, um efeito mais intimidante sobre a comunidade [dos conduto-res] do que apena aplicável ao delito de tráfico», isto é, do que a penade multa, a verdade é que esta inibição de conduzir só, por uma trocade "etiquetas", é que se pode chamar medida de segurança. Ela é, emrigor; uma pena acessória que, de facto, quando acresce "li uma penaprincipal de multa, é mais dissuasora, quer individual quer cotectivamente,

do que esta.

§ 134 .. Se, em nosso entender, há pouca razoabilidade teórica e polí-tico-criminal nestas medidas de segurança não privativas da liberdade apli-cáveis a imputáveis, também padecem de falta de razoabüídade prática.

Vejamos: o art. 103.°-1 diz o seguinte: «Se, decorridos os prazosmínimos das medidas previstas nos artigos 100,° a 102.", se verificar, arequerimento do interdito, que os pressupostos da. aplicação daquelasdeixaram de subsistir, o tribunal declara extintas as medidas que houver

decretado».Isto nos obriga a rever quais são" as medidas e os seus pressupos-

tos, pois que desaparecidos estes, devem extinguir-se aquelas. E, desdejá, se diga que,selldo os pressupostos a "causa" e as medidas o "efeito",só haverá lógica na extinção destas, se puder fazer-se a constatação deque os presaupostos-causa já não existem.

§ 135. A verdade, porém, é que, tendo em conta a natureza e aduração das medidas e as causas da sua aplicação, causas que precisa-mente as medidas visaram eliminar, jamais é possível- afirmar que estas,as medidas de segurança não privativas da liberdade, eliminaram ascausas-pressupostos da sua aplicação. E isto porque é evidente que nãohá oualquer conexão materia/luncional entre as medidas e os pressu-postos legais da sua aplicação.

Vejamos:

§ 136. No caso das medidas de interdição de actividades (art, 100."),o pressuposto da sua aplicação é o «fundado receio de que possa vir a

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Túulo I - o problema. criminal-penal 83

praticar outros factos da mesma espécie», isto é, o fundado receio de queo condenado venha a cometer novos crimes no exercício da respectivaactividade; e, com base neste receio, proíbe-se o condenado de exercer,durante um certo período, essa actividade.

Ora, como é que é possível afirmar, depois de cumprida uma partedo tempo da interdição, que já não existe o perigo de ele repetir crimesno exercício da sua actividade profissional ou comercial, se precisa-mente a medida de segurança consistiu em impedi-lo de exercer essa acti-vidade? - Não é possível e, por isto, a eventual extinção da medida,antes do seu cumprimento total, só pode fundar-se numa ficção e, por-tanto, não pode deixar de ser arbitrária, pois não há qualquer critério comum mínimo de objectividade que possa fundamentar tal decisão.

Conclusão: não há qualquer relação lógica e funcional entre a natu-reza da medida. e a sua finalidade de eliminar o perigo de reiteraçãocriminosa. E, assim, do mesmo passo que esta ausência de conexão.material-funcional retira qualquer sentido teórico e prático à extinçãoreferida no art. 103.°, igualmente reforça a convicção e afirmação de queesta rotulada, pelo CP, medida de segurança não privativa da liberdadenão é senão uma verdadeira pena acessória, e assim devia ser qualificadae tratada.

§ 137. Diferente, como já o referimos, é o caso da prática de ilí-citos típicos praticados, no exercício de actividades, por alguém que

. veio a ser considerado como inimputável. Aqui, já tem sentido a medidade interdição e a sua eventual extinção, logo' que se prove que a causada interdição (que é a inimputabilidade) deixou de subsistir.

§ 138. No caso da cassação ou da interdição da concessão dotítulo de condução (art. 101.°), o raciocínio é idêntico, e idêntica deveser a conclusão da írrazoabilidade do disposto no art, 103." e da quali-ficação da respectiva medida como medida de segurança, em vez depena acessória.

Em resumo, basta dizer, sob a forma de pergunta: como é possívelque, sendo a medida fundada no receio de reiteração criminosa no exer-cício da condução de veículo a motor, e consistindo a medida na proi-

-bição de conduzir ou de obter título, ou novo título, de condução, se possaafirmar e fundamentar a extinção da medida, antes do termo da interdição,

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84 Parte [ - Questões Fundamentais

se, precisamente até à decretação da extinção da medida, o condutorcondenado esteve impedido de conduzir?!. ..

§ 139. Olhando para o actual art, 102.°, fica-se perplexo: o que pre-tende este artigo? Desde logo, é legítima - face à imperfeição descri-tiva do artigo e tendo em conta que quer o art. 100.° quer o art. 101.° exi-gem, como pressuposto da aplicação das respectivas interdições, acondenação numa pena princípal- a pergunta: a aplicação destas "regrasde' conduta" pressupõe que o infractor seja condenado como reincidente?

Partindo do suposto (suposição que,em direito penal, é sempre deevitar, mas em que, quando é inevitável, a responsabilidade é do legis-lador que não cumpriu o mandato constitucional e político-criminal dadescrição rigorosa dos pressupostos da restrição de direitos individuais)de que a aplicação destas regras de conduta pressupõe a condenaçãonuma pena principal, permanece a mesma pergunta: urna vez que estasregras de conduta (previstas no art. 52.0 para o caso da suspensão da exe-cução da pena de prisão .. .) visam prevenir «a prática de outros ilícitostípicos da mesma espécie», e traduzindo-se elas na proibição de fre-quentar lugares, acompanhar certas pessoas, etc., pois que aquela fre-quência ou este acompanhamento constituirão perigo de reiteração cri-minosa, com que fundamento (que não seja o da arbitrariedade, quenão é critério ... ) pode o tribunal considerar que deixou de existir perigona referida frequência ou acompanhamento, se, até à decisão de extin-ção, o condenado estava proibido de frequentar esses lugares ou deacompanhar essas pessoas, sob pena de desobediência punível comotal? .. Em minha opinião e conclusão, não tem sentido, mais uma vez,o art. 103.°, ea qualificação de tais regras de conduta como medidas de ,segurança é arbitrária.

§ 140, Repare-se, ainda, no seguinte aspecto: enquanto que os 'arts, 100.° e 101.° ainda falam em «fundado receio ... ou inaptidão ...(o que é muito vago para justificar a aplicação de uma medida de segu-rança, pois que esta deve ter sempre como pressuposto uma perígosidadecrimi.nal), este art. 102.° nem sequer refere a exigência de que haja essereceio, apenas condicionando a aplicação das "regras de conduta" à suaadequação para «evitar a prática de outros factos ilícitos típicos damesma espécie» ...

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§ 141. E, se alguém pretender contra-argumentar, dizendo que aperigosidade está demonstrada pela reincidência que o artigo refere e quefundamenta a aplicação destas medidas, então ter-se-á de ripostar,dizendo: se assim é, então temos, por uma lado, uma dupla valoraçãoda circunstância reincidência (pois, é fundamento da agravação da penae, ainda, fundamenta a aplicação de medidas que restringem o direito fun-damental da liberdade de frequentar lugares ou acompanhar pessoas), e,por outro lado, temos uma medida de segurança não privativa (mas res-tritiva) da liberdade fundamentada na culpa (considerada mais grave)do reincidente... '

Se uma tal contra-argumentação fosse assumida pelo direito penalpositivo (e não se considerasse estes desvios à dogmátíca e à politica cri-minal das medidas de segw'ança, que, efectivamente, o nosso CP, nes-tes arts. 100.° a 103.", contém, como .enomalias resultantes de umaimprudência censurável do legislador), teríamos uma subversão dos

. principios jurídicos das medidas de segurança e respectiva dogmática.Subversão, diga-se, teórica e politico-criminalmente, rejeitável, e, prati-camente, desnecessária e perturbadora da própria actividade judicial-decisória.

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§ 142. Conclusão final: relativamente a imputáveis, estas medi-das de segurança não privativas da liberdade deveriam ser consideradascomo penas acessórias e ter o correspondente regime.

6. Pressupostos e duração das medidas de segurança privativas.da liberdade aplicáveis a ínimputáveis

§ 143. A medida de segurança.de·-intemamento· constitui, obvia-mente, uma forte restrição do direito fundamental do inimputável àliberdade, direito que merece a mesma protecção constitucional e.juri-dico-penal que é reconhecida ao imputável.

Compreende-se, pois, que tal restrição esteja sujeita também - ena mesma medida que a restrição da liberdade dos imputáveis - aosprincípios da legalidade, da proporcionalidade (quer na dimensão daproibição de excesso, quer na de indispensabilidade), da igualdade (detratamento em relação ao imputável) e da juriSdicionalidade, quer na

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86 Parte I - Questões Fundcuneruais

aplicação quer na execução da medida de segurança. Ou seja: os mes-mos princípios constitucionais e jurídico-criminais, que regem a aplica-ção e a execução de uma pena, também valem para as medidas de segu-rança aplicáveis a inimputáveis, .

§ 144. Daqui resulta que não tem justificação o disposto noart. 30.°-2 da Constituição e no art. 92"-3 do Código Penal, aoexpressamente permitirem medidas de segurança privativas da liberdadeperpétuas, através de prorrogações por períodos sucessivos de 2 anos.

É que o facto de as prorrogações terem de ser por decisão judicialnão evita a manifesta violação do princípio da igualdade, princípionão só consagrado constitucionalmente (CRP, art, 13.°) mas, já antes, prin-cípio inerente ao Estado-de-Direito, baseado na dignidade da pessoahumana, dignidade que é comum tanto ao imputável como ao inimpu-tável.

§ 145. Objectar-se-á, porventura, perguntando: mas, quando ter-minado o período "normal" da medida de segurança, se se mantiver aperigosidade criminal, hão-de a sociedade e os bens jurídicos ficar expos-tos à perigosidade criminal do inimputável?

A resposta é a de que - apesar da relatividade ou falibilidade dojuizo de prognose psiquiátrica sobre a probabilidade de o inimputávelvir a reincidir em ilícitos criminais graves, e apesar de hoje haver varia-dos fármacos com potencialidades neutralizadoras dessa perigosidade- pode haver necessidade, em nome da defesa social, de manter ointernamente do inimputável; só que, já não através da prorrogaçãosucessiva da medida de segurança, que é uma consequência jurídica daprática de um ilícito criminal, mas sim através de um lnternamentocompulsivo, com base na Lei de Saúde Mental (Lei n." 36/98, de 24de Julho). Portanto, urna medida não criminal, mas administrativa ou pré-delitual, embora, evidentemente, por decisão judicial, suportada pelaavaliação clínica de, pelo menos, dois psiquiatras, nos termos doart. 16." ss. da réferida Lei de Saúde 'Mental,

'§ 146. São dois os pressupostos da aplicação da medida de segu-rança: a prática, pelo inirnputável, de um facto ilícito típico e a perigo-sidade criminal do infractor inirnputável (art. 91.°-1).

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§ 147. Relativamente ao pressuposto «facto ilícito típ íco» , é deregistar que esta designação. foi introduzida pela Revisão Penal de 1995(Dec.-Lei n." 48/95, de 15 de Março), substituindo a designação cons-tante da redacção primitiva do CP de 1982, que era: «facto descritonum tipo legal de crime».

Esta substituição teve o objectivo de tomar claro que não basta que ofacto praticado pelo inimputável seja apenas formalmente típico, exigindo-se,ainda, que seja ilícito. Donde que, agora, é indiscutível que, se O facto pra-ticado for típico mas não ilícito por estar coberto por uma causa de jus-tificação, não poderá ser aplicada qualquer medida de segurança.

Diga-se, aliás, que, já na vigência do texto primitivo de 1982, oentendimento correcto não podia deixar de ser aquele que· a redacção.actual expressamente impõe. Com efeito, a opinião, que se bastava,face à redacção de 1982, com a mera tipicidade formal da conduta, vio-lava o princípio da igualdade, ao considerar irrelevantes para o inim-putável (no sentido de não impedirem a aplicação de medidas de segu-rança) circunstâncias que, para o imputável, impediam a aplicação dequalquer pena, por excluírem a ilicitude do facto descrito num tipo legalde crime. Num exemplo: que justificação poderia haver para negar aoinimputável o direito de legítima defesa?!

§ 148. Questão diferente é a de saber se, também em relação aoinimputável, se aplicam as causas de desculpação, corno, p. ex., oexcesso de legítima defesa por perturbação ou medo não censurável.

Não é este o local próprio para tentar resolver esta questão. Mas sem-pre se adiante que uma posição, que defenda a ínaplicabilidade das causasde desculpação ao inimputável, com base no argumento de que quem não.pode ser culpado também não pode ser desculpado, não será necessariamenteprocedente ou inquestionável. Bastará pensar, contra o eventual tom abso-luto de uma tal opinião, que um inimputável não é necessariamente uma pes-soa irascível ou vingativa E, assim, p. ex., pode o inimputável ter-se exce-dido na sua acção de defesa contra o agressor, em consequência de ummedo ou perturbação tão compreensível e, portanto, tão não censurávelcomo não censurável seria se o agredido fosse um imputável.

§ 149. Mas, para a aplicação de uma medida de segurança, exige-se, além da prática de um facto ilícito típico, a perigosidade criminal

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88 Parte I - Questões Fundamentais .

futura. Isto é, exige-se que, no momento da aplicação judicial da medidade segurança, pennaneça o receio sério, e fundamentado num' prognósticoclínico-psiquiàtrico, de que o inimputável «venha a cometer outros factosda mesma espécie» (art. 91.°-1, parte final). Portanto, a lei, ao falar em«factos da mesma espécie», está a exigir uma prognose (uma probabili-dade) favorável a uma "reincidência" específica.

§ 150. Passemos à questão dos limites da medida de segurança pri-vativa da liberdade.

Em regra, não há qualquer limite mínimo. Pois: sendo pressu-posto da aplicação e da duração da medida de segurança a perigosi-dade criminal futura, desaparecida esta, extinta deve ser a medida de segu-rança (art. 92.Q-l). Esta é a consequência lógica e político-criminal danatureza e das finalidades das medidas de segurança aplicáveis a inim-putáveis (cr § 119).

; § 151. Exceptuam-se desta regra os casos em que «o facto praticadopelo inimputável corresponder a crime contra as pessoas ou a crime deperigo comum puníveis com pena de prisão superior [no limite máximo]a 5. anos». Nestes casos, em princípio, a medida de segurança (o inter-namento) terá um limite mínimo de 3 anos (art. 91.°-2), excepto se nãohouver a necessidade preventivo-geral de pacificação social, nem a neces-sidade preventivo especial de neutralização da perigosidade criminal doinfractor (ali. 91.'-2, parte final) (lO). Como já referi, embora seja acei-tável que, nos casos de ilícitos criminais graves, e em nome da necessi-dade de pacificação social, haja um tempo mínimo de internamento,parece, contudo, manifestamente excessivo este limite mínimo, tendo emconta, além do mais (isto é, além de, clínico-psiquiatricamente, não haverurna prognose de "reincidência"), que podem estar em causa ilícitos cujapena máxima (limite máximo) seja de 6 aDOS de prisão.

§ 152. Quanto ao limite máximo da medida de segurança, esta «nãopode exceder o limite máximo da pena correspondente ao tipo decrime cometido pelo ínímputével» (art. 92.°-2).

(10) Cf. §§ 121 a 124.

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Tüulo I - O problema criminal-pencl 89

Deve observar-se que, sendo a medida de segurança uma conse-quência e uma reacção criminal àperigosidade documentada no facto ilí- .cito típico praticado pelo inimputável (portanto, olha ao passado e aopresente, embora seja aplicada em vista do futuro), os princípios cons-títucíonais da proporcionalidade (no seu vector de proibição de excesso)e da igualdade (de tratamento do inimputável e do imputável) deveriamter levado o legislador a estabelecer. como limite máximo o tempo deinternamento correspondente à pena que concretamente seria aplicada, seestivesse em causa um imputável.

§ 153. Por maioria de razão, é crtticável, como já o anotámos(§ 144), que o legislador ordinário (art. 92.°_3), aliás na sequência da dis-posição constitucional (art. 30.'-2), tenha estabelecido a possibilidade dea medida de segurança privativa da liberdade do inirnputável ser per-pétua, quando ao facto ilícito praticado corresponder uma pena de pri-são de limite máximo superiora 8 anos.

§ 154. Embora o Código Penal não refira a obrigatoriedade de asdecisões judiciais (do Tribunal de Execução das Penas) sobre as pror-rogações serem precedidas de avaliações clíníco-psíquíâtricas sobre amanutenção, ou não, da forte probabilidade de o inimputável vir a "rein-cidir", tal obrigatoriedade é imposta pelo CPP, art. 504.°

§ 155. Merecem uma breve referência crítica os arts. 28.o~1 e 29.0-1da Lei de Saúde Mental (Lei' n." 36/98), ao estabelecerem que, na«pendência de processo penal em que seja arguido portador de anoma-lia psíquica», «o tribunal que não aplicar a medida de segurançaprevista no artigo 91.0 do Código Penal pode decidir o internamentocompulsivo do ínímputâvel».

Na verdade, se o tribunal de julgamento, em processo penal, do inirn-putável, que cometeu um ilícito criminal, se decide pela não aplicação damedida de- segurança de intemamento, tal decisão só pode ter por fundamentoa consideração-avaliação (feita pelo tribunal) de que, apesar do facto ilícitotípico praticado (que não pode ter sido muito grave, pois, se o for, o inter-namento é, em regra, obrigatório, por força do art, 91.°-2) e apesar da ano-malia psíquica, não se verifica a perigosidade criminal futura, isto é, «ofundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie».

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90 Parte J - Questões Fundamentais._--_.-

Por outro lado, o ali. 12." da Lei de Saúde Mental estabelece, comopressuposto da medida administrativa pré-delitual de internamentocompulsivo, que a anomalia psíquica grave constitua «uma situação deperigo para bens jurídicos, ele relevante valor, próprios ou alheios, elenatureza pessoal ou patrirnonial».

Orá, sendo isto assim, pois que é a própria lei (CP, art. 91.°-1; Leide Saúde Mental, art. 12.°-1-1." parte) que o estabelece, que sentidotem a possibilidade atribuída ao tribunal de, em processo penal, aplicara medida administrativa pré-delitual do internamente compulsivo? ..

Mais: com que legitimidade constitucional e politico-criminal podeser decretada a privação da liberdade de um inimputável (através dointernamente compulsivo) que não manifesta um perigo sério para os bensjurídicos? - A resposta é: nenhuma, devendo acrescentar-se que tal pos-sibilidade viola o princípio constitucional da proporcionalidade, querna exigência de proporcionalidade em sentido estrito quer na sua exi-gência de indispensabilidade (CRI', art, 18.°-2).

§ 156. Embora a prática do facto ilícito típico seja um pressuposto,no sentido de conditio sine qua 110/1, da aplicação da medida de segurançaprivativa da liberdade do inimputável, é a sua perigosidade criminalfuturaque constitui o verdadeiro fundamento desta medida de segurança.

Mas esta perigosidade é um estado que pode, nomeadamente atravésdo tratamento, desaparecer ou diminuir. Daqui resultam duas exigências:

A primeira é a da revisão, pelo tribunal de execução' das penas emedidas de segurança, do estado de perigosidade do internado. Nestesentido, o CP, art. 93.°-2, estabelece a obrigatoriedade da revisão ofi-ciosa (I. é, independentemente de ser, ou não, requerida) de 2 em2 anos, Ora, em minha opinião, trata-se de um prazo excessivo (emborao texto primitivo de 1982 estabelecesse um prazo ainda maior parao primeiro período de internamente - 3 anos). Entendo que o prazoda revisão obrigatória devia ser de 1 ano. E esta redução do prazopara 1 ano', creio poder considerar-se adequada, por duas razões: em pri-meiro 'lugar, em nome do princípio da indispensabilidade (ou restriçãomáxima possível) da privação da liberdade do inimputável; em segundolugar, pela necessidade pragmática de evitar a inércia dos serviçosmédicos psicológicos e psiquiátricos penitenciários, e da administra-ção penitenciária.

Tttulo J - O problema ctitninal-p enai 91

A segunda exigência, também derivada do principio da proporcio-nalidade e da índispensabilidade, é a da substituição (nos casos em queainda permaneça uma certa perigosidade) da privação da liberdade pelasua mera restrição, ou seja, a substituição do internamento pelo regimeaberto ou tratamento ambulatório, logo que uma prognose clínico-psi-quiátrica seja compatível com tal substituição (art. 94.0).

7. A semi-imputabilidade ou imputabilidade diminuída: uma lacunado Código Penal?

§ 157. O art, 20."-2 estabelece que «pode ser declarado inimputá-vel quem, por força de uma anomalia psíquica grave, não acidental ecujos efeitos não domina, sem que por isso possa ser censurado, tiver,no momento da prática do facto, a capacidade para avaliar a ilicitudedeste ou para se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmentediminuída».

E o n." 3 do mesmo art. 20.0 acrescenta que um dos indícios dessadiminuição da imputabilidade, por causa de anomalia psíquica, pode ser«a comprovada incapacidade do agente para ser influenciado pelas penas»,

Por outro lado, constata-se que, no título III do Código Penal, dedi-cado às «consequências jurídicas do facto», não se encontra qualquer dis-posição sobre o tratamento ou reacção criminal à infracção cometidapor um semi-imputável.

Daqui resulta a seguinte questão-pergunta: como deverá serresolvido, em termos de _consequêncías jurídicas, O crime praticadopelo semi-imputával? - A resposta, em termos teóricos e práticos,tem, necessariamente, de se reconduzir à uma destas quatro hipóte-ses: só lhe deverá ser aplicada uma medida de segurança; deverá seraplicada uma pena e uma medida de segurança; só deverá ser apli-cada uma pena especialmente atenuada; ou, pura e simplesmente,absolvê-lo.

§ 158. Consideremos, em primeiro lugar, a única hipótese que o CP,art. 20.°-2, prevê: a declaração do semi-imputável como ínimputáveI.

Trata-se, obviamente, de uma ficção jurídico-penal, -que pode, numaperspectiva político-criminal, até ser razoável, justificar-se.

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92 Parte I - Questões Fundamentais

Uma tal ficção-declaração de inimputabilidade tem, desde logo,como consequência necessária que ao arguido só pode ser aplicada, nomáximo, uma medida de segurança.

Passar-se-à, neste caso da efectiva declaração judicial de inimpu-tabilidade de quem é realmente imputável, embora diminuído, algo deanálogo ao que, por via geral e abstracta, o legislador estabelece rela-tivamente aos menores de 16 anos (art. 19.°); pois que, embora olegislador, no caso destes menores, diga que «são inimputáveis» (emvez de dizer que «são declarados inimputáveis»), é evidente que, emrelação a muitos menores de 16 anos mas, por exemplo, maiores de 14,não há dúvidas que tal inimputabilidade não passa de uma ficção, quepode ser aceite por razões poHtico-criminais relacionadas com os even-tuais efeitos negativos de uma condenação penal e da respectiva exe-cução da pena.

Mas a possibilidade de aplicação somente de uma medida desegurança privativa ou restritiva da liberdade não deixa de colocarproblemas que têm que ser resolvidos e fundamentados político-cri-minalmente.

E o principal está na determineção da duração máxima da medidade segurança, que não pode ultrapassar o tempo da pena concretaque seria aplicada ao infractor, se ele fosse "plenamente" imputável.Admitir que o limite máximo da medida de segurança pudesse ultrapassara medida dá pena concreta, traduzir-se-ia numa "convolação" (da impu-tabilidade diminuída em inimputabilidade) em desfavor do agente, econstituiria um excesso sancionatório violador do princípio constitucio-nal da proporcionalidade.

§ 159. Outra hipótese de resolução seria a da aplicação de umapena e de uma medida de segurança. Uma pena, que teria de sersensivelmente atenuada, em função da diminuição sensível da impu-tabilidade e, consequentemente, da redução substancial da culpa;mais uma medida de segurança, em função da perigosidade baseadana anomalia psíquica cujos efeitos não domina. Só que, das duasuma:

Ou se verificam os pressupostos objectivos do art. 83."-1 ou doart. 84.°-1, e, então, estamos diante de um delinquente por tendência,cabendo ao tribunal aplicar a respectiva "pena" relatívamente índeter-

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Tuulo I - O problema criminal-penal 93

minada, que, como já o demonstrámos (§ 117), é um misto ou somade pena mais medida de segurança. Na verdade, se se verificarem ospressupostos objectivos (os dois ou mais crimes dolosos anteriormentepraticados ... ), também o pressuposto subjectivo se verifica, pois que a«acentuada inclinação para o crime» do art. 83.°-1 (inclinação que atépode ser congénita) é análoga à «anomalia psíquica grave, cujos efei-tos [i. é, cujas tendências para o crime o semi-imputável] não domina»do art. 20.°-2;

Ou não se verificam os pressupostos objectivos da delinquênciapor tendência, e, então, não é possível aplicar uma pena e uma medidade segurança. E esta impossibilidade jurídica resulta do facto de oCódigo Penal não prever, fora do caso dos delinquentes por tendên-cia e dos delinquentes alcoólicos ou equiparados, qualquer medidade segurança privativa da liberdade a acrescer à pena em função daculpa.

Logo, neste caso, não podia ser aplicada qualquer medida de segu-rança, sob pena de violação do princípio constitucional e jurídico-penalda legalidade (CRP, art. 29.°-1; CP, art. 1.°-2).

§ 160. A terceira hipótese de resolução é a da aplicação exclusivade uma pena (cf art. 104.°). E, neste caso, por imposição do princí-pio da culpa como limite máximo da pena, esta tem de ser substancialou especialmente atenuada.

Mas parece relativamente claro que esta solução, nomeadamentequando estiver em causa um semi-imputável reincidente ou habitual,não satisfaz as necessidades político-criminais de prevenção do crime.

§ 161. Uma quarta hipótese de solução é a de o tribunal declararinimputável o imputável diminuído, ·epura e simplesmente absolvê-lo,não lhe aplícando, portanto, qualquer pena ou medida de segurança.Esta solução estará indicada para o caso do semi-imputável ter praticadoum ilícito criminal não grave e, apesar da sua anomalia psíquica, nãohaver um sério e fundado receio de reiteração criminosa. E é, em meuentender, esta a solução mais adequada, quando, além da verificaçãodestes· dois pressupostos (ilícito criminal não grave e inexistência deuma forte probabilidade de reincidência), estiver em causa um serni-imputável primário ou ocasional.

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94 Parte I - Questões Fundamentais

8. O sistema do vicariato na execução da pena e da medida desegurança privativas da liberdade

§ 162. Vimos (§ 111 S5.) que o sistema dualista (também chamadode "dupla via") é, político-criminalmente, mais adequado a enfrentar. oproblema dos imputáveis perigosos ou por tendência do que o sistemamonista (também designado por sistema de "via única" - só penas).

Também referimos e procurámos demonstrar que as penas e asmedidas de segurança têm o mesmo fim (verdadeiro fim ou "fim-último")de protecção dos bens jurídico-criminais (§§ 94 e 118).

Para conseguir realizar este fim, o direito penal atribui às penas umadupla função: de prevenção especial positiva, ou seja de ressocialização,'e negativa, isto é, de dissuasão individual do infractor; e de prevençãogeral positiva, quer dizer de integração axiológica e de confiança comu-nitária na vigência efectiva das normas penais, e negativa, isto é, dedissuasão ou intimidação dos cidadãos em geral (§ 96 S5.)

E O mesmo direito penal, para conseguir o referido fim de protec-ção dos bens jurídicos, também se serve de medidas de segurança que,no caso dos imputáveis perigosos, desempenham a função primária deprevenção especial de ressocialização e de neutralização da sua perigo-sidade, e a função, embora secundária, de prevenção geral positiva depacificação social e de confiança da comunidade na tutela efectiva dosbens jurídico-penais (§§ 119 e 125). .

§ 163. Assim, vemos que tanto à pena como à medida de segu-rança se atribui, hoje, uma função de ressocialização ou recuperaçãosocial do delinquente. Donde resulta que, embora 'pena e medida desegurança se diferenciem claramente na sua fundamentação e nadecisão judicial dá sua aplicação, elas aproximam-se na sua execução,pois, em ambos os casos, o seu efectivo cumprimento deve orientar-separa a ressocialização do intemado.

§ 164. Esta convergência prática, isto é, na fase da execução,convergência a que a doutrina chama monísmo prático, é, em prí-meirolugar, o resultado da substituição da concepção ético-retributivapela concepção preventivo-ética da pena (§ 89 ss.). Portanto, estemonismo prático não é algo que tenha sido "imposto do exterior"; isto

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Titulo J - O problema criminal-p enal95

é, pela necessidade pragmática de evitar uma descontinuidade no pro-cesso de execução da pena e da medida de segurança, mas é um coro-lário natural da mutação substancial da concepção ético-rétributiva pelaconcepção preventivo-ética da pena. Pois que, se, naquela concepção,esta descontinuidade na execução era profunda e inevitável, já, na novaconcepção da pena, tal descontínuidade não existe ou é substancial-mente atenuada.

§ 165. O principal problema que, agora, se coloca é o de saber qualdas duas reacções criminais deve ser cumprida em primeiro lugar: apena ou a medida de segurança?

A resposta deve ir claramente no sentido da medida de segurança.E assim deve ser porque, embora tanto a execução da pena como damedida de segurança deva ser orientada para a recuperação social dodelinquente, todavia, na modelação da execução da medida de segu-rança, sempre se faz sentir, de uma forma acrescida, esta preocupaçãoprática com a correcção .das tendências criminais do imputável perigosoou do serni-imputáve], Pois não é em vão que às medidas de segu-rança também se chama "medidas de segurança e tratamento".

§ 166. Este problema; no direito positivo português actual, só secoloca no caso do concurso de crimes. E são duas as hipóteses pos-síveis: o delinquente comete um dos crimes num momento em que seencontrava num estado de inimputabilidade, e pratica o outro crimenum momento em que se encontrava num estado de imputabilidade; outrata-se de um delinquente que é imputável em relação a um dos crimes,sendo, porém, inimputável em relação ao outro crime (inimputabilidadsrelativa). Ou seja: quando o mesmo arguido cometeu dois (ou mais) ilí-citos criminais, mas em que a um deles -só pode ser aplicada uma medidade segurança, por força da inimputabilidade, e a outro dos ilícitos cri-minais cometidos deve ser aplicada uma pena, pelo facto de, em relaçãoa este ilícito, se afirmar a imputabilidade do infractor.

É a esta hipótese (de concurso de crimes) que se refere e aplica odisposto no art. 99.0

§ 167. As duas outras possíveis hipóteses, em que também secolocaria este problema do sistema do vicariato, seriam os casos dos

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96 Parte f - Q"estões Fundamentais

delinquentes senil-imputáveis e dos delinquentes por tendência ou alcoó-licos e equiparados.

Todavia,' em relação a estas duas categorias de delinquentes, a ques-tão, face ao direito constituído, não se coloca.

Não se põe, relativamente aos semi-imputáveis ou imputáveis dimi-nuídos, porque, como vimos (§ 159), a estes não é possível aplicar umapena mais uma medida de segurança.

Também, em relação aos delinquentes por tendência ou alcoólicose equiparados, a questão não se coloca, uma vez que o legislador, ao uni-ficar ou tratar unitariamente a pena e a medida de segurança, através dafigura da "pena" relativamente indeterminada (§ 117), estabelece tam-bém um regime específico e unitário para a sua execução;regíme pre-visto no CP, art. 89." S., e no CPP, art. 509."

§ 168. Assim, o regime do vicariato estabelecido 'no art. 99.°(e no Cl'P, art. 507.°) só se aplica, segundo o direito vigente, à hipótesede concurso de crimes (§ 166).

Segundo o referido art. 99.°, primeiramente é executada a medidade segurança. E a duração desta é descontada na pena de prisão(art, 99.°-1).

É esta substituição-desconto, no tempo da pena de prisão, dotempo efectivamente cumprido da medida de segurança que leva aqueo sistema do monismo prático também seja designado por sistemavlcar'lal.

§ 169. Mas existe uma outra questão que é a seguinte: se, aolongo ou no termo do cumprimento da medida de segurança, o reclusoder .mostras, pela sua conduta, de já poder, razoavelmente, ser consi-derado corrigido, isto é, socialmente recuperado, deverá iniciar o cum-primento da pena?

A resposta passa pelas seguintes considerações:

Primeira: é evidente que, se foi cumprido tacto o tempo damedida de segurança, esta extingue-se e, portanto, cessa.

Segunda: se, antes de terminado o período de duração damedida de segurança, a perigosidade criminal do internado tiver,segundo o prognóstico clínico-psiquiátrico, desaparecido, a medida

Tttulo I - O problema criminal-penal 97

de segurança deve cessar imediatamente. Pois, desaparecida a"causa", extinto deve ficar o "efeito".

Terceira: uma vez cessada a medida de segurança, resta, parao recluso, a alternativaseguinte: ou é posto em liberdade condicional,ou prestará trabalho a favor da comunidade, ou terá de cumprirparte da pena em que foi condenado.

§ 170. Cessada a medida de segurança, por ter cessado a corres-pondente perigosidade criminal, o agente é colocado em liberdade con-dícíonal, se o tempo da medida de segurança cumprido equivaler ametade da pena, e a libertação condicional não for incompatível com apaz social (art. 99."-2).

§ 171. NO caso de ter cessado a medida de segurança, por tercessado a perigosidade criminal, mas o recluso ainda não poder serposto em liberdade condicional, seja porque o internamente ainda nãoatingiu a metade da pena (nesta metade incluindo o "trabalho a favorda comunidade"), seja porque a tal libertação condicional se opõe apaz social, então terá de cumprir a pena de prisão até ao máximo de doisterços desta, embora, também, nesta hipótese, possa um ano ser cum-prido em liberdade, com prestação de trabalho a favor da comunidade(art. 99."-4).

SECÇÃO V

o DIREITO PENITENCIÁRIO

LO direito penal e o direito penitenciário

§ 172. Acabámos de ver (Secções III e IV) que a política criminal,que orienta e estrutura o nosso direito penal, é uma política criminalhumanista. Humanista, 'no sentido e na medida em que atribui aodireito penal a função positiva de protecção dos valores fundamentais'da pessoa humana e das condições sociais indispensáveis à realizaçãodestes valores (cf Secção Il, § 66 ss.); burnanista, pois que assume a

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98 Parte I - QII€sCéies Fundamentais

pena exclusivamente como. um mal que só se legitima, quando indis-pensável para prevenir a prática dos crimes, i. é, para evitar Os com-portamentos humanos lesivos daqueles valores ou bens jurídicos - apena como ultima ratio da politica social e da política jurídica; huma-nista, ainda, na medida em .que a pena mais grave, que, entre nós, é ada privação da liberdade, só deve ser aplicada, quando as penas nãodetentivas (p. ex., multa, trabalho a favor da comunidade) forem insu-ficientes ou inadequadas à efectivação da função preventiva, geral eespecial, da -,pena; humanista, finalmente, quando assinala-à pena,nomeadamente de prisão, e à medida de segurança privativa da liber-dade, o objectivo primordial de recuperação social do delinquente.

§ 173. Toda esta positividade do discurso jurídico-penal, todosestes. princípios político-criminais estruturantes do direito penal1egisladosão claramente de. louvar.

Mas há que reconhecer que tudo isto não passará de uma fla-grante hipocrisia prática, se o sistema penitenciário continuar igno-rado; e imune às implicações práticas decorrentes destas exigências.pclitico-criminais. E, infelizmente, a realidade dos estabelecimentospenitenciários tem demonstrado esta hipocrisia, esta contradição entrea proclamação da finalidade ressocializadora da pena (e da medida desegurança privativa da liberdade) e a realidade dessocializadora e cri-minógena dos estabelecimentos prisionais, ao ponto de estes seremconsiderados, em muitos casos e com fundamento, verdadeiras "esco-las do crime".

§ 174. O direito penltenciário, enquanto modo de execução dapena de prisão e da medida de segurança privativa da liberdade, não podeser visto como um apêndice secundário e estranho ao direito penal.Bem pelo contrário, é nele que se joga e se realiza, ou 'não, o sucessoou o fracasso da política criminal, especialmente quando esta acentua afunção ressocializadora da pena (11).

. (11) Sobre estes problemas e neste sentido, ver PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE,

Direito Prisional Português e Europeu, Almedina, 2006.

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Titulo 1 - O problema cnnunal-pena! 99

2. Breve-referência à história do direito penitenciário: da sua con-cepção meramente administrativa à actual. autonomia e inte-gração normatíva no âmbito da política criminal

§ 175 .. Até meados do séc. XIX, ou seja, enquanto o infractor foiv:isto como' um inimigo da sociedade e à pena foi atribuída uma finalidadede retribuição-expiação ou de intimidação, o recluso não passou' de umobjecto da execução punitiva, não lhe sendo legalmente reconhecida.atitularidade dos direitos fundamentais. Encontrando-se num como queestado de sujeição, visto como um banido da sociedade, pelo menosdurante o tempo da prisão, a .administração penitenciária podia decidirdiscricionariarnente, ou mesmo arbitrariamente, sobre o modo ou regimeda execução da pena.

§ 176. A partir da segunda metade do séc. XIX, a Escola Cor-reccionalista, ao afirmar o princípio da corrigibiíidade do delinquentee, coerentemente, ao atribuir à pena de prisão um sentido de' recupe-ração social, veio salientar a necessidade de a execução da pena sermodelada-em ordem à preparação do recluso para a vida em sociedade(cf. § 445.).

Este pensamento implicava, e progressivamente implicou, a estru-turação do cumprimento da pena de prisão em ordem à criação, norecluso, de um sentido de responsabilidade, o que implicava ver o presonão apenas como um objecto de obrigações mas também como. titular dedireitos humanos fundamentais'.

§ 177. Relativamente a Portugal, pode dizer-se que esta preocu-pação com uma regulamentação da execução da pena de prisão, quefosse' adequada à correcção e à reinserção- social do delinquente, man-teve-se uma constante, desde meados do séc. XIX até à actualidade(cf. § 45 s.).

..Em 1 de Agosto de 1979, foi publicado o Dec.-Lei n," 265/79,cujo projecto foi da autoria de Eduardo Correia, e que se caracterizoupela consagração expressa dos prmcíptos fundamentais penitenciá-rios. O primeiro princípio é o de que o recluso (seja imputável ouinimputável) mantém a titularidade e o exercício de todos' os seus direi-tos fundamentais, só sendo legítimas as. restrições inerentes à própria

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100 Parte I - Q,"eSlões Fundamentais

condição de preso ou internado, e aquelas que sejam indispensáveis àordem interna penitenciária e à necessidade de evitar a fuga.

Um segundo princípio é o de que a execução da prisão deve serorientada para a socialização do recluso.

O terceiro pri.ncípio é o da jurisdicionalização da execução daprisão e da medida de segurança de internamento. Esta função cabeaos tribunais de execução, que constituem o garante dos direitos dosreclusos.

3. O sentido da evolução do direito penitenciário português actual

§ 178. Está, actualmente, em curso um processo de revisão dosistema de execução das penas de prisão e das outras medidas privati-vas da liberdade (medidas de segurança, prisão preventiva, etc.).

O projecto de proposta de lei, elaborado por uma comissão presi-dida por Anabela Rodrigues, propunha uma reformulação do regimepenitenciário actual, que consta do Dec-Lei n." 265/79,

As linhas de força deste projecto eram as seguintes; reforço doestatuto jurídico do recluso, concretizando, pormenorizadamente, osseus direitos fundamentais, quer individuais (liberdade de consciên-cia, liberdade religiosa, recusa do tratamento coercivo, etc.), quersociais (direito à assistência médica, direito às condições de educa-ção intelectual e de aprendizagem profissional, etc.); reafirmação doobjectivo da socialização, considerando, realisticamente, que o pri-meiro objectivo é evitar a dessocialização, que é algo de conatural auma pena que separa o condenado da sociedade, embora se devamcriar as condições prisionais que possibilitem a recuperação social dodelinquente (neste sentido, propunha-se a criação de um "conselho desocialização"); clarificação das competências do tribunal de execuçãoe da direcção do estabelecimento prísíonal; reformulação fisica dosestabelecimentos prisionais, em ordem a uma necessária separaçãodas diferentes categorias de reclusos (comuns, jovens adultos, pre-ventivos, reclusos com perturbações psíquicas, etc.j.abertura, namedida do possível, da prisão à sociedade e da sociedade à prisão,a fim de se eliminar a imagem e o estigma social de que o estabele-cimento prisional é um mundo de banidos,

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Título J - O problema criminol-oenal l01

§ 179. É evidente que a concretização desta concepção político-cri-minal, norteadora da execução das penas de prisão e das medidas de segu-rança privativas da liberdade pelo objectivo da socialização do recluso,implica, a curto prazo, custos económicas elevados, na criação de novosedifícios prisionais e na adaptação dos já existentes, bem corria em pes-soal especializado para as novas funções e actividades a realizar 110

âmbito prisional. Mas a verdade é que tais custos serão compensados,a médio ea longo prazo, por uma possível (e que nunca pode deixar deser tentada) diminuição das taxas de reincidência,

Além desta razão político-criminal, o Estado e a Sociedade nãopodem fugir do seguinte dilema, sob pena de hipocrisia institucionali-zada: ou assumem, ou não assumem, a função socializadora da execu-ção da pena de prisão; e, se a assumem, como é o caso de Portugal ede muitos outros países, então não podem adiar as condições materiaise pessoais que, em primeiro lugar, evitem a dessocializaçâo e que, emsegundo lugar, possibilitem uma efectiva recuperação social do delin-quente dessocializado; ou não assumem, e então, para além de se negá-rem como Estado de Direito Social, devem deixar de, hipocritamente,proclamar o objectivo da ressocialização, aceitando, então, como nor-mal a sobrelotação das prisões, a promiscuidade dos reclusos, a pena deprivação da liberdade como expiação cujo castigo é potenciado pelascondições desumanas em que a pena é cumprida, mas, neste caso, nãose podendo lamentar das nefastas consequêncías sociais que urna tal rea-lidade penitenciária, tão dessocializadora e criminógena, necessaria-mente provocará.

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4.° CAPíTULO

A DISTINÇÃO ENTRE O DIREITO PENALE OUTROS RAMOS DO DIREITO AFINS

SECÇÃO 1

A NATUREZA PÚBLICA DO DIREITO PENALE A ·NATUREZA. PRIVADA DO DIREITO CrVIL

1.. A natureza pública e autónoma do direito penal

§ 180. A tese de que o direito penal constitui um ramo do. direitopúblicoé, hoje, aceite por quase toda a ciência jurídica, nomeadamentepela doutrina penalista.

Efectivamente, o direito criminal-penal é direito público por exce-lência. Pois, seja qual for o critério que se eleja para fixar a fronteira entreo direito público e o direito privado (critérios da natureza dos interesses,da força imperativa das normas ou da posição dos sujeitos na relaçãoprocessual), sempre o direito penal ter-se-à de incluir no direito público.

§ 181. Como já referimos (§ 67), o direito penal tem por funçãoproteger os valores ou bens jurídicos assumidos pela consciência ético-social como indispensáveis à realização pessoal e à convivência comu-nitária, possibilitadora daquela realização pessoal-individual. Por outraspalavras, cabe ao direito penal defender e promover a estrutura axioló-gica fundamental da interacção social, condição necessária (e mesmoconstitutiva) da sua existência cultural.

;Deste modo, a violação desse núcleo fundamental de valores pro-tegido pelo direito penal constitui uma ofensa a toda a comunidade

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Titulo r - o problema crinunal-penal 103

social, e não apenas em relação à pessoa em que se tenha concretizadoa lesão do bem juridico. Por exemplo, no crime de furto ou no crimede violação, os bens jurídicos lesados, e cuja tutela o direito penalassume, não estão no valor patrimonial da -coisa furtada e na con-creta e individual autonomia sexual da pessoa violada, mas sim no inte-resse de toda a comunidade social no respeito da propriedade alheiae da autodeterminação sexual de todos e cada u!D dos membros dasociedade.

§ 182. Cabendo 'ao Estado, enquanto representante da sociedadepoliticamente organizada, a tutela dos valores comunitários, ele torna-se,face a qualquer crime, o titular único do ius puniendi. Na relaçãopunitiva gerada entre o Estado e o infractor criminal, .aquele aparecesempre. dotado da .soberania,

É de recordar que, no decurso da história política dos povos, sem-pre o "direito de punir" as infracções consideradas corno- ofensas a todaa colectividade foi considerado como exclusivo e expressão máxima dasoberania.

Este "direito de punir" não se toma nos termos civilísticos ~de umdireito subjectivo; a que corresponderia um dever jurídico do Criminoso,mas sim como uma função que vincula o Estado à efectivação da jus-tiça criminal.

E é assim que, mesmo contra a vontade expressa do particular'ofendido, o Ministério Público não pode, em regra, deixar de exercera acção penal (CPP, art. 48."). E, mesmo quando a promoção da acçãoestá condicionada (em razão da menor gravidade do crime ou de razoá-veis interesses pessoais da vitima) à prévia apresentação de queixa (CPi',art. 49.°) ou à acusação particular (CPP, art. 50.°), ainda, nestes casos,éao Ministério Público que cabe a titularidade da acção penal.

§ 18J. Da irrecusável autonomia dos valores protegidos pelodireito penal deriva a autonomia deste ramo do direito. De facto, avaloração jurídico-criminal expressa nas normas penais tem por objectoaquelas condutas (activas ou omissivas) que, segundo a consciênciaético-jurídica da comunidade social, lesam ou põem em perigo os bensjurídicos tidos como fundamentais à convivência social e à pessoahumana (cf. § 66 ss.).

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104 Parte 1 - Questões Fundamentais

A conclusão é a de que a valoração jurídico-criminal é autónomados juizos de valor formulados nas normas jurídicas pertencentes aoutros ramos do direito. A ilicitude criminal não se confunde com ailicitude civil, administrativa, etc.

§ 184: De refutar são, portanto, aquelas concepções que imputa-vam ao direito penal uma natureza ou função meramente sancionató-ria, como, p. ex., Binding (Die Normen und ihre Übertretung).Movendo-se nos quadros do positivismo voluntarista, este autor redu-zia a norma jurídica penal a um mero imperativo ou manifestação davontade do legislador e a essência do Direito a um dever de obediên-cia dos destinatários das normas. Ao direito penal não cabia outrafunção que não a de estabelecer as sanções para a desobediência ànorma ou comando jurldico. Isto é, as normas penais' continham ape-nas o momento ou elemento sancionatório; seriam exclusivamente nor-mas de determinação, em vez de normas de valoração e de determi-nação.

§ 185. Já outros autores, como Grispigni (Ull caractere sanziona-torio del diritto penale", in Rivista di diritto e procedura penaie, 1920,p. 225 35.), embora considerassem que tanto o momento preceptivo(proibição ou imposição) como o momento sancionatório faziam, estru-turalmente, parte da norma penal, negavam, todavia, qualquer autonomiaà valoração jurídico-penal, isto é, à ilicitude criminal, afirmando que O

direito penal se traduz e se resume a um mero reforço da tutela confe-rida pelos outros ramos do direito. Assim, o direito penal teria apenasnatureza secundária ou complementar, funcionando como uma "super-protecção" dos bens jurídicos próprios de outros ramos do direito, quandoa protecção conferida pelas sanções específicas destes sectores do direitose revelasse insuficiente.

Também esta concepção complementar ou secundária do direitopenal é de recusar. Pois, como já se referiu, o direito penal tem auto-nomia axiológica, a responsabilidade penal tem pressupostos próprios efmalidade preventiva específica, além de que há muitas normas jurí-dico-penais que prevêem condutas (p. ex., tráfico de 'droga) que nãoestão contempladas em nenhuma norma dos outros ramos do ordenamentojurídico.

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2. Distinção entre o direito penal e o direito civil

§ 186. Do exposto quanto ao objecto e função do direito penal(§ 67) e a propósito da natureza pública e autónoma deste ramo dodireito sobressai, bastante nítida, a distinção entre o ,direito penal e odireito civil. Distinção que, como já se dirá, se manifesta em váriosaspectos dos respectivos regimes jurídicos, os quais se fundamentam earrancam da diferença entre a natureza eminentemente pública dos bensjurídicos tutelados pelo direito penal em contraposição à dimensão fun-damentalmente privada dos interesses protegidos pelo direito civil.

Em síntese: enquanto os valores ou bens jurídico-penais são reco-nhecidos como suporte axiológico de toda a comunidade social, já osbens ou interesses jurídico-civis são assumidos como particulares; istoé, como interesses do respectivo titular individual.

§ 187. Inteiramente diferentes também são as sanções penais e as"sanções" civis: aquelas olham ao presente (momento da prática docrime e do respectivo julgamento) e ao futuro, isto é, têm uma finali-dade exclusivamente preventiva do crime (§§ 91 ss. e 118 ss.); já as"sanções" civis (as aspas significam que o termo sanção não é inteira-mente correcto, pois esta palavra contém uma ideia de punição, queinexiste nas consequências civis) olham ao passado {momento da práticado facto ilícito civil) e ao presente (momento da efectiva reparação dodano causado), isto é, têm uma finalidade reparadora dos danos cau-sados.

Assim, a medida da pena deve reduzir-se ao indispensável à pre-venção, geral e especial, de futuros crimes, mas já a medida ou o quantoda "sanção" 'civil (reconstituição especifica, indemnização ou compen-sação dos danos não patrimoníais) deve, em regra, corresponder ao danoou prejuízo causado (CC, art. 483.°-1).

§ 188. Em consequência da diferente natureza e finalidade dassanções penais e das "sanções" civis - aquelas, nomeadamente a pri-são, são um mal em si mesmas, e têm natureza punitiva, embora umafinalidade preventiva; as civis, são um "mal" para o lesante mas umbem para o lesado, e têm uma finalidade reconstitutiva, em nome da jus-tiça comutativa -, diferentes são os pressupostos da responsabíll-

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106 Parte f - Questões Fundamentais

dade penal e da responsabilidade civil (extra-contratual: "delitual" oupor factos ilícitos, que é aquela que, obviamente, está em causa).

Enquanto a responsabilidade penal pressupõe a-prática de um factoilícito típico (isto é, tipificadonuma lei penal) e a culpa dolosa doagente (embora, em vários. crimes,também seja punível a-culpa negli-gente.- art, 13.°), já a responsabilidade civil se basta com a prática deum facto Ilícito (que não tem que estar legalmente tipificado - cf.,p. ex., CC, art. 8.0-1) cometido com "mera culpa", isto é, com simplesnegligência. Mais: em nome da justiça comutativa ecdas -cada'vez maisnumerosas fontes de risco para interesses jurídicos alheios; são cadavez mais numerosos os casos de responsabilidade civil obje-ctiva (nemexigência de culpa, nem de ilícito). E até há casos de obrigação deindemnização por factos justificados (factos lícitos), como, p. ex., ospraticados em estado de necessidade (CC, art, 339.°).

3. A questão da reparação dos danos causados à vítima do facto.: ilícito

:§ 189. Ocorre, frequentemente, que um mesmo facto naturalisti-carnente entendido (p. ex., subtracção de coisa alheia com intenção deapropriação, 'ofensas corporais, difamação, emissão de cheques sem pro-visão) fundamenta e determina a aplicação de sanções penais (prisãoou multa, etc.) e de sanções .civis (restituição, indemnização ou com-pensação patrimonial).

. Tal situação verifica-se, quando. o mesmo comportamento humanoconstituir, de .acordo- com o critério de valoraçâo e ·os pressupostosespecíficos do direito civil) um ilícito civil, e, também, por outro lado,constituir, segundo a especlficavaloração jurídico-penal, um ilícitocriminal.

Nesta hipótese, levantam-se duas questões diferentes, que são;qual a natureza e os critérios dadetemiínação da responsabilidade civil;que relevância deve atribuir-se à reparação espontânea do dano por partedolesante? - Como se verá, a primeira é uma questão jurídico-civil;a segunda é uma questão político-criminal, conexionadacom a teoriados fins da pena e coro a protecção que o direito penal deve concederà 'vítima do crime ..

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Tttulo L- Oproblema cruninal-penai 107

.3.1. A responsabilidade civil "emergente de crime"

§ 190. Como acabámos de ver, um mesmo facto humano podeoriginar, simultaneamente, responsabilidade penal e responsabilidadecivil. Esta pode traduzir-se na. obrigação .de.restituição ou reconstitui-ção natural (p, ex., num caso de furto ou roubo), na obrigação de indem-nização (p. ex., num caso de crime de dano) e na. obrigação de com-pensação petrimoníal de danos não patrimoniais (p. ex., num caso dedifamação, de.violação ou de homicídio).

§ 191.- Dada a conexão dos dois tipos de responsabilidade com.um mesmo. facto (acrescida da circunstância de, em muitos países, acodificação oitocentista penal ter sido anterior à elaboração dos pri-meiros códigos civis), tradicionalmente discutiu-se se a "obrigaçãode indemnização de perdas e danos" (que, normalmente, era decididano processo penal - princípio da adesão) tinha natureza civil ou natu-reza penal. Refira-se que, consoante a opção pela natureza penal oupela natureza civil, o montante da indemnização também podia sermuito diferente. Desde logo, a opção pela natureza penal implicava quequanto. mais grave fosse o crime, tanto mais elevada devia ser a indem-nização.

§ 192. Mas, se, mesmo já então, o entendimento correcto, porquemais conforme com os pressupostos, natureza e finalidade da responsa-bilidadecivil, era o da natureza civil da indemnização arbitrada em pro-cesso penal, hoje. é inequívoca uma tal posição.· E indiscutível, queressencialmente por força dos já referidos específicos pressupostos e fim-ção da responsabilidade civil, quer à face da lei.

Assim, -estabelece o art, 129.° que- «A indemnização de perdas edanos emergentes de-crime é regulada pela lei civil».

O facto de o nosso CPP, art. 71.°, estabelecer como regra o prín-cípio da adesão (<<Opedido de indemnização civil fundado na práticadeum crime é deduzido.no processo penal respectivo, só o podendo serem separado, perante o tribunal civil, noscasosprevistosna lei») ter-se-áficado a dever ao objectivo de favorecer o lesado, dispensando, este,'que também é vítima, dos ónus e despesas que a acção cívelimplicaria,e, ainda, a 'razões de economia processual.

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108Parte I - Questões Fundamentais

§ 193. Conclusão: mesmo que corram no mesmo processo penal,as questões da responsabilidade penal e da responsabilidade civil são autó-nomas. Assim, a extinção da responsabilidade penal (p. ex., por mortedo .arguido, ou por amnistia) ou a absolvição penal (p. ex., o facto,enquanto crime, exigia o dolo, e o tribunal considerou que houve ape-nas negligência consciente) deixam intocada a questão da responsabili-dade civil.

Não se termine, sem chamar a atenção para a incorrecção da tra-dicional e ainda corrente designação "responsabilidade civil ou obriga-ção de indemnização derivada do crime". É que, como vimos, do crime,enquanto tal, só pode derivar responsabilidade penal; o que pode acon-tecer é que o mesmo facto pode constituir crime e, como tal, gerador deresponsabilidade penal, e, simultaneamente, constituir ilícito civil e,como tal, gera responsabilidade civil.

3.2. A reparação dos danos como questão político-criminal

§ 194. Esta concepção da natureza exclusivamente civil da repa-ração dos danos é comum à generalidade das legislações penais dosdiferentes países, e corresponde à tradicional estrutura essencialmentebipolar do direito penal (Estado e infractor) e do processo penal (Estado,representado pelo Ministério, e arguido).

§ 195. Porém, nas duas últimas décadas, a doutrina tem cha-mado a atenção para a necessidade da consideração da vítima nospróprios quadros do direito e processo penais, nomeadamente emmatéria do ressarcimento dos danos que lhe foram causados pelo crimede que foi vítima.

Esta consideração e elevação da vítima a um corno-que agente ouinterventor no processo penal, tenderia, eventualmente, para uma tripo-larização destes direito e processo penais: Estado, infractor e vitima.

. § 196. Devemos, aqui e agora, restringir-nos à questão da rele-vância político-criminal e jurídico-penal da reparação, pelo infractor,dos danos (patrimoniais e não patrimoniaís) causados à vítima e às pes-soas dela economicamente dependentes (pessoas em relação às quais avítima tem ou tinha, no caso de morte, "obrigação .de alimentos").

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Tttulo I - O problema criminal-penal 109

Duas vias existem para, numa perspectiva político-criminal, dar asatisfação possível às necessidades' da vitima na reparação dos danossofridos: a consideração-qualificação da reparação do dano como umaconsequência jurídica do crime, a incluir, no sistema punitivo-penal, aolado da pena e da medida de segurança; ou a continuação da conside-ração-qualificação da reparação do dano como uma "sanção" exclusi-vamente civil, mas com a atribuição à efectivação de tal reparação de sig-nificativa relevância jurídico-penal, em matéria de exclusão ou deatenuação da pena.

3.2.1. A reparação do 'dano como sanção criminal, i. é, comomedida substitutíva ou redutora da pena

§ 197. Certos autores, nomeadamente alemães (entre os quais,Roxin), defendem, de iure condendo, a qualificação da reparação dodano como consequência ou reacção .juridico-criminal, qual "terceiravia", a seguir à pena e à medida de segurança. Teríamos, assim, umatrípartição das consequências jurídicas do crime: penas, medidas desegurança e reparação dos danos.

Esta reparação dos danos, embora visasse e fosse determinada pelomontante dos prejuízos ou danos causados, não deixaria de ter naturezapenal e, portanto, pública.

Os argumentos invocados em favor desta proposta são, segundo aminha leitura, de dupla natureza: pragmática e político-criminal.

§ 198. As razões pragmáticas consistem na justiça e na necessi-dade de os interesses da vítima, lesados pelo facto criminoso, serem,o mais rapidamente possível, satisfeitos.. Interesses que a política criminale, portanto, o direito penal não devem-desourar.

Ora, segundo os proponentes desta opção, em muitos casos depequena crlminalidade (p. ex., difamação) e de pequena ou médiacríminalidade patrimonial (sem violência), a condenação em prisãoou em multa impossibilita o infràctor de reparar os interesses da vitima:se vai preso, fica sem poder ganhar para pagar a indemnização; se temde pagar a multa, poderá ficar sem dinheiro para pagar a dita indemni-zação. Daqui, proporem, na pequena. criminalidade, a substituição damulta ou prisão pela reparação do dano; e, na crirnínalidade média, a atri-

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110 Parte f - Questões Furvdantentais

buição, à reparação do dano, do efeito suspensivo da execução da penade prisão ou de multa, ou da eficácia de atenuação especial' obrigatóriada pena,

§ 199, As razões político-criminais, invocadas em favor destaconsideração da reparação do dano como uma espécie de "pena de subs-tituição", reconduzern-se ao princípio .da subsidiariedade das verdadei-ras penas e' à adequação da reparação (espontânea) do dano à realizaçãodos fins das penas.

Com efeito, segundo esta proposta, a função ressocialízadora (pre-venção especial positiva) é conseguida através da reparação dos danos,na medida em que contribui para conscienoializar o infractor dos justosinteresses da vítima e da reprovabilidade do seu acta.

Também a função de pacificação social (prevenção geral positiva)será .curnprida através da reparação do dano, uma vez que esta elimina,ou reduz substancialmente, a perturbação social causada pela infracção.

. Sendo assim, então, concluem os defensores desta proposta que, porforça.do princípio da subsldíariedade do recurso às penas, a reparaçãodo dano deve incluir-se no direito penal como uma terceira espécie dereacção criminal, depois, ou ao lado, da pena e da medida de.segurança,

§'200. Diga ..se que uma tal proposta não é de rejeitar..m limine,pois que, além lhe estar subjacente uma motivação político-criminalrazoável, tem aspectos positivos.

Todavia, penso o seguinte: por um lado, tais objectivos positivospodem ser conseguidos por outra via que não esta da consideração dareparação do dano (i. é, da consideração da responsabilidade civil). comouma conseqüência ou reacção criminal, ao lado da pena' e da medida desegurança; por outro lado, além de aspectos positivos, esta concepção jurí-dico-penal da reparação do dano não deixa de merecer objecções nos pla-nos-político-criminal e jurídico-penal.

.. Vejamos, hic et nUIlC, as objecções, deixando para a exposição da-nossa; posição a prova de que tais objectivos (satisfação dos interessesda vítima, ressocialização do infractor e pacificação .socíal da vitima eda comunidade) também podem ser realizados, sem ser necessário dei-xar de considerar a natureza da reparação dos danos como exclusivamentejuridico-civil.

Titulo I - O problema crir"ilcal-pel!(l! 111

§ 20 L As principais objecções são:Primeira: a qualificação da reparação do dano. como sanção penal

teria de implicar que, quanto mais grave fosse o .crime, maior deve-ria ser o montante da reparação, independentemente dos danos ouprejuízos efectivamente causados. Ora, uma .tal conclusão não pareceestar na mente dos defensores da concepção.juridico-penaj da reparaçãodo dano, nem, diga-se, tal seria aceitável.

§ 202, Segunda; a aceítaçãode urna. tal proposta deveria impor que,no caso de morte -do infractor, antes da reparação do dano,. se extin-guisse a obrigação de reparar o dano. Pareceque deveria passar-se-omesmo que acontece no caso de .condenação, p. -ex., na pena substitutivade "trabalho a favor da comunidade", pois que as situaçôes são, nesteaspecto, análogas.

Assim, tal como na hipótese de trabalho a favor da comunidade, se °infractor condenado morre, esta pena extingue-se, também, no caso da repa-ração.do dano como reacção criminal, a morte, antes da efectiva reparação,deveria extinguir o correspondente dever. -E, então, a v.ítima ficaria pri-vada- da reparação, injustiça que não acontece no -caso de a reparação .do danoser considerada e juridicamente tratada como obrigação jurídico-civil, -Poisque, neste caso, a morte não extingue a obrigação de reparar o dano, umavez. que esta obrigação "acompanha" a herança deixada Pelo infractor ..

Ou .seja: a concepção jurídico-penal da reparação do dano, em vez.de "beneficiar", prejudicaria a vítima lesada,

§ 203. Terceiraconsiderar a reparação do dano como sanção penale, simultaneamente, estabelecer como critério .do montante da indemni-zação os danos efectivamente provocados implicaria um tratamentopenal igual de ricos ,e pobres, violando-se" assim, o princípio político--criminal e, jurldico-pena] de que as sanções penais pecuniárias devemter em conta a situação económica.do condenado. É que, a gravidadeda pena deve ccrresponder.à gravidade, do. crime; ora, uma indemniza-ção de, p. ex., 1.000 euros..a cargo de um pobre, constitui um "castigo"maior do que se recair sobre um rico.

Digamos que a mesma, objecção, que foi invocada contra o. antigoregime da pena de, multa fixa e que levou à sua substituição pelo actualregime dos dias-multa (cf art, 47.°-2 - em que o número de dias de.

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112Parte I - Quesrões Fundamentais

multa deve ser proporcional à gravidade do ilícito e da culpa, mas já ocorrespondente a cada dia-multa deve ter em conta a situação económicado infractor), também, aqui, tinha cabimento.

§ 204. Quarta: os defensores da natureza penal da reparação do danoreferem que os fins preventivos de ressocialização (prevenção especialpositiva) e de. pacificação social (prevenção geral positiva) são realizá-veisatravés desta inclusão da reparação do dano no âmbito das reacçõescriminais, ao lado da pena e da medida de segurança.

Podendo isto ser verdade, eles esquecem, porém, a função de inti-midação ou dissuasão da pena (quer geral, em relação a todos ospotenciais infractores, quer especial, em relação ao infractor lesante epotencial reincidente). Ora, esta função dissuasora, que não pode serbanida do conjunto dos fins da pena, desaparecia em relação aos casosde crimes patrimoniais, em que ao empobrecimento da vítima corres-pende um enriquecimento do infractor (casos, p. ex., dos crimes defurto, abuso de confiança, burla, usura). Se, além da :reparação dodano (que se traduzirá, na prática, em entregar à vítima aquilo que lhefoi criminosamente retirado), não houver a possibilidade de aplicaçãode uma verdadeira pena, então o potencial infractor será motivado a pen-sar: vale a pena experimentar (i. é, p. ex., furtar ou burlar); e o poten-cial reincidente também pensará: vale a pena repetir (o furto ou aburla); pois o máximo que me poderá acontecer é ter de devolver o quecriminosamente subtraí à vítima.i.

3.2.2. A natureza jurídico-civil da reparação do dano, emboracom relevância jurídico-penal

§ 205, Como já o referimos (§ 195), a política criminal actualtem vindo a chamar a atenção para a necessidade e justiça de o direitopenal ter em conta os legítimos interesses da vítima, nomeadamente noaspecto da reparação dos danos ou prejuízos provocados pelo .crime.Mas esta preocupação político-crim.inal com os interesses da vítima e daspessoas dela economicamente dependentes não tem, de modo algum,de levar a uma como que privatização do direito penal, nem sequer pre-cisa da conversão da reparação das "perdas e danos" de sanção civilem sanção penal.

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Tttulo J - O problema criminai-penol 113

Entendemos que o direito e o processo penais devem manter asua natureza pública (cf. § 180 5S.) e a sua estrutura essencialmentebipolar (o Estado com, o seu ius puniendi e o infractor) e que a obrigaçãode reparação dos danos deve manter a sua natureza [urídíco-cívil eo respectivo regime jurídico (cf, § 190 ss.).

E este entendimento é perfeitamente compatível com a satisfação doslegítimos interesses da vítima e, por outro lado, compatível tambémcom uma razoável política criminal lmputadora de relevância jurídico--penal à reparação (espontânea, o que não quer dizer desinteressada oualtruísta) do dano.

Ou seja, compatível com os interesses jurídico-civis da vitima, e comos "interesses" jurídico-penais do infractor.

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§ 206. Este foi, adequadamente, o caminho seguido pelo nossosistema penal, Caminho que, repetimo-lo, acautela os interesses davitima e atribui a devida relevância jurídico-penal (exclusão ou ate-nuação da pena) à reparação do dano, sem cair nos inconvenientesapontados à posição dos que defendem, para a reparação do dano,uma metanóia da sua natureza civil em natureza penal ou quase-penal(cf. § 201 S5.).

Vejamos, sem preocupação exaustiva, algumas disposições donosso CP e uma ou outra lei penal extravagante.

§ 207. O art, 71.°-2-c) estabelece: «Na determinação concreta dapena, o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo partedo tipo de crime, depuserem a favor do agente [ ... ], considerando,nomeadamente [... ] a conduta [... ] posterior [ao factoJ, especialmentequando esta seja destinada a reparar as consequências do crime». - Eisuma atenuação da pena, que constitui-uni estímulo à reparação dodano e que se justifica político-criminalmente. Que constitui um estí-mulo à reparação do dano e, portanto, à satisfação dos interesses davítima, eis o que é evidente. Que, na perspectiva do infractor, é polí-tico-criminalmente justificada, tal resulta de a reparação (espontânea)do dano tornar menor a necessidade preventivo-geral de pacificaçãosocial e de confiança comunitária na norma violada, e também reduzira necessidade preventivo-especial de ressocialização e de dissuasãoindividual,

8-0ir. Penal

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114 Parte J - Qllescões Fundamentais

. § 208. Logo a seguir, o art, n."-2-c) impõe a atenuação especialda pena, quando existirem circunstâncias posteriores ao crimeque dimi-nuam, acentuadamente, a necessidade da pena, considerando esta mesmadisposição legal que uma dessas circunstâncias é «ter havido actosdemonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente areparação, até onde lhe era possível, dos danos causados».

'. Eis, novamente, como o cumprimento (nesta caso, necessariamente,espontâneo, pois, caso contrário, não é sinal de arrependimento sincero)da obrigação civil de reparar o dano constitui uma causa da atenuaçãosubstancial e obrigatória da pena. Também esta significativa atenuaçãoda pena, com base na verdadeiramente espontânea reparação dos danos(patrimoniais e não patrimoniais), constitui um forte estímulo para queo infractor os repare e, assim, fiquem satisfeitos os interesses da vítimalesada; e tal atenuação justifica-se, político-criminalmente, uma vez quetal reparação é sinal de uma menor necessidade da pena, quer na pers-pectiva preventivo-especial, quer na perspectiva preventivo-geral.

. § 209. Por sua vez, o art. 74.0-1-b) e 2, referindo-se à pequena cri-minalidade (crimes puníveis com pena de prisão não superior a 6 meses oucom multa não superior a 120 dias), condíciona a dispensa da' pena àreparação do dano. - Eis, novamente, um razoável e adequado estimuloà satisfação dos interesses da vítima, estímulo que é, político-criminalmente,justificado. E é de registar que esta preocupação com a vítima levou olegislador a permitir (mas permissão que o tribunaldeve utilizar) o adiamentoda sentença por. um ano, quando a reparação ainda não tiver sido reali-zada, mas houver razões para crer que está em vias de se verificar.

§ 210. Relativamente aos crimes exclusivarnentepatrimoniais (i. é,em que não haja violência pessoal - casos do furto, abuso de con-fiança, apropriação ilegítima em caso de acessão ou de coisa achada,dano, alteração de marcos, burla, infidelidade, abuso de cartão de garan-tia ou de crédito, receptação), o art. 206.°-2 estabelece a atenuaçãoespecial obrigatória da pena, se o infractor tiver restituído a coisa oureparado integralmente o prejuízo causado, até ao início da audiência dejulgamento em l." instância. E o n." 3 deste mesmo artigo atribui ao tri-bunal a faculdade de atenuar especialmente a pena, se a restituição ou'reparação do prejuízo forem parciais; mas, na hipótese de a não restituição

Tltulo I - O problema crimillal-pe1lãl 115

ou reparação integrais resultarem de uma impossibilidade do infractor,dever-se-à entender que o tribunal deve (e não apenas pode) proceder àatenuação especial da pena.

Ora, vê-se que, também neste caso dos crimes patrimoniais, o nossoCP teve em conta os interesses da vítima através do mecanismo jurí-dico-penal da atenuação especial da pena, mecanismo este que é coro-lário do princípio político-criminal de que, sendo menores as necessidadespreventivas da pena, menor esta deve ser.

§ 211. Estes princípios e o correspondente regime jurídico-penal,fundamentados político-criminalmente e orientados para a satisfação dosinteresses da vítima lesados por um facto criminoso, também se mani-festam na legislação penal extravagante.

A título meramente exernplificativo, vejamos o Dec-Lei n." 454/91,na redacção que lhe foi dada pelo Dec-Lei n." 316/97, de 19 de Novem-bro. O art 11."-5 estabelece a extinção da responsabilidade penal, seo infractor (o emitente do cheque sem provisão) regularizar a situação(i. é, depositar.ina instituição de crédito sacada, ou pagar directamenteao portador do cheque o montante deste), no prazo de 30 dias, a con-tar da notificação feita pela respectiva instituição de crédito.

No caso de a regularização da situação ser posterior aos referidos30 dias, mas se efectuar até ao início da audiência de julgamento emP instância, prevê o n." 6 do mesmo art. 11.° a possibilidade de ate-nuação especial da pena.

§ 212. Nesta mesma linha de estímulo do infractor à reparação dodano, a Lei n,? 57/98, de 18 de Agosto (lei da identificação e registo cri-minais), art. 16.°-2, estabelece, como uma das condições para o cancela-mento provisório da sentença condenatória.'o cumprimento da obrigação deindemnização da vítima, ou a prova da impossibilidade deste cumprimento.

§ 213. Conclusão: o facto de o nosso CP considerar - e bem -que a obrigação de reparar os danos (patrimoniais e não patrimoniais)tem natureza civil e, como tal, deve ser regulada pela lei civil (art, 129.°),não implica, como se demonstrou, que não tenha na devida atenção osinteresses da vítima lesada por um facto que constitui, simultaneamente,

.um crime e um ilícito civil. Logo, não é necessária a transmutação da

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116Porte [ - Questões Fundamentais

-------------_.---obrigação de reparação dos danos de "sanção" civil em sanção jurídico--criminal, ao lado da pena e da medida de segurança (12).

§ 214. O legislador contemplou, ainda, as situações em que oinfractor não tenha possibilidades de reparar os prejuízos causa-dos .: E dividiu estas situações em dois grupos: o dos crimes de homi-cídio e ofensas corporais graves, e o dos restantes crimes. O primeiroestá referido no art. 130.°-1 do CP e descrito no Dec.-Lei n." 423/91,de 30 de Outubro, e na Lei n." 10/96, de 23 de Março; ao segundogrupo se referem os n.os 2 e 3 do mencionado art. 130.°, os quais tam-bém estabelecem o respectivo regime jurídico.

Em ambas as situações, o Estado, dada a impossibilidade de oinfractor reparar os danos, assume ele próprio o dever de o fazer.

§ 215. Nos casos de homicídio ou de ofensas corporais graves,o Estado assume, directamente, o dever de conceder, segundo critérios

(IZ) A Lei n." 21/2007, de 12 de Junho, criou - para já, a título experimental -o chamado "regime de mediação penal", que permite que, verificados determinadospressupostos, o processo penal possa ser substituído pelo "processo de mediação". Tam-bém a Lei n," 59/2007·- que procedeu à revisão do Código Penal - previu, no n." 1do art. 206.", em certas hipóteses de furto e de abuso de confiança, a exrinção da res-ponsabilidade penal. no caso de haver «concordância do ofendido e do arguido».

'Estas possibilidades. acabadas de referir, não permitem, contudo, a qualificação da"reparação do dano" como uma espécie de "terceira" sanção criminal" I a acrescer àpena e à medida de segurança. Contra uma tal qualificação estão •.em síntese, estasduas razões: por um lado, o facto de a "mediação" s6 ser admissivel relativamente a cri-mes cujo procedimento criminal dependa de queixa ou de acusação particular (art, 2."-1); por outro lado, a exigência de acordo entre o ofendido e o arguido (arts. 3.·, 4.· e5."). Significa isto que, no procedimento de mediação penal, não se trata senão deuma como que formelização daquilo que, na prática, já é corrente ocorrer entre o ofen-dido e o infractor, nos crimes cujo procedimento criminal depende da apresentação dequeixa pelo ofendido. Ora. tal como no acordo (à margem de qualquer intervenção doMinistério Público) entre o ofendido e o infractor - acordo que leva a que aquele nãoapresente queixa e, assim, não haja lugar a responsabilização penal deste -, também. noprocesso de mediação. as consequências resultantes do acordo não têm natureza penal.Donde a conclusão de que, também no .procedimento de. mediação, a reparação davítima não tem natureza penal, não se podendo, assim. considerar uma tal reparação comoumaoutra espécie de consequência jurídico-penal, isto é. como uma sanção criminal, aacrescer e 30 lado da pena e da medida de segurança.

Titulo [ - O problema criminal-penal 117

de equidade, uma indemnização (restrita aos danos patrimoniais, direc-tos e indirectos) à vítima lesada, ou, no caso de morte, às pessoas quetinham o direito de alimentos, segundo a lei civil.

Segundo o art, 1.°-2 do Dec.-Lei n." 423/91, o direito de indemni-zação a cargo do Estado, «mantém-se mesmo que não seja conhecida aidentidade do autor dos actos intencionais de violência ou, por outrarazão, ele não possa ser acusado ou condenado».

§ 216. Nos restantes casos, ou seja, quando os danos tiveremsido causados por um qualquer crime (exceptuados o homicídio e ofen-sas corporais graves dolosas), é o próprio tribunal que, segundo oart. 130."-2, pode atribuir ao lesado os objectos utilizados na prática docrime, ou deste resultantes, e o valor das vantagens provenientes docrime e transferidas para o Estado; e, segundo o n." 3 do mesmo artigo,no caso de o dano ir ao ponto de deixar o lesado sem meios de sub-sistência, o tribunal atribuirá a este o montante da multa, «no todo ouem parte e até ao limite do dano». Logicamente, que tanto neste casocomo no caso de homicídio ou ofensas corporais graves dolosas, oEstado fica sub-rogado no direito do lesado à indemnização, até aomontante que tiver sido prestado.

SECÇÃO Il

o DIREITO PENALE O DIREITO DE ORDENAÇÃO SOCIAL

§ 217. Mais discutida e dificil se apresenta a distinção entre o direitopenal e o direito de ordenação social. Difíêil, desde logo no campo teó-rico ou dos princípios, pelo facto de, tanto num como noutro destes ramosdo direito, estarem em causa valores ou bens jurídicos sociais; e difícil,também no campo prático dos respectivos regimes jurídicos materiais e pro-cessuais, uma vez que li realidade da evolução legislativa recente temido no sentido oposto à ideia histórica inicial da quase total autonomiae separação entre estes dois sectores do direito público sancionatôrio.

Na verdade, se já O diploma fundador do direito de mera ordenaçãosocial português, o Dec-Lei 11. o 232/79, de 24 de Julho (substituído, com

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!l8 Parte [- Questões Fundamentais___ ~ ~'W_~ __ • ' __

base na sua inconstitucionalidade orgânica, pelo Dec-Lei 11. o 433/82,de 27 de Outubro, que manteve praticamente o conteúdo norrnativodaquele), não continha um regime jurídico geral claramente distinto doregime geral do direito penal, então a revisão do regime geral das contra--ordenações, operada pelo Dec-Lein. o 244/95, de 14 de Setembro, apro-ximou, ainda mais, do direito penal o regime geral do direito de mera orde-nação social. Exemplos desta, teórica e praticamente,' indesejávelaproximação são: os casos da punição do concurso de contra-ordena-ções (art. 19.°), em que, em vez da razoável adopção do critério da acu-mulação material, se optou pelo cúmulo jurídico; a gravidade das san-ções acessórias contra-ordenacionais (art, 21.°) que não ficam a devernada à gravidade elas penas criminais acessórias; a proibição da refor-tnatio in peius (art. 72.o-A), tal como no processo penal, Mas comecemospor uma breve referência à história do direito de mera ordenação social.

1. Antecedente remoto do direito de ordenação social: as contra-venções

§ 218. No séc. XVIlJ, o Estado-Polida, correspondente ao chamadodespotismo iluminado e à última fase do absolutismo monárquico, carac-terizou-se por um acentuado intervencionismo na economia e na socie-dade. Deste intervencionismo resultou a criação de uma ampla gama denormas jurídicas regularnentadoras dos mais variados aspectos da vidaeconómica e social. Dada a ausência de qualquer preocupação com osdireitos individuais, o sancionamento das transgressões às normas regu-lamentadoras administrativas cabia às diversas autoridades policiais,

§ 219. Com o aparecimento do Estado-de-Direito, em fins doséc. XVIII/princípios do séc. XIX, e as correspondentes consagraçõesconstitucionais dos direitos, liberdades e garantias individuais, e do prin-cípio da legalidade da Administração Pública, as sanções contra os trans-gressores das normas regulamentadoras administrativas passou a ser dacompetência dos tribunais.

Surge, então, a figura das contravenções, ao lado crime. Assim,embora consideradas menos graves que este, também passaram a sertidas como infracção penal.

Titulo { - O problema criminal-penal 119

E porque o objecto e o objectivo era a protecção dos interesses daAdministração Pública e, por outro lado, as sanções aplicáveis erampenas (de multa ou pena de prisão curta), a doutrina passou a quali-ficá-las como ilícito penal administrativo por contraposição ao crimeque era designado por ilícito penal de justiça.

§ 220. Alguns autores (p. ex., Ferri) defendiam, para a distinçãoentre contravenção e crime, ou, por outras palavras, para a distinçãoentre o ilícito penal administrativo e o ilícito criminal de justiça, um cri-tério meramente quantitativo: até' determinada pena, a infracção consti-tuiria ilícito penal administrativo ou contravencional; daí para cima, tra-tar-se-ia de um ilícito penal de justiça, isto é, de um crime.

§ 221. Outro autores (p. ex., Goldschmidt, Das Verwaltungsstra-frecht, 1902, e Wolf, "Die Stellung der Verwaltungsdelikte irn Stra-frechts system", in Frank- Festgabe, li, 1930) advogaram uma distinçãomaterial entre o ilícito penal administrativo ou contravenção e o ilícitopenal de justiça ou crime. Enquanto o primeiro consistiria na violaçãodos comandos administrativos destinados a promover o bem-estar social(i, é, violação dos "interesses ou objectivos da administração pública"),já o ilícito criminal traduzir-se-ia na violação do valor justiça, i. é, nainfracção das normas cujo objectivo era o da tutela dos direitos sub-jectivos ou bens jurídicos individualizados.

Sobre este critério, que contrapunha "bem-estar social" (servido pelasrespectivas normas administrativas) a "valor da justiça" (servido pelas nor-mas jurídicas que tinham por objectivo proteger os direitos subjectivos indi-viduais), há que dizer o seguinte: não satisfaz plenamente, uma vez quenão existe uma antinomia ou, sequer, uma total autonomia entre "interesseda administração pública" e "valores da justiça", uma vez que os interessesda administração não podem ser alheios ao valor da justiça.

§ 222. E, com esta minha objecção, já vai uma discordância faceà posição daqueles autores (13) que, actualmente, afirmam que a distin-

(IJ) Por exemplo, FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal, torno J, 2.' ed., Coimbra Edi-tora, 2007, pp. 161-l62.

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120 Pane 1 - Questões Fundamentais

ção material entre ilícito penal e ilícito de mera ordenação social está nofacto de a conduta, configurada pelo legislador como contra-ordenação,ser axiológico-socialmente neutra, enquanto que a conduta, qualificadalegalmente como ilícito penal, ser em si mesma ilícita.

Discordo destes termos de distinção, pois, apesar de, incorrecta-mente, se ter aposto o adjectivo "mera", não se pode dizer que as con-dutas 'qualificadas como ilícito de mera ordenação social são em simesmas (i. é, antes da proibição legal) axiológico-socialmente irrele-vantes. Basta um exemplo: a condução automóvel com excesso develocidade (sem tal atingir o patamar da qualificação como crime), oucom um índice de 0,7 g/l de alcoolémia, é irrelevante segundo a valo-ração social?l - É claro que não. Mais: se fosse exacto que as con-dutas, qualificadas como contra-ordenações, são em si mesmas axioló-gico-socialmente neutras ou irrelevantes, então teríamos de concluirque as decisões legislativas de qualificação como ilícitos de mera orde-nação: eram inteiramente desvinculadas, i. é, eram inteiramente discri-cionárias, ou até arbitrárias.

§ 223. No mesmo sentido de que a figura jurídico-penal da con-travenção é o antecedente remoto (antecedente que, hoje, é uma partedo grande universo das contra-ordenações) do actual ilícito de meraordenação social, ia o art. 3. v do nosso primeiro CP de 1852, que defi-nia a infracção penal chamada contravenção nos seguintes termos: «con-sidera-se contravenção O facto voluntário punível, que unicamente con-siste na violação, ou na falta de observância das disposições preventivasdas leis e regulamentos, independentemente de toda a intenção maléfica»;e O a.rt. 4.° do mesmo CP que estabelecia: «Nas contravenções, é sem-pre punida a negligência» - (o itálico é nosso, obviamente).

Sobre estes artigos, assim comentava Levy Maria Jordão (14): «paraexistir contravenção basta unicamente que haja o facto material da deso-bediência às prescrições das leis ou regulamentos administrativos».E, de seguida, observava: «As contravenções correspondem ao que sechamavam crimes de polícia correccional». O mesmo autor, na mesmalinha ,de contraposição entre "interesses administrativos" (protegídos

(14) Commcntário ao Código Penal Portuguet, (orno r, Lisboa, 1853. pp. 10 e 11.

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Tttulo I - O problema criminal-penal 12\

pelo direito das contravenções) e "direitos subjectivos" ou "interesses dejustiça" (protegidos pelo direito criminal), comentava, desta forma, oart. 1.0 do referido CP de 1852: o crime é «o facto violador dos direi-tos individuais ou sociais».

§ 224. Conclusão: o ilícito penal administrativo ou contravencio-nal (contravenções) gerou-se para proteger os interesses da administra-ção pública na ordenação da sociedade. Hoje, estes interesses, cujaviolação constituia a infracção penal chamada contravenção, são prote-gidos pelo direito de ordenação social, cuja infracção configura umacontra-ordenação.

2. Factores político-sociais e político-criminais da criação do direitode ordenação social

§ 225. O direito de ordenação social resultou dos efeitos convergentesde dois fenómenos de diferente natureza: por um lado, a consagração eefectivação do Estado de Direito Social; por outro lado, a afirmação deuma nova política criminal que procurou reconduzir o direito penal a umverdadeiro último recurso da política social e da política jurídica,

2.1. Factores político-sociais: o Estado de Direito Social

§ 226. Como é do conhecimento geral, durante o séc. XIX e pri-meiras décadas do séc. XX, vigorou o Estado de Direito Liberal. Ospilares filosófico-políticos deste Estado foram os dogmas do indivi-dualismo e do naturalismo, ou seja: preocupe-se o Estado apena.s coma defesa externa e com a ordem intema.-pois que o indivlduo, entreguea si mesmo e relacionando-se livremente com os outros, será o motor doprogresso económico e social.

A realidade, porém, veio a contradizer este optimismo liberal eindividualista. Com efeito, as consequências económicas e sociaisforam desastrosas: em vez da livre concorrência, assistiu-se à criaçãode oligopólios e de cartéis; em vez da satisfação das necessidades bási-cas dos trabalhadores, assistiu-se à exploração do trabalhador e a umainjustiça social clamorosa, ao ponto de, pela primeira vez na história da

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122 Parte [ ~ QueSlões Fundamentais

Igreja. Católica, o papa Leão XIII ter publicado, em 1891, a célebreencíclica Rerum Novarum, onde denunciava a exploração do trabalhadorpelo capital e defendia o valor pessoal e económico do trabalho.

§; 227. Progressivamente, a consciência social e política, nomea-damente na Europa Ocidental, evolui no sentido de que a simples pro-clamação dos direitos individuais não' é suficiente para a promoção deurna ordem social minimamente justa. A democracia política não é umfim, mas um meio para a progressiva democratização económica, sociale cultural. E cabe ao Estado promover uma tal democratização.

Neste contexto, o social é assumido como um pilar fundamentalda organização política; agora, i. é, a partir do termo da 1Grande Guerra,mas, de forma mais acentuada, a partir da 11 Grande Guerra, as Cons-tituições passam a ter uma estrutura e um conteúdo tripolar - indiví-duo, sociedade e estado -, em vez da estrutura bipolar - indivíduo eestado - característica das constituições liberais oitccentistas ..

Efectivamente, as Constituições posteriores à Il Grande Guerraregistam e consagram os traços característicos do Estado de DireitoSocial: a "igualdade de oportunidades", que implicam uma cornple-rnentação da igualdade perante a lei com a igualdade material; a afir-mação dos "direitos :fundamentais positivos" (direito à educação, à assis-tencial social, etc.), ao lado dos tradicionais "direitos fundamentais

. negativos" (os direitos, liberdades e garantias individuais); a consagra-ção da função (direito-dever) estadual de intervenção reguladora e pro-motora do processo económico e do processo social global, qual con-dição da realização da referida igualdade de oportunidades e dosmencionados direitos fundamentais positivos.

§ 228. Esta nova concepção da sociedade e do Estado levou, neces-sariamente, à criação de uma multíplicidade de normas jurídicas nosmais diversos sectores do social: normas económicas (societárias, fiscais,etc.); normas sobre as subvenções sociais; normas urbanísticas; normassobre o ambiente, pois que, nesses meados do séc, XX, começa a tornar-seconsciência dos graves riscos, para as gerações presentes e vindouras, daindustrialização desordenada e da hiperconcentração urbana.

Diante desta enormemente crescente produção legislativa, levanta-se,à doutrina e ao legislador, a questão: que tipo de sanções aplicar aos

Tetulo J ~ O problema crtnünot-oeno; 123

destinatários infractores?; a quem deve ser atribuída a competênciapara julgar as respectivas infracções?; em que ramo do direito incluirestas normas?

A resposta foi: inclul-las no direito civil, nãol, pois que estas nor-mas protegem interesses sociais.. incluí-las no direito administrativo,também não, pois que, embora caiba à administração pública promovere fiscalizar 6 cumprimento destas normas, estas protegem interessessociais que não coincidem com os interesses tradicionalmente tuteladospelo direito administrativo, para além de à infracção destas novas nor-mas deverem corresponder sanções punitivas, que exorbítam do quadrosancionatório especifico do direito administrativo; incluí-las no direitopenal? - de forma alguma, pois tal implicaria uma hipercriminalízaçãoque asfixiaria os tribunais penais, para além de muitas destas normas ecorrespondentes infracções não terem a dignidade penal exigível para asua criminalização (cf. § 66 s.),

Restou Como alternativa adequada-a criação de uma nova figura- a "contra-ordenação" ---"a ser incluída num novo ramo do direito,chamado "direito de ordenação social", com um regime jurídico mate-rial e processual próprio.

2.2. Factores político-criminais

§ 229. A estes factores político-sociais vieram somar-se novosfactores político-criminais. Com efeito, em quase simultaneidade comesta intervenção estadual normativo-conforrnadora da ordenação social,surgiram razões político-criminais que convergiam na mesma conclusãoda necessidade, teórica e prática, da criação de um novo sector jurídicopúblico e sancionatório.

Estamos a referir-nos aos fenômenos seguintes: o aparecimento, nosanos sessenta/setenta, das novas, complexas e graves formas de crlmí-nalidade organizada, como o terrorismo (nomeadamente, em Itália ena Alemanha) e o narcotráflco; a críminalidads económica grave, resul-tante da consciencialização social e política de que o chamado "crime docolarinho branco" é gravemente corrosivo do sistema social e político, emuito mais danoso do que muitas'das infracções criminais individuais con-tra o património alheio (p. ex., furto, abuso de confiança); finalmente, o

. movimento político-criminal da descriminalização, baseado muna refor-

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124 Parte I - Queslões Fundamentais

çada consciência de que O direito penal deve, realmente, ser assumidocomo o último cios recursos da política social e jurídica.

Na .verdade, o movimento da descríminalízação opunha-se a queestas novas infracções à ordenação social fossem incluídas no direito penal.É que este movimento, baseado 00 princípio da intervenção mínima dodireito penal, só podia aceitar a criminalização'das condutas, que fossem, porum lado) ético-socialmente muito graves (tivessem a chamada "dignidadepenal") e que, por outro lado e além disso, não houvesse outros meios san-cionatórios, além das penas, susceptíveis de proteger tais 'valores sociais (i.é, em relação às quais se afirmasse a .charnada "necessidade penal").

Ora, em relação à generalidade destas novas infracções sociais, nãose verificavam estes pressupostos da crirninalização. Logo, deveriam ficarfora do direito penal.

Por sua vez, as novas formas de crlminalidade grave e organi-zada (terrorismo, narcotráfico, etc.) não podiam deixar de ser incluídas nodireito penal. Ora, tendo em conta a grande complexidade desta nova cri-minalidade, a investigação e o julgamento destes novos crimes passarama exigir dos órgãos de justiça criminal uma atenção e um tempo redobrados.

Portanto, também este foi um factor impeditívo da inclusão dosreferidos ilícitos de ordenação social no direito penal. Caso contrário,os órgãos de investigação criminal e os tribunais.ficariam saturados e blo-queados no seu funcionamento.

3. Conclusão: a inevitabilidade da criação de um novo e especificoramo do direito público sancíonatérío: o direito de ordenação social

§ 230. A conjugação dos fenómenos, acabados de referir, nãopodia deixar de levar à criação de um novo ramo do direito, que seveio a chamar, com propriedade, direito de ordenação social. Pois; porum lado, estes novos interesses da ordenação social precisavam, paraserem eficazmente protegidos, de uma tutela jurídica punitiva; e, poroutro lado, embora estes novos interesses começassem a ser assumidoscomo socialmente relevantes (cf. § 222), a verdade é que, relativamentea uma parte deles, entendia-se, e entende-se, que a sua lesão não põedirectamente em causa a estrutura axiológica fundamental da sociedade,indispensável à realização pessoal individual, e/ou ainda não tinham

Titulo I - O problema criminol-penni 125

adquirido a suficiente ressonância ético-social que justificasse a crirni-nalização das respectivas infracções (cf. § 66 ss.).

§ 231. Ao decidir-se O legislador, por influência da doutrina, pelacriação do direito de ordenação social, como ramo jurídico punitivoespecífico e autónomo do direito penal, foi natural que o antigo ilícitopenal administrativo, i. é, as contravenções passassem também a serincluídas neste novo ramo do direito. É que, paralelamente à já referidatendência descriminalizadora, ia a consciência de que a maior parte dascontravenções não possuíam a suficiente "dignidade penal" para quefossem consideradas infracções penais, ao lado dos crimes.

Assim, o novo direito de ordenação social passou a incluir as novasinfracções dos novos "interesses sociais" (fiscais, ecológicos, etc.) e amaior parte das antigas infracções contravencionais (p. ex., as infracçõesrodoviárias).

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4.

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A autonomia do direito de ordenação social face ao direito penal

§ 232. O Dec-Lei 11." 433/82, que contém o regime geral das con-tra-ordenações, dá, no art. 1.°, a seguinte definição de ílícito de ordenaçãosocial: «constitui contra-ordenação todo o facto ilicito e censurável quepreencha um tipo legal no qual se comineuma coima». Trata-se, pois,de uma definição formal, consequenciaI: define-se o ilícito (que, talcomo o crime, tem que estar tipíficado) pela sanção.

Logo, positivo-formalmente, a contra-ordenação distingue-se docrime porque àquela corresponde uma colma enquanto que a este seaplica uma pena. .

4.1. A autonomia material do ilícito contra-ordenacional

§ 233. Mas, uma vez que pena e coima são sanções punitivas dediferente natureza, e, eventualmente, com finalidades não coincidentes,natural e razoavelmente que também os respectivos ilícitos (criminal econtra-ordenacional) hão-de ser diferentes.

Tem-se discutido se entre o ilícito contra-ordenacional e o. ilícitopenal existe uma distinção qualitativa (material) ou somente uma distinçãoquantitativa (formal). .

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J26 Pane r - Questões Fundamentais

Parte da doutrina alemã nega que entre crime e contra-ordenação 'hajauma diferença material ou qualitativa.

Entre nós, o entendimento largamente maioritário vai no sentidoda distinção qualitativa. Assim, p. ex., Eduardo Correia - o grandeimpulsionador da criação legislativa do direito de "mera" ordenaçãosocial e autor do respectivo projecto legislativo - afirma que o ilí-cito de ordenação social é um aliud e não um minus, em relação aoilícito penal; isto é, a contra-ordenação é um ilícito de natureza subs-tancialmente diferente do crime. E, provavelmente para acentuar estadistinção material, resolveu, injustificadamente, acrescentar à desig-nação "direito de ordenação, social" o adjectivo mera, passando adenominar-se este novo ramo jurídico por "direito de mera orde-nação social". Assim, também, no preâmbulo do Dec.-Lei n." 232/79,lia-se: «a contra-ordenação é um aliud que se diferencia qualitativa-mente do crime na medida em que o respectivo ilícito e as reacçõesque lhe cabem não são directamente fundamentáveis num plano ético--jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários dodirei to -crirn inal»,

§ 234. Também Figueiredo Dias vai nesta mesma linha da auto-nomia material e consequente distinção qualitativa, arguinentando- contra os que negam a possibilidade de uma distinção material entreestes dois ilícitos, com base na impossibilidade da existência de um ilí-cito que seja ético-socialmente indiferente, mesmo que ele seja de meraordenação social - que, embora seja evidente que não há nenhum ilí-cito que seja ético-socialmente indiferente (pois, a partir da valoração--proibição legal, qualquer conduta adquire, necessariamente, ope legis,relevância ético-jurídica e ético-social), o certo é que, consideradas as con-dutas em si mesmas, antes da proibição legal, há umas que são "axio-lógico-socialmente relevantes" e outras que são "axiológico-socialrnenteneutras, i. é, irrelevantes".

Ora, segundo este autor, «É este o critério decisivo que está nabase do principio normativo fundamentador da distinção material entreilícito penal e ilícito de mera. ordenação social» (15).

(IS) FIGVélREDO DIAS, Direito Pellal, tomo I, Coirnbra Editora, 2007, pp. 161-163.

!!!::!.o I - O problema critninal-p enai 127

Como exempiificação da validade desta sua argumentação - e deque, mesmo naqueles casos em que parece, primafade, que há apenasuma critério quantitativo a distinguir crime e contra-ordenação, há, real-mente,um critério qualitativo -, Figueiredo Dias apresenta o caso da"alcoolémía ao volante",

Sobre este caso, diz o seguinte: o facto' de a condução com umaalcoolémia entre 0,5 e 0,8 g/l constituir uma contra-ordenação grave, ese for entre 0,8 e 1,2 gll configurar contra-ordenação muito grave, masjá se for igualou superior à 1,2 g/I constituir crime, não significa queesteja em causa um critério puramente formal-quantitativo, mas sim que;a conduta de condução com 1,2 gll, ou mais, de álcool no sangue «toma-se~tico-socialmente relevante e passa a constituir substrato susceptível dea ele se ligar a respectiva cri.ll1inalização - atento o salto "qualitativo"'que naquele limite sofre a perigosidade social da conduta e a sua "cen-surabilidade ética", .

§ 235. A minha posição também vai 110 sentido de uma diferençaqualitativa entre o ilícito criminal e o ilícito contra-ordenacional e, por-tanto, entre o direito penal e o direito de ordenação social,

Mas recuso o critério que contrapõe condutas "axiológico-sociahnenteou ético-socialmente relevantes" (aquelas que poderão ser configuradascomo crime) a condutas "axiológico-socialmente ou ético-socialmente irre-levantes" ou neutras (aquelas que nunca poderão ser configuradas comocrime, mas somente corno "mera" contra-ordenação).

Com efeito, não é verdade que a contra-ordenação ou ilícito de orde-nação social tenha por substrato urna conduta axiológíca-socialmeme ouético-socialmente irrelevante ou neutra. Nãol; basta compulsannos qual-quer categoria de contra-ordenações (sejam fiscais, ambientais, urbanís-ticas, rodoviárias, etc.), para vermos e constatarmos que as respectivascondutas não são proibidas por proibir, mas, sim, que se trata de condu-tas que são, em si mesmas, socialmente desvalíosas e censuráveis.

Esta minha afirmação é válida para toda e qualquer infracção con-tra-ordenacional, e não apenas em relação àquelas condutas que sesituam naquela zona cinzenta, entre o ilícito de ordenação social e oilícito penal, e que, portanto, tanto poderão ser qualificadas, legalmente,como contra-ordenação ou como crime, tudo dependendo da aprecia-ção discricionária do legislador num ou noutro sentido.

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128 Parte f - Questões Fundamentais

; § 236. E O argumento apresentado por Figueiredo Dias, em minhaopinião, não só não é procedente, como até contradiz o critério queapresenta. Vejamos: quem poderá dizer que a condução automóvel,com um grau de alcoolérnia de 0,5 a 1,1 g/1, não é uma conduta axio-lógico-social e ético-socialmente (negativamente) relevante, só o pas-sando a ser quando for igualou superior a 1,2 gfl?! - Parece evidenteque; com razão, ninguém o poderá afirmar,

. Mais: será que podemos considerar arbitrária a distinção que, aden-tro das contra-ordenações, o legislador estabelece entre a condução comurna alcoolérnia de 0,5 a 0,7 g/l (contra-ordenação grave) e a conduçãocom uma alcoolémia de 0,8 a 1,1 g/l (contra-ordenação muito grave)?- Parece evidente que não. E não porque, embora tanto uma como outrasejam ético-socialmente censuráveis (e, por isto, possam ser configura-das. como ilícitos de ordenação social), a verdade é que a segunda ésocialmente mais perigosa e, nessa medida, mais censurável e, conse-quenternente, considerada contra-ordenação muito grave.. sendo maisseveramente punida que a primeira.

§ 237. É claro que, com esta crítica, não estou a negar que, noexemplo da alcoolémia ao volante, haja um ponto, a partir do qual areprovabilidade ético-social e ético-jurídica dá um "salto qualitativo", emconexão com o "salto qualitativo" da conduta, que de perigosa (e, comotal, considerada contra-ordenação) se converte em tão perigosa quepassa, justificadamente, a ser considerada crime.

O que se refuta é que, enquanto contra-ordenação, a conduta (con-duzir com um Indice de alcoolémia entre 0,5 e 1,1 g/l) seja, em simesma (i. é, antes da proibição legal), irrelevante ou neutra, segundo avaloração ético-social.

E estará, aqui, a razão por que eu afasto o adjectivo "mera",enquanto os autores referidos (Eduardo Correia e Figueiredo Dias) pare.-cem aceitar como normal e adequada a junção deste qualificativo à sufi-ciente e correcta designação direito de ordenação social ou illcito deordenação social. Este (desnecessário e equivocante) adjectivo terá pre-tendido salientar a diferença substancial entre o direito penal (e o crime)e o direito de ordenação social (e a contra-ordenação).

Ora, digamos que a intenção foi boa, só que, além de desnecessá-rio, tal adjectivo pode contribuir para iludir ou contornar a realidade.

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§ 238. A realidade é que o direito de "mera" ordenação socialnão protege uma qualquer ordenação social, como que segundo o "capri-cho" do legislador, mas sim tutela valores sociais.

Valores que, por um lado, é função do Estado proteger e, atravésdas respectivas sanções punitivas contra-ordenacionais, levar a que oscidadãos e as pessoas colectivas se consciencializem da sua relevânciasocial (mesmo que se trate de "simples" valores de estética urbanís-tica); mas valores sociais ou individuais, que não são considerados,num dado momento histórico-cultural, como fundamentais ou indis-pensáveis às exigências mínimas da vida comunitária elou da realizaçãopessoal individual (cf § 67); ou, então, valores sociais ou individuais(p. ex., nos casos do conswno de droga, ou do não uso do "cinto de segu-rança") que, embora tidos por fundamentais, o legislador entenda comosuficiente e adequada a sua inclusão no âmbito da tutela do direitode ordenação social, e, assim, qualifique a sua infracção como con-tra-ordenação, tendo em conta o principio basilar da subsidiariedade dodireito penal (cf § 68).

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§ 239. Conclusão: também o direito de ordenação social protegevalores ou interesses sociais; e também as condutas qualificadas comocontra-ordenações são, em si mesmas, axiológico-socialmente e ético--socialmente, relevantes e censuráveis.

Só que, diferentemente do direito penal, uma grande parte dos valo-res ou bens jurídicos, protegidos pelo direito de ordenação social, nãopertencem à estrutura axiológica fundamental da vida comunitária e darealização pessoal Ci. é, não atingem a categoria da chamada "digni-dade penal"), estrutura que é '0 'objecto próprio do direito penal.

E é nisto, e só nisto, que eu vejo e defendo a distinção material ouqualitativa entre o direito de ordenação social e o direito penal, entre acontra-ordenação e o crime.

Mas dissemos que esta diferença qualitativa se verificava em rela-ção a uma grande parte do direito de ordenação social; portanto, não valepara a totalidade das contra-ordenações, o que, por outras palavras, sig-nifica que o critério qualitatívo ou da distinção material é apenas teu-dencialmente verdadeiro. E isto porque, como o já referimos, por forçado princípio da subsidiariedade do direito penal, pode haver condutas que,apesar de lesarem ou porem em perigo os tais valores fundamentais, i.

9·0it. Penal

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130Parte { - QuesróeJ F Ulldal1lenlais

é, apesar de terem "dignidade penal" (poderem ser criminalízadas), nãosão qualificadas como crime, mas sim como contra~ordenação, pelofacto de o legislador entender como suficiente e adequada a sua puni-ção contra-ordenacional. Logo, nestes casos, olhando para as condutasem si mesmas, estas até podiam ser qualificadas como crime, em vez decontra-ordenação. E este aspecto pode ser relevante para efeitos daconsideração como censurável de uma eventual falta de consciência dailicitude contra-ordenacional, mesmo que haja um desconhecimento da

proibição legal.

;4.2. As sanções contra-ordenacionais

4.2.1. As finalidades

: § 240, Vários autores (p. ex, Figueiredo Dias), partindo do pres-suposto inexacto, e que não corresponde à realidade (cf, §§ 221 s.e 234 55.), de que as condutas contra-ordenacionais são axiológico-socíale ético-socialmente irrelevantes, negam às sanções aplicáveis aos ilícitosde ordenação social os sentidos positivos da prevenção geral e especial.

Isto é, uma vez que as condutas (acções ou omissões), que constituema matéria da proibição legal, não são valoradas negativamente pela socie-dade, nem são assumidas como desvaliosas pela consciência ético-social,então não cabem às respectivas sanções as [unções preventivo-geral posi-tiva de pacificação social e de consciencialização-interiorízação da rele-vância social dos valores ou interesses protegidos pelas normas jurídicascontra-ordenacionais, nem a função preventivo-especial positiva de socia-lização ou ressocialização -funções estas que, como vimos (§§ 89 S5.e 118 55.), são inerentes às penas e às medidas de segurança criminais.

Concluem, então, que as sanções contra-ordenacionais têm umafunção de "mera advertência ou reprimenda" pela não observância dasproibições 01.1 imposições legislativas. Ou seja, só têm uma finalidadepreventiva negativa: geral, no sentido de dissuadirem a generalidadedos-destinatários das respectivas normas; especial, na medida em que dis-suadem o infractor da prática reincidente. .'

§ 241. A minha posição é diferente. E esta diferença resulta e estáconexionada com a minha posição quanto à relevância axiológico-social

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e ético-social das condutas que constituem o objecto da valoração-proi-bição contida nas normas do dii'eito de ordenação social (cf § 235 58.).

Em primeiro lugar, não cabem nas finalidades das sanções contra--ordenacionais as ideias de retribuição.

Em segundo lugar, há que afirmar que as funções principais des-tas sanções são de dlssuasão geral (prevenção geral negativa) e de dís-suasão individual (prevenção especial negativa): dissuasão de todos osdestinatários das respectivas normas; dissuasão do, infractor condenadoem relação à reincidência. Logo: funções de prevenção negativa.

Mas, tendo em conta a relevância social dos interesses, valores oubens jurídicos tutelados pelo direito de ordenação social, as sançõescontra-ordenacionais desempenham, adicionalmente, a função de pro-moção ou aprofundamento da conscíencíalízação social da importânciacomunitária elou individual daqueles valores (e, correlativamente, danegatividade e reprovabilidade das 'condutas .que lesam ou põem emperigo estes valores), e a função de conscíeucíalízação do próprioinfractor condenado. Isto é, embora adicionalmente e de forma menosintensa do que as sanções criminais, as sanções contra-ordenacionaiatambém desempenham funções positivas de prevenção .

4.2.2. As categorias de sanções

4.2.2.1. A sanção principal: coima

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§ 242, Tal como no direito penal, também o direito de ordenaçãosocial estabelece duas categorias de sanções: a coima e as sanções acessórias.A coima é a sanção principaL Segundo o Deu-Lei 0.° 433/82, art. 17.°, oslimites máximos das colmas são diferentes, consoante o infractor é urna pes-soa singular ou uma pessoa colectiva, sendo, porém, igualo limite mínimo.

Assim, tratando-se de uma pessoa individual, a coima pode ir de€ 3,74 a € 3740,98 - art, 17.°-1. Já, no caso de o infractor ser uma pes-soa colectiva, a coima pode ir de € 3,74 [I] a € 44.891;81 - art. 17,°-2.

De acordo com o n." 3 deste mesmo artigo, estando em causa umacontra-ordenação praticada com negligência, os limites máximos sãoiguais a metade dos referidos, que são os aplicáveis às infracções dolosas,

Este mesmo artigo ressalva a hipótese de uma qualquer lei estabe-lecer, para determinada contra-ordenação, um limite máximo superior aos

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132 Parte I - Questões Fundamentais

estabelecidos neste Dec.-Lei n." 433/82, que contém o regime geral dascontra-ordenações, Todavia, há que não esquecer que este regime geral estaconstitucionalmente incluído nas matérias de reserva relativa de compe-tência legislativa da Assembleia da República (CRP, art, l65,"-1-d));donde resulta que um decreto-lei só poderá estabelecer Um limite máximosuperior ao previsto no referido art. 17.°, desde que esteja suportadopor uma lei de autorização legislativa, sob pena de inconstitucionali-dade formal-orgânica.

§ 243. É necessário comparar e distinguir acoíma e a multa.Sendo embora ambas sanções pecuniárias, elas têm, porém, uma natu-reza e um regime jurídico diferente ..

Enquanto a pena tem natureza penal,' a coima, embora tenha umanatureza punitiva, não tem essa natureza penal, .Daqui deverá resultarque a gravidade da culpa desempenhe um papel maior na determina-ção da pena-multa (sem que tal signifique a defesa de. uma concepçãoético-retributiva da pena - cf § 93 55.) do que na sanção-coima. Estaa razão por que, embora, tanto na determinação concreta..da multa comona da coima, o legislador mande ter em conta a situação económica doinfractor (CP, art. 47.°-2; Dec.-Lei n." 433/82, art. 18.°-1), todavia, apena de multa, diferentemente da coima, é, primeiramente, determinadaem dias de multa e, só depois, estabelecido o quantitativo correspondentea cada dia de multa. Ora, os critérios para a determinação dos dias demulta são os mesmos que os da determinação da pena de prisão; o quesignifica que a gravidade da culpa do agente é factor importante nadeterminação da multa final (CP, art. 47,°-1).

Diferença prática muito importante é também a do regime jurídico,no caso do não pagamento: estando em causa a multa, se esta não forpaga, voluntária ou coercivamente, pode ser convertida em prisão (CP,art. 49.°); já a coima nunca pode ser substituída por prisão, mas apenas, .no caso do não pagamento voluntário, ser objecto de execução (Dec-Lein." 433/82, art, 89.°). .

4.2.2.2. As sanções acessórias

§ 244. O elenco das sanções acessórias aplicáveis às contra-orde-nações vem no art. 21.° do referido Dec-Lei n." 433/82. E ele é tão

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amplo e prevê sanções tão graves que faz o leitor espantar-se com a afir-mação (verdadeira) de que a contra-ordenação é um ilícito menos graveque o ilícito criminal, Mas deixemos, por agora, a apreciação critica.

Estas sanções acessórias podem ir da perda de objectos até aoencerramento de estabelecimento, passando pela interdição do exercíciode profissões, privação. do direito a subsídio, etc.

4.3. Competência para o julgamento

§ 24. Segundo o art, 33." do Dec.-Lei n." 433/82, a competênciapara o.processamento das contra-ordenações e para a aplicação. das coi-mas e das sanções acessórias é das autoridades administrativas.

Esta atribuição da competência às autoridades administrativas é umcorolário lógico da já referida (§ 228 s.) necessidade de "libertar" os tri-bunais para o julgamento das infracções mais graves, que são os crimes.

§ 246. Mas, uma vez que as sanções aplicáveis às contra-ordena-ções podem ser muito gravosas, a necessidade de acautelar os direitos e asliberdades fundamentais (p. ex., o direito de propriedade, a liberdade pro-fissional, etc.) implicou que a decisão administrativa possa ser objecto deímpugnação judicial junto do tribunal de L" instância (arts, 59.0 e 61.0).

Em certos casos, nomeadamente quando a coima aplicada for rela-tivamente elevada ou quando, além da coima, for aplicada uma sançãoacessória, pode, ainda, haver recurso. da decisão judicial do tribunalde La instância para o tribunal da relação (art, 73.°). Em princípio,a competência da Relação está limitada à matéria de direito (art. 75.0).

Das decisões da Relação. não há recurso.

§ 247. É compreensível a possibilidade da ímpugnação judicial dasdecisões das autoridades administrativas. Por duas razões: por um lado,vimos já que, não. só as coimas podem atingir montantes muito eleva-dos, como as sanções acessórias se traduzem na afectação de direitos eliberdades fundamentais; por outro lado, as autoridades administrativas,embora estejam sujeitas, nas suas decisões, ao princípio da legalidade,não deixam, contudo, de estarem integradas na estrutura orgânica daadministração pública, faltando-lhes, portanto, aquele estatuto da inde-pendência que caracteriza a função judicial.

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134 Parte f - Q"estões Fundamentais

5. Competência legislativa

§ 248. Segundo a CRP, art. 165.0-1-d), a definição do regime.geral, material e processual, das contra-ordenações é da competênciaexclusiva da Assembleia da República, embora esta possa autorizar oGoverno a legislar sobre esta matéria - reserva relativa.

Já, relativamente à qualificação legal de determinadas condutascomo ilícitos de ordenação social, a competência tanto pertence à Assem-bleiada República como ao Governo - competência legislativa con-corrente (e mesmo a outras entidades, nomeadamente regionais oulocais), É lógica a atribuição desta competência também ao Governo;é O .corolário da necessidade de eficácia e celeridade na qualificaçãolegal de determinadas condutas como contra-ordenações. Celeridade, quea via parlamentar não realiza, e celeridade.que é, muitas vezes, exigidapela rápida alteração das condições económicas e sociais conjunturais.

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§ 249. Mas esta competência legislativa do Governo não lhe per-mite que ele converta um crime em contra-ordenação, i. é, o Governonão. pode qualificar como contra-ordenação uma conduta que esteja qua-lificada como crime, quer esta qualificação tivesse sido feita por uma lei,quer tivesse sido feita por um decreto-lei, baseado numa lei de autori-zação da Assembléia da República.

; E é assim, porque a conversão de crime em contra-ordenação éuma descriminalização da conduta respectiva; ora, só tem competênciapara descriminalizar quem tem competência para criminalizar. E estacompetência é da Assembléia da República (CRP, art, Hi5.Q-c). Logo,só com base numa lei de autorização, é que o 'Governo pode "fazerpassar" uma conduta de crime a contra-ordenação.

E é óbvio que, por maioria de razão, não pode converter uma con-tra-ordenação em um crime.

6. Apreciação crítica de alguns aspectos do regime jurídico geraldas contra-ordenações

§ 250. Uma vez que, como se viu (§ 228), a figura jurídico-puni-tiva da contra-ordenação surgiu como uma alternativa ao crime, alternativa

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Título 1- O problema criminal-penal 135

dotada de autonomia material e processual, então o seu regime jurídicodevia ser substancialmente diferente do regime jurídico-penal. Nãoé isto, porém, o que verifica. Na verdade, se já o regime constante dodiploma fundador do direito de ordenação social, o Dec.-Lei n." 433/82(que reproduziu, praticamente, o Dec.-Lei n." 233/79) se aproximavabastante do regime material do direito penal, esta aproximação agra-vou-se com as alterações introduzidas, no referido Dec.-Lei n." 433/82,pelo Dec.-Lei n." 244/95, de 14 de Setembro.

§ 251. Entre outros aspectos (p. ex., a possibilidade da punição da ten-tativa - art, 13.°), são, nomeadamente.vcrítícâveís os seguintes pontos:

- A gravidade das sanções acessórias. contra-ordenacionais(art, 21.°) que, contraditoriamente com a menor gravidade do ilícito deordenação social relativamente ao ilícito criminal, chega a superar agravidade das penas acessórias (CP, art, 66.0 ss.) e das medidas desegurança não privativas da liberdade aplicáveis a imputáveis (CP,art. 100.° ss.). Tal é o caso da «perda de objectos' pertencentes aoagente», bastando que estivessem «destinados a servir para a prática deuma contra-ordenação», não se exigindo sequer que tivessem efectiva-mente sido utilizados (art. 21.°-1-a) e art. 21.°-A-l); ou o caso do «encer-ramento de estabelecimento» (art. 21.°-1:0 e art. 21."-A-6).

§ 252. A gravidade destas sanções contra-ordenacionais acessó-rias merece o seguinte comentário: esta severidade poder-se-ia justificar,em relação às pessoas colectivas. se estas não fossem susceptíveis de res-ponsabílização criminal-penal. Mas, a partir do momento em que oCódigo Penal de 1982, art. 11,°, veio salvaguardar a responsabilidade cri-minal das pessoas colectivas (e a Revisão do CP de 2007 veio mesmoestabelecer, no n." 2 ss. do art, 11.°; a responsabilidade das pessoascolectivas relativamente a vários crimes previstos no Código Penal).deixou de haver razão para que as sanções acessórias contra-ordena-cionais pudessem revestir a gravidade que. agora e já desde a entrada emvigor da redacção original do Dec.-Lei n." 433/82, efectivamente têm.

Como é sabido, uma das razões que estiveram na gênese da cria-ção do direito de ordenação social foi a necessidade político-criminal depreencher a injustificada lacuna punitiva das pessoas colectivas. Injus-tificada, sob o ponto de vista social, na medida .em que, através das

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136Parte I - Questões FII/~anlen(aiJ

empresas c de outros tipos de associações, são, muitas vezes, cometidasinfracções gravemente danosas de importantes interesses ou valores eco-nómicos, ambientais, ete. Ora, a responsabilização punitiva apenas dosórgãos ou dos membros dos órgãos da pessoa colectiva, para além de,por vezes, ser, na prática, dificil de fundamentar, era, em muitos casos,considerada insuficiente, em termos de prevenção das infracções come-

tidas pelas pessoas colectivas., Assim sendo, enquanto permaneceu como absoluto o tradicional

(desde fins do sêc. XVIII) princípio societas delinquere non potes!(a sociedade não pode cometer crimes, porque a responsabilidade penalé individual), compreendia-se que as sanções acessórias contra-ordena-cionais aplicáveis às pessoas colectivas pudessem ter uma gravidadesemelhante à das penas criminais acessórias. Por estavia, nem se vio-lava o referido princípio da natureza pessoal-individual da responsabi-lidade penal, nem deixavam de se realizar as necessidades práticas dapunição (contra-ordenacional) adequada das pessoas colectivas.

Síntese: enquanto não foi aceite a responsabilidade penal das pes-soas colectivas (16), compreendia-se e, de certa forma, justificava-se a apli-cação, às pessoas colectivas, de sanções contra-ordenacionaís acessó-rias tão graves como as que constam do referido art. 21 ..c ' do Dec.-Lein." 433/82, apesar da tal menor gravidade da contra-ordenação relativa-mente à infracção criminal-penal.

A partir do momento (anos 70/80) em que, em vários países euro-peus, entre os quais Portugal, se venceram as compreensíveis resistên-cias (em nome 'da incapacidade de culpa jurídico-penal e da natureza efunções da responsabilidade penal) à consagração da responsabilidadepenal das pessoas colectivas, deixou, em nosso entender, de haver razõespara estabelecer, para as contra-ordenações das pessoas colectivas, san-ções acessórias tão graves como as previstas no referido art. 21.° San-ções tão graves como estas parecem só ter justificação como penasacessórias, ou seja, só serão aceitáveis, quando estiver -em causa umainfracção criminal praticada pela pessoa colectiva. Assim, várias das san-

(16) Contra a responsabilidade penal das pessoas colectivas - e nomeadamentecontra o disposto no n," 2 do art. l l ,? do CP - ver TAIPA De CARVALHO', Sucessão deLdis Penais. 3.' ed., Coimbra Editora, 2008, p. 39 ss. -

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Titulo I - O problema criminal-penal 137

ções contra-ordenacionais acessórias, estabelecidas no art. 21.°, pode-rão eventualmente, ser consideradas inconstitucionais, por violação doprincípio da proporcionalidade.

§ 253. Reservas também merece o art. 8.°_1 do referido Dec.-Lein." 433/82 que consagra, em matéria da punibilidade da negligência naprática de contra-ordenações, o mesmo regime que o CP, art. 13.°, esta-belece para os crimes: «Só é punível o facto praticado com dolo ou, noscasos especialmente previstos na lei, com negligência», Esta transposição,para o domínio da responsabilidade contra-ordenacional, da regra daexigência do dolo (que, no âmbito criminal-penal, é razoável) é, emminha opinião, de rejeitar. .

A razão fundamental é a seguinte: tendo a generalidade das normasjurídicas contra-ordenacionais destinatários específicos (p. ex., empresas,condutores), é-lhes exigível uma especial diligência nas suas actividades.Donde resulta que o seu descuido, negligência ou violação do deverobjectivo de cuidado deve-lhe ser sempre censurado e, portanto, o res-pectivo facto deve sempre ser punível (a título de negligência), embora,é certo, menos gravemente do que se houver dolo.

. Ora, restringir-se, em princípio, a punibilidade à existência de dolo,conduzirá a uma de duas situações: ou o legislador, na sua actividade dedefinição das específicas contra-ordenações, estabelecerá, quase sem-pre, a expressa punibilidade da negligência, ou só o fará em casos excep-cionais. Na primeira hipótese, a excepção transformar-se-á, na reali-dade, em regra, contradizendo o princípio geral estabelecido no referido.art. 8.°-1; na segunda hipótese, ter-se-à como resultado prático umaeventual impunidade generalizada, pondo-se, assim, em causa a.eficáciaprática preventiva das normas jurídicas contra-ordenacionais.

§ 254. Nesta segunda hipótese, esta critica sai reforçada com o factode o legislador, num domínio onde a relevância axíológico-social e a res-sonância ético-social não são tão profundas como no domínio das infrac-ções criminais, também ter atribuído ao erro sobre a proibição legal oefeito de exclusão do dolo (art, 8.°-2).

Em resumo: o erro sobre a proibição legal, como causa de exclu-são da culpa d0108a, tem um campo de aplicação milito maior no direitode ordenação social do que no direito penal; ora, juntando a esta cir-

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138 Parte I - Questões Fundamentais

cunstância a circunstância de, em regra, segundo o art. 8.°-1, não ser puni-vel a culpa negligente nas contra-ordenações, resulta um grande leque desituações de impunidade no domínio das contra-ordenações. Esta largaimpunidade parece contrariar a filosofia político-jurídica subjacente enorteadora do direito de ordenação social.

§ 255. Também não parece aceitável o regime do cúmulo jurídicoestabelecido, no art. 19.°, para o concurso de contra-ordenações. Asrazões subjacentes ao regime do cúmulo jurídico, no caso de concurso decrimes (CP, art. 77.1, não procedem no caso das COlmas. Essas razõessão, especialmente, as seguintes: a um determinado aumento da duraçãoda pena de prisão corresponderá um aumento muito maior do sofrimentoque é conatural a esta pena de privação da liberdade (poder-se-ia dizer:a um aumento aritmético do tempo ele prisão corresponde um aumentogeométrico do sofrimento); sendo conatural à pena de prisão um efeitode dessocialização, quanto mais longa for esta pena, maiores são os ris-cos de desintegração social do recluso. Logo, com base nestas razões,compreende-se que vigore, no direito penal, o regime do cúmulo jurídico.

Mas, como nenhuma destas razões se verifica em relação à aplicaçãode coirnas, é meu entendimento que, aqui, deveria vigorar o regime docúmulo material, em que a coima final seria igual à soma das coimasconcretamente aplicadas ao conjunto das contra-ordenações praticadas.

§ 256. Observe-se, ainda, que, inexplicavelmente, o regime dapunição do concurso de contra-ordenações é ainda mais favorável. queo regime da punição do concurso de crimes. É que,' diferentementedo CP, art. 77.°-2, o Dec-Lei n." 433/82, art. 19.°-2, estabelece que olimite máximo da coimaaplicável «não pode exceder o dobro do limitemáximo mais elevado das contra-ordenações em concurso». Logo, olimite máximo pode ser inferior à sorna das coimas concretamente apli-cadas às várias infracções.

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§257. Exemplo da indesejável mistura entre dois ramos do direitopúblico sancionatório, o direito penal e o direito de ordenação. social_: que, na sua motivação político-criminal, deviam, e devem, ter regimesjurídicos, material e processualmente, autónomos e diferenciados -, é tam-bém o art. 20.° elo mencionado Doe-Lei n." 433/82.

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Com efeito, não me parece razoável que a um mesmo facto, que,simultaneamente, constitua crime e contra-ordenação, se aplique, comosanção principal, a pena criminal, e, como sanção acessória, a sançãocontra-ordenacional acessória.

Segundo o rejeitável texto legal do referido. art. 20.°, poder-se-àchegar ao cúmulo de aplicar as penas criminais, quer a principal quer aacessória, se ao facto enquanto crime couber uma pena acessória, maisa sanção contra-ordenacional acessória, se esta .for diferente da penaacessória.

§ 258. Outro artigo que acentua a promiscuidade entre o direito de,ordenação social e o direito penal é o art. 89.0-A, que veio permitir a pos-sibilidade de substituição da· coíma pela "prestação de trabalho afavor da comunidade".

É caso para perguntar ao legislador: mas então como é?!; então, a"prestação de trabalho a favor da comunidade" deixou, ainda tão jovem,de ser uma pena criminal de substituição ela pena de prisão para passara ser uma medida incolor, ou, melhor, policromática, que serve paratudo: tanto para substituição da prisão como da coima? - Será que olegislador de 1995 se esqueceu que a pena de trabalho a favor da comu-'cidade tem uma especial função preventiva de socialização?; ou seráque ~ uma vez que a pena de trabalho a favor da comunidade podesubstituir a pena de multa (CP, art, 48.") - o legislador confundiucoima com pena de multa? ..

§ 259. Finalmente - o que não quer dizer que não haja, ainda,mais aspectos criticáveis no regime geral elas contra-ordenações _,o art, 72.o-A, também introduzido pela revisão operada pelo Dec.-Leín." 244/95 (revisão que Fígueiredo Dias apelida, com fundamento, de"contra-revolução contra-ordenacional"), veio estabelecer a proibiçãoda reformatio in.peius, transpondo, assim, para o processo contra-orde-nacional mais um princípio do processo penal (cf. CPP, art. 409.0).

Ora esta transposição é acrítica, injustificável e pode ter efeitosperversos.

Acrltica e injustificável, na medida em que contraria uma dasrazões que foram determínantes da criação do direito de ordenaçãosocial: a simplificação e a celeridade do processo contra-ordenacional.

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140 ' Parte [ - Quesfões Fundamentais

Na verdade, o relatório preambular do Dec.-Lei n." 433/82 declara que,para o julgamento do ilícito de ordenação social, se deve adoptar «umprocesso extremamente simplificado e aberto aos corolários do princípioda oportunidade». Ora, a consagração da proibição do agravamentodas sanções contra-ordenacionais, 110 caso de impugnação judicial dadecisão administrativa condenatória, vai contra 'estes objectivos de sim-plificação e celeridade do processo, pois, inevitavelmente, os infracto-res condenados são "motivados" a impugnar, mesmo que considerem justaa decisão da autoridade administrativa.

Pode ter efeitos perversos, uma vez que a autoridade administrativa,ao ver que, na prática, a 'sua decisão não passará de uma mera fase"preliminar" do processo contra-ordenacional, pode ser induzi da a nãoter a exigivel consideração dos direitos de defesa do "arguido", nesta faseadministrativa do processo, remetendo o respeito destes "direitos para afase judicial.

E poderá, ainda, a autoridade administrativa ser tentada a aplicar san-ções mais severas, em claro prejuízo da justiça da decisão.

7. Direito penal comum, direitos penais especiais e direito de orde-nação social

§ 260. Podemos começar por afirmar que há uma nota ou denomi-nador comum ao direito penal comum, aos direitos penais especiais e aodireito de ordenação social: todos protegem valores sociais, i. é, interes-ses com relevância social. Se, relativamente ao direito penal (comum ouespecial), tal relevância comunitária é unanimemente aceite, já, quanto aodireito de ordenação social, tal unanimidade não se verifica. Mas; comoo procurámos demonstrar (§ 235 ss.), em nossa opinião, também o direitode ordenação social tutela, inequivocamente, valores ou interesses sociais;por outras palavras, as condutas, objecto de proibição legal.contra-orde-nacional, também são axiológico-social e ético-socialmente relevantes.

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§ 261. A diferença qualitativa entre o direito penal (comumou especial) e o direi.to de ordenação social está, como também já oreferimos (§ 238 5.), no facto de os bens ou valores. tutelados pelo pri-meiro serem, num d'ado momento histórico-cultural, assumidos pela:

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consciência ético-social como fundamentais ou indispensáveis às exi-gências mínimas da vida comunitária e à realização pessoal individual,enquanto que os interesses protegidos pelo direito de ordenação social,embora sejam socialmente relevantes, não se revestem, no geral, destacaracterística de fundamentalidade ou essencíalidade.

§ 262. Resta-nos, pois, averiguar se há alguma diferença entre odireito penal comum e os direitos penais especiais ou, pura e sim-plesmente, direito penal especial.

Digamos, desde já, que aquele sector do direito penal, a que chama-mos direito penal comum, é por vários autores designado por direito penaltradicional, clássico, primário ou de justiça; e o sector, a que chamamosdireito penal especial (ou direitos penais especiais) é pelos mesmos auto-res designado, em contraposição ao primeiro (direito penal tradicional,etc.), por direito penal secundário, administrativo ou extravagante .

Ora, tal como nós, também estes autores consideram que, diferen-temente do que acontece entre o direi to penal em geral e o direito deordenação social, não existe uma diferença qualitativa ou substancialentre o direito penal. comum e o direito penal especial: tanto um comooutro tutelam valores ou bens jurídicos considerados fundamentais paraa vida social e para a realização ético-pessoal individual.

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§ 263. Mas, então, porquê a diferente designação, ou seja: exis-tirá alguma razão para a, digamos, bípartíção penal em direito penal pri-mário ou comum e direito penal secundário ou especial?

A resposta, quer no meu entendimento quer no dos autores quecontrapõem direito penal primário e direito penal secundário, é a deque, embora ambos os sectores protejam bens jurídico-penais (valores coma chamada "dignidade penal" e que carecem da protecção penal, i. é, emrelação aos quais se afirma a denominada "necessidade penal" - cf §71), todavia o direito penal clássico ou comum tem por objecto de pro-tecção os tradicionais direitos, liberdades e garantias individuais, enquantoo direito penal secundário ou especial tutela os valores sociais que, numdado momento histórico-cultural e social, são considerados indispensá-veis a.uma ordenação social, condicíouante da ordenação justa da socie-dade e, em última análise, condicionante da realização individual esocial, de cada pessoa (cf. § 69).

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142 Pane r - Quesrões Fundamentais

Isto é, o direito penal clássico ou comum tem a sua referência eobjecto no quadro axiológico já consagrado pela primeira geração deConstituições - as Constituições Políticas Liberais de fins do séc, XVIIIaté meados do séc. XX, que, como é sabido, tinham uma estrutura bípo-lar, o indivíduo e o Estado; já o direito penal secundário ou especial tema sua referência no quadro axiológico-social consagrado pela segundageração de Constituições - as Constituições Políticas Sociais, aprova-das a partir da II Grande Guerra, que passaram a ter uma- estrutura tri-polar: o indivíduo, a sociedade e o Estado.

§. 264. Afirmados, constitucionalmente, ao lado dos tradicionaisdireitos fundamentais individuais, os novos direitos sociais (direito àeducação, à assistência na doença, à segurança social, etc.), cuja reali-zação é função do Estado promover, necessariamente que sobre os cida- .dãos recai, simultaneamente, os deveres económicos e sociais (deveresfiscais, deveres de fidelidade ou verdade nas declarações determinantesda concessão de subvenções, etc.), que possibilitem o cumprimento dasfunções sociais que cabem ao Estado.

Olhando para a nossa Constituição, poder-se-à dizer que o quadrode bens protegidos pelo direito penal tradicional ou comum encontra-se,globalmente, 110 título II da 1." parte da Constituição (direito à vida,integridade física, honra, etc.); e que o quadro de bens tutelados pelodlreíto penal secundário ou especial se encontra referendado notítulo III da 1.3 parte (valores relacionados com o trabalhoço consumo,a segurança social, a saúde, o ambiente, a educação) e na 2." parte(valores a promover pelo Estado, nos campos económico, fiscal, cultu-ral, etc.) da Constituição.

Estes interesses ou valores sociais correspondem, tal como os tra-dicionais direitos individuais, a direitos (e correspondentes deveres) tam-bém fundamentais. E é assim que o legislador constitucional os reco-nhece, quando, no art, 17 .0, os qualifica como "direitos fundamentais denatureza 'análoga" (aos direitos, liberdades e garantias individuais) edeclara que fi restrição destes direitos está submetida ao mesmo regimeque se aplica às restrições dos direitos individuais, ou seja, o regime daindispensabilidade e da proporcionalidade das suas limitações.

Conclusão: .não há uma diferença qualitativa ou substancial entreo direito penal tradicional ou comum e o direito penal secundário ou espe-

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cíal: tanto são bens jurídico-penais os valores tutelados pelo primeirocorno os protegidos pelo segundo.

§ 265. A distinção entre um e outro destes sectores do direitopenal é meramente de grau de ressonância ético-social (§ 70), de graude durabilidade das normas jurídico-penais que os protegem, e deordem sistemática. De facto, a ressonância, i. é, a sedimentação, naconsciência ético-individual e ético-social, da relevância axiológica dosbens tutelados pelo direito penal tradicional ou comum é, globalmente,mais profunda do que a ressonância dos bens protegidos pelo direitopenal secundário ou especial. .Exemplo: está mais entranhada na cons-ciência individual e social a importância da necessidade de cumprir osdeveres de respeito pela integridade física ou pela honra alheias do queos deveres de pagamento dos impostos (p. ex., Lei u." 1512001, de 5 deJunho, art, 103.0 - crime de fraude fiscal) ou do abate de animais paraconsumo público só após a competente inspecção sanitária (cf Dec.--Lei n." 28/84, de 20 de Janeiro, art, 22.o-l-a).

§ 266. Mas observe-se que esta maior ressonância ético-social dosbens protegidos pelo chamado direito penal tradicional ou comum nãosignifica, necessariamente, que todos os bens abrangidos por este sectordo direito penal são, objectivamente, mais valiosos que os protegidos pelodireito penal secundário ou especial. Basta pensar num furto simples (CP,art, 203.°) e num crime de abuso de confiança fiscal de montante supe-rior a 25.000 euros (Lei n." 1512001, de 5 de Junho, art, 105.°), para ver-mos que é mais grave esta infracção do que um simples furto.

Portanto, o critério do grau de "ressonâncía êtíco-socíal'' só, ten-dencialmente, é sinónima de um maior grau de gravidade objectivados crimes abrangidos pelo direito penal tradicional ou comum.. E esta é a razão por que eu não acho muito adequada a designação."direito penal secundário". Pensemos nos crimes contra o ambiente.Se fosse válido corno critério decisivo da distinção entre direito penal pri-mário e direito penal secundário a circunstância de a norma penal pro-tectora do respectivo bem jurídico estar incluída no Código Penal ounuma lei extravagante, então nós portugueses teríamos de considerarque os crimes ambientais pertencem ao direito penal primário, clássicoou de justiça, uma vez que, actualmente, os crimes de "danos contra a

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144Parte I - Questões Fundamelltais

natureza" e de "poluição" estão inseridos no Código Penal (arts. 278.0

e 279."). Ora, a verdade é que os crimes ambientais ou ecológicos sãoconsiderados como constituindo um ramo especial do direito penal_ o direito penal do ambiente. E é seguro que, dada a ainda recenteconsciência ecológica, que levou à (neo) criminalizaçãc dos "atenta-dos" ao meio ambiente, de forma alguma podemos considerar este sec-tor do direito penal como pertencente ao "direito penal Clássico, pri-

mário ou tradicional".E os nossos vizinhos espanhóis, ao incluírem, no CP de 1995,

título XlII, capo Xl, arts. 270.0 a 288.°, várias infracções económicas, nãomudaram li categoria do direito penal.económico: este continua a ser con-siderado um ramo especial do direito penal.

§ 267. Isto nos conduz à consideração de um outro factor de dis-tinção: a maior ou menor durabilidade das normas jurídico-penais.Segundo este critério - que não coincide, necessariamente, com a maiorgravidade das condutas, isto é, com a maior relevância dos bens jurídi-cos protegidos -, deverão ser incluídas no Código Penal as normaspenais que protegem interesses ou valores que são dotados de uma rela-tiva perenidade ou intemporalidade. Ou seja: as normas que revistamestas duas características: que protejam bens jurídicos que se mante-nham merecedores e carecidos de tutela penal, independentemente dasnaturais mutações sócio-culturais; e cuja estrutura típica resista a essas

alterações sócio-económico-culturais.Já as normas jurídico-penais, mais sensíveis às. referid.~s alterações,

devem constar de leis extravagantes. Deve ser este o critério da siste-matização, i. é, da inclusão, ou não, no Código Penal.

Por estas razões não considero adequada a designação "direito penal pri-mário" em contraposição a "direito penal secundário". É que tal distinçãopode dar a ideia de que os crimes que constam de leis extravagantes são,necessariamente, menos graves. O que, como vimos, ne~ sempre é verdade.

§ 268. Também não partilho das designações "direito penal dejustiça" em contraponto a "direito penal administrativo". Por duasrazões: em primeiro lugar, porque tal parece sugerir que o chamado"direito penal administrativo" (direito penal societário, fiscal, ambiental,etc.), diferentemente do direito penal tradicional (aqui, designado por

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Titulo I - o problema criminaí-penal 145

"direito penal de justiça"), é estranho a critérios de justiça, e apenasprotege interesses avaliados por meros critérios (discricionários) daadministração pública; em segundo lugar, porque tais designações eccntraposição podem sugerir a reposição do critério, já ultrapassado(cf § 221), da distinção entre "ilícito criminal de justiça" e "ilícitopenal administrativo", ilícito este que, como vimos (§ 223 s.), é umantecedente histórico, não do que, hoje, é chamado, por muitos, de direitopenal secundário - e que eu designo por direito penal especial -:-, massim do actual direito de ordenação social.

§ 269. Restam, em minha opinião, como mais correctas e ade-quadas as designações "direito penal clássico ou direito penal comum"por contraposição às designações direito penal económico-soclal oudireito penal especial.

E dentro deste direito especial, há diferentes ramos, como o direitopenal económico, o direito penal fiscal, o direito penal do ambiente,etc. Estes direitos penais especiais, tendencialmente contidos em leisextravagantes ou avulsas, estão sujeitos à generalidade dos princípios, dasregras e dos métodos do direito penal clássico ou comum.

Acrescente-se apenas que, dada a especialidade de muitos dos des-tinatários (nomeadamente, empresas) destes direitos penais especiais,estes são os sectores do direito penal onde mais aplicação tem a res-ponsabilidade penal das pessoas colectivas.

SECÇÃO III

O DIREITO PENAL E O DIREITODISCIPLINAR._ P'ÚBLICO

1. A autonomia material e a caracterização do ilícito disciplinar

§ 270. Vimos que, apesar da autonomia material existente entre odireito penal e o direito de ordenação social (§ 233 ss.), tanto um comooutro protegem valores que interessam, directamente, à comunidadesocial (§ 238 s.). Já, diferentemente, o direito disciplinar público tem

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146Parte { - Questões Fundamelttais

por objectivo imediato os interesses específicos da boa orgClIlização e doeficaz funcionamento dos serviços da Administração Pública.

: § 271. Para garantir o bom e eficaz funcionamento dos serviços públi-cos, - objectivo imediato do direito disciplinar e condição para o progressoe justiça sociais, através da satisfação das necessidades dos cidadãos, indi-vidualmente ou organizados em associações (cf. CRP, art. 269°-1) -, odireito disciplinar público promove e estabelece os deveres de obediênciae de lealdade dos funcionários e agentes da administração pública aosrespectivos superiores hierárquicos, bem como todos os deveres inerentesà dignidade, justiça e eficácia da função que exercem.

. Deixando' de lado os deveres especiais de determinadas categoriasde funcionários públicos (contidos nos respectivos estatutos específicos_ p. ex., o Estatuto dos Magistrados Judiciais), o Estatuto Dtsctplinardos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local(aprovado pelo Dec.-Lei n." 24/84, de 16 de Janeiro) estabelece, noart, 3.°-4, os seguintes deveres gerais: isenção, zelo, obediência, lealdade,sigilo, correcção, assiduidade e pontualidade.

§ 272. A violação de um destes deveres funcionais constitui ilícito dis-ciplinar. Mas repare-se que, embora se trate de infracções de dever, talinfracção ou ilícito pressupõe um fado concretizado r dessa violação. Estaexigência de objectividade fáctica constitui uma garantia do funcionáriocontra possíveis arbitrariedades do superior hierárquico, pois que faz recairsobre este o ónus da prova do facto ilícito e possibilita a (eventual) eficá-cia do recurso hierárquico e do recurso contencioso (impugnação judicial).

Neste sentido; vai o referido Estatuto Disciplinar, art. 3.°-1; «Con-sidera-se infracção disciplinar o facto, ainda que meramente culposo,praticado pelo funcionário ou agente com violação de algum dos deve-res gerais ou especiais decorrentes da função que exerce».

~ 273. O direito disciplinar público é direito sancionatório ou puni-tivo, tal como o direito penal e o direito de ordenação social. Daquiresulta a exigência da censurabilidade ético-individual do funcionárioinfractor como pressuposto da sua responsabilização disciplinar, bemcomo, no âmbito processual disciplinar, a consagração das garantias de

audi.ência e defesa (CRP, art.269.0-3).

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I Título I - o problema crimi/lal·pel1al. 147

Mas, diferentemente da responsabilidade penal, em que a regra é ada exigência de culpa dolosa (CP, art. 13.°), já a responsabilidade dis-ciplinar basta-se com a "mera culpa", i, é, com a culpa negligente(Estatuto Disciplinar, art. 3.°-1: «considera-se infracção disciplinar ofacto, ainda que meramente culposo ( ... )>».

§ 274. Diferente do direito penal, e até do direito de ordenaçãosocial, o direito disciplinar utiliza, na definição das infracções discipli-nares, a técnica da cláusula geral com enumeração exemplíflcativa,excepto no caso da menos grave das infracções disciplinares em quehá apenas a cláusula geral (ED, art. 22.°: «A pena de repreensão escritaserá aplicável por faltas leves de serviço») .

Assim, por exemplo, o art. 23.°-1 do ED estabelece que «A pena demulta será aplicável a casos de negligência e má compreensão dos deve-res funcionais»; e, logo a seguir a esta cláusula geral, vem, no n." 2, a enu-meração exemplificativa: <<A pena será, nomeadamente, aplicável aos fun-cionários e agentes que: a) Na arrumação dos livros e documentos a seucargo não observarem a ordem estabelecida superiormente ou que naescrituração cometerem erros por negligência; b) Desobedecerem às ordensdos superiores hierárquicos, sem consequências importantes», etc. E,olhando para as mais graves infracções disciplinares, a que, logicamente,se aplicam as sanções disciplinares mais pesadas, .lê-se, no árt. 26.°-1:«As penas de aposentação compulsiva e de demissão serão aplicáveis emgeral às infracções que inviabilizarem a manutenção da relação funcional»;e o n." 2 concretiza, exemplificativamente, esta cláusula geral, descre-vendo: «As penas referidas no número anterior serão aplicáveis aos fun-cionários e agentes que, nomeadamente; a) Agredirem, injuriarem ou des-respeitarem gravemente superior hierárquico, colega, subordinado outerceiro, nos locais de serviço ou em serviço público; b) Praticarem actosde grave insubordinação ou de indisciplina ou incitarem à sua prática», etc.

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2. As sanções disciplinares e as suas finalidades

§ 275. O Estatuto Disciplinar estabelece, no art. 11.°, as seguintessanções disciplinares: repreensão escrita, multa, suspensão, inactividade,aposentação compulsiva e demissão.

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)48 Parte J - Questões Fundamentais

Dada a gravidade de algumas destas sanções, compreende-se que,até por imperativo constitucional, a responsabilidade disciplinar tenha naculpa um seu pressuposto irrenunciável, E, embora baste a culpa negli-gente (art. 3°-1), a escolha e a medida da sanção disciplinar não podedeixar de atender e ser influenciada pela espécie (dolo ou negligência)e pela gravidade da culpa (art. 28.0 S5.).

§ 276. Como já o referimos (§ 271), os interesses tutelados pelodireito disciplinar público reconduzem-se à boa organização e eficáciados serviços públicos, e à confiança dos cidadãos nestes serviços. Daquiresulta que o fim último ou razão de ser da aplicação das sanções dis-ciplinares é a preservação destes interesses administrativos, análoga-mente ao que se passa no direito penal, em que o fim último das penasé a protecção dos bens jurídico-penais (§ 94).

§ 277. Também, de forma análoga com o que acontece no direitopenal, as sanções disciplinares são os meios que o direito disciplinarutiliza para realizar o referido fim último de protecção dos mencionadosinteresses administrativos. É, aqui, que surge o problema dos fins ou fun-ções das sanções disciplinares.

Ora, sernelhantemente ao que se passa com as penas (sanções cri-minais - cf § 96 ss.), também as sanções disciplinares públicas têm umadupla função: prevenção geral e prevenção especial.

Têm uma função preventivo-geral positiva e negativa: positiva, namedida em que, PO'rum lado, visam a manutenção ou recuperação daconfiança da comunidade dos cidadãos nos respectivos serviços públi-cos, e, por outro lado, alertarn e consciencíalizam os outros funcionáriospara a importância e necessidade sociais de os serviços públicos fun-cionarem adequadamente; negativa, ao dissuadirem os outros funcioná-rios da prática de ilícitos- disciplinares.

Mas também têm uma função preventivo-especial positiva e nega-tiva: positiva, ao interpelarem o funcionário infractor para a relevânciasocial da sua acção "pública" e, assim, o motivarem para a não reincidência;negativa, na medida em que a sanção disciplinar, sendo um mal para O' fun-cionário condenado, visa- dissuadi-lo da prática de novas infracções dis-ciplinares. Esta prevenção especial negativa pode ir ao.ponto da próprianeutralização 0\1 inocuização do funcionário infractor, no caso das sanções

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Título I - O problema criminal-pellal 149

de demissão ou aposentação compulsiva. Assim, discordo da posição deEduardo Correia (17), quando declarava que «os fins das penas criminaissão de todo em todo diferentes dos fins das penas disciplinares». Talcomo não partilho da posição de Figueiredo Dias (18), quando afirma que«a medida disciplinar esgota a sua função e finalidade - diversamente doque sucede com a pena criminal - no asseguramento da funcionalidade,da integridade e da confiança do serviço público». Diga-se que esta afir-mação de Fígueiredo Dias confunde funções ou "fins-meios" com o fim.último ou razão de ser das sanções disciplinares. No sentido pOI mimdefendido, também, p. ex., Germano Marques da Silva, Direito PenalPortuguês, I, 2,' ed., Editorial Verbo, 2001, p. 145.

3. Competência Ieglslaríva

§ 278. Tal como no direito de ordenação social (§ 248), também,no direito disciplinar público, há que distinguir a definição do regimegeral (material e processual) das infracções disciplinares e a definiçãodas concretas infracções disciplinares.

Assim, enquanto o «Regime geral da punição das infracções disci-plinares» constitui matéria da réserva relativa da competência legislativada Assernbleia da República (CRP, art. 165.o-l-d), já a definição-quali-ficação de determinadas condutas como infracções disciplinares é da com-petência (concorrente) quer da Assembléia da República quer do Governo.

Compreende-se esta reserva de competência legislativa da Assem-bleia da República, posto que relativa, tendo em conta a gravidade de cer-tas sanções disciplinares e, consequentemente, a necessidade de garan-tia dos cidadãos funcionários.

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4. Outras considerações avulsas sobre o direito disciplinar públicoe sobre eventuais conexões entre este e o direito penal

§ 279. Dada a já. referida (§ 270) autonomia material entre o ilí-cito disciplinar e o ilicito penal e a consequente autonomia dos proce-

:,:(17) Actas das Sessões da Comissão Revisara da Código Penal Il, p. 111.(") Direito Penal. tomo I, 2." ed .. Coimbra Editora, 2007, p. 170.

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150 Parte J - Questões Fundamentais

dimentos disciplinar e criminal, nada obsta, em psincípío, à aplicaçãocumulativa da sanção criminal (pena) e da sanção disciplinar, .quando omesmo facto constituir, simultaneamente, crime e infracção disciplinar.

§ 280. Mas, na hipótese de à infracção em causa ser aplicável a san-ção disciplinar de demissão CED, art. 26.°) e a pena acessória de proi-bição do exerclcio de junção pública por um período entre 2 e 5 anos(CP, art, 66.°-1), quid iuris'l

, No plano teórico, poder-se-à dizer que, sendo autónomas e, portanto,cumuláveis as responsabilidades penal e disciplinar, poderão ser aplicadas,pela autoridade disciplinar e pelo tribunal, as respectivas sanções.

Mas, no caso de o tribunal, que julga a infracção enquanto crime,não aplicar a pena acessória (que é, registe-se, menos grave que a san-ção disciplinar da demissão, urna vez que é temporária, enquanto esta édefinitiva), poderá a autoridade disciplinar aplicar, no respectivo processodisciplinar, a sanção da demissão, ou, no caso de esta já ter sido apli-cada, poderá manter-se a. condenação disciplinar? - Parece-me dificilunia resposta inequívoca, embora me incline para a solução que dá a pre-valência à decisão judicial criminal. Pois que, se o tribunal entendeque nem sequer a pena acessória de proibição temporária do exercícioda' função deve ser decretada, com que razão há-de manter-se ou ser apli-cada a demissão pela autoridade disciplinar administrativa?

Já é diferente o caso em que o tribunal aplica a pena acessória deproibição temporária do exercício de função. É que podem existir fun-damentos para a autoridade disciplinar decidir-se pela demissão, E atéo próprio tribunal criminal podia também ter este entendimento; só queele não pode aplicar tal pena acessória da demissão, 1.UTIavez que ela nãoexiste. Assim, impedir a autoridade administrativa de aplicar a pena dedemissão faria com que, absurdamente, o funcionário infractor fossebeneficiado com a aplicação da pena acessória, no procedimento cri-minal.

§ 281. O Estatuto Disciplinar, art. 6.°-1, estabelece que o despa-cho de pronúncia, em processo criminal, transitado em julgado, «deter-mina a suspensão de funções e do vencimento de exercício até à deci-são final absolutória, ainda que não transitada em julgado, ou à decisãofinal condenat6ria».

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Titulo 1 - O problema criminal-penal 15\

Esta disposição legal merece algumas observações, pois que, pelomenos à primeira vista, ela parece contrariar o princípio constitucionalda presunção de inocência do arguido até ao trânsito em julgado dasentença condenatória (CRP, art. 32.0-2Y

Consideremos, em primeiro lugar, a suspensão de junções. Ora,parece-nos criticável o tom absoluto desta disposição legal. E criticá-vel porque pode estar em causa um crime que em nada afecte as fun-ções públicas que o arguido (em processo penal) exerce, nem a confiançados cidadãos na actividade pública exercida pelo funcionário. E, namedida em que assim for, não há qualquer razão para que o funcioná-rio seja suspenso das suas funções.

E, mesmo que o cidadão, que profissionalmente é um funcionáriopúblico, venha a ser efectivamente condenado por um crime que não afectea credibilidade do exercício das suas funções públicas, nem, em tal hipótese,deverá ser prejudicado o seu estatuto de funcionário público. Exceptua-se,obviamente, o caso de urna condenação em pena de prisão: nesta hipótese,não pode .exercer as suas funções, durante o tempo de privação da liberdade,nem, consequenternente, terá direito ao correspondente vencimento.

Aliás, o efeito indiscriminado, atribuído pelo referido art. 6.°_1 ao des-pacho de pronúncia, está em contradição com o art. 13.°-11 do mesmoEstatuto Disciplinar, quando este artigo distingue entre a sanção disciplinarde demissão que impede o funcionário de exercer qualquer função públicae a sanção disciplinar de demissão que, embora impedindo o funcionário decontinuar a exercer a actividade que até então exercia, não o impede, toda-via, de passar a exercer outra função pública, desde que para esta possua as«condições de dignidade e de confiança» que Q novo lugar exija.

Em síntese: há que separar as chamadas vestes pública e privada dofuncionário, só devendo repercutir-se no seu estatuto os crimes que,praticados fora do contexto da sua actividade pública, afectem', signifi-cativamente, a sua imagem e credibilidade de funcionário público.

Daqui resulta a crítica ao referido art. 6.°-1: esta disposição deviadistinguir entre despacho de.pronúncia por crime que afecta acredibi-lidade e a confiança nas funções que o arguido exerce, e despacho depronúncia por crime que não afecta tal credibilidade e confiança.

Se assim fosse, poder-se-ia dizer que, embora tal suspensão de funçõescontrarie o princípio da presunção de inocência, tal se justificaria comomedida cautelar, analogamente com o que passa com a prisão preventiva.

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152 Parte I - Questões Fundamentais

§ 282. Relativamente à suspensão do vencimento de exercício (quecorrespondea um sexto do ordenado- cf art. 5.° do Dec.Lei n," 353-A/89,de 16 de Outubro, e art. 16.0 do Decreto n." 19478, de 18 de Marçode 1931), concordamos com Faria Costa (19), quando argumenta queurna tal suspensão viola o princípio da presunção de inocência e o prin-cípio da proibição de excesso. E isto porque, diferentemente da sus-pensão de funções, não se vislumbra, na suspensão do "vencimento deexercício", qualquer razão válidá para que ao despacho de pronúnciacriminal se atribua um tal efeito.

§ 283. Uma última referência deve ser feita à questão do eventual con-flito entre o dever de obediência do funcionário ao 'seu superior hierár-quico e o dever geral de não praticar crimes. Uma vez que debatere-mos, desenvolvidamente, esta questão no contexto das causas de justificação(infra, § 765 5S.), fique, Me et I1Imc, apenas a ideia geral. E esta recon-duz-se ao seguinte: enquanto que, num Estado autoritário, se defendia eeventualmente se defenderá a "obediência cega" às ordens de superior hie-rárquico e, em consequência desta absolutização do dever de obediência,se fazia prevalecer o dever de obediência sobre o dever de não cometer cri-mes, já, num Estado de Direito Democrático, o dever de Obediência deixade ser absoluto (pois que o funcionário deixa de ser visto. como um meroinstrumento nas mãos do seu superior hierárquico) e, em caso de conflitoentre o dever de obediência e o dever de não cometer ilícitos criminais, pre-valece este dever, ou, mais rigorosamente, cessa o dever de obediência.

Na linha deste pensamento, a nossa cRI> de 1976, art. 271.°-3, veio,adequada e correctamente, estabelecer que «cessa o dever de obediênciasempre que o cumprimento das ordens ou instruções implique a prática dequalquer crime». E, na sequência desta prescrição constitucional,tanto o CP,art. 36.°-2, corno o ED, art, 10.0-5, acolheram esta mesma prioridade do deverde não cumprir ordens criminosas, transcrevendo a referida disposição cons-titucional: «Cessa o dever de obediência sempre que o cumprimento dasordens ou instruções implique a prática de qualquer crime» (ED, art. 10.0-5;texto este que é materialmente idêntico ao do CP, ali. 36."-2).

(19) Noções Fundamentais de Direito Penal - introdução, Coirnbra Editora.2007, pp. 65-66.

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TÍTULO II

A LEI PENAL: CRIAÇÃO E APLICAÇÃO

5.° CAPÍTULO

O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE PENAL

1. Génese histórico-política: a passagem do Estado Absoluto aoEstado de Direito

§ 284. No capitulo dedicado à evolução histórica do direito penal,vimos que o direito penal do absolutismo monárquico (Allcien Régime)se caracterizou por uma verdadeira sujeição do indivíduo ao poderabsoluto do Estado. Neste período das monarquias absolutas, período queatingiu o seu clímax com o 'despotismo iluminado do chamado Estado-Policia, aos indivíduos não eram reconhecidos quaisquer direitos e liber-dades naturais fundamentais, e a lei penal era tida como instrumentoda efectivação do poder absoluto do rei. Por sua vez, os poderes de sobe-rania (legislativo, executivo e judicial) eram considerados prerrogativasdo monarca e, como tal, concentrados na pessoa deste.

Numa tal concepção política totalitária, natural foi que o direitopenal tivesse sido caracterizado pela arbitrariedade, pelo tenor punitivoao serviço da manutenção do poder político real, pelo classismo e pelainexistência de quaisquer garantias individuais (cf. § 20 5S.).

§ 285. Paralelamente ao crescendo da absolutização do poderrnonárquico, vai-se desenvolvendo numa nova consciência e teorizaçãopolítica caracterizada pelo individualismo (afirmação de um conjunto dedireitos e liberdades que, por natureza, são inerentes a todo o cidadão),

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l54 Parte I - Questões Fundamentais-----

pelo contratualisrno (o poder de soberania radica nos cidadãos que, porrazões de praticabilidade, o delegam nos seus representantes políticos),pelo, racionalismo e pelo Icgalismo (o exercício dos órgãos de sobera-nia está subordinado à lei, sendo a generalidade e a abstracção desta agarantia da igualdade de tratamento dos cidadãos),

Esta nova teoria política está na origem do Estado deDireito, quese afirma, em substituição do Estado Absoluto, a partir de fins doséc. XVIII, com a Revolução. Francesa (1789),

§ 286. Sendo o direito penal o ramo do direito cujas sanções, aspenas, mais directa e gravemente afectam os direitos e as liberdadesindividuais, foi e continua a ser compreensível que o princípio da lega-lidade tivesse assumido, relativamente ao direito penal" uma importân-cia acrescida e radical, e que tivesse obtido dignidade constitucional,logo nas primeiras Constituições Liberais (do Estado de Virgínia,em 1776, da Constituição Francesa, em 1791, da nossa Constituição,em 1822, ete.).

O louvável objectivo de pôr fim às arbitrariedades judiciais e gover-nativas, cometidas durante o absolutismo monárquico, conjugado com aingenuidade racionalista própria dos precursores, levou a um exacer-bado e utópico entendimento do princípio da legalidade penal. Assim,

. para prevenir qualquer risco de arbitrariedade judicial, a lei penal devia

. ser .exaustiva na enumeração e descrição do facto criminal e estabeleceruma pena fixa para cada tipo de crime, ficando para o juiz o mero papelde aplicador automático da lei ao caso concreto: na expressão de Mon-tesquieu (1748), o juiz é apenas «a boca da lei», e na de Beccaria(1764), o juiz é um «autómato da subsunção: do caso concreto à lei.

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§ 287. Como claramente se deduz do que acabámos de referir, osfundamentos originários do princípio da legalidade penal foramjurfdíco-políticos, Efectivamente, a matriz deste princípio foi, e con-tinua a ser, a de garantia do cidadão frente ao poder punitivo doEstado. Neste sentido, é correcta e adequada a frase com que Franz vonLiszt, em finais do séc. XlX, cunhou o principio da legalidade como

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Título [[ - A Lei Penal: criação e aplicação 155

«magna charta do delinquente». Pois que, ao exigir-se urna lei escrita,precisa e anterior ao facto, o infractor estava protegido contra inter-venções punitivas arbitrárias.

Esta garantia política viu-se reforçada com a consagração consti-tucional do princípio da separação dos poderes, ao atribuir aos repre-sentantes directos do povo (ao parlamento) a competência exclusivapara definir os crimes e estabelecer as penas.

§ 2.88. A estas razões de natureza jurídico-política vieram somar-sefundamentos polítícc-crhnínaís. O iluminismo criminal (cf § 29 S8.),ao atribuir à pena uma função pragmática de prevenção geral de dis-suasão, veio reforçar a exigência de que a lei penal fosse clara e ante-rior ao facto. Se a lei penal tem a função de levar os cidadãos a quenão pratiquem factos criminosos, então ela deverá indicar com precisãoo que é crime e qual a pena que a este é aplicável, bem como tem queser anterior à prática do facto. Portanto, o princípio da legalidade penalé exigência lógica da função de orientação e de dissuasão geral impu-tada à pena.

Feuerbach (1801), autor a quem é atribuída a formulação latina doprincípio da legalidade - nullum crimen, nulla poena sine lege -, viueste princípio, simultaneamente, como garantia política do cidadão e comocondição da eficácia da sua teoria da coacção psicológica (cf § 37) .

IIL Dimensões ou exigências. do princípio da legalidade

§ 289. A ratio de garantia jurídico-política do. indivíduo contra aseventuais arbitrariedades punitivas por parte dos tribunais ou dos gover-nos determinou e continua a determinar a consagração constitucionaldo principio da legalidade penal.

Assim, a nossa Constituição, arr, 29.0-1, estabelece que «Ninguém. pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior

que declare punível a acção ou omissão, nem sofrer medida de segurançacujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior»; e os n.OS 3 e 4esclarecem que «Não podem ser aplicadas penas ou medidas de segu-rança que não estejam expressamente cominadas em lei anterior» e quenão podem ser aplicadas penas ou medidas de segurança mais graves do

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156Parte I - Questões FWldalllenraiJ

que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificaçãodos respectivos pressupostos. Estas disposições constitucionais (cujoconteúdo é idêntico ao do CP, art, 1°_1 e 2 e art. 2.°-1) consagram,pois, o princípio nullum crünen, nu/la poena sine lege prévia e a cone-xão entre a pena e o crime correspondente.

1. A exigência de lei em sentido formal - nulluni áimen sinelege scripta

§ 290. Desde as origens do Estado de Direito, tanto a doutrinaconstitucional como a penal entenderam que a separação dos poderesde soberania era um meio de garantir os direitos e as liberdades indi-viduais fundamentais. E também esteve (e está) sempre presente que' adefinição dos crimes e a estatuição das penas deviam ser da competên-cia exclusiva do Parlamento. Este, como órgão directamente emanadoda "vontade geral" da comunidade social, e enquanto órgão do debatepolítico plural e órgão não comprometido directamente com a eficáciada acção govemativa, era o poder que mais garantias dava contra even-tuais e conjunturais tentações de criminalizações e penalizações arbi-

trárias.Assim o entende a nossa Constituição, tal como a 'generalidade das

Constituiçõesdemocráticas. E, nesta linha estabelecea CRP, art 165.o-1-c}:

«É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobreas seguintes matérias, salvo autorização ao Governo: Definição dos cri-mes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos». Daquiresulta que a única fonte do direito criminal-penal é a lei em sentido for-mal ou orgânico, embora a Assembleia da República possa, mediante umalei de autorização, delegar no Governo esta competência: desde que oobjecto, o sentido e a extensão da autorização estejam definidos na res-pectiva lei de autorização. É a chamada reserva relativa de compe-tência legislatíva da Assembleia. da República, prevista no referidoart. 165.o-l-c) e 2.

§ 291. Do que acaba de dizer-se resulta que O corolário do prin-cípio da legalidade do nullum. crimen, nulla. poena sine lege scripta sig-nifica que a única fonte de direito penal é a lei formal, ou seja a lei daAssembleia da República. Esta, a Assembleia da República é sempre a

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Tttulo II - A Lei Penal: criaçei!>e aplicação 157

fonte última: directa, quando é este órgão político-legislativo a definir oscrimes e a estatuir as correspondentes penas; indirecta, quando, atravésde uma lei de autorização, delega no Governo esta competência.

Observe-se, porém, que o significado originário da exigência delei escrita (que, em si, apenas exigiria que a definição dos crimes e daspenas contasse de diploma legislativo escrito, independentemente doórgão de soberania que O aprovasse) foi, principalmente, o de afastar ocostume como fonte de direito penal e a figura dos chamados "crimesnaturais", "crimes" estes que não implicavam, durante as épocas ante-riores ao Estado de Direito, a sua expressão escrita legal. A exigência,coeva ao Estado de Direito, de lei escrita visou, portanto, excluir o cos-tume e a figura dos "crimes naturais" das fontes do direito penal. É que,tanto o apelo ao costume como a figura dos "crimes naturais" tinhamsido, no Ancien Régime, fonte de grande insegurança jurídica do cida-dão e de graves arbitrariedades judiciais.

§ 292. Tendo sido este o objectivo principal da exigência de leiescrita, natural foi que, uma vez consagrada a separação dos poderes, sevisse no poder legislativo o órgão mais adequado à garantia dos cidadãosfrente ao direito punitivo estatal, e, assim, lhe fosse atribuído, desde osprim6rdios do Estado de Direito, a competência exclusiva para a cri-minalização das condutas e para a responsabilização penal dos respec-tivos agentes.

Sendo, portanto, razões de garantia que estão na base da atribuiçãoda competência legislativa à Assembleia da República, poder-se-á per-guntar se o Governo não tem competência concorrente (com a Assem-bleia da República) para a descrimínalização e para a redução das penase das medidas de segurança, uma vez que, nestes. casos, o cidadão infra-ctor não ficaria prejudicado, mas, pelo contrário, beneficiado.

A minha opinião vai, inequivocamente, no sentido de que o Governonão tem competência para descrímínalízar ou reduzir as sanções,criminais (penas ou medidas de segurança) definidas e estabelecidasquer por lei formal quer por decreto-lei sob autorização Iegislativa.É certo que esta minha posição (aliás partilhada pelo nosso TribunalConstitucional) não se fundamenta directamente na ratio de garantia doprincípio da legalidade. Mas há dois fundamentos constitucionais pararecusar uma tal competência negativa: descriminalizar ou reduzir a pena

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158 Parte r - Questões Fundamentais

ou medida de segurança. Um, que é estritamente constitucional e parecede meridiana evidência, é o de que o princípio da separação de poderesseria afectado, e mesmo violado, se, atribuída a competência legisla-tiva exclusiva em determinada matéria à Assembleia da República,pudesse o Governo (que em relação a urna tal matéria é um órgão subor-dinado) vir legislar negativamente, i. é, pudesse "desdizer" o que aAssembléia "disse". Seria uma incoerência e mesmo contradição intra-constitucional. Na verdade, um tal poder o Governo só o tem 'em maté-rias de competência legislativa concorrente; que são aquelas que nãoconstam dos arts. 164." e 165,0 da CRP.

Um segundo argumento já é de natureza jurídico-constitucionalpenal. E consiste no seguinte: sendo, como já o referimos (§ 69 58.),matéria da exclusiva competência da Assembleia da República a definiçãodos bens jurídico-penais (CRP, arts, 17.°, 18.° e 165.0-1-c}), competên-cia esta que não deve ser vista como um poder ou faculdade arbitrária,mas 'sim como uma função (legislativa) na determinação dos bens queela (a Assembleia) considera essenciais à vida individual e social e care-cidos de uma determinada 'tutela penal, então não teria qualquer razoa-bilidade atribuir ao Governo competência para vir "dizer" que tais bensnão têm "dignidade penal" ou, se a têm, não devem ter uma protecçãopenal tão intensa como a que a Assernbleia da República lhe confere.

§ 293. Problema complexo e de difícil resolução, quanto à suacompatibilidade ou não com o princípio da legalidade na sua exigênciade lei formal, é o das normas penais em branco.

A extensão do direito penal a novas e tecnicamente complexasáreas, como o ambiente, o urbanismo, etc. obrigaram o legislador penala recorrer à técnica da lei penal em branco.

.Terão sido, fundamentalmente, duas as razões que "obrigaram" a estatécnica: por um lado, a complexidade técnica da regulamentação de cer-tas actividades, regulamentação cujo não cumprimento pode lesar oupôr em perigo. bens jurídico-penais, como a vida, a saúde, a confiançaem actividades financeiras, etc., e cuja complexidade só pode ser lidadevidamente em conta pelo poder executivo ou até pelas organizaçõesprofissionais, que não pelo poder político-legislativo; por outro lado, amutabilidade desta regulamentação, resultante das inovações tecnológi-cas ou das conjunturas económico-sociais, aconselhava a que as res-

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Titulo 1/ - A Lei Penal: criação e aplicação 159

pectivas normas regulamentadoras constassem de instrumentos n011l1a-

tivos, que pudessem ser alterados por um processo mais expedito que Oprocesso parlamentar.

Por estas razões, tem-se vindo a assistir a um crescendo de normaspenais em branco, sobretudo. nos direitos penais especiais (cf. § 268 s.),também designados globalmente por direito penal secundário ou admi-nistrativo.

§ 294. A resposta à questão da constitucionalidade, ou não, das nor-mas penais em branco exige que, previamente, se defina o que se entendepor norma 'penal em branco.

Embora haja divergências doutrinais 'sobre o conceito de lei ounorma penal em branco, entendo que é uma norma que contém a san-ção penal e que, quant? ao facto típico, remete, total ou parcial-mente, para a descrição feita por uma outra norma extrapenal doordenamento jurídico. Portanto, a nonna penal em branco determina,directa e expressamente, a pena, e define, indirectamente ou por remis-são, a matéria da proibição penal, isto é, a conduta a que é aplicável asanção estabelecida pela dita norma penal em branco.

O problema da (in)constitucionalidade coloca-se, obviamente, emrelação- à norma extrapenal complementar, implementadora ou integra-dora da norma penal em branco, uma vez que esta tem, necessaria-mente, de constar de lei ou de decreto-lei autorizado pela Assembléia daRepública. Ora, desde que a norma complementar extrapenal (jurídico--civil, admiillstrativo-regulamentar ou técillco-profissional) respeite asexigências de deterrninabilidade ou tipicidade, também decorrentes doprincípio da legalidade penal, não vejo razões para considerar inconsti-tucional a norma penal em branco. Pois que é o próprio legisladorpenal a definir, embora por remissão, a matéria da proibição penal e, por-tanto, a norma para que remete também assume, por força da remissãolegal penal, natureza penal.

Tomada a norma penal em branco neste sentido estrito (em que a tota-lidade, ou parte substancial, da factualidade típica consta de uma normaextrapenal), o que se exige é que a remissão-conexão entre a norma penale a extrapenal seja clara e inequívoca e que esta seja precisa na descriçãoda conduta. E, por outro lado, é claro que a alteração do conteúdo nor-mativo da norma extrapenal determinará a revogação tácita da norma

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160Parte I - Quesfões Fundaruentais

penal em branco. Exemplo: se a norma penal em branco estabelece queé punível com determinada pena de prisão ou de multa quem praticar ofacto descrito na norma extrapenal x, é evidente que a alteração da hipó-tese legal desta norma, implicará a ineficacia da norma penal em branco.

Diga-se, por último, que, em minha opinião, as normas penais embranco com o sentido estrito, que lhes atribuo, devem evitar-se aomáximo, só sendo admisslveis quando tal for técnico-Iegislativamenteindispensável. Pois a regra é que a norma penal seja completa: conte-nha o tipo legal e a estatuição penal.

§ 295. Acrescente-se, finalmente, que vários autores 'como, p. ex.,Teresa Beleza e Frederico Costa Pinto ('-0), alargam o conceito de normapenal' em branco ao ponto de a fazerem coincidir com toda e qualquernorma penal que contenha qualquer elemento normativo cujo significado sejadado por uma norma extrapenal ou pelos conhecimentos ou regras técnicasde urna determinada actividade profissional. Assim, Teresa Beleza e Fre-derico Costa Pinto davam, como exemplos de normas penais em branco, osarts. 150.° (devido ao elemento «o estado dos conhecimentos e da experiênciada medícína»), 204.° (por ter como urna das causas da qualificação dofurto, o «valor elevado ou consideravelmente elevado» ou o «importante valorcientífico, artistico ou histórico» da coisa furtada), 224.

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deveres que lhes incumbem»), 289.° (cvioíação grosseira das regras de con-dução»), 275.° (importação, fabrico, etc .... , «fora das con<lições legais ouem contrário das prescrições da autoridade competente»). Por sua vez,Germano Marques da Silva apresenta como exemplo de norma penal embranco o art. 35.0 do Dec.-Lei n." 28/84 ((Será punido com prisão de 6 mesesa 3 anos e multa não inferior a 100 clias quem: a) Vender bens ou prestarserviços por preços superiores aos permitidos pelos regimes legais a que osmesmos estejam submetidos»). Como apreciação da posição destes auto-res, é evidente, face ao que disse, que cliscordo. É que, em verdade, estaposição rotula de lei penal em branco toda a norma penal.que, por mais com-pleta que seja na descrição da factualidade típica, contenha um qualquer ele-mento normativo ou conceito indeterminado. Ora, se este entendimento

(2Q) O Regime Legal do Erro e as Normas Penais em Bra/1CO. Almedina, 1999,

pp.49-52.

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Título fi - A Lei Penal: criação e aplicação 161

fosse o correcto e adequado, então teriamos a conclusão inevitável de quea maioria das normas penais, tanto do chamado direito penal especial ousecundário como do direito penal clássico contido no Cócligo Penal, seriamnormas penais em branco, passando o que deve ser considerado excepçãoa regra. - Penso que não se deve confundir norma penal em branco (queé aquela cuja [actualidade típica consta de uma norma extrapenal) comnorma penal que, entre os seus vários elementos típicos, contém um oumais elementos normativos, cuja determinação conceitual é realizada por nOI-mas extrapenais, sejam jurídicas, consuetudinárias ou técnicas.

§ 296. Uma breve referência deve ser feita à relação entre a legis-lação comunitária e o díreito penal de cada um dos Estados da UniãoEuropeia.

E sobre isto há que dizer que os actos normativos da ComunidadeEuropeia não são fonte de direito penal. Não são, nem nunca o pode-rão ser enquanto o Parlamento Europeu não tiver poderes legislativos, E,como as coisas correm, parece que tão cedo não será viável que a UniãoEuropeia possa ser fonte de direito penal.

O que pode acontecer - e está acontecendo - é que a UniãoEuropeia obrigue .os Estados membros a criar normas penais para tute-lar determinados bens jurídicos ou determinados interesses da Comuni-dade Europeia, mediante directivas vinculativas de cada um dos seus Esta-dos. Urna tal situação é evidente que, sob o ponto de vista formal, nãobelisca o principio da legalidade, pois. que continua a lei formal estaduala ser a fonte directa da criminalização ou agravação da responsabili-dade penal; mas, uma vez que tais directivas não são da competência doParlamento Europeu (único órgão cujos membros são directamente elei-tos pelos povos da União), também ter-se-á de reconhecer que, sob oponto de vista material, o princípio da legalidade é, de alguma forma,afectado na sua exigência de que fonte do direito penal só pode ser opoder legislativo, directamente representativo dos cidadãos.

Problema diferente é o da exclusão da ilicitude. Pois que, estandoem causa não a fundamentação da responsabilidade penal, mas o inverso,e uma vez que os regulamentos comunitários fazem parte do direito decada Estado membro, eventuais condutas permitidas por tais regula-mentos, terão de considerar-se justificadas, mesmo que formalmenteprevistas por uma lei penal estadual.

lI-Dir. Penal

Page 81: Direito Penal - Parte Geral (Taipa de Carvalho) 1

162 Parte [ - Q'<escões Fundamentais

§ 297. As Convenções e os Pactos Internacionais sobre os.direi-tos' humanos tConvençõo Europeia dos Direitos Humanos, de 1950,Pacto Internacional sobre os Direitos Civis, Políticos e Sociais; de1966, etc.) também não são fonte de direito penal, mesmo após a sua rati-ficação e publicação no Diário da República, porque, embora possam pre-ver ilícitos, não estabelecem penas.

Tal não significa que não desempenhem uma função materialmenteinspiradora e mesmo cogente da adopção do seu conteúdo norrnativopelas leis dos Estados que as ratifiquem.

2. A exigência de determínabílidade ou tipicidade ~ nullum cri-men sine lege certa

§ 298. Postulado ou corolário nuclear da função de garantia jurídico--política do cidadão frente 'ao poder punitivo estadual é a exigência feitaao legislador penal de que, na criação da lei penal, descreva o facto p1.UÚ-vel da forma o mais possível precisa. É necessário e constitucionalmenteimposto que a conduta qualificada como crime seja objectivamente deter-minável pelos destinatários da norma penal, os cidadãos, em primeirolugar, e O julgador, no segundo momento da aplicação da lei penal. Naverdade, sendo importantes a exigência de que a crirninalização conste delei formal e a proibição da aplicação analógica desfavorável, é. ainda maisdecisiva, no sentido do cumprimento ou efectivação da .garantia do cida-dão; a exigência de determinabilidade da conduta punível, bem comoa proibição da aplicação retroactiva da lei penal.

Acresce a esta fundamental razão jurídico-política a razão político-cri-minal da função preventiva e, portanto, de orientação e motivação das con-dutas. Visando a lei penal prevenir a prática de condutas lesivas ou sus-ceptiveis de lesar os valores fundamentais para a vida pessoal e comunitária,através da motivação e dissuasão da prática de tais condutas, então a lei penal .deve caracterizar estas condutas de modo a que não haja dúvidas sobre a"matéria da proibição", i. é, sobre os factos que constituem crime.

§ 299. Ao serviço desta exigência de determinabilidade está pre-cisamente a específica e adequada categoria jurídico-penal do tipo legal.É que, diferentemente dos outros ramos do direito, no direito penal olegislador tem que descrever as características do facto, que é pressuposto

Tttulo II - A Lei Penal: criaçao e aplicação163

da aplicação da pena, da forma o mais completa possível. Assim, énatural que a hipótese legal (previsão normativa ou preceito primário)assuma, no direito penal, uma maior complexidade do que noutros sec-tores do ordenamento jurídico.

Esta exigência e correspondente técnica Iegislativa de tipificaçãoou precisão implica a recusa da utilização de cláusulas gerais na definiçãodas condutas proibidas. Uma tal utilização frustraria, dada a incertezae indeterminação que lhes é inerente, a ratio de garantia subjacente à con-sagração constitucional do principio da legalidade e, portanto, seriainconstitucional. Seria o caso, por exemplo, de uma norma penal queestabelecesse uma determinada pena para quem "praticasse uma acçãogravemente lesiva da economia nacional" ou' "do ambiente", ou, ainda,"quem praticasse actos terroristas".

§ 300. Já, relativamente aos elementos normativos ou índeter-minados, o desejável e exigível é que a sua inclusão, no tipo legal oufactualidade típica, seja reduzida ao mínimo indispensável, pois queeles afectam, em maior ou menor escala, o objectivo ideal da plenatransparência, legal das condutas que o tipo legal abrange.

Mas, na realidade, é inevitável, em muitos tipos legais, a utilizaçãode elementos normativos ou indeterminados. Basta folhear o CódigoPenal para vermos como são relativamente frequentes tais elementos e paravermos a indispensabilidade da sua utilização. Eis alguns dos muitosexemplos de elementos normativos: "dever jurídico que pessoalmenteobrigue" a evitar o resultado (art. 10.°-2), "bons costumes" (art. 38."-1),"motivo torpe ou fútil" e "meio insidioso" (art. 132.°-2), "censurável"(art, 154.

0-3-a)); e como exemplos de elementos normativos indetermi-

nados, mas determináveis segundo critérios objectivos, jurídicos ou extra-jurídicos: "estado dos conhecimentos e da experiência da medicina"(art. 150.°), "valor elevado" e "valor consideravelmente elevado"(art, 204.

0-I-a) e 2-a), "documento autêntico" e "testamento cerrado"

(art. 256.°-3), "prescrições da autoridade competente" (art, 275.0-1).

3. A proibição da aplicação analégíca - nullum crimen sinelege stricta

§ 301. Além das suas exigências de lei formal e precisa - exigên-cias feitas ao legislador e, portanto referidas à "criação" da lei penal _, que

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J61\Parte I - Quesrões Fundamentais

acabámos de analisar, o princípio da legalidade tem, ainda, uma ter-ceira exigência feita ao legislador, que é a da proibição de este atribuireficácia retroactiva à lei criminalizadora ou agravante da responsabilidadepenal, exigência que se verte na fórmula latina nullum crimen sine legepraevia. Mas, uma vez que esta matéria da ;'aplicação da lei penal notempo" tem uma multiplicidade de questões a tratar, considero maisadequado dedicar-lhe wn capítulo próprio, que será o seguinte.

Assim, passamos, agora, à consideração da quarta exigência do prin-cipio da legalidade, exigência que tem por destinatário o aplicador da leipenal e que se traduz na proibição da aplicação anãlógica da lei penal.

§ 302. Já referimos que os autores do chamado Ilumínismo Criminal(cf § 286) procuraram configurar o princípio da legalidade penal de formaque este constituísse um obstáculo intransponível pelas eventuais, e sem-pre possíveis, arbitrariedades não só do poder legislativo como também dopoder judicial. Relativamente ao poder judicial, p'ensaram que o meiode impedir qualquer arbitrariedade ou discricionariedade judicial, em maté-ria penal, era a vinculação do juiz a uma estrita interpretação literal,ou seja reduzir o aplicador da lei penal a um mero instrumento mecânicode aplicação da lei. Neste sentido iam as célebres expressões de Mon-tesquieu e de Beccaria: o juiz é apenas a "boca da lei"; o juiz é somenteum "autómato da subsunção" do caso concreto à lei penal. Isto é, a leipenal seria como que urna moldura geometricamente' bem delimitada,cabendo ao juiz verse o caso concreto nele cabia, ou não.

§ 303. Como e evidente, pese embora a boa intenção destes defen-sores de uma rigorosa interpretação literal da lei penal, a verdade é que,desde logo, se entendeu que uma tal posição era irrealista, pois quenem o texto legal é uma construção geométrica, nem o caso concreto éuma realidade linearmente definida.

O texto da lei penal, como o de qualquer lei, é constituído por umconjunto de palavras, E cada uma destas palavras não tem um único sig-nificado, mas uma plul'alidade de signiflcados. E, se cada palavra é emsi mesma polissémica, saber qual o signiflcado que lhe deve ser atribuídoôepende do próprio contexto li:teral em que ela se insere como pedra eleum edifíci.o, como elemento de um todo unitário. :Por sua 'lei, a deter-minação do sentido e a\cance normativo do texto kgal, em que se maWi)'

Titulo II - A Lei Penal: criação e aplicação 165

.".

rializa a norma, depende da finalidade ou teleologia desta. Determinarqual a finalidade e quais as condutas que são abrangidas pela norma éprecisamente o objectivo e o objecto da interpretação jurídica.

Esta determinação da finalidade e do âmbito normatívo do textolegal não é uma operação abstracta, intuitiva ou desvinculada de critérios,directrizes ou factores concretos, pois que, se o fosse, correr-se-ia o riscode uma insuportável incerteza jurídica nas decisões judiciais e, conse-quenternente, a segurança jurídica dos cidadãos seria mortalmente ferida.

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:t'. § 304. No sentido de evitar interpretações judiciais discricioná-rias ou mesmo arbitrárias, o nosso Código Civil, art. 9.°, indica os cri-térios ou factores de interpretação. De acordo com 'este artigo, cujasdisposições são válidas não apenas para o direito civil mas para todosos ramos do direito, incluindo o penal, o intérprete-aplicador deve pro-curar descobrir qual é "o pensamento Iegislativo", isto é, qual é a fina-lidade e o âmbito normativo da lei: as situações fácticas ou os casos con-cretos abrangidos pela norma jurídica.

Para conseguir este objectivo, o intérprete deve atender quer às cir-cunstâncias históricas em que a lei foi elaborada quer às circunstanciaisactuais em que a lei é chamada a ser aplicada, bem como à ratio ou teleo-logia da norma. Mas há um outro factor" da interpretação que não pode seresquecido: o texto legal ou enunciado linguístico, pois que é este o meiode comunicação entre o legislador e os destinatários da norma jurídica, éeste o mediador da normatividade jurídica sobre a realidade fáctica. Ora,o Código Civil, art. 9.', atribui, correctamente, ao texto legal ou teor lite-ral duas funções essenciais: por um lado, e logicamente, o texto legal é oponto de partida da interpretação (art. 9.°-1); por out.ro lado, e tambémcorrectamente, o texto legal impede uma interpretação que não tenha na letrada lei um mínimo de correspondência verbal (art. 9.°-2).

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§ 305. Quando, porém, o intérprete chegue à conclusão de que ocaso concreto a decidir não é abrangido por nenhuma das interpretaçõesque o texto legal comporta, então estamos diante de uma "lacuna da lei"ou eventualmente de uma "lacuna do direito", consoante exista, ou não,norma jurídica que se aplique a um caso análogo (Código Civil, art. 10.°).No primeiro caso, a lacuna será preenchida pela aplicação analógica(an.alogia legis); no segundo caso, será preenchida pelo apelo aos prin-

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166 Parte f - Questões Fundamentois

cípios jurídicos fundamentais subjacentes às normas que regulam o sec-tor jurídico em que a questão concreta se insere (analogia iuris).

Podemos, então, concluir que a distinção prática entre analogiae interpretação está no facto de, na primeira, se aplicar uma normajurídica a uma situação ali conduta que não se encontra abrangida pornenhum dos possíveis sentidos do texto legal, enquanto que, na inter-pretação, por mais extensiva que o seja, a decisão jurídica é ainda aconcretização de um sentido nonnativo que o teor Iiterário comporta.

. § 306. É certo que, para além das objecções metodológicas à distinçãoentre analogia e interpretação,é difícil a distinção prática entre a ana-ologia e a interpretação extensiva. Com efeito, definindo-se esta como'um processo hermenêutico que consiste em alargar o sentido do textolegal de forma a fazê-lo coincidir com a finalidade da norma jurídica (oucom o "pensamento legislativo", na expressão do nosso Código Civil,art. .9."), e utilizando ela os argumentos da igualdade e da maioria derazão (a pari ou a fortiorõ - argumentos ou processos lógico-metodo-lógicos estes que, em minha opinião, parecem ser materialmente idênticosaos utilizados no procedimento de aplicação analógica -, então não se vêqual a distinção material entre a interpretação extensiva e a .aplicação ana- .lógica de lima norma. E, por esta razão, não sei se terá quaisquer conse-quências metodológico-práticas a eliminação, operada pelo CP de 1982, daproibição da interpretação extensiva incriminadora, proibição que cons-tava do CP de 1886, art.. 18.°, ao lado da proibição da aplicação analógica(CP de 1886, art. 18.°: «Não é admissivel a analogia ou indução por pari-dade ou maioria de razão para qualificar qualquer facto como crime,sendo sempre necessário que se verifiquem os elementos essencialmenteconstitutivos do facto criminoso que a lei expressamente declarar»). Comefeito, quando se diz que, na interpretação extensiva, o caso decidendonão está abrangido pelo "teor literal" mas está abrangido pelo "espírito dalei" e, portanto, há que alargar o âmbito (dos sentidos possíveis) do textolegal, parece estar, implicitamente, a dizer-se que o caso concreto vai serdecidido com base num sentido imputado à norma, sentido este que exor-bita do texto legal; isto é, que vai para além dos sentidos literais possíveis.

§ 307 .. As breves impressões e dúvidas, que acabo de expor, nãosignificam que eu pense que não deve manter-se a proibição da analogia

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Título II - A Lei Penal: criação e aplicação 167

in malam partem. Entendo que deve e que tal é uma exigência e conse-quência da ratio de garantia política inerente ao princípio da legalidade. Sóque me parece que as mesmas razões de garantia levam a que também achamada interpretação extensiva in. malam partem deva ser proibida.

O mesmo raciocínio me parece aplicável à chamada redução teleo-lógica (ou interpretação restritiva) do teor literal das causas de justifi-cação, nomeadamente das previstas no Código Penal. É que tambémaqui o processo ínterpretativo redutor do âmbito do permitido pelo textolegal redunda na qualificação como não 'justificada (não excludente dailicitude penal) de uma situação que o teor literal considera como jus-tificadora. Ou seja, a redução teleológica, com fundamento na ideiade que o legislador "disse" (justificou) mais do que o que queria "dizer"Gustificar),acaba por, em nome do "espírito da lei" mas contra a "letrada lei", vir a qualificar como crime uma conduta que, segundo o textolegal, estava justificada.

§ 308. Sem deixar de reconhecer as objecções metodológicas e asdificuldades práticas da distinção entre a analogia proibida e a interpretaçãopermitida, o que me parece decisivo é que a razão de certeza e segu-rança jurídica do cidadão frente ao poder punitivo estadual proíbe a aplicaçãode urna norma penal a uma situação que não esteja expressamente abran-gida por um dos (eventuais) vários sentidos compatíveis com o texto legalem que a norma se materializa e se manifesta. O objectivo da interpreta-ção é a descoberta: da ratio da norma -.:....interpretação teleológica -, i. é,a descoberta de qual o bem jurídico que ela visa tutelar e de quais assituações fácticas a que se deverá aplicar, tendo em conta a sua teleolo-gia normatíva. O texto legal constituí, porém, um limite às conclusõesinlerpretativas teleológícas, no sentido de impedir a aplicação da normaa urna situação que não seja abrangida pelo teor literal da norma, isto é,por um dos vários significados da(s) palavra(s) do texto legal. Poder-se-àdizer que, assim, ficarão, por vezes, fora do âmbito jurídico-penal situa-ções tão ou mais graves do que as expressamente abrangidas pela normapenal, isto é, comportamentos que, por identidade ou até por maioria derazão, também são abrangidos pela ratio da norma e, portanto, deveriamser também puníveis .. Responde-se que assim é, e tem de ser, quer emnome da tal garantia política do cidadão quer na linha do carácter frag-mentário do direito penal.

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168 Parte { - Questões Fundamentais

Por estas mesmas razões, que são específicas do. direito penal eque estão relacionadas com a gravidade, natureza e finalidades das san-ções criminais, é que, contrariamente ao que se verifica noutros ramosdo direito, não existe, no direito penal, a figura da proibição da dene-gação de justiça, que está prevista no art, 8.° do CC.

§ 309. Como já foi referido, a proibição da aplicação analógica fun-damenta-se na razão de garantia política do cidadão frente ao ius puniendiestataL E foi esta razão que levou o legislador constitucional a consa-grar implicitamente, no art, 29.°-1 da CRP (elei que declare punível aacção ou ornissão»), a proibição da analogia, proibição que O legisladorordinário explicitou no CP, art. 1.°-3: «Não é permitido o recurso àanalogia para qualificar um facto como crime, definir um estado deperigosidade ou determinar a pena ou medida de segurança que lhescorresponde» .

Desta finalidade fundamentadora da proibição da analogia resultaclaro que fi proibição abrange só a analogia in matam partem, isto é,a analogia desfavorável ao agente, e não a analogia "in banam partem ",ou seja, a favorável ao agente. Deste modo, é proibida a analogia incri-minatória e a agravante da responsabilidade penal, quer estejam emcausa normas da parte especial da CP ou normas constantes de leispenais extravagantes, que descrevam tipos legais de crime, quer se tratede normas da parte geral 'do CP, quando a sua aplicação analógica se tra-duza em fundamentação ou agravamento da punibilidade.

Esta proibição também abrange as normas extrapenais comple-mentares das leis penais em branco, pois que as razões determinantes daproibição da analogia desfavorável assim o impõem, Estas normasextrapenais, para as quais as leis penais em branco remetem, assumem,por força de tal remissão, natureza penal enquanto integradoras da leipenal em branco.

§ 310. Vejamos alguns exemplos de analogia desfavorável ou con-tra reum e, portanto, proibida. .

Partindo da hipótese de que O art. 132.° do CP continha uma enu-meração taxativa (o que não é o caso) das circunstâncias qualificativasdo. homicídio, e de que estas circunstâncias se referiam, constitutiva-mente, ao ilícito e não à culpa (o que também não é o caso), a aplica-

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Ululo 11 - A Lei Penal: criação e aplicação 169

~1 ção da circunstância "adoptado" (art. 132.o-2-a)), a um adolescentemorto por uma pessoa que o tinha facticaroente acolhido como filho,desde os primeiros meses de vida, constituiria uma aplicação analógicaproibida, uma vez; que, por real que seja a identidade material entreesta situação de "adopção" fáctica e a situação de adopção jurídica,aquela exorbita do conceito desta,

Um outro exemplo, que foi objecto de decisão pela jurisprudênciaportuguesa e pela jurisprudência alemã, foi o caso de saber se, paraefeitos do crime de furto, a energia eléctrica devia considerar-se "coisamóvel". A resposta dada pelos tribunais portugueses foi, no geral, afir-mativa, enquanto a dos tribunais alemães foi negativa. Ora, tendo em.conta que o conceito de coisa móvel (e o contexto literário do tipo legalde furto) implica uma corporalidade ou materialidade, isto é, algo quepode ser objecto de uma apreensão manual, parece que a razão estevecom a jurisprudência alemã.

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6.° CAPÍTULO

A EFICÁCIA TEMPORAL DA LEI PENAL

r. o principie da proibição da retroactividade da lei penal desfá-'"orável - nulluni crimen, nutla poena slne lege praevia (21)

§ 311. A exigência jurídico-política de garantia do cidadão frenteao poder punitivo do Estado, exigência conatural ao Estado de Direito(cf. § 28455.), e a função preventivo-geral de dissuasão atribuída à pena(cf § 288) determinaram, desde fins do séc, xvm, a consagração cons-titucional da. proibição da aplicação retroactiva da lei penal desfa-vorável, Assim, quer a lei criminalizadora, quer a lei que viesse esta-belecer uma pena mais grave do que a prevista pela lei em vigor nomomento da prática do facto, só poderia ser aplicada aos factos come-tidos depois da sua entrega em vigor.

§ 312. Esta proibição da retroactividade da lei penal desfavorávelfoi logo acolhida, como referimos, pelas primeiras "Constituições Libe-rais':' de fins do séc. XVIII e princípios do séc, XlX (caso da nossa pri-meira Constituição política de 23 de Setembro de 1822, arts, 9.

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e 11.°) como um princípio constitucional estruturante do Estado deDireito e continua a ser assumido pela geração das actuais "Constitui-ções Sociais" como princípio constitucional fundamental.

Assim, estabelece a nossa Constituição, art. 29.": «Ninguém podeser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior quedeclare punível a acção ou a omissão, nem sofrer medida de segurança

(lI) A multiplicidade d3S questões, que a sucessão de leis' penais levanta, é, desen-volvidarnente, tratada no meu livro Sucessão de Lés Penais, 3.' ed., Coimbra Editora,

2008.

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Titulo II - A Lei Penal: criação e aplicação 17l

cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior» (n." 1); «Nãopodem ser aplicadas penas. ou medidas de segurança que não estejamexpressamente corninadas em lei anterior» (n." 3); «Ninguém pode sofrerpena ou medida de segurança mais graves do que as previstas nomomento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivospressupostos» (n." 4, l.'parte).

Estas disposições constitucionais estão, obviamente, incorporadasno CP, arfo 1.0_1 e 2 e art, 2.°-1,

§ 313. Foram e continuam a ser, essencialmente, dois os funda-mentos da proibição da eficácia retroactiva da lei penal: a razão jurídico-

·-política de garantia do cidadão face ao ius puniendi. estatal e a funçãopreventivo-geral de intimidação ou dissuasão imputada à pena.

Mas deve registar-se que foi e continuaráa ser a perenidade do fun-damento jurídico-político de necessidade .de garantia e segurançado cidadão a âncora firme e inamovível da proibição da: retroactivi-

· dade penal desfavorável. É que, por maiores que sejam as mutações polí-tico-criminais sobre o fim da pena, sempre aquela necessidade jurídico--político-constitucional constituirá um intransponível travão à aplicaçãoretroactiva da lei penal desfavorável.

Foi precisamente esta consciência ético-política que impediu que esteprincípio da irretroactividade desfavorável fosse postergado em nome daconcepção político-criminal da Escola Positiva (cf. § 50) que pretendeusubstituir o direito penal dos factos pelo direito "penal" dos delinquentese que advogou a substituição da categoria das penas pela categoria dasmedidas de segurança (da sociedade) e tratamento (dos delinquentes).Ou seja: em vez de penas, com uma função de prevenção geral, dever-se-iamsomente aplicar medidas de segurança com uma mera finalidade de pre-venção especial de actuação sobre a perigosidade dos delinquentes.E assim, isto é, se as medidas de segurança são apenas um meio de a socie-dade se defender dos delinquentes, e· de tratamento da perigosidade des-tes, então a conclusão lógica político-criminal teria de ser a de que se

· deveriam aplicar aos agentes de ilícitos criminais as sanções (medidas desegurança) que estivessem em vigor no momento do julgamento, inde-pendentemente de a lei, que as criou, ser posterior à prática dos respec-tivos factos, e mesmo que elas fossem mais graves dos que as previstaspela lei em vigor no momento da prática dos respectivos ilícitos criminais.

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172-----Parte I - Quesrões FundamenC(lis

A verdade, porém, é que, apesar da importância que a Escola Posi-tiva teve, nunca a sua tese da abolição da i.rretroactividade da lei penal des-favorável prevaleceu. E o obstáculo a que tal proposta tivesse vingado foiprecisamente a fundamental e perene necessidade de garantia do cida-dão, mesmo que delinquente, contra as sempre possíveis arbitrariedades dopoder punitivo estatal Esta a razão que levou mesmo alguns autores,que aderiram entusiasticamente às teses da Escola Positiva (como, P: ex.,o nosso Henriques da Silva), a continuarem a defender a irrenunciabilidadedo princípio da proibição da retroactividade da lei penal desfavorável.

n. A determinação do tempus dellcti

§ 314. A funcionalidade e o pleno cumprimento das exigências éti-cas jurídico-política e político-crimjnal, que fundamentam a proibição daretroactividade da lei penal desfavorável, estão dependentes da deter-minação do chamado tempus delicti, i. é, do momento em que se deve

considerar cometido o crime.Ora, uma vez que o crime é uma realidade complexa, que se decom-

põe em vários elementos, nomeadamente a acção e o resultado, e sendoce110 que, por vezes, estes elementos ocorrem em tempos muito dis-tantes entre si, torna-se indispensável determinar o elemento que cons-titui o critério decisivo para averiguar da anterioridade ou posteriori-

dade da lei penal em causa.

§ 315. Embora já tivesse havido quem defendesse que decisivo erao momento do resultado, é, hoje, entendimento unânime, na doutrina e najulisplUdência, que o momento de referência é o da conduta, sendo irre-levante o momento em que se produz o resultado. E também é este omomento que o CP, art. 3.°, consagra como critério exclusivo do "tempodo crime", dizendo: «O facto considera-se praticado no momento em queo agente actuou ou, no caso de omissão, deveria ter actuado, independen-terrlente do momento em que O resultado típico se tenha produzido»,

Observe-se que, por imperativo das já referidas razões de garantia,imanentes ao princípio da legalidade penal em geral e à proibição daretroactividade desfavorável em especial, não podia o legislador ordináriodeixar de consagrar o critério unilateral da conduta.

Titulo II - A Lei Penal: criação e aplicação 173

Conclusão: a proibição da aplicação retroactiva da lei criminali-zadora e da lei agravante da responsabilidade penal significa que estasleis não podem aplicar-se ao agente de uma conduta praticada antes doseu inicio de vigência, mesmo que o resultado dessa conduta (p. ex., amorte) venha a produzir-se quando essa lei já está em vigor.

§ 316. A razão essencial da fixação do tempus delicti 110 momentoda conduta (acção ou omissão) é, como vimos, a jurídico-política degarantia do cidadão. .

Acrescem ainda razões suplementares em favor deste critério uni-lateral da conduta. São elas: a função de orientação das condutas quecabe à norma penal, a concepção subjectiva do ilícito penal e o fimpreventivo-geral de dissuasão que a pena realiza.

Relativamente à função de orientação da lei penal, há que dizer que,pressupondo a norma penal uma valoração de determinados bens juri-dicos, ela visa, consequentemente, determinar os seus destinatários, oscidadãos, a não praticarem (norma de proibição) ou a praticarem (normade imposição) determinadas acções. Daqui a conclusão de que a violaçãoda norma se concretiza na conduta e não no resultado, embora seja evi-dente que a razão da proibição ou da imposição é a de prevenir osresultados, i. é, a lesão dos bens jurídicos.

Quanto ao argumento extraído da concepção subjectiva do ilícitopenal, pretende-se acentuar uma ideia próxima da retirada da norma penalcomo norma de determinação das condutas, que é a de que a essenciali-da de da infracção penal radica no desvalor da acção (ou omissão) e não110 desvalor do resultado. Na verdade, não há ilícito penal sem desvalorde acção, mas já pode haver ilícito penal sem desvalor de resultado.

Finalmente, quanto ao fundamento político-criminal da fixação dotempus delicti no momento da conduta, fundamento derivado dafunçãode prevenção geral dapena, há que dizer que a ameaça penal, contidana norma, visa dissuadir o agente da prática de determinadas condutas,pois que estas é que dependem do destinatário da norma, enquanto queos resultados, uma vez; praticadas aquelas, são muitas vezes inevitáveis.

§ 317, Estabelecido que o momento decisivo é o da conduta, nãoficam, porém, resolvidos todos os problemas. É que, se em grandenúmero de casos, a conduta tipificada na lei se realiza num determi-

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174 Parte 1 - Queslões FlIl1cfamel1caiJ._-_._---------

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nado momento, há casos em que a conduta se protraí por um tempomais ou menos longo: dias, meses ou até anos. Pensamos, especial-mente, nas hipóteses dos tipos legais de crime duradouros, dos tipos decrime habituais, nos crimes de omissão e, ainda, nos casos de crimecontinuado, de comparticipação e da actio libera in causa.

Em tais hipóteses, como claramente se intui, pode, entre o início daconduta e o seu termo, surgir uma lei criminalízadora ou uma nova leique venha "simplesmente" alterar a pena (ou a medida de-segurança).- E, então, é inevitável a pergunta: no caso de a lei ser criminalizadora,devem ser tidos em conta os actos, ou a "parte" da conduta, praticadosantes da sua entrada em vigor, uma vez que, segundo a referida lei,tais actos, sob o ponto de vista jurídico-penal, formam, juntamente comos actos praticados depois da entrada em vigor da referida lei, uma sóunidade ou conduta criminosa"; e, no caso de a nova lei alterar a pena,qual _é-a que deve ser aplicada, já que tanto a antiga como a nova lei esti-veram em vigor no tempo que durou a conduta?

Apesar da diversidade das hipóteses referidas (crimes duradouros,crimes de omissão, etc.), há um denominador comum e relevante emtodas elas: a inevitável ou possível "distribuição pelo tempo" da condutaou condutas que são assumidas, jurídico-penalmente, como uma só uni-dade Cou continuação) criminosa.

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§ 318. Vejamos como resolver esta questão.Tratando-se de lei crímínalízadcra, não há qualquer -dúvida: só

podem ser consideradas as acções que foram praticadas depois do seuinício de vigência; as anteriores (ou o tempo de duração da acção, ante-rior à entrada em vigor da lei) são, evidentemente, irrelevantes sob oaspecto jurídico-penal, já que o contrário constituiria uma violação daproibição constitucional da retroactividade da lei criminalizadora.

Problema também não há, quando a lei nova é favorável, querporque descriminaliza quer porque diminui a responsabilidade penal (lexmiiior'[: Nestes dois casos, há claramente, lugar à aplicação retroactivada lei, porque mais favorável, .

Dificuldades só existem quando a alteração legislatíva se traduznuma agravação da pena.

Embora já tenham sido defendidas outras propostas, creio que asolução mais conforme com as razões da proibição da retroactividade da

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Titulo II - A Lei Penal; criação e aplicação 175

lei penal desfavorável, sem menosprezar a função preventivo-geral da leinova, é a seguinte: deve aplicar-se a lei antiga, excepto quando atotalidade dos pressupostos típicos .da lei nova se tenham verificadona vigência desta.

Assim, p. CX., no caso do furto continuado, o tribunal não poderáaplicar a lei nova mais grave, se, na continuação criminosa de furtos sim-ples (art. 203.°) e de furtos qualificados (art, 204.°), nenhum furto qua-lificado tiver sido cometido durante a vigência da lei nova, que agravoua pena do furto qualificado .

O mesmo se diga p8.I1l a hipótese de a .lei nova, que vem agravar a res-ponsabilidade penal pelo crime, p. ex., de usura habitual (art. 226.o-4-a),ter entrado em vigor quando, tendo já sido feitos vários empréstimos usu-rários antes do seu início de vigência, apenas tiver sido feito um depoisdeste momento.

Nos crimes de omissão, decisivo é o último momento em que o omi-tente ainda tinha podido praticar eficazmente (i. é, com probabilidadesde impedir o resultado) a acção imposta. Assim, a lei nova só se apli-cará, quando entrar em vigor antes de esgotada a última possibilidade deuma intervenção adequada a impedir o resultado (trate-se de crimes demera omissão ou de crimes de comissão por omissão).

Nos casos de comparticipação (autoria mediara, coautoria, instiga-ção e cumplicidade), decisivo será o momento de cada uma das condutasconsideradas autonomamente. Assim, p, ex., se, posteriormente aomomento da "promessa" feita por A a B, mas antes da prática, por este,do crime X (para O qual tinha sido "determinado" por A), entrar emvigor uma lei que agrave a pena do crime X, esta lex severior só seaplicará a B.

Finalmente, no caso da chamada actio libera in causa (art. 20.°-4),determinante é o momento em que o agente se coloca no estado deinimputabilidade, e não o momento (posterior) em que ele (já transito-riamente inimputável) pratica o facto tipificado na lei penal.

ru. A imposição da aplicação retroactiva da lei penal favorável

§ 319. Vimos que a ratio originária - e que permanece e per-manecerá como fundamental - da proibição da retroactividade da lei

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176 Parte I - Questões Fundamentais

penal desfavorável foi jurídico-política: segurança do indivíduo diante dapossível arbitrariedade legislativa no exercício do ius puniendi estadual.

. Esta proibição da aplicação retroactiva da lei penal apenas visavaa lei penal desfavorável. Portanto, o princípio do nullum crimen, nullapoena sine lege praevia em nada interferiu com o problema da retro-actividade da lei penal favorável: nada tinha contra, nem a favor destaretroactividade in mellius. Tanto assim foi que, apesar de .constitucio-nalrnente proibida a retroactividsde, logo os primeiros códigos penais esta-beleceram a aplicação retroactiva, quando a lei nova fosse mais favorável,isto é, quando descriminalizasse a conduta ou reduzisse a pena.

§ 320. A razão fundamental histórica da aplicação retroactivada lei penal favorável foi a atribuição, à pena, de uma função essen-cialmente preventiva geral e/ou especial. É que, se o legisladorentende que o facto não deve continuar a ser considerado crime ou que,embora o deva continuar a ser, todavia entende que é suficiente, paraserem satisfeitas as necessidades sociais da prevenção geral e especial,uma pena menos grave, então deixa de ter sentido a aplicação da leiantiga, devendo, sim, aplicar-se retroactivamente a nova lei.

Na realidade, o debate, ocorrido no séc, XIX, sobre a retroactividade,ou não, da alteração legislativa in tnellius revela, precisamente, estafundamentação político-criminal da aplicação retroactiva da lei penalfavorável. Com efeito, se os adeptos da Escola Clássica, ao-defenderemuma rigorosa concepção ético-retributiva da pena (cf § 40. 55.), coe-rentemente também consideravam que se deveria aplicar sempre e só alei do tempus delicti (pois que era a pena estabelecida por esta lei aque correspondia à gravidade da culpa do infractor), já. os adeptos do Cor-reccionalisrno e os autores da Escola Positiva (§ 44 55.) defendiam a apli-cação retroacti va da lei nova, quer esta fosse favorável ou desfavorável,com fundamento no facto de a pena dever ser determinada exclusivamentepelas necessidades preventivas, máxime especiais, ede estas necessida-des serem melhor realizadas pela lei em vigor no momento do julga-mento.

É certo que, como já o referimos (§ 313), muitos dos autores (p. ex.,Henriques da Silva, Franz von Liszt), que imputavam à pena uma fun-damentação e função exclusivamente preventiva, foram suficientementelúcidos para rejeitarem, em nome da segurança e das garantias individuais, 1

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a aplicação retroactiva da lei penal desfavorável, só defendendo a retro-actividade favorável.

§ 321. Este fundamento político-criminal (i. é, relacionado com afinalidade preventiva da pena) da aplicação retroactiva favorável foi,posteríormente, com a passagem do Estado-de-Direito "formal" aoEstado-de-Direito "material", fortalecido com o. princípio. constitucio-nal da restrição mínima dos direitos fundamentais da pessoa'. Esteprincípio conduziu, no plano jurídico-penal, ao principio da indispen-sabilidade ou da máxima limitação possível da pena: a pena e o seuquanto só se justificam, jurídico-constitucionalmente, na medida doindispensável à protecção dos «direitos ou interesses constitucional-mente protegidos» (CRP, art, 18.°-2).

Um tal princípio constitucional, projectado na «aplicação da leipenal no tempo», vincula à retroactividade da lei favorável: se o legis-lador entende que uma pena menos grave e, portanto, menos limitadorados direitos fundamentais, especialmente da liberdade, é suficientepara realizar as funções político-criminais de prevenção geral (de inte-gração e de dissuasão) e de prevenção especial (de reinserção social ede dissuasão do delinquente), então esta terá de aplicar-se retroacti-vamente. O contrário seria aplicar uma pena que, no momento dojulgamento (ou mesmo da execução), é tida como .desnecessária e,portanto, seria inconstitucional.

Os princípios político-criminais e jurídico-constitucionais acabadosde referir encontraram adequada e. expressa consagração na nossa Cons-tituição de 1976. Com efeito, se a CRP, no art, 18.°, consagra o prin-cípio da restrição mínima da liberdade e dos outros direitos fundamen-tais, o art. 29.0-4-2." parte, visando directamente a sucessão de leispenais, faz a concretização deste princípio geral, estabelecendo a retroactí-vidade das «leis penais de conteúdo mais favorável».

Por sua vez, O CP, art, 2.°.2 e 4-1." parte, assume estes princípios,estabelecendo: «O facto punível segundo a lei vigente no momento dasua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número dasinfracções»; «Quando as disposições penais vigentes no momento daprática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis pos-teriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar maisfavorável ao agente».

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IV. O princípio da aplicação da lei penal favorável

§ 322. Do que acaba de expor-se resulta a conclusão de que, emmatéria de sucessão de leis penais ou, segundo a designação tradicional,de aplicação da lei penal no tempo, vigora o princípio da aplicação dalei penal favorável. E também resulta que, hoje, é incorrecta a classi-ficação da proibição da retroactividade como principio geral e da retroac-tividade da lei mais favorável como excepção. Incorrecta, quer na pers-pectiva jurídico-constitucional do Estado-de-Direito Democrático e Social,quer na perspectiva jurídico-penal, visto que, hoje, o direito penal nãopode deixar de se abrir aos princípios politico-crimínais consagradosna Constituição (cf. § 3), sendo este - O da aplicação da lei penalfavorável- um deles, o qual, precisamente, decorre do princípio da res-trição mínima dos direitos fundamentais.

V. Consequências do princípio da aplicação da lei mais favorável

1. Sucessão de leis penais em sentido amplo e em sentido estrito

§ 323. Antes de analisarmos as consequências jurídico-práticas daaplicação do princípio da lei penal favorável, convém fazer uma brevereferência à distinção entre sucessão de leis penais em sentido amplo(ou impróprio) e sucessão de leis penais em sentido estrito (ou rigo-roso).

Tomada em sentido amplo, a designação tanto abrange uma sequên-cia de duas ou mais leis penais (criminais) como uma sequência deuma lei penal e de uma lei contra-ordenacional, ou de uma lei contra--ordenacional e de uma lei penal. Tomada em sentido estrito ou correcto,a designação «sucessão de leis penais» implica que todas as leis que sesucederam, desde o momento da prática do facto até à completa extin-ção da responsabilidade penal, eram leis penais.

§ 324. Convém, ainda, chamar a atenção para o facto de que, umavez eliminada do nosso sistema jurídico-penal a categoria das contra-venções, lei penal passou a ser sinónimo de lei criminal. A partir deentão, passou a haver uma só categoria de infracção penal, que é o

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Título JJ - A Lei Penal: criação e aplicação 179

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Daqui resulta que o termo despenalização coincide rigorosamentecom o termo descriminalização: despenalizar é o mesmo que descri-minalizar. Pena, em sentido exacto, pressupõe, lógica e materialmente,o crime, e só a este pode ser aplicada.

§ 325. É certo que há outras categorias de ilicitos (não criminais--penais) que também são puníveis com diferentes sanções. É o caso doilícito disciplinar, punível com sanções disciplinares; do ilícito contra-ordenacional, ·punível com coimas; ou ainda de um simples ilícito con-tratual, que pode ser punível com base na chamada "cláusula penal".Mas, em nenhum destes casos, é, jurídico-sistemática e jurídico-mate-rialmente, correcto falar-se em penas.

E, assim, é incorrecto dizer-se que determinada conduta, que era con-siderada contra-ordenação, e que, por força de uma determinada lei, dei-xou de o ser, foi despenalizada. Nãol; não foi despenalizada, mas sim des-punibilízada, isto é, deixou de ser punível. E não foi despenalizada, pelasimples razão de que só pode ser despenalizada uma conduta que, antes,era punidacom uma pena, ou seja, que, até então, era considerada crime.

A circunstância de, por força da tradição, se manter, ainda, no direitodisciplinar público, a designação de "penas disciplinares", em nada afectaesta argumentação. Trata-se, pura e simplesmente, de uma designaçãoincorrecta. Se a designação fosse correcta, então também teríamos deconsiderar o ilícito disciplinar como um ilícito penal!... E até o próprioilícito civil contratual poderia ser qualificado como ilícito penal, pois tam-bém lhe pode ser aplicada uma "cláusula (sanção) penal'']..; - É evi-dente que não. Mas também é evidente que não écorrecto chamar-se àdespunibilização de uma conduta, que deixou de ser considerada como con-tra-ordenação, despenalização, visto que uma coíma não é uma pena.Dizer-se, quando o consumo de droga passou de crime a contra-ordena-ção, que esta conduta foi descriminalizada, mas não foi despenalizada, éincorrecto. Pois, se foi descrirninalizada, necessariamente (dado que,hoje, infracção criminal é igual a infracção penal) que foi despenalizada .Despenalízada, pois que deixou de ser punível com uma pena; embora nãodespunibilizada, pois continua a ser punível, Só que com uma sanção denatureza diferente da pena, que é acoima.

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180Parte I - Qltestões Fundamentais

§ 326. Hoje, só teria sentido distinguir despenalização e des-criminalização, se se considerasse que o ilícito de mera ordenaçãosocial é também uma infracção penal, ao lado do crime, à semelhançado nosso sistema antigo em que havia duas categorias de infracçõespenais, o crime e a contravenção. - Mas é evidente e sabido que nãoé esta a nossa actual realidade jurídico-positiva. Pois, quer a históriada criação legislativa da figura das contra-ordenações, quer o enten-dimento quase unânime da doutrina, quer, sobretudo, a distinção jurí-dico-material entre a pena e a coima, e a distinção entre as respecti-vas entidades com competência julgadora (para ·as contra-ordenações,autoridades administrativas; para os crimes, os tribunais -. nulla poenasine judicio], demonstram que o ilícito contra-ordenacional não éum minus, mas, sim, um aliu d, relativamente ao Ilícito penal(cf. § 217 ss.).

2. A eficácia temporal da lei que converte Uma conduta decontra-ordenação em crime ou, inversamente, de crime emcontra-ordenação

§ 327. É evidente que estas duas hipóteses não configuram uma ver-dadeira sucessão de leis penais. Pois o que temos, nestes dois casos, sãoduas leis de natureza jurídica diversa; uma lei penal (ou lei criminali-zadora) e uma lei contra-ordenacional (que, obviamente, não é uma leipenal ou criminalizadora). Logo, não funciona, nestas situações, o prin-cípio da aplicação da lei penal mais favorável (CRP, art. 29."-4; CP,art, 2.°_4) e, portanto, não há que fazer a ponderação da gravidade objec-tiva das sanções contra-ordenacionais e das sanções penaisIp, ex., dosmontantes pecuniários da coima e da multa).

§ 328. Na hipótese. de a lei nova passar a qualificar a con-duta contra-ordenacional (i. é, anteriormente qualificada legalmentecomo 'contra-ordenação) como crime, í. e, como infracção penal, esta-mos diante. de uma lei crímínallzadora (penalizadora). .Corno tal,por força do princípio constitucional (CRP, art. 29.°-1 e 3) e jurídico--penal (Cl', arts. 1.°-1 e 2.°-1), da proibição da retroactividade da leicrirninalizadora, tal lei só pode aplicar-se aos factos praticados depoisda sua entrada em vigor. .

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Título II - A Lei Penal: criação e aplicação 181

§ 329. Mas, relativamente aos factos praticados durante a vigên-cia da lei antiga (que os considerava como contra-ordenações) e queainda não tenham sido julgados ou, se julgados e condenados, as res-pectivas sanções contra-ordenacionais (coimas e eventuais sanções aces-sórias) ainda não tenham sido cumpridas, perguntar-se-à: deverão serjulgados segundo a lei em vigor no momento do seu cometimento, ape-sar de, agora, tal lei já estar revogada?; e, se já foram julgados, mas asrespectivas sanções contra-ordenacionais ainda não foram inteiramentecumpridas, deverão estas, apesar da revogação da respectiva lei, serefectivamente executadas?

Não sendo esta uma questão jurídico-penal, a resposta não cabe aodireito penal, mas sim ao direito de ordenação social. - Então, o que nosdiz o Regime Geral das Contra-Ordenações (Dec.-Lel n." 433/82)?

O art. 2." estabelece que «Só será punida como contra-ordenação ofacto descrito e declarado passível de coimapor lei anterior ao momentoda sua prática.». Ora, na hipótese configurada e em análise, efectivamenteexistia lei anterior contra-ordenacional.

Porém, há que ter em contao art. 3.°_2 do referido Dec.-Lein," 433/82, após alteração do Dec-Lei n." 244/95, que determina que «Sea lei vigente ao tempo daprática do facto for posteriormentemodificada, apli-car-se-á a lei mais favorável ao arguido, salvo se este já tiver sido conde-nado por decisão definitiva ou transitado em julgado e já executada».

Ora, a realidade é esta: a lei contra-ordenacional em vigor, 110

momento da prática do facto, não foi modificada, mas, pura e simples-mente, revogada. Assim, uma vez que o disposto, no referido n." 2 doart. 3.°, directamente apenas se refere às hipóteses de sucessão de leis con-tra-ordenacionais, parece que ficamos sem solução legal para estes casosde uma lei que converte uma conduta de contra-ordenação em crime.

Mas, na realidade, não ficamos sem solução legal. Pois que a lei,que passa a qualificar o facto como crime e que revoga, expressa ou taci-tamente, a lei anterior que O qualificava como contra-ordenação, é, reia-tivarnente ao direito de ordenação social, uma lei descontraordenacio-nalizadora e, como tal, favorável ao autor da contra-ordenação. Donderesulta a sua aplicação retroactiva, deixando O respectivo agente, aindanão condenado ou, se condenado, ainda não executadas as respectivas san-ções, de poder ser condenado contra-ordenacionalmente ou de contraele poderem ser executadas as respectivas sanções.

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182 Porte I - Questões Fundtunentais

Na verdade, tendo, por força do art. 2.°_3, de se aplicar retroacti-vamente uma nova lei contra-ordenacional, que estabeleça sanções con-tra-ordenacionais mais leves, então, por maioria de razão se terá deaplicar retroactivamente uma lei nova que, pura e simplesmente, deixade considerar como contra-ordenação a respectiva conduta:

§ 330. Objectar-so-á que, precisamente quando o legislador queragravar a responsabilidade jurídica por determinadas condutas, passandoa qualificar estas como crime e, portanto, substituindo a responsabilidadecontra-ordenacional por responsabilidade penal, vão precisamente serirresponsabilizados juridicamente (nem por crime, nem por contra-orde-nação) muitas pessoas que praticaram tais factos. - A resposta é esta:é verdade, é isso mesmo que se passa.

Mas passa-se ou poder-se-à passar por duas razões; e ambas daresponsabilidade do legislador. São elas: o facto de o legislador, noRegime Geral das Contra-Ordenações, não ter previsto esta hipótese(o que revela negligência quase grosseira, pois a experiência destes,polltico-jurídicarnente, indesejáveis "hiatos" não é nova), estabelecendoque os factos anteriores à lei que converteu o facto de contra-ordenaçãoem crime permanecem puníveis como tais, isto é, como contra-ordena-

. ções (ultra-actividade da lei contra-ordenacional),A segunda razão destes "hiatos" está no facto de o legislador, que cria

a lei que muda o facto de contra-ordenação em crime, não incluir umanorma transitória que estabelecesse que' as contra-ordenações, ante-riormente cometidas, permaneciam puníveis como contra-ordenações.- Uma tal norma, uma vez que as sanções contra-ordenacionais são(e desde que, efectivamente, o sejam ... ) menos graves que as sançõespenais, não padeceria de inconstitucionalidade material. Mas teria, sob penade inconstitucionalidade formal-orgânica, de se apoiar numa lei de auto-rização (no caso de constar de um decreto-lei), visto que implicava umaalteração, para aquela conduta, do Regime Geral das Contra-Ordenações,especificamente consagrado no n." 2 do art. 3.° (cf. § 248).

§ 331. A outra situação é aquela em que a lei nova converte ofacto de 'crime em contra-ordenação.

Nesta hipótese, a lei nova é uma lei descrímínalízadora ou des-penalizadora, o que, como já o vimos (§ 324), significa o mesmo.

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Sendo descrirninalizadora, então todos os factos, praticados durante asua vigência, deixam de ser puníveis penalmente, por força da imposição daaplicação retroactiva da lei nova despenalizadora (CRP, art, 29.°-4-2.~ parte;CP, art. 2.°_2). -Portanto, se ainda não se iniciou o procedimento criminal,jamais se poderá iniciar; se já está em curso, extinguir-se-à, com aentrada em vigor da lei nova; mesmo que já tenha ocorrido o trânsito emjulgado da sentença penal condenatória, «cessam a execução e os seusefeitos penais» (CP, art. 2.°_2) ..

§332. E, perguntar-se-à: sendo certo que os factos praticadosdurante a vigência da lei antiga foram descriminalizados e, portanto,não podem ser punidos penalmente, todavia não poderão ser punidos con-tra-ordenacionalmente, com base na lei nova, uma vez que as novassanções (contra-ordenacionais) serão menos gravosas que as sançõespenais estabeleci das pela lei antiga?

- A resposta passa pelas seguintes considerações: em primeirolugar, há que reafirmar que estamos diante de uma sucessão de leis dediferente natureza jurídica, sendo a lei antiga uma lei criminal-penal ea lei nova uma lei contra-ordenacional; em segundo lugar, o CP, art. 2.°-4,refere-se apenas às verdadeiras sucessões de leis penais, enquanto queo Dec.-Lei n." 433/82, art. 3.°_2, se refere exclusivamente a uma suces-são de leis contra-ordenacionais; donde a conclusão de que a questão nempode ser resolvida pelo CP, art. 2.°-4, nem pelo art. 3.°-2 do Regime Geraldas Contra-Ordenações.

Como já o. dissemos, a lei nova é, simultaneamente, uma leidescrirninalizadora e uma lei ccntra-or'denacionalizador a, Que osfactos anteriormente praticados deixam de poder ser tratados como cri-mes, já o dissemos que era evidente. Mas também não podem, porforça do Dec.-Lei n." 433/82, art. 3.°-1, ser, retroactivamente, trata-dos e punidos como contra-ordenação, pois que é princípio da apli-cação no tempo da lei contra-ordenacional que esta só vale para ofuturo, i. é, só se pode aplicar aos factos praticados depois do seu iní-cio de vigência.

§ 333. A única hipótese de evitar que os respectivos agentes nãosejam puníveis contra-ordenacionalmente é a inclusão, na lei nova quevem qualificar o facto como contra-ordenação, de uma norma transi-

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184Parte 1 - Questões Fundamentais

tória que estabeleça a punição como contra-ordenação dos factos pra-ticados na vigência da lei antiga penal.

Uma tal solução, desde que apoiada numa lei de autorização daAssembléia da República (uma vez que contraria o regime geral dascontra-ordenações), não seria ínconstitucional, uma vez que, e namedida em que as sanções contra-ordenacionais fossem, realmente,menos graves que as sanções penais da lei antiga. - Cumprido estepressuposto (pois, caso contrário, havia inconstituciona1idade mate-rial, na medida em que a atribuição de eficácia retroactiva materiali-zava uma verdadeira fraude à norma constitucional do art. 29."-4-P parte),parece que não haveria inconstitucionalidade na atribuição de eficáciaretroactiva à lei nova que passa a qualificar como contra-ordenação umaconduta então qualificada como crime. E parece não ser inconstitu-cional, porque, formalmente, tal retroactividade não cai no âmbito daproibição da CRP, art. 29.°-1 e 3, e porque, materialmente, não haviaqualquer afectação retroactiva dos direitos, liberdades e garantias indi-viduais.

E acrescente-se que uma norma deste tipo podia, e devia, serincluída 110 Regime Geral das Contra-Ordenações.

§ 334. Como conclusão final, temos que, a não existir uma talnorma transitória (ou incluída, 110 futuro, no Regime Geral das Contra--Ordenações), os factos anteriores têm, necessariamente,. que ser trata-dos como factos descriminalizados, e também não podem ser tratadoscomo contra-ordenações. Numa palavra: perderam, com a entrada emvigor da lei, relevância penal e relevância contra-ordenacional.

Esclareça-se, por último, que isto, que acabámos de referir, quantoà possibilidade de atribuição de eficácia retroactiva à lei que converte umaconduta de crime em contra-ordenação não se aplica, de forma alguma,a uma lei que, ex novo, viesse qualificar e punir como contra-ordenaçãouma conduta que, antes, não era considerada crime .. Uma tal atribuiçãode eficácia retroactiva seda claramente inconstituciona1.

3. Lei penal íutermédia

§ 335. Lei interrnédia é a lei penal cujo início de vigência é pos-terior ao momento da prática do facto e cujo termo de vigência ocorre

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antes do julgamento, rectius, antes do momento em que transita em jul-gado a sentença.

Tratando-se de uma lei que não está em vigor em nenhum dosmomentos referenciais - o momento da conduta e O momento do trân-sito em julgado da sentença -, o problema da sua aplicabilidade só selevanta, e só se levantou historicamente, quando a lei interrnédia é maisfavorável que as duas outras leis penais em confronto: a lei do tempusdelicti e a lei do momento em que se forma o caso julgado.

Sendo mais favorável, aplicar-se-á. Ora, porque se aplica a uma con-duta praticada antes da sua entrada em vigor, é retroactiva; e porque éaplicada já depois de ter cessado a sua vigência geral, é ultra-actlva,

S 336. Hoje, é inquestionada, quer pela doutrina quer pela juris-prudência, a aplicabiUdade da lei penal íntermédía mais favorável.Costuma referir-se, e bem, que tal entendimento encontra a sua projec-ção legal na expressão «leis posteriores» do art. 2."_4.

§ 337. Uma vez que, como dissemos, é, hoje, unanimemente reco-nhecida a sua aplicabilidade, quando mais favorável, baste-nos mera-mente indicar as razões que fundamentam a sua aplicação. Recondu-zern-se elas aos já tratados princípios jurídico-político da segurançaindividual (§ 313) e político-criminal da máxima restrição da pena(§ 320), intervindo, ainda e de forma decisiva, o princípío da justiçarelativa ou igualdade de tratamento de casos idênticos.

Foi, precisamente, esta razão da igualdade de tratamento que levoua que o Relatório da Proposta de Lei da Nova Reforma Penal de 1884defendesse a aplicabilidade da lei penal intermédia, Diz o Relatório: «SeO réo fosse julgado antes de revoga da a segunda lei, ter-lhe-ia sidoapplicada pena menos grave e a demora no julgamento não deve sercausa de applicação de pena de maior gravidade, tanto mais que essademora pode provir, não de negligencia ou de fraude do criminoso, masda ·observancia das formalidades legaes, ou de facto ou de culpa impu-tável às autoridades e mais representantes legítimos da sociedade».

4. Determinação da lei penal mais favorável

§ 338. Verificando-seuma verdadeirasucessãode leis penais (cf. § 323),há que determinar qual das leis sucessivas é mais favorável ao infractor.

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186 Porre I - Quesrües Fundanieruais

Levantam-se, aqui, dois problemas: ponderação abstracta ou con-creta?; ponderação unitária ou diferenciada?

§ 339. Quanto à primeira questão, pode afirmar-se que, desde hámuito, a opção vai, razoavelmente, para a ponderação concreta: é rela-tivamente ao caso sub iudice que se deve determinar qual das leis maisfavorece o infractor.

Tal decisão pressupõe que o tribunal realize todo o processo dedeterminação da pena concreta (art. 71.°), segundo cada uma das, leis, anão ser, como é óbvio, que seja evidente, numa simples consideração abs-tracta, que uma das leis é claramente mais favorável que a outra. Assim,se a L.A. estabelecia urna pena de 8 a 16 anos de prisão, enquanto a L.N.se limitou a alterar esta pena para 5 a 12 anos de prisão, é; logo ab ini-tio, evidente que a L.N. é mais favorável.

Dificuldades já podem surgir, quando a pena estabelecida pela L.A.e a estatuída pela L.N. são heterogéneas (prisão - multa ou o inverso),e mesmo quando, embora homogéneas, urna tem o limite mínimo da penasuperior ao limite mínimo da pena prevista na outra lei, mas o limitemáximo inferior, ou o inverso: p. ex., a L.A. estabelece pena de 1 a 10anos de prisão, enquanto a L.N. estabelece a pena de 3 a 8 anos deprisão. Ora, nestas hipóteses, há que proceder à determinação concretada pena, pois, só depois desta operação judicial, se pode saber qual dasleis é mais favorável ao arguido, qual, portanto, é a lei que tem de seraplicada.

§ 340. Há, ainda, um outro aspecto que não deve ser descurado:a possibílidade, que deve ser concedida ao arguido, de, rios casos dedúvida sobre qual das penas concretas é a mais favorável ao arguido,ser este a dizer qual a pena que prefere lhe seja aplicada.

Permanecendo a decisão como decisão do tribunal, compreende-see é justo que, nos casos duvidosos, deva ser atendida a opção do maisinteressado na aplicação da lex mitior.

; Uma tal situação, que não será frequente, poderá ocorrer numahipótese em que uma das leis estabeleça pena de prisão até 1 ano, penaesta não substituível por pena de multa, e a outra lei estatua pena demulta até 100 dias. Suponhamos que, nesta hipótese, o tribunal deter-mina, segundo a primeira lei, a pena concreta de' 2 meses de prisão, e,

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mula II - A Lei Penal: criação e aplicação: 187

pela segunda lei, a pena de 30 dias-multa a 50 euros. Sucede, porém,que, embora para a quase totalidade das pessoas fosse preferível a penade multa, já o concreto arguido prefere ser condenado na pena de 2meses de prisão; e prefere-o pelo facto de, embora sendo proprietário deuma pequena casa térrea que habita, se encontrar desempregado.

Não se vê qualquer razão válida para, num tal caso, o tribunal nãoaceitar a opção do arguido. Assim, deveria ser aplicada a lei que esta-belece a pena de prisão e não a que prevê a pena' de multa. Dondeque o arguido deveria ser condenado em prisão por 2 meses, e não emmulta de 1.500 euros.

§ 341. Discutida é a questão de se a ponderação deve ser unitáriaou diferenciada. Esclareçamos, previamente, o que se entende por pon-deração unitária ou global e por ponderação diferenciada ou discriminada.A primeira significa que a lei deve ser aplicada na totalidade das suasdisposições sobre a pena principal, sobre as penas acessórias e sobreos pressupostos processuais; a ponderação diferenciada defende quedeve proceder-se ao confronto de cada uma das disposições das leis emcausa, devendo aplicar-se as disposições, contidas nas duas leis, quesejam mais favoráveis.

Embora a generalidade da doutrina e da jurisprudência tenha optadopela ponderação unitária ou global, entendo que a ponderação deveser diferenciada.

Para além do princípio político-criminal da intervenção mínima (cf.§ 321), a ponderação diferenciada baseia-se nas diferentes fundamenta-ções e teleologias das penas principais, das penas acessórias e dospressupostos processuais. Na verdade, a pena principal é determinadapelo legislador principalmente em função da gravidade do crime, enquantoa pena acessória esta relacionada especialmente com a personalidade eactividade do agente, em cujo exercício ele cometeu o crime (cf. § 129);já os pressupostos processuais (p. ex., a exigência de queixa), embora,muitas vezes, estejam relacionados com a menor gravidade do crime,outras há em que a sua exigência se fundamenta nos eventuais interes-ses da vítima em não se ver "exposta" num processo (público) penal, ounos interesses pragmáticos da funcionalidade do sistema judiciário penal,isto é, na redução do número de processos, a que, sociologicamente,conduz a exigência de queixa ou de acusação particular. O mesmo se

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188 Parte [ - Questões Fundamentais

diga sobre eventuais .causas extintivas do procedimento criminal, comoa prescrição.

Isto nos leva à conclusão, em nome do princípio da mínima restriçãopossível dos direitos e liberdades fundamentais e da autonomia teleoló-gico-rnaterial das disposições nonnativas sobre a pena principal, as penasacessórias e os pressupostos processuais, mesmo quando incluídas nomesmo texto legal, de que devem ser aplicadas as disposições maisfavoráveis ao arguido, mesmo que constem de leis diferentes.

Neste sentido, vai a posição, entre outros, de Jakobs, que vai aoponto de afirmar que a ponderação-aplicação unitária (isto é, a alter-natividade das leis) viola o princípio da vinculação à lei, sendo, portanto,exigível que o juiz proceda a uma avaliação particularizada, isto é, a umaponderação das diferentes componentes da responsabilidade penal: penaprincipal, penas acessórias e efeitos penais da condenação.

§ 342. Discordo, assim, do argumento formal do Supremo Tribu-nalde Justiça, que se reduz à inócua circunstância de o n." 4 do art. 2.°utilizar o termo «regime», em vez de «normas». Este argumento é inó-cuo, pois o legislador penal fala em «disposições penais», «normas» ou«regime» (art, 2.°_4) como sinónimos. E pode até dizer-se que, mesmosob o praticamente irrelevante aspecto formal, a palavra «regime», emvez de lei, poderá tomar-se até como sugerindo o contrário do sentidoque ° STJ lhe atribui, ou seja, sugeriria precisamente que se devia apli-car o regime (ou conjunto normativo) formado pelas disposições jurídico--penais mais favoráveis contidas nas diferentes leis sucessivas.

§ 343. Deste modo, se, p. ez., a LA estabelecia apena (principal)de 6 meses a 3 anos de prisão e a pena acessória de suspensão do exer-cicio de determinada profissão durante 1 ano, enquanto. a L.N. estatuisomente a pena (principal) de 1 a 5 anos de prisão, deveria o tribunalaplicar, quanto à pena principal, a L.A, mas já, quanto à pena acessó-ria, aplicar, retroactivamente, a L.N., ou seja, não aplicar a pena aces-sória prevista na L.A

Raciocínio análogo se deverá aplicar no caso de, p. ex., a L.Aestabelecer a pena de 1 a 4 anos de prisão e fazer depender o procedi-mento criminal de queixa, enquanto a L.N. estatui a pena até 3 anos deprisão e elimina a exigência de queixa. Aqui, relativamente aos cri-

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mes cometidos na vigência da L.A e cuja queixa ainda não tenha sidoapresentada, quando entrou em vigor a L.N., continuará a exigir-se aqueixa, mas, se esta vier a ser apresentada, o tribunal, em caso de con-denação, aplicará a L.N.

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:JI 5. O caso julgado e a aplicação retroactíva da lei penal maisfavorável

5.1. A história do caso julgado e da aplicação retroactiva da leipenal mais favorável

§ 344. Devemos começar por fazer uma breve referência à histó-ria do caso julgado penal como limite ou obstáculo à aplicação retro-activa da lei penal favorável.

O princípio do caso julgado penal, na sua dimensão negativa do nebis in idem, afirmou-se, constitucionalmente, a partir dos fins doséc. XVlIl, no contexto da consagração do Estado-de-Direito, como ins-trumento da garantia política do cidadão contra a arbitrariedade da per-seguição criminal.· A preocupação com esta garantia levou, nesta pri-meira fase, a uma então compreensível absolutízação do caso julgadopenal. Esta absolutízação levou à proibição da retroactividade da leipenal, mesmo que esta fosse descríminalizadora.

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§ 345. Numa segunda fase, correspondente ao crescendo, noséc, XIX, das correntes penais que. atribuíam à pena uma finalidadepreventivo-geral e especial (Correccionalismo e Escola Positiva), ini-cia-se o processo de relativização do caso julgado penal, a partir da con-sideração da verdadeira função de garantia deste instituto. A partirdesta reposição do caso julgado na sua ratio de garantia individual, pas-sou a discutir-se e a pôr-se em causa a referida absolutização: se a razãode ser do caso julgado penal é a de impedir decisões legislativas e judi-ciais desfavoráveis ao infractor, então não tem sido utilizar a figura docaso julgado, quando a lei nova, mesmo que posterior ao caso julgado,não agrava mas favorece o cidadão infractor.

§ 346. E, assim, logo em meados do séc, XIX, alguns códigos penaisextraíram todas as consequênclas lógicas e político-criminais desta rela-

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190 Parte [ - Questões Fundamentais

tivização do caso julgado penal, i. é, desta perspectivação desta figuracomo meio ou instrumento ao serviço da protecção do cidadão infractor,e não como um valor absoluto que valesse por si mesmo. Esteve neste caso,p. ex., o código penal espanhol de 1870, que logo consagrou a retroacti-vidade da lex tnitior (lei que estabelece uma pena mais leve), mesmo quejá tivesse ocorrido o trânsito em julgado da sentença condeitatória, não res-tringindo tal retroactividade ao caso de a lei nova ser descriminalizadora.Esta plena retroactividade da lei penal favorável (portanto; quer seja des-crirninalizadora, ou mesmo que reduza tão só a pena) manteve-se, inin-terruptamente, no direito penal espanhol até ao actual CP de 1995.

Acrescente-se que também o direito penal brasileiro consagrou,pelo menos desde o CP de 1940, art. 2.°, § único - Código que semantém ainda em vigor, embora a sua Parte Geral tivesse sido revistae actualizada em 1984 -, a retroactividade da lex mitior, mesmo que jáhaja caso julgado. Lê-se; no referido § único: «A lei posterior que,de qualquer modo, favorecer o agente, aplica-se aos factos anteriores,ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado».Retroactividade plena esta da lei penal, quando favorável, que, aliás,tem consagração expressa e clara na Constituição Brasileira de 1988,art. 5.°, XL: «A lei penal não retroagirá, 'salvo para beneficiar o réu».

§ 347. É certo que a generalidade dos países, desde meados dosêc. XIX, não extraíram todas as consequências jurídico-constitucionais epolítico-criminais do princípio da máxima restrição possível da pena eda função preventiva desta. Entre eles, esteve o Código Penal portuguêsque, desde 1852, manteve o caso julgado como obstáculoâ retroactívidadeda lex mitior, só o afastando, no caso de lei nova descriminalizadora,

§ 348. Mas registemos que esta manutenção sempre teve a oposi-ção, baseada em sólidos argumentos, de muitos e destacados culto-.res da ciência jurídico-penal. Entre estes autores, contam-se Jordão,Luciano de Castro, Henriques da Silva, Beleza dos Santos, .Cavaleiro de'Ferreira, e, na actualidade, eram claramente maioritários os autores quedefendiam a eliminação, por inconstitucional, do limite do caso julgadoprevisto no CP, art. 2.o-4-parte final, antes da Revisão Penal de 2007.

Levy Maria Jordão,em 1861, no Relatório da Comissão para aelaboração do Projecto do Código Penal Portuguez, propôs a seguinte

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redacção para o art. 1."-2.': «Se na lei nova o facto incriminado forpunido com pena mais leve, será esta applicada. Havendo já condena-ção em qualquer dos casos [o outro caso vinha no art. V-l." excepçãoe referia a lei descriminalizadora], uma declaração do tribunal, que tiverproferido a ultima sentença, fará a applicação da lei nova» .

Luciano de Castro, na Comissão para elaboração da Proposta daReforma Penal de 1884, propôs que se incluísse, 110 ali. 1.0 (que veio aser o art. 6.° do CP de 1886), o seguinte: «Tendo havido condernnaçãopassada em julgado, será applicável a pena mais leve em relação à suaespécie ou duração estabelecida na lei posterior para a infracção definidana sentença». E fundamentou esta sua posição 110 princípio da justiça,argumentando, segundo o relato de Henriques da Silva, que «seria de .facto uma flagrante desigualdade se, por uma simples demora no processodois crimes idênticos, praticados na mesma ocasião, tivessem de sercastigados com penas diferentes».

Henriques da Silva, também lucidamente, nas suas Lições de Socio-logia Criminal e Direito Penal de 1904-05, afirmava que a aplicaçãoretroactiva da lex mitior, «longe de atacar o caso julgado, confirmava-o pois reconhecia a sua existência na questão-de-facton; e, dirigindo-seà excepção do art. 6.° do CP de 1886 (que se manteve no nosso actualCP de 1982 até à Revisão de 2007, art. 2.0-4-parte. final), vitupera-anestes termos: «a excepção do artigo 6.Q creou no nosso systema pena!um dualismo repugnante, diz a circular de 19 de Junho de 1886, quandonão à justiça absoluta, sem a mínima dúvida à justiça relativa e -à equi-dade». Precisamente para atenuar tão flagrantes injustiças, o decretode 4 de Junho de 1886, «aproveitando a ocasião para solenizar o casa-mento do então príncipe real D. Carlos, foram comutadas várias penas».

Beleza dos Santos, criticando e estigmatizando a absolutização docaso julgado como «fetichísmo», escreveu, em 1932, que, «Quandoexiste uma sentença que encontra na sua execução uma lei por força daqual tem de ser modificada, o que há a fazer é reformá-la, levantandoo incidente na respectiva execução. A intangibllidade do caso julgadotem de ceder, quando a aplicação da lei a isso obriga». ,

Também Cavaleiro de Ferreira, nas suas Lições de Direito PenalPortugués de 1981, p. 119; escreveu: «se a desigualdade é irremediávelem certos casos ou quando a pena já foi completamente executada, é pre-ferível que se atenuem os rigores das penas na medida do possível a que

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[92 Parte J - Questões Fundamentais

se renuncie a obter esse resultado com a aplicação da lei nova só pararespeitar uma igualdade ilusória».

5.2. A situação anterior a 15 de Setembro de 2007, data daentrada em vigor da actual 2.' parte do n." 4 do art. 2.°do CP e do art. 371.°-A do CPP

§ 349. Vejamos, resumidamente, os princípios constitucionais quedeterminavam a conclusão de que o limite do caso julgado à aplicaçãoretroactiva da lei penal mais favorável (lex mítior), estabelecido na parte finaldo n." 4 do art. 2.° do Código Penal [«[ ... ]salvo se estejá tiver sido con-denado por sentença transitada em julgado»], era inconstitucional.

Este limite violava o princípio constitucional da igualdade perantea lei (CRP, art. 13.°-1-2." parte), sendo fonte de injustiças materiais rela-tivas e de desigualdades evitáveis na aplicação da lei penal mais favorável.

Era, ainda e por outro lado, inconstitucional na medida em que,sem quaisquer válidas razões jurídico-penais materiais, restringe oâmbito de uma norma constitucional protectora dos direitos fun-damentais, maxime da liberdade (CRP, art. 29.°-4-2" parte), norma estaque é a projecção directa e coerente, na questão da sucessão de leispenais, de um outro princípio constitucional fundamental de que «asrestrições dos direitos, liberdades e garantias» devem «limitar-se aonecessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucio-nalmente protegidos» (CRP, ali. 18.°-2-2: palie) ..

Ora, impor um obstáculo à aplicação retroactiva de' uma lei queconsidera como necessária e suficiente, para a tutela dos bens jurídico--penais, uma pena mais leve significa restringir, desnecessariamente,um direito fundamental.

Logo, era irrefutável- a afirmação da inconstitucionalidade deste

limite do caso julgado.

§ 350. Por último, façamos uma breve (22) referência à posição que,até há alguns anos atrás, era. defendida pelo Supremo Tribunal de Justiça.

(22) Breve, pois que, na minha monografia Sucessão de Leis Penais, 3: ed., 2008,pp. 275.344. trato, desenvolvidamente. esta matéria.

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Titulo II - A Lei Penal; criação e aplicação 193

Este STJ invocou (p. ex., no Acórdão de 10 de Julho 1984), fun-damentalmente, três argumentos em favor da não inconstitucionali-dade do obstáculo do caso julgado penal à aplicação retroactiva da lamitior, obstáculo constante do CP, art. 2.0-4-parte [mal. Foram eles:a intangibilidade do caso julgado penal constitui um princípio cons-titucional.iconsagrado no n." 5 do art. 29.0 da Constituição, que proíbeo duplo julgamento, ou seja, que consagra o tradicional princípio done bis in idem; a necessidade social de segurança, estabilidade e cer-teza das decisões, mesmo que penais, transitadas em julgado, sobpena «da insegurança, da inquietação, da anarquia»; a inevitabilidadede situações de desigualdade de tratamento, apesar de os casos seremidênticos, dizendo que «a desigualdade é mesmo irremediável em cer-tos casos».

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§ 351. Tendo sido breve a referência à argumentação do STJ emfavor do limite do caso julgado, também será breve a crítica à incon-sistência jurídico-penal e jurídico-constitucional destes argumentosdo STJ .;j~.F:.~"..

~~t~11:. § 352. Quanto ao argumento da intangibiUdade do caso jul-

gado, intangibilidade que teria dignidade constitucional, uma vez que aCRP, art. 29.°-5, consagra o princípio ne bis in idem, i. é, a proibiçãode duplo julgamento pela prática do mesmo crime, há que dizer (paraalém do que já, acertadamente, disseram os vários autores referidos no§ 348) que a proibição constitucional do duplo julgamento (o chamadoprincipio ne bis in idem) constitui, como sempre, desde a consagração

. do Estado-de-Direito, urna garantia individual contra uma (eventual e arbi-trária) dupla punição pelo mesmo crime. Assim, nunca pode funcionarcontra o cidadão infractor, mas sim a seu favor. Logo, esta pretendida,pelo STJ, absolutização do caso julgado penal era, constitucionalmente,inaceitável. A proibição de duplo julgamento significa proibição dedupla punição e, portanto, em nada afecta a exigência político-crimi-nal, constitucionalmente assumida (CRP, art, 18.°-2 e art. 29.o-4-2.a parte),da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, mesmo que já hajacaso julgado.

Aliás, hoje, nem sequer no direito de ordenação social (onde, aelevação do caso julgado, pelo menos em relação às coimas, à catego-

I)·Dir. Penal

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194 Parte f - Questões Fundamentais

ria de obstáculo à aplicação retroactiva não seria inconstitucioual) O

caso julgado é obstáculo à retroactividade da. lei mais favorável (Dec.--Lei 11.° 433/82, art. 3."-2-parte final).

§ 353. Tomemos, agora, o argumento da segurança, estabili-dade social e certeza jurídica. .

Sobre este pretenso argumento, façamos apenas duas observa-ções: não tem o menor sentido falar de «insegurança, anarquia einquietação» a propósito da reforma de uma sentença, posto que tran-sitada em julgado, quando o que está em causa é somente a ré-deter-minação da pena concreta por força da entrada em vigor -de uma leipenal mais favorável; o STJ, no Acórdão em recensão, incorria numarecusável e acrítica perspectiva pancivillstica do caso julgado, esque-cendo que há entre o caso julgado penal e o caso julgado civil umaautonomia e distinção material, distinção que resulta da especifici-dade dos pressupostos, da natureza e dos fins das "sanções" civis e dassanções penais.

§ 354. Relativamente ao argumento de que casos de desigualdadede tratamento sempre os haverá, basta retorquir, dizendo que esteAcórdão servia-se da impossibilidade de uma realização absoluta dajustiça relativa para concluir pela irrelevâncía da justiça relativa pos-sível. Ou seja: é um raciocínio, humana e juridicamente, absurdoafirmar a irrelevância da efectivação da justiça relativa ou igualdadede tratamento, nos casos em que tal é possível, com fundamento 'naimpossibilidade de uma realização da justiça em todos os casos. Poisé evidente que o princípio constitucional da justiça relativa ou daigualdade de tratamento pressupõe e, portanto, só é violado, quandoas. situações de injustiça podem ser evitadas. Em relação ao que é ine-vitável (no nosso caso, porque a sentença penal condenatória já foiinteiramente cumprida), não há qualquer injustiça relativa ou tratamentodesigual.

Ressalvado todo o respeito que o STJ merece, era caso para dizerque esta afirmação do acórdão tem tão pouco sentido como aquele capi-talista que raciocinasse assim: uma vez que Jesus Cristo disse que«pobres sempre os tereis ~:ntre vós», então porquê preocupar-nos emdiminuir o número deles? I

I·Título Jf - A Lei Penal: criação e aplicação 195

5.3. A situação a partir de 15 de Setembro de 2007, data daentrada em vigor da actual 2." parte do n." 4 do art, 2.°do CP e do art, 371.°-A do CP)?: aplicação retroactiva dalei penal mais favorável, mesmo que já tenha transitado emjulgado a sentença condenatóría

§ 354-A. Até 15 de Setembro de 2007, o Código Penal, art. 2.°-4,estabelecia o seguinte: «Quando as disposições penais vigentes no momentoda prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis pos-teriores, é sempre aplicável o regime que concretamente se mostrar mais favo-rável ao agente, salvo se este já tiver sido condenado por sentença transi-tada emjulgado». ALei n. o 59/2007 substituiu esta parte final (que pusemosem itálico) pela redacção seguinte: «se tiver havido condenação, ainda quetransitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logoque a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximoda pena prevista na lei posterior». Como parece evidente, esta alteração,conquanto pusesse em causa o (inconstitucional) obstáculo do caso julgado,só evitava o absurdo dos absurdos político-criminais, que levava a quealguém tivesse de permanecer na prisão, apesar de já ter sido ultrapassadoo tempo máximo de prisão que o legislador, através da nova lei, conside-rava como político-criminalmente aceitável. Isto é; esta alteração da partefinal do n. o 4 do art. 2. o não eliminava a inconstitucionalidade do obstáculodo caso julgado à redeterminação da pena principal (nomeadamente, apena de prisão) com base na lei nova mais favorável.

§ 354-B. Foi a Lei n:o 48/2007 que, efectivamente, eliminou oinconstitucional obstáculo do caso julgado à aplicação retroactiva da leipenal maisfavorável. Na verdade, esta lei acrescentou, no Código de Pro-cesso Penal, o art, 371."-4-, artigo que consagra a plena retroactividadeda lei penal mais favorável, ao estabelecer: «Se, após a trânsito em jul-gado da condenação mas antes de ter cessado a execução da pena, entrarem vigor lei penal mais favorável, ·0 condenado pode requerer a reaber-{um da audiência para que lhe seja aplicado o novo regime» (23). Con-

(2) Para uma apreciação crítica de alguns aspectos desta alteração (como, p. ex.,a exigência de requerimento do condenado), ver TAIPA DE CARVALHO, Sucessão de LeisPenais, 3 .• ed., 2008, pp. 326-3~9.

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196 Parte I - Questões Fundamentais

clusão: a partir de 15 de Setembro de 2007, o caso julgado de sentençacondenatoria deixou de impedir a aplicação retroactiva da lei penal maisfavorável. .

6. Alteração dos elementos do tipo legal stricto sensu

§ 355. A situação em análise é aquela em que a L.N. altera a estru-nua do tipo legal de crime, acrescentando, retirando ou substituindo algum(ns)elemento(s) que constava(m) da L.A, i. é, da lei em vigor no tempus delicti.

Este fenómeno da alteração típica do crime é frequente, especial-mente quando o legislador procede a revisões globais do Código Penal.

A questão, que é, em muitos casos, complexa, reconduz-se a saberse determinado facto, praticado na vigência da L.A, foi descriminalizadopela L.N. ou se continua a ser considerado crime por esta lei. Na prí-meira hipótese, aplicar-se-à o art. 2.°_2; na segunda hipótese, aplicar-se-àoart. 2.°-4, no caso de também ter sido modificada a pena, rectius, ostermos da responsabilidade penal (p. ex., os pressupostos processuais).

§ 356. A complexidade da questão faz com que, naturalmente,haja divergências, na doutrina e na jurisprudência, sobre a teoria ou cri-tério mais adequado à resolução da diversidade das situações que se colo-cam: casos de adição de novos elementos, casos de eliminação de ele-mentos constantes da lei anterior, e casos de troca de elementos típicos,

Alguns exemplos:

A L.N suprime o elemento típico «que constituam perigo paraa saúde», que constava da L.A., lei esta que descrevia, assim, otipo legal: «A venda de bens impróprios para consumo, queconstituam perigo para a saúde» é punida (.:.). Tendo A pra-'ticado o facto previsto na L.A. e na vigência desta, pergunta-sese o facto de A continua a ser punível após a entrada em vigorda L.N., isto é, se, relativamente ao facto praticado, há umaverdadeira sucessão de leis penais, caso em que, se tiver havidoalteração da pena, se aplicará a lex mitior (art. 2.°-4).A L.A. considerava como elemento do crime de roubo qualifi-cado a circunstância de o roubo ser praticado <ma via pública»,

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Titulo fI - A Lei Penal: criação e aplicação 197

enquanto que a L.N. substitui este. elemento pelo elemento «estararmado». Tendo B praticado, na' vigência da L.A., um roubo (<I1a

via pública» e estando «armado», e vindo a ser j.ulgado navigência da L.N., pergunta-se se deverá ser condenado por rouboqualificado ou apenas por roubo simples?A L.A. previa e punia a interrupção voluntária da gravidez,enquanto a L.H. exclui a punibilidade do aborto, desde que este,para além do respeito das exigências quanto à idade máxima dofeto (exigências que são iguais às da L.A), seja realizado emhospital público. Tendo C provocado o aborto num hospital pri-vado, durante a vigência da L.A., pergunta-se se, após a entradaem vigor da LN., a conduta de C continua punível (caso em quese aplicará o art. 2."_4) ou se, pelo contrário, deve considerar-se, retroactivamente, despenalizada (caso em que se aplicará oart. 2.°_2).

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§ 357. Nos três exemplos apresentados, temos que,. no momento emque as condutas foram praticas, a respectiva lei os considerava como cri-mes. Mas, 110 momento do julgamento, ou mesmo já durante a execu-ção da pena, uma L.N. alterou a constituição do respectivo tipo legal decrime. A questão é, portanto, a de saber se a nova lei determinou a des-penalização (descriminalização) do facto praticado na vigência da L.A.(aplicando-se o art. 2."-2) ou se, apesar da alteração dos elementos dotipo legal, o facto continua a ser considerado crime (caso em que seaplicará o art. 2.°-4, se também tiver havido alteração da pena).

§ 358. O critério defendido pela doutrina e jurisprudência tradi-cionais - e, ainda, assumido por muitos - era o critério linear, que foidesignado por teoria do facto concreto; e que foi traduzido pelo bro-cardo latino: prius punibile, posterius punlbile, ergo punible.

Segundo esta teoria, o facto praticado na vigência da L.A continuavapunível pela L.N., desde que tal facto fosse formalmente subsumível aambas as leis. Isto é, se o facto, no momento em que foi praticado, eracrime, e, se fosse praticado na vigência dá L.N., também seria consi-derado crime, então tal facto devia continuar a ser tratado como crime,independentemente das alterações dos elementos do respectivo tipo legal.Estar-se-ia, portanto, diante de uma verdadeira sucessão de leis penais,

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198 Parte I - QlleS((Íes FU/ldam,ntais

relativamente ao facto concreto em causa, havendo somente que ponderaras respectivas penas, no caso de terem sido também alteradas, para seaplicar a mais favorável (art, 2.Q·A). .

Pensamos que este critério da chamada teoria do facto concreto éde recusar. E, de facto, tem vindo a ser recusado.

§ 359. Com efeito, contra ele procedem várias objecções.Permite que sejam, retroactivamente, valoradas como tipicamente

ag7'avQlltescircunstâncias que, na L.A., só podiam ser consideradas comoagravantes gerais. Assim, no exemplo do roubo qualificado, o agente con-tinuaria a ser punível por este crime, apesar de a L.N. ter substituído a cir-cunstância <ma via pública» pela circunstância «estar armado». Pois que,sendo o facto concreto, praticado por B, considerado crime, tanto pelaL.A (pois O roubo foi praticado na «via pública») como pela L.N. (poiso agente «estava armado»), então, segundo a teoria do facto concreto, oroubo praticado devia ser punido como roubo qualificado.

Ora, tal conclusão não pode aceitar-se, na medida em que viola oprincípio da irretroactividade da lei penal desfavorável, e viola-o, poisque tal conclusão implica o estar a qualificar, retroactivamente, o roubo,com base num elemento que, no momento em que o crime foi cometido,não era considerado como qualificativo do roubo e, portanto, não deter-minava a aplicação de uma pena legal mais grave dó q"ue a estabeleci dapara o crime de roubo.

Dir-se-á: mas ele é punido por roubo qualificado porque este foi pra-ticado «na via pública». Mas há que obtemperar, dizendo que tal sig-nificaria continuar a atribuir à circunstância «na via pública» o valor deelemento agravante da pena legal, valor que a L.N. lhe retirou.

Em conclusão: relativamente à circunstância «na via pública», aL.N. é desqualificadora e, portanto, é mais favorável, pelo que se aplicaretroactivamente; relativamente à circunstância «estar armado», a L.N ..é qualificadora e, portanto, desfavorável, pelo que só vale para os rou-bos praticados depois ela sua entrada em vigor.

Logo, o agente B só pode ser punido por roubo e não por roubo qua-lificado.

§ 360. Uma segunda objecção contra a teoria do jacto concreto éa de que ela menospreza a função de orientação e de previsibilidade que

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Tltulo lf - A Lei Penal; criação e aplicação 199

cabe à lei penal, função que tem como corolários, nomeadamente, aproibição da retroactividade penal desfavorável e a determinabilidadeda conduta (proibida ou imposta) sancionada penalmente. Esqueceresta função implicaria, em certos casos, a manutenção de uma punibi-lidade que afrontaria as mais elementares exigências de justiça e depolítica criminais.

Assim, no exemplo do aborto, C continuaria, .segundo a teoria dofacto concreto, a ser punida, uma vez que ela abortou numa clínica pri-vada e, segundo a L.N., a interrupção da gravidez fora de hospitalpúblico continua a ser punida como crime de aborto. Mas umatal solução seria injusta, pois que, se, no momento do aborto, jáestivesse em vigor a L.N., provavelmente que optaria pelo hospitalpúblico.

Diga-se que não parece haver qualquer fundamento razoável paravalorar, retroactivamente, como típica (como fundamentadora da res-ponsabilidade penal) uma circunstância (o provocar o aborto fora dohospital público) não descrita no tipo legal da L.A, quando, precisamente,a condição (circunstância) excludente da punibilidade - e mesmo da suatipicidade - não podia ter sido cumprida, pois não só a L.A. não lheatribuía essa eficácia excludente da punibilidade como até mesmo tal(a prática do aborto no hospital público) era proibido, tanto disciplinarcomo penalmente, aos serviços hospitalares.

A conclusão parece não poder deixar de ser a seguinte: ° sentidopolitico-criminal (prevenção geral e especial) da pena, o princípio damáxima restrição da pena e a função de orientação das condutas que àlei penal cabe - orientação que a L.N. contém mas que, evidente-mente, C não pôde ter em: conta -, conduzem a que a L.N. deva ser con-siderada, relativamente à conduta de C, como lei despenalizadora e,portanto, seja aplicada retroactivamente.

§ 361. O critério mais defensável, nesta matéria em que a L.N .altera os elementos do tipo legal de crime, parece ser o critério dacontinuidade normativo-típica.

De acordo com este critério, há unanimidade, entre os autores queo defendem, sobre a hipótese em que a L.N. alarga a punibilidade porsupressão de elementos especializadores constantes da L.A, e sobre ahipótese em que a L.N. troca elementos do tipo legal.

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200, Parte J - Questões Fundamentais

No caso de supressão de elementos típicos da L.A., há acordo emque o facto praticado na vigência da L.A (lex specialis em relação àL.N.) e a esta subsumível (i. é, por esta punível) continua a ser punível,depois da entrada em vigor da L.N. Esta é a solução aplicável ao pri-meiro exemplo acima (§ 356) apresentado. Se forem diferentes as penasda L.A e da L.N., há que aplicar a mais favorável.

No caso da troca de elementos típicos (fundamentadores ou medi-ficativos), há concordância em que não existe uma relação (entre a L.Ae a L,H) de continuidade normatívo-típica, e, assim, o facto praticado,na vigência da L.A e a esta subsumível, fica despenalizado (estando emcausa "tipos de crime fundamentais") ou é desqualificado penalmente,passando a ser punido pelo crime fundamental (tratado-se de crimesqualificados), ou continua a ser punido como crime privilegiado (nocaso de permuta de circunstâncias privilegiantes).

. § 362. As divergências, no seio dos defensores da teoria da COD-

tinuidade normativo-tipica, surgem relativamente à hipótese de redu-ção da puníbílldade por adição de novos elementos típicos.

Segundo uns autores (Jakobs, Padovani), o facto praticado navigência da L.A. (que é menos exigente que a lei nova, pois estaexige mais elementos para que o facto seja crime), mantém-se puní-vel, desde que revista as características exigidas pela L.N., havendosomente que ver qual a pena mais leve (se a da L.A ou da L.N.), queserá a aplicada,

Segundo outros autores (Schroeder, Rudolphi), a entrada em vigorda L.N. determina a despenalização da conduta praticada, na vigência daL.A., mesmo que esta conduta revista as características que a L.N. pas-sou a exigir para haver crime,

§ 363. Em minha opinião, acho que está mais conforme com osprincípios político-criminais, que regem esta matéria da sucessão de leispenais, a segunda posição. Assim, entendo que, quando L.N. vem acres-centar novas exigências (novos elementos), aumentando, portanto, acompreensão típica e diminuindo a extensão da punibilidade, a suaentrada em vigor determina a despenalização das condutas praticadas navigência da L.A, mesmo que tais condutas preencham os pressupostosque passaram a constar da L.N, Com efeito, aceitar a continuidade da

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Título II - A Lei Penal: criação e aplicação 201

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punibilidade era estar a valorar, retroactivamente, como típica uma cir-cunstância que, na altura em que o facto foi praticado, não era.

Ora, sempre que manutenção da punibilidade da conduta pressuponhaa retroactividade da valoração como típica de uma circunstância que onão era, tal manutenção tem de recusar-se, pois que violar-se-ia a proi-bição da retroactividade desfavorável. ,

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§ 364. Mas pode haver casos em .que a aplicação da L.N. (desdeque, obviamente, a pena seja mais leve) - apesar de esta restringir apunibilidade - não implica uma valoração retroactiva típica. E, nestescasos, afirmar-se-à a manutenção da punibilidade da conduta prati-cada na vigência da LA. .

Assim, se a L.N. viesse estabelecer que só era crime o furto decoisa de valor superior a 10 euros, manter-se-ia punlvel o furtode 12 euros, cometido na vigência da L.A. (que punia o furto de coisade qualquer valor), apesar de a L.N. restringir o âmbito da punibilidadedo furto. Portanto e em conclusão, a tese, que afirma que, quando a L.N.restringe o âmbito da punibilidade, as condutas anteriores ficam despe-nalízadas, tem apenas valor tendencial,

7. Alteração das causas de justificação

'1"L§ 365. O tipo-de-ilícito é constituído pelo tipo legal em sentido

estrito (24) - de que acabámos de falar - e pela (inexistência de urna)causa de justificação. Significa que a punibilídade depende, desdelogo, também das causas de justificação ou causas de exclusão dailicitude. Assim, as razões juridico-pcliticas de certeza e garantia do cida-dão, frente às possíveis alterações legais também não podem deixar dese repercutir na sucessão de leis (penais ou não penais) que se refiramàs causas de justificação.

Acrescente-se que o mesmo vale para as alterações jurispruden-ciaís, que tenham força vinculativa das futuras decisões dos tribunais, o que

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(24) Sobre o tratamento - nesta perspectiva da sucessão de leis penais - das con-dições objectivas de punibilidade, ver a minha monografia Sucessão de Leis Penais,3." ed., 2008, pp. 234-241.

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202 Pane I - Qllestões fUlldamentais".;.--------~.,~)~~.

se verifica quando c?nstam5I,,~ M(',(aCÓrdãode fixação de jur~spll.ldência"(CPP, art. 437.° 5S.). E que, a~r de a Revisão do CPP de 1998 ter, comose impunha, retirado vinculatfy:ldade absoluta a estes acórdãos (que, atéentão, mantiveram a natureza dos anteriores e inconstitucionais Assentos),eles: não deixam de ser relativamente obrigatórios nas decisões futuras.

Ora, na medida em que as alterações das causas de justificação setraduzem em alterações da punibilidade dos factos descritos nos tiposlegais de crime, necessariamente que tais alterações têm de ser regidas,quanto à sua eficácia temporal, pelo princípio da aplicação da lei maisfavorável: proibição da retroactividade da alteração desfavorável e apli-cação retroactiva da alteração favorável.

§ 366. As causas de justificação operam, como é sabido, numasituação de conflito de interesses, cabendo precisamente à norma deautorização, i. e, de justificação dizer qual é o interesse juridicamente pre-ponderante. E é precisamente, ao dizer qual o interesse juridicamente assu-mido como mais valioso, que a respectiva norma desempenha uma fun-ção de orientação da conduta na concreta situação de conflito.

§ 367. A criação ou alargamento do âmbito de uma causa dejustificação implica, simultaneamente, um efeito (imediato) "descrimi-.nalizador" de uma conduta que, antes, não só era formalmente típicacomo ainda materialmente ilícita, mas também (em muitas situações)um' efeito (mediato) de "crirninalização" de uma conduta que, antes,embora formalmente típica, não era materialmente ilícita, isto é, nãoconstituía um ilícito penal.

Inversamente, a eliminação ou redução do âmbito de uma causade justificação implica, simultaneamente, um efeito (imediato) "crimi-nalizador" de uma conduta que, antes, apesar de formalmente típica,era justificada, e também (em muitas situações) um efeito (mediato) de"descrirninalização" de uma conduta que, antes, era considerada ilícitopenal e, agora, passou a ser considerada justificada,

§ 368. Do exposto resultam as seguintes conclusões:

A L.N., criadora ou arnpliadora de urna causa de justificação,aplica-se, retroactivamente, ao agente cuja conduta concreta-

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Título II - A Lei Penal: criação e aplicação203

mente típica, apesar de considerada ilícita pela lei do tentpusdelicti (LA.), passou a ser considerada justificada (foi, por-tanto, "descriminalizada" e, assim, deixou de ser punível); maso (eventual) efeito mediato "criminalizador" da conduta ("con-trá-acção"} típica, que pela L.A. estava justificada mas pela L.N.passa a ser considerada ilícita, só pode afirmar-se em relação àscondutas praticadas a partir da entrada em vigor da L.N.

- A L.N. eliminadora ou redutora do âmbito de uma causa dejustificação não se aplica às condutas anteriormente praticadas,que, apesar de típicas, estavam justifícadas pela L.A. (proibiçãode retroactívidade desfavorável), continuando estas a ser tidascomo justificadas; mas já se aplica, rett:oactivamente, às condutastípicas que, sendo pela L.A. consideradas ilícitas, passaram coma posterior L.N. a ser consideradas justificadas (imposição daretroactividade favorável).

8. Medidas de segurança

§ 369. A nossa Constituição de 1976 e, na sequência desta, o CPde 1982 estabeleceram que, tal como as penas, também as medidas desegurança estão sujeitas aos princípios da legalidade e da jurisdi-clonalídads,

Não só' os pressupostos da declaração judicial da perigosidade cri-minal (os factos criminalmente ilícitos) como. também as correspon-dentes medidas de segurança têm de.ser posteriores ao início de vigên-cia da lei (CRP, art. 29.Q-1 e 4; CP, arts, 1."-2 e 2."_1). Eis a proibiçãoda retroactividade desfavorável, Já, se a lei, que entre em vigor poste-riormente à prática dos factos-pressuposto da aplicação da medida desegurança ou mesmo à decisão judicial de aplicação da medida de segu-rança, descriminalizar tais factos ou estabelecer urna medida de segurançamais favorável (quer reduzindo a duração do internamente, quer subs-tituindo por uma medida de segurança menos gravosa), aplicar-se-àretroactivamente. Pois que, embora a CRP, art, 29.°-4, e o CP, art. 2.0_2e 4, não mencionem, expressamente, as medidas de segurança, pareceevidente que tais disposições legais abrangem as medidas de segurançae os seus pressupostos. Com efeito, tendo as medidas de segurançauma exclusiva função de defesa social e de tratamento do delinquente

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204 Parte I - Quesrões Fundamentais

(no caso das verdadeiras medidas de segurança, que são as aplicáveis ainimputáveis - cf. § 127 58.), necessariamente que, se a L.N. é maisfavorável, ter-se-à de aplicar retroactivamente.

§ 370. A razão da proibição da retroactividade desfavorável dasmedidas de segurança aplicáveis a inimputáveis é exclusivamente jurí-dico-política. É que, o facto destas medidas de segurança não terem umafundamentação ética, nada retira à sua gravidade e ao perigo da suautilização abusiva ou mesmo persecutória. Daqui resultou a consciên-cia jurídico-política, ligada ao aprofundamento do Estado-de-Direito, danecessidade da sujeição das medidas de segurança ao mesmo regimedas penas.

§ 371. Embora discordando da aplicação a imputáveis de medidasde segurança nâo privativas da liberdade (cf. § 127 ss.), é evidente quetambém a estas se aplica o princípio da lei mais favorável.

VI. Leis temporárias

§ 372. O n," 3 do art, 2.° do CP estabelece que, «Quando a lei valerpara um determinado período de tempo, continua a ser punível o factopraticado durante esse período».

.É um facto que, prima fade, as leis penais 'temporárias colocam pro-blemas de compatibilização com o princípio constitucional e político-cri-minal da retroactividade da lei mais favorável. Necessário se torna,portanto, proceder com o máximo de ordem e rigor possível.

§ 373. Comecemos pela definição material de lei 'penal temporá-ria: é a lei penal que, visando prevenir a prática de determinadas con-dutas numa situação de emergência ou de anormalidade social, se des-tina a vigorar apenas durante essa situação, pré-determinando ela própriaa data da cessação da sua vigência.

A especialidade do regime da lei temporária reside no facto da suaaplicabilidade a todas as condutas nela previstas e praticadas durante asua vigência, independentemente de, no momento do julgamento, a leitemporária já não estar em vigor.

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Exemplo: lei que, dados os riscos de uma epidemia de "pneumoniaatípica", criminaliza, durante o período de seis meses, o aparecimento,em lugares públicos, de pessoas afectadas pela síndrome respiratóriaaguda, às quais tenha sido imposto pelas autoridades sanitárias compe-tentes, um determinado tempo de isolamento.

§ 374. Do exposto resulta que são dois os pressupostos da legi-timidade constitucional e polítíco-crimínal do regime especial das leis tem-porárias: um pressuposto material e outro formal.

O pressuposto material é a situação de emergência ou de anor-malidade, situação esta que é a condição necessária da legitimidadematerial político-criminal da lei temporária. Sem a verificação destepressuposto, a lei temporária estaria ferida de inconstitucionalidade, poisviolaria o princípio da retroactividade favorável, ao manter uma ultra-acti-vidade desfavorável.

Significa isto que não depende do arbítrio do legislador a cria-ção de leis temporárias.

Mas é, ainda, exigido um pressuposto formal: é necessário que,em nome da certeza jurídica e da segurança dos cidadãos, a próprialei - que visa impedir a prática de actos que, na excepcional situa-ção de emergência, adquirem uma gravidade potenciada para deter-minados bens jurídicos - estabeleça, formalmente, o seu termo devigência.

E se, atingida a data que a lei temporária tinha estabelecido comolimite da sua vigência, ainda perdurar a situação de anormalidade, oque O legislador deverá fazer é aprovar uma nova lei que fixe novadata para a cessação da vigência da lei temporária.

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§ 375. Nem sempre será possível calendarizar o termo de vigên-cia de uma lei penal temporária. Mas sempre o seu teimo de vigênciatem de ser formal e inequívoco. Tal impossibilidade de fixar um deter-minado dia para a cessação de vigência dá lei temporária nem sempreserá possível, nomeadamente no caso das leis penais em branco(cf. § 193 ss.)

Exemplo: devido a obras em determinado troço da via pública, écolocada uma placa indicadora da proibição de velocidade acima de30 km/h. Neste caso, a norma integradora da lei penal em branco

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206 Porte I - Q,uSlões Fundamentais

(p. ex., CP, art. 2910-1-b) é uma norma temporária cujo termo devigência, embora não podendo, porventura, ser determinado à partida,coincidirá com a retirada ela placa sinalizadora.

§ 376. Contra o que alguns autores ainda afirmam, há que repe-tir que o regime especial da lei temporária não pode considerar-seuma excepção ao princípio da retroactividade da lei despenalizadora,Na verdade, se de verdadeira excepção se tratasse, tal seria, ncorde-namento jurídico português, inconstitucional, por violação da CRP,art. 29.0-4-2." parte.

Efectivamente, excepção só haveria se a ratio político-criminal daretroactividade despenalizadora se afirmasse também DO caso da cadu-cidade das leis temporárias. Mas, precisamente, no caso das leis tem-porárias, tal ratio - que se traduz na alteração da valoração da ilicitudedo facto, que, segundo o legislador, deixou de ter dignidade penal(cf. § 67) - não se verifica. Pois que: os factos praticados, na situa-ção de emergência ou de anormalidade social de terminante da lei tem-porária, continuam a ser valorados, pclítico-criminalmente, como mere-cedoras e carecidos de punição penal; sucede apenas que a alteraçãoda situação no sentido da sua normalização retirou àqueles factos abs-tractamente considerados a sua potenciada perigosidade para os bensjurídicos que a lei temporária visou tutelar. Há, como a doutrina cos-nnnareferir, uma alteração da situação fáctica e não uma alteraçãoda valor ação político-criminal.

Digamos, em conclusão: não se afirmando a razão de ser daretroactividade da lei despenalizadora, não se afirma a eficácia retroac-tiva da caducidade (auto-revogação) da lei temporária - ubi cessatratio, cessat eius dispositio. Eis o verdadeiro e único fundamento .dacompatibilidade do regime especial da lei temporária com o princípioconstitucional da eficácia retroactiva da despenalização de uma con-duta ..

§ 377. Até agora, falámos das leis temporárias como se elasfossem, sempre e necessariamente, leis criminalizadoras (penalizado-ras). A verdade, porém, é que a lei temporária pode ser uma lexseverior; isto é, uma lei que, por força da situação de anormalidade,se limita a agravar, temporariamente, a responsabilidade penal pela prá-

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Tttuio fi - 11 Lei Penal: criação e aplicação 207

tica de um facto que já é, na situação normal, considerado crime.Sirva de exemplo a agravação da pena (estabelecida no art. 275°-1)por porte de arma de fogo sem licença, durante determinado períodode tempo e por causa de uma situação de grave perturbação da ordempública.

§ 378. Refira-se, ainda, que também pode haver uma verdadeirasucessão de leis penais temporárias. Pode o legislador, com o objec-tivo de tentar debelar, rapidamente, a situação de anormalidade, aprovaruma lei que, depois de entrada em vigor, verificou que era excessivamentedura, mesmo tendo-se em conta a gravidade da anormalidade da situa-ção .. E, então, decide aprovar uma nova lei temporária que reduz apena estabelecida na lei anterior.

Numa tal situação, é evidente que estamos perante uma verdadeirasucessão de leis penais temporárias, pois que há identidade da situaçãofáctica (anormal) assumida por arnbas as leis e determinante do regimeespecial destas. Numa hipótese destas, ter-se-ia de aplicar, retroactiva-mente (em relação aos crimes cometidos na vigência da primeira leitemporária), a segunda lei temporária, por ser mais favorável. Aqui, narelação entre a primeira e a segunda lei temporária, houve uma altera-ção da valoração político-criminal da mesma situação fáctica de anor-malidade social.

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7.° CAPÍTULO

A· EFICÁCIA ESPACIAL DA LEI PENAL

r. A designação "direito penal internacional"

§ 379, Tradicionalmente, contrapõem-se as designações "direitopenal internacional" e "direito internacional penal",

A expressão direito penal internacional compreendia, qua.se exclusi-vamente, as disposições jurídico-penais de cada Estado sobre o âmbito daaplicação das suas normas penais aos crimes praticados no seu próprio ter-ritório e aos cometidos num Estado estrangeiro. Relativamente ao direitoportuguês, o direito penal internacional (português) reduzia-se, praticamente,às disposições constantes do art. 53, o do CP de 1886. E estas disposiçõesreconduziarn-se, por sua vez, à consagração do princípio da territortali-dade como princípio fundamental, ao qual acresciam, como princípios sub-sidiários ou complementares, relativamente a crimes cometidos no estran-geiro, o princípio da defesa dos interesses econotnico-financeiros e politicosdo Estado Português e o princípio da nacionalidade activa, Este últimobaseava-se no princípio do direito internacional comum ou das "gentes" dopunire aul dedere, que quer dizer: é dever de um Estado ou .extraditar um seucidadão, que noutro Estado tenha praticado um crime, ou, então, puni-lo,Ora, como, então, sé afirmava o princípio absoluto da proibição da extra-dição de cidadãos nacionais, a alternativa era julgá-lo e, eventualmente,puni-lo. Além destes poucos princípios, vigorava, ainda, o princípio daaplicação da lei penal portuguesa a crimes que lesassem interesses univer-sais (comuns a todos os "Estados civilizados"), desde que à protecção de taisinteresses Portugal se tivesse vinculado pela adesão aos tratados ou con-venções internacionais que visavam a tutela desses interesses,

Portanto, tradicionalmente, durante a vigência do C1' de 1886, a coo-peração penal entre os Estados e, nomeadamente, entre Portugal e outrosEstados, reduzia-se à obrigação de cada Estado julgar, pelos seus tri-

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bunais, crimes praticados pelos seus nacionais num Estado estrangeiro,desde que fossem encontrados em Portugal e não tivessem sido julga-dos no Estado estrangeiro ou, tendo-o sido, não tivessem cumprido a tota-lidade da pena em que foram condenados.

Vê-se que, então, um Estado nunca aplicava wna lei penal estran-geira, e muito menos reconheceria e executaria as sentenças penaisestrangeiras, Assim, no CP de 1886, art. 35,0_§ 4,°, estas nem sequer con-tavam para efeitos de reincidência. O único efeito que tinham, noEstado Português, era um efeito fáctico negativo, que, baseado no tra-dicional princípio ne bis in idem, se traduzia no seguinte: se tivessesido julgado e absolvido por tribunal do respectivo Estado estrangeiro,não podia voltar a ser julgado por tribunal português; se foi condenadoe cumpriu parte da pena, o tribunal português teria, no caso de sen-tença condenatória, de descontar, na pena aplicada, o tempo de prisãoefectivamente cumprido no estrangeiro,

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§ 380. A designação direito internacional penal compreendia ecompreende o conjunto das normas jurídico-penais (materiais e processuais)constantes de tratados ou convenções internacionais a que um Estadotenha aderido (como parte outorgante ou como posterior aderente),

Pertencem a este chamado direito internacional penal, p, ex. asConvenções de Genebra sobre os Crimes de Guerra, de 1949, a Con-venção Internacional para a Repressão. da Falsificação de Moeda, oEstatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Este Estatuto deRoma (25) - aprovado em 17- de Julho de 1998 e entrado em vigorem 1 de Julho de 2002 - foi, quanto a Portugal, aprovado, para rati-ficação, pela Resolução da Assembleia da República n." 3/2002, e publi-cado no Diário da República em 18 de Janeiro de 2002,

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§ 381. Cabe-nos, aqui, tratar apenas do chamado direito penalinternacional português actual, i, é, como já o dissemos, das disposiçõesjurídico-penais portuguesas sobre a aplícabilidade, no espaço, da nossa

rl) Para uma análise do direito material e processual constante do Estatuto deRoma, veja-se o volume especial da Revista Direito e Justiça da Faculdade de Direitoda Universidade Católica Portuguesa, 2006, com o título O Tribunal Penal Internacio-nal e a Transformação do Direito Internacional,

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210 Parte I - QueJtões Fundamentais

lei penal, sobre a eventual aplicabilidade, pelos tribunais portugueses, dalei penal estrangeira e, ainda, sobre a cooperação judiciária internacionalpenal das autoridades portuguesas com as estrangeiras,

Mas, antes de analisarmos estas normas jurídico-penais portugue-sas, convém fazermos urna breve referência à evolução, ocorrida nasúltimas décadas, em matéria de cooperação entre os Estados na resolu-ção das questões penais, bem como às causas dessa evolução,

A partir do termo da segunda Grande Guerra e, especialmente, a par-tir dos anos 60170 do séc.. XX, os povos e os seus respectivos Estadoscomeçaram a ter a consciência de que era indispensável uma coopera-ção entre eles nos mais variados domínios, desde o económico ao da lutacontra certas formas de criminalidade grave, complexa e, sobretudo,transnacional, passando pela protecção do ambiente, etc,

Esta consciencialização política da interdependência dos Estados,em múltiplos dominios, e da consequente indispensabilidade da coope-ração entre eles, foi reforçada com o aparecimento, a partir da décadade sessenta, de organizações criminosas transnacionais, altamente peri-gosas e sofisticadamente complexas, dedicadas ao tráfico de pessoas,de droga, de armas, ao terrorismo, etc.

Acresceram a esta como que progressiva globalízação do crimegrave dois outros fenômenos sociais mundiais que, embora positivosem si mesmos, não deixavam, contudo, de obrigar os Estados a coope-rarem entre si: um destes foi, e é, o fenómeno das emigrações, emmassa, de pessoas em busca de emprego e de melhores condições de vida;o outro foi, e continua a ser, o fenómeno do turismo. Ambos, como éóbvio, determinaram uma grande mobilidade inter-estadual das pessoas,passando cada pessoa a ser, ou poder ser, cidadão de dois mundos:cidadão do seu Estado e cidadão do mundo.

Esta progressiva globalização, que faz com que o mundo se trans-forme numa aldeia comum, aprofundou-se na última década com a glo-balizaçâo da informação e da comunicação, através da Internet, e coma transnaclonalização do capital e das empresas,

. '. § .382. Esta real interdependência dos Estados e a consciência polí-tica, que neles provocou, sobre a inevitabilidade da cooperação entresi, não podia deixar de se repercutir na reforrnulação do conceito desoberania estadual e do exercício do ius puniendi.

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Assim, o tradicional conceito de soberania (teorizado a partir dabaixa Idade Média e consagrado no séc. XVI) perdeu o seu carácterabsoluto, E esta relativização manifestou-se também no próprio direitopenal estadual.

Assim, compreendia-se que, enquanto a soberania de um Estadoera, no plano externo, definida como um poder absoluto e, portanto,absolutamente indiferente ao poder dos outros Estados, cada Estado exer-cesse, no seu território, os seus poderes soberanos, com total indiferençapelo modo como os outros Estados os exerciam sobre os seus territórios,Ora, sendo o ius puniendi estatal. considerado como uma das principaismanifestações da soberania, natural que fosse rejeitada qualquer cedên-cia (por recíproca que o fosse) a outro Estado, em matéria penal. E,assim, é que, como já referimos, até há 'poucas décadas, a generalidadedas legislações penais recusavam-se a aceitar a aplicação, pelos seus tri-bunais, da lei penal do Estado estrangeiro, onde o crime tivesse, sidopraticado e, a fortiori, recusavam a execução de sentenças penais profe-ridas por tribunais estrangeiros. Porém,' com a relatívízação do conceitode soberania estadual, também passou a relatívízar-se o poder puni-tivo estatal, passando-se 'de um isolacionisrno penal a uma progressivacooperação judiciária dos Estados em matéria penal.

Esta nova atitude dos Estados teve repercussões, não apenas a níveldo incremento da celebração de convenções e tratados internacionais(bilaterais e multilaterais) sobre questões penais (cujo último exemplo,foi a criação do "Tribunal Penal Internacional" permanente, sedeadoem Haia), mas também nas próprias legislações penais nacionais relati-vamente ao âmbito espacial da lei penal estadual, e à cooperação judi-ciária internacional em matéria penal.

É a estas 'nonnas jurídico-penais portuguesas f'direJ.tQ'penal inter-nacional") que vamos dedicar os §§ seguintes.

Il. Princípios sobre o âmbito de aplicabilidade no espaço da leipenal portuguesa

1. O princípio fundamental da terrltorlalídade

§ 383. No passado, discutia-se sobre qual o princípio que, nestamatéria da "aplicação da lei penal no espaço", devia ser considerado

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212 Parte I - Questões Fundamentais

como princípio geral: o da nacionalidade (activa) ou o da territoriali-dade?

Apesar de, sobretudo então, poder haver algumas razões em favorda elevação do princípio da nacionalidade a princípio geral - nomea-damente, a consideração de que, se um 'Estado tem de' proteger os seuscidadãos mesmo quando se encontram no estrangeiro, também estesdevem estar sujeitos às leis penais do seu Estado mesmo quando seencontrem em território de outro Estado -, a verdade é que a genera-lidade dos Estados, desde há muito, optou pelo princípio da territoria-lidade como princípio fundamental.

§ 384. E, na verdade, há razões decisivas em favor do princípio daterritorialidade: razões materiais e razões processuais.

As razões materiais são de natureza político-criminal e estãorelacionadas com os fundamentos e as finalidades preventivas da puni-ção penal. É no território do Estado, onde foi praticado o crime, quemais se fazem sentir as necessidades de prevenção geral positiva depacificação social e de reafirmação da ordem jurídico-penal e da impor-tância dos bens jurídicos por esta protegidos, e de prevenção geralnegativa de dissuasão dos potenciais infractores. Com efeito, se umchinês pratica um crime grave em Portugal, é aqui, e não na China, quehaverá o "alarme social" e que se toma necessário "advertir" os poten-ciais infractores.

Mas também são detenninantes as razões processuais: pois é no ter-ritório, onde o crime foi praticado, que a investigação e a prova docrime é mais fácil de realizar-se e, portanto, são maiores as garantias deuma decisão eficaz e justa.

Assim, o nosso CP, art, 4,O-ll), estabelece que, «Salvo tratado ouconvenção internacional em contrário, a lei penal portuguesa é aplicávela factos praticados em território português, seja qual for a nacionali-dade do agente».

§ 385. Mas, tendo em conta que O crime é uma realidade complexaonde se destacam os elementos estruturais conduta e resultado, há quedeterminar se ambos, ou só um deles, devem ser considerados decisivospara a fixação do locus delicti, i. é, do Estado onde o crime deve ser con-siderado praticado, para este efeito do principio da territorialidade.

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A ratio, que deve presidir à determinação do locus delicti, é a deevitar conflitos negativos de competência, evitando-se, assim, a impu-nidade do infractor. Ora, para evitar esta impunidade, o critério maisadequado é o critério bilateral alternativo, considerando-se o crime pra-ticado em Portugal, quando a conduta ou o resultado cá se verifica.

Poder-se-á dizer que, com este critério alternativo e uma vez queele é adoptado pela generalidade dos Estados, se gerarão conflitos posi-tivos de competência. A resposta a esta eventual objecção é a de que assimé, mas que tais conflitos positivos (mais de um Estado a considerar ocrime cometido no seu território e, portanto, a afirmar a sua competênciapara o julgar) não têm qualquer relevância prática, uma vez que O que cadaEstado concorrente pretenderá é que o crime não fique impune. Que sejao Estado A ou o B a julgá-lo, é secundário, é relativamente indiferente.

§ 386. E é este o critério que o nosso CP, art. 7,'·1, consagra, aoestabelecer que «O facto considera-se praticado tanto no lugar em que,total ou parcialmente, e sob qualquer forrna de comparticipação, o agenteactuou, ou, no caso de omissão, devia ter actuado, como naquele em queo resultado típico ou o resultado não compreendido no tipo de crime setiver produzido».

Portanto, consideram-se praticados em Portugal e, portanto, puníveispela lei penal portuguesa, com base no princípio da territorialidade, oscrimes em que a conduta (acção ou omissão) foi, total ou parcial-mente (6) praticada (quer sob a forma de autoria ou de cumplicidade)em Portugal, ou cujo resultado (típico ou não) cá se tenha produzido.

O n." 2 do art. 7,° estabelece que, «No caso de tentativa, o factoconsidera-se igualmente praticado no lugar em que, de acordo com arepresentação do agente, o resultado se deveria ter produzido», Portanto,são também considerados cometidos em Portugal os crimes tentadoscuja acção, apesar de praticada no estrangeiro, visasse produzir o resul-tado em Portugal.

(26) Assim, p. ex., nos chamados "crimes em trânsito", de que pode ser exem-plo o sequestro, considera-se cometido em Portugal o sequestro. em que a vftima quefoi sequestrada em França, foi libertada na Espanha, tendo passado por Portugal. Tam-bém, no "crime continuado", este considera-se cometido em Portugal, desde que tão s6uma das múltiplas acções "parcelares" tenha sido praticada no nosso país.

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214 Pane [ - Q«eSlaes Fundamentais

Trata-se, como parece óbvio, de um conceito muito amplo doiocus delicti; em rigor, trata-se de uma ficção. Mas diga-se que talamplitude parece justificada, pois está de acordo com a teleologia do cri-tério do locus delicti, que é, como vimos, a de evitar situações de impu-nidade. Pois que, como parece claro, quer o Estado do local onde foipraticada a acção, quer o Estado do local onde, contra a intenção. doagente, se venha a produzir ° resultado, também são, a jortiori, consi-derados competentes para o respectivo julgamento e aplicação da sua pró-pria lei penal, com fundamento no principio da territorialidade,

§ 387. Uma palavra sobre a evolução do direito português nestamatéria do locus delicti.

O CP de 1886 não continha nenhuma disposição sobre ~sta questão,tendo a doutrina defendido, com base nanecessidade de evitar situações deimpunidade, a posição correcta do critério da conduta ou do resultado.

O CP de 1982 estabeleceu, no art. 7.°, o critério da conduta ou do"resultado típico". Ora, ao exigir que o resultado fosse típico (i, é, cons-tituísse um elemento do tipo legal de crime), excluía aaplicabilidade dalei penal portuguesa aos crimes formais (aqueles em que o resultado nãoé elemento constitutivo do tipo legal) cuja conduta tivesse ocorrido noestrangeiro, embora o resultado se tivesse produzido em Portugal.A Revisão de 1995 não alterou a redacção originária do CP de 1982.

Foi a Lei n." 65/98, de 2 de Setembro, que conferiu ao art. 7.° a suaredacção actual. Esta lei não só alargou o locus delicti aos crimes cujoresultado, mesmo que não típico (27), se tenha produzido em Portugal,

(27) Uma palavra sobre as condições objectivos de punibilidode: estas condições sãoelementos do tipo legal; logo, se a c. o. p. consistir num resultado (da acção respectiva queconstitui O ilícito típico), estarnos diante de um resultado típico (i.é, pertencente ao tipolegal, posto que não integrante do ilícito) e, portanto, o respectivo crime também ~, paraeste efeito da "aplicação da lei 00 espaço", considerado cometido em Portugal. Assim,mesmo antes de o art. 7.' fazer referência ao "resultado não compreendido' no tipo decrime", já um crime, cujo resultado. posto que configurando uma mera c. o. p., se veri-ficasse em Portugal, era um crime que devia considerar-se cometido em Portugal. Assim,a tal crime era aplicável a lei penal portuguesa, com base no princípio da territorialidade.Sirva como exemplo o incitamento ao sr.iddio (aI1. 135."); se a "instigação" é feita no estran-geiro, mas o resultado "suicídio ou tentativa de suicídio" ocorre em Portugal, este crimetantb se considera praticado no país onde foí praticada a "instigação" como em Portugal,

Tilulo II - A Lei Penal: criação e aplicação 215

como ainda ficcionou como locus delicti o lugar onde, no caso de ten-tativa cometida no estrangeiro, o agente queria que o resultado se pro-duzisse em Portugal.

§ 388, A al. b) do art: 4.° estabelece que, para além dos crimes pra-ticados em território português (aI. a)), a lei penal portuguesa é tambémaplicável a crimes cometidos «A bordo de navios ou 'aeronaves portu-.gueses»,

Ora, uma vez que e.sta disposição não distingue entre navios ouaeronaves de guerra, i. é, militares, e navios ou aeronaves comerciais,a conclusão parece dever ser a de que abrange as duas categorias.'

§ 389. A outra questão, que se levanta, é a de saber se a dispo-sição também abrange os casos dos navios ou aeronaves portuguesesque se encontrem em portos ou aeroportos estrangeiros. ou nas águas ler-ritoriais ou espaços aéreos .estrangeiros, ou se, diferentemente, apenas serefere às águas e aos espaços aéreos internacionais' ,',

A solução mais razoável deveria ser, pelo menos relativamente aos.navios ou aeronaves comerciais, considerar a lei penal portuguesa aplicável,com base no alargamento do princípio da territorialidade, somente aoscrimes cometidos nas águas ou espaços aéreos internacionais, excluindoos praticados a bordo de navios ou aeronaves comerciais, quando circu-lem em águas territoriais ou sobrevoem ~spaços aéreos estrangeiros, equando se encontrem em portos ou aeroportos estrangeiros. Porém, averdade é que o art. 4.o_b) não distingue e, assim, parece que a soluçãoque se impõe é a de considerar aplicável a lei penal portuguesa tam-bém nestas hipóteses de crimes praticados a bordo de navios ou aeronavescomerciais portugueses, .mesmo que se encontrem em espaço marítimoou aéreo estrangeiro ou em portos ou aeroportos estrangeiros.

Mas, assim sendo, então parece que, por uma questão de reciprocidade,também deve considerar-seaplicável a lei penal do estado estrangeiro, a quepertence o navio ou aeronave comercial, quando o crime for cometido abordo de navio ou aeronave que se encontre em águas ou espaço aéreo por- .tugueses, ou se encontre num porto ou aeroporto português.

§ 390, Do exposto retiro a conclusão de que a al, b) do art. 4.°abrange os crimes cometidos a bordo de navios ou aeronaves portugue-

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216 Porte I - Questões Fundamentais

ses (militares e comerciais) quer se encontrem em águas ou espaço aéreointernacionais, quer se encontrem em portos ou aeroportos estrangeiros.

Esta solução, estabelecida pelo nosso direito positivo, não cria difi-culdades práticas indesejáveis político-criminalmente. Com efeito, tam-bém aqui o que pode acontecer é que a leI penal do país, em cujaságuas ou espaço aéreo seja praticado o crime, ou e!U cujo porto ouaeroporto se encontre o navio ou a aeronave portuguesa, se considere tam-bém aplicável. Mas, como já o referimos (§ 385), o que interessa, fun-damentalmente, é evitar a impunidade, evitando, com tal objectivo, osconflitos negativos de competência. Que, havendo um conflito posi-tivo de competências, dois Estados se considerem competentes, é ques-tão .secundária.

§ 391. Nestas considerações, não me referi às águas terrítoriaisou ao espaço aéreo portugueses, pois que tanto as primeiras como osegundo são, segundo o direito internacional público, território português.Assim, os crimes cometidos a bordo de navio ou' aeronave comerciaisestrangeiros, quando em águas ou espaço aéreo portugueses, ou em por-tos ou aeroportos portugueses, são considerados praticados em territórioportuguês e, portanto, são abrangidos pela al. a) do. art. 4.°

§ 392. Já que, segundo o direito internacional público, os naviosou aeronaves de guerra são considerados território do Estado a que per-tencem, então a lei penal portuguesa não pode ser aplicada aos crimespraticados 110 interior de navios ou aeronaves de guerra estrangeiros,quando se encontrem nas águas ou espaço aéreo portugueses ou emportos ou aeroportos portugueses. Pois esta situação nem é abrangidapela al. a), uma vez que os navios ou aeronaves de guerra estrangeirosnão são considerados território português; nem é abrangida pela al, b),pois que tais navios ou aeronaves não são portugueses.

2. Os princípios complementares ou subsidiários

§ 393. O CP, art, 5.°, consagra vários princípios que tomam a leipenal portuguesa aplicável a crimes cometidos no estrangeiro.

, O conjunto destes princípios pode englobar-se na designaçãocomum de "princípios complementares ou subsidiários". Comple-

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Tiuúo li - A Lei Penal: criação e aplicação 217

mentares, na medida em que vêm acrescentar às situações abrangi daspela eficácia positiva absoluta do princípio da territorialidade (a leipenal portuguesa é aplicável a todos os crimes praticados em territó-rio português, a não ser que haja convenção ou tratado em contrário)novas situações de crimes cometidos no estrangeiro. Subsidiários,uma vez que tais principios só funcionam em relação a situações que,mesmo que afectem os interesses por eles protegidos, não ocorramem Portugal. Logo, subsidiários em relação ao princípio da territo-rialidade.

São diferentes os interesses e os pressupostos da aplicação decada um destes princípios e, assim, é correcto que se procure designarcada um deles pela expressão mais adequada à respectiva teleologia econteúdo.

§ 394. Como nota final desta breve introdução, cabe dizer que aordenação destes princípios obedecia, tradicionalmente a um certo crité-rio. A sua ordenação parecia obedecer a duas razões: a relevância dosbens jurídicos e a ordem histórica da sua consagração. Assim, antes daRevisão do Código Penal, operada em 2007, Unhamos esta sequência:1.0 - princípio da protecção dos interesses nacionais (interesses doEstado); 2.° - princípio da universalidade; 3.° - princípio da naciona-lidade activa; 4." - princípio da nacionalidade passiva; 5.° - princípioda nacionalidade activa e passiva. A Revisão do Código Penal, operadaem 2007, embora não tenha menosprezado o critério da importânciados bens jurídicos, procedeu a um escalonamento dos princípios emfunção também, e prioritariamente, da não exigência ou exigência dadupla Incrímínação. Assim, o princípio da nacionalidade activa e pas-siva (cujo objectivo é o de evitar a chamada fraude à lei penal portu-guesa) que, antes, vinha na al. d) passou para a al. b}. Ora, tendo emconta o disposto no n." 3 do art. 6.°, vemos que são precisamente esteprincípio e o dos interesses nacionais aqueles cuja aplicação não dependeda dupla incriminação. Continua, portanto, a ser correcto dizer que,quando a wn determinado crime praticado no estrangeiro for abstracta-mente aplicável mais que um destes princípios, a solução correcta éfundamentar a aplicação da lei penal portuguesa no princípio que tem pre-cedência na ordenação estabeleci da pelo art. 5.° E é esta ordem queseguiremos na exposição destes princípios.

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218 Parte f - Queslões Fundamentais

.1..1. Princípio da protecção de interesses nacionais (art, S.o-l-a))

§ 395. O primeiro principio complementar, previsto na al, a) don." 1, é O principio da tutela cios mais relevantes interesses do EstadoPortuguês. Neste principio, é indiferente a nacionalidade do infractor.

A referida alínea contém uma enumeração taxativa dos artigos daparte especial do código penal, onde vêm descritos os respectivos crimes.

Pela leitura destes artigos (221.°, 262.° a 271.°,308.° a 321.°,325.°a 345.") vê-se, claramente, que o critério do legislador para delimitar oâmbito deste princípio foi o da natureza fundamental; para o Estado epara a sociedade no seu conjunto, dos bens jurídicos a proteger. Comefeito, os bens jurídico-penais, protegidos pelos diversos artigos referi-dos, reconduzem-se a quatro categorias: os alicerces e o funcionamentodo Estado-de-Direito Democrático (arts. 325.° a 345.°, onde, p. ex., seincluem os crimes de "alteração violenta do Estado de Direito", de"coacção de órgãos constitucionais", de "fraude em eleição"); os inte-resses do Estado na confiança da circulação Iíduciárla (arts. 262.-a 271.", onde, p. ex., se encontram os crimes de "contrafacção de moeda",de "falsificação de títulos equiparados a moeda"); os interesses da inde-pendência e da integridade nacionais (arts. 308.° a 321.°, onde, p. ex.,se descrevem os crimes de "traição à pátria", de "ajuda a forças arma-das inimigas", de "espionagem"); e os interesses da segurança dascomunicações (art, 221.°, onde se inclui o crime "burla informática e nascomunicações").

Anote-se que deixou de se fazer referência aos arts. 300.° (organi-. zações terroristas) e 301." (terrorismo), uma vez que estes dois artigos

foram revogados pela Lei n." 5212003, de 22 de Agosto. Lei esta quedescreve e pune estes crimes de "organizações terroristas" e de "terro-rismo"; e que, no seu art, 8.°, estabelece a aplicabilidade da lei penal por-tuguesa a estes dois crimes, quando cometidos no estrangeiro (salvo,obviamente, tratado ou convenção internacional em contrário), e que, àsemelhança dos crimes a que se referem as als. a) e b) do n." 1 doart. 5." do CP, exclui a aplicação da lei do país onde foi cometido o crime(exclui a aplicação da lex loei), mesmo que esta seja mais favorável.

§ 396. Tendo em conta a relevância nacional e estadual dos bensjurídicos em causa, compreende-se que a aplicação deste princípio não

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dependa da presença do agente em Portugal, tal como é razoável que, nes-tes casos, seja sempre aplicada a lei penal portuguesa, mesmo que alei do país onde o crime foi praticado seja mais favorável. E é istoque, precisamente, o n." 3 do art. 6: estabelece. Portanto, aos crimesreferidos na al. a) é, em regra, sempre aplicável a lei penal portuguesa,quer o facto não seja considerado crime no Estado onde foi praticado,quer, sendo considerado crime, a lex loci seja mais favorável. Disse queo regime aplicável era, em regra, o português: em regra, mas não neces-sariamente, pois que entendo que há que distinguir, dentro dos artigosreferidos na al. a), aqueles cujas disposições visam, directa e exclusi-vamente, a tutela penal de interesses do Estado Português (as chama-das "normas espacialmente autolimitadas" -- arts. 308.Q a 32l.°; cri-mes contra a soberania portuguesa; arts. 325.° a 345:: crimes contra arealização do Estado de Direito português e crimes eleitorais) e aquelescujas disposições, embora visem a tutela penal de interesses portugue-ses, também estendem esta tutela aos interesses estrangeiros (caso dosarts. 262: a 27l.": crimes de falsificação de moeda e de títulos de cré-dito). A competência para o julgamento da primeira categoria de crimescabe aos tribunais portugueses, a titulo principal (e exclusivo, quandotais factos não constituírem crime face à lex loei, i. é, face à lei doEstado onde foram praticados - o que pode acontecer), sendo, obvia-mente, aplicada a lei penal portuguesa. Já, relativamente à segundacategoria de crimes, dever-se-à distinguir a situação, em que o crime lesa,directamente, os interesses portugueses (p. ex., contrafacção de euros oufalsificação de títulos de crédito nacionais), dos casos em que O crimelesa, directamente, interesses estrangeiros (p. ex., contrafacção de dóla-res ou falsificação de títulos de crédito canadianos). A competênciapenal internacional para o julgamento dos primeiros cabe, a título prin-cipal, aos tribunais portugueses, que aplicarão, sempre e necessaria-mente, a lei penal nacional;já, relativamente aos segundos, a competênciados tribunais portugueses é subsidiária e a lei aplicável (pelos tribunaisportugueses) é a que for concretamente mais favorável ao infractor.Isto significa que é preciso fazer urna interpretação teleolágica restri-tiva da ai. a) do n. o 1 do arfo 5. ~ e do n. o 3 do art. 6.· Restrição estaperfeitamente possível, pois que é favorável ao infractor; e restriçãoque é razoável e teleologicamente imposta, dado que não teria qualquersentido aplicar a lei penal portuguesa a quem, no estrangeiro, falsificou

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220 Parte l-Questões Fundamentais

moeda estrangeira, se no país onde foi praticado tal crime, a respectivalei penal estabelecer uma pena mais leve que a prevista pela lei portuguesa.Num caso destes, o julgamento, a realizar-se em Portugal, seria combase nos princípios subsidiários da nacionalidade activa (al. e)-l! parte)ou da aplicação supletiva da lei portuguesa (a1.,O),aplicando-se a lei penalconcretamente mais favorável (art. 6.°-2). '

2.2. Principio da nacionalidade activa e passiva (art. S.o-l-b))

, § 397. O segundo princípio complementar do principio da territo-rialidade é o principio da nacionalidade activa e passiva, estabelecido naaL b) do n." I do art, 5: e assim designado por assentar. no critério danacionalidade portuguesa, quer do agente quer da vítima.

A especificidade deste princípio estava, originariamente, na cir-. cunstãncia de o facto em causa não ser considerado crime pela lei do

Estado onde foi praticado, prescindindo-se, portanto, da exigência dadupla incriminação (28). Assim, se um português se deslocasse aoestrangeiro para ai praticar contra um português um facto que tambémaí era considerado crime, só que com uma pena claramente 'inferior à esta-belecida na lei portuguesa, o princípio, com base no qual ele podia sercondenado em Portugal, era o princípio da nacionalidade activa; e otribuna! português tinha de aplicar a lei penal estrangeira, pois que eramais favorável. Era assim que se passavam as coisas antes da RevisãoPenal de 2007. Actualmente, após esta revisão do CP;o disposto no n." 3do art. 6.0 implica que o princípio da nacionalidade activa e .passivaabrange não só a tradicional hipótese em que o facto não é conside-rado crime no país onde foi praticado, mas também a hipótese em queé considerado crime, embora com uma pena inferior à estabelecida pelalei portuguesa.

§ 398. Apesar de, agora, O princípio da nacionalidade activa e pas-siva não pressupor, necessariamente, a inexistência da dupla incrimina-

(28) Exigência de "dupla lncrirninação" significa que um facto praticado no estran-geiro só pode ser julgado e punido em Portugal, se tal facto também for considerado crimepela lei do país onde foi praticado.

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cão, continua a sua justificação e finalidade a ser a de evitar a "fraude"à lei penal portuguesa; isto é, este princípio visa impedir que um cida-dão português se desloque ao estrangeiro para ai praticar, contra umoutro.português, um facto que, sendo crime segundo a lei penal portu-guesa, não o é pela lei desse Estado estrangeiro, ou que, sendo aí tam-bém considerado crime, é, todavia, punido menos severamente.

Como exemplo da aplicação da lei penal portuguesa, com funda-mento neste princípio - que foi introduzido pelo CP de 1982 -, temoso caso da mulher portuguesa que se dirija a uma clínica estrangeirapara al realizar o aborto, em condições que, segundo a lei portuguesa,é crime (cf CP, art. 140.°-3 e art.' 142.°-1), mas não o é segundo a leido. referido.Estado. A este exemplo, que foi referido pelo Prof. EduardoCorreia, nas reuniões da Comissão Revisora do Anteprojecto do CPde 1982, podiam acrescentar-se outros, como o do português, que sedeslocasse a um país estrangeiro, para praticar actos sexuais com um por-tuguês de 13 anos (CP, art. 171.0-2), país onde tais actos não fossem puní-veis criminalmente, ou, sendo também puníveis, o fossem com umapena muitíssimo inferior aos três a dez anos de prisão. estabelecidospelo nosso código. penal.

§ 399. Para além dos já referidos pressupostos da nacionalidade por-tuguesa do infractor e da vítima e da não punibilidade ou menor puni-bilidade do facto segundo a lei do iocus d.elicti, são ainda pressupostosda aplicabilidade da lei penal portuguesa: a residência habitual do. infrac-tor em Portugal; que este seja encontrado em Portugal; e que haja"fraude" à lei penal portuguesa. .

§ 400. Embora só os dois primeiros estejam .expressamente referi-, dos na al. b), entendemos que a fraude' à lei penal portuguesa é umpressuposto implícito, com um significado próprio e com consequênciasjurídico-penais práticas. Na verdade, aquilo que o legislador quer evitaré a impunidade' ou menor punição do português que, para fugir à aplica-ção. da lei penal nacional, se desloca, propositadamente, ao estrangeiropara ai praticar ° facto. Assim, se compreende a exigência da residênciahabitual em Portugal. Se a finalidade deste princípio fosse apenas a deproteger a vitima portuguesa contra actos praticados no estrangeiro, entãonão teria sentido o pressuposto da residência habitual em Portugal.

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222 Parte l-Questões Fundamentais

Ao mencionar e considerar a residência habitual em Portugal comopressuposto da aplicabilidade deste princípio, o legislador está a exigir,implicitamente, que o português se desloque ao estrangeiro com o objec-tivo principal de ai praticar o facto, É esta preordenação ("criminosa")da deslocação ao estrangeiro - que configura uma fraude ou forma decontornar a lei penal nacional - o que constitui a ratio e determina oâmbito da eficácia normativa deste princípio.

Daqui resulta que não cai no âmbito deste princípio e, portanto, nãoé aplicável a lei penal portuguesa, O caso em que O agente, embora residahabitualmente em Portugal, decide passar uma férias no estrangeiro e,quando já se encontra nesse país, decide praticar um facto q1le é punívelpelá lei portuguesa (ou é-punido mais severamente), mas não o é pela leido Estado (oué menos severamente punido) onde ele está a passar fériasou 'está de passagem, no decurso de uma viagem de negócios.

2.3. Princípio da universalidade (art, S."-l-c))

§ 401. O terceiro princípio complementar é o da universalidade ouda 'protecção dos bens jurídicos considerados como valores éticoscomuns a toda a humanidade. Também, neste principio, é irrelevantea nacionalidade do infractor.

A respectiva al. c) faz uma enumeração taxativa dos crimes que olegislador português considerou porem em causa os valores fundamen-tais da comunidade internacional. Assim, determinam a aplicabilidadeda lei penal portuguesa, com base neste princípio da universalidade, oscrimes de "escravidão" (ali. 159.°), de "tráfico de pessoas" (art. 160.°),de "rapto" (art. 161.°), de "abuso sexual de crianças" e de "menoresdependentes" (arts, 171.0 e 172.°), de "lenocinio de menores" e de "por-nografia de menores" (arts, 175.0 e 176.°), de "danos contra a natureza"(art, 278.°), de "poluição" (art, 279.°) e de "poluição com perigo comum"(art, 280.°).

§ 402. São pressupostos da aplicação da lei penal portuguesa queo infractor seja encontrado em Portugal e que não possa ser extraditado.

O primeiro pressuposto é claramente razoável, pois tendo o crimesido cometido no estrangeiro, seria inútil (e, se o infractor fosse umestrangeiro, quase que não teria sentido) iniciar em Portugal um prece-

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Título /I - A Lei Penal: criação e aplicação 223

dimento criminal, encontrando-se O infractor noutro Estado. Aproveite-separa dizer que, contrariamente ao que tradicionalmente se afirmava, estepressuposto não é urna condição objectiva de punibilidade, mas simuma condição ou pressuposto de procedibilidade.

Relativamente ao segundo pressuposto, há que dizer o seguinte:em primeiro lugar, em regra todos os crimes são susceptíveis de fun-damentar a extradição, excepto quando esta, embora o extraditandotenha praticado um crime, é pedida com uma motivação polltica (i. é, oEstado requerente visa, principalmente, a perseguição política do infra-ctor - cf CRP, art, 33.°-6-1." parte); em segundo lugar, tendo em contaque estão em causas bens jurídicos considerados universais, deve inter-pretar-se a expressão «não possa ser extraditado» como abrangendo nãosó a hipótese em que a extradição (29) foi solicitada e negada, como tam-bém aquela em que a extradição não foi pedida.

§ 403. É de referir que o objecto principal deste princípio da uni-versalidade eram - e continuam a ser - os chamados "crimes contraa paz e a humanidade", A razão de, agora, a al. c) não se referir aestes crimes está no facto de Portugal ter aderido ao Estatuto de Romaque criou o Tribunal Penal Internacional cuja competência é preci-samente o julgamento deste tipo de crimes, A Lei n." 31/2004, de 22de Julho, revogou do Código Penal os artigos referentes a estes crimese passou a integrá-los (crime de genocídio, crimes contra a humani-dade, crimes de guerra), O art, 5." desta lei estabelece: «I - As dis-posições da presente lei são também aplicáveis a factos praticados forado território nacional, desde que o agente seja encontrado em Portugale não possa ser extraditado ou seja decidida a sua não entrega ao Tri-bunal Penal Intemacional. 2 - Não é aplicável o disposto no n." 2 doartigo 6,° do Código Penal»,

§ 404. A Resolução da Assembleia da República n." 2/2002, de 20de Dezembro de 2001 (ratificada pelo Decreto do Presidente da Repú-

(29) Após a Revisão Penal de 2007, à extradição foi equiparado o "mandado dedetenção europeu" ou outro instrumento de cooperação internacional que vincule oEstado Português.

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224 Parte 1- Questões Fundamentais

blica n." 2/2002, de 18 de Janeiro) faz, no seu 8.11. 2.°, a seguinte "decla-ração interpretativa": «Portugal manifesta a sua intenção de exercer opoder de jurisdição sobre pessoas encontradas em território nacionalindiciadas pelos crimes previstos 110 n." 1 do artigo 5.° do Estatuto, comobservância da sua tradição penal, de acordo com as Suas regras cons-titucionais e demais legislação penal interna» (itálico meu).

Ora, uma vez que o Estatuto do TPI, embora recuse a pena demorte, prevê a pena de prisão perpétua, pena esta que é rejeitada pelatradição penal portuguesa, quid iuris se o TPI pedir a Portugal aextradição de uma pessoa que tenha cometido, em país estran-geiro, um dos crimes da 'competência julgadora deste TribunalInternacional?

A resposta parece dever ser a seguinte: uma vez que a jurisdi-ção do TPI é subsidiária das jurisdições penais nacionais (art, 1.0do Estatuto) - pois o que a criação do TPI visou foi evitar a impu-nidade dos crimes graves contra a paz e a humanidade -, estando emcausa um cidadão português, é inequívoco que ele não pode serentregue ao TPI, devendo ser julgado em Portugal, onde, obviamentenunca poderá ser aplicada a pena de prisão perpétua, mas sim urna daspenas previstas no nosso Código Penal, cujo limite máximo é 25 anosde prisão.

Já, tratando-se de um estrangeiro, a solução poderá não ser tãoliquida. Todavia, parece que, estando em questão um crime ao qual possaser aplicada, pelo TPI, a pena de prisão perpétua, também não poderáPortugal extraditar o infractor estrangeiro (que, repita-se, tenha cometidoo crime também no estrangeiro). E a razão desta posição radica noseguinte: por um lado, na "declaração interpretativa", feita no já referido8.11. 2.° da Resolução da Assembleia da República, não se faz qualquer dis-tinção entre cidadãos portugueses e cidadãos estrangeiros; em segundolugar, a CRP, 3.11. 33."-5, só admite a extradição de cidadãos estrangeiros,com base em crimes a que corresponda a pena de prisão perpétua, «desdeque o Estado requisitante ofereça garantias de que tal pena [ ... ] não seráaplicada ou executada». Ora, independentemente de o TPI não ser umEstado, o certo é que o art. 120.0 do Estatuto estabelece- que «Não sãoadmitidas reservas a este estatuto). Donde parecer resultar a conclusãode! que, mesmo tratando-se de cidadão estrangeiro, Portugal não poderáextraditá-lo. Obviamente que, não o extraditando, tem de o julgar.

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Thuio If - A Lei Penal: criação e aplicação 225

§ 405. Segundo o ar-t. 5."-1 do Estatuto do TPI, «A competên-cia do Tribunal restringir-se-à aos crimes mais graves que afectam acomunidade internacional no seu conjunto. Nos termos do presenteEstatuto, O Tribunal terá competência para julgar os seguintes crimes:a) ° crime de genocídio; b) os crimes contra a humanidade; c) os cri-mes de guerra; d) o crime de agressão».

Enquanto que os arts. 6.°, 7.° e 8.° tipificam as três primeiras cate-gorias de crime, já o crime de agressão (30) não ficou descrito, ficando,portanto, segundo o n." 2 do art. 5.°, suspensa a competência do Tribu-nal para julgar este crime até à sua tipificação, de acordo com os termosestabelecidos pelos arts. 121.° e 123.° do próprio Estatuto.

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2.4. Princípio da protecção de menores (art.S."-l-d)

§ 405-A. A Revisão Penal de 2007 acrescentou, à lista dos princípioscomplementares ou subsidiários, uma nova disposição que está na alo d) ediz o seguinte: «Quando' constituírem os crimes previstos nos artigos 144.°,163.° e 165.°, sendo a vitima menor, desde que o agente seja encontrado emPortugal e não possa ser extraditado ou entregue em resultado de execuçãode mandado de detenção europeu ou de outro instrumento de cooperaçãointernacional que vincule o Estado Português». O que terá levado o Legis-lador a acrescentar esta nova disposição? - Uma vez que na lei, que pro-cedeu à revisão penal, não há a técnico-legislativamente exígível "exposi-ção de motivos", temos de ver qual terá sido o objectivo desta disposiçãoe, de seguida, verificarmos se tal objectivo foi, ou não, alcançado.

§·405-B. Tendo em conta que o legislador acrescentou, na alo b)do art. 144.° do CP, a supressão ou afectação da capacidade de fruiçãosexual, parece-nos que um dos factores principais da consagração destenovo princip ia foi o combate àspráticas de mutilação genital femininaque, infelizmente, ainda perduram em certas etnias, nomeadamente afri-canas. Estas práticas são toleradas em certos países, com base no cos-

(30) Sobre o crime de Agressão, ver PAUl,A EsCARAMEIA, «O Tribunal Penal Inter-nacional e o Crime de Agressão», ia Direito e Justiça - O Tribunal Penal Internacionale a Transformação do Direito lnternacional - volume especial, 2006, pp. 17-39.

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226 Porre I - Questões Fundamentais

tume. Embora a mencionada disposição, além de se referir a todo oart. 144.°, também refira o art. 163,· (coacção sexual) e o art. 164.°(violação), parece-nos que foi a necessidade de combatera horrível prá-tica da mutilação genital feminina a grande motivação do. legislador.

§ 405-C, Mas será que esta disposição realizará tal objectivo?- A resposta passa pela análise dos pressupostos da aplicação desta dis-posição. E os pressupostos expressos na al. d) são três: que a vítimaseja menor; que o agente seja encontrado em Portugal; que não possa serextraditado ou entregue. Mas há que não esquecer o pressuposto gerale implícito que exige - para que a lei penal portuguesa possa ser apli-cada a um facto praticado no estrangeiro - a dupla incrirninação, i, é,que o facto também seja considerado crime pela lex Zoei, ou seja, pelalei do país onde foi praticado. Ora, o n, o 3 do art. 6,.0 não refere aal; d); logo, para que uma mutilação genital feminina, praticada noestrangeiro, possa ser punida em Portugal, é necessário que tal práticatambém seja considerada crime pela lei do país onde ela ocorreu; não osendo, não pode ao respectivo agente ser aplicada a lei penal portu-guesa, Donde resulta a conclusão de que. o objectivo do legislador nãoparece ter sido alcançado com esta nova disposição, Tê-lo-ia sido, setivesse sido incluída, 110 11.· 3 do art. 6.·, a referência à al, d) do art. 5,°;mas não o foi .. , Deste modo, se, p. ex., um casal guineense promovea mutilação genital da sua filha (não tendo nem os pais nem a filhanacionalidade portuguesa), na Guiné, (antes de vir para Portugal ou des-locando-se à Guiné com o objectivo da mutilação), não pode ser julgadoem Portugal, se naquele país tal prática não for considerada crime ou,sendo-o, for considerada justificada com base no costume de certas etnias,

Conclusão: parece-me que a motivação e um dos principais objec-tivos da nova al, d) acabaram por sair frustrados. Só não saldam frustrados,se tivesse sido incluída, no n." 3 do art. 6.", a al, d) do art. 5."; pois queO n," 3 do art, 6." não só afasta a aplicação da lei penal estrangeira maisfavorável, como também exclui a exigência geral da dupla íncriminação.

§ 405-D. Tal como está, a ál, d) parece-me ter sido quase inútil: pois,bastava eliminar, na al.j), a exigência ciopedido de extradição - exigênciaque, como veremos, deveria ser, efectivamente, eliminada - para queas situações a que se aplica a a1. d) fossem abrangidas pela al. j),

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Titulo fI - A Lei Penal: criação e opiicação 227

2,5. Princípio da nacionalidade activa (art, 5.·-I-e)-1.' parte)

§ 406. O quinto principio complementar é o princípio da nacio-nalidade activa, Está previsto na primeira parte da al. e) do n." 1 doart. 5." O critério é o da nacionalidade portuguesa do infractor. E ofundamento, já tradicional, é o de que, em princípio, um Estado nãoextradita os seus cidadãos. Donde que, de acordo com o velho afo-rismo dedere aut punire, recai sobre o Estado, que não extradita umseu nacional, o dever intemacional de o julgar.

§ 407, São três os pressupostos da aplicação deste princípio: queo infractor se encontre em Portugal; que o facto seja também conside-rado crime pela lei do país onde foi praticado; e que O crime admitaextradição mas esta não possa ser concedida,

Relativamente à exigência de que o.português infractor se encon-tre em Portugal, já o dissemos (§ 402) que é razoável.

Quanto ao pressuposto da punibilidade do facto também pela leido Estado onde foi praticado, também é perfeitamente compreensí-vel, quer por razões político-criminais relacionadas com as finalidadespreventivas da pena (que se fazem sentir sobretudo no lugar onde ocrime é praticado), quer porque tal exigência é uma decorrência lógicade a lei penal portuguesa reconhecer o princípio da territorialidade comoprincípio fundamental nesta matéria,

Mas, relativamente a este pressuposto, o CP acautela a hipótese dehaver um (porventura pouco provável, mas possível) lugar onde tenhasido cometido o crime, mas onde não se exerça o poder punitivo. Numatal hipótese, a lei penal portuguesa é também aplicável.

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§ 408. O terceirfi..pressuposto é que se trate de «crime que admitaextradição e esta ntft':possa ser concedida ou seja decidida a nãoentrega [... J», '}~:

Esclareçamos que;'i\té à Revisão Constitucional de 1997, a CRP, IlO

então n." 1 do art. 33f;proibia, em absoluto, a extradição de cidadãosportugueses. Porém, ;9ill esta Revisão, embora a. regra continue a sera da proibição da extradição de cidadãos nacionais, passou a admitir-se,em casos restritos, a extradição de portugueses, desde que se verifi-quem os pressupostos estabelecidos na CRP, arfo 33.0-3, Em relação a

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228 Parte I - Questões Fundamentais

esta condição, também (cf. § 398) se poderá levantar a seguinte ques-tão: é necessário que haja um pedido de extradição e a correspondenterecusa, ou não é necessário que haja tal pedido?

§ 409. Em favor da posição que não exige um pedido de extra-dição, está o facto de o legislador, ao referir-se ao pressuposto da puni-bilidade segundo a lei do lugar onde o facto foi praticado, dizer que alei penal portuguesa se aplica, mesmo que, no lugar do crime, não fun-cione a justiça penal. Ora, se não funciona a justiça penal; como poderápensar-se num pedido de extradição?'

Acresce um outro argumento, que é o seguinte: confrontando esten." III da al. e) com a al.j), vemos que, enquanto na'primeira disposi-ção se lê: «crime que admite extradição e esta não possa ser conce-dida», já na aI. f) lê-se; «cuja extradição haja sido requerida [... ) e estanão possa ser concedida». Logo, parece que, diferentemente da situa-ção prevista na aI. j), no caso do princípio da nacionalidade activa, nãose exige que tenha sido pedida a extradição para que 0- infractor possaser julgado em Portugal. Digamos que este argumento era decisivo, seo legislador não ziguezagueasse na utilização de expressões diferentes,quando, se calhar, até está a querer dizer a mesma coisa. Na verdade,vejamos a causa da perplexidade ou dúvidas do intérprete e do julgador:na al. c) escreveu: «não possa ser extraditado ou entregue»; na al, -e)disse: «admita extradição e esta não possa ser concedida ou seja deci-dida a não entrega»; e na aLj) remata: «cuja extradição haja sido reque-rida [... ] e esta não possa ser concedida ou seja decidida a não entrega».

Mas há, ainda, um terceiro e forte argumento em favor da tese danão exigência de um pedido de extradição. Vejamo-lo. Esta al. e)contém dois princípios e toma a sua aplicação dependente dos mesmospressupostos. São eles o princípio da nacionalidade activa, que estarnosa analisar, e o princípio da nacionalidade passiva, que analisaremos embreve. '

Ora, considerando o princípio da nacionalidade passiva (crimecometido, nurn Estado estrangeiro, por um cidadão estrangeiro contra umcidadão português), não tem sentido fazer depender o julgamento, em Por-tugal, do cidadão estrangeiro de um pedido de extradição formuladopelo Estado onde um seu nacional (ou um nacional de um qualqueroutro Estado, que não o português) cometeu um crime contra um por-

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Tttulo II - A Lei Penal: criação e aplicação 229

tuguês Sendo, como o diremos mais à frente, a razão de ser do prin-cipio da nacionalidade passiva a protecção dos interesses dos cidadãosportugueses, seria inteiramente ilógico que a efectivação desta protecçãopenal ficasse dependente da vontade do Estado estrangeiro.

Do exposto resulta a conclusão, lógica e teleologicamente cogente,de que a aplicação da lei penal portuguesa (ou da lei penal estrangeira,se mais favorável- art. 6.°-2) não depende da formulação de um pedidode extradição.

Um exemplo: um sul-africano mata (ou viola, etc.), na África do Sul(ou, p. ex., em Moçambique), um português; passados vários meses ouanos, sem que tenha sido julgado no seu pais, é encontrado e detidoem Portugal; a África do Sul não formula qualquer pedido de extradi-ção. Pergunta-se: uma vez que não 'é pedida a extradição, ficam os tri-bunais portugueses impedidos de julgar o criminoso? - É evidenteque não ficam impedidos; é mesmo seu dever julgá-lo. Conclui-se,pois, que também o princípio da nacionalidade activa não pressu-põe que tenha sido formulado um pedido de extradição.

Ainda, e por hiperabundância, se pode invocar um quarto argu-mento, sob a forma de pergunta: abrangendo o principio da nacionali-dade activa também a hipótese dos crimes cometidos no estrangeiro(excluídos os referidos nas als, a) e b) do n." 1 do art. 5.° em análise- cf. § 394) por portugueses contra portugueses, que sentido teria o terde esperar por um pedido de extradição (que até, na generalidade, se nãosempre, seria recusado) para se poder julgar em Portugal o infractorportuguês, que cá se encontra? - A resposta é, obviamente, não tinhaqualquer sentido.

§ 410. Diante desta panóplia de argumentos, o único argumento emfavor da exigência do pedido de extradição toma-se inofensivo. E esteinócuo argumento segue este raciocínio: uma vez que a al, j) tem comopressuposto da aplicabilidade da lei penal portuguesa a um estrangeiroque, no estrangeiro, cometeu um crime contra outro estrangeiro, a exis-tência de um pedido de extradição, então também, em relação a umportuguês que, no estrangeiro, comete um crime contra um estrangeiro,também deveria exigir-se um pedido de extradição. Diante da forçados argumentos em favor da não exigência do pedido da extradição,este argumento não é suficiente para os abalar.

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230 Parte ( - Questões Fundamentais--------------

§ 411. A conclusão final é a de que o pedido de extradição, querestando em causa o princípio da nacionalidade activa ou 9 da naciona-lidade passiva, não é pressuposto da aplicabilidade da lei-penal portuguesa(se mais favorável que a do Estado do locus delicti - art. 6.°-2).

§ 412. E sendo esta a única conclusão, lógica e político-criminal-mente, razoável, não se vê o porquê e o para quê deste n." III da al. e):a lei penal portuguesa é aplicável, quando, além dos pressupostos dosn.OS I e ll, os factos «Constituírem crime que admita extradição e estanão possa ser concedida ou seja decidida a não entrega».

Quero dizer que este (aparente) pressuposto é inútil e, sendo-o,gera dúvidas cuja resolução faz o intérprete e ° aplicador perder tempo(embora, ao ter de se desconstruir uma inutilidade legislativa se ganhesempre algo com o esforço argumentativo ... ), E é inútil porque o n." Ido art. 5." não diz que a lei se aplica, mas sim que é aplicável, isto é,que pode ser aplicada, se se verificarem os pressupostos que o próprioart. 5." refere, para além dos que, obviamente dizem respeito à extradi-ção. Ora, quanto a esta, rege a CRP,_ art, 33."-3, 4 e 5, e a lei ordiná-ria sobre a extradição (Lei n." 144/99). Portanto, parece-me que oart. 5," do CP só devia referir a extradição, quando entendesse que opedido de extradição e consequente recusa devia ser considerado comoum pressuposto (que o não devia ser, como já o referimos) da aplica-bilidade da Lei penal portuguesa, como o faz na al. f).

§ 413. Em resumo: para a lei portuguesa poder ser aplicada a cri-mes cometidos no estrangeiro, é necessário que se verifiquem os pres-supostos especiais estabelecidos no art, 5," e que -o infractor em causanão seja extraditado. Mas os pressupostos da extradição estão fixadosna legislação, constitucional e ordinária, sobre a extradição e mandadode detenção europeu, Se há pedido e estes pressupostos se verificam, .é extraditado ou entregue e, logicarnente, não será julgado em Portugal.Se não há pedido ou, havendo-o, os respectivos pressupostos se nãoverificam, será julgado em Portugal, se os pressupostos específicos daaplicação da lei penal portuguesa a crimes cometidos no estrangeiro severificam,

Portanto, a alternativa que o legislador devia utilizar seria: mesmoque não haja pedido de extradição ou, havendo, seja recusado, no caso

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Trlulo [J - A Lei Penal: criação e aplicação 231

de não querer tomar a aplicabilidade da lei penal portuguesa (i. é, oprocedimento criminal nos tribunais portugueses) dependente do pedidode extradição ou do mandado de detenção europeu ou desde que hajapedido de extradição ou mandado de detenção europeu e tenha sidorecusado, no caso de querer tomar a aplicabilidade da lei penal portu-guesa dependente da existência de um pedido de extradição ou de deten-ção que foi recusado. -

2.6. Princípio da nacionalidade passiva (art, 5.·-1-e)-2." parte)

§ 414. O sexto princípio complementar é o princípio da naciona-lidade passiva. Está consagrado na 2." parte da al. e) do ri." 1 desteart, 5.°: «crimes cometidos por estrangeiros contra portugueses».

Este principio foi introduzido, pela primeira vez, no nosso direito,com o CP de 1982.

A sua finalidade foi, e é, proteger os interesses dos portugueses rela-tivamente a crimes cometidos, no estrangeiro, por estrangeiros contra por-tugueses. A consagração, em 1982, deste princípio terá sido motivadapela massiva emigração de portugueses, nomeadamente para França eAlemanha.

Como a tutela dos bens jurídicos dos cidadãos portugueses, noestrangeiro, não era totalmente conseguida pelo princípio da nacionali-dade activa (até então, compreensivelmente chamado, pura e simples-mente, princípio da nacionalidade), na medida em que este pressupõe anacionalidade portuguesa do infractor, surgiu, então, este princípio danacionalidade passiva.

§ 415. Do exposto resulta que o critério desde princípio é, simul-taneamente, a nacionalidade estrangeira do infractor e a nacionalidade por-tuguesa da vítima,

Além destes dois pressupostos-critério, a aplicabilidade da lei penalportuguesa, com base neste princípio, depende dos mesmos pressupos-tos do princípio da nacionalidade activa (cf. § 407 S5.): que o infractorestrangeiro se encontre em Portugal; que o facto seja também punível pelalei do Estado onde foi praticado; e que o infractor não seja extraditado,seja porque nem sequei' houve pedido da extradição, ou porque, emboratenha sido formulado tal pedido, este tenha sido indeferido,

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232 Parte I - Questões Fundamentais

2.7. Princípio da aplicação supletiva da lei penal portuguesaacrimes cometidos por estrangeiros contra estrangeiros(art. 5.0-1-.m

§ 416. Este princípio foi introduzido pela Lei ri:" 65/98, de 2Setembro. Com este princípio, o legislador português procura evitar aimpunidade em situações não abrangidas por nenhum dos anterioresprincípios complementares, impunidade que seria profundamente criti-cável, sob o aspecto político-criminal, e que poderia afectar o saudávelrelacionamento entre Portugal e os outros Estados. .

Exemplos de crimes graves praticados, no estrangeiro, por estran-geiros contra estrangeiros, e que poderiam ficar impunes: homicídio(art, 131.°), sequestro (art. 158.°). Bastava que o infractor fugisse paraPortugal e que, apesar de ter sido pedida a extradição, esta não pudesseser judicialmente autorizada, por se verificar algum dos obstáculos (cons-titucionais ou legais) à extradição (cf § 428),

Ora, se pode justificar-se que, mesmo se tratando de um crime grave,a extradição seja recusada, já, porém, não seria razoável, riem político-cri-minalmente nem internacionalmente, que o Estado português não só negassea extradição como ainda se recusasse a julgar em Portugal o.referido crime,

Assim, com base neste princípio, já pode ser julgado em Portugalum, p. ex., chinês ou americano que tenha cometido, na China ou nosEstados Unidos, um homicídio qualificado na pessoa de um chinês,americano ou de um qualquer estrangeiro (em relação a Portugal).

§ 417. Os pressupostos deste princípio são: que o infractor sejaencontrado em Portugal e que a extradição ou a entrega tenha sido reque-rida e recusada. O primeiro pressuposto é lógico. Já, quanto ao segundo,não me parece razoável que se exija o pedido de extradição. Pois, seem relação aos crimes referidos nas als, c) e d) (e também tendo emconta a ai. e) que abrange qualquer crime) não se exige que tenha havidoO pedido de extradição ou de entrega, não há razão para que, p. ex.,estando em causa um crime de homicídio, se exija este pedido.

2.8. Crimes cometidos por pessoas colectivas' (art. 5.0-1-g)

§ 417-A. Pela revisão penal de 2007 foi introduzida, no art. 5.°, aseguinte disposição: «[crimes cometidos] For pessoa colectiva ou con-tra pessoa colectiva que tenha sede em território português».

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Titulo II - A Lei Penal: criação e aplicação 233

2.9. Princípio da aplicação convencional da lei penal portu-guesa (art, 5."-2)

§ 418. Sobre este princípio há que dizer apenas o seguinte: é evi-dente que o Estado Português se pode vincular, por tratado ou conven-ção internacional, a aplicar a lei penal portuguesa a factos cometidos noestrangeiro, que não estejam abrangidos pelos princípios complementa-res anteriores.

§ 419. Do mesmo modo que, como refere o corpo do art. 4.", oEstado Português pode, por tratado ou convenção internacional, vincu-lar-se a aceitar a aplicação da lei penal estrangeira a factos praticados emPortugal (desde que a Constituição o permita).

3. Restrições à aplicação da lei penal portuguesa a crimescometidos no estrangeiro (art, 6.°)

§ 420. O n." I do art. 6.° acolhe o princípio constitucional (CRP,art. 29.°-5) ne bis in idem, segundo o qual ninguém pode ser dupla-mente punido pelo mesmo crime (cf § 352); «A aplicação da lei por-tuguesa a factos praticados fora do território nacional s6 tem lugarquando o agente não tiver sido julgado no país da prática do facto ouse houver subtraí do ao cumprimento total ou parcial da condenação».

Daqui resulta a exclusão de novo julgamento em Portugal 110 casode o agente (português ou estrangeiro) ter sido absolvido pelo tribunaldo Estado onde foi praticado o facto e no caso de ter sido condenado eter cumprido a respectiva pena.

Deve observar-se que não pode haver novo julgamento em Por-tugal, mesmo na hipótese de o agente ter sido julgado e ter ficadoabsolvido ou condenado (tendo cumprido toda a pena) por um tribu-nal de um país que também tenha, segundo a lei portuguesa, compe-tência jurisdicional subsidiária. Exemplo: um alemão que, na Itália,cometa um crime contra um português, tendo sido detido e julgado naAlemanha.

§ 421. No caso de o agente não. ter sido julgado 110 país dolocus delicti (ou noutro pais que tenha, segundo a lei portuguesa,

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234 Parte I - Questões Fwtdamenr.ats

competência jurisdicional subsidiária), então poderá ser julgado emPortugal. E, de acordo com a primeira parte do n." 2 do art. 6.0, ser-lhe-á aplicada a lei penal portuguesa, a não ser que a lei do locusdelicti sej a concretamente mais favorável, caso em que será estaaplicada - princípio da aplicação da lei penal concretamente maisfavorável.

§ 422. Só na hipótese de estarem em causa os crimes referidos nasals: a) e b) do n." 1 do art. S." - crimes estes abrangidos pelo princí-pio da protecção de interesses nacionais e pelo princípio da naciona-lidade activa e passiva - é que será sempre aplicada a lei penalportuguesa, por força do n." 3 do art. 6.°

§ 423. A 2: parte do n." 2 estabelece que, na hipótese de o tri-bunal português dever aplicar a lei penal estrangeira, por ser maisfavorável, a pena prevista pela lei estrangeira deve ser convertidanaquela que lhe corresponder no sistema português; e' que, no caso denão haver correspondência entre as duas penas (p. ex., multa emquantia fixa e dias-multa), será aplicada a pena prevista na lei por-tuguesa, Nesta segunda hipótese, embora se aplique a pena da lei por-tuguesa, o tribunal não deixará de a reduzir em termos proporcionaisá mesma gravidade material da pena estabelecida na lei penal estran-gerra,

§ 424. Finalmente, consideremos a hipótese em que o agente,que cometeu um crime no estrangeiro, foi julgado e condenado porum tribunal estrangeiro, mas subtraiu-se ao cumprimento total ouparcial da condenação, hipótese prevista na 2.a parte do n." 1 doart, 6,"

Nesta hipótese, são possíveis três situações.

§ 425. Urna situação é aquela em que o Estado, cujo tribunalproferiu a condenação, nem pede a extradição para efeito de exe-cução da pena no seu território, nem pede ao Estado Português aexecução, em Portugal, da pena aplicada pelo tribunal estrangeiro.

Neste caso, funcionará a 2: parte do n." I do art, 6.° O que sig-nifica que, verificando-se os pressupostos de algum dos princípios com-

Título 11 - A Lei Penal .. criação e aplicação 235

plementares ou subsidiários estabelecidos no art S.", será um tribunal por-tuguês a julgar, novamente, o infractor.

De acordo com o CP, art. 82.°, e a Lei n." 144/99, art. 13.°, é des-contado na pena, que vier a ser aplicada, o tempo de privação da liber-dade (prisão-pena ou prisão preventiva) que o agente já tiver sofridono estrangeiro, ou, no caso de pena de multa, a importância que haja pago- é ° chamado princípio da imputação ou desconto, fundamentadono princípio ne bis in idem.

§ 426. Outra situação é aquela em que o Estado, cujo tribunalproferiu a sentença condenatória, pede a extradição para efeitos documprimento, total ou parcial, da pena no seu território.

Neste caso, se se verificarem os pressupostos da concessão da extra-dição, para efeitos da execução da pena já aplicada, o infractor seráextraditado, cumprindo a pena, ou a parte desta que falta cumprir, noEstado requerente, .

Na hipótese, de recusa da extradição, então, de acordo com a Lei daCooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal, Lei n." 144/99,de 31 de Agosto, art. 32.°-5, «é instaurado [em Portugal] procedimentopenal pelos factos que fundamentam o pedido, sendo solicitados aoEstado requerente os elementos necessários».

Todavia, por força da Lei n." 144/99, art. 31."-2 e 4, nem poderáhaver extradição nem novo julgamento em Portugal, quando ao crime,que fundamenta o pedido de extradição, for aplicável pena de prisãode limite máximo inferior a um ano, e quando a pena que falta cumprirfor inferior a 4 meses.

§ 427. Refira-se que, embora a partir da 4." Revisão Constitucio-nal, em 1997, seja possível a extradição de cidadãos portugueses (combase em convenção internacional, nos casos de terrorismo e de crimi-nalidade internacional organizada - eRP, art, 33.°-3), tal, segundo oart. 32.°·2 e 3 da Lei n." 144/99, só é permitida para fins de procedimentopenal, Logo, na situação, que estamos a tratar, não é possível a extradi-ção do condenado por tribunal estrangeiro, se for cidadão português.

§ 428. Estando em causa um cidadão estrangeiro ou apátrida, aextradição pode ser concedida, desde que se verifiquem os pressupostosreferidos nos arts. 31."·1 e 33." da Lei n." 144/99, e não se verifiquem

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236 Parte I - Questões Fundamentais

os impedimentos à extradição descritos nos arts. 6.° a 8.0·e 32.o-1-a)da referida Lei n." 144/99 (p. ex.: pedido de extradição com motiva-ções políticas, étnicas, etc.; falta de garantias de um processo justo;crime punível com pena de morte ou prisão perpétua, ou, inversamente,crime (leve) punível com pena cujo limite máximo seja inferior a 1 anode prisão; tempo de prisão por cumprir inferior a 4 meses).

§ 429. Há duas categorias de extradiçãorextradição activa e extra-dição passiva.

A extradição activa consiste no pedido formulado por um Estadoa outro Estado, para que este lhe entregue determinado cidadão, a fimde ser julgado por um seu tribunal ou de cumprir a pena em que játenha sido condenado no seu Estado. A esta extradição activa, com orespectivo processo administrativo, se refere o art. 69.0 da Lei n." 144/99.

A extradição passiva corre no Estado a que é feito o pedido deentrega de um determinado cidadão. Esta extradição passiva fi os corres-pondentes processos (administrativo e judicial) estão regulamentados naLei 11.0 144/99, art. 31.0 ss. É nesta extradição passiva (dita passiva ape-nas pelo facto de o Estado,onde se encontra o cidadão, ser o Estadorequerido) que se coloca a necessidade de acautelar os direitos, 'as liberdadese as garantias individuais do cidadão reclamado por um outro Estado.

Desta necessidade de acautelar os direitos e as liberdades individuaisdo cidadão resultou a garantia jurisdicional da CRP, art. 33.°-6, segundoa qual «A extradição s6 pode ser determinada por autoridade judicial».

§ 430. Na extradição passiva, há duas fases: a primeira é admi-nistrativa, a segunda é judicial (Lei n." 144/99, art, 46.")..

Nos termos do n." 2 do referido ali. 46.0, a fase administrativa «é des-tinada à apreciação do pedido de extradição pelo Ministro da Justiça parao efeito de decidir, tendo, nomeadamente, em conta as garantias a quehaja lugar, se ele pode ter seguimento ou se deve ser liminarmente inde-ferido por razões de ordem política ou de oportunidade ou conveniência».

Se a decisão do Ministro da Justiça for de indeferirnento do pedidode extradição, o processo termina aqui, sendo arquivado (Lei n." 144/99,art. 48:-3).

, Se a decisão do Ministro da Justiça for de aceitação (deferimentoadministrativo), o processo de extradição passa à fase judicial,

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Titulo fl .- A Lei Penal: criação e aplicação 237

Como é referido pela Lei n." 144/99, ali. 24.°-1, é óbvio que «a deci-são do Ministro da Justiça que declara admissivel o pedido não vincula aautoridade judiciária». A competência para o processo judicial de extradi-ção é do tribunal da Relação «em cujo distrito judicial residir ou se encon-trar a pessoa reclamada ao tempo do pedido». Da decisão final é possívelrecorrer para o Supremo Tribunal de Justiça (Lei n.? 144/99, art. 49.0).

§ 431.- Retomando as situações possíveis (referidas no § 424), nocaso do agente que cometeu um crime no estrangeiro e, aí, foi conde-nado, tendo, porém, se subtraído ao cumprimento total ou parcial dapena, vejamos a situação em que o Estado, cujo tribunal proferiu acondenação, pede a Portugal a execução, cá, da sentença penal.

Neste caso, a sentença penal estrangeira pode ser executada em Por-tugal desde que se verifiquem as condições estabelecidas no art. 96.0 daLei n." 144/99. Destaco, de entre as várias condições, as previstas nasais. i) e j) do n." I e no n," 6. São as seguintes: que a duração da pena ouda medida de segurança, impostas pela sentença estrangeira, não seja inferiora um ano ou, tratando-se de pena pecuniária, o seu montante não seja infe-rior a quantia equivalente a 30 unidades de conta processual; que, tratando-sede pena ou medida de segurança privativa da liberdade, o condenado dê o seuconsentimento; sendo português o condenado (pelo tribunal estrangeiro), hálugar à execução da sentença, independentemente do seu consentimento, se,previamente, tiver sido concedida a extradição (para efeitos de procedimentopenal, uma vez que, como já referimos, não pode haver extradição de por-tugueses para efeitos de execução de sentença penal estrangeira).

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§ 432. Como é natural «a força executiva da sentença estran-geira depende de prévia revisão e confirmação, segundo O dispostono Código de Processo Penal e C> previsto nas alíneas a) e c) do 11.° 2do artigo 6: do presente diploma» (Lei 11.° 144/99, art. 100.0-1).

Segundo o CPP, art. 235.°, a competência para a revisão e confir-mação 'cabe ao Tribunal da Relação do último domicílio ou, na faltadeste, do lugar onde for encontrado o infractor. Caso não seja possíveldeterminar os referidos domicílio ou lugar, a competência é do Tribu-nal da Relação de Lisboa,

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TÍTULO I

INTRODUÇÃO E PROBLEMAS FUNDAMENTAIS

8.o CAPíTULO

OBJECTO, MÉTODO E FUNÇÕESDA TEORIA GERAL DO CRIME

I. Objecto

§ 433. Uma teoria geral do crime tem por objectivo a determinaçãoe definição das características,elementos ou categorias essenciais e comunsa todo e qualquer crime (homicídio,roubo, poluição, fraude fiscal, ete.), bemcomo a caracterização da relação recíproca entre estas categorias.

rr, Método

§ 434. O ponto de partida para a construção de uma teoria geraldo crime tem, lógica e metodolcgicamente, que ser o direito penalpositivo, i. é, a multiplicidade dos singulares crimes previstos e des-critos nas normas jurídico-penais vigentes.

Uma teoria geral do crime, que se queira útil, teórica e pratica-mente, não pode "esquecer" a realidade normativa jurídico-penal exis-tente; tem, pelo contrário, que partir dela, e ter presente, na elaboração

. da correspondente teoria geral, os princípios político-criminais que estãosubjacentes e que inspiram o direito penal positivo.

§ 435. A causa das "lacunas" das teorias gerais do crime, elabo-radas pelas escolas positivista-naturalista, normativista e finalista, terá sido

16·Dir. Penal

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242 Porre ff - Teoria Geral do Crime

o vício metodológíco de terem optado por partir de uma determinadamundividência ideológica, científico-natural ou filosófica, e, a partir dosrespectivos pré-juízos ou pressupostos sobre a realidade humana, teremtentado moldar esta realidade humana e a realidade normativo-social ejurídico-penal.

§ 436. Tendo como ponto de partida O direito penal positivo, O

método a utilizar na construção de uma teoria geral do crime deve sero método categorlal-classíflcatõrío e sequencial: a partir de um con-ceito básico (o conceito de acção ou comportamento humano) procederà .determinação das categorias que este substrato fundamental deve ter,para que possa ser qualificado como crime e, consequentemente, o seuautor possa ser punido com uma pena.

Este procedimento categorial-classificatório deve respeitar umaordenação lógica e teleologicarnente orientada pela junção da teoriageral do crime, que é a de servir de instrumento à decisão penal justado caso concreto. Assim, deve começar-se pela categoria com maiorextensão e menor compreensão até se chegar à última categoria que,necessariamente, terá maior compreensão e menor extensão. Pois que,a 'categoria ou característica posterior pressupõe, necessariamente, acategoria lógico-conceitual e material anterior, acrescentando a estauma nova especificação; daqui resulta que as sucessivas especifica-ções jurídico-penais da conduta humana, ao mesmo tempo que aurnen-tam a sua complexidade conceitual ou compreensão, necessariamenteque reduzem a sua extensão, i. é, o âmbito ou número das condutasabrangidas pela nova exigência especifica. Assim, p. ex., a categoriada ilicitude da conduta pressupõe, necessariamente, a categoria da tipi-cidade: pois, uma acção que não seja típica jamais poderá ser penal-mente ilícita; e a categoria da culpa pressupõe as categorias ou carac-teristicas da tipicidade e da ilicitude da conduta (acção ou omissão),pois que, se a conduta, apesar de típica, não é ilícita por existir umacausa de justificação, excluída fica a possibilidade metodológica dacategoria da culpa, dado não ter sentido falar-se de culpabilidade doagente relativamente a um facto justificado e, portanto, não ilícito.Deste modo, é adequada a utilização da metáfora da pirâmide comosímbolo geométrico da elaboração construtivo-dogmática da infracçãocriminal.

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Tiudo I - Introdução e problemas fundamentais 243

lU. Funções

§ 437. As funções ou vantagens da teoria geral do crime são várias.No plano prático da aplicação do direito penal ao caso concreto, é

factor de certeza e segurança jurídica, evitando a mera intuição, aimprovisação e a eventual arbitrariedade nas decisões judiciais; é 'tam-bém condição da igualdade )10 tratamento de casos criminais "idênti-cos"; e contribui, ainda, para a economia na análise, de casos práticos.

No plano didáctico, tem a vantagem de propiciar. uma visão deconjunto das características essenciais da infracção criminal, logo no iní-cio da disciplina sobre a Parte Geral do Código Penal. É evidente,corno é óbvio e comum a todas as Introduções, a impossibilidade de, logono início do estudo do direito penal, os alunos conseguirem uma plenacompreensão do sistema da infracção criminal.

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9.° CAPíTULO

BREVE REFEMNCIA À HISTÓRIADA EVOLUÇÃO DA TEORIA GERAL DO C~E

1 A teoria geral do crime positiva-naturalista ou:"clássica"

1. Exposição

§ 438. A primeira grande elaboração dogmático-sistemática docrime surgiu nos finais do séc. XIXlprincípios do séc. XX Os seus prin-cipais construtores foram Liszt e Beling. .

Como primeira, clara e bem estruturada teorização da infracçãocriminal, compreende-se a razão por que passou a ser designada porteoria clássica do crime. Esta teoria foi o ponto de referência e o pontode partida de todo o processo histórico de desenvolvimento e aprofun-damento da dogmática ou doutrina da infracção penal.

§ 439. Por outro lado, esta teoria surgiu num contexto histórico-cultural dominado pelo positivismo .e pelo naturalismo. Nesta segundametade do séc. XIX, a crença, quase absolutizada, nas ciências naturaislevou à' transposição, para as ciências e, portanto, p.ara o direito, doscritérios, conceitos e métodos científico-naturais. E, ~omo já foi refe-rido, quando procurámos caracterizar a chamada "Escola Positiva"(cf § 47 ss.), a este positivísmo naturalista juntou-se o positivismo juri-dico. Assim, natural foi que os primeiros grandes teorizadores da infrac-ção criminal tivessem sido influenciados por esta reinante rnundividên-cia; como natural e adequada foi, e é; a designação 'de positivista--naturalista aplicada a esta primeira teoria geral do crime.

§ 440. Segundo esta teoria, o fenômeno criminoso; i. é, o crime eraconstituído por quatro categorias: a acção, a tipicidade, a ilicitude e a culpa.

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TÚulo [ - Introdução e problemas fundamentais 245

A acção era o elemento-base ou denominador comum a todo equalquer crime (homicídio, furto, injúria, etc.). Esta acção era definidacomo movimento corporal, dependente da vontade e causador de umamodificação do mundo exterior, perceptível pelos sentidos.

A típlcidade da acção reduzia-se à descrição exclusivamente externo--objectiva da realização da acção. Donde que a tipicidade não envolviaqualquer juizo de valor (negativo) sobre a acção.

Acção típica era aquela cuja conformação objectivo-naturallsticacoincidia com a descrição formal-objectiva contida no tipo legal.

A ilicitude reduzia-se a um mero juizo formal de contrariedade àordem jurídica positiva, pois que se resumia à inexistência de uma qual-quer causa de justificação, ou seja, de uma norma jurídica que autorizassea:realização da acção típica (junção da perspectiva juspositivista à pers-pectiva naturalista).

A culpa consistia na mera relação psicológica existente entre oagente e o seu facto objectivo (concepção psicológica da. culpa).

2. Crítica

§ 441. Apesar da simplicidade e clareza linear desta primeira cons-trução ou teoria geral do crime, ela é, todavia, inaceitável, como ina-ceitáveis são os 'pressupostos positivístico-naturalistas e jurídicos de quepartiu.

'Quanto ao seu conceito de acção, ao reduzi-lo ao movimento cor-póreo e à modificação do mundo exterior, necessariamente deixava defora a omissão, não cumprindo assim a sua função de denominar comuma toda e qualquer modalidade de crime. Este conceito não servia, por-tanto, para os crimes de omissão.

Relativamente à tipicidade, também não podia aceitar-se a sua exclu-siva natureza formal-objectiva e sua completa neutralidade axiolágica.E ao excluir quaisquer elementos subjectivos do âmbito do tipo legal,levaria à parificação típica da acção do cirurgião e da acção do faquista.

Reduzir a ilícltude à mera inexistência de uma norma de autoriza-ção (causa de justificação) da modificação do mundo exterior equivaliaà afirmação' de um conceito objectivista do ilícito (relevando apenas odesvalor de resultado) e à definição positivista-legalista da ilioitudecomo mera antinormatividade. ou antijuridicidade formal.

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246 Parte /I - Teoria Geral do Crime

Também a redução da culpa à conexão psicológica entre o agentee o seu facto não podia vingar, pois que uma tal concepção faria comque os próprios inimputàveis pudessem ser considerados culpados, edeixaria, por outro lado, fora do âmbito da culpa a negligência incons-ciente, pois nesta espécie de negligência não há, pelo menos no momentoda prática do facto, qualquer conexão psicológica.

II. A teoria geral do crime normativísta ou "neo clássíca"

1. Exposição

§ 442. A reacção normativista contra a concepção naturalista docrime e das suas componentes fundamentou-se na filosofia dos valoresneokantiana, desenvolvida, nas primeiras décadas do séc. XX, nomea-damente pela chamada escola do sudoeste alemão ou escola de Baden(Rickert, Lask, etc.),

Defendendo esta filosofia a autonomia dos valores face à realidadeempírica, afirmava que esta só adquiria sentido quando referida e afe-rida pelos valores.

Considerando o direito como pertencente ao mundo dos valores oudo dever-ser, entendia que as categorias jurídicas não podiam deixar deser nonnativas ou valorativas.

Esta concepção norrnativista ou "neoclássica" (em que se destacouMezger) não pretendeu, nem operou uma alteração radical da concepçãopositivista-naturalistà; poder-se-à dizer que apenas procurou normativi-zar, isto é, atribuir um sentido ou conteúdo valorativo às categorias docrime consagradas pela escola positivista-naturalista,

§ 443. Assim, relativamente ao conceito de acção, os norrnativis- .tas mantiveram a concepção causalista da escola positivista-naturalista,continuando a considerá-la como comportamento humano modificadorda realidade exterior, embora tal modificação passasse a ser assumidacomo negadora de valores. Só que, constatando a impossibilidade dereconduzir a este denominador (causalista) a omissão, alguns autores(p. ex., Radbruch) propuseram a substituição do conceito de acção pelode realização do tipo legal.

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Titulo I - Introdução e problemas fundamentais 247

Os conceitos de tipicídade e de ílicitude deixaram de ser vistoscomo meramente objectivos, iniciando-se o processo de subjectiviza-ção e normativização do tipo legal e do ilícito: ao lado dos elementosobjectivos, começa a afirmar-se a existência de elementos subjectivos(p. ex., a intenção de apropriação no tipo de furto), e a ilicitude passade mera antijuricidade formal ou antinormatividade a antijuridicidadeou ilicitude material, isto é, a lesão dos bens jurídicos protegidos pelostipos legais.

Por sua vez, a concepção psicológica da culpa é substituída pela con-. cepção normativa da culpa, consistindo esta num juizo de censura ou

reprovação do agente por ter optado pelo ilícito quando podia e deviater optado pelo lícito. Esta culpa normativa pressupunha a irnputabili-dade do agente e a não verificação de uma situação de "inexigibili-dade" (categoria esta donde viriam a irradiar as causas de exclusão daculpa).

2. Crítica

§ 444. Apesar dos avanços .da teoria normativista na concepção dotipo legal, ao neste incluir também elementos subjectivos, e na concep-ção da ilicitude como danosídade social (lesão dos bens jurídicos pro-tegidos pelo tipo), o certo é que o ilícito permaneceu, essencial ou prin-cipalmente, definido pelo desvalor de resultado (concepção objectivistada ilicitude) e· a culpa, embora passasse a ser concebida em termosnormativos, misturava em si componentes psicológicas, como o dolonatural ou psicológico e a violação do dever objectivo de cuidado, comcomponentes normativas, como a imputabilidade e a "exigibilidade".

lH. A teoria geral do crime finalista

1. Exposição

§ 445. Se a concepção normatívista rejeitou várias das proposiçõesda escola positivista-naturalista, já a teoria finalista, criada por We1zel,veio, no pós-Il Grande Guerra, enfrentar e negar, radicalmente, todo oedifício da escola naturalista.

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o objectivo de Welzel foi o de encontrar umfondamento ontolàgicoe, portanto, pré-juridico e mesmo pré-social, que vinculasse o direito eo legislador lias suas próprias decisões.

§ 446. Segundo Welzel, o comportamento humano' é, por essência,a realização de uma finalidade: toda a acção humana é uma supra de-terminação final de um processo causal. Numa palavra, a característicaontológica da acção humana é a sua intrínseca finalidade.

A primeira conseqüência deste conceito (pretensamente) ontológicoda acção foi a de passar-se a considerar o dolo como elemento essen-cial do tipo legal, uma vez que o dolo é a finalidade referida aos ele-mentos objectivos do tipo. Até .então, quer a escolanaturalista quer anormativista consideravam o dolo do tipo ou dolo natural como um ele-mento da culpa.

Relativamente à ilícítude, esta passou, logicamente, a ser definidaapenas pelo desvalor de acção.

Também em matéria de autoria, esta concepção finalista teveinfluência, pois que, segundo ela, é autor quem tem o domínio final dofacto, e não apenas o que execute materialmente o facto,

2. Apreciação

§ 447. Se parece indiscutível que a teoria finalista con trib uiudecisivamente para o avanço da teoria do crime, nomeadamente naaquisição do conceito de ilícito pessoal, ao trazer para o âmbito do ilí-cito a negligência (enquanto violação do dever objectivo de cuidado) eo dolo (enquanto dolo da factualidade típica), também não deixa de serverdade que tal teoria, na sua ortodoxia, é passível de várias críticas.

Entre outros pontos, é de destacar o facto de a teoria finalistanão conseguir explicar os crimes negligentes, onde, por definição,não existe a tal característica da finalidade, nem os crimes de omis-são, pois que nestes não existe qualquer actividade causal, finalistica-mente orientada.

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10.0 CAPÍTULO

O CONCEITO NORMATIVO-SOCIAL DE ACÇÃOE AS SUCESSIVAS CATEGORIAS JURÍDICO-PENAIS

CONSTITUTIV AS DO CRIME

I. O conceito normativo-social de acção

1. A dupla função do conceito de acção: negativa e positiva

§ 448. Só pode servir e ser assumido, como conceito base da teo-ria geral do crime, um conceito de acção que desempenhe, simultanea-mente, uma função negativa ou de exclusão e uma função positiva oude ligação.

Em primeiro lugar, o conceito de acção há-de poder funcionar comocritério de exclusão dos factos que devam ser considerados, jurídico-

. -penalmente, irrelevantes. Isto é, que não podem ser objecto de uma valo-ração jurídico-penal e, portanto, não podem ser tipificadas legalmente.Estão, neste caso, as meras decisões interiores, os actos reflexos, osactos executados em estado de absoluta inconsciência e os actos. reali-zados sob força irresistíve1.

Em segundo lugar, um conceito de acção, que pretenda constituir-se como substrato autónomo, genus proximum e denominador comumde todo e qualquer um dos crimes da parte especial do Código Penal eda legislação penal avulsa, tem de ter um sentido que, embora pré-jurí-dica, seja comum tanto aos tipos de crime dolosos como aos tipos decrime negligentes, tanto aos tipos de crime activos como aos. tipos decrime omissivos.

§ 449. Como se viu (cf § 438 ss.), nem o conceito causalista deacção (comum à teoria positivista-llaturalista e à teoria normativista),

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250 Parte lf - Teoria Geral do Crime

nem o conceito finalista de acção desempenhavam esta dupla função,nomeadamente a função positiva ou de ligação.

Com efeito, o conceito causal deixava, claramente, de fora os cri-mes de omissão, enquanto o conceito finalista não só não abrangia os cri-mes de omissão (pois nestes não há um processo causal) como tam-bém não podia constituir o substrato dos crimes negligentes, pois quenestes falta, por definição, a finalidade.

2, O conceito normativo-social de acção

§ 450. Pensamos que esta dupla função - negativa ou de exclu-são e positiva ou de ligação - é realizada pelo conceito normativo-social de acção ou conduta humana.

. A sociedade não considera relevantes, isto é, não valera negativa-mente os actos que são absolutamente incontroláveis pela vontadehumana, tal como não censura os actos praticados pelos animais ou osdanos causados por fenômenos naturais. Apenas lamenta os seus even-tuais resultados socialmente nocivos e procura remediá-los e prevenir asua repetição.

§ 451. Em segundo lugar, as normas jurídicas, nomeadamente aspenais, têm uma função de motivação e de determinação das con-dutas humanas (proibindo umas acções e impondo outras). Ora, estafunção de orientação "coactiva" das condutas humanas só tem sentidona medida em que pressupõe uma capacidade mínima de acção. Ou seja:o que é absolutamente incontrolável pela vontade não é objecto danorma jurídica de determinação, não pode ser objecto da norma jurídico--penal.

Assim, p. ex., aquele que.não sabe nadar (nem tem a obrigação desaber) não incumpre a norma que manda salvar do afogamento a criança(mesmo que seja filha), que se encontra em risco de morrer afogada.Socialmente, só é reprovada a omissão de salvamento, quando O emitentesabe nadar (ou tinha a obrigação de saber).

Portanto, a incapacidade absoluta de acção exclui a reprovaçãosocial da omissão. E excluída a reprovação social (i. é, a reprovaçãosegundo os critérios éticos-sociais), excluída fica, a priori, a reprovaçãojurídica em geral, e jurídico-penal em especial, da omissão, Quer dizer: a

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Título I - Introdução e problemas [undamentais 251

exclusão da reprovação social exclui que jamais esta omissão possa ser,'jurídico-penalmente, considerada como típica.

O mesmo se aplica aos casos de acções absolutamente incontro-láveís pela vontade, como os puros actos reflexos, os actos praticadosem estado de total inconsciência (p. ex., sonambulismo) e os actos sobcoacção absoluta ou força irresistivel (vis phisica absoluta).

Tanto naquelas "omissões" como nestas "acções", pode dizer-se,utilizando a terminologia da filosofia escolástica, que se trata de "actosde homem" e não de "actos humanos", ou seja, não estamos diante decomportamentos humanos.

§ 452. Um terceiro argumento em favor da relevância e prestabi-lidade do conceito normativo-social de acção ou conduta humana, comoconceito pré-jurídico que constitui o denominador comum próximo ousubstrato das qualificações jurídico-penais da tipicidade, ilicitude e cul-pabilidade (quer se trate de crimes activos ou ornissivos, quer de crimesdolosos ou negligentes), é-nos dado pela figura ou principio da ade-quação social. Este princípio - seja considerado como causa de exclu-são ou, rectius, de negação da tipicidade, ou como critério de interpre-tação restritiva do alcance formal-objectivo do tipo legal - significa edemonstra que não podem ser consideradas como abrangidas pela normapenal e, portanto, não podem ser qualificadas como típicas as condutas(acções ou omissões) que não tenham relevância social negativa. Ou seja:é pressuposto mínimo da tipificação jurídico-penal (da tipicidade) a ina-dequação social da conduta (activa ou omissiva), i. é, a sua reprovaçãosocial. Donde que o conceito normativo-social desempenha a funçãonegativa ou de exclusão, do âmbito do jurídico-penal, de todas asacções ou omissões, que não sejam socialmente. inadequadas, i. é, quenão-sejam ético-socialmente reprovadas.

§ 453, Por 'outro lado, este conceito social de acção em sentidoamplo (que é sinónimo de conduta ou comportamento humano e, portanto,compreende também a omissão) é aplicável a qualquer modalidade decrime (de acção ou de omissão, doloso ou negligente), e, portanto, cum-pre.a função positiva ou de ligação que se exige a um conceito pré-jurí-dico de acção, para que possa ser considerado e assumido como conceitobásico da construção categoria! da infracção penal ou crime.

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252 Parte li - Teoria Geral do Crime

A inadequação social da conduta é pressuposto e denominadorcomum da qualificação-tipificação jurídico-penal de toda e qualquerconduta e, portanto, realiza a função positiva ou de ligação tanto nos cri-mes de acção como nos de omissão, tanto nos crimes dolosos comonos 'negligentes.

i § 454. Em quarto lugar, o próprio princípio polítíco-críminal daexigência da "dignidade penal" (dimensão axiológica) do bem, interesseou valor, para que este possa ser qualificado como bem jurídico-penal(cf <IA definição dos bens jurídico-penais e o conceito material docrime" - §§ 66-72), vai no sentido da relevância do conceito social daacção como conceito prévio mas condicionante ou pressuposto da qua-lificação de uma determinada conduta humana como acção ou condutapenalmente típica.

Na verdade, o conceito e a exigência de "dignidade penal" de umbem, para poder ser qualificado como bem jurídico-penal e, portanto, parapoder ser objecto de protecção por um tipo legal, apela ao critério da rele-vância ético-social do bem jurídico e da gravidade da modalidade daconduta que o pode lesar 0\1 pôr em perigo. Donde que, seé pressupostoda qualificação legal (da sua tipicidade) de um bem como bem jurí-dico-penal, então também a qualificação (típica) de uma conduta comocrime também terá de ter como pressuposto, como conditio sine quanon, a sua inadequação social. Isto é, a tipificação legal de urna con-duta pressupõe uma valo ração social negativa.

A decisão legislativa, criadora do tipo legal, "apenas" vai selec-cionar, de entre as condutas negativamente relevantes, segundo o crité-rio ético-social (socialmente inadequadas), aquelas que, peta sua maiordanosidade social (em função da importância do bem jurídico e da gra-vidade da modalidade da conduta), devem ser tipificadas criminalmente.

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§ 455. Assim, em minha opinião, parece haver uma certa contra-dição quando, na sequência de Gallas (La teoria dei delitto en SII

momento actual, 1959), se nega a existência de um autónomo conceitode acção.ique possa servir de fundamento a toda a construção do con-ceito de crime, afirmando-se que, ao invés, «a doutrina da acção deve,na construção do conceito de facto punível, ceder a primazia à doutrinada acção típica ou da realização do tipo de ilícito», e, na sequência

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desta inversão teleológica, se atribui à acção apenas <(8 função de inte-grar;no âmbito da teoria do tipo, o meio adequado de prospecção daespécie de actuação da conduta típica» (31).

Disse que estas afirmações me parecem envolver uma certa con-tradição. Pois que, se o conceito de acção não tem qualquer autonomia(só a tendo o tipo ou a "acção típica"), então como pode o conceito deacção servir para determinar o alcance normativo do tipo legal?

O próprio Fígueiredo Dias, ao reconhecer ao princípio da adequa-ção social o papel de critério interpretativo restritivo do âmbito do tipolegal, está, em minha opinião, a reconhecer, pelo menos implicitamente,que o critério social da acção tem autonomia e consistência prê--jurídíca, prê-típíca,

Pois: o que não tem consistência própria, o que não tem autonomianão pode funcionar como critério de interpretação; não pode, por outraspalavras, ser critério de valoração (ou seja, de decisão sobre Q que deve,ou não, ser considerado abrangido pelo tipo legal), mas apenas objectode valoração.

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§ 456. Em quinto lugar, a afirmação de que a primazia cabe ao tipolegal, negando-se, ao mesmo tempo, qualquer autonomia e consistênciaao conceito nonnativo-social de acção, parece-me poder gerar o equivocode se aceitar um conceito positivista-Iegalista de crime.

Ora, em minha opinião, o tipo legal nem é completamente autónomoou desvinculado do conceito social de acção ou comportamento humano,como o prova a figura da (in)adequação social, nem é um posterius oumera expressão ou rnostração do ilícito. Pois não pode esquecer-se quea decisão criminalizadora de uma conduta e, portanto, o tipo legal pres-supõe, não apenas a "dignidade penal" do bemjurídico e da respectivaconduta (que o lesa ou põe em perigo), mas também a "necessidadepenal", isto é, a consideração da indispensabilidade do recurso à sançãopenal para a tutela do respectivo bem jurídico e para a punição da cor-respondente conduta que O lese ou ponha em perigo.

Donde resulta que a decisão legislativa criadora do tipo legal éco-constitutíva do ilícito penal. Isto é, não basta a ilicítude in se

(JI) Assim, FlGUElREDO DIAS, Direito PelWI, 1..' ed., Colrnbra Editora, pp, 259-260.

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254 Parte fI - Teoria Geral do Crime

("dignidade penal") de uma conduta, mas é ainda necessária a decisãolegislativo-tipificadora da conduta que, implicitamente, significa a ine-xistência de alternativas à criminalização. Esta decisão legislativo-tipi-ficadora, conquanto não possa ser arbitrária, é, todavia; discricionária,embora vinculada a critérios políticos-criminais, nomeadamente ao prin-cipio da intervenção mínima do direito penal.

§ 457. Pr imeira conclusão: o tipo legal ou "acção típica" não éautónomo, não é independente do conceito social (pré-juridico) de acção,mas é condicionado pelo. critério ético-normativo-social da reprovação daacção ou conduta humana.

Segunda conclusão: o tipo legal não é apenas turra mera expressãoformal-legal do ilícito penal (ao qual coubesse apenas uma função degarantia do cidadão), mas é também co-consitutivo do ilícito penal. Por-tanto, o tipo legal (a decisão legal-tipificadora) nem é apenas a ratio cog-noscetidi da ilicitude penal (como afirmava a "teoria do tipo indíciador"),nem é a ratio essendi da ilicitude (como o afirmava a "teoria dos elementosnegativos do tipo"), mas é co-constitutivo do ilícito penal, Neste sentido,além das considerações já feitas, vai a própria afirmação de que, em teo-ria ou princípio, não há injunções constitucionais de crirninalização.

§ 458. São duas, portanto, as componentes do tipo legal:. a ilici-tude material in se da conduta (socialmente desvaliosa) e a tipificaçãolegal dessa conduta. Estas duas componentes ou categorias (a materiale a legal) contribuem igualmente pata a criação do ilícito penal: arnbassão pressupostos e elementos ou categorias constitutivas do ilícito penal.

Esta a razão porque não partilho as afirmações de que o tipo legaldesempenha apenas uma função jurídico-política de garantia individualdo cidadão, ou de que o tipo legal é um posterius relativamente ao ilícito,ou de que o tipo se reduz à mera "tipicização" ou "mostração" do ilícito.

§ 459. Como já foi referido, também a omissão pode constituir urnaconduta ou comportamento humano socialmente relevante. A relevância nor-rnativo-socialmente negativa da omissão radica, como é óbvio, não na omis-são em si mesma, mas na não prática da acção ético-socialmente imposta.

Ora, a relevância socialmente negativa da omissão, i. é, a repro-vação normarivo-socíal da omissão da acção é a condição pré-jurídica

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Titulo I - Introdução e problemas fundamentais 255

da relevância típica da omissão. Isto é, a tipificação legal da omissão(de uma determinada acção) pressupõe que, no plano e critério norma-tive-sociais, fosse exigivel a prática da respectiva acção.

Quer a acção quer a omissão (de urna determinada acção socialmenteesperada e imposta) são condutas ou formas do comportamento humano.

É, portanto, de discordar da afirmação de que a relevância social daomissão se fundamenta e resulta da imposição jurídica da acção (32). Emminha opinião, éprecisamente o contrário, ou seja: só porque a omis-são de determinada acção é socialmente relevante (é valorada negati-vamente) é que pode também ser jurídico-penalmente relevante e, por-tanto, típica. Que a omissão de determinada acção, socialmente desejadaou imposta, venha, ou não, a ser jurídico-penalmente imposta e, portanto,tipificada, é algo que depende da importância do bem jurídico em perigo,da relação entre o omitente e o titular do bem em perigo e, obviamente,da decisão do legislador sobre a "necessidade 'penal" e também-da con-sideração de que uma excessivamente alargada criminalização das omis-sões de acções (posto que socialmente desejáveis) poderia causar maio-res danos do .que aqueles que o direito penal visa prevenir. Diga-seque, em minha opinião, esta última válida consideração não justificaque se afirme que as normas jurídico-penais impositivas de determina-das acções (adequadas a evitar a lesão de bens jurídicos em perigo)desempenham um papel político-criminal "secundário ou subordinado",como, p. ex., o qualifica Figueiredo Dias (33). Se assim fosse, então teria-

. mos de considerar descabida a equiparação geral, nos crimes de resul-tado, da omissão (da acção adequada a evitar o resultado) à acção (ade-quada a produzi-lo), estabelecida no n." 1 do art. 10.0 do Código Penal.

§ 460. Conclusão final: .considero que o conceito normativo-socialde conduta ou comportamento humano (que compreende tanto a acçãocomo a omissão) é um conceito pré-jurídico, que desempenha, adequa-damente, as funções negativa de exclusão e positiva de ligação. É, por-tanto, o conceito base de toda e qualquer modalidade de crime (activo

(l2) Assim, FIOUEIRWODIAS, Direito Penal, cit., 2007, p. 256: «a acção "espe-rada" só o é através de uma 'imposição jurídica de acção que nasce do tipo".

(ll) Temas Básicos, 2001, p. 218.

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256 Parte 11 - Teoria Geral do Crime

ou omissivo, doloso ou negligente), susceptível das qualificações jurídico--penais da tipicidade, ilicitude e culpa. .

H. Tlplcidade, ilícítude e causas de justificação

1. A relação entre tlpicidade e ílicltude

§ 461. Como já referi, o tipo legal não desempenha apenas umafunção de garantia do cidadão (tipo-garantia, exigido pelo principio- dalegalidade penal e, em última análise, pelo Estado de Direito), mas cum-pre também a função político-criminal de protecção dos bens jurídico--penais, através da motivação proibitiva (de determinadas acções) ouimpositiva (de certas acções adequadas a evitar a lesão de bens jurí-dicos). E o tipo legal (decisão legislativa tipificadora) é ainda, sob oponto de vista dogmático, co-constítutivo do illcito criminal.

§ 462. Nesta linha, dissemos que o tipo legal nem era um poste-rius relativamente ao ilícito penal, como também não é um prius em rela-ção ao ilícito. É que são pressupostos da criminalização de uma con-duta, isto é, são pressupostos da criação de um tipo legal a "dignidadepenal", i. é, a ilicitude material in se da conduta lesiva de um relevantebern jurídico, e a "necessidade penal", ou seja, a decisão discricionáriadolegislador sobre .a inexistência de alternativas jurídicas não penais àcrirninalização-tipificação da conduta,

Com efeito, a partir da consagração do Estado de Direito, não maissão possíveis os "crimes naturais", os crimes in se proibidos. A partirde, então, a decisão legislativa criadora do tipo legal (i. é, criminaliza-dora) é, também por força do princípio polltico-criminalda "necessidadepenal" ou da intervenção mínima do direito penal, co-constitutiva doilícito penal. Assim, em abstracto, uma conduta (acção ou omissão)típica é também ilícita.

2, A complementaridade material e funcional do tipo legal (outipo incriminador) e das causas de justificação (ou tipos jus-tificadores)

§ 463. Sucede, porém, que o direito penal não é uma ciência abs-tracta, mas concreta: o direito penal, como qualquer ramo do direito,

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Tttulo I - Introdução e problemas fundamentais 257

existe para se aplicar às concretas situações da vida social. E estassituações ou .casos concretos podem apresentar-se como relativamentesimples ou como realmente complexas. Assim, p. ex., a destruição damontra de um estabelecimento de produtos anti-mcêndio tanto pode serum acto de puro vandalismo (tipo deilícito de dano - CP, art. 212.°),como, opostamente, pode ser um meio de salvamento solidário de umedifício (ou de uma pessoa encarcerada num automóvel que se incendiou)que corre o risco de ser devorado 'pelo ·fogo.

Quer isto significar que um facto que, em principio, i. é, emabstracto,. constitui um tipo de ilícito, pode, em concreto, porforça das circunstâncias em que é praticado, transformar-se numfacto justificado, aprovado pela ordem jurídica e, portanto, não ill-dto.

Tal acontece, sempre que o facto "formalmente típico seja prati-cado numa situação a que uma norma' jurídica (penal ou não penal)atribua eficácia justificante. Seja o caso, p. ex., da norma sobre a legí-tima defesa (CP, art, 32.°) ou sobre o direito de necessidade (CP,art. 34.°).

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3. A autonomia dogmática, político-criminal, sistemática e prá-tico-processual da tipícidade face à ilicitude

.§ 464. A circunstância de o juízo de ilicitude criminal sobre umfacto concreto obrigar à consideração quer da tipicidade do facto (da suasubsunção ou coincidência com a factualidade típica) quer das causas dejustificação (i. é, da inexistência destas) em nada se opõe à afirmação daautonomia dogmática, político-criminal, sistemática e jurídico-proces-sual da tipicidade face à ilicitude.

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i§ 465. Sob o ponto de vista dogmático e político-criminal,

parece claro que a primeira qualificação jurídico-penal da conduta éa sua tipicidade. Na verdade, o legislador, ao criar os tipos legais,está a seleccionar, de entre as condutas socialmente danosas', aquelasque quer evitar, através dos meios reforçados ou mais graves, que sãoas penas. E, nesta medida, está, simultaneamente, a "indicar" à socie-dade e a cada pessoa quais os valores ou bens jurídicos que são consi-

derados fundamentais para a realização pessoal e para a vida social.I1~Dir.PClIal

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258 Parte Jl - Teoria Geral do Crime

Assim, conduta (acção 0\1 omissão) típica é, necessariamente, uma con-duta que lesa ou põe em perigo um desses valores fundamentais (um bemjurídico-penal).

§ 466. Segundo o critério sistemático, também a característica oucategoria da tipicidade tem prioridade lógica e metodológica sobre ada Ilicltude. Com efeito, só depois de se analisar e concluir pela tipici-dade da conduta é que tem sentido averiguar da eventual exclusão da ilí-citude da conduta que, no plano formal 0\1 abstracto, é uma conduta típica.

A averiguação da causa de justificação só tem sentido depois da con-clusão de que a acção praticada é subsumível a um tipo legal de crime.Parafraseando Welzel (embora sem aderir às suas posições em matériade erro sobre os pressupostos das causas de justificação), praticar umaacção não descrita num tipo legal (p. ex., matar uma mosca) não obrigaà consideração de uma eventual causa de exclusão da ilicitude, enquantoque praticar uma acção típica (p. ex., matar uma pessoa) pode obrigarà consideração da eventualidade da existência de uma causa de exclu-são da ilicitude do homicídio (a legítima defesa).

Por outro lado, enquanto que os tipos legais (e, portanto, a tiprci-dade) só podem constar de uma lei penal, já as causas de exclusão da ili-citude penal podem constar de normas jurídicas extra-penais, e, portanto,não sujeitas, na sua criação, ao princípio da reserva de lei (nem aos pos-tulados da "precisão descritiva" e da "proibição de aplicação analógica").

§ 467. No plano prático-processual, a questão da (exclusão da)ilicitude do facto só é apreciada depois de se ter analisado e concluídopela tipicidade ela conduta.

Tal como não tem sentido abordar-se a questão da culpabilidade doagente sem, previamente, se ter concluído pela ilicitude do facto, tam-bém seria irrazoável analisar-se a eventual exclusão da ilicitude penaldo facto antes de se saber se o facto em causa é, jurídico-penalmente,típico:

4. Desvalor de acção e desvalor de resultado

§ 468. Vimos que, para a teoria posítívísta-naturalísta e tam-bém para a teoria normatívísta, a ilicitude era definida pelo "desvalor

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Tttulo { - Introdução e problemas [undamentais 259

de resultado" e O ilícito era constituído pelo resultado desvalioso,Defendiam, portanto, uma concepção objectivista da ilicitude. Esta con-cepção teve consequências práticas importantes, p. ex., em matéria de.legitima defesa, em que foi, durante muito tempo, afirmada a legítimadefesa mesmo contra investidas ou ataques de animais!

§ 469. Com a teoria' finallsta, operou-se uma alteração radical,passando a ilicitude a ser. definida apenas pelo "desvalor de acção"e o ilícito penal a ser reduzido à acção desvaliosa, O resultado des-valioso seria considerado como mera condição objectiva de punibili-dade e, portanto, como estranho ao ilícito que era constituído apenaspela acção desvaliosa, Defendia, portanto, uma concepção subjecti-vista da ilicitude, iniciando o processo da consideração do ilícitopenal como ilícito pessoal. Na sequência desta inversão, operada pelateoria finalista de Welzel, alguns autores (p. ex., Zielinski) chegaramao extremo de identificar o desvalor de acção com o desvalor daintenção .

§ 470. O entendimento correcto é o de que tanto o desvalor deacção como o desvalor de resultado pertencem ao ilícito, são com-ponentes do ilícito.

Na verdade, quando o legislador, através dos tipos legais, proibe ouimpõe determinadas condutas, fá-lo- com o objectivo de prevenir, evitardeterminados resultados (lesões ou colocação em perigo de lesão deter-minados bens jurídicos).

Isto não significa que não possa haver um ilicito ou tipo de ilícitosem haver desvalor de resultado. Pois que, na verdade, o legislador, porvezes, com a preocupação de conceder uma protecção reforçada e ante-cipada de determinados bens jurídicos.rconstrói os tipos legais sem exi-gir a ocorrência do resultado (cuja evitação continua a ser a razão do tipolegal). Tal é o caso dos chamados crimes formais ou de mera conduta

. (mera acção ou mera omissão).O que nunca pode haver é ilícito sem desvalor de acção ou de

omissão, i. é, sem· acção ou omissão dolos as ou violadoras do deverobjectivo de cuidado.

Donde a conclusão: sem desvalor de acção não há ilícito, emborapossa haver ilícito sem haver desvalor de resultado.

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260 Parte II - Teoria Geral do Crime

Ifl. A culpa jurídico-penal

§ 471. A terceira e última categoria jurídico-penal da teoria geraldo crime é a culpabilidade do agente do facto típico e ilícito (tipo de ilí-cito). Para que haja crime é necessário que a conduta, que constitui umtipo de ilícito (seja activo ou omissivo, doloso ou negligente), possaser censurada, ético-pessoalmente, ao seu autor a título de culpa.

§ 472. Este juizo de culpabilidade jurídico-penal pressupõe a capa-cidade de o agente avaliar a ilicitude (a negatividade ético-social) da suaconduta e de se decidir de acordo com essa avaliação (CP, art. 20.°-1).Por sua vez, esta capacidade de avaliação e de decisão pressupõe umdeterminado desenvolvimento e maturidade psicológica, mental e sócio- .-cultural. E, assim, se compreende que, no geral," os códigos penaisestabeleçam uma presunção (absoluta) de insusceptibilidade de culparelativamente aos menores de certa idade (no nosso Cl', art. 19.°, osmenores de 16 anos).

§ 473. Esta capacidade de avaliação da ilicitude do facto e de deci-são constitui apenas o pressuposto do Juizo de culpa jurídico-penal, e nãoo conteúdo material desta. O conteúdo material da culpa jurídico-penale, portanto, aquilo que se censura ao agente do facto típico-ilícito é a suaatitude ético-pessoal de oposição, indiferença ou de descuido peranteo bem jurídico-penal lesado ou posto em perigo pela sua conduta.

§ 474. Consoante a atitude pessoal do agente perante o tipo de ilí-cito cometido, são duas as espécies ou tipos de culpa: a culpa dolosa ea culpa negligente.

A culpa dolosa é constituída pela atitude ético-pessoal de oposiçãoou indiferença perante o bem jurídico-penal lesado ou posto em perigopela conduta. É manifesto que esta culpa dolos a (ou dolo ético) pres-supõe o dolo psicológico ou dolo do facto típico, i. é, pressupõe e coen-volve a representação e vontade de realização do facto descrito no tipolegal de crime.

A culpa negligente consiste na atitude ético-pessoal de descuido naprática de factos que contêm o risco de lesarem ou porem em perigo bens. .jurídico-penais.

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TItulo [ - Introdução e problemas [undanientais 261

§ 475. Esta concepção pessoal da culpa jurídico-penal (defendidapor Figueiredo Dias) torna compreensível a exclusão da culpa nas situa-ções tradicionalmente designadas e englobadas na figura da "inexigibi-lídade", nomeadamente no estado de necessidade desculpante .

Na verdade, no estado de necessidade desculpante, não pode dizer-se que o agente não optou "livremente" pelo ilicito, i. é, não exerceu malo seu livre-arbítrio ou liberdade da vontade. Pois que, colocada a ques-tão da culpa no plano da liberdade da vontade, ou seja da opção cons-ciente pelo facto não justificado (logo, ilícito), ele decidiu-se, efectiva-mente, por este facto, quando podia não ter feito tal opção. Só que,colocada a questão da culpa jurídico-penal na posição ou atitude pes-soal do agente perante o bem jurídico-penal lesado (que era tão ou maisimportante que O bem salvaguardado), não pode dizer-se que o agente,nessa situação de necessidade, tenha revelado urna atitude pessoal de indi-:ferença perante o bem jurídico sacrificado.

§ 476. Diga-se, porém, que, embora se considere razoável aexclusão da culpa, nestas situações de estado de necessidade desculpante(bem como nos casos de excesso de legítima defesa asténico não cen-surável ou de conflito de deveres desculpante), já não me parece ade-quada a designação de "inexigíbilidade ", bem como os termos utili-zados pelo CP, art. 35.°.1: «quando não 'for razoável exigir-lhe, segundoas circunstâncias do caso, comportamento diferente». É que, por umlado, o juizo de ilicitude penal sobre um facto é um juizo que nãopode deixar de ter em conta as circunstâncias concretas do caso, eque pressupõe que estas circunstâncias não têm a relevância paraexcluírem a ilicitude penal do respectivo facto. Logo, se as circuns-tâncias concretas, em que o facto foi praticado, forem tais que levema que se considere razoável a práticado facto típico, então o que seexcluiria não era apenas a culpa mas, já antes, a própria ilicitude dofacto.

Daqui a conclusão de que o CP, art. 35.°-1, em vez de dizer «nãofor razoável exigir-lhe [... ] comportamento diferente», devia estabelecer«não for censurável [... ) o comportamento adoptado».

Dizer que o facto praticado é ilícito e ao mesmo tempo afirmarque não era razoável exigir um facto diferente é uma contradição. Poisque é o mesmo que dizer que um comportamento razoável é ilícito.

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262 Parte 11 - Teoria Geral do Crime

IV. Os. "pressupostos adicionais da punibilídade"

§ 477. As características ou categorias jurídico-penais de todo equalquer crime são a tipicidade, li ilícitude e a culpa, Assim, umaconduta (activa ou ornissiva, dolosa ou negligente) que seja típica, ilícitae culposa é, no geral, punível. Pode, contudo, suceder - e sucede -que, em certos casos, o legislador estabeleça que, além dos pressupos-tos essenciais, comuns e (no geral) suficientes para a punibilidade do facto(que são a tipicidade, a ilicitude e a culpa), se tenham de verificar deter-minadas circunstâncias. É a estas eventuais circunstâncias que se cos-tuma chamar "pressupostos adicionais da punibilidade".

Porém, em nosso entender, estes eventuais pressupostos nãojusti-ficam que se possa construir uma nova categoria dogmática do crime(e, portanto, da teoria geral do crime) que seria a da punibilidade.Categoria que, para o ser, teria de ter consistência, autonomiae de sercomum a todo e qualquer crime. Pois, só na medida em que for comuma todo e qualquer crime é que se pode configurar como categoria da teo-ria geral do crime.

§ 478. A decisão sobre a existência, ou não, de uma tal categoriada punibilidade pressupõe que se analisem quais são os referidos pres-supostos adicionais da punlbilídade que levam a que alguns autores(p. ex., Figueiredo Dias) falem e defendam a criação da categoria da puni-bilidade, que acresceria à categoria da culpa e que, portanto, constitui-ria mais um (novo) pressuposto da susceptibilidade de ao agente dofacto (típico, ilícito e culpas o) ser aplicada uma pena.

§ 479. À partida, devemos excluir os pressupostos processuais oucondições de procedibilidade (p. ex., a exigência de apresentação dequeixa), pois que é evidente que tais pressupostos são apenas condi-ções da efectivação da responsabilidade penal dos agentes de factospuníveis (crimes), através do respectivo processo. Também é de excluira exigência de que, no caso de crime cometido no estrangeiro, o agentese encontre em Portugal (art. 5."-l-a) 5S.), uma vez que, contraria-mente à sua tradicional qualificação como condição objectiva de puni-bilidade, do que se trata é. de um pressuposto ou condição de procedi-bilidade (cf § 398).

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Thulo I ~ lntrodução e problemas [undatneruals 263

§ 480. Folheando o Código Penal (e a legislação penal avulsa,como, p. ex., o Dec.-Lei n." 316/97, art. 11."-5), verificamos que hádeterminadas circunstâncias a que a lei penal atribui o efeito de condi-cionar a punibilidade de determinados factos.

Mas há que não descurar que este efeito condicionante tanto podeser positivo como negativo: isto é, umas vezes a circunstância, referidano tipo legal, é condição (positiva) da punibilidade; outras vezes, a cir-cunstância é obstáculo (condição negativa) à punibilidade,

§ 481. Ora, relativamente às condições negativas ou obstáculosà punibilidade do facto, há que ter em conta que o legislador utiliza aexpressão «o facto não é punível» -nurn sentido muito amplo: umasvezes, no sentido de uma mera exclusão da punibilidade do facto (ilícitoe culposo); outras, no sentido de exclusão da culpa; outras, ainda, no sen-tido de exclusão da própria ilicitude.

Assim, no caso da prova da verdade dos factos que, embora lesi-vos da honra, foram imputados com o objectivo .da realização de um inte-resse público (art, 180.0-2-b)), do que verdadeiramente se trata é de urnacausa de exclusao da ilicitude da divulgação, e não de uma circunstânciaque apenas exclua a puníbilidade, permanecendo a divulgação como ilí-cita e culposa. Isto, apesar de a lei dizer: «o facto não é punível».

O mesmo se' aplica à coacção com o fim de evitar o suicídio(art. 154.0-3-b)), onde a expressão «o facto não é punível» não significaapenas a exclusão da punibilidade, mas' deve ser entendida como exclu-sdo da própria ilicitude da coacção. E também o mesmo se verifica nasituação prevista rio art .. 151.°-2: «A participação em rixa não é punívelquando [... ] visar separar os contendores»,

§ 482. Por sua vez, no crime de. favorecimento pessoal, a cir-cunstância de a lei (art. 367.o-5-b) dizer que não é punível o favoreci-mento pessoal realizado por cônjuge, etc., não' significa que não sepossa e deva entender que a relação matrimonial constitui uma causa dedesculpação, em vez de uma mera exclusão da punibilidade.

§ 483. Consideremos, agora, os casos da desistência da tenta-tiva (art, 24."-1) ou do arrependimento activo (art. 24."-2 e art. 25.°) edo pagamento do valor do cheque dentro de determinado prazo (Dec.--Lei n." 316/97, art. 11."-5).

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264 Parte Jl - Teoria Geral do Crime

No caso da desistência da tentativa ou do arrependimento activo, oCódigo Penal estabelece que a tentativa deixa de ser punível; no caso dopagamento do valor do cheque, a lei estabelece a extinção da respon-sabilidade criminal da emissão do cheque sem provisão.

Ora, em minha opinião, a razão que leva à não punibilidade da tenta-tiva e à extinção da responsabilidade criminal do crime de emissão de che-que sem provisão é a razão político-criminal pragmática de protecção dosbens jurídicos (ou da reparação da sua lesão). Em ambos os casos, o queo legislador pretende é que, apesar da ilicitude criminal do facto e da culpado agente (do crime tentado e do crime consumado de emissão de chequesem provisão), o bem jurídico acabe por ser preservado (ou, pelo menos, nocaso de cornparticipação, o agente se esforce por preservá-lo) ou o danoacabe por ser espontaneamente reparado (no caso da emissão de cheque).

Acresce a este objectivo a consideração, também político-criminal,de que, apesar de os factos praticados (a tentativa e a emissão de che-que sem provisão) não poderem deixar de ser considerados ilícitos, cul-posos e, portanto, em si puníveis, todavia o comportamento posterior(a desistência, o arrependimento activo e o pagamento do valor do che-que) torna desnecessária a efectiva aplicação da respectiva pena.É que, com este comportamento posterior, deixou de se afirmar a neces-sidade preventivo-geral e especial da pena.

Donde a minha afirmação e conclusão de que a não "puníblli-dade" (rectius, em meu entender, a não responsabilização penal doagente), nestes casos, fundamenta-se na não verificação da necessidadepenal e não numa como que negação retroactiva da dignidade penaldas referidas condutas (a tentativa e a emissão de cheque sem provisão).

Logo, não pode partir-se destes casos ou de casos análogos para seafirmar a existência de uma categoria jurídico-penal autónoma e espe-cífica que acresceria às categorias da tipicidade, ilicitude (ou tipo de ill-cito) e culpa,

§ 484. Como se vê, a maioria dos casos qualificados por algunsautores (34) como condições da punibilidade - condições estas queacresceriam às categorias da ilicirude do facto e da culpa do agente,

(34) Por exemplo, FIGUlllRBDO DIAS, Direito Penal, cit., 2007, p. 671 58,

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Titulo I - Introdução e problemas [undamentais 265

para que o facto fosse punível - e, a partir das quais, pretendem eri-gir mais uma categoria geral do crime (que seria a categoria da puni-bilidade), não são, na realidade, quaisquer condições ou pressupostosda punibilidade e, portanto, não podem servir de base e de argumentopara a criação de uma nova, categoria do crime' (ou "facto punível"): acategoria da punibilidade.

Que não se trata de condições ou pressupostos da punibilidade, eiso que parece evidente. Efectivamente, não se trata de condições cujaverificação ou ocorrência seja necessária para que a conduta ilicita eculposa seja punivel, mas, pelo contrário, trata-se de situações ou con-dutas que negam a "punibilidade ", isto é, a responsabilidade penal,ou porque excluem a própria ilicitude ou a culpa, ou porque, embora dei-xem intacta a dignidade penal "total" (i. é, quanto à conduta ilícita equanto à existente culpa do agente), todavia o legislador; por razõespolítico-criminais relacionadas exclusivamente com o fim das penas e como objectivo da preservação do bem jurídico (como é o caso da desistênciada tentativa) ou da reparação do dano causado pela conduta ilícita eculposa (caso do pagamento do valor do cheque), entende atribuir aessas condutas (posteriores à prática da conduta ilícita e culposa, e, por-tanto, em si punível) o efeito de exclusão (não aplicação) da pena. Con-sidera, em síntese, não haver a "necessidade penal".

§ 485. Discordo, portanto, da posição de Figueiredo Dias, querquando considera a desistência da tentativa como um exemplo paradig-rnático e demonstrativo da existência e necessidade de se considerar apunibilidade como uma categoria autónoma (dentro da teoria geral docrime) a acrescer às categorias da ilicitude e da culpa, quer quando,depois de afirmar que a «irnpunibilidade dá desistência» (esclareça-se queo que está em causa não i a impunibilidade da desistência, mas sim a"impunibilidade" - rectius, a não punição ou não responsabilizaçãopenal - da tentativa por força da desistência) se fundamenta na des-necessidade de punição do ponto de vista da prevenção, geral ou espe-cial, diz que a esta desnecessidade de pena «deve justamente chamar-sea falta de dignidade penal do facto» (35).

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(JS) Direito Penal, cít., 2007, p. 673.

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266 Parte 11 - Teoria GeraL do Crime

§ 486. E também considero que o paralelo (a favor da sua tese dequê a categoria da punibilidade se reconduz ou coincide com -a catego-ria da "dignidade penal") entre a categoria da "dignidade penal" e a da"exigibilidade" não é procedente.

Segundo Figueiredo Dias (16), tal como o facto de o princípio da"exigibilidade" ser «principio regulativo de todas as categorias do crime,nomeadamente a do tipo de ilícito, não deixa de precipitar-se de formaespecífica e autónoma, enquanto princípio normativo ou decisório, nacategoria da culpa jurídico-penal; assim também se deve aceitar que aideia da dignidade penal, sem prejuízo da sua ubiquidade .e imanência,se assuma como elemento fundamentador e compreensivo par excel-lence da categoria dos pressupostos de punibilidade».

~ Que eu não partilho- da punibilidade ou dignidade penal como cate-goria autónoma, face à categoria do tipo de ilícito (i. é, da ilicitude penalda conduta) e da culpa do agente, eis o que já o afirmei (cf., p. ex., § 462).

Mas do que também discordo é da afirmação de que a categoria daexigibilidade constitui mil princípioregulativo de todas as categorias docrime, nomeadamente da do tipo de ilícito, bem como da-conexão feitaentre o princípio da "exigibilidade" e a velha máxima ad impossibilenemo tenetur.

É que, na minha opinião, a figura geral da exigibilidade, ou maisadequadamente da não exigibilidade, tem aplicação somente no âmbitoda culpa, funcionando como o denominador comum às diversas causasde exclusão da culpa (nomeadamente ao estado de necessidade descul-pante, mas também ao excesso de legítima defesa asténico não censu-rável, conflito de deveres desculpante, etc.). É certo que, como já hámuito o digo, o termo- "não exigibilidade" (de outro comportamento) éinadequado e incorrecto para exprimir o sentido que lhe é atribuído, ecom que é utilizado, que é o de não censurabilidade (i. é, de negaçãoou, exclusão da culpa) do agente do facto tlpico-ilicito, Na verdade,quando, correntemente, se diz não exigibilidade está-se a querer dizer nãocensurabilidade, isto é; a considerar que, embora o agente tenha agidoilicitamente, todavia, por força das circunstâncias em que este factotípico foi praticado, ele não deve ser considerado culpado. Mas, como

(36) Direiro Penal, cit., 2007, p_ 672.

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Tttulo J - Introdução e problemas fundamentais 267

parece evidente, a dita "não exigibilidade" (isto é, não censurabilidadedo agente) de outro comportamento, pressupõe, necessariamente, a ili-citude do facto (ou comportamento) praticado. Ora, diante de um factoqualificado, jurídico-penalmente, como ilícito (o que pressupõe, pelomenos, um "desvalor de acção"), não tem sentido dizer-se que não eraexigível outro comportamento. - Pois que, se não fosse exigivel outro com-portamento, então como é que - respeitando-se. um mínimo de razoa-bilidade jurídíca- se poderia dizer que o facto é ilícito? - Paramim, é evidente que não tem sentido.

§ 487. A utilização deste termo "exigibilidade" (como pressupostoda culpa) ou "não exigibilidade" (como negação da culpa) ainda pode-ria ter alguma razoabilidade nas épocas- em que predominou uma con-cepção objectivista da ilicitude, sendo esta, então, definida apenas pelo"desvalor de resultado" (cf. § 438 85.). Nestes tempos, poder-se-ia"identificar", jurídico-penalmente, não exigibilidade com não culpabili-dade. Pois que, desde que houvesse um "desvalor de resultado" (resul-tado juridicamente desvalioso), já se afirmava a ilicitude do respectivofacto. Mas tal não impedia que se considerasse excluída a culpa, exclu-são que se afirmaria sempre que não fosse razoável, não fosse exigíveloutro comportamento. Ou seja, a inexigibilidade de outro comporta-mento (de outra acção) significava a inexistêncía de "desvalor de acção";mas a inexistência (a negação) do "desvalor de acção'tnão afastava a ili-citude do facto, pois que este era definido apenas pelo "desvalor deresultado"; porém, a inexistência do "desvalor de acção" já excluía aculpa do agente. Neste quadro e contexto, teríamos que, em relação aum facto lesivo de bens jurídico-penais, se poderia afirmar, sem con-tradição, que o facto era ilícito (desde que houvesse "desvalor de resul-tado"), embora não fosse razoável exigir outro facto, outro comportamento(o que se verificaria, quando não houvesse "desvalor de acção"); e, nãosendo razoável exigir outro comportamento, ter-se-ia de excluir a culpa.

§ 488. Mas, a partir do momento em que se afrrmou e consagroua concepção subjectiva da ilícítude, então jamais tem sentido equipa-rar "não exigibílidade" a "não censurabilidade". Pois que, se não era exi-gível outro comportamento (se não há "desvalor de acção"), então ofacto praticado não pode sequer ser considerado ilícito (pois esta qua-

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268 Parte li - Teoria Geral do Crime

Iificação pressupõe, necessariamente, um "desvalor de acção", não bas-tando o "desvalor de resultado"). E, não sendo ilícito, fica sem sentidocolocar-se a questão da culpa do agente.

Conclusão: o termo "não exigibilidade" é, actualmente (no estádioactual das concepções da ilicitude e da culpa), incorrecto e inadequadopara significar uma realidade, político-criminalmente, justa, que é a deque há situações que, embora não excluam a ilicitude do faéto:( e, portanto,onde era, jurídico-penalmente, -exigível outro comportamerito), todaviadevem excluir a culpa porque o facto, conquanto que ilícito, não é reve-lador duma atitude ético-jurídica pessoal de oposição ou de indiferençaperante o bem jurídico-penal lesado ou posto em perigo.

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§ 489. E, assim, também não partilho a afirmação' de que a cate-goria da "não exigibilidade" (designação, como disse, incorrecta, emboraseja correcto O significado que se lhe atribui, que é o de não censura-bilidade) remonte à velha máxima ad impossibile nemo tenetur, e tenhaalgo que ver com a categoria do tipo de ilícito.

Pois que, nunca o Direito pode exigir o humanamente impossível;portanto, se é impossível não pode ser ilícito, ou seja, se outro com-portamento diferente do adoptado era humanamente impossível, entãoo comportamento adoptado (o facto praticado) jamais pode ser consi-derado ilícito.

Quanto à relação entre a exigibilidade (agora, não no sentido decensurabilidade, mas, digamos, no sentido etimológico e jurídico:aquilo que pode ser, humana e juridicamente, exigido, imposto) e ascategorias da tipicidade e da ilicitude, há que dizer que parece evidenteque o legislador só pode exigir aquilo que é razoável. (poderíamosdizer: aquilo que é exigível) e, portanto, é pressuposto da própria tipi-cidade (da própria qualificação de uma conduta como típica) a exigi-bilidade de não praticar a acção (ou, no caso dos tipos de omissão, depraticar a acção) descrita no tipo legal. O que quer dizer que a exi-gibilidade nada tira ou acrescenta à categoria da típicidade, pois queesta pressupõe aquela.

Relativamente à categoria da ilicitude, também é claro que é pres-suposto do juizo de ilicitude a possibilidade e a exigibilidade de o agente ~não ter praticado a acção (ou, 110S tipos de omissão, de o omitente terpraticado a acção referida no tipo legal). É que, se não for possível e

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não for de exigir conduta diferente da praticada, jamais esta pode serqualificada de ilícita. E e precisamente esta a razão que me levou a con-siderar incorrecta a expressão "não exigibilidade de outro comporta-mento" para significar a desculpação do agente. Pois que, se não eraexigível (se não era razoável exigir) outro comportamento, então o com-portamento verificado não só não pode ser censurado ao agente comonem sequer, já lógica e metodologicamente antes, pode ser consideradoilícito. Diga-se que, em minha opinião, esta referida contradição lógicae metodológica existe no art. 35.°-1; quando afirma que: «Age semculpa quem praticar um facto ilícito [... ], quando não for razoável exi-gir-lhe [... ) comportamento diferente».

Conclusão: também a exigibllidade de não praticar o facto des-crito no tipo legal (e não ancorado numa causa de justificação) é pres-suposto do [uízo de ílicltude, Portanto, a exigibilidade não é principioregulativo do juizo de ilicítude, pois que ela é imanente a esta catego-ria do crime.

§ 490. Consideremos; por fim, as duas únicas circunstâncias ousituações (ou outras situações análogas, eventualmente existentes ou quepoderão vir a existir) que, à primeira vista, poderiam constituir um pontode apoio à tese da autonomização da punibllidade .corao categoria geraldo crime, com um conteúdo específico e diferente dos conteúdos nor-mativos jurídico-penais inerentes às categorias da tipicidade, ilicitude eculpa. Estou a referir-me a dois dos casos, apresentados por FigueiredoDias, e que são a "consumação ou tentativa de suicídio" no crime de inci-tamento ou ajuda ao suicídio (art. 135.°), e a "prática do ilícito típico"no crime de embriaguez e intoxicação (art. 295.°).

Segundo Figueiredo Dias (37), estas circunstâncias (e outras porven-tura existentes e análogas, como o caso, também referido por este Autor,do não reconhecimento judicial da insolvência, no crime de insolvênciadolosa ~ art. 227.°) constituem pressupostos da punibilidade de um factoque, apesar da sua ilicitude e. da culpa do respectivo autor, ainda não tinhaa suficiente dignidade penal para merecer, na perspectiva polítíco-criminaldo legislador, urna pena e, portanto, ainda não era Í71 se punível. Segundo

(17) Direito Penal, 2007, pp. 673-674.

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27Q Parte 11 - Teoria Geral da Crime

o referido Autor, verifica-se, assim, uma «embrincação dos conceitos de dig-nidade penal e de carência de tutela penal, na sua acepção tradicional».

§ 491. Não partilho uma tal tese, pelas razões que, sinteticamente,passo a expor.

Em primeiro lugar, é discutível que estes pressupostos da punibili-dade (a consumação ou tentativa de suicídio e a prática do ilícito típico)sejam verdadeiros pressupostos ou condições objectivas de punibilidade,ou seja, é duvidoso, como o comprovam as divergências doutrinais (38),que tais factos-pressupostos da punibilidade não tenham qualquer cone-xão com os ilícitos das condutas do incitamento ou ajuda ao suicídio eda autocolocação em estado de completa inimputabilidade e/ou com a cul-pabilidade dos respectivos agentes. Ou seja, é duvidoso que consti-tuam um pressuposto da punibilidade totalmente estranho às catego-rias da ilicitude e da culpa do crime de incitamento ou ajuda ao suicídioe do crime de embriaguez ou intoxicação completa.

§ 492. Mas, e em .segundo lugar, independentemente de terem ounão terem qualquer conexão com as referidas categorias da ilicitude e daculpa dos crimes em causa, a conduta de incitamento ou ajuda ao sui-cídio e a perigosidade criminal (que pode ser elidida) da embriaguezou intoxicação completa já têm (pelo menos no caso do incitamento ouauxílio ao suicídio) a suficiente "dignidade penal", isto é, já são, em simesmas, punlveis. Pelo que, mesmo para quem considere que se trata deverdadeiras condições ou pressupostos objectivos de "punibilidade", há queobservar que não são estas condições (a "consumação ou tentativa de sui-cídio" e a "prática do. ilícito típico") que determinam, que atribuem acaracterística (a categoria) da punibilidade às referidas condutas (de inci-tamento ou ajuda ao suicídio, e de embriaguez ou intoxicação completa)- pois que estas, por força da ilicitude do facto e da culpa do agente,já a possuem -, mas apenas que condicionam a efectiva responsabi-lização penal. Isto é, trata-se de circunstâncias que, se não se verifica-rem, o legislador entende que, por razões político-crimínais relaciona-

(38) Cf. COSTA ANORADE, Comentário Conimbricense do Côdigo Penal, tomo I,art. 135.·, § 30 SS.; TAIPA De CARVALHO, ibidem, tomo Il, art, 295.·, § 18 SS.

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das apenas com a consequência jurídico-penal, não deve ser aplicada apena. Logo, o que inexistirá é somente a "necessidade penal", apesar depermanecer a "dignidade penal" das respectivas condutas.

Assim, tais circunstâncias O' que constituem são pressupostos adi-cionais da punibilidade, no sentido de que punível já o é a conduta emsi mesma, só que o legislador decidiu acrescentar outra exigência à"punibilidade" da conduta que, em si, já era punível. Esta a razão porque entendo que a designação tradicional "pressupostos adicionais dapunibílidade" o que pretende, verdadeiramente, significar é que são con-dições de que a lei faz depender a responsabilização penal do agentee não a punibílidade da conduta.

§ 493. Aliás, diga-se que seria estranho e, político-criminalmente,inaceitável que a punibilidade, a dignidade penal de uma condutapudesse basear-se na ocorrência objectiva (e aleatória) de um deter-minado facto ou circunstância.

Donde a minha conclusão de que a designação "pressupostos adi-cionais da punibilidade" deve ser tomada como pressupostos adicionaisda responsabilidade. penal. Adicionais, pois que, em regra, a responsa-bilidade penal basta-se com a punibilidade da conduta, isto é, com ailicitude desta e a culpa do seu autor.

§ 494. Finalmente, em terceiro lugar, mesmo que existam algunspressupostos da punibtlidade (relacionados com alguns crimes) que acres-centem "alguma dignidade penal" à dignidade penal já inerente ao tipo deilícito e/ou ao tipo de culpa, não me parece aceitável, nem sob o pontode vista lógico nem sob o ponto de vista metodológico, que se atribua atais pressupostos o valor de uma categoria autónoma e geral do crime.

Pois que, se o que está em causa (o que é objecto e objectivo),numa teoria geral do crime, é a análise e a sistematização das caracte-rísticas ou categorias comuns a todo e qualquer crime, como é que sepode elevar a categoria da teoria geral do crime uma característicaou pressuposto que só se verifica em relação a um lírnítadísslmonúmero de crimes?! - Como o próprio Figueiredo Dias (39) reco-

(39) Direito Penal, 2007, p. 673.

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272 Parte f1 - Teoria Geral do Crime

nhece, «O facto ilícito-típico e culposo é também, em regra, factodigno de pena. Mas pode suceder excepcionalmente que o não seja,se nele se não verificarem também pressupostos de punibilidade; pres-supostos que têm que ver directamente com a dignidade penal do facto,com exigências de prevenção, geral e especial, que nele radicam masnão esgotam o seu significado no tipo de ilícito .ou no tipo deculpa» (40).

(40) O itálico de em regra foi posto por mim.

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TÍTULO II

O TIPO DE ILÍCITO

j.)

Observações preliminares

§ 495. O paradígrna da infracção criminal é o crime de comis-são por acção dolosa.

Na verdade, foi a partir desta modalidade de crime que se desen-volveu toda a dogmática jurídico-penal, todo o esforço científico deracionalização-sistematização dos elementos ou categorias constitutivasdo crime, em ordem à elaboração de uma teoria geral do crime.

Por outro lado, os Códigos Penais, quer na Parte Especial, onde setipificam os vários crimes, quer na Parte Geral, onde se estabelecemos princípios, os critérios e as normas fundamentais e indispensáveis àinterpretação e aplicação das normas da Parte Especial (os tipos legaisde crime) aos casos concretos, também partem da figura do crime decomissão por acção dolosa.

Acresce, ainda, uma terceira razão, para que a primeira modalidadede crime a estudar seja o crime de resultado por acção dolosa: o facto deser esta a modalidade de crime mais frequente na prática, aliás na linhadas próprias limitações estabelecidas pelos Códigos Penais à punibilidadeda omissão e da negligência (cf., quanto ao nosso, os arts. 10.°.2 e 13.0).

Em quarto lugar, pode dizer-se que o crime de comissão por acçãodolosa é o ponto de partida, quer doutrinária quer legalmente, paraa "construção", quer dos crimes negligentes quer dos crimes deomissão, podendo, neste sentido, dizer-se que aquele é assumido comoo "crime fundamental" ou geral, sendo estes, os crimes de omissão e oscrimes negligentes, corno que "crimes derivados" ou especiais. Ouseja: a estrutura fundamental do crime está no crime de resultado poracção dolosa, sendo as especificidades ou singularidades dos crimesnegligentes e dos crimes de omissão estabelecidas e caracterizadas por~I'

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274 Parte II - Teoria Geral do Crime

referência àquela estrutura fundamental do crime de comissão por acçãodolosa.

Assim, ele acordo com o art. 10.·-2 e 3, só pode existir um crime elecomissão por omissão, quando, além da existência de um dever de garanteque recaia sobre o emitente, existir um tipo legal de crime de comissão poracção, que visa evitar a produção do mesmo resultado que o emitente nãoevitou. Além disto, a pena para o crime de comissão .por omissão (omis-são imprópria) pode ser objecto de uma atenuação especial da pena esta-belecida, na Parte Especial do Código Penal ou em Lei Avulsa, para ocrime de comissão por acção. E quanto aos "crimes't-tfactos) negligentes,para além de só serem puníveis nos casos especialmente previstos na lei(art, 13.°), a pena, que lhes é aplicável, é determinada, tendo por ponto dereferência a pena aplicável ao correspondente crime doloso (cf., p. ex.,art. 228.0 - insolvência negligente; e art. 227.· - insolvência dolosa).

§ 496. Embora, nos Títulos li, Ill .e IV, tenhamos directamente emvista o crime de comissão por acção dolosa, a verdade é que muitasdas questões neles tratadas dizem também respeito aos crimes negli-gentes e aos crimes de omissão. Nos títulos seguintes, V e VI, abor-daremos, respectivamente, as especificidades destes crimes.

§ 497. Relativamente às categorias dogmáticas da tipicidade e dailicitude e à relação entre estas categorias, já a expus (cf § 461 ss.).

Em resumo, defendemos o seguinte. O tipo legal é, sob o pontode vista dogmático, co-constitutivo do ilícito criminal, para além de,obviamente, no plano jurídico-político, desempenhar urna função degarantia do cidadão face ao jus puniendi do Estado, e de, através da proi-bição ou imposição (de determinada acção), que contém, realizar efun-ção político-criminal de protecção dos bens juridico-penais.

Quanto às relações entre a tiplcidade e a ilicítude, defendemos que .entre o tipo legal (ou tipo incriminador) e as causas de justificação (ou tipojustificador) havia, relativamente ao juízo de ilicitude sobre um facto concreto,uma cornplementaridade material e funcional; mas que esta complementari-dade material e funcional não impedia a autonomia dogmática, político-cri-minal, sistemática e prático-processual da tipicidade face à ilicitude.

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I L o CAPíTULO

A FUNÇÃO, q CONTEÚDO E A ESTRUTURADO . TIPO DE ILÍCITO

I, A função de protecção do cidadão; o tipo-garantia

§ 498. Acabámos de recordar que, entre as funções do tipolegal, tipo de ilícito ou tipo incriminador, se destacam a função polí-tico-criminal de protecção dos bens jurídico-penais e a função jurí-dico-política de garantia do cidadão diante do poder punitivo-penalestadual.

É esta função de garantia do cidadão, decorrente do principio dalegalidade penal (cf § 298 8S.), que levou von Liszt a apelidar o prin-cípio da legalidade penal de magna charta do delinquente, e que leva adoutrina a designar o tipo legal como tipo-garantia.

Esta função de gararitia políticaimpõe que o legislador descreva, daforma o mais clara e pormenorizada possível, as condutas que quali-fica como crimes.

Daqui resulta a grande complexidade constítutíva de muitos tiposlegais. Vejamos, a título de exemplo, a manifestação desta complexi-dade. Descreve O art. 162.°-1 (crime de tomada de reféns): «Quem,com intenção de realizar finalidades políticas, ideológicas, filosóficasou confessionais, sequestrar ou raptar outra pessoa, ameaçando matá-la,infligir-lhe ofensas à integridade física graves ou mantê-la detida, visandodesta forma constranger um Estado, uma organização internacional, umapessoa colectiva, um agrupamento de pessoas ou uma pessoa singular auma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade [ ... ]1). E oart. 375."-1 contém a seguinte descrição legal do crime de peculato:«O funcionário que ilegitimamente se apropriar, em proveito próprioou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel, pública ou

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'},76 Porre II - Teoria Geral do Crillle

particular, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe sejaacessível em razão das suas funções [... ]». '

lI. Conteúdo: a natureza dos elementos do tipo legal

§ 499. A análise da constituição e da estrutura dos diferentes tiposlegais de crime cabe, obviamente, ao estudo da Parte Especial do CódigoPenal.. Aqui, numa teoria geral do crime, compete apenas referir a naturezados múltiplos elementos constitutivos dos diferentes tipos legais da ParteEspecial do Código Penal e da Legislação Penal Avulsa, bem comoproceder à classificação dos referidos tipos legais.

§ 500. Quanto à sua natureza, os' elementos dos tipos legais podemser objectivos, subjectivos, descritivos e normativos,

1, Os elementos objectivos e os subjectivos.

§ 501. Como já foi referido (cf. §§ 443 e 445), a partir da teorianormativista do crime começou a afirmar-se que o tipo legal ou tipode ilícito continha, ao lado de elementos objectivos, elementos subjec-tivos (p. ex., a intenção de apropriação 110 tipo de crime de furto). E, namesma altura, vimos que o processo de subjectivização do típo de ilí-cito aprofundou-se com a teoria finalista, quando esta, com base no seuconceito "ontológico" de acção humana como acção final; fez do doloum elemento essencial do tipo legal.

Assim, hoje, costuma falar-se da divisão do tipo de ilicito em tipo.objectivo e tipo subjectivo.

§ 502. O tipo objectivo de ilicito é formado pelos 'elementos do tipolegal dotados de materialidade, de consistência e de autonomia face ao pró-prio agente do crime. Com efeito, o agente do facto típico também é sem-pre um elemento objectivo, independentemente de, p. ex., por força de umaeventual paranóia, se auto-considerar como um ser super ou infra-hurnano.

Sendo o direito penal moderno um direito penal do facto, naturalmenteque a estrutura básica e irrenunciável do tipo legal há-de ser objectiva.

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Tttulo If - O ripa do ilIciro 277

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§503. Como já referimos, a partir da teoria normativista e, espe-cialmente, depois da teoria finalista (que esteve na origem da chamadaconcepção pessoal do tipo de ilícito), o tipo legal ou tipo de ilícito nãocontém apenas elementos objectivos, mas também elementos subjectivos.E, embora a palavra "tipo" tenba uma aplicação mais rigorosa relativa-mente ao conjunto dos elementos objectivos; o certo é que, actualmente,ela também é utilizada para significar o conjunto dos elementos sub-jectivos do tipo de ilícito. Assim, paralelamente à designação tipoobjectivo de ilícito, também se fala em tipo subjectivo de ilícito.

§ 50, Quando se fala em tipo subjectivo de ilícito, tem-se em contao crime doloso, e não o crime negligente. A razão é simples e natural: carac-terizando-se o crime negligente pela causação de um resultado jurídico--penalmente desvalioso, devido a descuido ou desatenção do respectivoagente, obviamente que no respectivo tipo de ilícito não há lugar para qual-quer intenção ou motivação do agente relativamente ao facto praticado.

Apenas na negligência consciente (art. 15.0-a) se pode considerarexistir um elemento subjectivo, que é a representação da possibilidadeda criação de uma situação de perigo (p. ex. art. 295.°; quando o queingere bebidas alcoólicas, ao fazê-lo, representar que pode vir a ficar numestado de inimputabilidade) ou da possibilidade de a sua conduta (p, ex.a condução com excesso de velocidade) causar um determinado resul-tado (p. ex., matar uma pessoa).

§ 505. No tipo de ilícito doloso, há que distinguir entre o "ele-mento" subjectivo comum a todo e qualquer tipo de ilícito, que é o

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278 Parte J[ - Teoria Geral do Crime

dolo, e os elementos subjectivos específicos de vários (que não todos)tipos legais.

O dolo, enquanto representação e vontade psicológica de realização'do facto (dolo do tipo ou da factualidade típica - cf. §§ 585 e 593) éo' elemento subjectivo que abrange todos os elementos objectivos dotipo legal (acção, objecto, resultado, ete.).

§ 506. Além do dolo (do facto), há, em muitos tipos legais, ele-mentos subjectivos específicos. São eles: as intenções, as motivaçõese, eventualmente, determinadas atitudes interiores. .

A intenção, como elemento subjectivo específico de certos tiposlegais, não se confunde com o chamado dolo intencional ou directo(CP, art. 14.u-l), que é uma modalidade do dolo do tipo, e que se veri-fica quando o agente tem por objectivo imediato a realização do facto

, ,descrito num tipo legal.

Enquanto elemento subjectivo de certos tipos legais, a intenção é umelemento que, tal como 'os outros elementos objectivos ou os outroseventuais elementos subjectivos (p. ex., motivações), é integrante dotipo legal, De modo que, não se verificando, no caso concreto, esteelemento "intenção", oagente não pode considerar-se como tendo pra-ticado O respectivo tipo de ilícito - o 'que, obviamente, não significa quenão possa ter cometido outro tipo de ilícito; do qual não faça parte a refe-rida intenção.

Exemplos de intenção como elemento subjectivo específico podemver-se no tipo de crime de furto - a intenção de apropriação (art, 203.°-1);no tipo de crime de burla - a intenção de obter enriquecimento ilegí-timo (art. 217.u-l); no tipo de crime de rapto - a intenção de extorsão,de resgate, ete. (art, 161.°-1). ,

§ 507. Actualmente, por influência da doutrina germânica, a estes'crimes, em que o agente -pretende, com a sua acção, produzir um resul-tado que não faz parte do tipo legal (p. ex., raptar com a intenção de con-seguir um resgate) se aplica a designação "crimes de resultado cor-tado". Mas acrescente-se que, na minha opinião, a designação é poucofeliz, é pouco adequada. Porventura, uma vez que, pelo menos no geraldos casos, estão em causa tipos de crime de resultado (i. é, em que O

resultado directo da conduta é elemento do tipo legal), melhor seria a

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Ttudo Jf - O tipo de ilícito 279

designação "crimes de duplo resultado": o resultado típico (que é ele-mento do tipo legal e que, portanto, tem de ser abrangido pelo dolo doagente); e o resultado extra-típico, que é o que agente pretende vir a obtercom a prática do tipo de ilícito, e resultado este que não faz parte do tipolegal, sendo, portanto, irrelevante que tal se venha, ou não, a produzir,ou seja, que' a intenção do agente se venha, ou não, a concretizar.Assim, p. ex., nos tipos de crime de rapto e de tomada de reféns, neces-sário, para que os crimes se considerem consumados, é que a vítimatenha sido efectivamente privada da liberdade (raptada ou sequestrada)- resultado típico -, sendo irrelevante que a intenção do agente sevenha, ou não, a concretizar, L é, que o resultado "obtenção do res-gate" ou o resultado "prática de determinada acção" (p. ex., libertaçãode membros da organização a que pertence o agente) se verifique, ou não- resultado atípico. Decisivo, para que o tipo de crime de rapto ou detomada de refém se considere realizado ou consumado é apenas que oagente tenha praticado a conduta de privação da liberdade com a inten-ção de que tais resultados extra-típicos se venham a produzir.

E, já que fizemos referência critica à designação "crime de resul-tado cortado", que entendemos ser inadequada e equívoca (até parecesugerir que o verdadeiro resultado, que, sob o ponto de vista do tipo, éo que interessa - o resultado típico -, se não produz), então façamostambém uma breve nota sobre outra designação, utilizada por. váriosautores alemães (p. ex., Roxin), para uma, outra espécie de tipos decrime, em que também a intenção é um elemento especifico. Estamosa referir-nos à designação "crimes mutilados de dois actos" (ou "crimede acta cortado "), por analogia formal com a designação "crime deresultado cortado".

Segundo parte da doutrina alemã, dentro dos "tipos de crime deintenção" (que são aqueles em que a intenção é elemento específico dotipo legal), haveria que distinguir duas espécies; os, já referidos, "crimesde resultado cortado" e os "crimes mutilados de dois actos". A distin-ção, segundo Roxin (41), reside no seguinte: enquanto nos primeiros, oresultado adicional, i. é, o resultado extra-típico, é provocado pela pró-pria acção típica praticada pelo agente (p, ex., o resultado "entrega do

(41) Derecho 'Penal, 1999, p. 317.

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280 Parte ll-- Teoria Geral do Crime

resgate" por um familiar do raptado, em consequência do rapto) já, nos"crimes mutilados de dois actos", o resultado adicional extra-típico (queconstituiu o objectivo ou intenção do agente) não deriva da acção típicapraticada pelo agente, mas sim de uma segunda e ulterior acção a pra-ticar também pejo agente. Como exemplo, o crime de contrafacção demoeda (art. 262."): aquele que pratica contrafacção, fá-lo com a inten-ção de pôr a moeda em circulação; mas a concretização desta intençãoexige a prática de uma nova acção por parte do contrafactor, que é a 'pas-sagem da referida moeda.

Também há que dizer que esta designação "crimes mutilados dedois actos" é pouco feliz; mais adequada parece ser a designação "cri-mes de dupla acção".

§ 508. Também as motivações podem, em alguns crimes, consti-tuir um elemento subjectivo específico do respectivo tipo de ilícito.O que significa que, inexístindo, no facto concreto, essa motivação, o res-pectivo tipo de crime. não se verifica.

É o caso, p. ex., do tipo legal de tomada de refém, previsto noart. 162."-1. Da leitura desta disposição legal vê-se que são e1ementossubjectivos específicos do tipo de crime de tomada de refém, não apenasuma determinada intenção, mas também uma determinada motivação.Com efeito, de acordo com o respectivo texto legal, para se afirmar o tipode crime de tomada de reféns é necessário que a conduta de rapto ou desequestro tenha sido praticada, não só com a intenção de coagir um deter-minado Estado ou organização internacional a adoptar determinado com-portamento, mas ainda que a prática dessa conduta, com essa intenção ouobjectivo, tenha tido uma motivação política, -ideológica, filosófica ou con-fessional. Na verdade, o termo "intenção" (de realizar finalidades políti-cas, etc.) tem, neste artigo, o sentido de motivação, enquanto o gerúndio"visando" (constranger um Estado, etc.) significa a intenção ou objectivoimediato que o agente pretende com a sua acção de rapto ou sequestro (42).

, . § 509. Também a atitude interior do agente pode, em casos raros,constituir um elemento subjectivo especifico do tipo legal.

«2) a. TAIPA 06 CAHVMJ-IO, Comentário Conimbricense, tomo r (1999), art. 161.°, § 7.

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Assim acontecia no antigo tipo de crime de maus tratos (CP de 1982,redacção primitiva, art. l53.n-l) que continha, entre os seus elementostípicos, o elemento-exigência de que os maus. tratos fossem devidos a«malvadez ou egoísmo» do agente mal tratante. Foi, com base nesteelemento subjectivo, que a jurisprudência, apelidando-o de "dolo espe-cífico", realizou uma interpretação demasiado restritiva, e injusta, docrime de maus tratos. A Reforma Penal de 1995 eliminou, justificada-mente, esta referência à "malvadez ou. egoísmo".

Diga-se, porém, que as atitudes interiores (como, p. ex., malvadez,egoísmo, sadismo, ódio racial, frieza de ânimo) devem ser consideradas,por regra, como características da personalidade, e não como caracte-rísticas do facto concreto praticado. E, assim, deverão, por princípio, serassumidas como características pessoais a relevar em sede da culpa, enão como elementos do tipo de ilícito. E esta qualificação das atitudesinteriores como características da' personalidade e, portanto, como fac-tores a incluir no juizo de culpa, tem, .desde logo, a consequência de, nocaso de comparticipação, não poderem agravar (ou fundamentar) a res-ponsabilidade penal dos agentes que não manifestem tais atitudes. Istoporque, de acordo com os arts. 28.° e 29.°, só as qualidades relaciona-das e valoradas no juizo de ilicitude é que poderão determinar a aplicaçãoda pena do crime, que pressupõe essas qualidades, mesmo aos compar-ticipantes que as não possuam (art. 28.°-1); já as' qualidades pertenceu-tes à culpa nunca poderão comunicar-se aos outros comparticípantesque as não .possuam, 'onerando, portanto, apenas o agente que as tenharevelado na prática do facto ilícito (art. 29.°).

2. Os elementos descritivos e os normativos

§ 510. Elementos descritivos são aqueles cujo significado é sus-ceptível de ser apreendido pelos sentidos. Noutra formulação, porven-tura mais simples e adequada, são os elementos cujo significado típico(i. é, 110 contexto do tipo legal), coincide, globalmente, com o que lheé atribuído pela linguagem comum. É o caso de pessoa, animal, sub-trair, destruir, ete.

§ 51 L Elementos normativos podem definir-se como aquelescujo sentido nos obriga a recorrer a valorações constantes de outras

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282 Forte 11 - Teoria Geral do Crime

ordens normativas, jurídicas ou sócio-culturais, ou a outras linguagenscientífico-técnicas. Exemplos: documento autêntico e testamento cerrado(art, 256.°-3), funcionário público (art. 375.°-1), "bons costumes(art. 149.°-2), "leges artis" (art. 150.°-2).

Por vezes, é o próprio legislador que, por razões de certeza jurídico--penal, define os elementos norrnativos ou precisa os elementos descriti-vos, esclarecendo e estabelecendo o exacto sentido em que eles devem .sertornados pelo aplicado r da lei penal. Tal é o caso do art. 202." que, colo-cado no início do título que descreve os, crimes contra o património, dáa definição de vários elementos utilizados em diversos tipos legais decrimes contra o património (valor elevado, arrombamento, chaves falsas,etc.); e dos arts. 255.°, que defme alguns elementos típicos dos crimes defalsificação (documento de identificação, moeda, etc.), e 386.°, que deter-mina o âmbito do conceito de funcionário, para efeitos j~~ico-penais.

lU. Estrutura: as classificações dos tipos legais de crime

1. CLassificações segundo o critério do autor

§ 512. Tomando como ponto de referência o autor, temos duas classi-ficações dos tipos legais: uma, segundo o critério da quantidade de autoresou agentes; outra, segundo o critério da qualidade dos autores ou agentes.

1.1. Segundo a quantidade de autores

§ 513. Os crimes dividem-se em singulares ou unissubjectivos eplurais, plurissubjectivos ou de cornparticipação necessária. Os pri-meiros, que são a generalidade, são os que podem ser praticados por umasÓ pessoa. Os segundos são aqueles cujo tipo legal exige a intervenção'de mais do que lima pessoa (p. ex., o crime de participação em rixa,art. 151.°, e o motim, art, 302.°).

1.2. Segundo a qualidade dos autores

§ 514. Os crimes são comuns ou específicos. Os prímeiros podemser praticados por qualquer pessoa (p. ex., os crimes de homicídio, art. 131.°;

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Titulo II - O tipo de ilicito 283

de furto, art. 203.°). Os específicos são os que só podem ser cometidospor quem possua determinada qualidade ou estatuto, ou sobre quemrecaia um dever especial.

§ 515. Os crimes específicos dividem-se em crimes específicos pró-prios ou puros e crimes específicos impróprios ou impuros. Nosprimeiros, a qualidade, estatuto ou dever especial fundamenta a ilici-tude criminal e, portanto, também a responsabilidade penal (p. ex., arecusa de médico, art. 284.°; a prevaricação, art. 370."; falsidade de tes-temunho, art, 360.°-1). Nos segundos, a qualidade, estatuto ou deverespecial apenas agrava a ilicitude e a responsabilidade penal (p. ex., acoacção por funcionário, art. 155.°-1-<0; o peculato, art.: 375.°-1, emconfronto com o abuso de confiança, art. 205.°-1).

§ 51"6. A distinção dos tipos de crime em comuns e específicos,bem como a divisão destes em próprios e impróprios tem relevânciajurídico-prática, nomeadamente nos casos de comparticípação (em quealgum dos agentes não possua a qualidade exigida pelo respectivo tipolegal - cf. art. 28.") e nos casos de erro sobre o objecto da conduta.

1.3. Referência aos chamados "crimes de mão própria"

§ 517. A designação "crimes de mão própria" foi criada porBindíng, E a problemática destes crimes tem sido tratada especialmentepela doutrina alemã, Com destaque para Roxin, na sua importante obraTãterschaft und Tatherrschaft.

§ 518. Jakobs (43) caracteriza os "crimes de mão própria" comoaqueles em que «o tipo de ilícito consiste na realização fisicade umaacção reprovável, e em que a essência do ilícito radica numa atitudedefeituosa do agente relativamente aos seus deveres pessoalisstmos»(itálicos meus). E prossegue, dizendo que é esta natureza pessoalls-sima que faz com que os "crimes de mão própria" se aproximem dos"crimes de dever".

(43) Derecho Penal - Parte General, 1997, p. 731 5S.

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284 Parte li - Teoria Geral do Crime

Depois de mencionar vários dos crimes que têm sido considera-dos, por sectores da doutrina penal alemã, como "crimes de mão própria"(o perjúrio, o incesto, a prevaricação, a deserção militar, a autocoloca-ção em estado de inimputabilidade), observa que «o fundamento e adeterminação da natureza dos crimes de mão própria são' extrema-mente polémicos», e -conclui, com toda a razão, que «é muito duvidosaa legitimidade para fazer dos chamados crimes de mão própria umgrupo especial de crimes» (44).

§ 519. Com o objectivo de salientar a justeza das' objecções deJakobs (de que partilho) à figura dos "crimes de mão própria", querquanto ao critério (rectius: ausência de critério) de determinação-deli-mitação destes crimes quer quanto à legitimidade político-criminal dasconsequências jurídico-práticas da qualificação de um crime como "crimede mão própria'.', é de interesse transcrevermos algumas .passagens deR. Maurach e H. Zipf (45).

Escrevem estes Autores: «Há determinados tipos que são necessa-riamente concebidos, de acordo com o seu conteúdo de ilícito, de talmodo que só pode ser autor deles quem esteja em condições de levar acabo, por si e imediatamente, fi acção proibida. Os crimes de mão pró-pria não são ,em regra, de resultado mas simples crimes de actividade,nos quais o desvalor da acção se encontra em primeiro plano: o resul-tado é, predominantemente, neutro face ao direito; o desvalor é cons-tituído, precisamente, pelo facto de ao autor estar proibida a acção».

:§ 520. Esta definição e fundamentação demonstram, claramente, ainaceitabllidade jurídico-penal desta categoria dos "crimes de mão pró-pria ''. Com efeito, como pode aceitar-se uma categoria de. crimes emque o desvalor de resultado (isto é, a lesão ou perigo de lesão do bemjurídico, cuja protecção é a ratio do próprio tipo de ilícito) seja consi-derado irrelevante para o direito? Por outro lado, dizer-se que os cri-mes de mão própria são aqueles que só podem ser praticados por quemesteja em condições de realizar, por si, a acção proibida, ou, por outras

(") Ncgritos meus.('l) Derecho Penal - Parte General. I, 1994, p. 368 s.

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Título 1/ - O tipo de iltcíto 285

palavras, dizer-se que há ilícito (ou ilícito mais grave) porque aquele autorconcreto estava proibido de praticar aquela acção típica, isto é o que sediz e o que caracteriza os "normais" crímes específicos, próprios. ouimpróprios.

§ 521. A seguir, Maurach e Zipf apresentam casos que, segundoeles, constituem crimes de mão própria e que, portanto, fazem com queeventuais comparticipantes só possam ser punidos como participantes (istoé, como cúmplices 01.) como instigadores, dado que, diferentemente donosso direito, no alemão os instigadores não são considerados autores).Eis os crimes que indicam: crimes sexuais, como o incesto e o abusosexual de incapaz de resistência, o perjúrio e o motim de presos.

E dão as seguintes explicações que, em minha opinião, nada con-vencem. Quanto ao incesto, apenas dizem que só podem .ser autores destecrime determinados parentes que realizem os actos sexuais. Emboraeste caso não tenha qualquer interesse prático para nós.pelo facto de oincesto não ser crime, cabe objectar, dizendo que não há qualquer 'razãopara, p. ex., não se considerar como autor deste crime, a título de omis-são, o pai ou mãe de A e B, que, sabendo que estes são irmãos, emboraestes o desconheçam, não informam os seus filhos, A e B, de que sãoirmãos, procurando, assim; evitar as relações sexuais entre eles.

Relativamente ao caso de crime de abuso sexual de pessoa incapazde resistência, os próprios autores alemães referidos mencionam a diver-gência de opiniões na doutrina alemã. Quanto ao perjúrio, também selimitam a dizer que só pode cometer este crime, só pode ser autor a pes-soa que presta as declarações. Contra esta afirmação, há que dizer quenão se vê qualquer razão para negar a autoria, por instigação (no casoportuguês, em que a instigação é uma forma de autoria), no caso, p.ex.; de um advogado que, mediante uma oferta pecuniária, "compra"uma pessoa para prestar falsas declarações num processo; nem há razãopara negar a autoria mediata, no caso de, p. ex., o advogado coagir,mediante ameaça séria e grave (de morte, lesão corporal ou despedi-mento), à prestação de falsas declarações .. E, portanto, não era neces-sário o nosso art. 363. o para um tal comportamento ser punível, Mais:este artigo não afasta as regras gerais da comparticipação, isto é, nãoimpede as autorias, na forma de instigação ou mesmo de autoria mediara,dos crimes de perjúrio dos arts. 359." e 360.0; mas, pelo contrário, até

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286 Parte II - Teoria Geral do Crime

obriga à sua aplicação. E obriga, na medida em que, prev~ndó e punindoos i:nstigadores cujos instigados acabem por não prestar. as falsas decla-rações (pois se, efectivamente, as prestarem, já não cometem o crime desuborno do art. 363"), por maioria de razão hão-de ser puníveis os ins-tigadores, quando os instigados tenham prestado as falsas. declarações,isto é, tenham, de facto, lesado o bem jurídico realização da justiça.

Relativamente ao motim de presos, também não se vê razão paranegar a possibilidade da autoria por instigação ou a autoria mediata.

§ 522. Na verdade, se se pretende centrar a essência e a gravidade des-tes "crimes de mão própria" na atitude defeituosa ou desvaliosa do agente,em vez de a centrar 110 facto praticado e lesivo de determinados bens jurí-dico-penais, é caso para dizer que, nestes crimes, há uma perigosa e rejei-tável excepção ao princípio do "direito penal do facto ", princípio que éuma das traves-mestras do direito penal moderno, que veio recusar, defi-nitivamente, um direito ~enal do agente ou direito penal da atitude interior.

§ 523. Na doutrina portuguesa, a questão dos ditos "crimes demão própria" não tem sido especialmente tratada, havendo, contudo,algumas referências e tomadas de posição.

, Teresa Beleza (46) dá a seguinte definição dos "crimes de' mão própria":«são aqueles cuja definição legal torna impensáveis em qualquer formade autoria que não seja directa, imediata, material, dado que a acção des-crita só é susceptível de ser praticada por "mão própria", isto é, com o pró-prio corpo». E, de seguida, trata alguns crimes usualmente consideradoscomo "crimes de mão própria" (perjúrio, bigamia e alguns crimes sexuais),parecendo-me que, embora em tom dubitativo, é da opinião de que, pelomenos no nosso Código Penal, não há crimes de mão própria: Com efeito,escreve Teresa Beleza: «É discutível que o nosso Código contenha definiçõessusceptíveis de enquadrarem "crimes de mão própria"».

§ 524. Germano Marques da Silva (47) define estes crimes comoSeJ1dO «aqueles que só podem ser praticados pela própria pessoa que

(4&) «Ilicitamente Cornparticipando», AAFD, 1988, p. 63 55.(") Direito Penal Português, II, 1998, p. 273 5.

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Tflu{o li - O ripo de i[(cito 287

reúna as qualidades que a lei exige como elemento do próprio crime».E considera que nada impede a cornunicabilidade das qualidades exigi-das pelo tipo legal, como o prevê a regra estabelecida na L" parte do n," 1do art. 28.", excepto se a interpretação do tipo legal em causa se opu-ser à referida comunicabilídade.

§ 525. Sobre esta posição, penso duas coisas. Em primeiro lugar,acho que a noção de "crimes de mão própria", dada por este Autor, nãoespelhaaquilo que; tradicionalmente, se tem entendido por "crimes de mãoprópria"; na verdade, a noção, que dá, coincide com a de crimes especí-ficos. Em segundo lugar, entendo, tal como Germano Marques da Silva,que a figura dos ditos "crimes de mão própria" não deve ter qualquer auto-nomia dogmática face aos crimes específicos, e penso que o regime que

. se pretende atribuir aos denominados "crimes de mão própria" é poli-tico-criminalrnente inaceitável. Que possa haver um ou outro tipo legalcuja constituição e ratio típicas impliquem a impossibilidade jurídico--penal de serem cometidos, a título de autor, por quem não possua deter-minada qualidade, ou que só possa ser praticado pelo autor directo, épossível. Só que, tal impossibilidade de comparticipação (a título deautoria mediata, coautoria ou instigação), tal incomunicabilidade das qua-lidades específicas, exigidas pelo tipo legal, há-de resultar, inequivocamente,do próprio tipo legal. Mas tais casos serão rarissimos, E tanto se podemverificar nos tradicionalmente ditos "crimes de mão própria" corno nos nor-mais crimes especificos. Até porque, como já o sugeri (§ 518 5.), entendoque esta espécie de "crellça" tradicional na autonomia dogmática dos"crimes de mão prôpría'' não tem razão de ser e é político-criminal-mente insustentável. Estes ditos "crimes de mão própria" integram-senos normais crimes específicos e como tal devem ser tratados.

§ 526, Figueiredo Dias definia, em 1976 (48), os crimes de mão pró-pria como «aqueles crimes que tipicamente exigiriam a execução corporal.do crime pela própria pessoa do agente (v. g., incesto, pederastia, vadia-gem, e talvez a bigamia, uso de estupefacientes, etc.)», E, em 2004 (49),

(48) Sumdrios das Lições, p. 54.(49) Direito Penal - Parte Geral, tomo I, 2004, p. 288.

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288 Parte J[. - Teoria Geral do Crime

escreveu: «OS crimes de mão própria, isto é.: os tipos de ilícito emque o preceito legal quer abranger como autores apenas aqueles quelevam a cabo a acção através da sua própria pessoa, não através deoutrem; quer abranger apenas pois, em princípio, os autores imediatos,ficando excluída a possibilidade da autoria mediata; e mesmo da co-auto-ria relativamente àqueles cornparticipantes que não tenham chegado aexecutar por próprias mãos a conduta típica, não podendo por isso, nes-tes casos, verificar-se a "comunicabilidade" a que se refere o art. 28."(cf. a parte final do n." I: "excepto se for outra a intenção da nonna incri-minadora")». E dá como exemplos de "crimes de mão própria" que, por-que tais, seriam, necessariamente, abrangidos pela "proibição" da comu-nicabilidade das qualidades ou relações especiais do agente, constante daressalva da parte final do n." 1 do art. 28.', os arts. 165.' (abuso sexualde pessoa incapaz de resistência), 166.° (abuso sexual de pessoa inter-nada) e 295." (embriaguez e intoxicação). Ou seja, só poderá ser autordestes crimes aquele que possua a qualidade referida no tipo legal e/ouque execute ele próprio a respectiva acção típica, Diga-se que, na2." edição da sua obra Direito Penal, de 2007, p. 305, embora rnante-Ilha a definição que acabei ele transcrever, já parece colocar certas reser-vas ao tal regime especial que, tradicionalmente, era atribuído aos cha-mados "crimes de mão própria". 'Com efeito escreve: «Todavia, anecessidade e a justificação político-criminais desta categoria dogmáticaencontra-se hoje, cada vez mais, em questão».

§ 527. Vejamos, agora, qual é a minha posição, posição que já,na l ." edição do meu Direito Penal, vol. Il, de 2004, p. 88 ss., defendinos exactos termos que se seguem: considero que esta figura dos "cri-mes de mão própria", com as consequências dogmáticas e jurídico--práticas, que lhe associam, é, no mínimo, questionável e, em minhaopinião, político-criminalmente inaceitável.

§ 528. Comecemos por recapitular os pontos essenciais destafigura. Autor destes crimes só pode ser a pessoa que, por si mesma,tenha executado a respectiva acção típica. Entre os crimes que, tradi-cionalmente, têm sido considerados como· "crimes de mão própria",destacam-se certos crimes sexuais (como o abuso sexual de pessoas sobcustódia), o crime de perjúrio ou falsas declarações, o crime de preva-

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Titulo li - O tipo de ilícito 289

ricação e o crime de deserção militar. O regime destes crimes de mãoprópria é o seguinte: exclusão da possibilidade de autoria mediata, dacoautoria e da instigação (pois que, diferentemente do direito alemão, onosso CP considera a instigação como autoria - cf. CP, art. 26.o-pmtefinal), só sendo possível a cumplicidade.

§ 529. Jakobs refere que a origem histórica dos "crimes de mão pró-pria" remontará aos tempos em que predominava um direito penal deautor, em que O desvalor de uma acção não residia nos resultados delesão ou de perigo de lesão para determinados bens jurídicos que a acçãopodia causar, mas antes na deformação pessoal do agente, manifestada nofacto praticado. Assim, a gravidade do falso testemunho não estava norisco deste para a realização da justiça, mas sim na inveracidade pessoaldo declarante perante Deus e a sua consciência. E, ainda a título deexemplo, o crime de deserção não era visto como um perigo para a defesanacional, mas como uma deslealdade pessoal para com a pátria.

§ 530. Independentemente destas ·possivelmente certas origens his-tóricas transcendentes (Deus, natureza, justiça, pátria) dos crimes de-mãoprópria, penso que a "teoria" destes crimes tem passado. de "mão em mão",de forma acritica. Na verdade, não tenho encontrado argumentos, muitomenos consistentes, que lhe confiram uma fundamentação dogmática acei-tável. Mas, o que é mais grave, é que esta pretensa teoria tem conse-quências político-criminais inaceitáveis. E, no nosso direito, ainda maisinaceitáveis do que aquelas (já reconhecidas por vários autores alemães) quese verificam no direito penal alemão, uma vez que, sendo, face ao nossoart. 26.°, a instigação uma forma de autoria, nem sequer é possível a puni-ção do instigador à prática destes crimes de mão própria; o que já é pos-sível, no direito alemão, pois que este' não qualifica o instigador comoautor, mas sim como participante, ao lado do cúmplice.

§ 531. Procuremos, agora, demonstrar a inaceitabtlidade político--criminal da autonomização dogmática desta figura dos "crimes demão própria ",

Embora já tenhamos feito várias considerações contra a autonomi-zação dogmática desta figura dos "crimes de mão própria", completemosessas considerações com a análise dos três crimes que, segundo Figueí-

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290 Parte J[ - Teoria Geral da Crime

redo Dias, constituem (ou, pelo menos, constituíam, em 2004) exemplosde crimes de mão própria com as consequências práticas jurídico-penaisrespectivas (cf. § 528). Estão em causa os crimes de abuso sexual depessoa incapaz de resistência (art. 165.°), de abuso sexual de pessoainternada (art. 166.") e de auto-colocação em estado de inimputabili-dade através da ingestão ou consumo de bebidas alcoólicas ou de subs-tâncias. tóxicas.

§ 532. Devemos, antes da análise dos três tipos de crime apre-sentados por Figueiredo Dias como exemplos de "crimes de mão pró-pria", fazer uma observação. Este Autor dizia, ou pelo menos sugeria,que a proibição da aplicação da regra da cornunicabilidade "das quali-dades ou relações específicas" tem por objecto os chamados crimes demão própria. Mas, dos três exemplos que apresenta, a verdade é que ape-nas um constitui um crime específico, que é o do abuso sexual de pes-soa internada (art, 166."), sendo os outros dois (abuso sexual de incapazde resistência, art. 165.°, e embriaguez ou intoxicação, art. 295.') crimescomuns, Ora, pressupondo a referida regra (a comunicabilidade) e a cor-respondente excepção (a incomunicabilidade) que estejam em causa cri-mes específicos, resulta, desde já, a seguinte conclusão: ou, contrariamentea uma ideia difundida, a excepção, constante da parte final do n," 1 doart, 28.", pouco ou nada tem que ver com os "crimes de mão própria",uma vez que tal excepção pressupõe, necessariamente, que esteja emcausa um crime específico, e dos' três exemplos apresentados por Figuei-redo Dias apenas lU11 é específico; ou a referida excepção tem, de facto,por objecto os tradicionalmente designados "crimes de mão própria"(incesto, prevaricação, perjúrio, abuso sexual da pessoa internada), masentão estes crimes terão, necessariamente, de pertencer à categoria doscrimes específicos, pois que todo o art. 28.°-1 (tanto a regra como aexcepção) tem por objecto os crimes específicos. E, assim, não pode-riam ser considerados como "crimes de mão própria", nem o crime deabuso sexual de pessoa incapaz de resistência (art. 165.°), nem o crimede embriaguez ou intoxicação (art. 295.°).

Complete-se este §, referindo que, na verdade, a generalidade dostradicionalmente designados "crimes de mão própria" eram, e são, cri-mes específicos ("crimes de dever": prevaricação, perjúrio, etc.), a queacresciam os crimes sexuais, numa altura em que se via a essência des-

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tes crimes no acto físico (cópula ou outro contacto sexual) e não, comohoje se defende, na liberdade de autodeterminação sexual,

Por tudo isto é que eu entendo que, se, no passado (quando, comorefere Jakobs, a essência desses crimes estava na infidelidade à veraci-dade pessoal para com Deus e para com a própria consciência, etc.- cf § 529 -, e quando a gravidade do crime sexual se centrava noacto físico), poderiam estes "crimes de mão própria" ter alguma auto-nomia dogmática, hoje, com a centralização do direito penal no factoe nos concretos bens jurídicos, não há lugar para a formação deuma qualquer categoria dogmática, com regime próprio, a partirdos tradicionais e ultrapassados "crimes de mão própria".

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§ 533. Analisemos, agora, os três crimes referidos por FigueiredoDias como "crimes de mão própria", nos quais, segundo este Autor, sóhaverá lugar para a autoria directa (só poderiam, pois, ser imputados aoque, por si mesmo, pratica a acção descrita no respectivo tipo), ficandoexcluídas as outras formas de autoria (autoria mediara, coautoria e ins-tigação), e só podendo qualquer outro comparticipante nestes crimesser punido como cúmplice (no facto praticado por outrem, .i. é, peloautor directo).

Relativamente ao crime de abuso sexual. de pessoa incapaz de resis-tência (art. 165,', que é um crime comum, pensamos que é perfeitamentepossível, não apenas a instigação, mas até a própria autoria mediata e acoautoria, bem como a imputação deste crime, a titulo de omissão, aalguém que, tendo um dever jurídico de garante relativamente à pessoaincapaz de resistência, e podendo impedir o abuso sexual sobre estapraticado, nada fez para o evitar. Pois: que razão haveria para que A nãopudesse ser considerado e, como tal, condenado como autor mediatoou como instigador deste crime, no caso, p. ex., de prometer a B (queé um adulto inimputável) ou a C (que é imputável) uma determinadaquantia monetária, se estes praticarem (porventura na presença do A)actos sexuais de relevo com D, que é uma criança ou um adulto inim-putável? - A resposta é: não havia nenhuma razão, nem dogmática nempolítico-criminal. E o mesmo vale para uma hipótese de coautoria, talcomo para um caso de omissão. Só que, neste caso de omissão, é,obviamente, necessário que sobre o omitente recaia o dever jurldico degarante e, de acordo com um sector da doutrina, de que partilho, estar-se-à

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292 Parte li - Teoria Geral do Crime

diante de uma autoria directa, por omissão. Acrescente-se que, nahipótese de alguém coagir a pessoa - sobre a qual recai o dever degarante relativamente ao incapaz =; a não impedir que este seja sexual-mente abusado por uma terceira pessoa, esse alguém poderá ser consi-derado como instigador ou até como autor mediato deste crime de abusosexual de pessoa incapaz de resistência.

§ 534. Também, no crime especifico de abuso' sexual de pessoainternada (art. 166. "), é perfeitamente possível a' autoria medíata, acoautoria e a instigação, afirmando-se a comunicabilidade das qualida-des ou relações especiais, a que se refere o art. 28."- 1'.

Assim, se um director prisional ou o chefe clínico de um hospital,abusando das suas funções, faz com que um preso ou um doente tenharelações sexuais com um seu (do director ou do chefe) amigo, cometeo respectivo crime (tal como um patrão, quando se serve da sua supe-rioridade económica para "obrigar" uma sua empregada a praticar actossexuais com um amigo do patrão - art. 166.°-2). E se os mesmosdirector prisional ou chefe clínico "obrigassem" uma qualquer pessoa oumil colega da vítima a praticar actos sexuais com esta, naturalmenteque lhe deveria ser imputado este crime como instigador ou, na hipótesede O "obrigado" ser um inimputável, como autor mediato.

O mesmo se diga para o caso de os referidos director ou chefe clí-nico não impedirem que uma outra pessoa (internada ou exterior aoestabelecimento) abuse sexualmente da pessoa internada. Neste caso,director ou chefe clínico (ou qualquer outra pessoa da instituição, sobrea qual recaia o instítucional dever de cuidado para com os internados)seria considerado autor, por omissão, do crime de abuso sexual de pes-soa internada,

§ 535. O caso do crime comum de auto-colocação em estado deinimputabilidade (art. 295°) é mais complicado, na medida em que o res-pectivo tipo legal exige, naturalmente, uma acção reflexa, i. é, que a acçãode beber álcool ou de consumo de drogas se reflicta. no próprio agente,.produzindo a inimputabilidade deste. Por outro lado, exigindo o tipo legalque tal acção (e o consequente resultado de inimputabilidade) seja da res-ponsabilidade (pelo menos, a título de negligência) do agente, é difícil.conceber-se a possibilidade de autoria mediara, pois que esta pressupõe

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que o agente directo não tenha o domínio ético-social da acção quepratica - domínio este que, como já o dissemos, o agente tem, pois, casocontrário, a acção de embriaguez ou de intoxicação não seria típica.

Daqui resulta que só poderá ser considerado autor aquele que «secolocam em estado de inimputabilidade. Relativamente a este crime, umavez que, no direito português, a instigação é considerada uma espécie deautoria, parece não ser possível senão a autoria directa. Diferentemente,!lO direito alemão já é possível a instigação, dada esta não ser conside-rada como forma de autoria, mas de participação, ao lado da cumplici-dade. Assim, nos países em que a instigação não seja considerada umamodalidade da autoria, é possível e verosímil, na prática, haver a puni-ção, como instigador, de quem, dolosamente, incentivar a que outrem seembriague ao ponto de ficar em estado de inimputabilidade.

Já nos Estados cujos códigos penais (como o nosso) qualifiquem ainstigação como uma forma de autoria, o instigador não poderá serpunido como 'tal, pois que isto implicaria considerá-lo como autor de umcrime que, por força do tipo legal (que diz «Quem se colocar», e não«Quem se colocar ou for colocado»), só pode ter por autor aquele quea si mesmo se embriaga ou intoxica.

Mas o facto de aquele que instiga outrem a que se coloque emestado de inimputabilidade não poder ser punido como instigador (autor--instigador) não impede a sua punição a título de cumplicidade. Esta con-clusão fundamenta-se no facto de a instigação ser, sob o ponto de vistamaterial, uma espécie de cumplicidade qualificada (donde parecer maiscorrecta a posição dos Códigos Penais' que consideram a instigação.como uma modalidade da participação, ao lado da cumplicidade, emvez de a considerarem como uma espécie de autoria); logo, a fortiori,o instigador poderá ser punido como cúmplice deste crime, que só podeter como autor o autor directo (desde que, por força do art. 27.°-1, hajadolo do instigador-cúmplice e do autor directo). É certo que esta solu-ção, que defende a punibilidade do instigador como tal (nos países ondea instigação não é uma modalidade de autoria, mas de participação) oucomo cúmplice (como no caso português), levanta a questão da puni-bilidade da autoria mediata. Isto é: se' se considera punível o instigador(enquanto tal ou como cúmplice) e o cúmplice, então não é, político-cri-minalmente, exigível, por maioria de razão, que também deva ser punidoo autor medíato que, p. ex., tenha, sub-repticiamente, lançando na bebida

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294 Pane II - Teoria Geral do Crime

.de outra pessoa uma substância adequada a colocá-la num estado deinirnputabilidade (durante o qual veio a cometer um tipo de ilícito)?

=: A resposta, sob o ponto de vista político-criminal, é a de que é evi-'dente que é mais' merecedor de pena este "autor mediato" do que osimples instigador ou o mero cúmplice. Porém, a verdade é que, tendo.em conta o teor literal do art. 295.° e as exigência do principio da lega-lidade, a referida pessoa não pode ser punida como autora mediata, poisque neste crime só é possível a autoria directa; nem pode ser punidacomo cúmplice (ou como instigadora, nos países em que a instigação nãoé uma forma de autoria), urna vez que o tipo legal do art. 295.° não foi:cometido pelo próprio "autor directo", i. é, por aquele que ingeriu abebida, dado que, em relação a este, não se pode afirmar qualquer.negli-gência na "sua autc't-colocação em estado de inimputabilidade, Na ver-dade, ele não se auto-colocou, mas, sim, foi colocado em estado deinimputabilidade. Logo, este tipo de crime do art. 295." não se verifi-cou .. E, como o CP não prevê o crime de alguém colocar outrem emestado de inirnputabilidade, a conduta deste "autor mediato" ficaráimpune.

Dir-se-á que esta solução coenvolve uma lacuna de punibilidade.O que é verdade; mas é a solução que o respeito pelo princípio da lega-lidade impõe. Como nota final, diga-se que, relativamente ao crime(cdlícito tipico» praticado pelo que se auto-colocou em estado de inim-putabilídade, já é possível, não apenas a cumplicidade, mas também aautoria mediata e a coautoria (50).

§ 536. A conclusão final é a seguinte: os chamados "crimes de mãoprópria" não constituem uma categoria autónoma de crimes; se, no pas-sado, houve razões para autonomizsr e atribuir um regime específico, emmatéria de cornparticipação, a determinados "crimes de dever", hoje, apartir da centralização do direito penal no facto e na tutela de concre-tos bens jurídicos, deixa de haver razão para tratar esses tradicionais"crimes de mão própria" com um regime diferente dos normais crimesespecíficos; assim, a comunicabilidade das «qualidades ou relações espe-

(50) Cf. TAJPA DE. CARVALHO; Comentário Conimbrlceose, tomo II (1999),art. 295.·, § 38

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ciais do agente» referida no art, 28,°-1, também é defensável e aplicá-vel aos tradicionais "crimes de mão própria", desde que, obviamente, estessejam crimes específicos; pode suceder, embora raramente, que a estru-tura típica de determinado crime, que tanto pode ser comum como espe-clfico, não permita a cornparticipação por autoria mediata ou coautoría;mas esta impossibilidade resultará da estrutura formal do. tipo legal, e nãoda natureza material da própria acção ilícita.

2. Classificação segundo o critério do resultado material

§ 537. Segundo este critério, os tipos de crime dividem-se em crimesde resultado, comissivos ou materiais e crimes de mera conduta (meraacção ou mera omissão) ou formais .. Nos primeiros, o resultado é ele-mento do tipo de ilícito (p. ex., homicídio, art, 131.°; furto, art, 203."); dondeque o crime só esteja consumado, quando o resultado se produza; em rela-ção a estes tipos legais de crime, levanta-se o importante problema da impu-tação objectiva do resultado à conduta, que será tratado no capitulo seguinte.

§ 538. Nos crimes de mera conduta (acção ou omissão) ou crimesformais, o resultado não é elemento do tipo (p. ex., condução de veículoem estado de embriaguez, art. 292.°; omissão de auxílio, art. 200.°).Há que não confundir esta classificação com a classificação dos crimesde dano e de perigo. País, embora, no geral, um crime de resultado oumaterial (em que é atingido um objecto material) seja também, segundoo critério do bem jurídico, um crime de dano (cujo objecto é o bemjurídico), pode acontecer que um crime material não seja também umcrime de dano, mas sim de perigo, como é, p. ex., o caso do tipo legalda contrafacção de moeda, art. 262.°

3. Classificação segundo o critério do processo causal

§ 539. Segundo este critério, os tipos de crime distinguem-se emcrimes de processo típico ou de execução vinculada e crimes de pro~cesso atípico ou de execução livre.

Nos primeiros, o tipo legal descreve a modalidade que a acção temde assumir (p. ex., crimes de coacção, art. 154.°-1; burla, art. 217.Q

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condução perigosa de veículo, art. 291.°).

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296 Parte JI - Teoria Geral do Crime

. Nos segundos, ao tipo legal é indiferente a modalidade da acção ouo meio que o autor utilize (p. ex., crime de homicídio, art, 13P; furto,ali. 203.°). Tratando-se de crimes de resultado, a única coisa que relevaé que a acção seja considerada adequada a produzir o resultado - pro-blema da imputação objectiva do resultado à conduta.

4. Classificação segundo o critério da unidade ou pluralidadede acções ilícitas

§ 540. Segundo este critério, há que distinguir entre crimes sim-ples e crimes complexos.

Os primeiros são constituídos por .uma só acção ilícita (p. ex., ofurto, art. 203.°; o abuso de confiança, art. 205.°).

Os segundos são constituídos por mais que uma acção ilícita .. Porexemplo, o roubo, art. 210.°, que é constituído pela acção de subtracção- tal como o furto - ou de constrangimento, e pela acção de violên-cia ou ameaça de violência; a violação, art. 164.°, onde, além da acção.de cópula, etc., contra a vontade da vítima, tem de haver a utilização deviolência ou de ameaça.

De notar que esta classificação coincide, pelo menos em regra,com a classificação dos tipos de crime em uní-ofensívos e plurlo-fensívos, classificação esta que é feita com base no critério da uni-dade ou pluralidade de bens jurídicos protegidos pelo respectivo tipolegal e lesados pela correspondente conduta criminal. Assim, p. ex.,no tipo de roubo, art. 210.°, não só está presente e protegido ° bemjurídico propriedade alheia de coisa móvel, mas também a integridadefísica ou a liberdade da vítima da lesão do bem patrimonial, ou deterceiro.

Também se poderá dizer que, em muitos caos, os tipos de crimecomplexos (cuja classificação, como vimos, assenta no critério da uni-dade ou pluralidade de acções) coincidem com os crimes de processotípico ou de execução vinculada (cujo critério é, como se viu, a exi-gência de determinado processo causal ou modalidade da acção) ecom os crimes pluri-ofensivos (critério da pluralidade de bens jurídi-cos). Assim, p. ex., o tipo de crime de coacção é, simultaneamente,crime de processo típico ou de execução vinculada, críme complexo ecrime pluri-ofensivo.

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5. Classificações segundo o critério da reiteração ou repetiçãoda acção

§ 541. Segundo este critério, os crimes dizem-se habituais e pro-fissionais.

Nestas duas categorias de crimes, é elemento 'comum a prática rei-terada de uma mesma acção (p. ex., usura repetida, art. 226.°-4-a)); o ele-mento típico diferenciador está na circunstância .de, nos crimes profis-sionais, o agente fazer da reiteração da acção modo de vida, ou seja, umafonte de rendimentos correntes (ex.: a usura habitual, art. 226.o-4-a)).

6. Classificações segundo o critério do bem jurídico

6.1. Segundo o critério da intensidade do "ataque" ao bemjurídico

§ 542. Segundo este critério, os crimes dividem-se em crimes dedano e crimes de perigo.

Nos primeiros, é elemento do tipo legal a efectiva lesão do bem jurí-dica. Exemplos: homicídio, arts. 131.0 e 132.0; ofensas corporais,art, 143.· 5S.; furto, art. 203." s.; coacção, art. 154.° Nos crimes deperigo, o tipo legal apenas exige a colocação em perigo do bem jurídico.

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§ 543. Os crimes de perigo dividem-se em crimes de perigo con-creto e crimes de perigo abstracto.

Nos primeiros, o tipo legal exige que o bem ou bens jurídicos tute-lados tenham sido, efectivamente, postos em perigo, Exemplos: conduçãoperigosa de veículo rodoviário, art. 291.0 Deste -modo, o perigo efectivoé elemento do tipo legal (da. factualidade típica) e, portanto, tem de, norespectivo processo penal, se fazer a prova-de que a conduta pôs, de facto,em perigo o bem jurídico tutelado .

Nos crimes de perigo abstracto, o perigo não é elemento do tipolegal e, portanto, não tem de se fazer a prova de que a conduta descritano tipo colocou em perigo o bem jurídico. O legislador, baseado na ele-vada perigosidade da conduta, demonstrada pela experiência, consideraque tal conduta contém sempre o risco sério de poder lesar ou pôr emperigo o importante bem jurídico protegido pelo tipo. Exemplo: a COl1-

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298 Parte fi - Teoria Geral do Crime

dução de veículo rodoviário em estado de embriaguez, art. 292." É estaexperiencialmenle elevada perigosidade da conduta, juntamente com agrande importância do bem ou bens jurídicos protegidos, que conferemlegitimidade constitucional e político-criminal à figura dos tipos de cri-mes abstractos (á protecção "antecipada" que estes conferem).

§ 544. Relativamente aos crimes de perigo abstracto, poderão elesdescrever condutas que, não sendo em si mesmas consideradas neces-sariamente reprováveis, podem, quando praticadas num determinadocondicionalisrno, não ter a perigosidade que quase sempre têm. Numatal hipótese, a perigosidade associada, tipicamente, à conduta pode serobjecto de um juizo negativo. Nestes casos, estar-se-à diante de umcrime de perigo abstracto-concreto, de que poderá ser exemplo ocrime de embriaguez, previsto no art, 295.°

Acrescente-se que a comprovação de que, no caso concreto, a con-duta não continha a perigosidade pressuposta pelo tipo não constituíum ónus de "contra-prova" a recair sobre o arguido, mas é um poder-dever do tribunal incluído no princípio-dever de investigação da ver-dade material, poder-dever que, obviamente, só existirá nos casos em quese suscitarem dúvidas sérias.

6.2. Segundo o critério da duração da lesão do bem jurídico

§ 545 .. Segundo este critério, os tipos de crime dividem-se eminstantâneos e duradouros ou permanentes.

Os primeiros são aqueles crimes cuja lesão do bem jurídico ocorre nummomento, num instante (p. ex., homicídio, art, 131.° 55.; fi.u1q, art. 203.° s.),

Os crimes permanentes ou duradouros são aqueles cuja lesão dobem jurídico se pode prolongar por um tempo mais ou menos longo(p. ex., o sequestro, art. 158.°; violação do domicílio, art. 190.°-1). Pode'dizer-se que os bens jurídicos protegidos pelos respectivos tipos legaissão indestrutiveis: podem ser afectados (lesados) mas não destruidos.Assim, embora a consumação do crime ocorra com o inicio da lesão dobem jurídico, todavia só termina com a cessação _dalesão. E as con-sequências jurídico-práticas são importantes: quanto à prescrição doprocedimento criminal, o prazo só se conta a partir da cessação da con-sumação; relativamente à legitima defesa, esta é possível até que cesse

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a consumação; a comparticipação é possível mesmo depois do inicioda consumação e até à cessação desta; o crime (p. ex., no caso desequestro) considera-se cometido em Portugal, mesmo que só parte daduração da lesão se tenha verificado em Portugal, etc.

§ 546. Segundo o critério da unidade ou pluralidade de bens jurídicosprotegidos pelo tipo: crimes uni-ofenssivos e plurí-ofenstvos (cf § 540).

6.3. Segundo o critério da natureza pessoal, ou não, dos bensjurídícos

§ 547. Segundo este critério, os crimes dividem-se em crimesemínentemente pessoais e crimes não eminentemente pessoais.

Nos primeiros, o respectivo tipo legal protege, directamente, osbens jurídicos que se reconduzem aos chamados "direitos da personali-dade" (vida, integridade fisica, liberdade, honra, etc.). Estes tipos decrime encontram-se no Título I ("Dos crimes contra as pessoas") daParte Especial do Código Penal.

Os tipos de crime não eminentemente pessoais (apesar destadesignação parecer residual) protegem uma diversidade de bens jurídi-cos: patrimoniais (exs.: furto, roubo, burla, dano, insolvência), queconstam do Título li ("Dos crimes contra o património"); comunitá-rios (exs.: bigamia, falsificação de documentos, contrafacção de moeda,poluição, atentado a segurança de transporte), que formam o Título IV("Dos crimes contra a vida em sociedade"); estaduais (exs.: traição àpátria, alteração violenta do Estado .de Direito, coacção de eleitor,suborno, prevaricação, corrupção, abuso de autoridade) que constam doTítulo V ("Dos crimes contra o Estado"); e universais (exs.: discrimi-nação racial ou religiosa, tortura), contidos no Título III ("Dos crimescontra a identidade cultural e integridade pessoal") da Parte Especialdo Código Penal.

6.4. Segundo o critério da autonomia ou dependência existenteentre os tipos legais que protegem o mesmo bem jurídico

§ 548. Segundo este critério, temos a divisão em crimes funda-mentais e crimes derivados.

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300 Parte li - Teoria Geral do Crime

Os primeiros, cuja factualidade típica é menos complexa, constituemcomo que a estrutura da Parte Especial dos Códigos Penais (exs.: homi-cídio, art. 131."; ofensa à integridade física, art, 143.°; sequestro, art. 158.°;furto, art. 203.°; burla, art, 217.").

Os tipos de crime derivados formam-se, mediante a adição, aoselementos do tipo fundamental, de novos elementos ou circunstâncias,que aumentam ou diminuem o ilícito e/ou a culpa do crime fundamen-tal e, consequenternente, agravam ou atenuam a correspondente pena. Seagravam, chama-se crimes qualificados (p. ex.: homicídio qualificado,art. '132.°; furto qualificado, art. 204.°); se atenuam, chamam-se crimesprivilegiados (p. ex.: homicídio a pedido da vítima, art. 134."; ofensa àintegridade física privilegiada, art. 146.").

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12." CAPíTULO

A IMPUTAÇÃO DO RESULTADO À CONDUTA

r. A situação, a importância prática e o sentido do problema

§ 549. A situação:' corno já foi referido (§ 537), esta questão daimputação objectiva do resultado à conduta (acção ou omissão) tem quever com os crimes de resultado, nos quais o resultado material é elementodo tipo de ilícito.

§ 550. A importância prática: dentro da multiplicidade dos tiposde crime de resultado, a questão assume relevância prática sobretudo em rela-ção aos crimes de homicídio e de ofensas corporais. Assim o demonstramos casos jurisprudenciais e os exemplos construidos pela doutrina .

§ 551. O sentido do problema: determinar a relação que tem deexistir entre o resultado típico e a conduta humana (acção ou omissão) paraque possa atribuir-se (normativamente) o resultado à acção (ou à omissão,no caso de sobre o emitente recair o "dever jurídico de garante"), de formaa poder afirmar-se que o agente cometeu o tipo de ilícito de resultado e, con-sequentemente, no caso de acrescer ao ilícito de resultado a culpa do agente,este poder' ser responsabilizado, jurídico-penalmente, pelo respectivo tipo decrime consumado, Está, portanto, em causa, no problema da imputaçãodo resultado, uma questão da ilicitude nos tipos de resultado.

li. História da evolução das teorias sobre esta questão

1. A teoria da causalidade, das condições equivalentes ou daconditio sine qua non

1.1. Breve exposição

§ 552, Esta teoria surgiu no contexto do positivismo naturalista deoitocentos, tendo sido iniciada por Julius Glaser e' desenvolvida por von