Taipa Carvalho Condicionalidade Socio-cultural Do Direito Penal

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  • U N I V E R S I D A D E DE C O I M B R A

    Boletim ds

    Faculdade de Direito c o m s i i o R E D A C T O R A

    T E I X E I R A R I B E I R O A L M E I D A GOSTA EHRHARDT SOARES CASTANHEIRA NEVES

    H I D C T O K - D E L E G A D O

    A. CASTANHEIRA NEVES

    VOL. LV11I 1 9 8 2

  • CONDICIONAL IDADE SCIO-CULTURAL DO DIREITO PENAL

    SUMRIO

    I. INTRODUO: 1Dogmitca jurdico-penal, poltica criminal e criminologia. 2 Relevncia da histria da evolu-o do direito penal para a investigao jurdico-crimiml. 3 Preciso do conceito dc historicidade do direito penal. 4 Objecto e sequncia do presente trabalho.

    II. A AITA IDADE MDIA E O DIREITO PENAI (scs. VRA--xn): 5 A invaso maometana e o clima geral de insegurana dos povos ibricos. 6 Os valores da solidariedade, da fide-lidade e da paz. 7 Manifestaes, no direito penal, da solida-riedade familiar e muncipal. 8 Manifestaes, no direito penal, do valor da fidelidade. 9 Direito penal de autotutela.

    IIL A BAIXA IDADE MDIA (scs. x n - x v ) E A IDADE MODERNA (scs. xv-xvm) B o DIREITO PENAL: 10 Razo da associao da baixa Idade Mdia i Idade Moderna: o novo condicionalismo scio-cultural que naquela se gera, nesta se afirma. 11 Factores econmico-sociais. 12 Factores culturais. 13 Factores poli-tico-jurdicos. 14 Reflexos deste novo condicionalismo scio-cultural c polcico-j urdico no direito penal: publicizao do ius puniendi. 15 (cont.) Crise dos valores altome-dievais da solidariedade e da fidelidade. 16 (cont.) Imputao pena de um sentido de preveno geral de intimidao: penas cruis, penas infamantes, confisco, transmissibilidade dos efeitos da pena aos descendentes. 17 (cont) Instrumentalizao do ius condonandi (direito de clemncia ou direito de graa).

    IV. A IDADE CONTEMJPORANEA (da 2 . ' metade do sc. xvnt aos nossos dias) E o DIREITO PENAI.: 18 Reflexo sobre a deno-minao Idade Contempornea. A) A Ideologia da Ilustrao e o Direito Penal: 19 Antecedentes histricos do iderio ilu-

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    minista. 20 O iderio filosfico-po ltico da Ilustrao: priori-dade do indivduo face ao Estado e os direitos naturais; autosu-daz racionalista. 21 A nova filosofia poltico-criminal (contratualismo, utilitarismo, legalismo e secul&rizao) e a sua projecto no direito penal positivo. 22 Autores mais repre-sentativos do iluminismo criminal: BECCARIA, FEUERBACS e, em Portugal, MELO FKEIBE. B) A Filosofia idealista Alem e a Escola Cldssica: 23 Reaco do idealismo alemo ao utilita-rismo jurdco-penal dos iluministas. 24 Fundamentao metafsica do direito poial da escola clssica. 25 O problema fundamental da legitimao do ius puniendi. 26 O princpio da retribuio como exigncia metafsica e como garantia poltica. C) A Escola Correaiomlista: 27 O pensamento humanitarsta de KODEB E a pena como correco ou emenda do delinquente (preveno especial humanitria). 28 A espe-cial repercusso do iderio correccionalista na pennsula ibrica. D) O Cientismo Oitocentista e a Escola PitUiva: 79 A mundi-vidncia positivista: ontoiogismo positivista e positivismo epis-temolgico. 30 A transposio, para o direito penal, do reduconismo positivista-naturalista: determinismo, perigosidade e medidas de segurana; confluncia do positivismo naturalista com o positivismo jurdico; a poltica criminal como profilaxia e teraputica sociais. 31 Reflexos positivos da escola posi-tiva: considerao da personalidade concreta do delinquente, as investigaes criminolgicas (a criminologia) e a adopo de medidas alternativas pena de priso. 32 Aspectos aegitivos; o direito penal reduzido a mera cincia emprica (negao de qualquer fundamentao tico-axiolgica do direito penal), despersonalizao do delinquente, desprezo pelas garan-tias legais e jurisdicionais. E) O Direito Penal na Actualidade:

    33 O repensar do estatuto juridico-penal do delinquente face necessidade da defesa da sociedade, recusa das ontologias idealista e positivista bem como do indeterminismo bsoluto e do determinismo naturalista, a) A *

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    da verdade e da justia, certo; mas no como critrio-fundamento da validade- 39 Repercusso da anilise sociolgica sistmico--funonal no direito penal: a reduo do bem jurdico s possibilidades de participao no dilogo social, o delito como violao das expectativas (noo soriolgico-funrional), a pena como reafirmao das expectativas (Rechtstreue). 40 Cr-tica: referem uma coudiSo necessria; a estabilidade e funciona-lidade do sistema; nada nos dizem sobre o essencial, ou seja, a materialidade do justo (relativismo axiolgico), podendo servir qualquer viso totalitria do Homem e da sociedade, d) Concepes tico-axioMgicas do direito penal: 41 Princpios comuns: dimenso axiolgica do bem jurdico, fundamento da pena na culpa tico-pessoal, poltica criminal como ultima ratio da poltica social 42 Funo do direito penal: protec-o do mnimo tico-jurdico fundamental; bem jurdico: dimenso axiolgica c dimenso pragmtica; determinao dos bens jurdico-penais: apleo conscincia, tico-axiolgica da comunidade histrica, mediatizada pela Lei Constitucional. 43 O princpio da culpa como exigncia tica, como garantia politica e como condio de eficcia do direito penal; referncia a um conceito material da culpa da personalidade. 44 A pena: a ratio, funo ou fim da pena: tutela do mnima tico-jur-dico fundamental; sentidos ou dinmica da pena; o problema dos princpios e critrios da escolha e determinao da pena concreta; a relao entre o princpio da culpa e a preveno: o princpio da culpa como princpio inviolvel (pressuposto e limite mximo da pena); divergncias quanto ao papel desem-penhado pela culpa na determinao concreta da pena: a Punkt-strafe ou teoria da pena exacta; a Spielraumtheorie ou teoria da margem de liberdade; a Stetienwerttheorie ou teoria do valor de emprego; a nossa posio: a culpa e a pre-veno (geral e especial) devem ser tidas era conta pelo legislador, pelo julgador e pelo juiz de execuo da pena (princpio tenden-cial); o momento da escolha e medida concreta da pena: a con-ccpSo unilateral c a concepo bilateral do princpio da culpa e as razes da nossa opo pela segunda; o critrio da culpa material como, poltico-criminalmente, o mais eficaz fundamentao desta assero; referncia ao modo de execuo da pena pri-vativa ou restritiva da liberdade: o simplismo acrtico do mito da rtssocializao na dcada de sessenta e o seu abandono a partir da dcada seguinte - explicao desta viragem bmsea; a nossa posio quanto s finalidades da execuo da perna privativa ou restritiva da liberdade.

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    I. Introduo

    1. Reagindo contra a perspectiva tradicional que remetia o estudioso do direito penal para uma tarefa meramente tcnica, dogmtica e no interveniente, com todos os riscos que tal pen-samento comporta e que a histria recente j o demonstrou a investigao jurdico-penal tende, hoje, embora com hesita-es, a projectar-se para alm da restrita dogmtica, substituindo ou, mais correctamente, dando prioridade ao pensamento pro-blemtico face ao pensamento sistemtico-dcdutivo.

    Tal viragem significa conscincia de que o sistema s logra sentido, e assim se legitima, quando ao servio da justa resoluo do caso concreto, perdendo todas as suas possveis e necessrias virtualidades e convertendo-se, at, num obstculo realizao da Justia, quando se fecha sobre si mesmo, absolutizando-se, e, assim, desvirtua o existente.

    Esta metania de uma conscincia jurdica acrtica, neutra e hipotecada ao Estado e sua lei numa autntica (e autnoma)

    1 PIGUHHEDO DIAS, OS NOVOS Rumos da Politica Criminal e o Direito Penal Portugus io Futuro, Lisboa (1983), 6-8 (sep. da Revista da Ordem dos Advogados 1983, N. 1); CSTANHBIRA NHVBS QuestSo-Je~Facto Questo--de-Diteito, Coimbra (1967), 63-68 589-598 passirn; ID., Justia e Direito in Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra LI (1975), 228-230; BAPTISTA MACHADO, Sobre o Discurso Jurdico, Coimbra (1965), 9-12 e 52-60; PAOLO DE LALLA, Note sulla Coscienza Ciuridica in Rivis ta Italiana di Diritto e Pro-cedura Penale XXI (1978), 502; GIMBBHNAT OBDEIC, Ttette un Futuro la Dogma-tiza Juridicopenat? in Problemas A teu ales de Dexecho Penal y Procesal, Sala-manca (1971), 108; MM POIG, Introduccin a las bases dei Derecho Penal, Barce-lona (1976), 279 e ss..

    Para o pensamento sistemtico em geral, vide, entre outros, MOUNISK, O Personalismo, Lisboa (1960), 14-15; J. LACROU, Marxismo, Existencialismo, Personalismo, Porto (1964), 76-95.

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    conscincia jurdica2, conduziu ao reconhecimento da indis-pensabilidade de um dilogo aberto entre a dogmtica jurdico--penaJ, por um lado, e a poltica criminal e a criminologia, por outro.

    Abertura poltica criminal, pela simples razo de que, sendo esta, a poltica criminal, uma necessria e adequada expresso da poltica social geral3 e, portanto, de uma determinada con-cepo do Estado e das relaes deste com a sociedade e com a pessoa humana, os seus princpios norteados pela eficcia e limitados pela validade devero penetrar na dogmtica penal 4.

    2 Sobre a natureza, funo, limitaes e virtualidades da dogmitca jurdica, v. CASTANHEIRA NEVES, Questo... (nota 1), 278 e ss., 599-606; ID., O Instituto dos 'Assentos e a Funo Jurdica dos Supremos Tribunais, Coimbra (1983), 239 e ss.; ID., A Unidade do Sistema Jurdico: o seu Prcblema e o seu Sentido in Estudos em Homenagem ao Prof Doutor J. J. Teixeira Ribeiro D, Coim-bra (1979), 81-90, 96-100 e 135 e ss.; BAPTISTA MACHADO, Introduo ao Direito e ao Discurso Legitimador, Co imbra (1983), 368 e JS.; ID. ( n a u 1), 11, 14-20, 30, 36-37; FIGUEIREDO DIAS (nota 1), 9 ; ID., Direito Penal e Estado-dcDireito Material in Revista de Direito Penal, Rio de Janeiro (1982), 40-42; ID., O Pro-blema da Conscincia da Ilicitude em Direito Penal, Coimbra (1969), 6-7 e 18-22 BOAVENTURA SOUSA SANTOS, O Discurso e o Poder in Estudos e m H o m e n a g e m a o Prof. D o u t o r J. J. Teixeira Ribeiro Q, C o i m b r a (1979), 229-233; P. LAILA (nota 1), 520-526 e 534-540; M m PUIG, Dogmtica Crcadort y Poltica Criminal in Rvue Internationale de Droit Pil (1978), 215 e ss.; ID. (nota 1), 305--324; JESCHECK, Tratado de Derecko Penal I, Barcelona (1981), 58-59.

    3 Correcta e sensatamente, afirma MBZGEK: uma boa poltica social a melhor poltica criminal. Evidente que tal no implica que se negue auto-nomia e especificidade prprias poltica criminal face poltica social geral. Sobre este ponto ver HEINZ ZIPP, Introduain a la Politica Criminal, Madrid (1979), 158 e ss.. . * F. DIAS (nota 1), 9 e ss.; H . ZIPP (nota 3), 5-9; M u f f o z CONDE, n o preficio edio espanhola do Jivro de CLAUS ROXIN, Culpabilidad y Pre-venon en Derecko Penal, Madr id (1981), 27; JESCHECK (nota 2), 28-36; C . ROXIN. Poltica Criminal y Sistema dei Derecko Penal, Barcelona (1972), 40: os proble-mas poltico-criminais fazem parte do contedo prprio da teoria geral do delito... e as categorias desta devem sistematizar-se, desenvolver-ae e pers-pectivar-5 c, desde o princpio, em ordem 4 sua funo poKttco-criminal.

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    Abertura (critica) aos resultados das investigaes crimino-lgicas pelo facto de o direito penal, mais que qualquer outro ramo da ordem jurdica, nao poder (dever) fechai os olhos, sob pena de perder eficcia e mesmo legitimidade, ao existir humano, individual e comunitrio, na complexidade dos ml-tiplos factores de conflitos que o condicionam c, no poucas vezes, o dramatizam3.

    5 Para ns, no tocante ao problema do objecto, AA funo e da autonomia da poltica crimina] frente criminologia, adequada a afirmao de H. ZrPF (nota 3), 9-14, ao considerar a politica criminal na expresso de MEZGIR como cincia valorativa axiolgica e a criminologia como cincia fcrica (experimental), salientando que tal como o que deve ser no resulta do que , tambm os resultados das investigaes crimino] gicas constituiro um contri-buto imprescindvel, a ser utilizado, criteriosamente (isto , no quadro dos prindpios normativos ea&xmant e dinamizadores da poltica cr minai) pela poltica criminal, a fim de que esta se tome mais eficaz na luta contra o fenmeno criminal.

    Digamos, em sntese, que, para ns que sentimos e pensamos que se toma cada vez mais urgente o combate (o bom combate) a difusa e corrosiva relativizao e ao reducionismo sociolgico do Direito, a criminologia tem a ver, sobretudo, com a dimenso de eficdcia da politica criminal, no relevando, pelo menos directamnte, na componente da validade da politica criminal.

    O que acabo de afirmar no afecta, cm nada, o nosso entendimento do contributo imprescindvel que a poltica criminal deve buscar nos resultados das investigaes criminolgicas. O que pretendemos afirmar, isto sim, que no se pode conceber a politica criminal, enquanto cincia valorativa axiolgica, como resultado ou derivada (logo, subordinada) da cincia expe-rimental cm que comit e * que sc deve reduzir a criminologia. No estranha a o cerne da problemt ica e m causa, as consideraes de BAPTISTA MACHADO, Introduo... (noa 2), 44-49 e 253-272.

    Numa perspectiva um pouco divergente, segundo creio, da por ns seguida E acabada de refer i r , v. FIGUEUUDO DIAS/COSTA ANDBADB, Crimino-logia, Coimbra (1984), 107-113; COSTA ANDBAPE, O Novo Cdigo Penal e a Moderna Criminologia in Jornadas de Direito Criminal o novo cdigo penal portugus t legislao complementai fase I, Lisboa (1983), 187 e ss..

    Sobre a importncia da criminologia para a poltica criminal e, assim, tambm, para a dogmtica judidlco-penal, v., ainda, JESCHBCK (nota 2), 57 e 62-63: o direito penal sem criminologia cego, a criminologia sem o direito penal intil; o meu Problemas de Prognose Criminal, Coimbra (1978), 5-6 (sep. do BFDC LIV (1978), 45-46).

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    2. A compreenso do papel que o direito penal chamado a desempenhar nas hodiernas sociedades democrticas no pode prescindir, tambm, da histria da evoluo das instituies jurdico-criminais 6, histria que s cobrar sentido til, para o presente e para o futuro, na medida em que for inserida na din-mica do respectivo contexto scio-cultural7.

    4 Como afirma WRTHNBERGBR, sem histria do direito penal no pode haver uma cincia jurdico-pefial de pleno valor. Tambm nos parece muito legitima a afirmao de GOLO MAN: A histria ensina-nos o que per-manece, o que se repete de modo anlogo, ensina-nos o diferente e o nico. Ensina-nos o surpreendente, o imprevisvel: o comedimento e a humildade ambas as citaes apudH. ZIPF (nota 3), respectivamente, pgs, 15 e 16. E no resistimos a transcrever PAOLO DE LAILA (nota 1), 524-525: .4 ciso cada vez mais profunda entre filosofia do direito, direito positivo e histria do direita resulta especialmente, da perda de identidade jurdica e racional da conscincia reflexiva que, forada por isto a procurar a sua prpria legitimao racional no exterior, conduz cada um dos trs ramos a agir teoricamente em condies de permanente hetcionotnia, e a sentir menos prpria yaridicidadet do que o enquadramento num pensamento metafsico abstracto segundo os mtodos tientfko-empricos, sincrnicos, da organizao material ou o sociologismo diacrnico destes. Tal alheamento (...) tirar (...) todo o valor conscincia e prdxis, tomando-a prisioneira da efectividade 'lgica do ^espirita do tempo. Sublinhados nossos.

    ? WBLZHL, Das deutsche Strafreckt, 12.* ed. (1965), 6; M-I- ALMEIDA COSTA, Apontamentos de Histria d Direito, Coimbra (1980), 10-11 e 13; GAHOA GALLO, Histria, Derecko y Historia dei Derecho in Annuario de Historia dei Derecho Espafiol; ANTNIO MANUEL HBSPAN&A, O Direito e a HistSria os caminhos de uma histria renovada das realidades jurdicas in Revista de Direito e de Estudos Sociais, XVII, iu 1 (1970), 159-179; ID., Histria das Instituies

    pocas medieval e moderna, Coimbra (1982), 22-28, embora nos parea amb-gua a posio do autor quanto natureza, funo e autonomia do Direito face a outras ordens promotoras da coeso social Leia-se, p. e., pigs. 26-29: O objectivo da acitividade jurdica (...) manter a coeso social atravs da imposio de um conjunto de regras destinado a resolver os conditos gerados entre os indivduos; na nota 19 da pg. 27, diz: A expresso aparelho procura destacar a ideia de que o direito no constitui um sistema axiolgico ideal, mas algo segregado, produzido por um conjunto de instituiLes sociais que, consi-deradas do ponto de vista do direito (i. , do seu produto), constituem um aparelho de produo jurdica sublinhados do autor.

    Razo tem O. BUJNNKR ao considerar como vido metodolgico c como um dos (actores do descrdito dos estudos histrico-jurdicoJ a tendncia para isolar a histria do direito da histria social geraL

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    Assim perspectivada na sua natural e inndvel ligao com o todo social de cada povo em cada poca, a evoluo das instituies jurfdico-penais demonstrar-nos-, por exemplo, a condicionalidade histrico-cultural de toda a poltica criminal 8

    e a inexistncia de um conceito natural de crime 9.

    3. Dizer-se que no existe um conceito de delito natural no significa, de forma alguma, a aceitao ou sequer a rendio a um qualquer relativismo ou nihilismo axiolgico, com todos os riscos daqui advenientes para a pessoa humana que se tomaria em objecto dcil nas garras do positivismo e do voluntarismo poltco-jurdico10. Significa, sim, que o crime se situa no mundo cultural e que, como tal, s se pode determinar e definir por referncia aos valores que, em cada poca, em cada estdio

    8 H. ZIPF (nota 3), 14-15: A poltica criminal estj sempre enquadrada num determinado marco cultural e social e situa-se numa tradio qual pode sentir-se mais ou menos vinculada, mas nunca a podendo negar como factor socialmente relevante. O homem insere-se na historicidade na qual se tem de realizar, prosseguindo a criao em cada caso, e da qual no pode despren-der-se.

    Vem, seguramente, a propsito, transcrever uma passagem da vigorosa Histria de Cristo (3.* ed., Lisboa, pig. 78) do sibio GIOVANNI PAKNI: OS homens mal domados, mal jungidos Lei, como se vem no Mahabarata e na Ilada, no Poema de Izdubar e nos Livros das Guerras de Jehovi, teriam sido, sem o terror dos castigos dos Deuses, ainda mais ferozes e desencadeados. Nesses tempos em que por um olho se pedia a cabea, por um dedo um brao e por uma vida cento e vinte, a Lei de Talio que pedia apenas olho por olho e vida por vida, era uma assinalada vitria da generosidade e da justia, embora, hoje, depois de Jesus, nos parea pavorosa.

    9 Sobre as tentativas obviamente no logradas de estabelecer uma definio acabada, compreensiva e anistrica de crime, v. F. DIAS/ /C. ANDRADE (nota 5), 17; H . ZIPF (nota 3), 79-S4; JESCHBCK (nota 2) 18-19.

    10 C CASTANHEIRA NEVES, O Papel do Jurista no Mosso Tempo in Bole-tim da Faculdade de Direito de Coimbra, XLIV (1968), 110-115; ID., Questo... (nota 1), 589-598; ID., Justia e Direito... (nota 1), 218 e ss.; ID., Unidade... (nota 2), 175-184 e 254; P. DE LALIA (nota 1), 517-520.

  • I Condicionalidade scio-cultural do Direito Penal 1047

    da re-criao humana, constituem a estrutura fundamental da conscincia tico-social11.

    Tais valores, sendo como que exigncias (imanentes) e mani-festaes da prpria conscincia individual e social, dependem (na sua apreensibilidade) do aprofundamento e do des-envolvi mento dessa mesma conscincia humana, apofondamento e desen-volvimento que s na historicidade do concreto quotidiano comu-nitrio se realiza ,2.

    4. A presente investigao tem por objecto analisar a evo-luo histrica do direito poial dos vrios povos a que a histria nos ligou. Tal anlise, que ser feita segundo a perspectiva referida no n. 2 o que significa que teremos a preocupao de salientar a dinmica dos factores scio-culturais que condi-cionaram a evoluo do pensamento e das instituies jurdico--penais, naturalmente que s poder salientar os aspectos considerados mais relevantes no direito penal em devir histrico.

    Num segundo momento, que se situar no mbito da Idade Contempornea, dedicaremos o nosso esforo apreciao crtica de algumas teses actuais sobre aspectos ou problemas fundamentais do direito penal.

    11 Cf. bibliografia referida em nota 10. 12 Sobre esta temtica, v. BAPTISTA MACHADO, Antropologia, Existen-

    cialismo t Direito, Coimbra (1965), 65 e ss.; ID Introduo... (nota 2), 254, 287 e ss, spee. 296-303; ID., Participao e Descentralizao, Coimbra (1978), 89-94; CASTANHEIRA NEVES, Questo... (nota I), 571-586; ID., O Papel... (nota 10), 84-85,126-131 e 141-142; ID., Unidade... (nota 2), 106-108; Fretna-RBDO DIAS, O Problema... (nota 2), 111-116. Embora numa perspectiva dife-rente, lei-se, com interesse, MAURICH NDONCELLE, Para uma Filosofia do Amor e da Pessoa, Lisboa (1961), spec. 81-98, 131-150 e 200-230.

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    II, A Alta Idade Mdia e o Direito Penal (scs. vm-xn)

    5. A fase histrica dos povos peninsulares designada, vulgarmente, por alta Idade Mdia13 pode considerar-se situada

    13 O perodo situado entre os scs. vm e xn , como se refere em texto, normalmente, denominado pelos historiadores jurdico-penais peninsulares por alta Idade Mdia, em contraposio fase terminal dos ltimos sculos da Idade Mdia (scs. xn-xv), para a qual se reserva a expresso baixa Idade Mdia. A autonomizao destes dois perodos fandamenta-se num conjunto dc fenmenos que, ocorridos a p a r t i r da segunda metade do sc. XI. e dada a sua interaco, vieram a dar segunda fase da Idade Mdia peninsular uma configurao especfica e muito diferente da (ase anterior. A seu tempo (c infra, n. 10), veremos quais foram esses factores.

    Para o caso da histria do direito portugus, miximc, do direito paul, parece-nos irrelevante utilizar a expresso alta Idade Mdia ou Reconquisto Crist como, por vezes, tambm chamado este perodo da nossa histria. Indiferente pela simples razo de que o termo da fase altomedieval, grosso modo, coincide, cronologicamente, com o fim da reconquista crist lusitana, ultimada, em meados do sc. xm, no reinado de O. Afonso HL

    Preferi, contudo, a expresso alta Idade Mdia por esta ter um alcance espacial mais vasto, abrangendo a generalidade dos povos germnicos que se viciam instalai: no mbito das fronteiras do antigo Imprio Romano ocidental e, ainda, por ser a designao, comummente, usada para significar, quando referida ao direito penal, um sistema primitivo de ndole marcadamente privadstica, como teremos oportunidade dc constatar (cf. infra, n.? 9).

    Refira-Je, por ltimo, que iniciamos, aqui, na alta Idade Mdia, a an-lise da evoluo das insrituiLes jurdico-penais por ser, neste perodo, que se gerou e confirmou a nacionalidade portuguesa. Sobre os problemas jur-dicos relativos concesso da Terra Portucalense, feita por D. Afonso VI de Leo ao conde D. Henrique, e sobre a formao c constituio da naciona-l idade portuguesa, v. ALEXANDRE HERCULANO, Histria de Portugal (8.* ed.) II, 175-200; PAULO MBRA, A Concesso da Terra Portucalense a D. Henrique perante a Histria Jurdica in Annuario de Histria dei Derecho Espafiol, (1925), 169-178; ID., A Concesso da Terra Portugalense a D. Henrique in AHDE XIII (1936-1941), 397-401; ID., Ainda a Concesso da Terra Portugahmse in Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra XXXIX (1963), 1-12; IN., Quando comeou D. Afonso Henriques a intitular-se Rei?, Porto (1967), estudo em que o autor salienta que a conscincia nacional portuguesa teve o seu bero no territrio portugalensc cuja sede poltico-admnistrativa e eclesistica era a cidade de Portucale, povoao situada na margem direita do rio Douro. Cons-cincia nacional que se foi, progressivamente, desenvolvendo a partir, talvez, do incio da Reconquista.

  • CondicionaiiMe wcio-fuilunil io Direito Penal 1049

    entre o sc. vni e o sc. xn. Como caracterstica fundamental deste perodo pode assinalar-se a sua profunda instabilidade.

    Pisando solo ibrico, em 711, os maometanos, num curto espao de 7 anos, dominaram toda a pennsula, excepo feita ao reduto montanhoso das Astrias 14. Iniciada, aqui, a neces-sria e plurissecular resposta a este vendaval sarraceno, eis que se gera toda uma situao econmica, social, poltica e jurdica inteiramente nova.

    Como j escrevemos na nossa dissertao dc ps-gradualo (Traio e Aletvosia na Idade Mdia, Coimbra (1981), 19-20 e i policopiada existente no Instituto Jurdico da Universidade de Coimbra): A celeridade com que a monarquia visigtica foi destroada pelo islo tem motivado opinies diver-diver gentes, entre os hittoradates.quantio 1 solidez do reino visigodo. Se a maioria, segundo penso (veja-se, p. e MANUEI TQRHES, El Estado Visig-tico algunos datos sobre su formaciin y prinpios fundamentales de su organizaciin politica tn Annuario de Histria dei Derecho Espanol Hl (1926), 307-475; JOS ORLANDIS, Las Cottsecuencias dei Delito en el Derecho de la Alta Edad Media in AHDE XVm (1947), 63) defende a tese da existncia de ura poder pblico forte, afirmando, p. e., o primeiro doi autores citados que se pode filar de um verdadeiro Estado visigtico, ji outros, porm, negam esta tese, afirmando a debilidade da nao visigtica. Nesta linha, escreveu PEREZ PUGOL, ZNTFCFU-ciones Stciales de la Espada Coda H, Valncia (1896), 257: ...impregnados da cultura latina, constituram um reino romana, sem unidade, sem garantias e sem vida; forte e esplendoroso na aparncia, dbil e miservel por dentro, verdadeiro colosso com ps de barro, cumprindo-se, outra vez, a antiga pro-fecia: c&iu com um simples golpe de uma pdera.

    Concluamos ns: O que nos parece que, embora enfrentando, ao longo dos seus quase trs sculos de existncia, muitos obstculos internos e externos, i centralizao e fortalecimento do poder poltico, sempre i monar-quia visigtica, a exemplo da Roma Imperial, procurou edificar uma orga-nizao poltica forte e centralizada. A doutrina exposta pelos vrios conclios de Toledo comprova-o. Mas natural que o poder central nunca tenha che-gado a ser, de facto, suficientemente forte para se impor is populaes*. O facto de um dos pilares fundamentais da sociedade poltica dos godos ocidentais ter sido o sentimento e o dever de fidelidade pessoal do povo para com o t e a ptrii demonstra a inexistncia de um tal poder centralizado e forte. Sobre este poeto acabado de referir, veja-se o meu trabalho supra citado, pgs. 9-12 e HERCULANO, Do Estado das Classes Servas na Pennsula, Lisboa (1858), 6, onde se refere a forma no sangrenta da conquista e dominao muulmanas, facto que abona a tese da inexistncia de uma sociedade poltica visigtica bem alicerada e forte.

  • 1050 Homenagem aos Profs. M. Paulo 'Mera e G. Braga da Cruz

    A prioridade conferida defesa militar das terras e populaes j recuperadas aos rabes e reconquista de novos territrios provocou um clima geral de instabilidade e insegurana na vida comunitria peninsular 15.

    O edifcio poltico-jurdico que a realeza visigtica, cm colaborao com os Conclios de Toledo, tinha procurado levantar, desmorona-se por completo. fraqueza do poder central segue-se a pulverizao das instituies sociais, polticas e jurdicas ,6.

    Em consequncia, as populaes sentem-se entregues a si mesmas e s com as suas prprias foras podero contar para se opor aos seus inimigos externos e internos.

    15 Sobre a caracterstica essencialmente militar deste perodo da Recon-quista e seus efeitos na estruturao econmica, social, poltica e jurdica, v. A. PALOMEQUE TORRBS, Contribucin al Estdio dei Exercito en los Estados dela Reconquista in Annuario de Historia dei Derecho Espanol XV (1944), 205--351; GONZALO MABTQOZ Diaz, Las Itutituciones dei Reino stur a travs de los Diplomas in AHDE X X X V (1965), 59-167.

    16 HERCULANO {nota 13), 89-97; MKRA, Lies de Histria do Direito Portugus, Coimbra (1923), 27-28; BRAA DA CRUZ, Histria do Direito Por-tugus, Coimbra (1955), 248,296-297 E 311-312; M. J. ALMEIDA COSTA (nota 7), 172-174; EDUARDO CORRHA, Estudos sobre a Evoluo das Pinas no Direito Portugus, 9-10 (sep. do BFDC LEU, Coimbra (1977)).

    Anotc-se, ainda, que o regime senhorial caracterstico da pennsula por relao com a macro-estrutura agrria do feudalismo de alm-pirinus dever ter encontrado no condicionalismo da Reconquista uma das suas causas.

    Sobre a relao do regime senhorial com a especificidade da sociedade peninsular deste pcjdodo c com a figura da imunidade*, v. SALVADOR DB Mox, Los SeHorios: cuestmes metodologicas 4ue plantea su estdio in Annuario de Historia dei Derecho Espanol XLIII (1973), 271-309; FRANCESCO CALASSO, Mdio Evo dei Diritto I-Fonti, Milano (1954), 188-195; MEKA, Introduo ao Problema do Feudalismo em Portugal, Coimbra (1912), 5-140, spec. 57-58; ID., Sobre a PaUvra uittondo* in AHDE I (1924), 75-85; BRAGA DA CRUZ, Hist-ria... cit. (nesta nota), 269-276; SANCHEZ-ALBORNOZ, El Regimen de la Tierra en el Reino Asturleoncs hace mil arios, Buenos Aires (1978); ID., Las Behetrias I Encomtndan en Astrias Len y Castilla in AHDE I (1924); ID., Muckas Pdgmasmds sobre las Behetrias in AHDE IV (1927), 5-157; PRBZ PUJOL (nota 14) II, 215-235; IGLBSIA FERREIROS, Historia de la Traicion, Santiago de Compos-tela (1971), 172-173.

  • Condicionalidade scio-cultural do Direito Penal 1051

    6. Esta insegurana e isolamento, consequncia da inexis-tncia de uma autoridade pblica forte e organizada e da perda do sentimento comunitrio nacional, teve, por uma dinmica de compensao, o efeito psicolgico de fomentar uma intensa solidariedade entre os membros das micro-sociedades. Estava criado o ambiente psicossociolgico para que duas instituies assumissem um papel vital nesta sociedade politicamente desa-gregada, papel este que o direito haveria de reconhecer. Pri-meiro, a familia; posteriormente, o municpio.

    A solidariedade, o um por todos e todos por um, naturalmente que s se pode manter e frutificar na base do senti-mento e dever de fidelidade, lealdade e confiana entre os mem-bros do respectivo grupo social. E, assim, efectivamente, acon-teceu: o valor da fidelidade, interiorizado na sua indispensabilidade, assumido como vital pelos referidos grupos sociais e como tal reconhecido pelo direito de ento 17.

    7. No tocante solidariedade familiar, refira-se que a ofensa cometida sobre um membro da comunidade domstica era consi-derada como agravo a toda a famlia. Assim, a obrigao de reparar as ofensas sofridas recaa no apenas sobre o ofendido mas tambm sobre toda a colectividade familiar solidariedade penal activa 18. Por outro lado, os efeitos do direito de vingana,

    17 A importncia, o apelo constante da conscincia social vivncia pritica de certos valora e a correspondente proteco jurdica significa, sem-pre, que se trata de pocas em que tais valores so, frequentemente, infringidos. Como escreve GIOVANNI PAPINI (nota 8): ...a Lei supe, anterior a e a sen lado, opredomnio do mal e a soberania do instinto. Todo o preceito implica a sua infraco, toda a norma a pritica contrria.

    De facto, os documentos desta poca se, por um lado, salientam a rele-vncia da fidelidade e da solidariedade, no deixam, por outro, de registar as constantes traies que, nestes tempos, se cometiam. Veja-se, p. e., ESPA&A SAGRADA X X (Histria ComposteUana), Madrid (1765), Liv. Cap. C X I .

    18 O direito de vingana, que assistia, i famlia do ofendido (normal-mente, at aos parentes em 4.' grau), pressupunha a declarao do estado de

  • 1052 Homenagem aos Profs. M. Paulo 'Mera e G. Braga da Cruz

    que era reconhecido pela ordem jurdica 19 famlia da vtima (direito penal dc autotutela ou de justia privada), estendiam-se, por vezes, aos prprios familiares do criminoso solidariedade penal passiva20.

    inimidtia, isto c, a declarao da perda relativa da paz. Esta tinha os seguintes efeitos: o criminoso tinha de pagar uma determinada soma pecuniria, deno-minada coima, caVinia ou multa (sendo uma parte para o ofendido ou sua famlia e a outra para a autoridade pblica) pected hominidium; podia ser morto pelo ofendido ou familiares deste sit inimicus; teria dc sair da vila (embora, muitas vezes, sobretudo a partir de certa altura, se concedesse um prazo para que o ofensor abandonasse o concelho, findo o qual, ento, j poderia ser morto pelo ofendido ou familiares) exeat de villa.

    Este direito de vingana era reconhecido contra os homicidas ou contra agentes de crimes que, segundo a conscincia tico-jurdica da poca, lhe eram equiparados (violao e rapto de mulheres).

    Ver, sobre este ama, ORLAUDIS (nota 14), 75-124; HERCULANO (nota 13) v m , 181-185; MBSA, Lies... (nota 16), 53-54; EDUHDO COMBIA (noto 16), 12-17; MANZDJI, Scritti Mittori, Torino (1959), 27-33; H. BBUNNHR, Historia dei Derecho Cermdrtico, Barcelona (1936), 11-14; HINOJOSA, El Elemento Ger-mdnico tn el Derecho Espafiol, Madrid (1915), 32-69; O. BRUKNEU, Land und Herrschaft (1943), 47-119.

    19 A principal fonte de conhecimento do direito deste perodo alto-medieval so os chamados foros e costumes*, estatutos municipais ou fueros extensos, verdadeiro repositrio do direito pblico e privado desta poca, criado, principalmente, por via consuetudinria.

    Sobre a caracterizao desta fonte de direito (importncia sdo-polSrica, suas diferentes espcies ou famlias, distino face ao foral propriamente dito ou fuero breve), HBKCUINO, Portugaiiae Monumento Histrica Leges et Consuetudines I, Olisipone (MDCCCLVI), 739; to. (nota 13) VM, 7-37; MBKA, Em terno da Palavra *Forum* (sep. da Revista Portuguesa de Filologia, v. I, t . n (1948), 490-499; Io . , Lies... (nota 16), 72-75; BRAGA DA CRUZ (nota 16), 276-280; M . J. ALMHDA COSTA, Temas de Histria do Direito, C o i m -bra (1970), 52-59 (sep. d o BFDC XLIV); A. GARCIA GALLO, Aportacin al Estdio de los Fueros in Annuario de Historia dei Derecho Espanol XXVI (1956), 387-446; GALO SANCHEZ, Fueros CasUllancs de Soria e Akatd de Henares, Madr id (1919), 236-237 e 242-244; J. A. SARDINA PABAMO, El Concepto de Fuero un ar.alisis filosofico de la experietteia jurdica, Santiago de Compostela (1979).

    20 Apesar de certas fontes mais antigas referirem que esta responsa-bilidade solidria da famlia do ofensor, embora subsidiria, era total (ficando, como escreve HINOJOSA, OS familiares mais prximos do inimigo sujeitos prpria vingana de sangue), parece que, salvo algumas excepes, e mesmo

  • Condicionalidade scio-cultural do Direito Peitai 1053

    A partir do sculo xi, vo os municpios desempenhar um papel vital na defesa e promoo das respectivas populaes. A grandeza do concelho radicava na coeso dos seus habitantes21, sendo esta coeso dinamizada pela solidariedade municipal. De forma algo semelhante ao que se passou, e passava, com a soli-dariedade familiar, tambm, no cenrio jurdico municipal, se poder detectar, ao lado de uma solidariedade activa, uma solidariedade passiva. Assim, quanto primeira, vrias fontes da poca (cf. foros e costumes da Guarda) consagram o dever de auxlio mtuo dos convizinhos e referem a proibio de advogar causas de estranhos contra conterrneos. Mas havia, tambm, uma certa responsabilidade colecrva, embora subsi-

    tas situadas em perodos mais recuados, a responsabilidade da famlia se limitava aos efeitos econmicos derivados da declarao de inimizade OEIANDB, Sobre el concepto dei Delito en el Derecho de la alta Edad Media in Annuario de Historia dei Derecho Espafiol XVI (1945), 154-164; HINOJOSA (noto 18], 18-22 e 46-50.

    21 Para alm dos denominados homens de fora parte (os absolutamente estranhos ao concelho), os habitantes dos municpios dividiam-se em duas categorias: vizinhos e moradores. O estatuto scio-jurdico do vizinho tambm designado por arreigado era mais rico (mais direitos e mais deveres) que o do simples morador ou no-arreigado*. Assim, e a ttulo de exemplo, aquele que cometesse um crime contra um vizinho era cooside-i rado aleivoso e quereloso, sendo-lhe aplicada uma sano mais severa que a aplicada ao agente de um mesmo crime contra um simples morador, caso em que aquele era denominado apenas por quereloso.

    Sobre este tema da solidariedade municipal, diferentes categorias de habitantes dos concelhos, relevncia scio-juridica da distino entre vizinhos e moradores e seus reflexos no direito penal, ver HERCULANO (nota 13) VII, 89 e ss., VIII, 7-17 e 35-40; ID., Portugaliae... (nota 19), 892 (costumes e foros de Castelo-Rodrigo, art. XXXVIII ano 1209), 935 (costumes e foros de Castelo-Melhor, art . L X X ano 1209); HINOJOSA ( n o a 18), 51; ORLAKDB (nota 20), 164-171; T. SOUSA SOARES, Apontamentos para o Estudo da Origem das Instituies Portuguesas, Lisboa (1931); BSAGA DA CMJZ (nota 16), 276-280; VITERBO, Elucidrio, termo arreigado; PUJOL (nota 14) N, 259-31% J. M. PONT Rjnps, Origenes dei Regmen Municipal de CataluHa in AHDE XVI. (1945), 389-525, spec. 415-424; RAJAEL GILBERT, El Derecho Municipal de Leia y Castilla in AHDE X X X (1961), 695-753; URBN SMNJAUD e SAN M A S I , Fuerp de Usagre, Madrid (1907), 16 e 19.

  • 1054 Homenagem aos Profs. M. Paulo 'Mera e G. Braga da Cruz

    diria, dos concelhos pelos delitos praticados por um dos seus membros, os vicini (cf. foros de Bragana, Trancoso)32.

    8. poca de isolamento, de ausncia de um poder poltico forte e protector, de lutas, tumultos e guerras, v na paz das suas comunidades o bem mais precioso e a melhor garantia da subsistncia individual e colectiva. Mas sente e tem conscincia de que a paz s a pode alcanar atravs da solidariedade dos seus membros e que esta solidariedade, por sua vez, s pode con-verter-se em realidade viva na medida em que for dinamizada pela lealdade e jidefdade mtuas. Efectivamente, solidariedade, fidelidade e paz23 so assumidas pela conscincia tco-jurdica de ento como valores fundamentais.

    22 certo que ta responsabilidade colectiva municipal era, por maio-ria de razo que na responsabilidade familiar passiva (cf. nota 20), para alm de subsidiria, exclusivamente limitada aos efeitos pecunirios do delito.

    23 Sobre o sentido psicolgico, sociolgico e jurdico da paz no mundo germnico medieval sentido que tambm se afirma noa povos ibricos da alta Idade Mdia veja-se OTTO BRUNNER (nota 18), 23-24, onde o autor estabelece a relao da paz (Friede) com a amizade (JFreundschajt) e com a Uber-dade (Fmheit) ... Friede ist der Zustand cines menschlidien Verbandes, dessen Glieder untereinander Freunde und gegenuber der Aussenwelt frei sind... e salienta a dimenso positivia da paz medieval em contraposio com o significado negativo que a paz assumiu no mundo moderno ...der urspriingliche Sinn des Wortes nicht vrie heute wesentlich negativ, Aus-schaltung der Fetndscbaft, sondem er bat eine aktive Bedeutung. Es schliesst den Begrifif des Schutzes in sicb, der Sicherheit, die die Freunde einander gewhrcn, der Hilfe und des Beistandes, zu denen sie einander verpflicbtet sind. ...Friede ist der Zustand des ungekrnkten, ungebrochenen R.ecbts....

    Esta paz geral comeou, a certa altura, a ser reforada com a criao da figura das pazes especiais que podiam ser pessoais (quando se visava proteger determinadas categorias de pessoas) ou territoriais (quando o objecto de pro-teco intensificada eram determinados locais).

    - - Sobre a paz da casa, v. HERCULANO (nota 13) VHI, 45, 53 e 75; OBLAN-DIS, La Paz de la casa en el Derecho de la Alta Edad Media in Annuario de His-toria dei Derecho EspaSol XV (1944), 107-161; Orro BRUNNER (nota 18), 172 nota 3.

    Sobre a paz do mercado, v. LUB VALDBAVELLANO, El Mercato in Annuario de Historia dei Derecho EspaSol VIU (1931), 201 e ss.. Quanto

  • Condicionalidade scio-cultural do Direito Penal 1055

    Nao admira que assim tenha sido pois que a importncia de determinados valores s se reconhece quando, precisamente, tais valores se encontram em crise tal como s nos apercebemos do bem sade quando estamos doentes24. E, porque assim era, tambm no nos admirar que a pena aplicvel aos violadores da fidelidade e da paz tenha consistido, exactamente, t u perda da sua paz jurdica.

    O mais grave de todos os delitos era a traio. Consistia este crime dos crimes na violao de uma especial relao de fideli-dade, existente entre o criminoso e a vtima, mediante a prtica do homicdio. Traidor era, pois, um homicida qualificado, i. , algum que matava outrem, quando entre ambos existia um especial vnculo de fidelidade e lealdade recprocas 25.

    i paz do caminho (paz especial que se traduzia numa espcie de salvo-conduto que protegia o mercador nas suas viagens profissionais de ida e volta da feira), IDEM, ibidem,

    14 Transferindo-nos para o nosso tempo, podemos afirmar que ais constantes declaraes, apelos e manifestaes em favor da paz excluindo as hipcritas declaraes dos principais responsveis pelo equilbrio do terror mais uma vez comprovam que s nos apercebemos da importncia vital do certos valora quando estes se encontram em crise. Tal como a relevncia social e jurdica da paz na alta Idade Mdia estava na proporo directa da permanente e profunda insegurana das populaes, tambm o actual e cons-tante apeio i paz, nos nossos dias, o efeito lgico e natural da conscincia angustiada com a eventualidade de uma tresloucada guerra nuclear.

    25 Como se infere do que se acaba de dizer, so dois os elementos cons* titutivos do crime de traio: o primeiro, o mais significativo, o mais essencial consiste na violao de um dever especial e pessoal de fidelidade; o segundo exige que esta violao se materialize numa infraco objectivamente grave, normal-mente o homicdio. Assim, pode afirmar-se que toda a traio constitua uma infidelidade, embora nem toda a infidelidade constitusse, juridicamente, uma traio.

    Sobre a figura jurdica da traio altomedieval peninsularr etimologia do vocbulo traio, antecedente histrico na infidelidade visigtica, carac-terizao, espoes de traio (rgia, senhorial, municipal), ver o nosso trabalho Traio e Aleivosia... (nota 14), 27-66; MEBA, Crimes ^Deliberadose Crimes 'De mpetoin BFDC XXffl (1947), 140-146; A. IGLESIA ftnmroos (nota 16), 89-96; 106-114, 123-137, 270-285; J. GAHOA GONZALEZ, Traidn y Alevoria

  • 1056 Homenagem aos Profs. M. Paulo 'Mera e G. Braga da Cruz

    Esta relao pessoal de fidelidade, juridicamente reconhecida, podia derivar do parentesco prximo26, da interdependncia econmica 27, de relaes de confiana geradas, espontaneamente, entre determinadas pessoas 28 ou, ainda, de relaes de fidelidade

    en la Alta Edad Media in AHDE XXXII (1962), 323 e .; HINOJOSA (nota 18), 70-79; OHLAHDB, Huellas Visigticas en el Derecho de la Alta Edad Media in AHDB XV (1944), 644 e ss.; EspaHa Sagrada XX (Historia Cmpostelhma) (nota 17), Liv. I, Cap. CXI, n. 5 c Liv. I, Cap. CXIV, n. 13. Nos trabalhos acabados de citar, encontram-se transcritos muitos documentos da poca (mixime, foros e costumes) que fundamentam a construo da figura da traio tal como apresentada neste trabalho.

    Sobre a matriz germnica da fidelidade medieval, sem se menosprezar a importncia da peculiaridade do condicionalismo da Reconquista para a afirmao e quase sacralizao do valor fidelidade neste perodo, veja-se OTTO BRUNNBR (nota 18), 299-312.

    26 As fontes so, praticamente, unnimes na integrao dos pais no circulo protector da fidelidade-, j quanto 1 incluso dos outros ascendentes e dos colaterais h i divergncias. Assim, segundo o foro Je Temei, 31, a tutela da fidelidade limitava-se aos pais, no foro de Soria, 493, abrangia os irmos e nos foros de Viguera e Val de Funes, 169, estendia-se aos prprios primos--irmos.

    Ver ORLANDIS (nota 20), 130; GARCIA GONZALEZ (nota 23), 340-341. 27 Ao dever de lealdade derivado da comunho dc sangue associam

    as fontes, muitas vezes, o dever de fidelidade derivado da convivncia diria entre aquele que dava o po ou a soldada (o senhor, o amo) e aquele que, em troca, prestava os servios domsticos ou agrcolas. Assim reza o foro de Soria, 493: Otrosii ssea dado por traydor qui matare su padre o su madre... o su sennor cuyo pan comjere o cuyo mandado fiziere o de qui soldada rreribire....

    24 A esta categoria pertencero as hipteses seguintes: homicdio do convidado, do companheiro de viagem e do indivduo chamado para um colquio a ss. Matar em tais situaes constitua um crime de traio, j i que o homicida violava a confiana que a vtima nele tinha depositado. Assim rezam os foros de Cuenca XI, 17: quicumque ad domum suam invita-verit ad bum vel poculum, vel ad consilium vocaverit, et eum occiderit, vivos sub mortuo sepdiatur; XI, 18: ...similiter quicumque socium suum in via in eo confitentem occiderit, vivus sut mortuo sepdiatur...; foro de Soria, 510: Si alguno embiare a otro asu casa o lo levare a cnscio aparte y lo matare, muera por ello....

    MERA ( n o u 25), 140-146; GARCIA GONZALEZ (nota 25), 338-339; IGLBSIA F m m o s (nota 16), 106 consideram que estas hipteses, de acordo com o que referimos, constituem casos de traio pelo facto de haver nelas tuna violao do dever de fidelidade e no por, eventualmente, poder haver preme-

  • Condicionalidade scio-cultural do Direito Penal 1057

    impostas pela ordem jurdica, em funo da defesa e promoo de interesses relevantes29.

    Porque o traidor, violando essa especial relao de lealdade e fidelidade, revelava uma personalidade perigosa e perversa, passou, a partir do sc. xn, a denominar-se tambm por alei-voso30. Daqui, a frequncia do binmio traidor e aleivoso na linguagem dos foros e costumes.

    Naturalmente que a pena aplicada aos traidores era a mais grave de todas: a perda absoluta da paz (Friedlosigkeit). Tinha esta sano as seguintes consequncias: o traidor ficava destitudo da sua personalidade jurdica (friedlos, ex lege, hors la loi, out law) e, assim, qualquer membro da comunidade (cidade ou reino, consoante se tratasse de traio municipal ou de traio rgia) o podia, impunemente, matar31; sua casa era derribada

    ditalo. Segundo estes autores, diferentemente de ORLANDB (nota 20), 134--135, o homicdio premeditado no constitua, enquanto tal, o delito de traio.

    Sobre outras hipteses de traio, como o homicdio depois de pres-tada fiana de salvo, o homicdio durante trguas e o homicdio do no desafiado, ver o nosso trabalho (nota 14), 56-66.

    29 Como adianK veremos, a partir do sc. xn, vrios factores, de ndole a mais diversa, vo pr em causa a mundivicincia aitomedieval. Assim, a fidelidade, de realidade viva e espontnea convertesse numa figura formal, progressivamente mais abstracta, medida que passa a ser imposta pela nova ordem jurdica cada vez mais centralizada (cf. infra, n.0" 13 e 15). Exemplos de delito de traio (j a caminho da sua desvirtuao) consistente na violao de uma relao de fidelidade coactivamente imposta pela ordem jurdica, encontramo-los na violao grave da paz do mercado e no homicdio do mercador na ida ou regresso da feira.

    Ver, sobre este ponto, nosso Traio e Akivosia (nota 14), 71-77-, IGLBSI, FERREIROS [nota 16), 128-130, Luis VALDEAVBLLANO (nota 23), 201-403; HER-CULANO (nota 13) Vm, 418 e 426.

    30 Sobre a caracterizao da aleivosia, ver nosso Traio... (nota 14) 29 e ss.; GARCIA GONZALEZ (nota 25), 323 e ss.; IGLESIA FERREIROS (nota 16), 114-123; VITERBO, Elucidrio,termo aleive,

    31 Sobre a figura do banimento, sua permanncia ao longo da histria; em conexo e como feito da extino ou da reduo da capacidade ou perso-nalidade jurdica, ver MERA, Da Minha Gaveta Sinopse Histrica da Morte Civil, Coimbra (1960), onde o ilustre mestre analisa a evoluo da morte

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  • 1058 Homenagem aos Profs. M. Paulo Mera e G. Braga Ha Cruz

    (a casa, neste perodo de insegurana individual e colectiva, representava o melhor bastio de refugio reconhecido pelo direito, significando a sua destruio que a ordem jurdica deixava de conceder qualquer proteco ao traidor)32; todos os seus bens eram confiscados.

    9. V-se, resumindo e concluindo, que o direito penal desta poca tem, de forma indelvel, a marca do condicionalismo social caracterstico do perodo altomedieval. Sistema penal de justia privada, sendo o crime considerado como ofensa individual (excepo feita ao delito de traio) e cabendo aos particulares o exerccio da justia penal que assumia formas brbaras e cruis33. Mas, como salienta HERCULANO34, era impossvel que no sucedesse assim; que os hbitos selvagens e ferozes adquiridos no meio de to precria existncia e que a falta de auctoridade nos chefes (at porque faltavam instituies civis) no fizessem com que em todas as phases da vida se manifes-tassem as consequncias de semelhante situao.

    civil, enquanto extino da capacidade jurdica ainda em vida, desde as capitis deminutiones do direito romano, passando pelo banimento como efeito da perda da paz prevista no direito consuetudinrio e foralerio da Reconquista, at ao desaparecimento definitivo da morte civil com a Nova Reforma Penal de 1884; tambm, MANZINI (nota 18), 53-54: ORLANDIS (nota 14), 125-139; ID., (nota 20), 123-126; ID., (nota 25), 645, 650, 654-655 e 658; E. CORREIA Direito Criminal I, Coimbra (1968), 76-78; ID. (nota 16), 11-12; HINOJOSA (nota 18), 70-79; O. BEUNNHR (nota 18), 34-36.

    32 Cf. supra, nota 23. 33 Alm das penas (perda absoluta da paz e perda relativa

    da paz ou inimicitia), refira-se, ainda, a composio pecuniria {Wehrgeht) e a composio corporal {itarar

  • Condiciortlidade scio-cultural do Direito Penal 1059

    Por outro lado, a relevncia tico-jurdica concedida aos valores da paz, da solidariedade e da fidelidade no significa seno a conscincia da sua imprescindibilidade face a um perodo histrico marcado por uma profunda insegurana individual e colectiva.

    IH. O Direito Penal na Baixa Idade Mdia (scs. xn-xv) e na Idade Moderna (scs. xv-xvm)

    10. A associao feita em epgrafe, de dois perodos hist-ricos, vulgarmente tidos por muito diferentes e por isso aut-nomos, carece de uma justificao.

    Para ns e na sequncia das investigaes levadas a cabo no sculo actual e que demonstraram a sem-razo da qualifi-cao de noite milenria dada por MICHELET Idade Mdia so maiores as diferenas existentes entre a sociedade alto-medieval (e o correspondente direito penal) e a baixomedieval (e respectivo direito penal) do que entre esta e a Idade Moderna. Efectivamente, se a histria em geral, tal como a natureza, no apresenta solues de continuidade na sua evoluo natura non ji saltos, diziam os latinos parece no haver dvidas de que o perodo que vai do sc. xv ao sc. xvm no s no apresenta qualquer ruptura face ao perodo baixomedieval como, ainda, pode e deve ser visto, em muitos aspectos, como prolon-gamento natural do processo histrico iniciado nos scs. xn-xm.

    As caractersticas econmicas, sociais, culturais, polticas e jurdicas da chamada Idade Moderna ou, numa perspectiva mais politico-jurdica, do perodo das Monarquias Absolutas comeam a esboar-se e a desenvolver-se, quer a nvel europeu em geral quer a nvel peninsular em especial, a partir da baixa Idade Mdia, acabando por se revigorar e consolidar na Idade Moderna. Reportando-nos ao direito penal, pode afirmar-se

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    que a fisionomia de que se revestiu, no absolutismo monrquico, no foi mais do que uma evoluo na continuidade dos princpios e caractersticas fundamentais do direito penal, afirmados a partir dos scs. xn-xm3 5 .

    11. Ultrapassada a fase de natural desagregao em que a Europa mergulhou,na sequncia do declnio e da queda do Imprio Romano do Ocidente36, eis que, a partir dos scs. xi-xu, uma interaco de mltiplos factores econmicos, cul-turais, polticos c jurdicos vai gerar uma nova Europa que, alicerada na tradio cultural greco-latina, reencontra, na sua caminhada histrica, novos factores de progresso.

    A partir dos fins do sc. xx, processa-se, quer na Europa em geral, quer na Pennsula em especial, uma profunda trans-formao na vida econmico-social.

    Entre as suas principais causas, h que mencionar: o incre-mento do comrcio e do artesanato que, atravs da nova e dinmica classe social dos mercadores (burgueses) e com as corporaes de artes e ofcios (artesos), muito contribuiu para a formao dos centros urbanos e para o fortalecimento do municipalismo

    35 A associao que se defende entre baixa Idade Mdia e Idade Moderna no significa que tenha havido uma ciso total entre a baixa Idade Mdia e a alta idade Mdia. Cada poca gera os factores da sua prpria crise. E os mesmos factores qre, a partir dos scs. xn-xm, puseram em causa a mundi-vidncia alromedieval, vo, pxesmante, determinar a configurao da socie-dade na idade Moderna. Por isto, se compreende que a baixa idade Mdia tambm seja, correctamente, denominada como perodo charneira, perodo de transio entre a falta) idade Mdia e a Idade Moderna Na mesma linha, o direito penal deste perodo apresenta-se como um direito de transio entre o direito penal privado da alta Idade Mdia e o direito penal pblico da Idade Moderna. Logo, um direito penal misto em que ainda sobrevivem traos do direito penal altomedieval mas j se afirmam as caractersticas do direito penal prprio das monarquias absolutas.

    36 Sobre o condicionalismo especfico da Pennsula Ibrica entre o termo do Imprio Romano Ocidental e a baixa Idade Mdia, mxime, no respeitante ao perodo da Reconquista Crist, vide supra n. 5 e notas 14,15el6.

  • Condicionalidade scio-cultural do Direito Penal 1061

    medieval37; o aumento demogrfico e a emigrao do campo para a cidade, como efeito do desenvolvimento mercantil e artesanal; as Cruzadas que, sem embargo da sua motivao religiosa de libertar os Lugares Santos, possibilitaram a descoberta de novas rotas e entrepostos comerciais (o Mediterraeno), para alm de pro-moverem o intercmbio e a aproximao de diferentes povos cujas nacionalidades estavam em formao38.

    37 Como veiemos ittfra (n. 13 e nota 42), a clara tendncia que, a par-tir do sc. xm, se vai fazer sentir no caminho da centralizao ir ver nos muni-cpios e na sua autonomia um obstculo, obstculo que acabar por vencer. Assim, j no sc. xv, o fenmeno municipal est, praticamente, asfixiado.

    38 Para uma viso global dos vrio factores econmico-sociais que determinaram a profunda alterao europeia, a patrir da segunda metade do sc. xi, vide FRANCESCO CAL ASSO {nota 16), 349-354; J. M . FONT RIUS (nota 21), 493-529, apesar de o seu estudo ter por objecto imediato a Catalunha.

    Sobre o incremento comercial e suas repercusses nos campos econ-mico, social, poltico e jurdico, vide Lus VALDBAVELLANO (nota 23), 201-403. No aspecto jurdico (comercial e penal), a necessidade de segurana para o desenvolvimento das relaes mercantis esteve na origem de um direito do mercado: impostos sobre as vendas, portagens, smbolos de paz do mercado, categorias de funcionrios dos mercados, localizao, regulamentao das transaces, fiscalizao dos pesos e medidas, categorias de mercados, etc.. Este direito do mercado tambm sentiu a necessidade do apelo 1 vertente penal. Assim, para garantir a mxima segurana actividade mercantil, instituu-se a paz do mercado: paz especial (Sonderfrieden) que protegia o local das transaces (mercado) e cuja violao era severamente punida. Em com-plemento desta paz do mercado, e devido ao carcter ambulante do comrcio medieval, surge, tambm, a paz do caminho (conductus), paz especial que se traduzia num salvo-conduto que protegia o mercador ou feirante nas suas viagem profissionais de ida-e-volta da feira.

    Sobre o sentido destas pazes especiais que, artificialmente, criam um vnculo de fidelidade formal, desvirtuando, assim, o carcter genuno da fidelidade pessoal e espontnea da alta Idade Mdia e, do mesmo passo, prenun-ciam uma nova sociedade mais tcnica e mais centralizada, ver o nosso tra-balho Traio... (nota 14), 71-77, Como nota final, refira-se que, no tocante i Pennsula, o primeiro documento a consagrar a paz do mercado o foro de Leo, art. XLVI, ano 1020; os foros portugueses do sc. xn registam, abundan-temente, a paz do mercado {foro de Abrantes, 1179 in PMH-LG, I, 418; foro de Coruche, 1182 in PMH-LC I, 426, etc.).

    Sobre o movimento urbano (cidades), nos scs. xm-xiv: suas causas, aspectos econmicos, sociais e institucionais, ver, tambm, HESPANHA, His-tria... (nota 7), 231 e ss..

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    12. Paralelamente a estas transformaes econmico-sodais e, em cota medida, com elas relacionado, inicia-se, em Bolonha, o processo de redescoberta do direito romano-justinianeu que, reorien-tado, mais tarde (sc. xiv), por Bartolo e sua escola, ir ter influncia marcante e decisiva na formao dos novos Estados europeus e na criao da unidade cultural europeia. de todos conhecida a relevncia do intercmbtio cultural que, desde os scs. xn-xm, se estabeleceu entre os estudiosos de vrios pases da Europa, em tomo das cincias do direito romano e do direito cannico.

    Situando-nos num plano cultural, no pode esquecer-se ou menosprezar-se a transcendente importncia do reencontro com a filosofia e o pensamento helnicos, tarefa a que a Igreja prestou um contributo fundamental3.

    13. No campo estritamente poUtico-jurdico, o poder central vai-se, progressiva e firmemente, consolidando, acabando os monarcas por reivindicar para si os mesmos poderes que os antigos imperadores romanos detinham. auctoritas univenalis do imprio sucede a efectiva potestas do rei40. Este, imitao do

    39 Sobre o direito romano como um dos fundamentos da unidade cultural europeia, vide ERICH GENZMER, II Diritto Romano come Fattore delia Civilt Europea in Conferenza Romanistiche, Milano (1960), 111-177

    Quanto influncia do Cristianismo e da Igreja Catlica na conservao, e posterior divulgao do patrimnio cultural greco-Iatino, que constitui um dos principais pilares da civilizao europeia, vide C. DAWSON, A Formao da Europa, Braga (1956), 47-88 e 305-311; F. CALSSO (nota 16), 359-364 e 607-628.

    40 A partir dos scs. xn-xm, os reis cristos passam, por influncia do ius romanum, a assumir-se, mesmo teoricamente, como independentes e a exercer, nos seus domnios, os mesmos poderes (absolutos) que cabiam ao imperador. Se, at aqui, o rei, em obedincia ao ideal de um imprio uni-versal (romano) e da sua reunificao, exercia o poder ex auctoritate romana, j, a partir dos scs. xn-xm, com o progressivo abandono da ideia e do senti-mento de submisso dos reinos cristos medievais tutela do Imprio Romano, os monarcas passam a reivindicar a plenitude potestatis sobre os seus prprios

  • I

    Condkionalidade scio-cultural do Direito Penal 1063

    territrios. Quer dizer, independncia de facto soma-se a independncia de iure face maiestas, auctoritas at ento representada pelo Imperium Romanum. A frmula adoptada para significar esta conscincia da pleni-tudo potes ta tis dos reinos cirstos da (baixa) Idade Mdia foi: rex, superiorem non recognosccns in regtto suo, est imperator.

    , portanto, j a partir da baixa Idade Mdia que os reinos cristos comeam a abandonar a ideia e a tutela de um imprio a reconstruir na prtica e a afirmar a sua independncia e soberania, iniciando um processo que se consolidar, no sc. xn. com a teorizao dos conceitos de soberania e de estado nas obras de vrios pensadores, entre os quais cabe mencionar JEAN BODIN, Six Livres de la Rpuhlique, 1576.

    O Estado moderno (com as suas caractersticas da concentrao, terri-orializafo e institucionalizao do poder) e o conceito de soberania (definido, no plano interno, como um poder supremo e absoluto sobre os cidados e, no plano externo, como um poder independente que recusa a supremacia papal e a ideia medieval de imprio), se certo que apenas se afirmam e con-solidam no sc. xvi fenmeno politico que teve nas graves crises polrico--religiosas europeias deste sculo (a Reforma) e na necessidade da sua superao uma das suas principais causas , no parece ser menos verdade que so o resultado, o corolrio de um longo processo iniciado na baixa Idade Mdia.

    Neste sentido, diz CECIL SIDNHY WOOL, Bartolus of Sassoferraio his positon in the history ofmedieval politicai thought, Cambridge (1913), 105:.. .o que ns desejamos demonstrar neste ensaio que a moderna cincia poltica no comeou com o regresso de Aristteles Europa Ocidental, no sc. xm, mas com a renovao bolonhesa do direito romano no fim do sc. xi. O nosso Estado moderno no nasceu perfeito com a Renascena, nem a nossa concepo da Igreja e do Estado com a Reforma. Ambos so o fruto de um longo pro-cesso desenvolvido na Idade Mdia, ou, mais exactamente, processos. Vejam-se, ainda, spec., pgs. 105-112 e 384-394. Da mesma opinio, F. C/LLisso, I Glossatori e la Teoria delia Souvranit, Milano (1957), 18-26, 39-81 e 163-173.

    Sobre a afirmao corrente mas que no invalida a tese acabada de referir que situa o aparecimento dos conceitos de soberania e de Estado no sc. xvi, vide ALFONSO OTERO, Sobre la *pleniiude potestatis y los reinos his-pnicos in AHDE X X X I V (1964), 153-154; L. CABRAL DB MONCADA, As Ideias Polticas depois da Reforma: Jean Bodin in BFDO XXDU (1947), 39-55; ANGEL FERRARI, La Seculatizadn de la Teoria dei Estado en Us Partidos in AHDE X I (1934), 449-456.

    Para concluir, opto por uma referncia ao pensamento de F. WuxiAM MAITLAKD e de OTTO von GERKE, autores que, na obra Les Thories Politiques

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    du Moyen Age (trai do ingls e do alemo), Paris (1914) fundamentara a tese de que os modernos conceitos de Soberania e de Estado, embora se definam e afirmem a partir do sc. xvi, tm a sua gnese nas teorias politicas da (baixa) Idade Mdia. Diz MAITLAND, a pgs, 3-4: na verdade, a filosofia poltica da Idade Mdia aparece como uma introduo ao pensamento moderno. As ideias que vo dominar e dividir a humanidade do sculo xvi ao sculo xrx a Soberania, o Senhor Soberano, o Povo Soberano, a Representao do Povo, o Contrato Social, o Direito Natural do homem, o Direito Divino dos Reis, a subordinao do Direito Positivo ao Estado e a subordinao do Estado ao Direito Natural ...parecem ser maneiras de ver que, sob a influncia da antiguidade clssica, se desenvolveram no decurso das discusses da Idade Mdia.

    Por sua vez, afirma von GIBKKB, pig. 89: a tendncia e os esforos desen-volvidos para se conseguir uma ideia completa e racional da Igreja c do Estado, e para compreender assim, de uma maneira cientfica, a natureza de toda a ordem social humana. s no sc. xm aparecem formulados numa teoria de Direito Pblico bem definida. A partir desta poca, as doutrinas dos Publi-cistas, continuamente aperfeioadas e ampliadas, jamais se bastaram com o papel de simples doutrinas de Direito Pblico, visando, sim, elaborar e difundir uma filosofia, independente e sem precedente, do Estado e do Direito. E foi assim que elas introduziram uma dinmica inteiramente nova na histria das ideias jurdicas. Diversas disciplinas colaboraram nesta tarefa: a Teologia, a Escolstica e a Histria Poltica encontraram-se com os trabalhos de pole-mistas e dos jurisconsultos profissionais. E, a pig. 274, conclui: Entretanto, no conjunto, observa-se que, desde a Idade Mdia, a tendncia da teoria no sentido de aumentar, sem cessar, a soberania do Estado conduziu a fazer deste o nico representante de toda a vida colectiva. E, nesta direco, a jurispru-dncia foi ultrapassada, de longe, pela filosofia poltica.

    Saliente-se, por ltimo, que, no caso da Pennsula Ibrica, a atitude de independncia, que os reis da Europa em geral comeam a assumir desde o sc. xm, j se tinha afirmado, muitos sculos antes, com a monarquia visigtica, a partir de Leovigildo (fins do sc. vi). Entre os factores, que determinaram uma to precoce afirmao da conscincia nacional visigoda, esteve a pretenso do Imprio Bizantino de reunificar o antigo Imprio Romano, chegando mesmo a ocupar uma parcela da Hispnia, facto que ter provocado um movi-mento de independncia total em relao ao Imprio (a chamada exempto ab imprio). Este sentimento de emancipao poltica, revigorado pelo tra-dicional nacionalismo da Igreja visigtica, provocou, segundo alguns autores, uma forte conscincia nacional que, por sua vez, fez com que os monarcas godos afirmassem a plenitude dos poderes sobre o seu territrio. sintomtico, quanto a todo o processo que conduziu exemptio ab imprio, o facto de

  • Condicionalidade scio-cultural do Direito Penal 1065

    imperador romano cujo direito41 passa, agora, a ser estudado e a inspirar as leis nacionais, vai chamar a si a primordial tarefa de legislar para todo o territrio nacional, reduzindo, simulta-neamente, o papel dos direitos consuetudinrio e municipal42.

    S. Isidoro de Sevilha ter sido um exilado fugido de Cartagena ocupada pelas tropas de Bizncio.

    Em concluso, os visigodos que tinham comeado por se considerar como meros sucessores dos governadores provinciais do Imprio Romano, isto , como representantes do imperador (assentamento provincial), acabam por se vir a assumir como detentores dos mesmas poderes que cabiam ao imperador romano, adoptando, indusiv, o ttulo de Favius, designao prpria dos imperadores do Baixo-Imprio. Cf., sobre este ponto, ALFONSO OTERO (citado nesta nota), 141-162, spec., 155-162; A. M. HESANHA, Hist-ria... (aota 7), 489 e bibliografia citada em nota 1039 da referida pgina.

    Sobre a relevncia politica da filosofia escolstica medieval, ver, ainda, L. C. MONCADA, Estudos de Histria do Direito H, Coimbra (1949), 64 nota 2 e 73-75; A . M . HBSPANH, ibidem, 316-322 e 414-425.

    41 V., sobre a relao entre o ius romanum e o imperium, SEBASTIO CRUZ, Direito Romano (2.1 ed.), Coimbra (1973), 54-57 e 72-78; ainda, sobre a tese de que o direito romano foi a expresso do gnio poltico romano, JUAN IGLBSIAS, Poltica Y Derecho en Roma in AHDE X V (1944), 659-675.

    Quanto ao conceito de imperium e ao papel por esta ideia desem-penhado, ao longo da histria, vide J. BENBVTO PEREZ, La Euoluon de la Idea de flmperium* en la Edad Media in AHDE XIV (1942-1943), 623-629.

    41 A tendncia para a centralizao do poder nas mos do rei e para o progressivo reconhecimento deste como senhor absoluto haveria, de forma lgica e inevitvel, de conduzir concentrao, na pessoa do monarca, do poder normativo ( l e g i s l a t i v o ) , com a consequente limitao enquanto no fosse chegada a hora da extino total do direito costumeiro e municipal. Efecti-vamente, com o sc. xm, vo-se multiplicar os ataques ao direito foral e ao municipalismo (principal cenrio srio-poltico da vida comunitria entre os scs. xi-xm).

    Na lgica da tendncia abolutista de ento, como na de qualquer perodo histrico, a autonomia das comunidades intermdias , necessariamente, olhada como um obstculo a abater. Foi assim e sempre o h-de ser...

    Quanto ao perodo que estamos a considerar, pode dizer-se que, nos scs. xnr-xv, o movimento municipal j era, praticamente, incuo para o poder central, pois tinha perdido a guerra. V. MERA, Lies... (nota 16) 59-69; M. J. ALMEIDA COSTA (nota 19), 23-32; von GIBRKE (nota 40), 254-255; A. M. HESPAKHA, Histria... (nota 7), 245-247 e 251-259.

    No mbito deste tema, interessante e til para o momento actual a leitura de uma recente investigao de J. A. SARDINA PASAMO (nota 19), onde o autor, depois de analisar os diferentes significados histrico-jurdicos

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    Este fenmeno de centralizao e fortalecimento do poder poltico, inspirado peJo lema unum mperium unum ius, torna-se patente, na Pennsula, a partir do sc. xm. Basta pensar, quanto a Portuga], na actividade legislativa de D. Afonso II (Cortes de Coimbra, 1211), actividade que recebe grande incre-mento nos reinados seguintes 43.

    Relativamente a Castela, a extensa obra legislativa (Flores das Leis, Foro Real e, sobretudo, as Sete Partidas) do rei sbio Afonso X, se, a um tempo, revela um notvel e profundo conhe-cimento do direito romano justiniancu e uma tcnica jurdica admirvel para um autor do sc. xm, reflecte, tambm e de forma inequvoca, a preocupao centralizadora da poca44.

    do termo frum, a relevncia scio-poltica do direito foral no passado peninsular, as crises e os ataques ao direito foral e ao municipalismo, a partir do sc. xm, e as difceis e hostis relaes entre o .Estado constitucional liberal e o municipalismo, termina por relacionar o foralismo (enquanto direito autr-quico que, norteado pela justia, tem por objectivo a realizao do bem comum) com o Estado de Direito, procurando demonstrar que, em verdade, no h qualquer incompatibilidade entre estas duas realidades jurdicas, podendo, bem pelo contrrio, ver-se o foralismo (o municipalismo e o regionalismo) como uma das formas com mais virtualidades para a efectivao do autntico Estado de Difeito, isto do Estado que, partindo do reconhecimento da liber-dade individual e das comunidades locais, procura realizar a justia concreta,

    Veja-se, tambm, BAPTISTA MACHADO, Partipao... (nota 12), entre outras, pgs. 30-35, 57 e ss..

    43 Cf. Livro das Leis e Posturas, Lisboa (Universidade de Lisboa Faculdade de Direito), (1971).

    44 Sobre: esforos desenvolvidos pelos primeiros reis de Portugal no caminho da centralizao do poder poltico; influncia que a obra de Afonso X exerceu em Portugal; repercusso do direito romano e do direito cannico na doutrina e legislao destes dois pases, vide MBRA, Lies... (nota 16), 59-69 e 77-104; BRAGA DA CRUZ (nota 16); EDUARDO CORREIA (nota 16), 25-29; JM J. AIMBCDA COSTA, Cultura Jurdica Medieva em Portugal, Coimbra (1959); IDEM, La Prsence d'Acatrse dons 1'Histoire du Droit Portugais, Coimbra (1966); IDBM, Romanisme et Bartolisme dons le Droit Portugais, Milano (1961); A . M . HBSANHA, Histria... (nota 7), 489-503; F. CALASSO (nota 16), 611-617; GAIO SANCHEZ (nota 19), 247; L rez OBTIZ, La Coleaion Conocida con el Titulo *Leyes Nuevas y Atribuda a Alfonso X el Sabio in AHDE XVI (1945), 5-70; RODUGUBZ FLOMS, El Perdon Real en Castilla, Salamanca (1971), 17 e 79-87; SARDDA PARAMO (nota 19), 78-85.

  • Condicionalidade scio-cultural do Direito Penal 1067

    14. O direito penal, como tnica sensvel das transfor-maes econmicas, sociais, culturais e polticas, no podia deixar de reflectir os efeitos das transformaes operadas a partir dos scs. xu-xm. De facto, o processo de centralizao poltica, que se vir a consolidar na Idade Moderna, determinou, natu-ralmente, uma progressiva publicizao do ias puniendi.

    A baixa Idade Mdia constitui como que a charneira entre direito penal de justia privada (alta idade Mdia) e um direito penal pblico (Idade Moderna). O direito penal, vigente no perodo que vai do sc. xm ao sc. xv, revela-se como um sistema misto: ao lado de um direito penal pblico que, sob a influncia do direito justinianeu e do direito cannico atribui autoridade real o *ius puniendi, passa a considerar o crime como ofensa a toda a comunidade nacional4S, comea a recorrer, com frequncia pena de morte 46 e evolui para a consagrao do processo inqui-sitrio*>7, dizamos, lado a lado com este direito penal oficia],

    4 5 Como refere GEORGES PICCA, La Criminologie, Paris (1983), 84: com a centralizao do poder poltico, a represso passa a ser radoalzada, deixando a vingana de ser exercida pela vtima ou pela famlia e passando para a sociedade (o que significa dizer para o rei) cuja ordem foi perturbada pela infraco.

    46 A progressiva aplicao da pena de morte acompanha e resulta da crescente afirmao do poder rgio (centralizao do poder poltico) e da correspondente publdzao do ius puniendi*, factores que levam 1 consi-derao do delito como ofensa ao rei, senhor e representante natural do todo nacional, criando as condies para a efectiva execuo da pena capital.

    Sobre a relao entre a pena de morte e a perda absoluta da paz, vide ORIANMS (nota 14), 131 e 139-146; HERCULANO (nota 13) VIII, 172-177; EDUARDO CORREIA (nota 16), 17-19.

    Quanto origem da pena de morte e sua utilizao por todos os povos primitivos, bem como sobre a conexo entre a pena apitai e o exlio forado (proscrio ou banimento), vide supra, nota 30 e MANZtNt (nota 18), 50-55.

    47 Ruiz FUNES, En tomo a la Pesquisa y Procedimento Inquisitiva en el Derecko CastelUno-Leones de la Edad Media in AHDE* XXXII (1962), 483 -517; TOMAS y VALIENTE, El Derecko Penal de la Monarquia Absoluta, Madrid (1969), 25 E 153-200.

  • 1068 Homenagem aos Profs. M. Paulo Mera e G. Braga Ha Cruz

    sobrevive, at ao perodo das monarquias absolutas, um direito penal de autotutela, de cariz germnico.

    Compreendesse que assim tenha sido. No seria de um momento para o outro que as populaes iriam abandonar hbitos interiorizados ao longo de vrios sculos. E, assim, que os reis tiveram, ao mesmo tempo que iam afirmando o carcter pblico do ius puniendi, de condescender com certas prticas de autotutela, como a perda da paz e a inimizade 4S.

    15. (cont.) Corolrio lgico e natural da acentuada tendncia real para a monopolizao do poder poltico e do poder punitivo, eis que a mundividncia altomedieval que tinha assumido os valores da paz, da solidariedade e da fidelidade como realidades naturais vai ser posta em causa.

    A nova teorizao poltica (iniciada pel aescola dos glosadores dos scs. xi-xin, desenvolvida pelos comentadores no sc. xrv, e sistematizada pelos tratadistas ou praxistas dos scs. xv-xvi),

    48 Sobre estas instituies tpicas da alta Idade Mdia, ver supra, a." 8 e nota 18.

    Como prova desta supervivncja da concepo privatsrica do direito penal altomedieval, num tempo em que um novo iderio politico-jurdico advogava a institucionalizao de um direito penal pblico (o que nos demons-tra que, por vezes e, sobretudo, em estdios mais recuados da histria, nem sempre o direito legislado o direito vivido) basta atentar no facto de as Sete Partidas de Afonso X terem sido publicadas em 1265 e s haverem entrado em vigor, como direito subsidirio, em 1348, por fora do Ordenamento de Alcali. que o carcter centralizador e a consequente reivindicao do mono-plio real do exercido da justia punitiva desta obra legislativa no teria, ao tempo da sua publicao ,a mnima receptividade na conscincia das populaes habituadas ao seu espao de autonomia e efectivao, por suas prprias mos, da justia penal.

    Quanto a Portugal, repare-se na resistncia que, especialmente por parte da nobreza, foi oposta i lei de D. Afonso IV (inserta nas Ordenaes Afonsinas, livro V, ttulo 53) que proibia a todo o fidalgo ou vilo que acoime, tome vindicta ou se despique por si, exigindo, pelo contrrio, que se recorresse justia, Vide EDUARDO CORREIA (nota 16), 27-28; A. M . HESPANHA, Histria... (nota 7), 21; TOMS y VALIENTE (nota 47), 25 e ss,.

  • Cotidicionalidade scio-cultural do Direito Peitai 1069

    convertendo o rei em senhor absoluto, detentor directo de um poder divino para governar com justia e, portanto, responsvel somente perante Deus, titular exclusivo do poder legifrante (quod principi placuit legis habet vigorem*), colocado acima das suas prprias leis (princeps a legibus solutus), adminis-trador e juiz nico e supremo, dizamos, esta nova viso pol-tica, na mesma medida em que fere de morte as instituies intermdias (municipais, senhoriais,corporativas), retira solida-riedade o contedo psicossociolgico e tico que ela possua na alta Idade Mdia49.

    Por sua vez, tambm a concepo altomedieval da fidelidade entra em crise. O ambiente peculiar, que rinha levado as comu-nidades locais e mesmo a comunidade nacional a assumir a fidelidade, natural e espontaneamente surgida entre determinadas pessoas, como valor fundamental da vivncia social50, tinha desaparecido. Passando o monarca a considerar-se como senhor absoluto, identificando-se com a maiestas, a potestas ou a soberania (rex, superiorem non recognoscens in regno suo, est imperator), os subordinados (o indivduo e os grupos inter-mdios) j no caraceriam, para a sua segurana frente aos ini-migos internos e externos, de fazer apelo fidelidade ou lealdade recprocas dos membros do mesmo grupo a que pertenciam; agora, essa segurana devem eles procur-la no poder soberano do rei: a subsistncia das comunidades locais e nacional, a ordem social e a convivncia poltica tm como garante nico o impe-rium do monarca. Deixa, portanto, a relao entre o monarca e os governados de ser uma relao de coordenao, de recipro-cidade S1. noo e ao sentimento de fidelidade (pessoal) substi-tui-se o conceito e o dever jurdico de sujeio: a obedincia ao

    49 Cf. supra, n. 6. 50 Cf. supra, n. 6. 51 J no ecoava a voz de S. Isidoro de Sevilha: rex eris si recte facias,

    si non facias non eris.

  • 1070 Homenagem aos Profs. M. Paulo Mera e G. Braga Ha Cruz

    rei e s suas leis deixa de ser vista como um dever pessoal de lealdade para se configurar como uma exigncia, uma imposio do mperium de que est revestido o rei52.

    Posto em causa o valor da fidelidade nas suas cractersticas de espontaneidade e pessoalidade do vnculo e da reciprocidade dos deveres, em causa haveria de ficar o delito de traio que na infraco daquele valor descobria a sua nota essencial53. Assim, efectivamente, aconteceu. O condicionalismo baixome-dieval, j referido, provoca a crise da traio altomedieval, crise que se consumar, nos scs. xiv-xv, por influncia da literatura jurdica italiana baixomedieval, mediante a identifi-cao da traio com o crimen lesae maiestatis do direito imperial romano54.

    Traio passa a reduzir-sc traio rgia e esta a ser sin-nimo de crime de lesa majestade 5S. De ora em diante e at finais

    i 2 C o m o salienta IGLESIA FERREIROS (nota 16), 69: desaparecida a comunidade poltica, a fidelidade a nica garantia da vida social, sendo, correlativamente, exacto que a crise da fidelidade pressagia a apario do Estado.... Vide, tambm, O. BKUNNBR (nota 18), 299-312.

    53 Cf. supra, a.' 8. 54 O ponto de partida e de constante referncia, quer por parte da

    doutrina quer por parte da lei, v-o o crime de lesa majestade na denominada Lex Julia Maiestatis cuja paternidade, segundo uns, ter cabido a Jlio Csar, para outros, pertenceria a Octvio Augusto.

    Sobre a origem histrica desta lei, inserta no Corpus Iuris Civilis (Cdigo 9.8; Digesto 48), vide CASIO CHEALBBBTI, Sulla Teoria dei Delitti di Lesa Maiest nell Diritto Comune in Archivo Giuridico* CXLtX (1955), 142-146.

    Sobre a teorizao do crime de lesa majestade (conceito; espcies: crime de lesa majestade divina e crime de lesa majestade humana e, relativamente a este ltimo, crime de lesa majestade propriamente dito ou de primeira cabea e crime de quase lesa majestade ou de segunda cabea; conexo entre a teoria da soberania e a teoria de lesa majestade), vide nosso estudo (nota 14), 87-125; CARLO GHISALBERTI (citado nesta nota), 101-102,118-131,160-165; F. CALASSO foota 40), 111-123; TOMS y VAUENTB (nota 47), 23, 85-93, 271-273 e 394--395; DNIS SZABO, Crminologie et Politique Criminelle, Paris/Montreal (1978), 192 e 202.

    55 Sobre a evoluo do conceito (alto) medieval de traio como infi-delidade concreta, pessoal e vivencial para o conceito moderno de traio como

  • Condicionalidade scio-cultural do Direito Penal 1071

    do sc. xvm, o delito de traio converter-se- num meio de proteco de poder poltico personificado no rei e na nsua majestade. A figura jurdica da traio, instrumentalizando-se, formaliza-se e empobrece56.

    16. (cont.) O direito penal do perodo em anlise caracteriza-se peia sua desumanidade, crueldade, desigualdade, arbitrariedade e, consequentemente, pela sua natureza exacer-badamente repressiva e intimidativa.

    Ilimitado o nus puniendi do rei, este v na pena o mais eficaz meio de defesa da sua pessoa e do seu domnio. Nota essencial desta poca, mxime dos scs. xvii-xvm, a instru-

    crime de lesa majestade, isto , como infidelidade abstracta e legal, vide voa GHRKE (nota 40), 154-164; IGLESIA FERREIROS (nota 16), 148-204; IDEM, La Crisis de la Nocin de Fidelidad en al Obra de Diego de San Pedro in AHDE X X X I X (1969), 707-709; C . GHBALBRRTI (nota 54), 150-160; F. CALASSO (nota 40), 111-112 e 120-123; nosso trabalho (nota 14), 87 e ss..

    56 Os principais documentos legislativos portugueses e castelhanos reflectem, claramente, a desnaturao da traio (alto) medieval e a sua progres-siva converso no crime de lesa majestade.

    Quanto ao direito portugus, ver, no Livro das Leis e Posturas, a lei de D. Afonso II (1211), cuja epigrafe reza: Como el Rey manda que nom leuem nemjgalha dos que forem acusados en casos de treyom; Ordenaes Afonsinas (1446), liv. V, tt. II: Dos que fazem treiom, ou aleive contra El Rei, ou seu Estado Real; Ordenaes Manuelinas (1521), liv. V, tt. IH: Da lesa Majestade, e dos que cometem traiom contra o Rey, ou seu Real Estado, ou fazem outros crimes atraioadamente; Ordenaes Filipinas (1603), liv. V, tt. VI: Do crime de Lesa Majestade Nota: estas Ordenaes s foram Mal-mente revogadas, na 2. metade dosc. xix, com a publicao dos cdigos modernos.

    Relativamente ao direito castelhano, vide Partida II (dts. 2 a 19) onde Afonso X assume a tradio peninsular visigtica e altomedieval da fidelidade como pressuposto essencial da traio e Partida VII (tt. 2, leis 1 a 3) na qual, de forma contraditria com a tese acolhida em Partida U, j o mesmo rei sbio nos oferece um conceito de traio inspirado e modelado nos prin-cpios da doutrina e das leis romano-imperais, aparecendo a gravidade da ofensa ao rei, no ligada deslealdade ou infidelidade cometida (c supra, n. 8) mas natureza do prprio sujeito passivo da infraco: a majestade reaL

  • 1072 Homenagem aos Profi. M. Paulo Mera e G. Braga da Cruz

    mentalizao poltica da lei penal. A pena assume-se como condio para o absolutismo rgio 57.

    A pena deixa de ter como objectivo principal o restabele-cimento da ordem social e jurdica perturbada pelo delito, mediante a aplicao, ao infractor, de um castigo (mal) equi-valente ao mal (dano) que ele causou sociedade (retribuio), passando a ter uma finalidade, primordialmente, preventiva. Preveno caracterizada pela intimidao e, quando necessrio, pelo terror a incutir nos sbditos (preveno geral de intimidao5S.

    Ao servio desta finalidade, est todo um arsenal de penas cruis, completado pela forma brbara da sua execuo e coroado pela grande publicidade das condenaes e execues59.

    A variedade das penas pode tentar reduzir-se s seguintes categorias: penas capitais (pena de morte e pena de morte cruel, podendo a sua execuo ser por enforcamento porventura, a modalidade mais frequente , por decapitao ou pelo fogo e, no caso de morte cruel, sendo a execuo precedida de atrozes suplcios); penas corporais (flagelao, mutilao, castrao, etc.);

    5 7 TOMXS y VALIENTE (nota 47), 23-24, 45-46. 58 Afinnar-se que o principal fim da pena, no periodo do absolutismo

    monrquico, era a intimidao (preveno geral negativa) no significa que no tivesse havido pensadores (filsofos, moralistas, juristas) i defenderem uma politica criminal de preveno especial, isto , que acentuasse a finalidade de emenda ou correco do condenado a conseguir atravs da execuo da pena. Houve-os, efectivamente; todavia, suas vozes e seus escritos no foram capazes de fazer inflectir a dinmica do poder absoluto que, ao insuceso da sua politica de intimidao, tendia a seguir o caminho do terror penal Vide TOMS y VALIENTE (nota 47), 353-365; EDUARDO CORREIA ( n o a 16), 78-79; G. PICCA (nota 45), 84-85, onde se refere que foi o pensamento cristo que procurou suavizar esta crueldade penal, acentuando, ao lado do carcter retri-butivo da pena, o sentido de emenda e de recuperao do condenado. E porque Igreja visava a emenda, seu direito cannico recusava a pena de morte e as

    mutilaes penas irreversveis. 59 Para uma caracterizao global do direito penal da baixa Idade

    Mdia e da Tdade Moderna , vide EDUARDO CORREIA (nota 16), 25-71; TOMAS y VAXIENTE (nota 47).

  • CondiciotmlidaJe lcio-cultural do Direito Penal 1073

    penas contra a liberdade (degredo, desterro, servido, gals) penas pecunirias (confisco, multa).

    Para que a intimidao fosse o mais completa, o mais aterro-rizadora possvel, convinha dar o mximo de publicidade atroci-dade do castigo e da sua execuo. Daqui, a exposio no pelou-rinho, as marcas de ferro no rosto, o barao e prego, etc. 61.

    Nos crimes mais graves, especialmente no crime poltico de lesa majestade, a infmia do condenado (sujeito a morte cruel e ao confisco de todos os seus bens 62) transmitia-se aos seus des-

    60 At ns do sc. xvm (Iluminismo Criminal), a priso desempenha uma funo preventiva ou coercitiva, s muito raramente se aplicando como pena repressiva. Sobre isto, vide EDUARDO CORREIA (nota 16), 39, 49 e 55.

    61 Vide EDUARDO CORREIA (nota 16), 42, 50-51, 59-60-, TOMXS y VALIENTE (nota 47), 354-357, referindo que o pregoeiro, depois de indicar a causa da condenao e qual a forma de morte imposta, terminava, normal-mente, com as seguintes palavras: que seja enforcado at que morra, para que a ele sirva de castigo e aos outros de exemplo. Quem tal faz que tal pague pg, 356; e, na pg. seguinte, escreve: como as causas sociais... que impe-liam ao crime no se corrigiam e como, quando se chega a determinado nvel de desespero, o medo no travo suficiente... o medo pena foi muitas vezes ineficaz. Desencadeia-se uma luta entre a insensibilizao colectiva ao sofri-mento alheio ou prprio, a necessidade de buscar sustento, muitas vezes, por forma ilegal, as paixes violentas de uma sociedade pouco ou nada pacfica, e a fora atemorizadora do rei e sua lei. Daqui, a complexidade rebuscada de muitos tormentos e de muitas execues da pena capitaL Daqui, a publicidade das execues, os preges e a colocao das celas dos rus em lugares de muito trnsito (praas pblicas, cruzeiros de caminhos, entradas ou portas das cida-des...). Muitas crueldades aparentemente desnecessrias tm a sua razo de ser nesta inteno de provocar medo colectivo.

    42 A crueldade e, dga-se mesmo, iniquidade do sistema punitivo das monarquias absolutas atingiu o seu clmax na punio dos crimes de lesa majes-tade. As nossas Ordenaes, tal como a generalidade dos direitos europeus dos scs. xv ao xvm, seguem, nesta matria da punio dos crimes de lesa majestade propriamente ditos (isto , os mais graves dos crimes de lesa majes-tade, ou sejam aqueles delitos que atingiam, directamente, a pessoa do rei ou o seu Estado real crimes que, na sua generalidade, viro a integrar, a partir dos sci xvm-xnc, os denominados crimes contra a segurana interior e exterior do Estado), o disposto na to famosa quo cruel constituio dos imperadores romanos Arcdio e Honrio (ano 397), conhecida por lex Quisquis.

    Esta lex Quisquis, inserta no Corpus luris, Cdigo 9.8.5., estabelecia: Quisquis cum militibus, vel priva tis, vef barbaris inierit fctionem... gladio

    61

  • 1074 Homenagem aos Profs. M. Paulo Mera e G. Braga Ha Cruz

    cendentes, trazendo consigo todo um cortejo de terrficas conse-quncias de natureza social, profissional e jurdica 63, to terrveis

    feriatur, bonis eius omnibus fisco nostro addictis. BASTOU, no seu Commen taria, Venetiis (MDCXV), 119, escrevia, a propsito da mencionada lei: Quis-quis qui proditionem fecerint, vel tractaverint contra Principem... puniuntur morte et publcatione bonorum....

    Como escrevemos no nosso estudo (nota 14), pg. 126: Apesar dos esforos da dogmtica jurdica dos comentadores e tratadistas, no sentido de fizerem uma interpretao restritiva do alcance da referida lei, com o objectivo de minorarem a sua desumanidade, a verdade que o poder politico, agora sacralizado e abolutizado, viu no acolhimento integral da lex Quis-quis o melhor meio de se defender dos eventuais ataques de que pudesse ser alvo. Assim, de nada valeram, na prtica, as tentativas de uma interpre-tao humanitria da referida lei, acabando esta por ser acolhida nas legislaes nacionais e sendo aplicada com todo o rigor e severidade.

    O mais dramtico de tudo foi que a dinmica terrorista do poder absoluto acabou por aplicar to severa lei a factos que s o arbtrio do rei podia qualificar de crimes dc lesa majestade. Pense-se no que aconteceu aos participantes no clebre Motim do Porto e aos Tvoras, no consulado do Marqus de Pombal

    Em resumo, era o seguinte o tratamento jurdico-penaJ do crime de lesa majestade propriamente dito: morte cruel e confisco {deve por ello morrer naturalmente de morte cruel, e todos seus bees, que ouver ao tempo da con-dapnaom, devem ser confiscados pera ns, nom embargando que filhos ldimos aja, ou alguns acendentes..., assim proclamavam as Ordenaes Afon-sinas V. 2.12., como as Manuelinas V. 3.9-10. e as Filipinas V. 6. 9-10); acusado post mortem (na linha do preceito romano, contido em Cdigo 9.8.6-. Maiestatis rei etiam post mortem tenentur, et confiscatur eorum. substant... memoria defuncti damnatur verdadeira excepo ao principio geral de que mor* omnia solvit consagrado, p. e., em Digesto 48.1 defuncto eo, qui reus fut criminis et poena extincta in quacumque causa criminis extincti... afir-mavam as Ordenaes Afonsinas V. 2.27.: E dizemos ainda, que... se o culpado morresse ante que fosse a