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REVISTA DO TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE MINAS GERAIS janeiro | fevereiro | março 2011 | v. 78 — n. 1 — ano XXIX 61 José Carlos Evangelista de Araújo 1 Adriana Strasburg 2 Resumo: Este ensaio procura compreender o processo licitatório no âmbito de um Estado Democrático de Direito, em especial aspectos do que se define por competência discricionária e seu controle. Busca analisar o regime jurídico estabelecido pela Constituição, bem como pelo legislador ordinário, no art. 87 da Lei n. 8.666/93, apontando problemas daí decorrentes. Propõe, para equacionamento dos problemas, uma interpretação do referido dispositivo, pelo Supremo Tribunal Federal, conforme a CF/88, concomitantemente à aplicação, pela Administração Pública, da teoria da redução da discricionariedade a zero, para fortalecimento desse Estado Democrático de Direito. Palavras-chave: Competência discricionária. Lei n. 8.666/93. Interpretação conforme a Constituição. Administração Pública. Teoria da redução da discricionariedade a zero. Abstract: This essay intends to understand the bidding process under a Rechtsstaat concept, specially the aspects of discretionary power and its control. It aims to analyze the legal system established by the Federal Constitution of 1988, as well as by the ordinary legislator, in the article 87 of the Law n. 8.666/93, pointing at problems originated there. It proposes, in order to solve this issue, an interpretation of the device mentioned, by the Supreme Federal Court, in accordance with the Constitution, simultaneously with the enforcement, by the public administration, of the zero discretion theory, to strengthen this democratic rule of law. 1 Advogado. Graduado em Direito e mestre em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia. Mestre em Direito Constitucional pela PUC/SP. Doutorando em Direito Administrativo (PUC/SP). Professor de Direito Administrativo e Internacional nas Faculdades de Campinas (Facamp), além de Direito Constitucional em cursos preparatórios para concursos da área jurídica. 2 Advogada. Graduada em Direito pela Facamp e em Ciência Política pela Unicamp. Mestre em Economia do Trabalho, pela Unicamp e Doutora em Economia aplicada a Políticas Públicas de Trabalho, também pela Unicamp (Cesit). Discricionariedade administrativa e processo sancionatório: inconsistências normativas e possibilidades interpretativas em torno da Lei n. 8.666/93

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José Carlos Evangelista de Araújo1

Adriana Strasburg2

Resumo: Este ensaio procura compreender o processo licitatório no âmbito de um Estado Democrático de Direito, em especial aspectos do que se define por competência discricionária e seu controle. Busca analisar o regime jurídico estabelecido pela Constituição, bem como pelo legislador ordinário, no art. 87 da Lei n. 8.666/93, apontando problemas daí decorrentes. Propõe, para equacionamento dos problemas, uma interpretação do referido dispositivo, pelo Supremo Tribunal Federal, conforme a CF/88, concomitantemente à aplicação, pela Administração Pública, da teoria da redução da discricionariedade a zero, para fortalecimento desse Estado Democrático de Direito.

Palavras-chave: Competência discricionária. Lei n. 8.666/93. Interpretação conforme a Constituição. Administração Pública. Teoria da redução da discricionariedade a zero.

Abstract: This essay intends to understand the bidding process under a Rechtsstaat concept, specially the aspects of discretionary power and its control. It aims to analyze the legal system established by the Federal Constitution of 1988, as well as by the ordinary legislator, in the article 87 of the Law n. 8.666/93, pointing at problems originated there. It proposes, in order to solve this issue, an interpretation of the device mentioned, by the Supreme Federal Court, in accordance with the Constitution, simultaneously with the enforcement, by the public administration, of the zero discretion theory, to strengthen this democratic rule of law.

1 Advogado. Graduado em Direito e mestre em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia. Mestre em Direito Constitucional pela PUC/SP. Doutorando em Direito Administrativo (PUC/SP). Professor de Direito Administrativo e Internacional nas Faculdades de Campinas (Facamp), além de Direito Constitucional em cursos preparatórios para concursos da área jurídica.

2 Advogada. Graduada em Direito pela Facamp e em Ciência Política pela Unicamp. Mestre em Economia do Trabalho, pela Unicamp e Doutora em Economia aplicada a Políticas Públicas de Trabalho, também pela Unicamp (Cesit).

Discricionariedade administrativa e processo sancionatório: inconsistências normativas e possibilidades interpretativas em torno da Lei n. 8.666/93

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Keywords: Discretionary power. Law 8.666/93. According interpretation. Public administration. Zero discretion theory

1 Introdução

Este artigo procura compreender aspectos do processo licitatório no âmbito de um Estado Democrático de Direito instituído por uma Constituição de tipo dirigente.3

Constituições políticas dessa natureza têm como característica uma significativa vinculação dos poderes a determinadas normas, visando à instituição de um estado de coisas a ser atingido. Trata-se de um padrão específico de normatividade introduzido pelas normas-princípio que, diversamente das normas-regra, não buscam disciplinar condutas, mas instituir tarefas a serem perseguidas sob condições fático-jurídicas postas (reserva do possível).

A existência de um sistema constitucional de tipo principiológico coloca na ordem do dia aspectos importantes daquilo que se define por competência discricionária4 e, nesse plano, parece-nos oportuno um debate acerca dessa competência, no campo do chamado devido processo legal substantivo (substantive due process), incluindo os parâmetros normativos que propiciam sua sindicância.

Buscamos então compreender tal universo confrontando o regime jurídico estabelecido pela CF/1988 com o desenvolvido pelo legislador na Lei Geral de Licitações (Lei n. 8.666/93),5 sob o aspecto das sanções reguladas no seu art. 87.

Contudo, iniciamos a discussão pelas particularidades que envolveram o reconhecimento de certo padrão de normatividade conferido às normas de estrutura principiológica, de simples instrumentos de integração e colmatação do ordenamento, no bojo dos princípios gerais, até sua definitiva incorporação à teoria geral da norma jurídica, com Dworkin e Alexy.6

Em seguida, passamos a uma rápida análise do programa constitucional, especialmente, dos princípios do caput do art. 37, buscando analisá-los não só a partir de sua moldura jurídico-normativa mais geral, mas aplicando-os especificamente ao processo licitatório. Nesse ponto pareceu-nos necessário retomar a discussão acerca do conteúdo da discricionariedade, limites e possibilidades de controle.

Procurando contribuir para o rompimento definitivo com uma lamentável tradição que, aferrada a uma concepção dogmática e estreita acerca do princípio da separação dos Poderes, tem conduzido a uma recusa ao controle dessa competência, nosso ensaio defende a averiguação do

3 ver CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. Coimbra: Coimbra, 2001.

4 Buscamos evitar a expressão “poder discricionário” por a entendermos pouco apropriada.

5 Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Carta Política, instituindo normas para licitações e contratos da Administração Pública.

6 Graças às contribuições desses autores (i) os princípios passam a ser reconhecidos como “espécie” do gênero norma jurídica e (ii) diferenciam-se, com maior precisão, as características normativas, peculiaridades (validade e eficácia) e mecanismos de solução, quando de eventual conflito/colisão entre regras ou princípios.

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mérito a partir de parâmetros normativos colhidos da doutrina contemporânea7 que, pensamos, possibilitam a eficácia do controle da intersubjetividade presente na fundamentação das decisões administrativas.

Trata-se dos postulados normativos aplicativos, normas de 2º grau, que se aplicam à interpretação e concretização de outras normas, como se dá com os postulados da razoabilidade, proporcionalidade e igualdade, no contexto do que se convencionou chamar por substantive due process.8

Por fim, apontamos as peculiaridades do regramento jurídico de direito público e os parâmetros constitucionais do procedimento licitatório, adentrando nos aspectos polêmicos que envolvem a aplicação de sanções ablativas do direito dos administrados (art. 87, Lei n. 8.666/93), que se mostram em desacordo com o sistema constitucional.

Ao definir mecanismos de natureza sancionatória, sem a tipificação das condutas ilícitas, entendemos que o legislador abriu nesse ponto enorme espaço para práticas de privilégio e/ou perseguição de interessados em licitar, em razão, por vezes, de conveniências políticas/pessoais, em escancarado ato de improbidade e flagrante contrariedade aos princípios constitucionais. É o que nos demonstra a análise da Relação de Apenados, publicada pelo TCE/SP.9

Nossa irresignação com este estado de coisas nos incita avançar no debate — para a consolidação de um efetivo Estado Democrático de Direito, pela consciência e práticas cidadãs — sugerindo uma via de controle que passe pelo reconhecimento da inconstitucionalidade do referido dispositivo, na forma como vem sendo aplicado, e a promoção, em ato contínuo, de uma interpretação conforme a Constituição, pela qual a validade das decisões discricionárias estaria, no mínimo, condicionada à observância, pelo administrador, de dois fundamentos aplicativos: a) a teoria da fundamentação substancial e, b) a adoção da teoria da redução da discricionariedade a zero.

2 A normatividade dos princípios no âmbito da moderna teoria da norma jurídica.

Segundo Bonavides,10 o processo por meio do qual vieram os princípios a ter a sua normatividade reconhecida pode ser dividido em três etapas. Na primeira,11 eles habitariam uma esfera por inteiro abstrata da qual se deduzia uma normatividade basicamente nula (e duvidosa), em contraste com o reconhecimento da dimensão ético-valorativa (como ideia que inspira os postulados de justiça).12

7 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios — da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2006.

8 NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais,1996.

9 Tribunal de Contas do Estado de São Paulo. Disponível em: <http://www.tce.sp.gov.br/publicacoes/apenados/apenados-proc-licitatorio.shtm>.

10 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 255-295.

11 Jusnaturalista.

12 O grande representante desta concepção teria sido Del Vecchio, para quem os princípios gerais do direito, como os evocados pelo art. 3º do Código Civil italiano de 1865, deveriam ser interpretados como princípios de direito natural, já que aqueles extraídos

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Para os positivistas, na segunda etapa, o ordenamento, em princípio, era pleno, e os princípios deduzidos do plexo normativo eram suficientes para responder aos casos mais inusitados. No entanto, talvez com o intuito de silenciar as críticas dos jusnaturalistas, passaram a admitir sua positivação no âmbito dos próprios códigos, regulamentando-os enquanto fonte normativa subsidiária, com o intuito de se criarem válvulas de segurança, garantidoras do reinado da lei.

Nessa condição ficava claro que não se admitia que possuíssem normatividade que lhes permitisse sobrepor-se ou anteceder-se à lei, mas somente poderiam ser dela extraídos ou introduzidos para se estender a eficácia e impedir-se um vazio normativo.

Na terceira etapa, tem-se o pós-positivismo,13 quando as Constituições, pós Segunda Guerra Mundial, teriam acentuado a hegemonia axiológica dos princípios, convertidos em pedestal normativo sobre o qual assentaria o edifício jurídico dos novos sistemas. Assim, o reconhecimento da natureza normativa dos princípios passou a originar-se no âmbito das Cortes Internacionais14 e acabou por figurar no Tratado de Roma, que instituiu a Comunidade Econômica Europeia, em 1957.

Esse desenvolvimento teórico teria dado origem a uma nova hermenêutica em que se destacariam tendências axiológicas para as quais a compreensão do fenômeno constitucional mostrou-se cada vez mais atado à consideração dos valores e à fundamentação do ordenamento jurídico.

Conjugaria, sob essas bases, Lei e Direito. Vários foram os representantes desse desenvolvimento.15 Contudo, as contribuições mais expressivas são de V. Crisafulli, R. Dworkin, e R. Alexy que, associados à J. Esser, romperam com a tipologia proposta por Kelsen.

Uma vez fixados novos parâmetros por meio dos quais se busca compreender a dimensão normativa dos princípios, agora definido como espécie do gênero norma jurídica, restava elucidar a natureza e a função de cada uma dessas espécies.

De imediato, deixava-se para trás a indagação acerca da existência ou não de atributos normativos junto aos princípios — substituída pela indagação acerca da natureza e amplitude dessa mesma normatividade. Ou seja, se é uma espécie normativa, normatividade possui.

Coube a Dworkin e a Alexy o esclarecimento acerca das principais características/critérios para diferenciar princípios e regras. Para Dworkin, as regras seriam aplicadas à base do tudo ou nada (all or nothing). Ou seja, caso ocorram os fatos nela previstos, sendo válida, a resposta estará previamente configurada no enunciado, que deve ser aplicado sem maiores

dos textos legislativos seriam insuficientes para tornar pleno o ordenamento em face das lacunas. Tal crítica teria sido feita em 1921, quando já imperava na Europa a Escola Histórica do Direito, em via de substituição pelo período de hegemonia da tradição positivista.

13 Período correspondente às últimas décadas do século XX.

14 A exemplo do art. 38 do Estatuto da Corte Permanente de Justiça Internacional (1920), cuja dicção foi transposta, em 1945, para o art. 38, I, c, do Estatuto da Corte Internacional de Justiça: “os princípios gerais do direito, reconhecidos pelas nações civilizadas, são aptos e idôneos para solverem controvérsias, ao lado dos tratados e costumes internacionais”.

15 J. Esser, Karl Larenz, e Grabitz.

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considerações. A ideia de tudo ou nada — ou a regra é válida e se aplica, ou não é válida, e não se aplica — seria, por sua vez, incompatível com o padrão de normatividade dos princípios, cujos parâmetros normativos estariam situados na dimensão do peso ou valor. Esta dimensão (peso, importância, valor) seria exclusiva dos princípios, estabelecendo-se aqui, segundo o autor, o critério mais seguro de distinção.

Neste sentido, se um determinado princípio for aplicado em um caso, e nele não prevalecer, nada obsta que noutras circunstâncias ele volte a ser utilizado e aceito nos termos inicialmente propostos. De igual, entre princípios, admite-se a possibilidade de que dois ou mais colidam, gerando um conflito que será resolvido em face do peso ou valor atribuído a cada um no âmbito daquele caso especificamente considerado. Assim, um deles poderá ser afastado ou ter a sua incidência reduzida no caso concreto. No entanto, todos continuarão igualmente válidos e eficazes no plano do ordenamento jurídico.

Diversamente, em um sistema de regras, não se pode dizer que uma é mais importante do que outra, de modo que, quando duas regras conflitam, não se admite a prevalência de uma em razão do seu peso. Aliás, o conflito sequer poderá existir, será aparente, já que, ou a regra é válida e se aplica, ou não se aplica por ser inválida. O conflito aparente de regras se resolve pelos critérios ou postulados de aplicação da especialidade, cronologia ou hierarquia. Por meio deles, apenas uma regra poderá ser admitida como válida e eficaz — a menos que o sistema tenha introduzido uma regra de exceção.

No caso dos princípios, dado que se relacionam no âmbito do peso ou valor, se busca uma harmonização, por meio dos postulados da ponderação de interesses e da concordância prática, entre outros. Ou seja, o conflito entre regras se resolve no plano da validade. A colisão de princípios, na dimensão da eficácia.

Alexy, ao desenvolver a sua teoria normativa material, elaborou uma concepção próxima da assinalada por Dworkin, articulando também as duas espécies (princípios e regras) no interior do gênero norma jurídica. Para ele, tanto regras como princípios seriam normas na medida em que se formulam com a ajuda de expressões deônticas fundamentais, tais como mandamento, permissão e proibição. Prescreve então que tanto princípios quanto regras constituem igualmente fundamentos para juízos concretos de dever, não obstante, constituírem espécies diversas. Neste sentido, os princípios seriam normas dotadas de um elevado grau de generalidade, ao contrário das regras, que não obstante serem também normas, possuem um baixo grau de generalidade.

Alexy afirma que a distinção entre regras e princípios não pode ser reduzida a uma distinção de grau, mas seria também de qualidade. Propõe um critério gradualista-qualitativo que possui como ponto determinante a compreensão dos princípios como mandados de otimização — âmbito no qual se distingue qualitativamente das regras.

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A principal característica dessas normas de otimização consistiria na possibilidade de serem cumpridas em graus variados, de forma que a medida de exceção imposta dependeria tanto das possibilidades fáticas quanto das jurídicas. As regras seriam normas que podem ser ou não cumpridas. Mas, se uma regra é válida, ter-se-ia que fazer exatamente o que nela está determinado, não se podendo ir além ou ficar aquém do estipulado.

Em razão dessas contribuições, o pensamento pós-positivista evoluiu paralelamente ao movimento de positivação dos princípios, no âmbito das Constituições na segunda metade do século XX.

Nesse itinerário, o processo de constitucionalização dos princípios teria sido também marcado por duas fases. Uma primeira, programática, na qual a normatividade reconhecida aos princípios teria sido mínima (quando os princípios foram afastados para um plano constitucional abstrato, sujeitos a um grau de aplicabilidade diferido) e uma segunda, não programática, caracterizada por um forte ímpeto de concreção e objetividade, na qual se buscou um grau máximo de normatividade (quando os princípios ocuparam um espaço de relevo, no qual se vislumbra a aplicação imediata, a dimensão objetiva e concretizadora, tudo ancorado em sua positividade expressa).

Contemporaneamente alguns doutrinadores, boa parte de origem alemã, começaram a apontar supostas limitações nas concepções e tipologias de Dworkin e Alexy acerca da teoria da norma jurídica. Entre nós, destacaríamos a proposta de Humberto Ávila,16 em um campo teórico referenciado por nomes como Claus-Wilhelm Canaris e Klaus Vogel.

Ávila chama atenção para a importância atribuída, nas últimas décadas, para a interpretação e a aplicação das normas constitucionais sobre como devemos conferir à construção de sentido e à delimitação da função desenvolvida a partir das normas que prescrevem fins a serem atingidos, como fundamento para a aplicação do ordenamento constitucional.

Refere-se à forma eufórica pela qual tais normas (princípios jurídicos) passaram a ser recebidas pela doutrina e jurisprudência de forma a se chegar a cunhar expressões do tipo Estado principiológico. Segundo o autor, um êxtase doutrinário que acabou por acarretar certos exageros e problemas teóricos que, ao final, contribuíram para inibir a própria efetividade do ordenamento, em especial a de elementos tidos por fundamentais.

De início Ávila situa a discussão no plano da distinção entre princípios e regras. Firma que, de um lado, elaboraram-se distinções que separam princípios de regras em virtude da estrutura e dos modos de aplicação e colisão, tomando como necessárias qualidades que seriam meramente contingentes nas referidas espécies normativas. Aprofundando, afirma que essas distinções exaltam a importância dos princípios de forma a apequenar a função das regras. As distinções teriam também atribuído aos princípios condição de normas que, por estarem relacionadas a valores, demandariam apreciação subjetiva do aplicador, sendo insuscetíveis de investigação 16 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. São Paulo: Malheiros, 2006.

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intersubjetivamente controlável. Neste sentido, afirma ser imprescindível a descoberta dos comportamentos a serem adotados para a concretização dos princípios, visto que, hoje, tal necessidade cedeu lugar a uma investigação circunscrita à mera proclamação, muitas vezes desesperada e inconsequente, sobre sua importância. Os princípios seriam reverenciados como bases ou pilares do ordenamento jurídico sem que isso agregue elementos que permitam melhor compreendê-los e aplicá-los. O autor critica a falta de clareza conceitual na manipulação das espécies normativas, não apenas pela utilização de distintas categorias como se sinônimas fossem — como a referência indiscriminada à expressão princípio referenciado como regra, axioma, postulado, ideia, medida, máxima ou critério, mas que esses distintos postulados seriam manipulados de idêntica forma, como se dá com a alusão acrítica à proporcionalidade, muitas vezes confundida com justa proporção, dever de razoabilidade, proibição de excesso, relação de equivalência, exigência de ponderação, dever de concordância prática ou mesmo com a própria proporcionalidade em sentido estrito.

Nesse aspecto, a contribuição mais importante de seu trabalho parece ser a maneira como busca simplificar a distinção entre as espécies normativas, demonstrando que a dissociação elementar decorre do fato de as regras possuírem uma dimensão imediatamente comportamental (devem prever um comportamento e a ele atribuir uma consequência jurídica) enquanto os princípios teriam uma dimensão eminentemente finalística (seriam normas cuja qualidade essencial reside na determinação da realização de um fim juridicamente relevante).17

Como consequência, os mecanismos de controle devem ser distintos, requerendo um instrumental conceitual mais sofisticado, que, até o momento, não havia recebido a atenção necessária, ainda que, de regra, enfrentado no terreno correto do princípio substancial do devido processo legal.

Mesmo reconhecendo que o importante não seria saber qual a denominação mais correta desse ou daquele princípio, mas sim o modo mais seguro de se garantir a sua aplicação e efetividade, Ávila alerta para o fato de que a aplicação do direito dependeria precisamente de processos 17 “As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência,

para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte e nos princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos. Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação demandam uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção. As regras podem ser dissociadas dos princípios quanto ao modo como prescrevem o comportamento. As regras são normas imediatamente descritivas, na medida em que estabelecem obrigações, permissões e proibições mediante a descrição da conduta a ser cumprida. Os princípios são normas imediatamente finalísticas, já que estabelecem um estado de coisas cuja promoção gradual depende dos efeitos decorrentes da adoção de comportamentos a ela necessários. Os princípios são normas cuja qualidade frontal é, justamente, a determinação da realização de um fim juridicamente relevante, ao passo que característica dianteira das regras é a previsão do comportamento. As regras podem ser dissociadas dos princípios quanto à justificação que exigem. A interpretação e a aplicação das regras exigem uma avaliação da correspondência entre a construção conceitual dos fatos e a construção conceitual da norma e da finalidade que lhe dá suporte. Ao passo que a interpretação e a aplicação dos princípios demandam uma avaliação da correlação entre o estado de coisas posto como fim e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária. As regras podem ser dissociadas dos princípios quanto ao modo como contribuem para a decisão. Os princípios consistem em normas primariamente complementares e, preliminarmente parciais, na medida em que, sobre abarcarem apenas parte dos aspectos relevantes para uma tomada de decisão, não têm a pretensão de gerar uma solução específica, mas de contribuir, ao lado de outras razões, para a tomada de decisão. Já as regras, consistem em normas preliminarmente decisivas e abarcantes, na medida em que, a despeito da pretensão de abranger todos os aspectos para a tomada de decisão, têm a aspiração de gerar uma solução específica para o conflito entre razões” (ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 167-168).

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discursivos e institucionais sem os quais ele não se tornaria realidade. Neste sentido, a transformação de textos normativos em normas jurídicas dependeria da construção de conteúdos de sentido, em razão do dever de fundamentação que inicialmente os tornaria compreensíveis por aqueles que os manipulam. Assim não sendo, ficaria muito difícil a compreensão pelos destinatários, pela exigência de clareza e a previsibilidade do próprio direito (elementos que seriam indispensáveis ao princípio do Estado Democrático).

Em nossa opinião, uma compreensão acerca da normatividade dos princípios como apontada se mostra necessária para uma correta interpretação dos princípios constitucionais gerais da Administração Pública elencados no caput do art. 37 da CF/88. Tal importância se ressalta quando pensamos em sua aplicação sob contextos específicos, como seria o caso do processo licitatório.

Neste plano, a compreensão da normatividade, a partir da ideia de um estado de coisas a ser atingido, pode mitigar efeitos não desejados pelo Constituinte originário, mas infelizmente abertos quando da regulamentação da matéria pelo legislador ordinário.

Isto porque, a aparente aplicação automática de regras jurídicas, destituídas de ponderação teleológica ancorada na normatividade dos princípios pode acabar levando ao abuso de poder e ao desvio de finalidade.

3 O conteúdo da discricionariedade e os parâmetros normativos para o controle intersubjetivo dessa competência: os postulados normativos aplicativos

Na seara do Direito Administrativo, ao conceito de poder corresponde o de dever. Assim, os poderes que detém o administrador18 só se legitimam na exata medida dos deveres a ele atribuídos, no exercício da função administrativa, para a tutela do interesse coletivo.

A competência discricionária se contrapõe à vinculada19 e se liga ao deferimento à Administração de certo grau de liberdade e vontade na prática de determinados atos. Assim, diante do caso concreto, por vezes, permite-se um juízo de conveniência e oportunidade do conteúdo a ser editado por parte do administrador, visando uma melhor satisfação do interesse público.

Esse juízo se justifica em nome da necessidade de se lidar com as infinitas/distintas situações cotidianas, já que é sempre impossível ao legislador prevê-las em sua inteireza, e tampouco estabelecer normas despossuídas das características de abstração e generalidade.20

18 Os poderes administrativos, por via de regra, são classificados em vinculados ou discricionários, hierárquico, disciplinar e normativo ou regulamentar. Sobre o tema, v. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio.

19 É aquela conferida pela lei à Administração, de forma que, prévia e objetivamente, se sabe acerca do único comportamento que esta poderá ter diante de certas situações concretas, bem como dos requisitos necessários à formalização do ato, para o qual não concorre uma vontade subjetiva do administrador.

20 Nesse sentido, afirma Fionini que: “a discricionariedade é, então, a ferramenta jurídica que a ciência do direito entrega ao administrador para que a gestão dos interesses sociais se realize respondendo às necessidades de cada momento” (apud DI

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Mas a discricionariedade deve respeitar limites. Ou seja, é a lei que deixa ao administrador certo espaço de utilização dos critérios de oportunidade e conveniência, desde que sejam observados os contornos do ordenamento.

Assim, nem de longe o ato discricionário se confunde com poder puramente político, sendo decorrência lógica do princípio da legalidade, devendo, por isso, estar de acordo com os vetores axiológicos da Constituição e, ademais, ser manejado sempre e obrigatoriamente em referência ao caso concreto.

Segundo a doutrina, a liberdade do administrador para os atos não vinculados pode estar presente nas etapas de formação, na própria estrutura da norma jurídica,21 no momento da prática do ato, em seus elementos (sujeito, objeto, motivação,22 forma e finalidade)23 ou ainda na valoração dos fatos objetivos que se apresentam à administração.24

Questão a tratar, para que não se opere confusão, é a da distinção, pontuada por parte da doutrina,25 entre discricionariedade e interpretação, já que em ambas existe um trabalho intelectivo prévio, por parte da autoridade administrativa, na aplicação da lei aos casos concretos.

Na tarefa interpretativa, há uma escolha única que emana do ordenamento, a partir de um processo intelectivo lógico coerente com a totalidade orgânica. Sendo assim, não há espaço para inovação e a tarefa é apenas explicativa das valorações implícitas no sistema.

Na discricionariedade, há mais. É que, para além das tarefas interpretativa e integrativa, existe, de fato, um poder de escolha, uma capacidade de autodeterminação, segundo critérios administrativos, entre certo número de soluções igualmente válidas.

PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, p. 69).

21 Régis de Oliveira.

22 Sobre os pressupostos de direito e de fato do ato administrativo, v. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio, Curso de direito administrativo, capítulo VI, item VII.

23 Maria Sylvia Zanella di Pietro esclarece que haverá discricionariedade quando: “1. a lei não definir o motivo, deixando-o ao inteiro critério da Administração; é o que ocorre na exoneração ex officio do funcionário nomeado para cargo de provimento em comissão (exoneração ad nutum); não há qualquer motivo na lei para justificar a prática do ato; em casos como esse, cabe à autoridade escolher o motivo (desde que legal) que a levará a praticar determinado ato; 2. a lei define o motivo utilizando noções vagas, vocábulos plurissignificativos que deixam à Administração a possibilidade de apreciação dos fatos concretos segundo critérios de valor que lhe são próprios; é o que ocorre quando a lei manda punir o servidor que praticar ‘falta grave’ ou ‘procedimento irregular’, sem definir em que consistem; ou quando exige, para o provimento de certos cargos, ‘notável saber’; enfim, sempre que a hipótese da norma se refere a conceito de valor, como ordem pública, moralidade administrativa, boa-fé, paz pública e tantas outras de uso frequente pelo legislador”.

24 “A realização do ato pressupõe, por outro lado, determinados antecedentes objetivos. A autoridade administrativa não age no vácuo, não atua arbitrariamente. Ela se movimenta em função de certas situações de fato ou de direito que determinam a sua iniciativa. A primeira etapa dinâmica do ato administrativo é, portanto, a constatação da existência dos motivos. Segue-se imediatamente, a apreciação do valor desses motivos, a fim de que possa a autoridade se orientar no tocante à necessidade de sua atuação e aos meios indicados para a obtenção de um resultado. É precisamente na sucessão dessas duas etapas que se insere o elemento discricionário. Ao passo que na verificação da existência material ou legal dos motivos não há senão o processo de apreensão da realidade, na sua valorização subjetiva-se a tramitação do ato administrativo. A existência ou não dos motivos é matéria de ordem objetiva: a sua observação imperfeita provocará um erro de fato ou de direito, sujeito ao controle de legalidade. A ponderação e a medida dos motivos, como causas determinantes da ação do administrador, correspondem a um processo psicológico, pertencente ao prisma discricionário” (TÁCITO, Caio, Temas de direito público: estudos e pareceres. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 318-319).

25 A exemplo de Gaetano Azzariti, Emilio Betti e, entre nós, Maria Sylvia Zanella di Pietro.

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Mas qual o limite conferido ao administrador? Uma resposta adequada à indagação só se pode obter por meio de um estudo mais rigoroso dos chamados postulados normativos aplicativos da razoabilidade e da proporcionalidade.

Nesse sentido, contestando a doutrina em geral, que se refere à proporcionalidade e à razoabilidade ora como princípios, ora como regras, Humberto Ávila26 nos propõe essa nova categoria (postulados normativos aplicativos) que dissocia a equiparação entre razoabilidade e proporcionalidade.

Isso porque, a doutrina em geral entenderia a razoabilidade como um topos sem estrutura ou fundamento normativo, quando, em sua opinião, a tal conceito seria devida uma nobre dignidade dogmática. Da mesma forma, igualaria proibição de excesso e proporcionalidade em sentido estrito quando, em sua opinião, tais conceitos permitiriam espécies distintas de controle argumentativo. No entanto, operadas certas correções, acredita o autor que poderiam ser criadas as condições para incorporar a justiça no debate jurídico sem comprometer a racionalidade argumentativa.27

Essa questão (controle intersubjetivo da argumentação) é da maior importância, dado que os fundamentos jurídico-constitucionais que autorizam e requerem a intervenção da Administração, de forma a promoverem procedimentos administrativos, tais como o licitatório, assim como os mecanismos normativos que estabelecem seus limites, estão instituídos na forma de norma-princípio.

Assim, por exemplo, a acepção formal do princípio da igualdade (enquanto mera isonomia) contrapõe-se à sua acepção material e, dessa forma, adquire a natureza de parâmetro de controle para a sindicância dos procedimentos, que se dará no âmbito do chamado devido processo legal substancial.

Neste plano, não podemos deixar de reconhecer que impera uma significativa aleatoriedade e imprecisão conceitual no manuseio dos institutos que dificultam a avaliação da racionalidade argumentativa. Por isso entendemos oportuno descrever sinteticamente sua contribuição à dogmática da interpretação e aplicação das normas constitucionais, em especial as de natureza principiológica.

De saída, expomos o conceito de postulado normativo aplicativo, que não comporia o rol das espécies normativas propriamente ditas (regras e princípios), mas estaria situado em outra

26 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. São Paulo: Malheiros, 2006.

27 “Sua finalidade é clara, manter a distinção entre princípios e regras, mas estruturá-la sob fundamentos diversos dos comumente empregados pela doutrina. Demonstrar-se-á, de um lado, que os princípios não apenas explicitam valores, mas, indiretamente, estabelecem espécies precisas de comportamentos; e, de outro, que a instituição de condutas pelas regras também pode ser objeto de ponderação, embora o comportamento preliminarmente previsto dependa do preenchimento de algumas condições para ser superado. Com isso, ultrapassa-se tanto a mera exaltação de valores sem instituição de comportamentos quanto a automática aplicação de regras. Propõe-se um modelo de explicação das espécies normativas que, ademais de inserir uma ponderação estruturada no processo de aplicação, ainda inclui critérios materiais de justiça na argumentação, mediante a reconstrução analítica do uso concreto dos postulados normativos, especialmente da razoabilidade e da proporcionalidade. Tudo isso sem abandonar a capacidade de controle intersubjetivo da argumentação, que, normalmente, descamba para um caprichoso decisionismo” (op. cit., p. 25-26).

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dimensão e enquanto regras e princípios seriam espécies normativas de 1º grau, tais postulados constituiriam espécies de 2º grau.

Os princípios, como espécie normativa de 1º grau, constituem normas que estabelecem fins a serem buscados. Instituem, portanto, um dever de promover a realização de um estado de coisas.

A passagem de um plano (estabelecimento de fins e o dever de promovê-lo) para outro (modo de aplicação e controle da efetivação desse comando) implica superação do âmbito das normas para adentrar-se no terreno das metanormas. Teríamos aqui deveres situados em um 2º grau, cujo escopo seria o estabelecimento de uma estrutura para a aplicação de outras normas (princípios e regras).

Dessa forma, as metanormas permitiriam a verificação dos casos em que ocorre violação às normas cuja aplicação elas estruturam e, apenas elipticamente, admite Ávila, poder-se-ia afirmar que ocorre violação aos postulados da razoabilidade, proporcionalidade ou eficiência. Em sentido mais exato, violadas seriam as normas (princípios e regras) que deixaram de ser devidamente aplicadas.

Com isso se quer dizer que os postulados normativos situam-se em um plano distinto das normas cuja aplicação estruturam. A violação dos postulados consistiria na sua interpretação em desacordo com a estruturação.

Todavia, o qualificativo 2º grau não nos deve conduzir à conclusão de que tais postulados funcionariam como qualquer norma que fundamente a aplicação de outras normas, como ocorreria com os chamados sobreprincípios — tais como os do Estado de Direito ou do devido processo legal, visto que esses estariam situados no próprio plano das normas objeto de aplicação, e não no plano das normas que estruturam a aplicação de outras normas.

Ademais, os sobreprincípios atuariam como fundamento formal e material para a instituição e atribuição de sentido às normas hierarquicamente inferiores, diferentemente dos postulados normativos que funcionariam como estrutura previamente disposta para a aplicação de outras normas. Por isso Ávila entende que eles (enquanto deveres estruturantes de aplicação de outras normas) não poderiam ser considerados como princípios ou regras.28

28 “Como os postulados situam-se em um nível diverso do das normas objeto de aplicação, defini-los como princípios ou como regras contribuiria mais para confundir do que para esclarecer. Além disso, o funcionamento dos postulados difere muito do dos princípios e das regras. Com efeito, os princípios são definidos como normas imediatamente finalísticas, isto é, normas que impõem a promoção de um estado ideal de coisas por meio da prescrição indireta de comportamentos cujos efeitos são havidos como necessários àquela promoção. Diversamente, os postulados, de um lado, não impõem a promoção de um fim, mas, em vez disso, estruturam a aplicação do dever de promover um fim; de outro, não prescrevem indiretamente comportamentos, mas modos de raciocínio e de argumentação relativamente a normas que indiretamente prescrevem comportamentos. Rigorosamente, portanto, não se podem confundir princípio com postulados. As regras, a seu turno, são normas imediatamente descritivas de comportamentos devidos ou atributivas de poder. Distintamente, os postulados não descrevem comportamentos, mas estruturam a aplicação de normas que o fazem. Mesmo que as regras fossem definidas como normas que prescrevem, proíbem ou permitem o que deve ser feito, devendo sua consequência ser implementada, mediante subsunção, caso a sua hipótese seja preenchida, como o fazem Dworkin e Alexy, ainda assim a complexidade dos postulados se afastaria desse modelo dual. A análise dos postulados de razoabilidade e de proporcionalidade, por exemplo, está longe de exigir do aplicador uma mera atividade subsuntiva. Eles demandam, em vez disso, a ordenação e a relação entre vários elementos (meio e fim, critério e medida, regra geral e caso individual), e não um mero exame de correspondência entre a hipótese normativa e os elementos de fato. A possibilidade de, no final, requerer uma aplicação integral não elimina o uso diverso na preparação da decisão. Também os princípios, ao final

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O autor reconhece que esse apartamento dos postulados normativos aplicativos (mesmo para os que o reconhecem) da categoria de regras e princípios é, para muitos, problemática. Para alguns seria, ao lado dos chamados deveres de otimização, uma forma específica de regras (eine besondere form regeln). Outros, adeptos de sua compreensão como princípios, reconheceriam que eles funcionam como máxima ou topos argumentativo, que mescla o caráter de regras e de princípios. Há também os que os enquadrariam, com sólida argumentação, na categoria de princípios distintos, denominados princípios de legitimação. Existiriam, por fim, aqueles que os definiriam como normas metódicas. No entanto a denominação é, em si, secundária, na medida em que o decisivo seria constatar e fundamentar sua diferente operacionalidade.

Os postulados normativos aplicativos diferenciar-se-iam dos princípios e das regras quanto ao nível e à função, cabendo-lhes o estabelecimento dos critérios de aplicação desses. Ao contrário dos princípios e das regras, que servem de comandos para determinar condutas obrigatórias, permitidas ou proibidas, bem como, condutas cuja adoção seria necessária para atingir certos fins, os postulados serviriam como parâmetros para a realização de outras normas, de modo que, em todos os casos de sua utilização, haveria necessariamente um raciocínio relativo à aplicação de outras normas do ordenamento jurídico.

Nesse sentido, por exemplo, no exame da razoabilidade-equivalência, analisa-se a norma que institui a intervenção ou exação com a finalidade de verificar se há equivalência entre sua dimensão e aquilo que ela visa punir ou financiar. No exame da proporcionalidade, investiga-se uma norma que institui intervenção ou exação para verificar se o princípio que justifica sua instituição seria promovido e em que medida os outros princípios serão restringidos. No exame da proibição de excesso analisar-se-ia a norma que institui a intervenção ou exação para comprovar se algum princípio fundamental não estaria sendo atingido em seu núcleo essencial.

Tais premissas são de grande valia quando da apreciação de litígios envolvendo o processo licitatório, visto que, com base em uma avaliação nelas fundamentada é que se colocará a questão referente à existência ou não de uma restrição excessiva de algum dos princípios fundamentais da administração pública.

Para Ávila, a definição de postulados como normas estruturantes da aplicação de princípios e regras requer a adoção de quatro procedimentos de investigação e análise para que se possa delimitar seu exato sentido no ordenamento. 1) a necessidade de levantamento de casos cuja solução tenha sido tomada com base em algum postulado — o que irá requerer: a) investigação da jurisprudência dos Tribunais em busca de decisões que tenham mencionado e utilizado de postulados; b) a obtenção da íntegra dos acórdãos; 2) análise da fundamentação das decisões para verificação dos elementos ordenados e a forma como foram relacionados — o que irá requerer: a) análise das decisões e verificação dos elementos/grandezas manipuladas; b) verificação das relações consideradas essenciais; 3) investigação das normas objeto de aplicação

do processo aplicativo, exigem o cumprimento integral. E a circunstância de todas as espécies normativas serem voltadas, em última instância, para o comportamento humano não elimina a importância de explicar os procedimentos completamente distintos que preparam e fundamentam sua descoberta” (op. cit., p. 123-124).

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e fundamentos para a escolha de determinada aplicação — o que irá requerer: a) verificação dos elementos/grandezas manipuladas; b) encontrar os motivos que levaram os julgadores a entender existentes ou inexistentes determinadas relações; 4) realização do percurso inverso: descoberta a estrutura exigida na aplicação do postulado, verificação da existência de outros casos que deveriam ter sido decididos com base nele — o que irá requerer: a) refazer a pesquisa jurisprudencial mediante a busca de outras palavras-chave; b) análise crítica das decisões, reconstruindo-as argumentativamente de acordo com o postulado em exame, de modo a evidenciar a falta ou o uso inadequado dela.

Ao final dessa reconstrução, analisando os dados recolhidos, Ávila nos propõe uma classificação para os postulados normativos aplicativos em espécies.

Inicialmente define todos como deveres estruturais, deveres que estabelecem uma vinculação entre elementos e que impõem determinada relação entre eles. Daí porque também os define como formais, visto que, dependem da conjugação de razões substanciais para a sua aplicação.

Mas ainda assim, alerta para o fato de que os postulados não funcionariam todos da mesma forma. Em parte seriam aplicados independentemente dos elementos objeto de relacionamento. Por exemplo, a ponderação, exige sopesamento de quaisquer elementos (bens, interesses, valores, direitos, princípios, razões) e não indicaria a maneira como deve ser procedido esse sopesamento. Os elementos e os critérios não lhe seriam específicos. Também a concordância prática funcionaria de modo semelhante, caracterizando-se como um postulado inespecífico, visto que, exige a harmonização entre elementos, mas não diz qual a espécie desses elementos. Nesse sentido, os elementos objeto de harmonização seriam indeterminados. Igualmente a proibição de excesso estabeleceria que a realização de um elemento não resultasse no aniquilamento do outro. No entanto, os elementos objeto de preservação mínima não são indicados. No mesmo sentido teríamos o postulado da otimização ao estabelecer que determinados elementos devam ser maximizados sem dizer quais e nem como.

Em situações como essas os postulados normativos exigiriam o relacionamento entre elementos, sem, contudo, especificar quais são os elementos e os critérios que devem orientar sua relação. Seriam postulados normativos de aplicação eminentemente formais, constituindo meras ideias gerais, despidas de critérios orientadores da aplicação. Exatamente por isso, Ávila os conceitua como postulados inespecíficos ou incondicionais.

Em contrapartida, o autor identifica outros postulados cuja aplicação requereria determinados elementos e sua orientação por intermédio de alguns critérios específicos. É o caso — de extrema importância para este trabalho — do postulado da igualdade.

Como pormenorizaremos mais adiante, diferentemente de como concebe Ávila neste particular, os postulados normativos de aplicação são princípios, e o princípio da igualdade, dada a sua peculiar especificação constitucional, nele se manifesta tanto como postulado normativo de

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aplicação (igualdade formal ou isonomia), como quanto preceito fundamental decorrente da Constituição (igualdade material/substancial). Mas, segundo o autor, enquanto postulado, a igualdade só é aplicável em um plano no qual tenhamos ao menos dois sujeitos perante algum critério discriminador vinculado a alguma finalidade, razão pela qual só se tornará aplicável na presença de elementos específicos, tais como sujeitos, critérios de discrimen, além de algum objetivo especificado.

Situação semelhante se daria com outros postulados, tais como da razoabilidade, operável apenas a partir da relação estabelecida entre um plano geral e outro individual, ou da proporcionalidade, cuja aplicação se vincula à existência de uma relação de causalidade entre meios e fins.

Em todos esses casos, de extraordinária importância, são os postulados normativos de aplicação que, por excelência, são utilizados no âmbito da jurisdição constitucional para efeitos de implementação do princípio substancial do devido processo legal.

Constituem aquilo que Ávila define como postulados específicos ou condicionais. Isso porque exigem o relacionamento entre elementos específicos como critérios que devem orientar a relação entre eles. Seriam eles também postulados normativos formais, todavia, relacionados a elementos com espécies determinadas.

Resumindo, alguns postulados aplicar-se-iam sem a necessidade de se pressupor a existência de critérios e elementos específicos. É o que acontece com a ponderação de bens, na qual se institui um método destinado à atribuição de um peso a elementos que se entrelaçam sem, contudo, fazer referência a pontos de vista materiais. Igualmente no caso de aplicação do postulado da concordância prática, exigir-se-ia a realização ao máximo de valores que necessariamente se imbricam. Ou ainda no caso do postulado da proibição de excesso, por meio do qual se veda a aplicação de uma norma jurídica que restrinja de tal forma um direito fundamental que acaba por lhe subtrair um mínimo de eficácia.

De outro lado, há aqueles postulados cuja aplicabilidade depende de determinadas condições. Como acabamos de demonstrar, seria o caso do postulado da igualdade, que deve estruturar a aplicação do direito quando existe uma relação jurídica entre dois sujeitos em função de certos elementos (critério de diferenciação e finalidade de distinção) e da relação entre eles (congruência do critério em razão do fim).

Em nossa opinião, o conceito de postulados normativos de aplicação, na estrutura e grau de detalhamento fornecidos por essa doutrina contemporânea se constitui em importantíssima contribuição teórica para o aperfeiçoamento do mecanismo de aplicação e controle de normas e outros atos estatais instituídos como decorrentes do desenvolvimento e concretização de princípios constitucionais. Ao mesmo tempo em que

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orientam e estruturam a sua aplicação, permitem um controle mais técnico e isento — ou ao menos intersubjetivamente controlável — da sua apreciação.

Possibilitam assim a superação de um modus operandi marcado por certo voluntarismo e arbitrariedade no uso dos conceitos que, não obstante o manejo já consagrado pela jurisprudência e doutrina, ainda não haviam logrado obter o grau de clareza e previsibilidade jurídica de que tanto necessitamos. Pensamos que sua aplicação na avaliação de procedimentos de licitação, quando colocadas sob o crivo do devido processo legal substancial, pode contribuir para um melhor equacionamento dos litígios que deles se originem.

4 As peculiaridades do regramento jurídico de Direito Público e os parâmetros constitucionais do procedimento licitatório

Normas de Direito Público são as que tratam da organização do Estado brasileiro na sua relação com os indivíduos (servidores, pessoas físicas e jurídicas), além da relação deste para com outros Estados. A especificidade dessas normas está no seu valor social diferenciado, conferido em função da necessidade de imposição de institutos destinados à persecução e realização do bem comum, de sorte que são os indivíduos coletivamente considerados o bem maior a ser tutelado.

Cabe a essas normas estabelecer mecanismos capazes de garantir o cumprimento dos direitos Constitucionais, por meio da submissão da Administração aos parâmetros norteadores de um Estado Democrático de Direito. Objetivam, assim, estabelecer uma rede de proteção, cerceando formas autoritárias de exercício do poder. Dois critérios são postos por esse regramento: o do sujeito e o do interesse.

Assim, o Direito Público é o que tem por sujeito o Estado. E ainda o que tutela uma classe de interesses de natureza diferenciada, sendo que a noção de interesse público deve ser extraída do conjunto do ordenamento, ou seja, da forma como determinados bens são tratados, segundo um interesse juridicamente distinto, excepcional, que os submete a um regime próprio quanto às obrigações, sanções, formas de contratação e responsabilidade etc.

É preciso lembrar também que o Estado pauta-se por fins mediatos e imediatos. Os mediatos (fins públicos) são aqueles que legitimam sua própria existência. Por isso detêm caráter de permanência, estando expressos nos princípios e objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil. Já os imediatos, que definem o interesse público em sentido estrito, ligam-se às necessidades mais prementes, definidas e objetivadas por meio do exercício da função política, seja pela via da escolha eleitoral, seja pela atuação dos Poderes na implantação de seus programas.29

29 Por meio dos representantes eleitos, que se concretizam em leis ou em atos de governo em sentido estrito. Veja-se, por exemplo, art. 48 c/c art. 59, e art. 84, V, e 84, XXIII, da CF 1988.

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O que se tem, portanto, é que o interesse público inexiste fora do Estado Democrático

de Direito e se constitui como conceito indeterminado, abstrato e variável. Assim, não é

a Administração quem define o que é interesse público, mas este é formal e previamente

estipulado, quer pela aplicação de normas constitucionais, quer pela edição de leis

ou atos de governo em sentido estrito, pelos órgãos políticos competentes e na forma

constitucionalmente prevista.

Da constatação de que há um interesse público que não se confunde com a somatória dos

interesses individuais, mas antes, se identifica com esses, sendo a expressão de todo o corpo

social, surge o primeiro traço distintivo do regime jurídico-administrativo, que é a supremacia

sobre o interesse privado, a partir da qual o Estado assume posição privilegiada, que se

traduz em um poder-dever de zelar pela persecução e proteção do interesse, por meio da

instrumentação de seus órgãos, o que se traduz por privilégios e prerrogativas atribuídos por

lei à Administração.30

Da conjugação dos privilégios e prerrogativas, como expressão da supremacia do interesse

público, resulta a exigibilidade dos atos administrativos e a autotutela, que representa a

possibilidade de revogação dos próprios atos por manifestação unilateral, bem como decretação

de nulidade, quando viciados.

Mas o Estado não está apenas em posição privilegiada, mas também subordinada, já que

o segundo traço do regime jurídico-administrativo consiste na indisponibilidade quanto à

proteção e promoção do interesse público. É que, sendo esses, próprios da coletividade,

são insuscetíveis de apropriação pessoal, afastados da esfera de livre disposição da vontade

do administrador — estabelecidos como obrigação da função administrativa, nos termos da

finalidade disposta pelo ordenamento.

A supremacia do interesse público e sua indisponibilidade constituem peculiaridades

do regime jurídico de direito público próprias do regramento constitucional, sendo

parâmetros para discricionariedade. Submetem-se todas as pessoas de direito público

de capacidade política, bem como as entidades da administração indireta, à obediência

aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência e da

licitação pública.

A licitação é um procedimento administrativo destinado a selecionar a proposta mais vantajosa

como expressão da realização desses princípios. Não se aceitam derrogações, salvo as

autorizadas, a exemplo da dispensa e inexigibilidade.

30 Por privilégios entende-se, por exemplo, o benefício de prazos processuais mais longos, além da presunção de veracidade e legitimidade dos atos administrativos. Por prerrogativas, que o Poder Público se encontra em posição autoridade relativamente aos particulares, o que permite a imposição de obrigações por ato unilateral, ou ainda, o direito de modificar, igualmente, relações já estabelecidas.

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Assim, o administrador está, a despeito da discricionariedade, vinculado a essa moldura, da publicação do edital à conclusão do contrato, nos desdobramentos do procedimento, de modo que, no âmbito de um Estado Democrático de Direito (dado o princípio da supremacia da Constituição), todo seu desenvolvimento deve respeitar esses postulados sob pena de invalidade.

A ampla margem de ação conferida à Administração em face das demandas e imperativos colocados por uma sociedade cada vez mais complexa, na qual se assiste à transição de um paradigma produtivo industrial para outro ora definido como pós-industrial,31 requer a contrapartida de uma ampla processualização dos mecanismos referentes à tomada de decisões. Segundo autores como Jürgen Habermas,32 o próprio fundamento de legitimidade dessa concepção de Estado prende-se à estrita observância dos procedimentos, por meio dos quais se limita a discricionariedade e, eventualmente, a arbitrariedade dos agentes.

Este é o contexto jurídico-normativo no interior do qual a CF/8833 impõe a necessidade de o legislador ordinário regular de forma genérica o processo administrativo (como o fez com a Lei n. 9.784/99, e Lei n. 10.177/9834) e de modo específico, certos procedimentos dotados de maior singularidade.

Compreendê-lo no interior da ordem jurídico-estatal contemporânea, bem como as questões de natureza constitucional envolvidas, é determinante para uma adequada tutela dos direitos e garantias fundamentais estabelecidos no texto constitucional.

5 Aspectos polêmicos da Lei n. 8.666/93: art. 87

A Lei n. 8.666/93, após tramitar no Congresso por praticamente dois anos, foi promulgada em 1993, para regulamentar o inciso XXI do art. 37 da CF.

O cenário que a viabilizou foi, de um lado, o crescimento considerável da colaboração entre o Estado e a iniciativa privada, operado a partir da implantação de um modelo de redução do aparato estatal, sobretudo, no início dos anos 90. De outro, a necessidade política de efetivação das garantias constitucionais na gestão da coisa pública.

As normas nela contidas representam, assim, o resultado de uma evolução histórica e o diploma contém regras e princípios, amoldados ao sistema Constitucional.

31 CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 2005.

32 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia — entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

33 A CF/88 estabeleceu parâmetros gerais que caracterizam as peculiaridades do regime jurídico de direito público, tema especialmente afeto ao tema da licitação. Disciplinou questões referentes à competência para legislar (art. 22, XXVII), o regime geral para as fundações e autarquias (art. 37, XXI) e estabeleceu a necessidade de se instituir um regime específico para as empresas públicas, sociedades de economia mista e subsidiárias (art. 173, III).

34 No âmbito do Estado de São Paulo.

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Nessa legislação: a) ampliaram-se as responsabilizações pela inclusão de sanções de natureza penal; b) incluiu-se a previsão da participação popular nos procedimentos; c) algumas modalidades de licitação adquiriram maior complexidade; d) passou-se a privilegiar critérios de menor preço e redução no tempo de duração dos contratos, com vistas a obter-se uma maior eficiência; e) reduziu-se a possibilidade de contratação pela melhor técnica; f) especificaram-se regras de publicidade.

Todos, mecanismos que corresponderam a um aumento no grau de formalismo e no volume dos processos, com a consequente redução do espaço de discricionariedade.

A doutrina crítica argumentou que a aplicação da lei acabaria por gerar maiores custos para a máquina estatal, engessando o administrador na tomada de decisões, fato que comprometeria a eficiência na utilização dos recursos.

Contudo, com o foco voltado para a realização de outros princípios fundamentais (igualdade, publicidade, moralidade e dever de probidade), há muitos que entendem que, ao menos em tese, a lei possibilitou uma superação da tradição (de obtenção de serviços por meio de instrumentos jurídicos autoritários), promovendo-se um avanço em termos de efetivação do Estado Democrático de Direito.

Por certo que isto ocorreu. Mas, até que ponto e de que maneira a discricionariedade foi reduzida, adequando-se aos princípios constitucionais, especialmente os da isonomia, da proposta mais vantajosa e da eficiência? Em que medida o procedimento garante a indisponibilidade do interesse público?

O art. 87 se coloca como um ponto importante da questão porque, tal como hoje se encontra redigido,35 permite que o administrador ao seu juízo de conveniência e oportunidade, decida entre a aplicação das penalidades de suspensão ou declaração de inidoneidade, por exemplo. Isso porque não há norma que tipifique as condutas que seriam afetas à aplicação de cada uma dessas sanções.

Poderia se argumentar que a lei não necessitaria — ou não poderia — exaurir a previsão do tipo e dos pressupostos da sanção e que seria possível uma mera instituição da ilicitude e da sanção

35 “Art. 87. Pela inexecução total ou parcial do contrato a Administração poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao contratado as seguintes sanções: I — advertência; II — multa, na forma prevista no instrumento convocatório ou no contrato; III — suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, por prazo não superior a 2 (dois) anos; IV — declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública enquanto perdurarem os motivos determinantes da punição ou até que seja promovida a reabilitação perante a própria autoridade que aplicou a penalidade, que será concedida sempre que o contratado ressarcir a Administração pelos prejuízos resultantes e após decorrido o prazo da sanção aplicada com base no inciso anterior.

§ 1o Se a multa aplicada for superior ao valor da garantia prestada, além da perda desta, responderá o contratado pela sua diferença, que será descontada dos pagamentos eventualmente devidos pela Administração ou cobrada judicialmente.

§ 2o As sanções previstas nos incisos I, III e IV deste artigo poderão ser aplicadas juntamente com a do inciso II, facultada a defesa prévia do interessado, no respectivo processo, no prazo de 5 (cinco) dias úteis.

§ 3o A sanção estabelecida no inciso IV deste artigo é de competência exclusiva do Ministro de Estado, do Secretário Estadual ou Municipal, conforme o caso, facultada a defesa do interessado no respectivo processo, no prazo de 10 (dez) dias da abertura de vista, podendo a reabilitação ser requerida após 2 (dois) anos de sua aplicação”.

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em termos genéricos. Assim, o administrador, a partir dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, como também no da culpabilidade, pautado, sobretudo, pela impessoalidade e sem desviar a atenção do interesse público teria amplas condições de editar o ato, segundo a gravidade e reprovabilidade da conduta, com mínimas possibilidades de cometer injustiças, que seriam apenas residuais, cabendo ao Judiciário corrigir os desvios.

Para Marçal Justen Filho, o artigo afigura-se inconstitucional36 e incompatível com a ordem jurídica, não sendo cabível e tampouco aceitável que o administrador possa dispor da faculdade de escolher, no caso concreto, qual a sanção cabível.37

E os dados colhidos da realidade de nossa administração — ao menos do Estado de São Paulo — demonstram que essa instituição (da ilicitude/sanção) em termos genéricos não implicou nem a superação da tradição (de obtenção de serviços por meio de instrumentos jurídicos autoritários), nem a redução do espaço de discricionariedade do administrador nos casos de aplicação de sanções aos prestadores/fornecedores de obras e serviços.

Embora a doutrina nos forneça instrumentos para tanto, pela manipulação de certos princípios, em especial, da isonomia, da razoabilidade e proporcionalidade, na prática, os mesmos não são aplicados, ainda que os atos administrativos sejam motivados e, portanto, se afigurem formalmente perfeitos.

É o que se pode ver dos dados extraídos da relação de apenados, publicada pelo Tribunal de Contas do Estado de São Paulo.

A tabela a seguir apresenta o percentual de penalidades impostas aos prestadores/fornecedores (de obras e serviços), em outubro de 2010, pelos distintos órgãos de administração pública do Estado de São Paulo.

Veja que a comparação entre os mesmos demonstra que não há qualquer equivalência na aplicação das penalidades de “suspensão do direito de licitar” (inciso III do art. 87) e de “declaração de inidoneidade” (inciso IV do art. 87). Assim é que as Secretarias e Serviços de Saúde e Educação, a Fundação para o Desenvolvimento da Educação (FDE), as penitenciárias e o Ministério Público (MP), simplesmente não aplicam a declaração de inidoneidade.

Por outro lado, há órgãos, como a Unicamp38 ou o TJSP,39 que praticamente só se utilizam de tal espécie.

36 Por violação aos incisos XXXIX e XLVI do art. 5º da Constituição Federal.

37 Para o autor, a solução consistiria em exigir que, por meio de ato regulamentar ou no corpo do próprio edital, fossem estabelecidos pressupostos básicos delimitadores do sancionamento, sem o que se torna impossível a aplicação de qualquer das sanções previstas no artigo.

38 Universidade Estadual de Campinas.

39 Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

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Percentual de aplicação de sanções por tipo de penalidade (art. 87, Lei n. 8.666/93) e por órgãos da Administração — São Paulo.

Art. 87, III(suspensão)

Art. 87, IV(declaração de inidoneidade)

Art. 7º, Lei n. 10.520/02* %

Unicamp 22,5 77,5 —

100,0

Municípios 69,2 29,9 0,9Depto. Água/esgoto 88,0 8,0 4,0FDE40 100,0 — —Serviços de saúde 100,0 — —Serv. transmissão de energia 85,7 — 14,3Penitenciária 100,0 — —TJSP 36,4 63,6 —Ministério Público 100,0 — —Cia. Metropolitana 100,0 — —Polícia Civil e Militar 80,0 20,0 —Outros 73,3 26,7 —

Considerando tratar-se basicamente do mesmo universo de fornecedores, era de se esperar certa uniformidade e não há como deixar de constatar, em contrapartida, que o administrador, ao menos no Estado de São Paulo, em geral, ignora haver gradação na aplicação dessas penalidades. Ou pior, por muitas vezes usa sua competência discricionária para escolher, segundo critérios subjetivos, quem pode ou não lhe prestar colaboração.40

Inclusive, como é o caso da Unicamp, em parecer lavrado pela Procuradoria, quando instada a franquear vista de processos licitatórios com declaração incidental de inidoneidade de fornecedor, a fim de se verificar a motivação do ato sancionatório, assim se manifesta:

em que pese a estrita finalidade acadêmica para obtenção de vistas dos autos dos processos sancionatórios, o fato é que a Universidade tem o dever de preservar os direitos dos fornecedores penalizados e mantendo em sigilo as informações, fatos e atos que ensejaram a penalidade. Assim sendo, considerando a necessidade de preservação de direitos individuais e do interesse público, não há possibilidade de atender o que foi pleiteado. É o parecer, sub censura.

Veja que nessa fundamentação, paradoxalmente, o verdadeiro interesse público de fiscalização da atuação da administração (pela verificação da motivação) por parte do administrado ou até mesmo para que se conheça de fato como se dá a atuação cotidiana da administração, cede ao suposto interesse público de preservar a intimidade de pessoas jurídicas (prestadoras de serviços ou fornecedora de obras).

E não se está aqui a exigir que todos os órgãos interpretem a lei exatamente da mesma maneira, ajustando milimetricamente a aplicação das sanções previstas a um universo predelimitado de condutas cuja previsão o legislador não fez constar. Mas não se pode ignorar, sobretudo levando-se em consideração a natureza patrimonialista que marcou a formação e a evolução do Estado brasileiro,41 que a aplicação indiscriminada de sanções ao talante do administrador de plantão pode dar azo a todo o tipo de perseguições e favorecimentos em contrariedade aos princípios da impessoalidade, moralidade e eficiência.

40 Fundação para o Desenvolvimento da Educação.

41 FAORO, Raymundo. Os donos do poder — a formação do patronato político brasileiro. Rio de Janeiro: Globo, 1984.

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6 Fundamentação substancial e a adoção da teoria da redução da discricionariedade a zero

A situação tende a se tornar ainda mais embaraçosa na medida em que o Poder Judiciário, quando provocado, demonstra ainda forte tendência a renunciar à prática do controle da discricionariedade no âmbito do devido processo legal substancial. Manifesta-se muitas vezes de forma rasa quanto à observância da legalidade estrita, e afasta a possibilidade de adentrar no mérito da decisão.

Ora, ocorre que nem o administrador pode continuar aplicando sanções de conteúdo ablativo, típicas do chamado Direito Administrativo Repressivo ou Sancionador, a cujos conteúdos a doutrina majoritária42 vem exigindo o respeito aos princípios fundamentais do Direito Penal (sobretudo, legalidade, tipicidade estrita e culpabilidade), nem o Judiciário pode continuar ignorando o importante referencial do direito constitucional e administrativo contemporâneo de controle da discricionariedade no âmbito de um devido processo legal substantivo.

Nestes termos, apontamos uma solução possível dentro da técnica de controle da constitucionalidade pela interpretação conforme a Constituição.

Por esse meio, o Tribunal Constitucional limita as possibilidades interpretativas disponíveis aos aplicadores do direito, de forma a excluir as interpretações desconformes com o sistema constitucional.

Em nossa opinião, a interpretação conforme poderia ser utilizada, exigindo-se a observância estrita do princípio da fundamentação em todos os atos administrativos praticados no uso de competências discricionárias. Tal medida seria complementada pela adoção da chamada teoria da discricionariedade reduzida à zero, formulada no âmbito da doutrina alemã.

Não estamos a advogar apenas a obrigatoriedade da utilização por todos os poderes estatais do dever de fundamentar decisões pautadas em competências discricionárias.

O que de fato propomos é a adoção de uma concepção peculiar de fundamentação, conhecida como teoria da fundamentação substancial dos atos discricionários, que se dá a partir de uma distinção entre fundamentação meramente formal e fundamentação substancial.

Do dever de motivação expressa previsto genericamente não é possível esclarecer qual a extensão e profundidade dessa motivação. Discute-se então se toda fundamentação expressa pode ser considerada como suficiente do ponto de vista do conteúdo.

A questão, a saber, é se nos atos discricionários (que permitem a adoção de mais uma decisão perante o caso concreto), a motivação estritamente formal seria suficiente.

42 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. São Paulo: Dialética, 2005, p. 615.

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Respondê-la conduziria à consequência prática da possibilidade do exame do mérito (via razoabilidade e proporcionalidade), especialmente pelo Poder Judiciário (mas também pela própria administração, por via do via recurso hierárquico).

Conforme mencionado, tem sido característica da jurisprudência brasileira o afastamento do exame do mérito desses atos. Na prática, significa dizer que sua motivação é meramente formal, bastando à Administração apontar os dispositivos legais que lhe conferem a competência discricionária.

No entanto, se reconhecemos que a prática desses atos envolve problemas de motivação substancial (tese acima descrita, em conexão com os postulados normativos aplicativos da razoabilidade e/ou proporcionalidade), então a simples referência a dispositivos legais é insuficiente e, por isso, inválida.

Válida seria somente a motivação com descrição expressa (escrita) das razões da adoção de uma daquelas tantas consequências jurídicas possíveis.

Propõe-se aqui uma interpretação sistemática e teleológica do princípio da motivação com os princípios da razoabilidade e/ou proporcionalidade.

Tal fundamentação substancial propiciaria a elaboração de um mecanismo mais sofisticado de controle das decisões administrativas fundadas em competências discricionárias, e teria uma aplicação especialmente bem-vinda, em atos de natureza ablativa e penal.

Pela motivação substancial, o administrador estaria obrigado a tecer considerações mais profundas, não apenas acerca de questões ligadas à conveniência e oportunidade, mas à criação de parâmetros mais estáveis de orientação de suas decisões para casos semelhantes — constituindo-se assim critérios mais seguros para a orientação dos administrados que intentam contratar com a Administração.

Complementando o procedimento (fundamentação substancial), poderíamos aplicar a chamada teoria da discricionariedade reduzida a zero.

Trata-se de criação doutrinária e jurisprudencial alemã — mais recentemente recepcionada pela jurisprudência do Tribunal da União Europeia43 — destinada a solver o problema da adoção de padrões e critérios mínimos para o uso da discricionariedade.

No âmbito do nosso sistema constitucional, a adoção da teoria da redução da discricionariedade a zero teria por fundamento básico a aplicação do princípio da igualdade (no caso brasileiro: impessoalidade como igualdade, art. 37, caput, CF/88).

43 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Juridicidade, pluralidade normativa, democracia e controle social — reflexões sobre alguns rumos do Direito Público neste século. In: Fundamentos do Estado de Direito. ÁVILA, Humberto (Org.). São Paulo: Malheiros, 2005.

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Se toda a atividade administrativa está submetida ao princípio da igualdade, então disso não se exclui a discricionariedade administrativa.

Nestes termos, à medida que a Administração usa da discricionariedade, o princípio da igualdade exigirá que, nos próximos casos concretos assemelhados, a prática da discricionariedade seja também semelhante.

Isso significa que a discricionariedade vai sendo reduzida a zero porque a aplicação do princípio da igualdade vai vedar a discricionariedade dessemelhante frente a casos assemelhados.

A Administração Pública, à medida que desenvolve a práxis discricionária, produz sua própria vinculação a essa. A atividade discricionária se transformará pouco a pouco — por via da aplicação do princípio da igualdade — em atividade vinculada.

Por meio de um procedimento no qual se observem tais postulados, cremos ser possível uma solução mais adequada aos problemas graves que hoje envolvem a aplicação das sanções de suspensão e declaração de inidoneidade.

Parece-nos, então, que a solução advinda pela interpretação conforme a Constituição, realizada pelo STF, por meio da qual se vincula a aplicação dos dispositivos já referidos à técnica da fundamentação substancial e da redução da discricionariedade a zero poderiam ser até mais satisfatórias do que a mera tipificação estrita de condutas por manifestação legislativa — visto que essa não poderia ser nunca exaustiva, limitando-se a exemplificar algumas condutas, sem solução definitiva do problema.

A solução que propomos permite uma adaptação mais objetiva dos casos recorrentes em cada unidade administrativa, ao espírito do sistema constitucional, inspirado pelo princípio da igualdade e da impessoalidade.

Ademais, parece-nos também adequada aos postulados de nosso pacto federativo, evitando-se manifestação legislativa da União que, a pretexto de produzir normas gerais, acabe por produzir uma legislação dotada de grande especificidade, invadindo áreas de competência reservada a outros entes.

Pensamos, por fim, que o mecanismo poderá significar um avanço na consolidação de um novo patamar de moralidade e probidade administrativa no Brasil, reforçando os fundamentos do Estado Democrático de Direito e contribuindo para a consolidação de uma cultura de respeito à cidadania por parte da Administração Pública no âmbito de todos os poderes estatais.

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