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Discurso em Ser e Tempo. 1 Por Leandro Scarabelot 2 Apresentação: De acordo com o parágrafo 34 de Ser e Tempo, o discurso, juntamente com a disposição, a compreensão e a interpretação, é um dos modos originários de abertura do seraí para que possa chegar ao sentido do Ser. O presente texto tem como objetivo expor o conceito de discurso conforme o autor trabalhou em sua obra magna. No entanto, para explicitar um, também será necessário discorrer sobre os outros, pois, no que concerne à questão do Ser e dos modos de ser do seraí, todos encontramse entrelaçados. Além disto, fazse necessário uma explicação sobre o termo sernomundo, sobre o qual o autor estrutura os modos de ser do seraí. Assim, acreditamos direcionar melhor as investigações sobre a questão. _____________________________________________________________________ Em 1927, Martin Heidegger publica Sein und Zeit (Ser e Tempo). Nesta obra, o autor aborda a questão do Ser a partir do método fenomenológico em uma analítica existencial, constituindo assim uma nova ontologia. O método fenomenológico de Heidegger, assim como para Husserl, consiste em “voltar às coisas mesmas”. Desta forma, o filósofo procura efetuar uma análise existencial a partir daquilo que se mostra, isto é, dos fenômenos. Ao procurar investigálos, Heidegger procura desvelar o ser dos fenômenos, e assim distanciase da tradição efetuando uma cisão entre ente e Ser do ente (diferenciação ontológica). Ao separálos, ele procura pensar o Ser em sua radicalidade, isto é, ir ao fundo da questão e procurar determinar se há realmente um fundo. Desta forma, fazse necessário discernir entre o ente e o Ser do ente, tendo em 1 Trabalho final da disciplina de Antropologia Filosófica I ministrada em 2015/01. 2 Aluno da sétima fase da graduação em Letras Língua Portuguesa e Literaturas.

Discurso Em Ser e Tempo

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trabalho metafisica

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  • DiscursoemSereTempo. 1

    PorLeandroScarabelot 2

    Apresentao:

    De acordo com o pargrafo 34 de Ser e Tempo, o discurso, juntamente com a

    disposio, a compreenso e a interpretao, um dos modos originrios de abertura

    do sera para que possa chegar ao sentido do Ser. O presente texto tem como objetivo

    expor o conceito de discurso conforme o autor trabalhou em sua obra magna. No

    entanto, para explicitar um, tambm ser necessrio discorrer sobre os outros, pois, no

    que concerne questo do Ser e dos modos de ser do sera, todos encontramse

    entrelaados. Alm disto, fazse necessrio uma explicao sobre o termo

    sernomundo, sobre o qual o autor estrutura os modos de ser do sera. Assim,

    acreditamosdirecionarmelhorasinvestigaessobreaquesto.

    _____________________________________________________________________

    Em 1927, Martin Heidegger publica Sein und Zeit (Ser e Tempo). Nesta obra, o

    autor aborda a questo do Ser a partir do mtodo fenomenolgico em uma analtica

    existencial, constituindo assim uma nova ontologia. O mtodo fenomenolgico de

    Heidegger, assim como para Husserl, consiste em voltar s coisas mesmas. Desta

    forma, o filsofo procura efetuar uma anlise existencial a partir daquilo que se mostra,

    isto , dos fenmenos. Ao procurar investiglos, Heidegger procura desvelar o ser dos

    fenmenos, e assim distanciase da tradio efetuando uma ciso entre ente e Ser do

    ente (diferenciao ontolgica). Ao separlos, ele procura pensar o Ser em sua

    radicalidade, isto , ir ao fundo da questo e procurar determinar se h realmente um

    fundo. Desta forma, fazse necessrio discernir entre o ente e o Ser do ente, tendo em

    1TrabalhofinaldadisciplinadeAntropologiaFilosficaIministradaem2015/01.2AlunodastimafasedagraduaoemLetrasLnguaPortuguesaeLiteraturas.

  • vista que o Ser dos entes no em si mesmo outro ente. Afinal, o que o ente e o 3

    queoSerdoente?Oautorresponde:Chamamos de ente muitas coisas e em sentidos diversos. Ente tudo de que falamos, tudo que entendemos, com que nos comportamos dessa ou daquela maneira, ente tambm o que e como ns mesmos somos. Ser est naquilo que e como , na realidade, no ser simplesmente dado (Vorhandenheit), no teor e recurso, no valor e validade, na presena , no 4

    h. 5

    Prosseguindo em suas indagaes, o filsofo questiona sobre qual o ente que

    em seu prprio ser (em sua existncia) tem a possibilidade de indagar sobre o sentido

    do Ser, isto , de tornar transparente o ente que questiona o ser em seu prprio ser.

    Dentre todos os entes, o nico que possui tanto a possibilidade de perguntar quanto a

    possibilidade de responder sobre o sentido do Ser este ser que ns mesmos somos.

    Contudo, para no cair em uma abstrao sobre a ideia de homem ou em uma

    metafsica subjetiva, o autor procura estabelecer um termo para poder melhor estruturar

    suaanliseexistencial,esteoDasein,oucomovamosnosreferirdoravante,osera.

    Conforme Heidegger explica, o sera possui um primado nticoontolgico.

    Primado ntico porque o sera no apenas um ente que ocorre entre os outros entes.

    Pelo contrrio, diz o autor, do ponto de vista ntico, ele se distingue pelo privilgio de,

    em seu ser, isto , sendo, estar em jogo seu prprio ser. Ou seja, o sera possui um 6

    primado ntico porque de todos os entes, ele o nico que existe, isto , ele

    determinado sem seu ser pela sua existncia. nesse mbito que se diz que a pedra

    , mas no existe. E, com base nessa determinao pela existncia, o sera em si

    mesmo ontolgico. Pertence ao sera, de maneira igualmente originria, e enquanto

    constitutivo da compreenso da existncia, uma compreenso do ser de todos os entes

    que no possuem o modo de ser do sera. O sera tem, por conseguinte, um primado

    que a condio nticoontolgica da possibilidade de todas as ontologias. Desse

    3SereTempo.parteI,4edio.p.32.4 Embora tenhamos preferncia pelo termo sera para nos referir ao Dasein, a traduo utilizada traz o termocomopresenae,poristo,noefetuaremosmudanasnascitaes.(N.A)5SereTempo.parteI,4edio.p.32.6idem,p.38.

  • modo, o sera se mostra como o ente que, ontologicamente, deve ser o primeiro a ser

    interrogado,antesdequalqueroutro.

    Neste sentido, o sera possui a primazia ntica por ser ontolgico, isto , pelo

    fato de ele mesmo ser um ente que pode se questionar pelo sentido do Ser. Mas, por

    que o sera tem essa possibilidade de pensar sobre o ser? Pois o sera

    prontolgico, ou seja, em seu ser ele j possui uma abertura originria, ele tem uma

    prcompreenso do que o ser por meio de seu prprio existir. De certa forma, o que

    o autor quer dizer que o sera s pode perguntar pelo ser porque ele j compreende

    o sentido do Ser por conta de sua prpria existncia, pois de alguma forma o ser j se

    abriuparaele.

    O que essa abertura originria do sera? Essa abertura a prpria existncia

    do sera que sempre se d no mundo. O sera e sempre est no mundo. Para

    explicar este fato, Heidegger emprega a expresso sernomundo. Mas, preciso

    esclarecer. Este mundo no algo que est fora do sera. O sera no mundo, o

    sera tem mundo e o sera mundo. E s porque existe o sera que existe o

    mundo. Alm disto, s porque h Mundo que existe o ser simplesmente dado.

    Mundo entre aspas , aqui compreendido como um existencirio: o mundo dos

    entes, o mundo cotidiano do sera, o sera em sua cotidianidade mediana no 7

    mundo das ocupaes. O sera sempre est em situao, em seus modos de ser, e

    por isto nunca visto em si mesmo. O sera est sempre no Mundo (existencial) e no

    mundo (existencirio) das ocupaes cotidianas. Nesse sentido, s o sera tem

    mundo, pois o que faz que o Mundo seja mundo so os utenslios, ou melhor, a

    maneira como o sera lida com os utenslios no mundo circundante, estes utenslios

    so os seres intramundanos. Este ser (o sera) sempre um serem, no sentido de

    habitao. O sera habita o mundo. Por isto, em contraposio aos seres que no

    possuem o seu modo de ser, o sera um ser mundano. E, nesse mundo, o sera

    sempre est ocupado com alguma coisa, est sempre em atividade. O mundo que

    vem ao encontro do sera por meio do mundo circundante este mundo da

    7Tentaremosexplicitaroseraemsuacotidianidademedianaconformeodesenrolardestetrabalho.

  • ocupao, isto , o modo como o sera lida com os entes que no so dotados do seu

    modo de ser, ou seja, os utenslios. Os utenslios as coisas , conforme

    mencionamos, so os entes intramundanos. No mundo circundante da ocupao, o

    sera lida com esses utenslios em sua manualidade (Zuhand). Na manualidade, o

    mundo pode se abrir ou se fechar. Se no manuseio, um utenslio quebra, falta ou

    obstrui,omundoseabre.Senadaocorre,omundocontinuafechado.Porqu?

    Isto ocorre, pois o mundo se d no modo de lidar com o utenslio. Quando o

    manual causa a surpresa (quebra), a importunidade (falta) ou a impertinncia

    (obstruo), o manual perde a sua manualidade e configurase momentaneamente

    como ser simplesmente dado, ento, o mundo se desmundaniza. O ente se mostra

    como algo que est ali, diante do (Vorhanden) sera e que no pode ser manuseado.

    Alm disto, ao se configurar desta forma, a ocupao se mosta no com que e no para

    que se estava manuseando o manual. Desta forma, a nosurpresa, a

    noimportunidade e a noimpertinncia so as condies para que o mundo continue

    sendo mundo. sob este aspecto que, o conhecimento, para Heidegger, sempre uma

    forma de desmundanizao do mundo, uma objetificao e que, o no anunciarse

    domundoacondiodepossibilidadeparaqueomanualnocausesurpresa .8

    Desta forma, Heidegger explicita o ser do manual como algo que para. A

    coisa no mais vista como algo emsi, que tenha sua essncia por simesma, ela

    s pode ser enquanto manuseada por um sera na ocupao, isto , no manuseio. O

    modo como o sera lida com o instrumento sempre prtemtico. Prtemtico no

    sentido de que o manual s descobre o seu serpara no manuseio, ou seja, a forma

    como se manuseia o manual que abre o sentido de seu ser. Pensemos no exemplo do

    martelo, que o autor emprega para apresentar a manualidade. Um martelo algo para

    pregar. Ningum se pergunta, ao pegar um martelo na mo: O que o martelar? ou

    O que este martelo?, mas imediatamente assume a posio e comea o ofcio. E, da

    mesma forma, ningum martela sem ter uma finalidade. Um manual sempre

    manuseado de acordo com a circunviso da conjuntura da obra, o em virtude de pelo

    8Idem,p.118.

  • qual se estava ocupado. Isto quer dizer: s irei martelar se houver um fim para isto e

    sempre vou tentar martelar de acordo com o fim que me proponho em minha ocupao.

    A obra a totalidade remissiva dos utenslios. Essa totalidade remissiva referese ao

    fato de que quando vou utilizar um martelo, j tenho, de acordo com a circunviso

    conjuntural a totalidade de minha empresa, isto , toda a srie de utenslios necessrios

    para comear ou concluir a atividade, como o prego, a madeira, o lugar, etc. No

    entanto, se o martelo quebra enquanto prego, ou se faltam os pregos, ou se h uma

    obstruo na madeira, o mundo se desvela em seu ser simplesmente dado. No se

    est mais na ocupao do obrar, pois houve uma perturbao das atividades

    remissivas. Contudo, essa prpria perturbao das remisses que revela o utenslio

    nosersimplesmentedadodomanualequefazcomqueomundosed.

    Isso ocorre porque, quando h essa perturbao, a perspectiva conjuntural da

    ocupao se abre e se mostra no com que e no para que se estava ocupado. Com isto,

    o sera obrigado a ocuparse de outra forma, tanto na substituio daquilo que

    causou a perturbao quanto no deixar de lado a atividade. O sera sempre precisa,

    de alguma forma, voltar sua ocupao, mesmo que seja um no ocuparse de nada.

    Isto s pode ser dito, pois enquanto lida com o manual na ocupao, h sempre a

    possibilidade de tudo dar certo e tambm a de algo dar errado. Nesse sentido, quando

    algo d errado quando h perturbaes nas remisses o mundo se configura de tal

    forma que o manual perde a sua manualidade e fica diante do sera. O mundo se abriu

    em seu ser simplesmente dado. Ao observar o mundo em seu ser simplesmente dado,

    o sera pode (ou no) tematizar sobre o que v. Ele aponta o ente como algo que

    est simplesmente a, e nesse tematizar sobre o que se v consiste a

    desmundanizaodomundo.

    Mais acima apresentamos o serem como habitao. Isto no est errado. Mas,

    tambm no est completo. Serem um modo de sernomundo como tal. O serem

    dividese em ocupao e preocupao. Nos pargrafos anteriores, tentamos explicitar a

    estrutura do serem no modo de ser do sera como ocupao. preciso agora desvelar

    o serem como preocupao, o modo de ser em que o sera com os outros, ou

  • melhor, que os outros vm ao seu encontro a partir da cotidianidade, a saber, no

    impessoal. Para explicitar o impessoal, necessrio demonstrar a estrutura do sercom

    e do cosera. Estes termos so utilizados existencialmente, isto , como modos de ser

    do sera, pois, neste modo de ser, fundase o modo cotidiano de serprprio

    [sersimesmo] cuja explicao torna visvel o que se poderia chamar de sujeito da

    cotidianidade,asaber,oimpessoal. 9

    Isto ocorre porque o sera nunca est sozinho no mundo. Alm dos entes

    intramundanos que vem ao seu encontro no mundo circundante das ocupaes, h os

    seres dotados do carter do sera, os cosera (ou seracom), que tambm vem ao

    seu encontro. Os cosera podem vir ao seu encontro em diversas situaes. Como

    Heidegger demonstra, o sera pode estar com os outros junto ao trabalho, isto ,

    primordialmente, em seu sernomundo o sera pode estar sozinho o que seria um

    modo deficiente de sercom, pois somente num sercom e para um sercom que o

    outro pode faltar e tambm pode sentirse s mesmo no meio de outros sera, 10

    isto se d no modo da indiferena e da estranheza, o que ocorre porque, alm dele, os

    outrostambmpossuemmundo.Afinal,comoasseveraofilsofoSercom sempre uma determinao prpria da presena ser copresente caracteriza a presena de outros na medida em que, pelo mundo da presena, liberase a possibilidade para um sercom. A prpria presena s na medida em que possui a estrutura essencial do sercom,enquantocopresenaquevemaoencontrodosoutros. 11

    E onde se d esse encontro? No mundo, claro. Mas, tambm, no mundo

    circundante da ocupao, na cotidianidade, na esfera da publicidade. Essa esfera da

    publicidade o sempre estarmos ocupados em atividades, como no trabalho, ou

    quando lemos o jornal, pegamos o nibus, etc. Esse o sera cotidiano, que ns

    mesmos somos a todo momento. Esse sercom os outros, esse seremconjunto nas

    ocupaes da cotidianidade mediana mostra o sera em seu modo de ser impessoal.

    Mas, impessoal no um termo pejorativo, pois o sera em seus modos de ser

    sempre prprioimpessoal. Ele prprio, pois sempre meu, e impessoal porque

    9Idem,p.164165.10Idem,p.172.11Idem,p.172.

  • em sua ocupao o sera com os outros cosera, e neste modo de ser, o sera

    que tambm um cosera em sua base ontolgica se molda a partir do que os

    outros cosera esperam. Este modo de lidar com os outros seres que tem o mesmo

    modo de ser do sera, como mencionamos, chamase preocupao. E, assim como a

    ocupao possui a circunviso que a guia como modo de descoberta do manual, a

    preocupao est guiada pela considerao e pela tolerncia. Ambas podem

    acompanhar os modos deficientes e indiferentes correspondentes preocupao, at

    totaldesconsideraoetolerncia,queguiaaindiferena. 12

    A abertura desses modos de sercom os outros s ocorre porque o sera, em

    sua base ontolgica, j sercom. Esse ser com, de certa forma, sempre um ser

    para o outro lidando com as ocupaes cotidianas. Segundo o autor, nas ocupaes

    doquesefazcom,contraouafavordosoutrosisto,nomundocotidiano,sempre se cuida de uma diferena com os outros, seja apenas para nivelar as diferenas, seja para a presena, estando aqum dos outros, esforarse por chegar at eles, seja ainda para a presena, na precedncia sobre os outros querer subjuglos. Embora sem o perceber, a convivncia inquietada pelo cuidado em estabelecer esse intervalo. Em termos existenciais, ela possui o carter de espaamento. Quanto mais este modo de ser no causar surpresa para a prpria presena cotidiana,maispersistenteeoriginriasersuaaoeinfluncia. 13

    O que Heidegger afirma nesta passagem que, enquanto sercom, isto ,

    enquanto est na convivncia cotidiana, o ser a est sob tutela dos outros. Ele no

    o que ele prprio , mas o que os outros lhe tomam como sendo. E que esse arbtrio

    dos outros que dispe sobre as possibilidades cotidianas do ser do sera. Esse o

    modo de ser prprioimpessoal. Para sermos mais precisos, daremos a palavra ao

    filsofo, que explica que o prprio do sera cotidiano o prprioimpessoal. Este

    prprioimpessoal distinguese do si mesmo em sua propriedade, isto , do si mesmo

    apreendidocomoprprio.Destaforma,continuaHeideggerEnquanto o prprioimpessoal, cada presena se acha dispersa na impessoalidade, precisando ainda encontrar a si mesma. Essa disperso caracteriza o sujeito do modo de ser que conhecemos como a ocupao que se empenha no mundo que vem imediatamente ao encontro. O fato de a presena estar familiarizada consigo enquanto o prprioimpessoal

    12ibidem,p.174175.13ibidem,p.178.

  • significa, igualmente, que o impessoal prelineia a primeira interpretao do mundo e do sernomundo. O prprio impessoal, em funo do que a presena e est cotidianamente, articula o contexto referencial da significncia. O mundo da presena libera o ente que vem ao encontro numa totalidade conjuntural, familiar ao impessoal e nos limites estabelecidos pela medianidade. De incio, a presena de fato est no mundo comum, descoberto pela medianidade. De incio, eu no sou no sentido do propriamente si mesmo e sim os outros nos moldes do impessoal. 14

    Dando continuao explanao, o filsofo aborda a questo das aberturas

    existenciais do sera, a saber, o serem como tal ou a do sera. Em primeiro lugar,

    explica Heidegger, tentouse esclarecer o sernomundo em seus modos essenciais de

    serjuntoaomundo, de sercom e de serprprio. Mas, ainda necessrio demonstrar

    comoestesmodosdesernomundoestoconectados.Paraisto,oautorexplicaqueO que se constitui essencialmente pelo sernomundo sempre em si mesmo o pre [a] de sua presena. Segundo o significado corrente da palavra, o pre da presena remete ao aqui e l. O aqui de um euaqui sempre se compreende a partir de um l mo, no sentido de um ser que se distancia e se direciona numa ocupao. A espacialidade existencial da presena que lhe determina o lugar j est fundada no seu sernomundo. O l a determinao daquilo que vem ao encontro dentro do mundo. Aqui e l so apenas possveis no pre da presena, isto , quando se d um ente que, enquanto ser do pre da presena, rasgou espacialidade. Em seu ser mais prprio, este ente traz o carter de no fechamento. A expresso pre referese a essa abertura essencial. Atravs dela, esse ente (a presena) est junto ao presente domundoesefazpresenaparasimesmo. 15

    Em seguida, Heidegger assevera que falar de lumen naturale no homem no

    indicaria nada mais do que a estrutura ontolgicoexistencial do sera, ou seja, o fato

    de ele ser no molde do a de seu sera. Com isto, o autor explica que ser

    esclarecido significa estar em si mesmo iluminado como sernomundo, no atravs

    de outro ente, mas, de tal maneira que ele [o sera] mesmo seja a claridade. Ou seja, 16

    s porque o sera abertura que ele pode descobrir os entes que vem ao encontro e

    tambm a si mesmo. Desta forma, o filsofo abre caminho para a explicitao dessa

    abertura do a, isto , a constituio existencial do a do sera. Dentre os modos

    constitutivos dessa abertura do a, encontramse dois modos igualmente originrios, a

    14Ibidem,p.182.15Ibidem,p.186.16Ibidem,p.187.

  • saber, a disposio e a compreenso. E estas, de maneira igualmente originria, so

    determinadas pelo discurso. Assim, o autor estrutura sua explicao da constituio

    existencial do a em: o sera como disposio (29), do temor como modo da

    disposio (30) o sera como compreenso (31) a compreenso e a interpretao

    (32). a proposio como modo derivado da interpretao (33) e, sera, discurso e

    linguagem(34).Cabeagoraabordlos.

    No pargrafo 29, Heidegger explica que, o que indicado ontologicamente pelo

    termo disposio ou tonalidade afetiva conhecido onticamente como humor

    alm disto, o filsofo assevera que preciso observar este fenmeno como um

    existencial fundamental, e, por isto, efetua a delimitao de sua estrutura. A princpio, o

    serajestsemprenohumor,mesmoqueelenopercebaisso.Segundooautor,O fato de os humores poderem se deteriorar e transformar diz somente que a presena j est sempre de humor. Tambm a falta de humor contnua, regular e inspida, que no deve ser confundida com o mau humor, no um nada, pois nela, a prpria presena se torna enfadonha para si mesma. Nesse mau humor, o ser do pre mostrase como peso. Por que, no se sabe. E a presena no pode saber, visto que as possibilidades de abertura do conhecimento so restritas se comparadas com a abertura originria dos humores em que a presena se depara comseuserenquantopre. 17

    Mas, por que esta disposio, ou este humor, tem esse carter de abertura

    existencial do sera? Heidegger, como comentamos previamente, estrutura o sera

    como sernomundo. Como sernomundo, o sera tem o carter de estarlanado. Este

    estarlanado no mundo o autor chama de facticidade, isto . o fato de ser e de ter de

    ser no mundo, ou seja, o sera, enquanto sernomundo, est entregue

    responsabilidade de ser e de ter de ser, ou seja, sua prpria existncia. Entretanto,

    como mencionado na citao anterior, as possibilidades de abertura do conhecimento

    so restritas se comparadas com a abertura originria dos humores e isto ocorre

    porque em primeiro lugar, o sera no conhece, mas se abre em disposio. Neste

    abrirseemdisposio,conformeoautor,a presena j se colocou sempre diante de si mesma e j sempre se encontrou, no como percepo mas como um disporse no humor. Enquanto ente entregue responsabilidade de seu ser, ela tambm se

    17Ibidem,p.188.

  • entrega a responsabilidade de j se ter sempre encontrado encontro que no tanto fruto de uma procura direta mas de uma fuga. O humor no realiza uma abertura no sentido de observar o estar lanado e sim de enviarseedesviarse. 18

    Assim, o autor caracteriza o primeiro carter ontolgico da disposio como um

    abrir do sera em seu estarlanado, que na maior parte da vezes e antes de tudo se

    d no modo de um desvio que se esquiva. Alm disto, o autor explicita a primazia do

    humor sobre o saber e a vontade. Para isto, ele explica que, mesmo que o humor

    tenha de ser dominado pelo saber e pela vontade, neste modo de ser, o sera se abre

    para si mesmo antes de qualquer conhecimento e vontade e para alm de seus

    alcances de abertura. Ademais, nunca nos assenhoramos do humor sem humor, mas

    sempre a partir de um humor contrrio. Com isto, Heidegger busca explicitar que a 19

    disposio como humor est longe de ser uma simples constatao de um estado de

    alma, ou tampouco o carter de uma apreenso reflexiva, pois esta apreenso reflexiva

    sempre se d a partir do mundo mas o contrrio: s porque o a do sera j se abriu

    como disposio que se pode falar destas coisas. Segundo o autor, o mero humor

    abre o a do sera de modo mais originrio, embora tambm o feche de modo ainda

    mais obstinado do que qualquer no percepo. E isso que o filsofo explica sobre o

    mauhumor:Nele [no mauhumor], a presena se faz cega para si mesma, o mundo circundante da ocupao se vela, a circunviso da ocupao se desencaminha. A disposio to pouco trabalhada pela reflexo que faz com que a presena se precipite para o mundo da ocupaes numa dedicaoeabandonosirrefletidos.Ohumorseprecipita. 20

    Conforme assevera Heidegger, este precipitarse do humor no algo que

    venha de dentro e, tampouco, algo que venha de fora do sera. Ele cresce a partir de si

    mesmo como modo de sernomundo. Ou seja, a partir da disposio que o

    sernomundo se revela em sua totalidade e s assim torna possvel um direcionarse

    para Esse revelar o mundo em sua totalidade que possibilita o direcionamento do 21

    sera o que faz tambm com que os entes que vem ao seu encontro no mundo

    18Ibidem,p.189190.19Ibidem,p.190.20Ibidem,p.191.21Ibidem,p.191.

  • circundante possam toclo. Como isto ocorre? Descrevemos previamente que os seres

    intramundanos vem ao encontro do sera por meio da abertura feita atravs da

    ocupao. Na ocupao, h um deixar e fazer vir ao encontro, que , primariamente,

    circunviso. Na ocupao, dotada desta circunviso, aquilo que deixa e faz vir ao

    encontro tem o carter de ser atingido. E, conforme explicita o autor, do ponto de vista

    ontolgico,inutilidade, resistncia, ameaa so apenas possveis porque o serem como tal se acha determinado previamente em sua existncia, de modo a poder ser tocado dessa maneira pelo que vem ao encontro dentro do mundo. Esse ser tocado fundase na disposio, descobrindo o mundo como tal no sentido, por exemplo da ameaa. Apenas o que na disposio do temor, o no temor, pode descobrir o que est mo no mundocircundantecomoalgoameaador. 22

    Desta forma que Heidegger explica o porqu de no se poder falar de uma

    atividade psquica, ou que os sentidos so estimulados, pois para fazer isto preciso

    que o sera j se tenha aberto em disposio. Assim, na disposio, conforme o

    filsofo aponta, subsiste existencialmente um liame de abertura com o mundo, a partir

    do qual algo que toca pode vir ao encontro. Este liame de abertura aquilo que liga o 23

    sera ao mundo por meio da disposio, e com isto, d a possibilidade para que o

    sera se sinta ameaado pelo manual. Este estar ameaado que descoberto na

    disposio se d porque, em si, o sera possui esse modo de ser e tambm seu

    contrrio. por isto que, da mesma forma, possvel dizer que o sera s se sente

    ameaado por um ente intramundano, ou por um cosera, porque em seu modo de ser

    tambmestomododeserameaador.Almdisto,ofilsofoexplicitaqueA disposio no apenas abre a presena em seu estarlanado e dependncia do mundo j descoberto em seu ser, mas ela prpria o modo de ser existencial em que a presena permanentemente se abandona ao mundo e por ele se deixa tocar de maneira a se esquivar desimesma. 24

    Prosseguindo em sua anlise, Heidegger demonstra o temor como um modo da

    disposio numa relao com uma disposio fundamental do sera, a saber, a

    angstia. Para isto, o autor se vale de trs perspectivas: o que se teme, o temer e o

    22Ibidem,p.192.23Ibidem,p.192.24Ibidem,p.194.

  • pelo que se teme. Neste sentido, para o filsofo, o que se teme, o temvel, sempre

    um ente que vem ao encontro dentro do mundo e que possui o modo de ser do manual,

    ou do ser simplesmente dado ou ainda da copresena. No entanto, ele salienta que 25

    no se trata de se relatar onticamente o que pode se tornar temvel, mas de estruturar

    fenomenologicamente o que temvel em sua temeridade. Aquilo que temido pelo

    sera tem o carter de ameaa. Esta ameaa, por sua vez, se d pois aquilo que

    ameaa tem o modo conjuntural de dano. Este modo conjuntural de dano, sempre se

    mostra a partir de uma regio dada. Nesta regio dada, aquilo que era familiar se torna

    estranho. O estranhoameaador, por sua vez, espreita o sera. Ele est em todo

    lugar e em lugar algum. Ele se aproxima mas pode nunca chegar. O aproximarse

    daquilo que danoso, com sua possibilidade de nunca chegar, o que o caracteriza

    comoameaa.

    Contudo, assevera o filsofo, o prprio temer libera a ameaa que assim

    caracterizada se deixa e faz tocar a si mesma. Pois, como diz, no se constata

    primeiro um mal futuro (malum futurum) para a seguir temer. O temer tambm no

    constata primeiro aquilo que se aproxima mas, em sua temeridade, j o descobriu

    previamente. temendo que o temor pode ter claro para si o temvel, esclarecendoo.

    Portanto, s porque o sera teme que ele descobre aquilo que teme. Mas pelo que 26

    o ser a teme? O sera teme por si mesmo. Mas, ele tambm pode temer por suas

    propriedades (por aquilo que possui) e pelos outros. Como mencionado, tanto o

    manual quanto o ser simplesmente dado ou ainda o cosera podem se apresentar

    como ameaadores para o sera por se mostrarem danosos de alguma forma. Esta

    possibilidade de dano, mesmo que no seja inerente ao corpo do sera , sendo em

    alguma propriedade sua ou em outro sera, est intimamente ligada com o estar em

    jogo o seu prprio ser. Pois, uma vez que o sera, enquanto sernomundo, um ser

    em ocupaes junto a, e que, de incio e, na maior parte das vezes o sera s a

    partir daquilo com que se ocupa, quando algo apresenta a ameaa de dano, aquilo pelo

    que se teme o seu prprio ser, sua prpria existncia. Da mesma forma, preciso ter

    25Ibidem,p.195.26Ibidem,p.196.

  • em vista que como sernomundo, o sera tambm sercom. Por isto, quando se teme

    por outro sera, temese pelo seu prprio sercom que pode vir a ser suprimido e, desta

    forma, tambm o prprio ser do sera que est em jogo, pois caso venha a perder

    esteoutrosera,eleficaremummododebilitadodesercom.

    A seguir, no pargrafo 31, Heidegger vai abordar a questo do sera como

    compreenso, pois, assim como a disposio, ela tambm uma abertura originria da

    constituio desse ser. Alm disto, toda compreenso est sempre sintonizada com o

    humor, afinal, para que mundo possa se abrir em uma compreenso originria, o sera

    precisa estar humorado de determinada forma para que exista essa possibilidade.

    Desta forma, a compreenso, sendo um modo de ser fundamental do sera, no pode

    ser concebida como um simples conhecimento sobre as coisas, um esclarecimento,

    mascomoumaaberturaoriginriadaexistnciadosera.Poristo,afirmaofilsofo,Dizer que a presena existindo o seu pre significa, por um lado, que o mundo est presente, a sua presena o serem. Este e est igualmente presente como aquilo em funo de que a presena . Nesse em funo de, o sernomundo existente se abre como tal. Chamouse essa abertura de compreenso. No compreender dessa funo, abrese conjuntamente a significncia que nela se funda. A abertura da compreenso enquanto abertura de funo e significncia diz respeito, de maneira igualmente originria, a todo o sernomundo. Significncia a perspectiva em funo da qual o mundo se abre como tal. Dizer que funo e significncia se abrem na presena significa que a presena um ente que, como sernomundo, ele prprio est em jogo. 27

    Essa significncia, a qual Heidegger faz meno, a perspectiva em funo da

    qual o mundo se abre como tal em um lidar com os utenslios conforme as tonalidades

    afetivas (os humores), isto , enquanto sernomundo que se dispe em as suas

    ocupaes (e preocupaes), o sera sempre j se compreendeu a partir de sua

    abertura de mundo. Por isto, existencialmente falando, este compreender estruturase

    na chave de algo como algo . Desta forma, o filsofo interpreta 28

    fenomenologicamente a compreenso subsistindo como um poderser, pois em seu

    poderser, o sera se abre em suas possibilidades de lidar com o mundo em sua

    27Ibidem,p.198.28Tentaremosabordarmelhorestaquestomaisadianteaocomentar32.(N.doA.)

  • prpria existncia. No que o sera primeiro seja algo simplesmente dado e que

    ainda possui, de quebra, a possibilidade de poder ser alguma coisa, mas como

    sernomundo ele j em si mesmo a sua prpria possibilidade de ser. Desta forma,

    filsofoasseveraqueToda presena o que ela pode ser e o modo em que a sua possibilidade A possibilidade essencial da presena diz respeito aos modos caracterizados de ocupao com o mundo, de preocupao com os outros e, nisso tudo, possibilidade de ser para si mesma em funo desimesma. 29

    Alm disto, Heidegger tambm afirma que a possibilidade no significa um

    poderser solto no ar, pois, enquanto um ser essencialmente disposto, o sera j caiu

    em determinadas possibilidades e, enquanto o poderser que ele , j deixou passar

    tais possibilidades, doando continuamente a si mesmo as possibilidades de seu ser,

    assumindoas ou recusandoas. Nesse movimento de assumir ou recusar as suas 30

    possibilidades, o sera descobre que a sua possibilidade de ser est entregue sua

    prpria responsabilidade, isto , ele livre em suas escolhas. Por esta responsabilidade

    de assumir ou recusar as suas possibilidades, o sera descobre sua liberdade para o

    poderser mais prprio. Desta forma, como explica o filsofo, a compreenso, que

    esse poderser, nunca est ausente no sentido de algo que simplesmente ainda no foi

    dado mas que, na qualidade essencial de nunca ser simplesmente dado, junto com

    oserdosera,nosentidodeexistncia. 31

    Assim, o sera sempre j se compreendeu ou no compreendeu como sendo

    dessa ou daquela maneira. Isto , enquanto um ente que existe, e que enquanto existe

    est em jogo o seu prprio ser, o sera se lana existencialmente em suas

    possibilidades daquilo que podeser. Em suas possibilidades daquilo que podeser, o

    sera sempre sabe a quantas anda o seu poderser. Isto ocorre pois esse saber no

    viria primeiro de uma percepo imanente de si mesmo, mas porque ao ser do a do

    sera pertence, em sua essncia, a compreenso. E, conforme aponta o autor,

    somente porque o sera na compreenso de seu a que ele tem a possibilidade de se

    29Ibidem,p.199.30Ibidem,p.199.31Ibidem,p.199.

  • perder e de se desconhecer. Alm disto, o filsofo tambm aponta que, como abertura,

    a compreenso sempre alcana toda a constituio fundamental do sernomundo.

    Como poderser, o serem sempre um podersernomundo. Desta forma, a partir 32

    da abertura que se faz por meio da compreenso existencial, o mundo se mostra como

    possibilidade.

    Mas, pergunta Heidegger, por que a compreenso, em todas as dimenses

    essenciais do que nela se pode abrir, sempre conduz s possibilidades? Isto ocorre 33

    porque essas possibilidades que se abrem para o sera tm o carter de projeto. No

    entanto, estes projetos em que o sera est, no tm um sentido espacial, eles tem a

    ver com o fato do sera estarlanado nas possibilidades de seu poderser. Por isto, em

    sua condio de estarlanado, o sera se direciona para suas possibilidades no modo

    de ser do projeto. O projeto de que Heidegger fala a constituio ontolgico

    existencial do mbito de articulao para o poderser de fato e nada tem a ver com um

    possvel relacionamento frente a um plano previamente concebido, um planejar que o

    sera teria instalado em seu ser. Ao contrrio, diz Heidegger, como presena, ela j

    sempre se projetou e s na medida em que se projeta. Na medida em que , a

    presenajsecompreendeuesempresecompreenderapartirdepossibilidades. 34

    Desta forma, mesmo que o sera no tematize ou esteja esclarecido sobre os

    seus projetos, ele sempre se compreender a partir deles. Afinal, o sera s pode

    tematizar ou se esclarecer a respeito de suas possibilidades enquanto ser existente

    porque o mundo j se abriu atravs da disposio que compreende. Assim, enquanto

    projeto, a compreenso o modo de ser da presena em que a presena as suas

    possibilidadesenquantopossibilidades. Poristo,complementaHeidegger,35

    Com base no modo de ser que se constitui atravs do existencial do projeto, a presena sempre mais do que de fato, mesmo que se quisesse ou pudesse registrla como um ser simplesmente dado em seu teor ontolgico. No entanto, ela nunca mais do que de fato porque o poderser pertence essencialmente sua facticidade. Tambm a presena, enquanto possibilidade de ser, nunca menos, o que significa

    32Ibidem,p.200.33Ibidem,p.200.34Ibidem,p.201.35Ibidem,p.201.

  • dizer que aquilo que, em seu poderser, ela ainda no , ela existencialmente. 36

    Mas, como, a partir da compreenso que se projeta, o sera pode ser mais do

    que de fato e, tambm, nunca ser mais do que de fato? Ele sempre mais do que

    de fato, pois em seu projetar, a compreenso se abre nas possibilidades de

    destinao do sera. O sera se descobre em funo de alguma coisa e se projeta

    para essa possibilidade. No entanto, ele nunca mais do que de fato, pois em seu

    descobrirse em funo de alguma coisa no seu projetarse para essa possibilidade, o

    sera se descobre como ainda no. Alm disto, conforme mencionamos acima, o

    projeto sempre diz respeito a toda a abertura do sernomundo, isto , como poderser,

    o serem se abre como podersernomundo. Neste podersernomundo, a prpria

    compreenso prelineia suas possibilidades a partir do mundo que se abre, tanto no lidar

    comosmanuaisquantocomosseressimplesmentedadosoucomoutrossera.

    Com isto, a compreenso pode se lanar para as suas destinaes, isto , o

    sera pode existir como ele prprio. E brotando de seu prprio si mesmo como tal, a

    compreenso pode ser prpria ou imprpria. Imprprio nesse sentido, explica

    Heidegger, no significa que a presena rompa consigo mesma e s compreenda o

    mundo. Mundo pertence ao seu prprio ser como sernomundo. Isto , o sera, por 37

    meio da compreenso, sendo esta compreendida como um existencial, no

    compreende primeiro o mundo, para depois compreender a si mesma e depois aos

    outros. Enquanto abertura, o sera sempre se compreende a partir de seu serem como

    tal, ou seja, na circunviso da ocupao e na considerao da preocupao. Por isso,

    conforme explica o autor, a compreenso prpria e a imprpria podem ser autnticas

    ou inautnticas. A compreenso, enquanto poderser est inteiramente impregnada de

    possibilidade. No entanto, assevera Heidegger, o translado para uma dessas 38

    possibilidades fundamentais da compreenso no deixa de lado as outras. Pelo

    contrrio, diz ele, esse translado, sendo inerente compreenso, j uma modificao

    36Ibidem,p.201.37Ibidem,p.202.38Ibidem,p.202.

  • existencial do projeto como um todo, pois a compreenso sempre diz respeito

    aberturademundocomotal,isto,oseracomosernomundo.

    Alm disto, Heidegger tambm explica que, em seu carter existencial de

    projeto, a compreenso constitui o que ele chama de viso do sera. Esta viso no

    deve ser interpretada como uma viso ntica, a partir do olhar, observar. Ela deve

    ser compreendida existencialmente, pois essa viso que, junto com a abertura do a e

    de modo igualmente originrio, mostra o sera nos modos bsicos de seu ser, ou

    seja, na circunviso da ocupao, na considerao da preocupao e na viso do ser

    como tal em funo do qual o sera sempre como ele . A esta viso que mostra o

    sera em seus modos bsicos de ser, isto , que se refere primeira e totalmente sua

    existncia, Heidegger denomina transparncia (Durchsichtigkeit). Essa transparncia,

    explica o autor, designa um conhecimento de si. No entanto, explica o autor, este

    conhecimento no algo que venha a partir de um exame perceptivo, ou da inspeo

    desimesmocomoumponto,masde uma captao compreensiva de toda a abertura do sernomundo atravs dos momentos essenciais de sua constituio. O ente que existe tem a viso de si, somente na medida em que ele se faz, de modo igualmente originrio, transparente em seu ser junto ao mundo, em seu sercomosoutros,momentosconstitutivosdesuaexistncia. 39

    Assim, o sera s pode ter viso de si, pois j possui certa compreenso de

    mundo a partir de um afinarse com sua existncia, em seus modos bsicos de ser.

    Afinal, enquanto existenciais, a disposio e a compreenso caracterizam a abertura

    originria do sernomundo. E, conforme explica o filsofo, no modo de ser do humor, a

    presena v possibilidades a partir das quais ela . Na abertura projetiva destas

    possibilidades, ela j est sempre sintonizada com o humor. O projeto do poderser

    mais prprio est entregue ao fato de ser lanado no pre da presena. Isto quer 40

    dizer que, enquanto disposio e compreenso, o sera se situa em suas

    possibilidades existenciais a partir daquilo que ele mesmo j , ou seja, enquanto um

    ente que ele se projeta para as possibilidades daquilo que ele ainda no conforme a

    suadisposioafetiva.

    39Ibidem,p.202.40Ibidem,p.204.

  • Prosseguindo em sua anlise, no pargrafo 32, Heidegger vai abordar

    compreenso e interpretao. Conforme o autor explica, na compreenso, o sera vai

    projetar o seu ser para as suas possibilidades. Esse ser para possibilidades, constitutivo

    da compreenso, diz ele, um poderser que repercute sobre a presena as

    possibilidades enquanto aberturas. Alm disto, o prprio projetarse da compreenso 41

    possui a possibilidade prpria de se elaborar em formas, a isto, Heidegger chama de

    interpretao. Desta forma, a interpretao fundase na compreenso, e no o

    contrrio. Assim, diz o autor, interpretar no tomar conhecimento de que se

    compreendeu, mas elaborar as possibilidades projetadas na compreenso. Por isto, a 42

    interpretao uma apropriao daquilo que se compreende existencialmente, isto ,

    do poderser das possibilidades. E como, existencialmente falando, o sera em sua

    estrutura j um sercom, e em seu sercom ele tambm no mundo, a interpretao

    pode ser descrita como um domnio de habilidades pblicas. Afinal, como assevera o

    autor, a partir da significncia aberta na compreenso de mundo que o ser da ocupao com o manual se d a compreender, qualquer que seja a conjuntura que possa estabelecer com o que lhe vem ao encontro. A circunviso descobre, isto , o mundo j compreendido se interpreta. O que est mo se explicita na viso da compreenso. Todo preparar, acertar, colocar em condies, melhorar, completar, se realiza de tal modo que o manual dado na circunviso interpretado em relao aos outros em seu serpara e vem a ser ocupado, segundo essa interpretao recproca. O que se interpreta reciprocamente na circunviso de seu serpara como tal, ou seja, que se explicita na compreenso, possui a estruturadealgocomoalgo.

    Portanto, s porque o sera j sernomundo, como ocupao e

    preocupao, que ele pode se dispor com e compreender o mundo na forma da

    interpretao. Assim, quando o sera est em seu mundo da ocupao, a sua

    circunviso lhe pergunta: o que esse manual determinado? e a interpretao da

    circunviso responde: ele para. Por isto, s porque o sera se compreende e se

    dispe em seu estarlanado no mundo que ele se projeta para as suas possibilidades.

    41Ibidem,p.204.42Ibidem,p.204.

  • Neste projetarse, ele se apropria das possibilidades, isto , daquilo que podeser e,

    comisto,deixacomqueomundoseabra.Assim,HeideggerexplicaqueA indicao do paraqu no simplesmente a denominao de algo, mas o denominado compreendido como isto que se deve tomar como estando em questo. O que se abre na compreenso, o compreendido, sempre de tal modo acessvel que pode explicitarse em si mesmo como istooucomoaquilo. 43

    Desta forma, o como constitui a explicitao do compreendido e, assim,

    constitui a interpretao. No entanto, essa interpretao do como prpredicativa.

    Mas, o que se quer dizer com isto? Por prpredicativa indicase que a interpretao

    no precisa efetuar uma constatao (uma proposio) sobre aquilo que interpreta.

    Pois, no prprio lidar com o manual que a interpretao o revela como tal. A partir da

    interpretao que compreende, o manual revela no s o seu paraqu, mas tambm

    explicita a totalidade conjuntural daquilo que vem ao encontro. Voltando ao exemplo do

    martelo, podese dizer que s porque o sera lida com esse manual em sua

    ocupao, e esta sempre a partir de uma disposio e uma compreenso, que ele (o

    manual) pode ser interpretado prpredicativamente (ou prtematicamente) pelo sera.

    A forma como o sera vai determinar o uso desse martelo depende de sua disposio e

    compreenso de mundo, pois, o sera pode at saber como usar o martelo, isto ,

    como martelar, mas, dependendo de sua disposio e compreenso daquilo que

    podeser, ele pode usar o martelo para outro determinado fim, como outra coisa. No

    entanto, isto no faz com que o martelo se torne outra coisa, mas sim, que ele

    interpretado como outra coisa, suas possibilidades so apropriadas de maneira

    diferente. Por isto, toda interpretao, que s se d atravs da disposio e da

    compreenso, prpredicativa, pois, antes de tematizar sobre um ente, o sera j

    precisatertidoacesso(teraberto)suaestruturacomo.Poristo,explicaHeidegger,A articulao do que foi compreendido na aproximao interpretativa dos entes, na chave de algo como algo, antecede toda e qualquer proposio temtica a seu respeito. O como no ocorre pela primeira vez na proposio. Nela, ele apenas se pronuncia o que, no entanto, s possvelpelofatodejseoferecerparaserpronunciado. 44

    43Ibidem,p.205.44Ibidem,p.205206.

  • Assim, mesmo que o sera no articule uma proposio sobre o ente, isto ,

    mesmo que no tematize sobre o ente, isso no quer dizer que ele no disponha de

    uma interpretao compreensiva da estruracomo deste ente. Pois, no simples

    visualizar as coisas que o circundam em seus afazeres, o sera j traz consigo

    originariamente a estrutura da interpretao, afinal, quando lida com um utenslio, o

    sera no precisa discorrer sobre aquilo que vai manusear. Quando o sera abstrai

    sobre um ente, isto , quando ele o toma como simplesmente diante de si, ele o fixa

    como uma no compreenso. Desta forma, diz Heidegger, a apreenso livre da

    estruturacomo privase de qualquer viso meramente compreensiva. Derivase dela e

    no mais originria. Por isto, complementa o autor, o fato de o como no ser 45

    pronunciado onticamente no deve levar a desconsiderlo enquanto constituio

    existencial a priori da compreenso. Mas, como isto possvel? Isto s possvel 46

    porque tudo o que est a mo do sera s compreendido a partir de uma totalidade

    conjuntural, ou seja, a partir das relaes remissivas dos utenslios, o sera sempre

    interpretaopoderserdesuaspossibilidades.

    Heidegger tambm salienta que a interpretao sempre fundamentada numa

    posio prvia, numa viso prvia e numa concepo prvia. Isto , enquanto lida

    cotidianamente com aquilo que se abriu na circunviso da ocupao, o sera, em

    primeiro lugar, j interpreta o ente a partir de certa perspectiva conjuntural j

    apreendida, ele j parte de uma posio prvia. Esta posio prvia sempre guiada

    por uma viso prvia, que d o sentido (direo) pelo qual aquilo que compreendido

    ser interpretado. Isto , a viso prvia recorta aquilo que foi assumido na posio

    prvia, segundo uma possibilidade determinada de interpretao. A partir da posio

    prvia e da viso prvia que o sera pode articular aquilo que compreende como um

    conceito. No entanto, conforme explica Heidegger, como quer que seja, a interpretao

    sempre j se decidiu, definitiva ou provisoriamente, por uma determinada conceituao,

    poisestfundadanumaconcepoprvia. 47

    45Ibidem,p.20646Ibidem,p.20647Ibidem,p.207

  • Adiante, ainda abordando a questo da interpretao, Heidegger vai explicar o

    que o sentido. Esse sentido, porm, no provm de sentimentos (daquilo que se

    sente), tampouco seria um significado inerente s coisas. Sentido, neste caso, um

    existencial do sera. O sera, diz o filsofo, s tem sentido na medida em que a

    abertura do sernomundo pode ser preenchida por um ente que nela se pode

    descobrir. Isto , em suas ocupaes, o sera pode se projetar para suas 48

    possibilidades e, a partir da interpretao que compreende, descobrir o ente e seu Ser.

    Poristo,dizoautor,O conceito de sentido abrange o aparelhamento formal daquilo que pertence necessariamente ao que articulado pela interpretao que compreende. Sentido a perspectiva em funo da qual se estrutura o projeto pela posio prvia, viso prvia e concepo prvia. a partir delaquealgosetornacompreensvelcomoalgo. 49

    Desta forma, o sentido pode ser compreendido como uma direo que o sera

    toma para compreender aquilo que se projeta em suas possibilidade abertas pelo

    mundo. E por isso que Heidegger afirma que s o sera pode ser com sentido ou sem

    sentido. Pois, como mencionado, o sentido no uma propriedade colada sobre o ente

    que o sera possa descobrir, mas o prprio sera que doa o seu sentido para o

    ente. Sendo assim, s pode haver sentido se houver um sera para fundamentlo em

    seuser.

    Prosseguindo em sua investigao, no pargrafo 33, Heidegger aborda a

    proposio como modo derivado da interpretao. Conforme supramencionado, toda 50

    interpretao fundase na compreenso. O sentido, desta forma, aquilo que se

    articula como tal na interpretao e que, na compreenso, j se prelineou como

    possibilidade de ser articulado. Assim, diz Heidegger, na medida em que a proposio

    (o juzo) se funda na compreenso, representando uma forma derivada de exerccio de

    interpretao, ela tambm possui um sentido. A partir disto, o filsofo pretende 51

    efetuar trs movimentos: primeiro, demonstrar como, na proposio, a estruturacomo,

    48Ibidem,p.208.49Ibidem,p.208.50Emboraotermoenunciaopareamaisapropriado,nossaedioutilizaotermoproposio,poristomanteremosatraduooriginal.51Ibidem,p.211.

  • constitutiva de toda compreenso e interpretao, est suscetvel modificaes

    segundo, demonstrar como a proposio ocupa um lugar privilegiado na problemtica

    de uma ontologia fundamental, tendo em vista que, no princpio, o logos era o fio

    condutor de acesso ao ente propriamente dito e da determinao do ser dos entes e, 52

    terceiro,discutirseaproposioseriaolugarprprioeprimriodaverdade.

    Em seguida, Heidegger atribui trs significados proposio. Segundo o autor,

    estes significados so hauridos do fenmeno por ela designado, interrelacionados

    entre si e que, em sua unidade, delimitam a estrutura completa da proposio. No 53

    primeiro deles, a proposio articulada como demonstrao. Isto , ela deixa e faz

    ver o ente a partir dele mesmo e por si mesmo. Por isto, diz o filsofo, na proposio,

    o martelo pesado demais, o que se descobre viso no um sentido, mas um

    ente no modo de ser de sua manualidade. No segundo, a proposio articulada 54

    como predicao. Neste caso, propese ao sujeito um predicado e este predicado

    determina o sujeito. Na proposio sobre o martelo, o que se prope no um

    predicado que possa ser explicado por uma gramtica. Este predicado o prprio

    martelo, que ao se mostrar no modo de sua manualidade, configurouse como pesado

    demais. Isto , a circunviso agora o v como uma ferramenta inapropriada para o

    manuseio na ocupao e articula a proposio determinante. Esta proposio que

    determina restringe o contedo, se comparada com a primeira. Assim, toda

    predicao s o que como demonstrao, pois os integrantes da articulao

    predicativa, isto , sujeito e predicado, surgem numa demonstrao. A determinao,

    por si, no descobre o manual, mas como modo de demonstrao ela restringe a viso

    inicial quilo que se mostra como tal, neste caso, o martelo. No terceiro significado, o

    mais abrangente, a proposio articulada como comunicao, declarao. Enquanto

    comunicao,asseveraHeidegger,[...] a proposio est diretamente relacionada com as duas acepes anteriores. Ela tambm opera um deixar e fazer ver aquilo que se demonstra nas determinaes. O deixar e fazer ver comunica aos outros o ente demonstrado em sua determinao. Comunicase o ser para o que

    52Ibidem,p.211.53Ibidem,p.211.54Ibidem,p.212.

  • se demonstra na viso de sua comunho. Devese preservar esta comunho do ser como sernomundo, isto , o mundo em que e a partir do qual o que a se demonstra vem ao encontro. A necessidade de pronunciarse pertence proposio, entendida como comunicao existencial. 55

    Desta forma, diz o autor, se reunirmos as trs acepes sobre a proposio

    numa viso uniforme de todo o fenmeno, teremos a seguinte definio: a proposio

    uma demonstrao que determina atravs da comunicao. Mas, perguntase ele, 56

    de que forma possvel entender a proposio como um derivado da interpretao?

    Isto s possvel se, em sua articulao, as estruturas essenciais da interpretao

    reaparecerem. Assim, explica o filsofo, a demonstrao que a proposio faz se

    estabelece com base naquilo que se abriu na compreenso e descobriu na

    circunviso. A proposio no paira no ar, desligada, a ponto de poder por si mesma

    abrir pela primeira vez o ente como tal no entanto, ela j se detm no sernomundo. 57

    Com isto, a proposio s ocorre, pois o mundo j se abriu para o sera, pois, para que

    se possa efetuar uma proposio, o mundo j deve ter sido descoberto por ele de

    alguma forma em suas ocupaes e preocupaes. Isto , o sera s pode efetuar uma

    proposio porque j descobriu o mundo. E como o sera descobre o mundo? A partir

    deseulidarcomomundonestecontnuoprojetarseparaassuaspossibilidades.

    Alm disto, como a proposio um derivado da interpretao, ela tambm deve

    ser fundada numa posio prvia, viso prvia e concepo prvia. Isto , para que se

    possa articular uma proposio, preciso j ter interpretado o mundo em seu poderser

    das possibilidades. Desta forma, quando se enuncia uma proposio, j h uma

    perspectiva orientada para aquilo que se vai enunciar na proposio, uma posio

    prvia, pois quando se diz o martelo pesado, o que se mostra na proposio no

    um amontoado de palavras, mas um ente que determinado pela forma como se lida

    com ele no mundo. Assim, antes de analisar logicamente uma sentena, o sera j

    tem uma interpretao sobre aquilo que se prope, pois j tem conhecimento de

    mundo. Da mesma forma, antes de efetuar a proposio, o sera precisa se situar

    55Ibidem,p.21221356Ibidem,p.214.57Ibidem,p.214.

  • numa viso prvia, isto , efetuar um recorte sobre aquilo que vai propor (tematizar), e

    se direcionar a partir desta viso. E ainda, para que efetue uma proposio sobre

    algo, ele precisa j ter uma concepo prvia sobre aquilo que vai propor, pois j deve

    ter um conceito sobre aquilo que discorre. Com isto, a proposio se mostra um

    derivado da interpretao, pois em primeiro lugar o sera est no mundo, ocupandose

    e preocupandose, e em seu sernomundo, ele j interpreta os entes que vem ao

    encontro de acordo com a circunviso da ocupao ou de acordo com a considerao

    da preocupao. E s a partir da que o sera pode propor algo, porque os entes que

    vm ao seu encontro no mundo foram interpretados em seu modo de ser, isto , na

    formaemqueoseralidacomeles,eagorasoaquilosobreoqueoseraprope.

    Ainda neste pargrafo, Heidegger vai questionar a tradio a respeito do logos.

    Pois, no incio, o logos, isto , o discurso compreendido como um ser simplesmente

    dado, algo como os entes intramundanos. No entanto, Heidegger aponta isto como um

    equvoco, pois a linguagem um existencial, isto , ela um modo de ser do sera. O

    sera, em seu ser, um ser que se comunica. Contudo, conforme o que foi apontado,

    ao interpretar o logos como um ser simplesmente dado, eles o teriam identificado como

    as coisas que podem ser encontradas no mundo. Mas, do ponto de vista

    fenomenolgico isto estaria incorreto, pois em primeiro lugar h mundo. E no mundo

    no se encontram as palavras. As palavras provm do sera. ele que, em seu lidar

    com o mundo, interpreta os entes que lhe vm ao encontro conforme sua funo e

    significncia, e a partir da articula uma proposio. E o sentido que ser interpretado

    nessa proposio vai depender tambm de um sera e de seu conhecimento de

    mundo (que tambm conhecimento de si mesmo). Desta forma, como o discurso

    fundamentado pelo sera a partir de seu conhecimento de mundo, a verdade no

    seria fundamentada nele, mas sim, o discurso que seria fundamentado na verdade.

    Pois,paraquehajaaverdade,precisoumseraquelidecomomundo.

    Adiante em sua anlise dos modos de ser do sera, no pargrafo 34, Heidegger

    vai abordar a questo do discurso e da linguagem. Conforme o autor, a partir de seus

    existenciais fundamentais, compreenso e disposio, o ser do a se abre como

  • sernomundo. Alm disto, toda compreenso tem possibilidade prpria de se projetar

    em interpretao, ou seja, elaborar em formas o poderser das possibilidades. E ainda,

    como j mencionado, compreenso e disposio so igualmente originrias, portanto

    toda compreenso j est em certa disposio e viceversa. isto, somase o fato de

    que ambas tm a possibilidade de serem interpretadas. Nessa interpretao da

    compreenso disposta, o sera tem a possibilidade de articular sobre sua interpretao,

    como foi demonstrado a respeito da proposio. Naquilo que foi demonstrado a respeito

    da proposio, observouse que ela tambm tem o sentido de comunicao, na forma

    de declarao. Contudo, diz Heidegger, apesar de ter deixado de lado a linguagem at

    o presente momento, porque de alguma forma ela j estava ali a todo instante, pois

    um fenmeno que se radica na constituio existencial da abertura do sera. Alm

    disto, o filsofo assevera que o fundamento ontolgicoexistencial da linguagem o

    discursoetambmqueDo ponto de vista existencial, o discurso igualmente originrio disposio e compreenso. A compreensibilidade j est sempre articulada, antes mesmo de qualquer interpretao apropriadora. O discurso a articulao dessa compreensibilidade. Por isso que o discurso se acha base de toda interpretao e proposio. Chamamos de sentido o que pode ser articulado na interpretao e, por conseguinte, mais originariamente ainda, j no discurso. Chamamos de totalidade significativa aquilo que, como tal, se estrutura na articulao do discurso. 58

    No entanto, esta totalidade significativa tambm pode se desmembrar em

    significaes. Isto quer dizer que o sera lida com a linguagem tanto de maneira ntica

    quanto de maneira ontolgica. De maneira ntica, pois ao considerar a linguagem como

    um ser simplesmente dado, o sera tematiza sobre a prpria linguagem e ignora o fato

    de que para falar da linguagem necessrio conhecimento de mundo, isto , que

    necessria toda uma abertura de remisses e significncias que s se do a partir do

    sernomundo como tal, em seu serem e sercom. E, de maneira ontolgica, porque da

    maneira como Heidegger aborda a questo, ele procura ir ao mago do ser do discurso

    que se constitui como a mais originria abertura do a, junto com a compreenso e a

    disposio. Assim sendo, o sera s pode discursar porque, em seu estarlanado, ele

    58Ibidem,p.219.

  • de certa forma j se compreende e se dispe com o mundo, isto , consigo e com os

    entes que vm ao seu encontro. Desta forma, para Heidegger, assim como o sera, o

    discurso concebido como um ser mundano, pois, nas palavras do autor, a

    compreensibilidade do sernomundo, trabalhada por uma disposio, se pronuncia

    como discurso. A totalidade significativa da compreensibilidade vem palavra. Das

    significaes brotam palavras. As palavras, porm, no so coisas dotadas de

    significados. 59

    Conforme explica Heidegger, a linguagem, como um ente intramundano, essa

    totalidade de palavras em que e como tal o discurso possui seu prprio ser mundano,

    pode ser encontrada maneira de um manual. Desta forma, a partir da prpria

    abertura de mundo do sera que ele pode discursar. Com isto, o discurso que funda a

    linguagem s pode ser mundano porque o sera dependente do mundo. Ele, em

    sua abertura que se articula em significaes, j possui o carter de

    estarlanadonomundo, e assim se direciona, ou melhor, doa sentido quilo que

    interpreta no projetarse de suas possibilidades e articula sua compreensibilidade por

    meio do discurso. Alm disto, assevera o autor, na prpria linguagem discursiva, h

    ainda duas possibilidades intrnsecas, isto , que esto em sua essncia: a escuta e o

    silncio. Mas, para apresentlas necessrio estruturar melhor o que vem a ser o

    discurso. Assim, Heidegger vai estabelecer que o discurso, como articulao

    significativa da compreensibilidade do sernomundo ao qual tambm pertence o

    sercom , sempre se mantm num determinado modo de convivncia ocupacional, isto

    , o sera sempre discorre sobre algo e para algum, mesmo que este algum seja ele

    mesmo.Destaforma,autorchamaatenoaofatodequeO referencial do discurso sempre interpelado dentro de determinados limites e numa determinada perspectiva. Todo discurso tem algo sobre que discorre (Geredetes) que, como tal, constitui propriamente o dito dos desejos, das perguntas, dos pronunciamentos. Nele, o discurso se comunica. 60

    Assim, o discurso estruturado a partir da abertura do sernomundo do sera.

    Enquanto comunicao, o que o discurso faz partilhar a abertura do sera, isto ,

    59Ibidem,p219.60Ibidem,p.220.

  • sua disposio comum e compreenso do sercom. Por isto, assevera o autor, que a

    comunicao nunca uma transposio de vivncias, algo que v do interior de um

    sujeito para outro, pois no existe o interior e exterior, algo que se d em uma mente e

    que o sera expresse de seu dentro para dentro de outro sera. O sercom, isto ,

    cosera, se revela na compreenso e disposio comuns, mas s partilhado quando

    o sera apreende e apropriase dele atravs do discurso. Discursar, portanto, seria

    partilhar explicitamente o seu sercom. Alm disto, explica Heidegger, todo discurso

    sobre alguma coisa comunica atravs daquilo sobre que discorre e sempre possui o

    carter de pronunciamento. No discurso, o sera se pronuncia. Mas, conforme

    mencionamos, esse pronunciar do sera no algo que v de um interior outro,

    tampouco de um interior para o exterior, que ele estivesse dentro de algo e a fosse

    para fora. O sera, como sernomundo, ao compreender j est fora e, ao discursar,

    o que ele pronuncia este estar fora, o estar no mundo lidando com ele a partir de sua

    disposio. O modo como a disposio se mostra no discurso pelo tom, na

    modulao,noritmodefalar.

    Assim, conforme Heidegger explicita, o discurso se mostra como a articulao

    em significaes da compreensibilidade inserida na disposio do sernomundo. Em

    outras palavras, o sera s pode discursar porque compreende e interpreta o mundo

    a partir de seus humores e articula aquilo que compreende em uma proposio

    comunicativa. Alm disto, explica o filsofo, os momentos constitutivos do discurso so:

    o referencial do discurso (Beredete), aquilo sobre o que se discorre como tal

    (Geredete), a comunicao e o anncio. Cada um destes elementos no so em

    primeiro plano parte da linguagem, mas arraigados na constituio existencial do sera,

    e por isto estruturam o ser da linguagem. Desta forma, a linguagem s possvel

    porque o sera, em seu Ser, j possui linguagem. E por isto que o autor assevera que

    s ser possvel compreender a essncia da linguagem a partir de uma analtica do

    sera.

    A seguir, Heidegger vai estabelecer que a conexo entre o discurso e a

    compreensibilidade da compreenso se d a partir de sua possibilidade existencial que,

  • no caso, a escuta. Assim, ele vai explicar que s podemos escutar porque podemos

    compreender. Mas no um escutar que se refira a perceber rudos, que seja um

    estmulo sonoro sensorial. Este escutar uma compreenso. o estar aberto

    existencialdoseraenquantosercomosoutros.Poristo,HeideggerexplicaEnquanto escuta da voz do amigo que toda presena traz consigo, o escutar constitui at mesmo a abertura primordial e prpria da presena para o seu poderser mais prprio. A presena escuta porque compreende. Como sernomundo articulado em compreenses com os outros, a presena obedece na escuta coexistncia e a si prpria, pertencente a essa obedincia. O escutar recproco de um e outro, onde se forma e elabora o sercom, possui os modos possveis de seguir, acompanhar e os modos privativos de no ouvir, resistir, defenderse e fazerfrentea. 61

    O autor tambm assevera que s com base nesta possibilidade de escutar,

    existencialmente primria, que se pode ouvir. Ouvir, portanto, uma escuta

    compreensiva. Por isto, ele explica que no ouvimos rudos puros, ouvimos o mundo

    em sua mundanidade, isto , o mundo funcionando. Ouvimos o barulho da obra (da p

    juntando terra, do martelo batendo), o barulho da rua (os carros e motocicletas), o

    piar dos passarinhos, outros sera discursando. Desta forma, sempre escutamos os

    sons que aparecem a partir de uma compreenso de mundo. Pois, o sera, como

    sernomundo sempre est junto quilo que est a mo, isto , daquilo que

    compreende. Tambm por isto que Heidegger explica que, quando escutamos o

    discurso do outro e no compreendemos, no uma infinidade de rudos que ouvimos,

    mas palavras incompreensveis. Assim, discurso e escuta so fundados a partir da

    compreenso e no o contrrio. Pois, s quem compreendeu antes que poder tanto

    discursarquantoescutar.

    Alm disto, como mencionamos, o filsofo tambm fala de outra possibilidade

    constitutiva do discurso, a saber, o silncio. Este silncio no uma pura falta de som,

    afinal, o mundo sempre tem seus barulhos. Tambm no um silenciarse no sentido

    de ficar mudo. Neste caso, seria um silenciarse da falao dos discursos prolixos que

    encobrem e emprestam ao que se compreendeu uma clareza aparente para 62

    61Ibidem,p.222.62Ibidem,p.224.

  • possibilitar uma maior compreensibilidade daquilo que se escuta. Assim, o silenciar

    mostrase como constitutivo do discurso, pois s quem cessa a falao que pode se

    abrirparaumacompreensomaisprpria.poristoqueHeideggerasseveraSilenciar em sentido prprio s possvel num discurso autntico. Para poder silenciar, a presena deve ter algo a dizer, isto , deve dispor de uma abertura prpria e rica de si mesma. Pois s ento que o estar em silncio se revela e, assim, abafa a falao. Como modo de discurso, o estar em silncio articula to originariamente a compreensibilidade da presena que dele provm o verdadeiro ouvir e a convivncia transparente. 63

    O filosofo tambm vai explicar que porque o discurso constitutivo do ser do a

    (da disposio e da compreenso) que sera significa: como sernomundo, o ser a se

    pronunciou como serem um discurso. O sera possui linguagem. Partindo disto,

    Heidegger vai retornar s razes da filosofia, aos gregos, para buscar uma explicao

    de como a linguagem foi objetivada, tornandose um ser simplesmente dado. Segundo

    o autor, os gregos no possuam uma palavra para linguagem, pois a comunicao

    como forma de coexistncia se dava a partir do logos, que era compreendido

    sobretudo como discurso. Contudo, conforme o que o autor explica, quando o logos

    perdeu sua amplitude significativa (isto , seu carter de discurso como comunicao)

    e passou a ser interpretado como proposio (no sentido de enunciados soltos no ar),

    a elaborao das estruturas bsicas das formas e dos integrantes do discurso

    passaram a ser feitas a partir da lgica deste logos. No entanto, esta lgica se funda

    na ontologia do simplesmente dado, portanto no vai ao fundo daquilo que o Ser do

    discurso que fundamenta a linguagem. O autor tambm vai atentar para o fato que os

    linguistas, por no compreenderem que o discurso um existencial, isto , estruturase

    na abertura de mundo do sera, nunca chegaro uma essncia da linguagem. Com

    isto, possvel perceber que Heidegger aborda a linguagem em Ser e Tempo, no a

    fim de pensar sobre uma possvel filosofia da linguagem, mas para melhor estruturar

    os modos de ser do sera. Afinal, conforme explicita o autor, s ser possvel encontrar

    oSerdalinguagemapartirdeumaanalticaexistencialdosera.

    63Ibidem,p.224.

  • RefernciasBibliogrficas:

    HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Parte I. Traduo: Mrcia de S Cavalcante. 4

    Edio.Editora:VozesLTDA,Petrpolis,1993.