Direito universal à saúde- fundamentalidade e efetividade

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UNIVERSIDADE GAMA FILHO CENTRO DE CINCIAS SOCIAIS DEPARTAMENTO DE CINCIAS JURDICAS

FLORA STROZENBERG

Direito universal sade: fundamentalidade e efetividade

Rio de Janeiro 2008

FLORA STROZENBERG

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Direito universal sade: fundamentalidade e efetividade

Tese submetida Universidade Gama Filho, no Rio de Janeiro, para obteno do ttulo de Doutor em Direito. Orientador: Professor Leonardo Greco Doutor

Rio de Janeiro 2008

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Direito universal sade: fundamentalidade e efetividadeEsta tese foi julgada adequada para a obteno do ttulo de Doutor em Direito e aprovada em sua forma final pela Coordenao do Curso de PsGraduao em Direito da Universidade Gama Filho, na rea de Direito.

COMISSO EXAMINADORA _____________________________________________ PROFESSOR DOUTOR LEONARDO GRECO _____________________________________________

PROFESSOR DOUTOR HSIO DE ALBUQUERQUE CORDEIRO_____________________________________________

PROFESSOR DOUTOR AURLIO WANDER BASTOS_____________________________________________

PROFESSORA DOUTORA MARGARIDA MARIA LACOMBE CAMARGO_____________________________________________

PROFESSORA DOUTORA FERNANDA DUARTE

Rio de Janeiro, 07 de abril de 2008.

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A Pedro, Paula e Letcia destinatrios de todos os meus esforos e todo meu amor.

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AGRADECIMENTOS

Ao professor Leonardo Greco, a minha maior gratido pela excelncia de sua orientao, impecvel. Ao professor Luiz Otavio Ferreira Barreto Leite por sua contribuio ao estilo e aplicao das normas deste texto. As pesquisadoras Maria Eliana Labra e Jeni Vaitsman pela interlocuo e crtica em todas as questes ligadas a Reforma Sanitria e Governana do SUS constantes neste trabalho. A Ana Gabriela de Melo Pinheiro e Letcia Strozenberg, uma pesquisadora e outra jovem advogada, pelas pesquisas, incentivos, e grande ajuda. E Caio Eduardo Souza Nascimento em tudo que se refere s questes administrativas, tambm o meu muito obrigado.

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RESUMO STROZENBERG, Flora. Direito universal sade: fundamentalidade e efetividade. 2008. 289p. Tese (Doutorado em Direito)-Universidade Gama Filho. Investiga a fundamentalidade do direito universal sade no Brasil, assim consagrado na Constituio Federal de 1988, bem como o papel do Ministrio Pblico em zelar pela sua tutela. Elucida a contribuio do movimento sanitrio no complexo processo de conquista do status de direito fundamental que esse direito alcanou e na positivao constitucional dos princpios norteadores do Sistema nico de Sade (SUS). Entende que a identificao do direito sade como um direito de envergadura constitucional constitui um primeiro mas decisivo passo para assegurar a sua tutela jurisdicional. Argumenta que o impasse que possvel atestar, no pas, no acesso igualitrio sade no decorre de falhas na formulao das normas constitucionais concernentes, mas sim de problemas associados m governana do Sistema nico de Sade. Sustenta que a eficcia dos instrumentos processuais disponveis para proteo do direito em questo se mostra bastante relativa. Sublinha a importncia da atuao do Ministrio Pblico Federal sobretudo no uso do termo de ajustamento de conduta e como um indutor da implementao e reformulao de polticas pblicas que tm conexes com a governana do Sistema nico de Sade, cuja eficcia assegura a efetividade desse direito fundamental. Palavras-chave: Direito Sade. Movimento Sanitrio. Fundamentalidade Formal e Material. Efetividade. Governana. Ministrio Pblico Federal.

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ABSTRACT STROZENBERG, Flora. Direito universal sade: fundamentalidade e efetividade. 2008. 289p. Tese (Doutorado em Direito)-Universidade Gama Filho. It investigates the fundamental character and the effectiveness of the universal right to health in Brazil, so consecrated in the Federal Constitution of 1988, as well as the role of Public Ministry in watching over its protection regime. It clears up the contribution of the sanitary movement in the process of conquest of fundamental right status reached by such a right and the constitutional ruling of the guiding principles of "Sistema nico de Sade" [Health United System] (SUS). It understands that the identification of the right to health as a right of constitutional standing constitutes a first but decisive step to assure its jurisdictional protection. It argues that the impasse in the egalitarian access to health recognized in the country doesn't rise from defects in the enactment of the relevant constitutional norms, but from problems related to the bad governance of SUS. It demonstrates that the effectiveness of the procedural remedies for the protection of such a right appears quite relative. It stresses the importance of the Federal Public Ministry's performance especially in the use of the term of adjustment of conduct as an inductor of the implementation and improvement of public policies connected with the governance of SUS, whose efficiency assures the effectiveness of this fundamental right. Keywords: Right to health. Sanitary Movement. Formal and Material Fundamentality. Effectiveness. Governance. Federal Public Ministry.

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RSUM

STROZENBERG, Flora. Direito universal sade: fundamentalidade e efetividade. 2008. 289p. Tese (Doutorado em Direito)-Universidade Gama Filho. On dveloppe une recherche de la fondamentalit et de l'effectivet du droit universel la sant au Brsil, consacr en tant que tel dans la Constitution Fdrale de 1988, et du rle du Ministre Public dans la surveillance de son rgime protectif. On met en lumire la contribution du mouvement sanitaire dans le processus complexe de la conqute du statut de droit fondamental atteint par tel droit et dans la positivation constitutionnelle de principes qui rgissent le Systme Unique de Sant (SUS). On comprend que l'identification du droit la sant comme un droit de rang constitutionnel constitue un premier mais dcisif tage pour assurer la protection juridictionnelle. On argumente que l'impasse l'accs galitaire la sant attest au Brsil ne provient pas de dfauts dans l'laboration des normes constitutionnelles correspondantes, mais bien de problmes attachs la mauvaise gouvernance du Systme Unique de la Sant. On dmontre que l'efficacit des instruments de caractre procdural disponibles pour protger le droit en question se prsente assez relative. On souligne l'importance de l'actuation du Ministre Public Fdral surtout dans l'emploi du terme de mise en rgle de conduite comme un inducteur de l'implmentation et rformulation des politiques publiques qui ont des connections avec la gouvernance du Systme Unique de Sant, dont l'efficacit assure l'effectivet de ce droit fondamental. Mots-cl: Droit la Sant. Mouvement Sanitaire. Fondamentalit Formelle et Matrielle. Effectivet. Gouvernance. Ministre Public Fdral.

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SUMRIO 1 INTRODUO........................................................................................11 2 REFORMA DA SADE NO BRASIL E A CONQUISTA DO DIREITO UNIVERSAL SADE....... ....................................................................24 2.1 Os Primrdios do Movimento Sanitarista Brasileiro............................27 2.2 Impasses e Descaminhos do Movimento Sanitarista (1930-1964): suas expresses legais.........................................................................................36 2.3 A Afirmao Histrica de um Novo Movimento Sanitarista no Brasil (1964-1986).................................................................................................53 2.3.1 Entraves polticos e advento de um movimento contra-hegemnico.53 2.3.2 Conquista de espaos institucionais e desdobramentos finais do ciclo dos governos militares.................................................................................65 2.4 A Constitucionalizao do Direito Universal Sade..........................85 2.4.1 Os avanos finais rumo a essa constitucionalizao: a 8 Conferncia Nacional de Sade.......................................................................................85 2.4.2 Processo constituinte e direito sade...............................................96 3 IMPASSE NO ACESSO IGUALITRIO SADE NO BRASIL: GESTO E JUDICIALIZAO..............................................................106 3.1 Aplicabilidade Imediata da Norma Constitucional: Fundamentos e Conseqncias...........................................................................................113 3.2 A Efetividade do Direito Sade e a Problemtica de sua Gesto.....129 3.2.1 Um redesenho das polticas de sade...............................................129 3.2.2 Em busca da ampliao das fontes de financiamento e de sua justa destinao..................................................................................................134 3.3 Judicializao e Eficcia Relativa dos Meios Processuais..................142

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3.3.1 Consideraes preliminares..............................................................142 3.3.2 Ao ordinria e mandado de segurana..........................................148 3.3.3 Ao civil pblica.............................................................................150 3.3.4 Medida cautelar inominada..............................................................155 4 MINISTRIO PBLICO, DEVER ESTATAL DE TUTELA E DIREITO SADE ................................................................................158 4.1 Improbidade administrativa e governana do SUS.............................173 4.2 Dever estatal de tutela do direito universal sade e a posio do Ministrio Pblico.....................................................................................190 4.2.1 Dever estatal de tutela de direitos fundamentais..............................190 4.2.2 A identidade do Ministrio Pblico e sua atuao frente aos direitos difusos e coletivos.....................................................................................194 4.2.3 O papel do Ministrio Pblico e sua promoo da eficcia do SUS............................................................................................................203 5 CONCLUSO........................................................................................212 REFERNCIAS........................................................................................220 ANEXO: AGENDA DA SADE.............................................................244 NDICE DA LEGISLAO PESQUISADA...........................................246

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1 INTRODUO

[...] estamos convencidos de que encontrar [para os direitos humanos] um fundamento, ou seja, aduzir motivos para justificar a escolha que fizemos e que gostaramos fosse feita tambm pelos outros, um meio adequado para obter para eles um mais amplo reconhecimento.(Norberto Bobbio. A era dos direitos) Sob o aspecto conceitual, o direito sade no pode ser entendido em termos de igualdade, mas sim de eqidade. [...] a eqidade consiste em criar ou favorecer, para cada indivduo, a possibilidade de perseguir e de atingir o nvel potencial de sade que lhe prprio. (Giovanni Berlinguer. Biotica cotidiana) O processo somente constituir garantia da tutela efetiva dos direitos se for capaz de dar a quem tem direito tudo aquilo a que ele faz jus de acordo com o ordenamento jurdico. (Luigi Paolo Comoglio. A garantia constitucional da ao e o processo civil. Trad. de Leonardo Greco)

O propsito central deste estudo reside em verticalizar a compreenso da fundamentalidade do direito universal sade, consagrado em nossa Carta Magna, bem como do papel do Ministrio Pblico em resguardar essa fundamentalidade, assumindo uma posio mais ativa face judicializao crescente de tal direito, motivada sobretudo por falhas notveis na governana do setor pblico da sade neste pas. 1 A definio de sade que emana da Organizao Mundial da Sade (OMS) como um estado de completo bem-estar fsico, mental e social e no apenas a ausncia de afeces ou de doenas, acena para um avano

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Entenda-se: na governana do prprio Sistema nico de Sade (SUS); a norma constitucional que dispe sobre a universalidade desse direito (art. 196) vai depender concretamente da efetividade do SUS, que se funda na existncia de recursos notadamente, daqueles assegurados pela Emenda Constitucional n 29 e pela Contribuio Provisria sobre as Movimentaes Financeiras (CPMF) , bem como em sua boa governana. Tal conceito veio a modificar o padro e o modo de se pensar a gesto de bens pblicos, antes prevalentemente restritos aos atores presentes na esfera pblica estatal. Ver GOHN, Maria da Glria. Os conselhos municipais e a gesto urbana. In: SANTOS JUNIOR, Orlando Alves dos; RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; AZEVEDO, Sergio de (Org.). Governana democrtica e poder local: a experincia dos conselhos municipais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, Fase, 2004.

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nada desprezvel: em nossa poca, conquanto se viva numa sociedade de risco global, o direito sade conta com um desenvolvimento normativo, doutrinrio e jurisprudencial capaz de contemplar um enfoque integral (ou unitarista) da sade. Neste o desfrute do mximo nvel possvel de sade est determinado no somente pela condio de sade fsica e mental da pessoa, mas tambm pelos fatores socioeconmicos determinantes do meio ambiente, tais como acesso a gua limpa e potvel e condies sanitrias bsicas, condies ambientais apropriadas, alimentao e nutrio, moradia e, ainda, condies de trabalho seguras. 2 A perspectiva de compreenso terica da efetividade do direito sade enquanto direito fundamental adotada no presente trabalho assimila alguns pontos de vista ou teses que gozam, na atualidade, de extenso respaldo doutrinrio. Dentre esses vale lembrar a defesa incondicional dos direitos fundamentais, assumida mesmo diante do reconhecimento da crise do Estado Social;3

a recusa do juridicismo entendido como tentativa de

compreender o direito separando a moral e a poltica; o posicionamento crtico em relao s vises ingnuas e irrealistas do direito, que se obstinam a reduzi-lo a um sistema de normas (subestimando o peso dos2

Em suma: a sade sempre se encontra em um horizonte de perturbao e ameaa ela significa proteo e segurana (Geborgenheit). GADAMER, Hans-Georg. O carter oculto da sade. Trad. Antnio Luz Costa. Petrpolis: Vozes, 2006. p.121.3

Em que pesem a suas diferenas propriamente ideolgicas, vale aqui lembrar autores como SANTOS, Boaventura de Sousa. Para um novo senso comum: a cincia, o direito e a poltica na transio paradigmtica. 2.ed. So Paulo: Cortez, 2000. v. 1: A crtica da razo indolente: contra o desperdcio da experincia (ver sobretudo p.24-30) e PREZ LUO, Antonio Enrique. Los derechos fundamentales. 7.ed. Madrid: Tecnos, 1998. (Temas Clave de la Constitucin Espaola), p.61-65, alm de seu trabalho de valor seminal para tal defesa dos direitos fundamentais, Derechos humanos, estado de derecho y constitucin, ed.cit, p.212-231.

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princpios que a estas se somam em tal conjunto); a confiana nas possibilidades do juiz como responsvel por encontrar a resposta para o caso concreto;4

o reconhecimento da racionalidade jurdica a ser

mobilizada sobretudo no domnio do Direito Processual como uma racionalidade inegavelmente prtica;5

a viso mais preocupada com o

problema do que com o sistema, 6 acolhida com amplo destaque pela teoria do raciocnio tpico e pela teoria retrico-argumentativa perelmaniana; 7 a no-aceitao de uma ciso absoluta entre o prisma descritivista e o

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Esses prismas de compreenso postos em relevo encontram excelente sustentao doutrinria nas obras do jusfilsofo norte-americano Ronald Dworkin, particularmente em Levando os direitos a srio (Trad. Nelson Boeira. So Paulo: Martins Fontes, 2002) e O imprio do direito (Trad. Jefferson Luiz Camargo. Reviso tcnica Gildo S Leito Rios. So Paulo: Martins Fontes, 2003). Um comentrio muito rico dos fundamentos da teoria da deciso judicial construda por esse autor e de sua compreenso das conexes complexas entre direito e poltica nos oferecido por VIGO, Rodolfo Luis. A interpretao jurdica em Ronald Dworkin. In:______. Interpretao jurdica: do modelo juspositivista-legalista do sculo XIX s novas perspectivas. Apresentao Luiz Carlos de Azevedo; traduo Susana Elena Dalle Mura; reviso e notas Alfredo de J. Flores. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p.63-79.5

Tal posicionamento pode ser depreendido da leitura de autores relativamente distantes quanto a sua fundamentao filosfica e a seus objetos privilegiados de investigao jusfilosfica como Cham Perelman (ver tica e direito. Traduo Maria Ermantina Galvo. So Paulo: Martins Fontes, 2002. p.427-437) e Jrgen Habermas (ver Direito e democracia: entre facticidade e validade, ed.cit., v.2, p.194-221).6

Admitimos que a perspectiva sistmica possa ser acolhida com sucesso, especialmente na defesa do argumento (por ns sustentado) de que a sade constitui direito fundamental subjetivo de cada ser humano, conforme comprovam os trabalhos de SCHWARTZ, Germano. Direito sade: efetivao em uma perspectiva sistmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, e O tratamento jurdico do risco no direito sade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.7

Cf. VIEHWEG, Theodor. Tpica e jurisprudncia. Trad. Trcio Sampaio Ferraz Jr. Braslia: Imprensa Nacional, 1979; PERELMAN, op.cit., p.420-427. A rigor, esses autores argumentam, nos trabalhos citados, que sistema jurdico e raciocnio tpico podem ser aproximados de maneira a harmoniz-los. Tal ponto de vista elucidado por Mendona em obra que constitui uma importante contribuio para o conhecimento das ticas de Viehweg e Perelman: MENDONA, Paulo Roberto Soares. Alternativas tpicas para a metodologia do direito. In:______. A tpica e o Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.197-271. Uma boa sntese das posies doutrinrias ps-positivistas no tocante questo da motivao na deciso judicial foi elaborada por TARUFFO, Michele. La motivazione della sentenza civile. Padova: CEDAM, 1975.

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prescritivista, 8 a ser especialmente sustentada no exame da positivao de todo direito fundamental. A nosso ver, o entendimento mais aprofundado do processo pelo qual o direito sade alcanou o status de direito fundamental, por fora dos prprios dispositivos da Constituio Federal de 1988, tem de tomar em considerao toda uma srie de lutas polticas e institucionais, travadas pelo movimento sanitrio, que assumiu um carter contra-hegemnico no quadro dos governos militares que sucederam ao golpe de 1964, as quais asseguraram o espao rumo constitucionalizao de tal direito (definindolhe a sua fundamentalidade formal) e do perfil institucional do Sistema nico de Sade (SUS), imprescindvel efetivao do acesso sade. Recompor, mesmo que de um modo breve, a trajetria desses embates em especial, aqueles dados luz quando da 8 Conferncia Nacional de Sade que resultaram na insero desse direito fundamental em nossa ordem constitucional, elucidando as suas implicaes jurdicas e polticas, tem sido um objetivo minimizado ou simplesmente desconsiderado nos estudos jurdicos disponveis ainda em nmero relativamente reduzido8

Ver, em particular, ALEXY, Robert. Coliso de direitos fundamentais e realizao de direitos fundamentais do Estado de Direito Democrtico. Revista de Direito Administrativo, So Paulo, v.78, n.217, 1999. O posicionamento terico-metodolgico em tela tambm foi defendido sob um ngulo liberal-tico, por DWORKIN, Ronald. Princpio, poltica, processo. In:______. Uma questo de princpio.Trad. Lus Carlos Borges. So Paulo: Martins Fontes, 2001. p.105-152. Mesmo uma teoria axiomatizada como a de Ferrajoli, que representa uma verso crtica e aprimorada das posies kelsenianas, vem animada por uma pretenso explicativa e descritiva, mas tambm comporta uma dimenso crtica ou prescritiva (a apontar utopicamente para os espaos onde urgente melhorar o sistema de garantias); essa dimenso atrai para o campo do direito positivo questes de fundo que no paradigma meramente legalista (mas no constitucional) ficavam relegadas ao mbito externo do poltico, ou seja, sede filosfico-poltica. Cf. FERRAJOLI, Luigi. Los fundamentos de los derechos fundamentales. In:______. Los fundamentos de los derechos fundamentales. 3. ed. Madrid: Trotta, 2007. p. 287-329, em especial.

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acerca da constitucionalizao desse direito ou dos problemas (sobretudo de natureza processual) que a sua tutela efetiva compreende. 9 Assim sendo, decidimos ousar, reservando o captulo segundo da Tese a uma demonstrao no desprovida de conseqncias: que a legitimao do direito sade no Brasil enquanto direito fundamental no se funda numa produo normativa particular conquanto no se perca de vista que direito fundamental direito que possui fora jurdica constitucional , 10 mas antes se assenta num rduo processo de conquistas poltico-sociais. a historicidade de um transcurso de lutas que pretendemos desvelar para melhor avaliarmos a fundamentalidade substancial do direito em exame. Convm esclarecer que participamos desse processo, deixando de lado a posio de testemunha distante (embora interessada). De fato, h mais de trinta anos nos temos envolvido com o movimento de reforma sanitria e com o intrincado processo de positivao em nvel constitucional do direito universal sade e da criao do SUS, e chegamos mesmo a harmonizar, numa espcie de desafio ps-weberiano e

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Essa observao pode ser aplicada tanto a trabalhos recentes que empreendem um srio esforo de elucidao do regime jurdico constitucional dos chamados direitos fundamentais sociais e das possibilidades de concretizao do direito sade no Brasil, como os de Mariana Filchtiner Figueiredo (Direito fundamental sade: parmetros para sua eficcia e efetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007) e de Ana Paula Oriola de Raeffray (Direito da sade: de acordo com a Constituio Federal. So Paulo: Quartier Latim, 2005), quanto a investigaes que se detiveram no enfoque dos bices efetivao judicial e dos meios de tutela de tal direito, como o de Germano Schwartz (Tutela antecipada no direito sade. Porto Alegre: Srgio Antnio Fabris, 2003).10

Ver, em especial, ALEXY, Robert. Teora de los derechos fundamentales. Trad. Ernesto Garzn Valds. 1. ed., 3. reimp. Madrid: Centro de Estudios Polticos y Constitucionales, 2002. p. 47-80 (obra cuja primeira edio data de 1986).

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ainda gramsciano, a paixo e a vocao acadmica ou cientfica, obtendo por resultado uma dissertao de mestrado, sob o ttulo de Eficcia: impasse no direito social, defendida em 1977 na Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro. O captulo em tela tem como fecho um estudo das conexes entre processo constituinte, efetivado em outubro de 1988, e o adensamento da compreenso do direito sade como direito fundamental. Procuramos frisar que o nosso constituinte originrio, na medida em que assimilou uma compreenso ampliada de justia social (pensada alm do modelo distributivista de justia, de procedncia liberal), teve o mrito de no s organizar um texto constitucional capaz de consagrar, sob uma tica democrtica atualizada, direitos fundamentais, como tambm legar-nos os meios propriamente judiciais para a sua defesa e implementao. So esses instrumentos processuais que vo assegurar a ordem jurdica fundamental subjetiva, a saber, a esfera jurdica em que se localizam as situaes jurdicas subjetivas derivadas dos direitos e garantias fundamentais que se encontram consagradas pela Constituio do pas. A propsito, urge notar, em consonncia com as reflexes de Abramovich e Courtis, que, a despeito da complexa estrutura que os informa, inexistem direitos fundamentais sociais que no exibam ao menos alguma faceta ou caracterstica capaz de ensejar, em caso de violao, a sua

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exigibilidade judicial.

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Assim sendo, possvel identificar seno uma

obrigao, pelo menos uma inequvoca presuno em favor de uma interpretao progressiva a respeito da justiciabilidade do direito sade, promovendo-se o necessrio esforo no sentido de ampliar o rol de hipteses em que seja acolhida a exigibilidade judicial de tal direito, seja esta originria ou derivada da legislao integradora. Por sua vez, o captulo terceiro da Tese comea por uma defesa radical da aplicabilidade imediata da norma constitucional relativa ao direito universal sade e desdobra-se em dois outros movimentos reflexivos que abrangem o enfoque da problemtica da gesto do setor da sade e, por extenso, do SUS e do seu agravamento nos ltimos quinze anos (portanto, j em uma conjuntura histrico-jurdica afetada pelas polticas de cunho neoliberal), bem como o estudo que tenta comprovar a eficcia relativa dos instrumentos processuais mobilizados quando se impe o referido processo de judicializao. A investigao proposta tem como alvo esclarecer o que reconhecemos, na atualidade brasileira, como impasse no acesso igualitrio sade, a contrastar com o vigor dos dispositivos constitucionais que tratam de tal direito em sua articulao essencial com o princpio da dignidade da pessoa humana, pensado como o pilar axiolgico do Estado Democrtico de Direito, e que tm assegurado11

Cf. ABRAMOVICH, Victor; COURTIS, Christian. Los derechos sociales como derechos exigibles. Prlogo de Luigi Ferrajoli. Madrid: Trotta, 2002. Ver, em especial, p. 132-348.

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pronunciamentos importantes em defesa desse direito e contra as posies restritivas ou omissivas sustentadas pela Administrao por parte dos nossos tribunais superiores e, em especial, do Supremo Tribunal Federal. Isso no nos impede de considerar que ainda nos falta uma mais vigorosa jurisdio constitucional no sentido preciso de promover a concretizao de direitos (sobretudo os fundamentais) por seu carter marcadamente finalstico. Esse captulo, que representa uma tentativa de ultrapassar (em sua dupla acepo de passar por e transcender) a chamada teoria liberal dos direitos fundamentais, assume o desafio de proceder desconstruo dos argumentos defendidos, na seara judicial, pelo Poder Pblico, sobretudo com o fito de negar o fornecimento a determinadas medicaes. Eles podem ser assim sintetizados: (a) que o art. 196 da nossa Carta Magna, que assegura a todos o direito sade, neste reconhecendo um dever indeclinvel do Estado, no tem o alcance nem a dimenso valorativa que lhe vm sendo atribudos pelo Judicirio, sob a alegao de que se trata de norma constitucional de eficcia contida ou limitada; (b) que a Constituio Federal tem como princpio norteador bsico a reserva do possvel, o que significa admitir que os direitos ditos sociais s podem ser respeitados quando houver recursos financeiros pblicos suficientes para tanto;18

(c) que o Poder Judicirio no tem competncia para decidir sobre a alocao e destinao de recursos pblicos. Essas alegaes da Administrao, cujos fundamentos nos

empenhamos por infirmar, se repetem a despeito da vinculatividade normativo-constitucional prpria aos direitos fundamentais do porte do direito sade , num quadro histrico-poltico em que as principais crticas construdas contra o sistema de direitos fundamentais garantidos por nossa Constituio cidad se relacionam aos direitos ditos sociais, entre os quais se costuma ainda alinhar erroneamente o direito sade, que transitou para o patamar de um direito universal, individual, fortemente subjetivo e assim que este se converte em objeto de ao no mbito judicial (a nossa dissertao de mestrado j aludida, produzida nos anos setenta, expressava aquela viso, que se mostrou to equivocada quanto o conceito de que as sociedades so formadas to-somente de classes sociais). Convm lembrar que juristas e polticos que acolhem pontos de vista inequivocamente neoliberais conservadores (sobretudo se considerarmos a tica de uma interpretao constitucional que tenha por meta bsica a garantia do status quo ante social), questionam o carter dirigente de nossa Constituio e criticam de um modo contundente a inflao de direitos e, em particular, a extenso de certos direitos fundamentais entre os quais se destacaria o direito sade , sugerindo de forma velada19

ou aberta o retorno a um regime de garantia quase limitada das liberdades individuais. Em contraposio a tais posies poltico-ideolgicas surgem doutrinadores a sustentar pontos de vista qualificveis como socialmente progressistas, os quais insistem em lamentar a ausncia de efetivao dos direitos fundamentais em nossa sociedade e, em especial, do direito universal sade j constitucionalmente consagrado; estes mal se esforam por pensar um caminho alternativo que contribua para reverter tal situao, aprisionados que esto teoria liberal dos direitos fundamentais. Acolhemos, outrossim, o pressuposto de que os direitos

fundamentais, a exemplo do direito sade, so limitveis to-somente se isso for imprescindvel conformao de um escopo social que emcontra cobertura no sistema de valores da Lei Fundamental (e esse, a nosso ver, no o caso do princpio da reserva do possvel at porque no faltam recursos que poderiam ser mais bem destinados sade, caso a sua gesto fosse mais correta e eficaz). importante ressaltar que, ao final da redao dos dois captulos subseqentes a esta Introduo, nos foi possvel inferir com maior profundidade e clareza que o direito sade pde evoluir da condio de direito social ao status de um direito subjetivo especialmente forte, universal. Alis, na perspectiva do Supremo Tribunal Federal (a levarmos em conta, por exemplo, o Agravo Regimental no RE n 286-8, RS, Rel. Min. Celso de Mello, DJU 24 nov. 2000), a sade deve ser entendida como20

direito pblico subjetivo, constituindo prerrogativa jurdica indisponvel de todos, e cabe, sob tal prisma de compreenso, ao Poder Pblico formular e implementar polticas sociais e econmicas idneas que visem assegurar aos cidados brasileiros o acesso universal e igualitrio assistncia

farmacutica e mdico-hospitalar, reconhecendo-se que o direito sade , alm de se qualificar como direito fundamental que assiste a todas as pessoas, representa conseqncia constitucional indissocivel do direito vida. Por outro lado, julgamos incontroverso tratar-se o direito sade de uma parcela integrante do mnimo existencial, no apenas por suas caractersticas intrnsecas, mas tambm em virtude de sua importncia para a concreo de outros direitos necessrios a uma existncia digna (a exemplo do direito educao). No captulo quarto da Tese, pretendemos refletir sobre um caminho alternativo talvez no inteiramente utpico para se ultrapassar o impasse identificado no acesso igualitrio sade, haja vista inclusive os meios processuais mobilizados na perspectiva de sindicao de direitos ditos prestacionais (v.g., o direito a um medicamento especial). Isso vai implicar trazermos cena um personagem no raro posto de lado ou subestimado nas abordagens da problemtica da tutela efetiva do direito sade, que o Ministrio Pblico. Cabe aqui lembrar que uma das mais promissoras inovaes trazidas pela Constituio de 1988 consiste na criao de um Ministrio Pblico21

independente do Poder Executivo, possuindo garantias similares s do Poder Judicirio e tendo a nobilssima misso de guardar os interesses transindividuais da sociedade e do regime democrtico.12

A tal Ministrio

Pblico, que sucedeu um Ministrio Pblico dependente do Executivo e, por extenso, do poder poltico segundo o Min. Joaquim Barbosa, 13 um repassador de provas realizadas por uma polcia sem independncia , compete hoje zelar para que no haja disposio de interesse que a lei considera indisponvel, a exemplo do direito sade, ou ainda zelar pela prevalncia do bem comum, naqueles casos em que inexista

indisponibilidade do interesse (nem absoluta nem relativa), porm esteja presente o interesse da coletividade como um todo na soluo da controvrsia (o que pode ser ilustrado pela defesa de interesses coletivos ou individuais homogneos, se houver extraordinria disperso dos lesados ou se for necessrio garantir o funcionamento de todo um sistema econmico, social ou jurdico). 1412

Face s perspectivas ps-positivistas de compreenso do Direito, que questionam os limites das posies normativistas e se fundam na fora normativa dos princpios e no carter solidrio da poltica, seria descabvel recusar legitimidade ao Ministrio Pblico para canalizar ao prprio Poder Judicirio questes que concernem aos interesses transindividuais, uma vez obedecidas as regras de competncia fixadas em nossa Carta Magna. Vale, nesse sentido, sublinhar a prerrogativa que tem o Ministrio Pblico de firmar compromissos de ajustamento de conduta s exigncias legais com o agressor do interesse transindividual (coletivo, difuso ou individual homogneo). Ver PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Direitos fundamentais sociais: consideraes acerca da legitimidade poltica e processual do Ministrio Pblico e do sistema de justia para sua tutela. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 253-267. Consulte-se, tambm, RODRIGUES, Geisa de Assis. Ao civil pblica e termo de ajustamento de conduta: teoria e prtica. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 65-84 e p. 301.13

Remetemos leitura do voto do Min. Joaquim Barbosa no Inqurito 1.968-2-DF, concernente ao Caso Remi Trinta, que compreendia vrias fraudes, inclusive cobrana de procedimentos mdicos no realizados em clnica mdica de propriedade daquele deputado federal pelo Maranho e scios, em prejuzo do Sistema nico de Sade. O posicionamento do referido Ministro do STF toma por base FELDENS, Luciano; STRECK, Lenio Luiz. Crime e Constituio: a legitimidade da funo investigatria do Ministrio Pblico. Rio de Janeiro: Forense, 2003.14

Cf. MAZZILLI, Hugo Nigro. Introduo ao Ministrio Pblico. 6. ed. rev. e atual. So Paulo: Saraiva, 2007. p.71.

22

Conforme possvel depreender da leitura do texto precedente, o trabalho est organizado em trs grandes eixos temticos, a que correspondem os captulos principais, mais a parte conclusiva, inserida em captulo prprio. Cada captulo que compe o desenvolvimento da Tese, haja vista a complexidade e diversidade do seu espectro temtico, vem precedido de uma parte onde se tecem consideraes de natureza terica e metodolgica, de modo que o leitor possa melhor apreciar o carter prismtico do objeto de estudo a fundamentalidade e a efetividade do direito universal sade , considerando o seu processo de constitucionalizao e os obstculos a uma gesto mais eficaz e responsvel do setor que lhe concernente, a sua judicializao, que se tem expandido frente prpria degradao de tal setor (a despeito da justeza dos princpios a regerem ainda o SUS), e, por fim, a possibilidade de uma ao interventiva do Ministrio Pblico, capaz acreditamos de responder problemtica daquela gesto e, por extenso, de preservar um conjunto de conquistas histrico-polticas da sociedade brasileira como um todo e de cada cidado individualmente, que possa contribuir para o aprimoramento da ordem democrtica no Pas. Uma ordem em vias de permanente aperfeioamento, fundada no respeito aos direitos

fundamentais, na qual a sade se insere como uma de suas dimenses constitutivas.

23

2 REFORMA DA SADE NO BRASIL E A CONQUISTA DO DIREITO UNIVERSAL SADE

O objetivo do presente capitulo elucidar o processo de conquista do direito universal sade em nosso pas, articulando um enfoque histrico e uma abordagem jurdico-legal da reforma da sade no Brasil, desde a dcada de 1920 aos anos noventa. Trata-se de um empenho em pr a nu as difceis condies e complexas dmarches produzidas no mbito da sociedade civil e nos setores estatais, a partir das quais veio a se efetivar a positivao do direito universal sade como direito fundamental. Nisso residiu a bandeira do movimento sanitrio, que, afinal vitorioso, consagrou esse direito fundamental no art. 196 da Constituio Federal de 1988. Em virtude de tal diploma e do disposto nesse artigo, instituiu-se o Sistema nico de Sade (SUS), na perspectiva de dar eficcia a esse direito, atravs das polticas pblicas de sade. Pretendemos esclarecer as correlaes entre as lutas travadas, em cada uma das etapas do histrico a seguir visualizado, pela hegemonia do campo ideolgico e a produo jurdico-legal. Na organizao de tal histrico dois aspectos fundamentais sero privilegiados: a afirmao histrico-normativa e a confrontao e/ou debate ideolgico que a expresso direito sade suscitou.

24

Vale

sublinhar

que

a

narrativa

apresentada

se

distancia,

deliberadamente, de uma viso evolutiva, de uma concepo acumulativa e/ou teleolgica tanto da histria quanto da produo doutrinria em direito sade em sua qualidade de direito humano fundamental. Assim sendo, a seqncia proposta no pretende responder, por sua vez, a justificativas vetoriais, ou seja, que avanam de forma linear e progressiva na direo inflexvel de algum estgio superior. Ela no se inscreve, portanto, numa filosofia da histria baseada na falsa crena de uma religio do progresso. Pelo contrrio: o que importa conferir um sentido, que possa nos ajudar a compreender o recurso s garantias processuais concernentes tutela do direito sade; sobretudo estabelecer afinidades eletivas que permitam ordenar a realidade histrica atravessada pelo processo de afirmao do direito sade enquanto direito humano. Convm acrescer a tal ponderao que, medida que pretendamos compreender esse processo agnico, foi possvel afinal inferirmos que a promoo e a proteo da sade constituem um direito eminentemente individual (e no um direito social), derivado do princpio fundamental do respeito dignidade humana; direito que, nesses termos, veio a ser consagrado na alnea 2 do Prembulo da Constituio da Organizao Mundial de Sade (OMS) datado de 22 de julho de 1946, segundo o qual a posse do melhor estado de sade que se capaz de alcanar constitui um dos direitos fundamentais de todo ser humano, quais-

25

quer que sejam sua raa, sua religio, suas opinies polticas, sua condio econmica ou social. A ordenao que se tem em vista levar a identificar momentos aedificandi (ou seja, de continuidade e/ou de parentesco) e, em especial, momentos destruendi (de ruptura e/ou de divrcio) que ocorrem entre diferentes vertentes ou perspectivas ideolgicas que rivalizam entre si, quando assumidas por atores em contextos histricos e culturais diversos. O estudo afasta-se, portanto, de qualquer idia fechada de unidade, na medida em que busca sobretudo identificar diferentes clivagens/disputas ideolgicas que perpassam o contedo normativo dos direitos humanos. Dito de outro modo, ele tem por alvo comprovar como a produo ideolgica concernente ao reconhecimento e defesa do direito sade enquanto integrante dos direitos humanos fundamentais pode estar sujeita a avanos e recuos, a marchas e contramarchas. Isso implica adotar uma viso pontual e contingencial tanto da histria quanto das construes doutrinrias no domnio dos direitos humanos. Talvez seja essa a maneira mais eficaz de compreender como seres humanos enfrentam os diversos desafios ou dilemas da existncia em termos de idias e/ou valores.

26

2.1 OS PRIMRDIOS BRASILEIRO

DO

MOVIMENTO

SANITARISTA

A emergncia de um forte movimento sanitarista na segunda metade da dcada de 1970, em plena conjuntura autoritria, e a subseqente incorporao de muitas dentre suas teses Constituio de 1988 terminaram por ofuscar a importncia de movimentos e propostas dados luz em perodos histricos precedentes. , portanto, indispensvel focalizar a gnese e os impactos do movimento sanitarista da Primeira Repblica, procurando lanar luzes sobre a sua articulao com a conexo sanitria internacional 15 (aprofundada nos anos 1920). Nesse movimento sanitarista, a sade, pela via da poltica, foi elevada ao status de problema de inquestionvel magnitude e, ao mesmo tempo, de soluo nacional. As polticas de sade implementadas desde o final da dcada de 1910 desempenharam um papel digno de nota no aumento da penetrao do Estado na sociedade e no territrio deste Pas. No que concerne a essas e s demais polticas sociais, importa sublinhar que, de acordo com a

15

Entenda-se por tal expresso a rede de agncias preocupadas com higiene e sade pblica, a destacar aquelas desenvolvidas no Brasil sob a bandeira do pan-americanismo. Nesse contexto cabe mencionar, em nosso pas, a atuao vigorosa da Fundao Rockefeller. Consultem-se, a propsito, HOCHMAN, Gilberto. A era do saneamento: as bases da poltica de sade pblica no Brasil. So Paulo: Hucitec/Ampocs, 1998, e LABRA, Maria Eliana. O movimento sanitarista nos anos 20: da conexo sanitria internacional especializao em sade pblica no Brasil. 1985. Dissertao de mestrado (Administrao Pblica). Rio de Janeiro, Fundao Getlio Vargas/Escola Brasileira de Administrao Pblica, 1985. A referida rede era liderada pela Oficina Sanitria Internacional (criada em 1902), cujo nome foi alterado, em 1923, para Oficina Sanitria Pan-Americana. Esta era, por assim dizer, quase integralmente financiada pelos Estados Unidos, de sorte que o poder formal e real da instituio permaneceu em mos de altos funcionrios dessa nao, facilitando [...] o desenho de estratgias que, em conformidade com a Fundao Rockefeller, visavam implementar medidas uniformes no campo sanitrio no continente. Cf. LABRA, ibid., p.20. Havia um empenho no sentido de que os Estados nacionais passassem a assumir aquelas atividades em sade pblica orientadas para o bloqueio da disseminao de doenas contagiosas que pudessem comprometer o progresso da humanidade. O que estava em questo era a necessidade conjuntural de [...] manter os fluxos comerciais e de investimentos do centroos Estados Unidosem direo periferia do sistema nas condies de higidez requeridas pelos interesses econmicos. Cf. LABRA, ibid., p.263.

27

Constituio de 1891, cabia aos Estados a responsabilidade pelas aes de sade e saneamento, bem como pelas de natureza educativa. As medidas de proteo social e, em especial, a assistncia mdica s alcanariam o seu reconhecimento legal como poltica pblica graas aprovao da Lei Eloi Chaves, datada de 1923. Ela respondia a uma relevante questo social: at a sua promulgao inmeras categorias de trabalhadores, a exemplo dos operrios e funcionrios ferrovirios, organizavam associaes de auxlio mtuo para enfrentar problemas de invalidez, doena e morte. Por haver

regulamentado a criao das Caixas de Aposentadorias e Penses, a referida Lei, ou, melhor dizendo, o Decreto Legislativo n. 4.682, de 24 de janeiro de 1923, tem sido destacado como o momento inicial da responsabilizao do Estado pela regulao da concesso de benefcios e servios, em particular os de assistncia mdica. A bem da verdade, tratava-se de organizaes de direito privado, institudas para grupos especficos de servidores pblicos e organizadas conforme princpios de seguro sociala saber, um modelo, cunhado originalmente na Alemanha, em que os benefcios dependiam das contribuies dos segurados. No decorrer da Primeira Repblica, o desenvolvimento de uma poltica social pblica e nacional na problemtica rea da sade correspondeu ao resultado de um extenso processo de negociao entre os entes federativos. Tal momento j foi identificado como a era do28

saneamento

16

. Reconhece-se no perodo de 1910 a 1930 a etapa de

agudizao da conscincia das elites brasileiras em relao aos srios problemas sanitrios do pas, detectados e enfrentados por Oswaldo Cruz desde os incios do sculo passado, bem como a da percepo de que o Estado deveria assumir a responsabilidade pelas questes concernentes sade das populaes (rurais e urbanas) e ao saneamento do territrio. Constata-se ento um incremento do interesse do Estado em doenas (sobretudo as de cunho endmico ou epidmico), e no apenas no que toca a doentes. Desde os ltimos anos da dcada de 1910, as polticas de sade passaram a ser associadas aos problemas da integrao nacional e a uma tomada de conscincia da interdependncia acarretada pelas doenas transmissveis, como a malria, a peste bubnica e a tuberculose. Resultaram da conjugao entre um movimento sanitarista emergente, que se organizou em torno da proposta de polticas de sade e saneamento (viabilizadas em razo direta do crescimento da autoridade do Estado e do papel do governo federal, continuamente enfraquecido pelas oligarquias rurais), e aquilo que j se identificou como a compreenso ampliada da parte das elites polticasdos efeitos negativos do quadro sanitrio

16

HOCHMAN, op.cit., p. 40. Ver tambm o estudo exemplar de LIMA, Nsia Trindade; FONSECA, Cristina M.O.; HOCHMAN, Gilberto. A sade na construo do Estado Nacional no Brasil: Reforma Sanitria em perspectiva histrica. In: LIMA, Nsia Trindade; GERSCHMAN, Silvia; EDLER, Flavio Coelho; SUREZ, Julio Manuel (Org.). Sade e democracia: histria e perspectivas do SUS. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2005. p.27-58.

29

nacional. Na gnese do movimento sanitarista da Primeira Repblica se fez decisiva uma convergncia de interesses expressos por uma comunidade heterognea de cientistas em formao e em projetos intelectuais e polticos de alcance nacionalista e propostas polticas de expanso da autoridade estatal no territrio e de redefinio do pacto federativo. Personalidades do porte de Oswaldo Cruz, Adolpho Lutz, Vital Brasil e Carlos Chagas, entre outras, ganharam vulto no esforo comum por definir rumos objetivos para a sade pblica e na criao de instituies. Duas dentre aquelas mais antigas (1910) e, voltadas prioritariamente pesquisa biomdica e sade pblica do Brasil, a saber, o Instituto Soroterpico Federal (mais tarde, em 1908, transformado em Instituto Oswaldo Cruz e, desde 1970, Fundao Oswaldo Cruz), no Rio de Janeiro, e o Instituto Butantan, em So Paulo, viram decerto a luz por fora da ateno dispensada s epidemias nos centros urbanos, a exemplo da peste bubnica que grassou, em 1899, no porto de Santos. Em tais entidades, uma nova gerao de mdicosformados segundo o paradigma da bacteriologia e bastante seduzidos pelo tipo de pesquisa adotado na Frana e na Alemanhairia exercer crescente e poderosa influncia nas perspectivas de compreenso e combate das doenas transmissveis, bem como nas propostas de aes em sade pblica. 17

17

SANTOS , L.A. de Castro. Power, ideology and public health in Brazil (1889-1930). 1987. PhD Thesis (Sociology). Cambridge, Department of Sociology/Harvard University, 1987. p.80-95.

30

O movimento de Reforma Sanitria ainda incipiente veio a eleger como seu alvo de interesse inicial, dentro dessa orientao de procedncia ainda europia, os principais portos e centros urbanos. Foi somente a partir da dcada de 1910 que alcanou maior impulso o movimento pelo saneamento rural tambm referido como saneamento dos sertes , pensado como passo indispensvel ao avano do processo civilizatrio entre ns, capaz de mobilizar setores das elites intelectuais e polticas do Pas. Por exemplo, a institucionalizao da Liga Pr-Saneamento do Brasil (1918) contou com o apoio expressivo tanto de mdicos ilustres como Juliano Moreira e Belisrio Penna, quanto de militares (a destacar Candido Rondon), homens de letras e lderes polticos de primeira ordem, a comear pelo presidente Venceslau Brs. No quadro particularmente instvel dos anos 1920, bem ilustrado pela insurreio tenentista e pela continuidade do estado de stio a marcar o governo Arthur Bernardes, o movimento sanitarista sofre uma flagrante inflexo. Um conjunto significativo de mdicos, tendo frente Carlos Chagas, veio a manifestar sua plena adeso ao novo modelo norteamericano de interveno do Estado na sade pblica e no prprio corpo social, e o movimento como um todo, encontrou na ideologia do apoliticismo, da neutralidade cientfica e da racionalidade tcnica sustentada pelos porta-vozes da conexo sanitria internacional os meios

31

de legitimar as suas propostas de soluo dos incontveis problemas de sade coletiva identificados no Pas. Tal posicionamento ideolgico ajuda-nos a compreender por que os integrantes do movimento sanitarista brasileiro, na dcada de 1920, asseveravam, de maneira enftica, que as causas sociais das doenas escapariam de sua alada por no constiturem assunto tcnico. Por sua vez, as mesmas idias de neutralidade e eficincia tcnicaprevalentes no discurso sanitarista acabaram por incorporar-se legislao. 18 O alheamento assumido pelos participantes do movimento sanitarista, que foi fortalecido no perodo do Estado Novo, teria produzido um efeito decisivo para o futuro das polticas de sade no Brasil e de uma produo normativa que contemplasse minimamente o direito sade enquanto direito do cidado. Trata-se do bloqueio da penetrao do iderio da medicina social que, depois do advento do Seguro Social na Alemanha e, sobretudo, da consolidao de um modelo de medicina preventiva na Rssia, como conseqncia da Revoluo de 1917, pde disseminar-se nos pases latino-americanos, por fora da atuao de mdicos progressistas empenhados em articular as esferas poltica, econmica e social no mbito da sade. Deixou-se, portanto, de incorporar uma concepo ampliada de interveno no campo da assistncia mdico-sanitria.

18

Entre 1923 e 1926 criou-se o Departamento Nacional de Sade Pblica (DNSP) e foi promulgado o primeiro Cdigo Sanitrio. LABRA, op.cit., p.249-258.

32

Alis, importa frisar que o sanitarismo, entendido como domnio especfico e especializado de conhecimentos e prticas a ser implementado, de cima para baixo, pela mquina do Estado, manifesta, entre ns, por longas dcadas, uma conflituosa relao com a medicina dita clnica. O ensino desta ltima permaneceu distanciado dos problemas de sade coletiva at, pelo menos, a gradativa introduo curricular de disciplinas claramente relacionadas ao novo campo discursivo configurado na medicina preventiva da dcada de 1960. Digna de nota, nessa conjuntura da institucionalizao do sanitarismo, foi a submisso irrestrita aos mtodos procedentes dos Estados Unidos que teria conduzido os nossos sanitaristas a depreciarem a experincia e o conhecimento cientfico-tcnico nacionais (j havia ento inmeros profissionais brasileiros qualificados para fornecer solues corretas maioria das questes contemporneas de sade pblica). Tendo em mente o aprofundamento das divergncias entre os higienistas de linha tradicional (como Belisrio Penna)19

e os sanitaristas

adeptos da moderna escola norte-americana, possvel entender o esforo realizado pelo Estado brasileiro para tomar duas decises de amplo impacto:(a) no intervir no reconhecimento dos direitos trabalhistas do operariado urbano, sob a alegao de que, como o pas era eminentemente rural, devia voltar suas atenes para o19

LIMA; FONSECA; HOCHMAN, op.cit., p.35.

33

campo, cujos trabalhadores ficaram margem de qualquer proteo social; (b) criar o Servio de Profilaxia Rural, que, no entanto, teve vida efmera ao criar-se o Departamento Nacional de Sade Pblica (DNSP), que confinou o saneamento rural aos estados, onde a Fundao Rockefeller pde concentrar esforos no que interessava a seus tcnicosa febre amarela. 20

Um estudo da Reforma Sanitria desenvolvida entre 1923 e 1926 capaz de desvelar a efetiva distncia entre o ideal dos propsitos oficiais e o real alcance da transformao pretendida; pode, em particular, pr a nu a incapacidade de o referido Departamento Nacional de Sade Pblica firmar-se como rgo de abrangncia genuinamente nacional. De fato, os seus poderes e recursos permaneceram centrados na cpula sanitarista, e sua estrutura operacional limitou-se sede, no antigo Distrito Federal, e sua ao ficou praticamente circunscrita cidade do Rio de Janeiro. A Reforma Sanitria contribuiu para fortalecer um modelo de medicina, encampado pelo Estado brasileiro, que se voltava

prioritariamente para o combate das grandes endemias, sobretudo a febre amarela, a malria e, mais adiante, a doena de Chagas; em contrapartida, a ateno s comunidades desassistidas era suprida, especialmente no mbito da assistncia mdico-hospitalar, pelas instituies filantrpicas e beneficentes: as Santas Casas (onde as entidades religiosas preenchiam a funo filantrpica de assistncia sade, mantida at hoje), o clebre Hospital20

dos

Ingleses

sediado

na

Capital

Federal,

as

diversas

LABRA, op.cit.,p.259.

34

Beneficincias (Portuguesa, Espanhola, Italiana, Srio-Libanesa, Judaica), atuantes em grandes centros urbanos como Rio de Janeiro e So Paulo instituies no raro mais bem dotadas e eficientes do que os servios de sade mantidos pelos governos estaduais e municipais. Nesse quadro precrio que ganha visibilidade a atuao dos mdicos das cidades que atendiam em troca de presentes (ou, ainda, de votos!). No plano propriamente poltico, a Reforma Sanitria promovida por Carlos Chagas pde atender a presses que h muito se observavam, sobretudo as provenientes da Academia Nacional de Medicina, que defendia a urgente criao de um Ministrio de Sade Pblica. Uma reivindicao que alcanou um desfecho bem diferente do esperado, do momento em que a eleio de Epitcio Pessoa veio a alterar a correlao de foras e Chagas se converteu em colaborador direto do novo chefe do Governo. Em vez de um ministrio poltico, emerge o Departamento Nacional de Sade Pblica, que toma a feio de um rgo eminentemente tcnico, estruturado de acordo com um regulamento sanitrio moderno e minucioso, em larga medida (mas no integralmente) inspirado nas diretrizes estabelecidas por Oswaldo Cruz, no Cdigo Sanitrio promulgado em So Paulo e em algumas leis estrangeiras.

35

2.2 IMPASSES E DESCAMINHOS DO MOVIMENTO SANITARISTA (1930-1964): SUAS EXPRESSES LEGAIS

A crise da chamada Repblica do Kaphet no dizer sarcstico de Lima Barreto, a qual estava enlaada de maneira especialmente forte do capitalismo internacional ocorrida em 1929, iria cavar largas fendas na hegemonia oligrquica. A revoluo de 1930, o movimento sindical anarquista e comunista que a antecedeu, o tenentismo, o impulso reformista do Governo Provisrio (1930-1934) sob a liderana de Getlio Vargas e, do lado oposto, o iderio de cunho progressista abraado por uma frao dissidente da burguesia de So Paulo, constituram foras que, em sua complexa interao, ensejaram revises fundas no quadro institucional do Pas. Tais modificaes que tiveram lugar, a partir de 1930, vieram a moldar a poltica pblica nacional e a definir um arcabouo jurdico e material que asseguraria e nortearia o sistema de proteo social entre ns at um perodo recente. Elas se produziram em meio a um quadro de instabilidade e acirradas disputas polticas, que definiu sobretudo o perodo de 19341937, a afetar o destino do movimento sanitrio e, de um modo geral, a rea da sade pblica. Situadas dentro dessa conjuntura marcada por um intenso debate poltico e ideolgico eminentemente voltado para o papel do Estado frente36

aos problemas sociais, as mudanas significativas na esfera institucional da sade tiveram incio apenas a partir de 1934, logo em seguida promulgao de nossa nova e aguardada Carta Magna. Foi o momento em que Gustavo Capanema assumiu o Ministrio da Educao e Sade Pblica (MESP), empenhando-se, desde os incios de sua longa gesto, por efetuar amplas reformas nos organismos que integravam essa agncia estatal. legtimo inferir que os primeiros anos do Mesp se caracterizaram, face s dificuldades enfrentadas em se alcanar um design de gesto condizente com o projeto poltico vitorioso de Vargas, pela fragilidade e inconstncia de propostas e projetos. No sem razo o fato de a pasta ministerial ter mudado de mos por quatro vezes, at confirmao de Capanema: Francisco Campos (de 18 de novembro de 1930 a setembro de 1931), Belisrio Penna (setembro de 1931 a dezembro de 1931), novamente Francisco Campos (janeiro de 1932 a setembro de 1932), a que se seguiu Washington Pires (setembro de 1932 a julho de 1934). Convm lembrar que tais intermitncias ocorreram num clima de reconstruo nacional, animado por discusses bastante acaloradas em torno dos grandes contrastes de nossa vida social e poltica, em especial, federalismo/centralismo, agrarismo/industrializao, elite/massas. A

Assemblia Constituinte de 1934 revelou-se o teatro, por excelncia, desses debates dos quais emergiu uma constituio sob diversos aspectos inovadora, se comparada s do Imprio e da Primeira Repblica; a nova37

Carta Magna previu um ttulo especfico para a ordem econmica. Ali incluindo, pela primeira vez, os direitos sociais.21

Implementadas em

conformidade com os dispositivos constitucionais, as aes pblicas de sade, em sua dimenso propriamente institucional, procuraram seguir as distines estabelecidas entre o Ministrio do Trabalho, Indstria e Comrcio (MTIC) e o Ministrio da Educao e Sade Pblica (MESP). Tal separao no se constituiu meramente numa diviso e especificao de funes como decorrncia da rea de atuao de cada rgo, num contexto de reestruturao e consolidao de polticas sociais; ela correspondeu, por assim dizer, a um formato diferenciado de reconhecimento de direitos sociais. 22 Foi fixado um arcabouo jurdico e material em relao ao que se pode chamar de assistncia mdica individual previdenciria, prestada na rbita do MTIC, voltada exclusivamente aos sujeitos inseridos no mercado formal de trabalho e amparada por princpios corporativos que definiam aqueles reconhecidos como cidados. Por sua vez, a sade pblica propriamente dita ficou no Mesp, ou seja, atrelada educao em outras palavras, neste se enquadrou tudo o que se referisse sade da populao brasileira e que no estava na rea de abrangncia da medicina previdenciria. Era, portanto, da competncia desse ministrio a prestao21

Uma judiciosa apreciao histrica e jurdica da Constituio de 1934 encontra-se em ZIMMERMANN, Augusto. Teoria geral do federalismo democrtico. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999. p.316-318.22

LIMA; FONSECA; HOCHMAN, op.cit., p. 41.

38

de servios para todos aqueles tidos como pr-cidados os pobres, os desempregados, os trabalhadores rurais (cabendo aqui lembrar que no campo estavam 70% da populao), os que exerciam atividades informais, em sntese, os indivduos que no estavam habilitados a usufruir os servios oferecidos pelas Caixas de Aposentadorias e Penses, criadas desde os anos vinte a contar da Lei Eli Chaves bem como pelos institutos previdencirios. Os Institutos de Aposentadorias e Penses (IAP) surgiram no contexto da reforma trabalhista do governo Vargas (1930-1945), a exemplo daqueles destinados aos industririos (datado de 1936), aos trabalhadores da rea de transporte e carga (Iaptec, vindo luz em 1938), ou aos servidores do Estado (Iaserj); saliente-se que cada um desses IAPs organiza sua rede prpria de servios de assistncia mdica hospitalar. A identificao desses mbitos de atuao institucional no que tange ao reconhecimento de direitos sociais teve uma dupla implicao a associao entre assistncia mdica previdenciria e trabalhadores urbanos, de um lado, e a compreenso enftica das aes de sade pblica enquanto polticas e modelos de servios direcionados, de forma preponderante, para a populao rural. Assim sendo, foi no transcurso do primeiro governo do Presidente Vargas que teve incio a distino institucional entre duas reas

39

de gesto em polticas pblicas de sade, que iria afetar de maneira decisiva as aes de sade em nosso pas. 23 Nesse momento histrico-poltico, a poltica de sade pblica veio a ser definida a partir de critrios que privilegiaram uma centralizao normativa acoplada a uma descentralizao executiva, instituindo mecanismos capazes de conferir enorme peso e visibilidade presena federal nos Estados; tratava-se de uma soluo bastante feliz para se marcar um contraponto aos interesses privados regionais. Adotou-se, portanto, um desenho institucional condizente com o projeto poltico-ideolgico do governo voltado para a efetiva construo do Estado nacional brasileiro e foram criados mecanismos burocrticos que tornassem vivel a desejada integrao das trs esferas administrativas (federal, estadual, municipal). Durante a gesto Capanema foram sendo pouco a pouco (mas de modo firme) criados novos rgos e reformulados aqueles que se encontravam em funcionamento; fortaleceu-se sobretudo graas colaborao do mdico sanitarista Joo de Barros Barreto, designado diretor do Departamento Nacional de Sade (DNS), importante rgo do Mesp uma estrutura centralizada e hierrquica, com o claro propsito de fixar mecanismos para normalizar e controlar a execuo das atividades de sade em todo o Brasil.23

24

Acerca dessa questo ver o captulo As heranas da sade: da poltica da desigualdade proposta da equidade inserido no trabalho conjunto de COHN, Amlia; NUNES, Edison; JACOBI, Pedro R.; LARSCH, Ursula S. A sade como direito e como servio. 3. ed. So Paulo: Cortez, 2002 (sobretudo, p. 15-17). 24 Coube tambm ao Ministro Gustavo Capanema sancionar as Conferncias Nacionais de Sade, as quais ficaram institudas pela Lei n378, de 13 de janeiro de 1937, destinadas a facilitar ao Governo Federal o conhecimento das atividades concernentes sade em todo o pas e orient-lo na execuo dos servios locais de sade, bem como na

40

Barros Barreto pde identificar problemas como a falta de orientao dos dirigentes estaduais, a carncia de recursos financeiros e a absoluta escassez de tcnicos especializados na rea da sade pblica; estes requeriam uma ao mais efetiva do Governo federal nos Estados e assegurar a sua soluo significava, no modo de ver desse homem de confiana de Capanema, vencer a dificuldade de centralizar a administrao sanitria que decorria da enorme extenso territorial de nosso pas. Seria, assim, mais prudente coordenar as aes atravs de normas gerais bem definidas, a exemplo do que j vinha ocorrendo nos Estados Unidos e era preconizado pela Oficina Sanitria Internacional, desde 1948 convertida em OPAS Organizao Pan-Americana de Sade. 25.

Emergiu ento uma notvel produo normativa, compreendendo leis, regulamentos e cdigos sanitrios26

, cuja finalidade bsica era

padronizar as atividades dos diferentes servios de sade nos Estados, de forma pormenorizada, procurando-se atender ao intenso processo de burocratizao do Estado.

comisso de auxlio e da subveno federais. Em seu pargrafo nico constava que elas sero convocadas pelo Presidente da Repblica a cada dois anos e que delas tomaro parte autoridades administrativas que representem o Ministrio da Sade e os governos dos Estados, Distrito Federal e territrio do Acre. Vale salientar que a primeira Conferncia Nacional de Sade foi convocada quatro anos depois de a Lei ter sido sancionada, a saber, em novembro de 1941, pelo prprio Ministro Capanema. O seu tema central foi a reforma estrutural para o combate a doenas especficas (tuberculose e hansenase). Ver LIMA; FONSECA; HOCHMAN, op.cit., p. 43-45. 25 HOCHMAN, op. cit., p.90-91.26

LIMA; FONSECA; HOCHMAN, op.cit., p.45.

41

Barros Barreto criou um cdigo de normas para a organizao estadual de sade pblica em todo o pas, divulgadas em 1937 no peridico Arquivos de Higiene. Dentre as aes a previstas destacavam-se a reforma nos sistemas estaduais de sade visando implementao de um sistema distrital de centros de sade, a oferta de cursos de especializao para tcnicos do setor iniciativa que se conjugava urgente criao das respectivas carreiras profissionais e a reformulao do modelo de financiamento s atividades de sade. 27 Em 1941, procedeu-se, sob a liderana de Barros Barreto, reforma administrativa no Mesp, que redundou na verticalizao das aes e campanhas de sade (o campanhismo to questionado na dcada seguinte), na centralizao e na ampliao da base territorial da ao do Governo federal. O organograma do Departamento Nacional de Sade (DNS) espelhava a segmentao das aes em servios nacionais direcionados a doenas especficas, tais como febre amarela, malria (servio a que estavam subordinadas aes contra o mal de Chagas e a esquistossomose), cncer, tuberculose, lepra e doenas mentais. Tratava-se de um formato organizacional, apoiado em aes e campanhas verticalizadas, que subsistiu sem maiores modificaes at 1956, quando, em conseqncia da institucionalizao do Ministrio da Sade (dada luz em 1953, de modo a27

LIMA; FONSECA; HOCHMAN, op.cit., p.43-44.

42

atender a antiga aspirao dos mdicos da sade pblica), ocorreu integrao de um nmero significativo dos servios supramencionados no Departamento Nacional de Endemias Rurais (DNERu). Ao trmino do Estado Novo j estavam bem definidas as condies institucionais, polticas e tcnicas para a consagrao de um modelo fortemente centralizado de gesto pblica em sade e consolidaram-se as bases de um sistema nacional de sade pblica, que no apenas estava voltado a extensas faixas da populao do pas, como tambm adotava um formato particular para garantir certos direitos sade. Isso pode ser ilustrado pelo Decreto-Lei n.7.380, de 13 de maro de 1945, que estendia aos aposentados e pensionistas das instituies de Previdncia Social os benefcios da assistncia mdica, hospitalar e farmacutica, e no qual se autorizava a elevao de 0,5% do salrio dos segurados para se garantir a cobertura de tais despesas assistenciais. No perodo histrico-poltico subseqente queda do Presidente Vargas, que se estende de 1945 s vsperas do golpe militar de 1964, aprofunda-se, em nvel dos debates sobre a assistncia mdica e o campo da sade pblica, a compreenso das complexas conexes entre esse domnio de intervencionismo social, o iderio democrtico e o desenvolvimento.28

28

Podem ser apontados como os marcos institucionais

O apogeu do modelo desenvolvimentista, na segunda metade da dcada de 50, ir assinalar o comeo de um processo acelerado de aprofundamento das dicotomias identificveis nesse interregno democrtico entre ateno mdica curativa e medidas preventivas de carter coletivo, acompanhado da dicotomia entre servios pblicos e privados de sade. Cf. COHN; NUNES; JACOBI; KARSCH, op.cit., p.16.

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desse perodo a criao do Ministrio da Sade (1953), a reorganizao dos servios nacionais de sade no Departamento Nacional de Endemias Rurais (DNERu), ocorrida em 1956, a campanha nacional contra a lepra, as clebres campanhas de controle e erradicao de doenas a exemplo da malria , que se desdobraram de 1958 a 1964, e a 3 Conferncia Nacional de Sade (1963). So acontecimentos que vieram a fortalecer alguns pontos relevantes para se apreciar criticamente o nvel de avanos alcanado no sentido de uma reforma da sade em nosso pas. Em primeiro lugar, a permanncia da disjuno entre sade pblica e assistncia mdica com nfase da primeira nas populaes rurais; em segundo lugar, o foco das aes sobre doenas especficas; e, por fim, o deslocamento do processo de discusso e deciso para arenas fora da burocracia pblica, tais como o Congresso Nacional e a politizao da sade nos congressos de higiene e nas conferncias nacionais. 29 A implantao do Ministrio da Sade, ocorrida ainda no segundo Governo Vargas, mostra algumas dimenses constitutivas da sade pblica no perodo democrtico. De fato, a separao entre educao e sade no veio a ensejar modificaes expressivas nas estruturas institucionais mais fundamentalmente no papel central do Departamento Nacional de Sade; tampouco significou mudana de nfase nas populaes rurais ou

29

LIMA; FONSECA; HOCHMAN, op.cit.,p.50.

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incorporao de novos servios, conquanto se fizesse invariavelmente presente o debate sobre assistncia mdica e social. Registrou-se uma notvel inovao, que residiu no deslocamento das discusses e do prprio processo decisrio para o Legislativo e para a esfera pblica. 30 A burocratizao desse Ministrio e as organizaes da rea da medicina a exemplo da poderosa Sociedade Brasileira de Higiene foram foradas a interagir de modo vigoroso com a estrutura polticopartidria em ambiente de competio democrtica; alis, a inovao verificada em tal processo correspondeu incorporao irreversvel da dimenso poltico-partidria definio de polticas para o setor. 31 No foi possvel atender as principais reivindicaes daquelas entidades mdicas, sobretudo a tradicional proposta de que o titular da pasta ministerial fosse um mdico da sade pblica, impermevel aos interesses polticos. As endemias rurais constituram alvo relevante de ateno por parte das polticas de cunho desenvolvimentista. O seu enfrentamento alcanou um novo impulso tanto por fora das diretrizes ento firmadas, em nvel internacional, para o combate a determinadas doenas transmissveis, como em razo de acontecimentos que se produziram em nvel nacional, vale dizer, mudanas organizacionais na sade pblica e a intensificao do30

HAMILTON, W.; FONSECA, C.O. Polticas, atores e interesses no processo de mudana institucional: a criao do Ministrio da Sade em 1953. Histria, Cincias, Sade Manguinhos,Rio de Janeiro, n. 10, v.3, p. 791-826, 2003.31

Ibid., p. 819-826.

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debate sobre sade e desenvolvimento. Assim sendo, em 1955, a Organizao Mundial de Sade, em sua VIII Assemblia Mundial, que teve lugar no Mxico, lanou uma veemente recomendao por um programa global de erradicao da malria e responsabilizou-se por assegurar o necessrio apoio financeiro e tcnico atravs de acordos estabelecidos com os governos nacionais dos pases fustigados por essa endemia, da resultando uma campanha sem precedentes na histria da atuao das organizaes internacionais em termos de pases envolvidos e recursos disponibilizados. Tratava-se de uma campanha que continuava a afirmar o modelo verticalizado e centralizador, que atentava de maneira enftica para o vetor transmissor da doena, e dava acolhida compreenso da malria como obstculo ao desenvolvimento. Atravs da Lei n.2.743, de 6 de maro de 1956, foi criado o DNERu, que muito contribuiu para a reforma dos servios nacionais de sade. Confiou-se, inicialmente, a sua direo a Mario Pinotti, que durante muito tempo presidiu o Servio Nacional de Malria e iria ser ministro da Sade (1958-1960) de Juscelino Kubitschek. O DNERu pde observar as estruturas e atribuies de alguns servios nacionais implantados em 1941 e tomou a si a misso de organizar e executar o combate s principais endemias de nosso pas, entre as quais possvel considerar malria, doena de chagas, leishmaniose, febre amarela, esquistossomose, brucelose, ancilostomose, bcio endmico e tracoma.46

Compunha-se tal departamento de rgos como a sua diretoria geral, a Diviso de Profilaxia, a Diviso de Cooperao e Divulgao, o Instituto Nacional de Endemias Rurais (Ineru), o Servio de Produtos Profilticos, que iria incumbir-se, entre outras atribuies, da produo de inseticidas para as campanhas, o Servio de Administrao, alm de 25 circunscries, que correspondiam ao Distrito Federal e a cada um dos Estados e territrios, com sede nas respectivas capitais. O referido Ineru, que era integrado por ncleos de pesquisa plurirregionais (como o Centro de Pesquisa de Belo Horizonte), encarregava-se do desenvolvimento de estudos acerca das endemias que visavam apoiar as aes do DNERu. Um grupo de trabalho vinculado a esse departamento assumiu a coordenao da Campanha de Erradicao da Malria, que teve por base a adeso do Brasil, manifestada em 1958, Campanha Global de Erradicao da Malria, promovida pela Organizao Mundial de Sade; a CEM desenvolveu-se, com diversas modificaes, firmando-se como a mais ambiciosa ao da sade pblica no perodo. A reorganizao dos servios nacionais de sade at ento especializados na definio e implementao de medidas isoladas para cada doena , que redundou em sua integrao num rgo nico, ou seja, o DNERu, sustentava como ponto de vista prevalente a defesa do foco central nas chamadas doenas das coletividades, principalmente nas endemias rurais entendidas como obstculos ao desenvolvimento num pas47

rural. Embora o mencionado departamento do MES conseguisse integrar aes antes dispersas em diferentes rgos que moviam combates isolados a doenas especficas, o modelo adotado permanecia vertical, direcionado preponderantemente para enfermidades rurais, sob a coordenao do Governo Federal. Se, de um lado, o Ministrio da Sade permaneceu uma burocracia tradicional com reduzidssimo peso no Oramento Nacional e voltada tosomente para os assuntos habituais, por outro lado, os Institutos de Aposentadorias e Penses no passaram por grandes transformaes. No entanto, inegvel que as presses pela racionalizao organizacional e pela extenso dos benefcios aos estratos excludos trabalhadores rurais, autnomos e domsticos se fizessem sentir de maneira aguda. No perodo em que se estende dos comeos da dcada de 1950 a 1964, ano que marca o fim do interregno de nossa peculiar democracia, so as aes e campanhas de combate s endemias rurais que ganham maior visibilidade. Elas terminaram por mobilizar recursos humanos e financeiros, sempre vinculados aos projetos e s ideologias de desenvolvimento. 32 Contudo, desde meados da dcada de 1950, sobretudo durante a gesto de Juscelino Kubitschek, a dinmica poltica da sociedade brasileira32

Recuperao da fora de trabalho no campo, modernizao rural, ocupao territorial e incorporao de espaos saneados lgica da produo capitalista corresponderam associao entre sade e desenvolvimento, a primeira ajudando a promover o segundo. Cf. LIMA; FONSECA; HOCHMAN, op. cit., p. 53-54.

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continuamente afetada por aparelhos estatais colonizados por verdadeiros anis burocrticos a ligarem interesses pblicos e privados comeava a permitir deslocamentos na compreenso de tais associaes entre sade e desenvolvimento e proposies de mudanas nas polticas da sade, avanadas com maior ou menor timidez pelos

desenvolvimentistas. Digna de registro a posio do Ministro da Sade do governo Caf Filho, Aramis Athayde, o qual, em discursos de 1955, sustentava ser a sade uma questo de superestrutura, ou seja, no uma causa do desenvolvimento econmico e social, mas antes uma conseqncia dele. 33 Sob tal ponto de vista, a sade dependeria da estrutura de cada sociedade particular. Naqueles discursos, que no deixavam de encaminhar crticas centralizao herdada da gesto de Barros Barreto no Departamento Nacional de Sade, eram definidas a ampliao do papel dos municpios brasileiros e a necessidade de melhor aparelhamento dos servios sanitrios. 3433

Posio, a bem da verdade, j defendida e fundamentada com a necessria radicalidade, desde os fins da dcada de 1940, por Mario Magalhes da Silveira, e por ele prprio consolidada em trabalhos como Desenvolvimento econmico e sade (dezembro de 1962) e Municipalizao dos servios de sade (1963) texto no qual se expe o seguinte argumento: [...] a sade de uma populao uma conseqncia do desenvolvimento da economia nacional e da maior quantidade de bens e servios que sejam postos disposio da populao e da possibilidade de que esta tenha de us-los, inclusive, claro, os servios mdico-sanitrios. [...] O sentido efetivo de instalao de uma rede bsica de servios de sade pblica a cargo dos municpios, com o auxilio tcnico e financeiro da Unio e dos Estados, a defesa da vida do homem no Brasil. Cf. SILVEIRA, Mario Magalhes da. Poltica nacional de sade pblica: a trindade desvelada: economia sade populao. Org. por Rebeca de Souza e Silva e Maria Graciela Gonzlez de Morell. Rio de Janeiro: Revan, 2005. p. 146. O grande sanitarista brasileiro revela uma convergncia de pensamento com o prisma de abordagem adotado por Giovanni Berlinguer, que muito influiu nos rumos tomados pelos movimentos sanitaristas latino-americanos nas dcadas de 1970 e 1980. Ver sua obra A sade nas fbricas. Traduo de Hanna Augusta Rothschild com a colaborao de Jos Rubem de Alcntara Bonfim. Apresentao de Marcio dos Santos Melo. So Paulo: CEBES/HUCITEC, 1983. (Sade em Debate)34

ATHAYDE, Aramis. Conferncias pronunciadas em 1955 pelo Ministro Aramis Athayde. Rio de Janeiro: Servio de Documentao do Ministrio da Sade, 1957.

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O sanitarismo desenvolvimentista, objeto de anlises exemplares,

35

apresentava uma notvel heterogeneidade interna. Evidencia-se um conflito que foi tornando-se mais complexo entre os que manifestavam a crena de que a doena constitua um obstculo ao desenvolvimento (e propugnavam por seu controle mais eficaz) e a sade era um pr-requisito essencial para os avanos sociais e econmicos no mundo em desenvolvimento, e os ditos desenvolvimentistas, que reconheciam no ser suficiente o combate s doenas para a superao da pobreza. Uma disputa entre diferentes projetos poltico-sanitrios faz-se cada vez mais forte nos fins do interregno democrtico com a radicalizao das lutas por reformas sociais. Tal processo pode ser ilustrado pelos debates produzidos por ocasio da 3 Conferncia Nacional de Sade, promovida em dezembro de 1963. Ela foi pautada pelo Plano Trienal do governo Joo Goulart e pelo XV Congresso Brasileiro de Higiene, datado de 1962, precisamente quando os sanitaristas desenvolvimentistas obtiveram o controle da Sociedade Brasileira de Higiene 36. O discurso proferido pelo Presidente Goulart na sesso inaugural da 3 CNS acena para algumas desejveis mudanas, em nvel da descentralizao das aes de sade e da articulao desta ltima35

LABRA, Maria Eliana. O sanitarismo desenvolvimentista. In: TEIXEIRA et al. (Org.). Antecedentes da Reforma Sanitria (1955-1964): textos de apoio. Rio de Janeiro: PEC/Ensp, 1988. p. 0-0. Ver tambm ESCOREL, Sarah. Sade pblica: utopia de Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 2000. p.0 -0.36

LIMA; FONSECA; HOCHMAN, op.cit., p. 54. Consulte-se, a propsito, o trabalho de LABRA, op.cit., p.61.

50

com as urgentes reformas sociais mudanas cuja direo o golpe militar de 1964 iria alterar:

A poltica que o Ministrio da Sade deseja implantar na orientao das atividades mdico-sanitrias do Pas se enquadra precisamente dentro da filosofia de que a sade da populao brasileira ser uma conseqncia do processo de desenvolvimento econmico nacional, mas que para ajudar nesse processo o Ministrio da Sade deve dar uma grande contribuio, incorporando os Municpios do pas em uma rede bsica de servios mdico-sanitrios, que forneam a todos os brasileiros um mnimo indispensvel defesa de sua vida [...].37

Anunciava-se, pois, a inteno de ultrapassar o modelo de sistema de sade por ns adotado, o seguro-doena das caixas de penses separado da sade pblica, que se mostrava especialmente deficiente e discriminatrio, sobretudo se comparado ao sistema estatal sovitico integral e universal acolhido na Amrica Latina somente por Cuba, depois da Revoluo de 1959 ou ao Servio Nacional de Sade da Gr-Bretanha, criado em 1948, dando guarida a uma nova compreenso de seguridade social, a abranger o binmio segurana pecuniria e biolgica (apesar de se entenderem essas funes como institucionalmente separadas). De maneira coerente, os pontos fortes que foram privilegiados nessa Conferncia eram a rediscusso da distribuio de responsabilidades entre os entes federativos, uma avaliao rigorosa da realidade sanitria do Brasil e um desenho de proposta de municipalizao dos servios de sade, destacada37

FUNDAO MUNICIPAL DE SADE. 3 Conferncia Nacional de Sade. Niteri: Fundao Municipal de Sade, 1991. p.23.

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tanto nas falas do Presidente como nos discursos do seu Ministro da Sade, Wilson Fadul. Naquele discurso presidencial anteriormente transcrito possvel vislumbrar uma compreenso da sade como um direito individual, j sintonizado com as doutrinas mais modernas do ps-guerra em matria de direitos fundamentais, e no apenas como um instrumento do desenvolvimento econmico na sua funo econmica de reproduo da mo-de-obra , nem tampouco como um elemento relevante para mitigar o quadro de excluso social que se agravar.

2.3 A AFIRMAO HISTRICA DE UM NOVO MOVIMENTO SANITARISTA NO BRASIL (1964-1986) 2.3.1 Entraves polticos e advento de um movimento contra-hegemnico

A ampliao e reformulao de polticas que identificassem a sade como dimenso da democracia teriam de aguardar muito tempo, haja vista os descompassos de nossa histria poltica e social, e mais tempo ainda a52

sua articulao com a criao efetiva, constitucionalmente bem definida, de um Sistema nico de Sade. Contudo, aquela nova perspectiva de compreenso de sade j ganha corpo nas posies defendidas por Goulart no final de seu mandato, conforme possvel depreender da anlise precedente. O presidente brasileiro procurou, a partir da proposta das Reformas de Base, implementar mudanas tributrias, educacionais e agrrias (que poderiam favorecer a consecuo das referidas polticas de sade), com o fito de atenuar a desigualdade econmica e social no Brasil. Para alcanar tal objetivo maior tomou medidas que contrariaram de maneira profunda os interesses de grupos da elite, tais como a concesso de subsdios diretos indstria nacional e restries movimentao do capital estrangeiro. Esses setores empenharam-se ento em formatar uma campanha de desestabilizao do governo federal, recorrendo enfaticamente a um discurso anticomunista. Entre os militares, foi decisiva para a consumao de tal plano a participao de oficiais ligados Escola Superior de Guerra (ESG); vrios generais anticomunistas a ela associados passaram a unir-se a rancorosos antigetulistas, insuflados decerto pela Unio Democrtica Nacional (UDN) e pela CIA, condenando tudo o que de desenvolvimentista e popular o Estado brasileiro vinha construindo desde outubro de 1930. Assim sendo, duas entidades sobressaram entre os civis nesse momento preparatrio do golpe de Estado, o qual jamais deve ser53

interpretado como um fruto do esprito de 1930. Trata-se do Instituto Brasileiro de Ao Democrtica (IBAD) e do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES). O IBAD financiava a candidatura de polticos contrrios a Goulart e atuava diretamente no Congresso Nacional, atravs da Ao Democrtica Parlamentar (ADEP). Por seu turno, o IPES tinha como funo cooptar e mobilizar proprietrios de rgos de imprensa, jornalistas, publicitrios, editores, cineastas, escritores e demais segmentos da intelectualidade insatisfeitos com o governo em vigor, assim como divulgar as idias do instituto para a populao, publicando folhetos e livros (no raro financiando as suas edies) ou ocupando espao nos meios de comunicao. 38 O desfecho de toda essa campanha ocorreu entre os dias 31 de maro e 1 de abril de 1964, com um golpe que derrubou o governo civil e inaugurou um regime que se prolongaria por 21 anos. possvel afirmar que em 1964 imitou-se, em parte, e potenciou-se o modelo centralizador de 1937 inclusive no tocante gesto da sade pblica; todavia isso agora ocorria em funo de objetivos burocrtico-capitalistas bem precisos e simetricamente opostos s vertentes do trabalhismo e do nacionalismo anterior. As principais palavras de ordem, que funcionavam como base de legitimao do prprio golpe, eram restaurar a ordem social e poltica e38

A fonte bsica para o conhecimento histrico-poltico mais matizado de todo esse quadro histrico que nos elucida o preparo do golpe militar e sua irrupo final o estudo de Ren Armand Dreifuss: 1964 a conquista do Estado: ao poltica, poder e golpe de classe. Traduo do Laboratrio de Traduo da Faculdade de Letras da UFMG. 9.ed. Petrpolis: Vozes, 2006.

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recolocar a economia nos eixos. A restaurao da ordem produziu-se pela represso e pela supresso dos canais de comunicao entre o Estado e a sociedade; por sua vez, o projeto de recolocar a economia nos eixos significou a progressiva excluso econmica de expressivas parcelas da populao e a despolitizao de temas, a exemplo da sade pblica e da assistncia mdica, que passaram a ser abordadas sob o prisma tecnicista. Em 1964, em nome do movimento militar vitorioso, o marechal Castelo Branco assumiu a presidncia da Repblica; j em 1965 consumouse a extino de todos os partidos polticos (Ato Institucional n. 2) e pde instituir-se o bipartidarismo, de modo a se mitigar ao mximo o confronto entre a Arena e o MDB. Foi nesse quadro que se implantou um Sistema Nacional de Sade definido pela preponderncia financeira das instituies previdencirias, bem como pela hegemonia de uma burocracia tcnica que operava no sentido da crescente mercantilizaco da sade. A excessiva centralizao do poder decisrio e a decorrente supresso do debate acerca de alternativas polticas no mbito da sociedade exerceram um papel determinante na implantao, por parte do governo militar desde esse primeiro momento , de reformas institucionais capazes de modificar, de maneira expressiva, a sade pblica e a medicina previdenciria39

39

. Graas

ESCOREL, Sarah. Reviravolta na sade: origem e articulao do movimento sanitrio. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1998. p. 30-36.

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unificao dos j referidos Institutos de Aposentadoria e Penses (IAPs) no Instituto Nacional de Previdncia Social (INPS), dada luz em 1966, concentraram-se todas as contribuies previdencirias e o Estado passou a ser o maior empregador de servios de sade. Com efeito, o rgo recmcriado veio a gerir as aposentadorias, as penses e a assistncia mdica de todos os trabalhadores formais, conquanto exclusse dos benefcios os trabalhadores rurais e um sem-nmero de trabalhadores urbanos informais. Tal conjuntura pouco se alterou at os fins da dcada de 1960. No mesmo ano em que promulgada a nova Constituio Federal 40, eleito pelo Congresso Nacional e toma posse o general Costa e Silva. Ocorre um endurecimento do regime e, na seqncia do Ato Institucional n.5, so cassados mandatos de parlamentares e realizam-se eleies indiretas para os cargos do Executivo. Em virtude do agravamento de doena que acomete aquele presidente, uma junta militar, em 1969, assume o poder, obstando a posse do vice-presidente civil, Pedro Aleixo, e delibera pela nomeao do general Emlio Garrastazu Mdici. A sua gesto caracterizouse por uma feroz represso poltica, que corre paralela ao propalado milagre econmico brasileiro; at 1974, o autoritarismo contribuiu, de modo marcante, para o controle da inflao e para a elevao do

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Essa Carta e a de 1969 vieram a desfechar um duro golpe ao federalismo, convertendo o Estado brasileiro em uma realidade muito mais unitria do que verdadeiramente federativa, no dizer de Zimmermann. Um sem-nmero de competncias que pertenciam anteriormente aos Estados e Municpios (inclusive as relativas gesto dos servios pblicos de sade) foram trazidas, nesse momento, ao mbito federal; em suma, houve uma ampla concentrao de poderes na Unio, que tem, at atualidade, constitudo um bice completa implantao da democracia no Brasil. Cf. ZIMMERMANN, Augusto. Teoria geral do federalismo democrtico. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999. p.325.

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crescimento (a alcanar taxa mdia de 10,9% ao ano), cujos benefcios efetivos eram distribudos de uma forma profundamente desigual. descabida a tese de que os militares no dispunham de um projeto para a sade pblica no Brasil. A questo que esta foi, especialmente no perodo anterior ao governo Geisel, relegada a segundo plano e se converteu em uma mquina ineficiente e conservadora, limitada promoo de campanhas de eficcia bastante reduzida. 41 Vale, ainda, evocar a circunstncia de que os servios mdicos, prestados pelas empresas privadas aos previdencirios, eram pagos por Unidade de Servio (US) e essa modalidade de pagamento passou a ser uma fonte incontrolvel de corrupo, ou o fato de o Instituto Nacional de Previdncia Social (INPS) haver financiado, a fundo perdido, as empresas privadas que quisessem construir os seus hospitais. Ao cabo da gesto do general Mdici (1970-1974), era possvel constatar os primeiros sinais do desgaste do modelo poltico adotado e os efeitos sociais mais deplorveis da concentrao de riqueza. A contnua represso poltica revelava-se insuficiente para conter as conseqncias impopulares do modelo de desenvolvimento econmico. Nesse mesmo41

A carncia de recursos que no chegavam a 2% do PIB colaborava com o quadro de penria e decadncia, com graves conseqncias para a sade da populao. Os habitantes das regies metropolitanas, submetidos a uma poltica concentradora de renda, eram vtimas das pssimas condies de vida que resultavam em altas taxas de mortalidade. Este quadro seria ainda agravado com a represso poltica que atingiu tambm o campo da sade, com cassaes de direitos polticos, exlio, intimidaes, inquritos policial-militares, aposentadoria compulsria de pesquisadores, falta de financiamento e fechamento de centros de pesquisas. Cf. ESCOREL, Sarah; NASCIMENTO, Dilene Raimundo do; EDLER, Flavio Coelho. As origens da Reforma Sanitria e do SUS. In: LIMA, Nsia Trindade; GERSCHMAN, Silvia; EDLER, Flavio Coelho; SUREZ, Julio Manuel (Org.). Sade e democracia: histria e perspectivas do SUS. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2005. p.61.

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contexto, aprofundam-se as crises produzidas em nvel internacional, a afetarem a situao de um pas inteiramente subordinado ao mercado mundial: a alta exorbitante dos preos de certas matrias-primas indispensveis, como o caso do petrleo, ocorre simultaneamente desvalorizao dos produtos exportados pelo pas entre os quais o caf, o algodo e o acar , o que veio a prejudicar a nossa balana comercial. Nesse mesmo quadro as condies de vida da populao brasileira pioram sensivelmente, sobretudo com a perda do poder aquisitivo do salrio mnimo, aliada a um processo de intensa migrao do campo rumo cidade. Assim sendo, no faltaram motivos para as respostas ao governo militar que se produziram, em nvel poltico, nas eleies de novembro de 1974: a classe mdia urbana e extensos setores da populao mais empobrecida retiraram ento o seu apoio ao regime. Desde os incios do governo do general Ernesto Geisel, pode-se verificar uma progressiva recomposio dos movimentos sociais. Fazem-se cada vez mais constantes as denncias acerca da situao catica da sade pblica e dos servios previdencirios de ateno mdica. Paralelamente crescem as demandas por uma soluo imediata para os problemas gerados pelo modelo de sade prevalente. Em tal conjuntura, sindicatos das diferentes categorias