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habitus em transformação
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Universidade Federal de Campina Grande
Centro de Humanidades
Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais
Andra Monteiro da Costa
Habitus em transformao: retrato sociolgico de uma
lavadeira da periferia de Natal
Campina Grande - PB
2012
Andra Monteiro da Costa
Habitus em transformao: retrato sociolgico de uma
lavadeira da periferia de Natal
Dissertao apresentada, como requisito para a
obteno do ttulo de Mestre em Cincias Sociais, ao
Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais da
Universidade Federal de Campina Grande.
Orientador: Professor Dr. Roberto Vras de Oliveira
Campina Grande PB 2012
AGRADECIMENTOS
A responsabilidade deste trabalho individual, mas a sua realizao somente foi
possvel pelo apoio de pessoas e instituies. Por isso, os agradecimentos expressam um
sincero reconhecimento a quem contribuiu para tornar vivel esta etapa de minha
formao profissional.
Agradeo a CAPES a bolsa que tornou possvel o desenvolvimento do presente trabalho
no segundo ano do curso.
Ao Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais da Universidade Federal de
Campina Grande, agradeo a possibilidade de ter realizado um bom curso de mestrado,
com formao acadmica qualificada.
Ao Professor Roberto Vras de Oliveira, meu orientador, agradeo o apoio e o
acompanhamento atento e rigoroso no encaminhamento da feitura deste retrato
sociolgico. Foi gratificante e enriquecedor encontrar algum que alia, no trabalho de
orientao, cobrana e acompanhamento atento com aposta no crescimento acadmico e
na autonomia do orientando.
Aos professores Aldenor Gomes e Mrcia Batista, membros da banca de qualificao,
agradeo as contribuies e aportes para a finalizao do presente trabalho.
Dona Mida e famlia, agradeo a disponibilidade para o difcil exerccio de
objetivao exigido por este trabalho.
RESUMO
COSTA, Andra Monteiro da. Habitus em transformao: retrato sociolgico de uma
lavadeira da periferia da Grande Natal. Dissertao (Mestrado em Cincias Sociais) Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais, Universidade Federal de Campina
Grande, Campina Grande (PB), 2012.
O presente trabalho busca apreender as relaes sociais implicadas na criao e
conduo de uma lavanderia de roupas por um grupo de mulheres antes envolvido quase
exclusivamente na prestao de servios domsticos. Como estratgia de anlise,
optamos por traar, a partir da histria de vida da articuladora da criao da lavanderia,
D. Mida, um retrato sociolgico, nos termos de Bernard Lahire. A apreenso dos
significados, tanto no que diz respeito s posies sociais dos agentes envolvidos quanto
no que se refere traduo de transformaes sociais mais amplas sobre o universo
local, expressa na criao de uma lavanderia, enquanto um empreendimento, o nosso
objeto de investigao sociolgica. A problemtica de pesquisa orientadora do trabalho
pode ser sintetizada na seguinte questo: quais as disposies instituidoras do lugar e
agir social dessas mulheres, que se reproduzem e se reafirmam, mas tambm que se
redefinem e se transformam, no processo de constituio da Lavanderia Me & Filhas?
A ferramenta metodolgica identificada como retrato sociolgico, proposta por
Bernard Lahire, foi utilizada para responder questo anterior. Teoricamente, contamos
ainda com as contribuies, dentre outros, de Pierre Bourdieu e James Scott.
Palavras-chave: Retrato sociolgico; Sociologia do Trabalho; Trabalho feminino;
Quilombolas; Servios Domsticos; Mercado.
ABSTRACT
The present study attempts understand the social relations involved in creating and
conduction of a laundry room by a group of women before involved almost exclusively
in domestic service. As a analysis strategy, we choose to trace, from the life story of the
articulator of the criation of the laundry, D. Mida, a sociologic portrait, in terms of
Bernard Lahire. The seizure of significances, both in respect to social positions of those
involved in translating and broader universe of creating a local laundry is our object of
sociological research. The problematic of the research guiding is summed in this
quetion: which provisions instituting the place and social action of these women, who
reproduce and reassert themselves, but also to redefine and transform themselves in the
process of formation of Lavanderia Me&Filhas? The methodologic tool identified as
"sociologic portrait", builded by Bernard Lahire, was used to answer the previous
question. In theory, we count on contribution, among others, of Pierre Bourdieu and
James Scott.
Keywords: Sociologic portrait; Sociology of work; Female work; Quilombolas;
Domestic service; Market.
LISTA DE FIGURAS
Figura 01: Categorias referentes ao mundo do trabalho 71
Figura 02: A rede de categorias analticas intuitivas da economia moral 76
Figura 03: Significados da discusso sociolgica brasileira sobre
precarizao
78
Figura 04: A transao econmica e suas conexes 84
Figura 05: As categorias inter-relacionadas ao gnero na narrativa de
Dona Mida
100
Figura 06: Dispositivos de confiana mobilizados nos contratos de
servios domsticos
107
Figura 07: As redes das categorias sociolgicas utilizadas 112
LISTA DE GRFICOS
Grfico 01: A contribuio de trabalhadoras domsticas para a
Previdncia Social por Regies Metropolitanas e Distrito
Federal
79
Grfico 02: Mensalistas e diaristas nas regies metropolitanas
brasileiras: a evoluo do quadro em uma dcada
81
Grfico 03: Distribuio das trabalhadoras negras por setor de atividade
em 2010
104
LISTA DE ILUSTRAES
Ilustrao 01: O porto de entrada para o Stio So Pedro. 32
Ilustrao 02: Dona Mida 33
Ilustrao 03: Localizao do Stio So Pedro na malha urbana de
Parnamirim
33
Ilustrao 04: Representao grfica, inserida em projeto oficial, da rea de
Moita verde.
42
Ilustrao 05: Dona Nazar, a matriarca. 47
LISTA DE QUADROS
Quadro 01: Categorias intuitivas de anlise. 66
LISTA DE SIGLAS
CAQDAS - Computer-Aided Qualitative Data Analysis Software
DIEESE - Departamento Intersindical de Estatstica e Estudos Sindicais
INCRA - Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria
ZEIS- Zona de Especial de Interesse Social
PETI Programa de Erradicao do Trabalho Infantil
SUMRIO
INTRODUO ........................................................................................................................ 14
CAPTULO 1 - DONA MIDA E O SEU LUGAR: A TRAJETRIA, O TERRITRIO E
AS RELAES ......................................................................................................................... 28
1.2. Adentrando no territrio de Dona Mida ..................................................................................... 28
1.2. O lugar: teatro da memria do ator .............................................................................................. 34
1.3. O lugar como comunidade quilombola e a questo da posse da terra ....................................... 37
1.5. Dona Nazar, a fora do Stio So Pedro ..................................................................................... 44
CAPTULO II - A LAVADEIRA, A LAVANDERIA E O SEU HABITUS ......................... 49
2.1. A in-corporao das disposies da condio social de lavadeira .................................................. 50
2.2. Lavagem de roupa: tcnica e processo de trabalho ..................................................................... 52
2.3. Gnero e valor do trabalho .......................................................................................................... 54
2.4. Trabalho e reconhecimento: quando a lavadeira era uma pessoa .............................................. 56
2.5. Deslocamentos, sociabilidades e habilidades ............................................................................... 58
2.6. A criao da lavanderia: a imerso na lgica da moderna economia de servios ....................... 60
2.7. O (no) lugar dos homens ............................................................................................................ 63
CAPTULO III - REALANDO O RETRATO: AS TRANSFORMAES DO
TRABALHO NA FRANJA DA ECONOMIA ........................................................................ 65
3.1. Trabalho, identidade e luta ........................................................................................................ 67
3.2. O trabalho domstico, a economia moral e a confiana ................................................................ 71
3.3. Trabalho domstico e precarizao: a emergncia da diarista ...................................................... 76
3.4. Do trabalho domstico ao servio para pessoas: relaes afetivas e de mercado ......................... 82
3.5. Sujeira e limpeza na economia de servios ................................................................................... 86
3.6. Do rio pia e da pia ao rio imaginrio: a lavagem de roupa como trabalho flexvel ...................... 88
3.7. O segundo sexo da agricultura ...................................................................................................... 90
QUARTO CAPTULO - O PLURAL NO SINGULAR ......................................................... 96
4.1. As dores do casamento e as disposies de gnero....................................................................... 97
4.2. A resistncia no cotidiano e a violncia simblica ....................................................................... 101
4.4. A resistncia no lugar: o Stio So Pedro como local do discurso oculto de Dona Mida .......... 106
4.5. As experincias diferenciais e as disposies plurais: como os mundos de Dona Mida se
traduziram na criao da Lavanderia ................................................................................................. 108
CONSIDERAES FINAIS................................................................................................. 110
BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................... 114
14
INTRODUO
O presente trabalho se prope como uma abordagem sociolgica de uma pequena parte
do mosaico social que o complexo e heterogneo mundo do trabalho na sociedade
brasileira atual. Buscamos apreender as relaes sociais implicadas na constituio de
uma lavanderia de roupas, na forma do empreendimento denominado Lavanderia Me
& Filhas (formal ou informal?), por mulheres antes envolvidas quase exclusivamente na
prestao de servios domsticos. Essa parte do mosaico, como cada uma das outras
passveis de serem reveladas por uma cincia do social que no se submeta aos objetos
cientficos pr-fabricados, expressa uma histria que necessita ser escavada se
quisermos ir alm da constatao impressionista com as formas do presente. Para
resgatar esse passado que molda e potencializa os desdobramentos atuais do universo
social que procuramos compreender, optamos por traar, a partir da histria de vida da
articuladora da Lavanderia Me & Filhas, D. Mida, um retrato sociolgico. Mais
adiante, ainda nesta introduo, explicitaremos mais o que tal retrato significou no
que diz respeito ao percurso metodolgico seguido.
D. Mida me de nove filhas e viva. Durante quase 50 anos foi lavadeira de
roupas a domiclio. Nasceu e ainda vive no Stio So Pedro, pequena propriedade
rodeada por conjuntos e loteamentos habitacionais, situado no municpio de
Parnamirim, na Regio Metropolitana de Natal (RN). a lder de um grupo familiar
que se estruturou em torno de sua me, D. Nazar, uma senhora ainda ativa e muito
lcida nos seus 100 anos de idade. A rea na qual se situa o stio, atualmente, passa por
um processo de formalizao de sua identificao como comunidade quilombola.
A criao da Lavanderia Me & Filhas deveu-se ao engajamento de D. Mida.
Foi ela quem mobilizou as filhas para dedicarem tempo e os poucos recursos financeiros
de que dispunham para a estruturao de uma lavanderia que operasse como uma
pequena empresa prestadora de servios. Essa forma de organizao do
empreendimento, que tem implicaes no modo de organizao do trabalho e da
15
prestao do servio, no contexto no qual foi constitudo, reala o seu carter singular e
torna sociologicamente atrativa a anlise da Lavanderia Me & Filhas.
Qual o objeto de pesquisa que d sustentao e consistncia sociolgica anlise
que apresentamos neste trabalho? A apreenso dos significados, tanto no que diz
respeito s posies sociais dos agentes envolvidos quanto na traduo de
transformaes sociais mais amplas no universo local, da criao da Lavanderia Me &
Filhas. O que h de singular e merecedor de ateno no processo de constituio do
referido empreendimento, aparentemente to semelhante a inmeros outros que se
estabelecem h tempos em muitos espaos urbanos brasileiros? So as seguintes as
razes que justificam a presente incurso investigativa:
1) Por resultar do agenciamento de um pequeno negcio por mulheres antes
envolvidas em atividades de trabalho marcadas pela subordinao e informalidade;
2) Pelo fato de essas mulheres serem integrantes de uma famlia negra e
proprietria de uma terra situada nas franjas de uma regio urbana em expanso, cuja
dinmica realaremos ao abordar o nosso objeto de pesquisa;
3) O fato de essas mulheres procurarem imprimir ao seu empreendimento
elementos de organizao do trabalho e de gesto do negcio que tem implicado, ao
mesmo tempo, em continuidades e mudanas nas disposies orientadoras das suas
percepes e aes.
Como problematizar sociologicamente a realidade que apontamos mais acima?
Partimos do pressuposto de que os meandros da criao, gesto cotidiana e
planejamento das atividades da Lavanderia no podem ser satisfatoriamente
apreendidos sem que se leve em conta as trajetrias de vida dessas mulheres e as foras
e tenses sociais que marcam (e demarcam) as suas posies tanto no interior da
comunidade na qual vivem quanto nas relaes de trabalho como empregadas
domsticas ou prestadoras avulsas de servios domsticos. Dessa forma, o estudo dessas
relaes pode ser revelador no apenas do lugar social das mulheres de classe popular
no mercado de trabalho, mas tambm dos mecanismos que as mesmas mobilizam para
se instituir como sujeitos em um mundo no qual o prprio trabalho domstico
simbolicamente impregnado de elementos negativos.
16
Nesse sentido, vale a pena destacar a seguinte questo: quais as disposies
socialmente instituidoras do lugar social dessas mulheres que se reproduzem e se
reafirmam, mas tambm que se redefinem e se transformam, no processo de
constituio da Lavanderia? A interrogao, tanto a respeito dos elementos de
afirmao positiva de novos lugares sociais quanto daqueles expressivos da reproduo
de padres sociais que inferiorizam e negam reconhecimento social a essas mulheres,
est articulada a esta questo.
A problemtica acima delineada ganha concretude quando traduzidas em duas
questes que buscamos abordar ao longo de nossa investigao: Que sentidos essas
mulheres atribuem ao seu trabalho e ao seu lugar no mundo, antes e depois da criao
da Lavanderia? Em que medida tais sentidos, formulados por essas mulheres e pela sua
comunidade, sugerem, de um lado, elementos e traos resultantes da incorporao das
estruturas que se lhes impem (mercado de trabalho, lugar social da mulher, condio
social do negro) e, de outro, algo de resistncia, de reinveno, de reelaborao,
traduzidos, sobretudo, na constituio desse novo modelo de atividade?
Sob tais questes, foi-nos possvel abordar os seguintes tpicos: os elementos
impulsionadores da constituio do empreendimento; os fios sociais que teceram o seu
agenciamento; os elementos da dinmica econmica mais geral que, de forma forte ou
indireta, funcionaram como vetores de foras estruturais e constrangedoras das aes
das agentes aqui tomadas como personagens da narrativa sociolgica que tentamos
construir nos captulos seguintes.
Do ponto de vista metodolgico, para empreender a anlise aqui proposta,
tomamos como referncia principal os relatos que nos foram concedidos pela lder da
constituio da Lavanderia, Dona Mida. Acrescentamos ainda observaes da vida
cotidiana do lcus onde se situa a Lavanderia, o Stio So Pedro, e entrevistas com a sua
me, Dona Nazar, suas oito filhas e outros parentes. Do ponto de vista operacional, no
que diz respeito aos relatos fornecidos por Dona Mida, fizemos o cruzamento entre as
tcnicas qualitativas de histria de vida e a confeco de um retrato sociolgico.
Guiamo-nos pelo desafio de respondermos problemtica sem abandonarmos a
pretenso de adicionarmos consideraes sociolgicas com alguma possibilidade de
universalizao.
17
Na prtica concreta de aquisio da informao e de construo da relao
dialgica com o informante, histria de vida e retrato sociolgico so tcnicas
assemelhadas. A diferena, embora j esteja presente no planejamento da pesquisa,
mais acentuada no nvel epistemolgico. Assim, colhemos os relatos de Dona Mida,
que, para ela, como de se esperar que ocorra para todos ns, a reconstituio de
eventos e fatos passados no tinham o sentido de reafirmar uma trajetria linear e
coerente. Nesse quesito nos apoiamos em uma proposio formulada por Bourdieu,
quando ele afirma que tentar compreender uma vida como uma srie nica e, por si s,
suficiente de acontecimentos sucessivos, sem outra ligao que a vinculao a um
sujeito cuja nica constncia a do nome prprio, quase to absurdo quanto tentar
explicar um trajeto no metr sem levar em conta a estrutura da rede, isto , a matriz de
relaes objetivas entre as diversas estaes. (BOURDIEU, 1996, p. 81).
Por isso mesmo, na nossa perspectiva de anlise no era importante atestar (ou
desconstruir) a linearidade que emergia dos relatos de Dona Mida, mas, sim, tomar os
relatos como fontes para a elaborao de unidades temticas de anlises. Foi assim que
definimos como tais temticas as seguintes: Casamento, famlia, trabalho em casa,
trabalho fora, festas, vida no stio e cidade. Algumas delas foram retomadas,
aleatoriamente, em entrevistas realizadas em dias diferentes. Essa perspectiva
metodolgica foi delineada pelo socilogo Bernard Lahire, em trabalho que inspirou o
caminho de pesquisa que resolvemos seguir (LAHIRE, 2004).
Uma proposio desse autor pesou muito na nossa opo metodolgica. Aps
referir-se a como Howard S. Becker resolve, em suas pesquisas, o problema da anlise
das condutas dos atores, Lahire afirma:
Em vez de considerar cada momento da trajetria individual como algo lgico em um
percurso linear, postulando de antemo que no s cada indivduo pode ser caracterizado
por uma nica frmula (em vez de diversas frmulas complementares ou concorrentes) que
gera seus comportamentos, escolha, decises, mas tambm que ele est sujeito a foras
sociais no necessariamente coerentes... (LAHIRE, 2004, p. 35).
Seguindo essa trilha metodolgica, realizamos um conjunto de entrevistas com
Dona Mida (sempre realizadas no stio de sua famlia, ou em frente sua residncia, na
sombra das rvores), nas quais os temas acima anunciados foram sistematicamente
retomados a cada vez. Para ela, de forma aleatria; para mim, de forma anteriormente
planejada. Essa foi uma forma de evitarmos cair na armadilha epistemolgica de
18
considerar a nossa personagem principal como sendo detentora de uma trajetria
aplainada e linear.
O ganho desse percurso metodolgico, levando-se em conta a nossa proposta de
pesquisa, foi significativo. No nosso caso, uma proposio central utilizada por Lahire
(2004), para justificar a sua opo metodolgica, aplicou-se fortemente:
S um dispositivo metodolgico desse tipo permitiria julgar em que medida algumas
disposies so ou no transferveis de uma situao para outra e avaliar o grau de
heterogeneidade ou homogeneidade do patrimnio de disposies incorporadas pelos atores
durante suas socializaes anteriores. (p. 32).
Vale a pena chamar a ateno para o seguinte: como se pode observar na citao
acima, Lahire procura fundamentar a sua proposta metodolgica em uma base terica
prpria. Assim, ao propor essa tcnica, o autor procura fundament-la a partir de uma
posio de continuidade, mas tambm de ruptura, com a noo de habitus, formulada
por Pierre Bourdieu em muitas de suas obras. Neste ponto importante esclarecermos o
seguinte: seguimos Bernard Lahire, mas at certo ponto, dado que no pensamos ser
necessrio aderirmos por completo ao seu projeto para incorporarmos o que h de
promissor na sua proposta metodolgica. Assim, ao mesmo tempo em que nos sentimos
seguramente inspirados e orientados por suas construes terico-metodolgicas,
reservamo-nos um grau de liberdade capaz de nos permitir tensionar tais construes a
partir das reflexes produzidas a partir de nossa pesquisa.
Esse um cuidado sempre necessrio quando instrumentalizamos conceitos e
mtodos. Por isso, a primeira posio a ser tomada por um pesquisador a parcimnia,
e certo questionamento, sobre at que ponto um determinado instrumental terico pode
ser utilizado nas nossas pesquisas. Pois, se o retrato sociolgico nos permite chegar ao
social refratado no individual (LAHIRE, 2005, p. 14), no acreditamos ser possvel,
especialmente na realidade social brasileira, e muito particularmente naquela expressa
pelo mundo das mulheres das classes populares, subestimarmos os efeitos
constrangedores das estruturas sociais nas disposies incorporadas pelos agentes.
Neste sentido, o questionamento de Lahire, de que as disposies incorporadas e
mobilizadas em cada situao concreta venham ser reduzidas, de forma determinista, a
um habitus de classe, no uma elaborao neutra; faz parte do seu acerto de contas
com a leitura de Bourdieu, especialmente quanto relao que o ltimo estabelece entre
habitus e classe. No acreditamos que essa seja uma posio possvel de ser
19
transplantada para a realidade brasileira, uma vez que, aqui, devido sua histria e ao
prprio modelo de estratificao social dominante, as posies sociais so fortemente
delineadas pelo pertencimento de classe. Por isso, em contrapartida proposta de
Lahire, contraproducente o abandono analtico do conceito de classe em nome de uma
maior abertura para o imprevisvel.
O que apontamos acima implica em uma discusso mais aprofundada a respeito
do lugar do individual e do coletivo na anlise sociolgica, polarizao sempre
criticada, mas nunca abandonada, que traduo da oposio ator versus estrutura.
Mais abaixo, retomaremos essa discusso, ao balizarmos os aportes tericos que
guiaram a nossa investigao. Mas antes, fechemos a apresentao de nosso percurso
metodolgico.
Como j apontamos, alm da construo do retrato sociolgico da lder da
constituio da Lavanderia, tambm nos servimos da observao da vida cotidiana do
seu lugar. Alm disso, realizarmos entrevistas, geralmente informais, com quatro das
oito filhas de Dona Mida e com a sua me, Dona Nazar. O gravador foi utilizado
somente para as entrevistas realizadas com Dona Mida. O registro das outras
informaes foi feito em cadernos, escritos aps o retorno das visitas. Nesses cadernos
tambm registramos nossas impresses, no calor da hora, de eventos ou situaes que
presencivamos. Todo esse material foi transcrito e transformado em um nico corpus.
Feito isso, procuramos analis-lo a partir de categorias analticas que, a nosso ver,
englobavam e ampliavam as unidades temticas abordadas nas entrevistas com Dona
Mida.
Antes de prosseguir, faz-se necessrio registrar que a investigao sociolgica,
desde que implica em envolvimento mais profundo com o pesquisado, sempre produzir
momentos de tenses e dificuldades. No nosso caso, muitas vezes, enfrentamos o
laconismo de Dona Mida em relao a alguns temas. O mesmo ocorria com as suas
filhas. H ainda que se registrar a dificuldade que tivemos de estabelecer conversas mais
duradouras com os homens da famlia. Ao final, percebemos que as mulheres do Stio
20
So Pedro, talvez no conscientemente, construram algo como uma barreira para
impedir a nossa comunicao com eles1.
No que diz respeito aos nossos aportes tericos, guiamo-nos, desde o comeo,
pela preocupao em levar em conta aportes que nos fornecessem orientaes para
enfrentarmos a questo da relao entre o agente e a estrutura. No pelo gosto da
discusso terica em si mesma, mas por que tais elaboraes poderiam aclarar a
aproximao com o nosso objeto de pesquisa e dar mais coerncia nossa problemtica
de pesquisa.
Por isso, a nossa apropriao do dispositivo metodolgico do retrato sociolgico
no foi acidental. Essa opo, realizada ainda no momento do primeiro esboo de nosso
projeto de pesquisa, correspondeu ao objetivo de, atravs das noes de disposies e
habitus, apreendermos como o social se manifesta nas trajetrias e escolhas dos agentes.
Se bem que, aprofundando um pouco mais a imerso no universo terico de um dos
autores que discute profundamente a questo ator versus estrutura, que Pierre
Bourdieu, devemos sempre colocar em suspeita a palavra escolha para nos referirmos
s decises e caminhos tomados pelos agentes. Mas o importante a reter aqui o fato de
que Bourdieu toma o habitus, esse conceito j trabalhado por muitos antes dele
(BOURDIEU, 2001, pp. 60-63), como a resposta ao problema da estrutura e do ator.
Expresso das disposies in-corporadas por um agente, situado em uma determinada
posio do espao social, e que so mobilizadas nos diversos contextos sociais de que
participa, o habitus no est desligado da posio que o ator (Bourdieu usualmente se
refere a agente) ocupa no espao social.
Lahire, movido pelo objetivo de legitimar a centralidade analtica do social no
individual, entende a noo de habitus como determinista e incapaz de apreender um
indivduo que multisocializado e multideterminado (LAHIRE, 2005, p. 49). O
nosso entendimento o de que a noo bourdieusiana pode ser interpretada como no
frontalmente contraditria com a aposta metodolgica de Lahire, talvez porque no
percebamos o habitus como to determinista quanto o propositor dos retratos
sociolgicos.
1 Essa no uma situao incomum no trabalho de pesquisa. Como observa a antroploga Florence
Weber, em muitas condies, a anlise, para ser clara deve ultrapassar mltiplos obstculos, a comear pela reticncia e a inegvel m vontade nativas diante de qualquer tentativa de esclarecimento. (WEBER, 2009, p. 78).
21
Lahire justifica a sua crtica noo de habitus como gramtica geradora das
prticas sociais, chamando a ateno para o quanto instvel e relativa a mobilizao
das disposies incorporadas pelo agente:
(...) Para alm disso, alguns hbitos podem ter sido duravelmente instalados no corpo de um indivduo que, num novo contexto de vida (por exemplo, um qualquer acontecimento
biogrfico: casamento, nascimento, divrcio, morte de um prximo, novo trabalho...),
deseja ver-se livre do que considera, agora, maus hbitos. Passa-se tudo como se a nova situao o levasse a sentir uma parte das suas disposies ou dos seus hbitos como lhe
sendo estranha.(LAHIRE, 2005, p. 22).
Uma boa resposta s objees de Lahire perspectiva bourdieusiana de anlise
das prticas dos agentes a partir da noo de habitus, foi formulada por um especialista
na sociologia de Bourdieu:
Um agente determinado no nem monoltico nem plural, nem transparente nem
inclassificvel, ele no nem um bloco uniforme que age de forma montona nem uma
pura rapsdia de fenmenos justapostos. Tendo interiorizado esquemas de ao
diversificados que funcionam em espaos diversos, ele est fadado, tanto objetiva quanto
subjetivamente, a uma relativa ambiguidade. O que no significa que o determinismo seria desmentido, j que a conduta seguida, mesmo se no fosse inelutvel, se inscreve de
fato num espao de possveis ligado a um indivduo atravs do conjunto de predicados do
qual ele portador. O fato de no haver um cenrio nico no implica que aquele que foi
adotado o foi em virtude de uma deciso irracional, imotivada etc. (PINTO, 2009, p.
212).
Essa no uma discusso bizantina. Pelo contrrio! importante para aclarar as
pistas que seguimos na nossa investigao, mas, temos a presuno de indicar, serve
tambm para subsidiar a investigao sociolgica sobre atores que so jogados, de uma
hora para outra, em espaos sociais distintos, movidos por lgicas diferentes. Mas, sem
dvidas, essa uma situao que pesa mais fortemente sobre pessoas que tm que lidar
com as tenses advindas das lgicas sociais impostas pelos vieses de gnero e tnico,
alm daqueles ligados s regras e hierarquias do trabalho.
Os apontamentos anteriores, embora importantes, apenas estabelecem os limites
da anlise, o ngulo para onde deveramos mirar. Necessitvamos de um mapa para nos
guiarmos nas prticas de Dona Mida e sua famlia. Afinal de contas, ter o
entendimento de que as disposies so mobilizadas diferencialmente de acordo com os
contextos nos ajuda pouco a apreender as sutilezas das prticas dessas mulheres,
especialmente quando estas parecem invisveis aos olhos do investigador. Nesses
momentos, o pesquisador pode incorrer no etnocentrismo de classe mdia que subjaz,
de forma velada, as explicaes de mundo comumente mobilizadas no nosso mundo
acadmico.
22
Uma das mais insidiosas dessas explicaes, expressivas do que Bourdieu
denominaria de senso comum douto (BOURDIEU, 1989), a ideia, fortemente
disseminada em certos setores intelectualizados de nossas classes mdias, de que as
classes populares seriam prisioneiras de um forte conformismo social, que no tm a
ambio e engajamento para negcios, que se negam a regras e normas da lgica
produtivas por serem pessoas que se contentam com pouco. No faltam situaes que
reproduzem esse tipo de etnocentrismo em relao s classes populares. Por isso
necessrio aguarmos a nossa capacidade crtica para no contrabandearmos para a
anlise social formas de negao da capacidade reflexiva dos dominados.
Ora, imerso no senso comum douto, vis ideolgico mais difcil de ser
explicitado, j que o mesmo conta com a cumplicidade epistemolgica de quem transita
no universo acadmico, ocorre de o pesquisador perceber apenas as disposies
supostamente conformistas dos dominados. Na verdade, apontamos Scott (1990), esse
conformismo, especialmente quando aparece enquanto tal, conscientemente, deve ser
visto pelo pesquisador como algo mais do que mero conformismo. Essa encenao no
resulta de uma falsidade do agente (pesquisado), especialmente se pertencente s classes
subalternas. Pois, como nos aponta James Scott (1990), ao poder interessa tanto a
resignao quanto a encenao da resignao. E os dominados, que no deixam de ser
atores reflexivos por sua condio, entendem muito bem o que deles se espera em
termos de comportamentos. Tambm tm alguma conscincia dos custos sociais da
ruptura com as expectativas feitas sobre eles.
O que esboamos antes, uma apreenso derivada da leitura de James Scott,
possibilitou-nos o desenvolvimento da capacidade de escutar Dona Mida e os
membros de sua famlia. No raramente, Dona Mida era monossilbica em suas
respostas, especialmente se percebia que havia algo em jogo na nossa conversa, como,
por exemplo, a minha busca de entendimento de situaes especficas expressivas da
relao da sua famlia com o seu entorno social. Em Scott (1990) encontramos apoio
para reforarmos nossa ruptura com o senso comum douto, pois, o mundo acadmico,
marcado pela expressividade do discurso e autorizao da fala, no raramente, produz a
falsa expectativa de que a verdade das prticas dos agentes emerge de conversaes.
Corriqueiramente, quando nos rituais de chancela acadmica, ouvimos questionamentos
23
tais como: foi isso que seu informante disse mesmo? de onde voc tirou isso?
isso mesmo o que ele quis dizer?. Nada mais etnocntrico!
No foram poucas vezes em que Dona Mida, ao comentar situaes de sua vida
ou das atividades desenvolvidas como lavadeira de roupas em domicilio, emitia
comentrios que a estereotipavam. Aos poucos, foi possvel perceber como, por sob os
seus discursos, era possvel perceber a ironia, o ressentimento e a vergonha. Scott
(1990) ajudou-nos a perceber, ao propor a necessidade de que, para o entendimento das
prticas dos atores, devemos levar em conta a existncia de um discurso pblico e de
outro, subterrneo, oculto. O discurso pblico, geralmente traduzido na linguagem
dominante expressa toda uma violncia simblica (nos utilizamos aqui de uma noo
desenvolvida por BOURDIEU, 2001, pp. 199-246) sobre os dominados. o caso em
que os dominados, para analisar a si mesmos, tm que recorrer s categorias analticas
que os diminuem socialmente. Pensemos, a esse respeito, no significado da palavra
adaptao. No universo da nossa pesquisa era comum ouvirmos algumas dessas
mulheres dizerem que tinham que fazer do jeito que os outros estavam fazendo,
diziam isso em relao ao modelo de lavanderia que tem se proliferado nos bairros de
Parnamirim. Nela, de forma doce, est contida toda uma forma de violncia sobre
essas trabalhadoras. Se para Bourdieu mais expressivo a investigao atentando para o
exerccio de poder pela violncia simblica, sobre o discurso oculto um tpico ao qual
Bourdieu no d destaque. Nesse sentido, possvel tambm perceber seja lugares ou
momentos nos quais se abre a possibilidade de produo do que Scott denomina de
discurso oculto (SCOTT, 1990, p. 37). No caso dos dominados, o discurso oculto
onde se extravasam as ironias e vinganas contra os dominantes. Em momentos
polticos excepcionais, o discurso oculto se torna pblico.
possvel conjugar Scott e Bourdieu para dar sentido a uma prtica concreta,
levando em conta tanto a noo de habitus, do segundo, quanto a conceptualizao do
primeiro em relao aos discursos? primeira vista, pareceria essa uma combinao
inaceitvel, dado que, por sob o esquema de Scott, apareceria certa aposta na reao
espontnea dos dominados. Veremos que essa uma articulao no apenas possvel,
mas que tambm produz ganhos na apreenso de realidades como aquela que objeto
de investigao no presente trabalho. Ora, tanto Bourdieu quanto Scott indicam-nos o
24
quanto importante percebermos a resistncia como estando situada alm do discurso
consciente.
Feitas as demarcaes acima, vale a pena, como ltimo esforo de legitimao
do presente trabalho, ajuntarmos alguns argumentos que o justifiquem. Ora, ao tomar a
criao de um empreendimento to pequeno, situado em um lcus to perifrico na vida
econmica no apenas do pas, mas da prpria regio, no estaramos construindo como
objeto de pesquisa algo sem muita significncia social? E, como consequncia, algo
pouco significativo do ponto de vista sociolgico? Na obra de Pierre Bourdieu
encontramos uma boa resposta para essas indagaes:
O cume da arte, em cincias sociais, est sem dvida em ser-se capaz de por em jogo
coisas tericas muito importantes a respeito de objetos ditos empricos muito precisos,
frequentemente menores na aparncia, e at mesmo um pouco irrisrios. Tem-se demasiada
tendncia para crer, em cincias sociais, que a importncia social ou poltica do objeto por
si mesmo suficiente para dar fundamento importncia do discurso que lhe consagrado
(...). (BOURDIEU, 1989, p. 20)
Se pintar bem objetos pequenos uma tarefa importante, a tentativa de esboar
um conjunto de relaes sociais a partir do retrato sociolgico de uma lavadeira de
roupas estar legitimada. Pois, com a sua realizao, de algum modo, jogamos um facho
de luz sobre algumas dimenses esquecidas do nosso mundo. Lembra-nos Bourdieu: a
teoria cientfica apresenta-se como um programa de percepo e de aco s revelado
no trabalho emprico (BOURDIEU, 1989, p.59). Ento, abordar objetos irrisrios (o
que, acreditamos, est longe de ser o caso do presente trabalho) pode ser um bom
caminho para colocar prova teorias.
A nossa ideia a de que as elaboraes de Pierre Bourdieu e Bernard Lahire
fornecem importantes apoios para o desenvolvimento de nossa investigao. De
Bourdieu, procuramos reter a noo de habitus. A obra de Bourdieu bastante
conhecida no mbito das cincias sociais e esta noo tem, hoje, quase um sentido auto-
evidente. Com frequncia, Bourdieu se refere ao habitus como a expresso de
disposies in-corporadas (Bourdieu, 1989), que fornece uma gramtica generativa
das prticas dos agentes. Esse o caminho por ele escolhido para romper com as
elaboraes tradicionais sobre a socializao, especialmente aquelas produzidas pelos
funcionalistas, que geralmente produzem uma apreenso das posies dos agentes
como uma certa adaptao a papis e funes sociais. A elaborao de Bourdieu
25
tambm uma resposta prtica, como ele mesmo aponta, ao estruturalismo e a sua
estranha filosofia da aco (Bourdieu, 1989, p. 61).
Entretanto, o que mais vale a pena destacar da contribuio de Bourdieu e o que,
de algum modo, est mais diretamente relacionado pesquisa que procuro desenvolver
diz respeito ao fato de que a noo de habitus nos permite um distanciamento em
relao noes, muito fortes no senso comum, que lem as trajetrias de vida como
resultados de escolhas conscientes dos agentes. Bourdieu (2001) chama-nos a ateno
para o fato de que o lugar social ou a posio do agente nunca descolada de uma
relao com outros agentes, portanto, com uma determinada colocao no campo social.
Por outro lado, o que se e a leitura que se faz de sua trajetria (das escolhas passadas e
das presentes) sempre est relacionado com disposies que so in-corporadas pelo
agente. Essas disposies dizem respeito, na maioria das vezes, situao de classe
desse agente.
Mas at que ponto uma leitura do social como a que prope Bourdieu, to
assentada em um esquema racionalista e com um pressuposto to forte a respeito dos
eixos que marcam as posies e as trajetrias dos agentes, pode nos ajudar a dar
sentido ao mundo de Dona Mida? Tal como o personagem principal do livro O ltimo
voo do flamingo, de Mia Couto, poderia dizer que Bourdieu ilumina parte do caminho,
mas h ainda muito cho a percorrer e o esquema bourdieusiano precisa ser
complementado por outras luzes para dar sentido s prticas concretas. At porque o
imprevisvel e precrio tende a no se deixar ver atravs da gramtica generativa a que o
Bourdieu faz referncia.
Encontramos em Bernard Lahire, como Bourdieu um socilogo tambm
preocupado em apreender o universo das prticas dos agentes, algumas indicaes que
podero clarear um pouco a nossa pesquisa. Embora assuma e d continuidade a muitas
das noes de Bourdieu, Lahire questiona e vai mais adiante no tratamento da noo de
habitus. Isso porque, ao contrrio de Bourdieu, ele problematiza a noo de disposies.
E isso tem como consequncia prtica levar o pesquisador a dar mais ateno ao
circunstancial e aquilo que imprevisvel. No que diz respeito a reconstruo da histria
de vida de Dona Mida, os ensinamentos de Lahire so fundamentais. Nesse sentido
vale a pena, cit-lo um pouco para confirmar o que venho colocando at agora:
26
Em vez de pressupor a influncia de um passado incorporado necessariamente coerente
sobre os comportamentos individuais, mais do que imaginar que todo o nosso passado,
como um bloco ou uma sntese homognea (sob a forma de um sistema de disposies ou
valores), pesa a todo momento sobre todas as nossas situaes vividas, o socilogo pode
indagar-se sobre o desencadeamento ou no desencadeamento, a implementao ou a
estagnao, pelos diversos contexto de ao, de disposies de competncias
incorporadas. A pluralidade de disposies e de competncias, por um lado, a variedade
de contextos de sua efetivao, por outro, e que podem explicar sociologicamente a
variao de comportamento de um mesmo indivduo ou de um mesmo grupo de indivduos,
em funo de campos de prticas, de propriedades dos contextos ou de circunstncias mais
singulares da prtica. (LAHIRE, 2006, p. 19). (o grifo nosso).
Em Lanire (2004 e 2006) encontramos um porto seguro para legitimar o tipo de
trabalho que pretendo desenvolver. Trata-se da construo de retratos sociolgicos
dos agentes. Nesta pesquisa essa perspectiva se traduzir pelo delineamento de um
retrato sociolgico especfico, aquele de Dona Mida. De pronto vem uma pergunta:
mas trabalhar somente com um informante? No muito reducionismo? O trabalho
no fica empobrecido? A leitura de obras como Retratos Sociolgicos ou A cultura
dos indivduos, trabalhos mais recentes de Lahire, derruba as objees e torna sem
sentido as perguntas mais acima. Por qu? Ora, porque, na perspectiva do socilogo
francs, um retrato sociolgico um exaustivo trabalho de imerso, baseado em
baterias de questes aprofundadas em um conjunto de sesses temticas distribudas em
um espao de tempo razovel.
H alguma semelhana com a proposta da chamada scio-anlise, caminho de
investigao seguido por Bourdieu (1993) e alguns de seus auxiliares no projeto de
investigao que resultou no livro A misria do mundo. A grande diferena est no
fato de que a socio-anlise, como o prprio nome indica tem algo da anlise teraputica
mais convencional: tem como objetivo levar o entrevistado a revelar dores e
sofrimentos, os quais tero os seus sentidos lidos e explicados pelo cientista. No
caso de Lahire, temo uma maior aproximao com a perspectiva weberiana: perceber o
sentido que o agente d ao que faz. O fazer, entretanto, assemelhasse: longas conversas
orientadas pela preocupao de compreender o outro e o seu mundo.
No livro Retratos Sociolgicos, Lahire trabalha com oito informantes. O
resultado uma obra que mostra como as trajetrias individuais so marcadas pelo
cruzamento da gramtica gerativa e o contingente e imprevisvel. Por outro lado, essa
tcnica permite dar conta de algo que fica obscurecido na noo de habitus, tal qual
trabalha Bourdieu: a gramtica aberta e o resultado do cruzamento, no processo de
socializao dos agentes, com diversos modos legtimos de atuar no mundo. Esses
27
modos so repassados (na maioria das vezes) inconscientemente pelos diversos
agentes transmissores com quais o ator lida ou entra em contato ao longo de sua vida.
Para dar um sentido a esta narrativa, estruturamos o trabalho em torno de quatro
captulos, independentes, mas estreitamente articulados. Logo aps esta introduo, no
primeiro captulo, procuramos explicitar o territrio de D. Mida. Trata-se de um
exerccio que , ao mesmo tempo, de apresentao e aproximao. Sem excluir um
exerccio de auto-objetivao de nossa relao com o objeto de pesquisa, apontamos
as singularidades que moldam a base territorial que serve de suporte e pano de fundo
para a narrativa sociolgica que segue. No deixamos de expor, o que poder parecer
um excesso de ateno para a subjetividade do pesquisador, como se construiu a nossa
relao com D. Mida e suas filhas.
No segundo captulo, empreendemos uma anlise das foras que atravessam as
trajetrias de nossa personagem e de suas filhas. Articulamos essa anlise como uma
exposio do processo de trabalho na Lavanderia. Tambm procuramos explicitar a
como a dinmica socioeconmica se traduz nas suas disposies e impactam as suas
vidas.
No terceiro captulo, buscamos explicitar os nexos existentes entre a trajetria de
Dona Mida e as transformaes mais gerais do mundo do trabalho na sociedade
brasileira. Em especial, destacamos as implicaes dessas transformaes nos servios
domsticos. O nosso objetivo foi o de apontar como as estruturas sociais mais gerais so
incorporadas por Dona Mida e suas filhas.
No quarto e ltimo captulo, a anlise foi direcionada apreenso de como a
pluralidade do social se revela no individual, isto , na trajetria de Dona Mida. Para
realar as pinceladas finais do retrato sociolgico de nossa personagem, apresentamos
os bastidores de sua emergncia como ator social. Para tanto, com o aparo terico de
James Scott, apontamos como o Stio So Pedro funciona como lugar do discurso
oculto de Dona Mida e suas filhas.
Por fim, nas consideraes finais, retomamos algumas das questes que
orientaram a feitura do nosso trabalho.
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CAPTULO 1 - DONA MIDA E O SEU LUGAR: A TRAJETRIA, O
TERRITRIO E AS RELAES
Podem me prender
Podem me bater
Podem at deixar-me sem comer
Que eu no mudo de opinio
Daqui do morro, eu no saio, no
Se no tem gua, eu furo um poo
Se no tem carne, eu compro um osso e ponho na
sopa
e deixo andar, deixo andar
Falem de mim o que quiser falar
Aqui eu no pago aluguel
Se eu morrer amanh seu doutor,
Estou pertinho do cu.
(Elza Soares, OPINIO)
Neste captulo apresentamos Dona Mida e seu mundo. Tambm buscamos
apreender o seu lugar no mundo. Nos propomos abordar sobre como as estruturas
profundas se apresentam na trajetria de vida de D. Mida, ou seja, sobre como as
mudanas sociais mais gerais rebateram na vida da nossa personagem. Para tanto,
inicialmente, buscamos situ-la como sujeito e os seus lugares de fala (mulher, me,
trabalhadora, negra...). Imediatamente aps, traaremos alguns elementos para um
entendimento da cartografia do lugar. Por fim, esboaremos uma apreenso das suas
relaes com o mundo alm do lugar. Com essa configurao, o presente captulo serve
de suporte para as anlises que viro no restante do trabalho.
1.2. Adentrando no territrio de Dona Mida
O nosso contato com Dona Mida, sua me, Dona Nazar, e as filhas se iniciou
h dez anos. Na poca, moradora recm-chegada ao Conjunto Jockey Clube, inaugurado
havia pouco, travei contato com uma de suas filhas, Dalvaci, ou simplesmente Dalva,
em uma caminhada que fazia de uma parada de nibus situada na Br-101, na altura do
Parque Aristophanes Fernandes, para a minha casa. Enfrentava, ento, como a maioria
dos moradores da nova rea urbana, a precariedade da oferta de servios pblicos,
especialmente de transportes coletivos. Caminhvamos na mesma direo, na avenida
lateral ao parque, que segue para alm do conjunto acima referido, indo at quase s
margens do Rio Pitimbu. Ao abord-la, encontrei receptividade e logo travamos uma
29
longa conversa. Socializamos informaes sobre as nossas situaes. Na despedida,
quando entrei em direo ao conjunto e ela seguiu adiante, fui convidada a visit-las.
Essa visita aconteceu algum tempo depois. E, depois da primeira, vieram muitas. O stio
pertencente a sua famlia, com sua atmosfera buclica, a porteira, as fruteiras, os
pequenos roados, os latidos dos cachorros que denunciam a entrada de estranhos, e a
liberdade oferecida s crianas pelos imensos espaos dos terreiros, tudo aquilo me
trazia uma sensao de desprendimento da presso sofrida pela vida urbana.
Parnamirim, ainda naquele momento, com as excees do Aeroporto
Internacional Augusto Severo e dos enclaves urbanos das suas praias litorneas
(Cotovelo, Pium e Pirangi), era uma cidade em processo de definio, dividida entre
paisagens que indicavam um passado ainda presente e um presente ainda sem rosto, ou
melhor, um presente indefinido. A justaposio entre elementos do moderno (o
Aeroporto, os edifcios e setores comerciais nas praias, os conjuntos residenciais
fechados nos quais residem os militares da Base Militar anexa ao aeroporto) e
elementos do tradicional (a feira tradicional, as carroas na rua, pessoas sentadas nas
caladas das casas e animais soltos) parecia dominar o espao urbano em afirmao,
seguindo uma lgica devoradora e ambientalmente frgil, que caracteriza a expanso
urbana na Regio Metropolitana de Natal.
Dez anos depois, o antes novo Conjunto Jockey Clube, assentamento urbano de
novecentas casas, tornou-se passado. Agora, os conjuntos de edifcios construdos para
serem negociados no Programa Minha Casa, Minha Vida que expressam o novo.
No conjunto, hoje, cada casa, j reformada, no raro com a construo de um primeiro
andar, conta com uma garagem na qual se encontra um carro popular (ou dois). Os
moradores, em sua maioria, constituem o que se passou a denominar, nos ltimos anos,
de nova classe mdia brasileira. Pequenos comerciantes, prestadores de servios e
trabalhadores do setor de servios da Zona Sul de Natal. A dinmica econmica mais
geral impactou esse espao. Pet Shops, sales de cabeleireiras, lanhouses e mercadinhos
foram, pouco a pouco, tomando conta da rua principal do conjunto. O asfaltamento
chegou s vias de acesso ao conjunto, muito embora as guas servidas, oriundas das
vilas e bairros que j existiam antes do mesmo ser construdo, invadam constantemente
seus espaos pblicos e privados.
30
Bares e barracas tomam conta dos canteiros. Aos domingos, em alguns deles,
teles transmitem jogos de futebol. Espetinhos e cerveja so consumidos pela clientela,
majoritariamente masculina. Carros, motos e bicicletas dominam essa paisagem. Mas,
ao lado das carroas dos catadores de lixo reciclvel, ainda podem ser vistas carroas de
antigos moradores da regio carregando produtos agrcolas, destinados venda na feira
municipal, situada em uma rea urbana mais antiga, no muito distante.
Foi esse mundo, tal como um iceberg se movimentando pelo oceano, que veio
aportar na ilha onde Dona Mida e os seus desenvolviam, em ritmo diferenciado, as
suas vidas. Eis um recurso metafrico que, no poucas vezes, recorri para pensar nas
transformaes que estavam ocorrendo na regio. Com a perspectiva analtica que o
olhar distanciado nos proporciona, dei-me conta do quanto de idealizao havia nessa
construo. E de etnocentrismo tambm. Isso porque, como pressuposto no explicitado
da nossa avaliao pessimista, havia a assuno de que sabamos o curso que os
rumos do desenvolvimento urbano sobre um mundo de Dona Mida iria seguir. Quanta
pretenso! Estvamos, ento, sob o domnio de um tipo de apreenso do mundo
denominado por Marshall Sahlins de pessimismo etnogrfico (SAHLINS, 1997). No
havia incorporado ainda a proposio de que os encontros sempre tm um qu de
imprevisibilidade, e mesmo quando estruturas poderosas parecem pr-determinar o
rumo das coisas, estas se revoltam e inventam novos mundos. At porque, muitas vezes,
o que pensamos como coisas, em realidade, so pessoas.
Quando Dona Mida decidiu criar a Lavanderia, que a base da investida
analtica do presente trabalho, j estvamos produzindo um trabalho monogrfico de
concluso de curso de graduao a respeito de seu mundo. Mais exatamente, a respeito
da vida de sua me, Dona Nazar, que no momento de escrita deste trabalho caminha
saudvel para os 100 anos de idade.
Mas, que mundo mesmo esse, o de Dona Mida? Adiantamos que o uso da
palavra mundo tem um sentido aqui apenas alegrico. A cristalizao do outro/a em
um mundo parte menos expresso de minha pouca familiaridade com os termos da
antropologia, e mais incapacidade analtica de perceber como os mundos se misturam.
Mistura essa que ocorre h muito tempo. Quem v imobilidade no outro,
cristalizando-o na condio de nativo, no apenas comete erro poltico como incorre
em um empobrecimento analtico. Em realidade, quando fazemos um zoom e
31
ampliamos o escopo histrico de nossa anlise, damo-nos conta de que as pessoas, bens
e ideias esto em constante fluxo, movimentando-se, migrando. Por tudo isso, voltando
pergunta que abre o pargrafo: diramos que o Stio So Pedro a base territorial
desse mundo.
E o que o Stio So Pedro? A resposta nunca ser objetiva. Antes, era uma
pequena propriedade rural situada em Rio dos Negros, uma localidade na qual se
localizava um pequeno povoado e que era cercada de muito mato por todos os lados.
Outra possvel resposta a de que o Stio So Pedro no existe mais. Pelo menos para
algumas agncias estatais (para outras, como o INCRA, ele existe, sim) e empresas
prestadoras de servios, como aquelas de telefonia e eletricidade e de cartes de crdito.
Para estas, o que existe um muro grande e pintado com uma cor prxima do salmo,
situado em uma rua (Mar da Galilia), e que tem como nmero identificado 52.
Atravessando-se o porto, hoje de ferro, e que durante o dia quase sempre est aberto, as
casas que encontramos so identificadas pelo nmero acrescido de uma letra do
alfabeto. A propriedade, que foi sendo amputada pelos proprietrios vizinhos, mede 80
metros de largura por 1.000 metros de cumprimento.
J dentro da rea murada, aps ultrapassarmos a ltima casa, na qual reside um
irmo de Dona Mida, damo-nos conta de que o que pensvamos ser um povoado
uma propriedade que se estende adiante, rumo ao poente. O visitante ser ento
informado de que a propriedade atravessa o rio e vai um quilmetro adiante.
32
Ilustrao 01:O porto de entrada para o Stio So Pedro.
Se a visita ocorrer em um final de tarde, certo que o visitante encontrar
pessoas sentadas em cadeiras improvisadas ou tamboretes de madeira em frente casa
onde reside Dona Mida, situada ao lado do pequeno galpo onde funciona a
Lavanderia Me & Filhas. Mulheres e crianas em sua maioria, a no ser que a tarde
seja de um domingo. Nesse caso, alguns homens, quase todos eles maridos de filhas de
Dona Mida, tambm estaro nesse espao.
O visitante poder ser informado de que at bem recentemente (meados dos anos
1990), o rio, aos domingos, tornava-se a praia dos moradores locais. Tambm ser
informado de que, na rea de vazante desse mesmo rio, produziam-se legumes,
hortalias, feijo, milho, batatas e frutas. Ao questionar sobre o porqu da suspenso
gradativa das atividades agrcolas, o visitante ser informado de que, com a poluio do
rio que corta a propriedade, essas culturas de cereais e legumes tornaram-se inviveis.
Tambm ouvir que os roubos de produtos agrcolas e a presena de pessoas estranhas
tambm contriburam para desestimular a agricultura e diminuir significativamente a
criao de animais. Esta atividade, como se ver mais adiante, foi reativada fortemente
neste ano, com um investimento coletivo das mulheres do Stio na criao de porcos.
33
Ilustrao 02: Dona Mida
Aps pouco tempo no stio, a impresso de que se adentrou em um mundo
parte reforada. Especialmente quando se tem em mente que, do outro lado da rua,
comeam as casas do Conjunto Jockey Clube e a sua dinmica urbana j referida.
Ilustrao 03: Localizao do Stio So Pedro na malha urbana de Parnamirim.
Os elementos apontados acima devem ser tomados como uma primeira
aproximao do espao social no qual se desenrolou a maior parte da vida de Dona
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Mida. foroso reconhecer o seu carter um tanto quanto impressionista. Para superar
tal abordagem, no tpico que segue, buscaremos apreender o lugar a partir do ngulo de
nossa parceira cognitiva2.
1.2. O lugar: teatro da memria do ator
A atual localizao das casas no Stio So Pedro fruto de um deslocamento dos
moradores no interior da propriedade. Em uma de nossas conversas, Dona Mida
esclareceu esse detalhe:
Bem, aqui... A gente no morava por aqui. A gente morava l, do lado de l, n. Aqui era
tudo mato. L tambm era, mas l... Esse pessoal morava l. Ns, tudinho, l do outro lado.
Meus tios, minhas tias...
O outro lado a que se refere Dona Mida a parte da propriedade situada na
margem esquerda (ao poente) do Rio Pitimbu. Essa demarcao de lugar importante,
pois se refere tanto ao espao quanto ao tempo. A passagem para a margem de c, isto
, mais prxima da rea que vai sendo envolvida pela urbanizao, teve razes
funcionais (as coisas ficavam pra c) e simblicas (l era mais para dentro do
mato). Mas Dona Mida se apressa em chamar a ateno para o que havia de
semelhante: As casas ficavam perto uma da outra como aqui hoje. Uma aqui, outra
ali.
A mudana para o lado de c ocorreu gradativamente, impulsionada pelo
irmo mais velho. Este, aps o casamento, construiu a sua casa na margem direita.
Depois, a me, Dona Nazar, j viva, decidiu tambm se mudar. Dona Mida, algum
tempo aps o casamento, tambm mudou o lugar de sua casa, que era de taipa na poca.
O rio, com suas guas, poderia ser tomado como uma espcie de veia aorta, por
meio do qual escorre o sangue vital de todo um grupo social. O rio, esse divisor de
tempo e espao, no qual as mulheres de Moita Verde (rea que engloba o stio e que
hoje oficialmente reconhecida como comunidade quilombola, para o Governo Federal, e
como Zona Especial de Interveno Social, para a Prefeitura Municipal)
desenvolviam o seu trabalho de lavagem de roupas, lembrado como no apenas o
lcus do trabalho, mas tambm das festas e da sociabilidade. o que sobressai na
2 Dona Mida no apenas o principal sujeito desta empreitada analtica, mas tambm nossa parceira
cognitiva, na medida em que o seu partilhar de percepes e categorias de classificao do universo social foi decisivo para dar sentido a esta narrativa.
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rejeio que Dona Mida faz das elaboraes apressadas ao comentar a degradao
ambiental do mesmo:
O povo pensa... Tem gente que diz: No!... Esse rio nunca foi limpo. Mas, vixe Maria!, todo mundo vinha tomar banho a... Parecia uma praia. No sbado, feriado e quando o rio
tava cheio, Ave Maria!, se juntava essa negrada todinha. Era branco, era preto, tudo
misturado...
O vis tnico presente na considerao feita por Dona Mida bvio.
Entretanto, levando em conta o contexto da conversa, incorreramos em uma anlise
superficial se nos arriscssemos a tentar apreender algo mais alm das categorias
hegemnicas na sociedade brasileira de classificao das diferenas tnicas.
Voltando aos deslocamentos das residncias de um lado para o outro do rio,
importa ressaltar que muitos antigos moradores, vizinhos da famlia de Dona Mida, ao
contrrio dos seus familiares, mudaram-se porque venderam as suas propriedades. A
valorizao das terras, com o avano do processo de urbanizao no que hoje uma
rea incorporada Regio Metropolitana de Natal, foi um dos elementos
impulsionadores da redefinio das relaes sociais e da vida social local na rea de
Moita Verde. Esse processo, tantas vezes analisado (ou denunciado) em outros
contextos, geralmente apreendido a partir dos seus aspectos macrossociolgicos. Por
outro lado, com um registro centrado na apreenso do ator e voltando-se a uma anlise
de tipo mais microssocial, possvel abordar como esse processo (que poderamos
denominar, correndo o risco de incorrermos em um lugar-comum, de expulso dos
camponeses de suas terras pela expanso das foras de mercado) foi apreendido ou
sentido pelos atores que o vivenciaram. No nosso caso, mesmo que no abordando
diretamente essa questo, em uma de nossas conversas com Dona Mida, ao responder
a uma pergunta sobre o que ela e suas amigas conversavam, comentou:
No, a j nos afastamos, porque a venderam e foram embora para a rua e eu fiquei s aqui.
Sozinha, no ? Somente quando tinha festa que elas vinham e a gente se via, l na igreja,
em Passagem de Areia.
Em outra conversa, comentando sobre a famlia de seu marido, Dona Mida
chamou a ateno para o fato de que eles tinham tido posses, mas haviam sido levados a
vender as terras. Passaram a viver trabalhando para os outros e morando na rua.
Rua no tem, para ela, uma conotao muito positiva. Tanto que faz questo de
afirmar sempre que reside no Stio So Pedro.
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As mudanas no entorno no deixaram de impactar fortemente a vida no Stio,
na leitura de Dona Mida. Ao lado da degradao ambiental do Rio Pitimbu, a
insegurana outra expresso negativa das redefinies ocorridas na regio, segundo a
sua leitura. No por acaso, no seu discurso, as duas dimenses aparecem articuladas:
Menina! Porque est tudo diferente. Porque quando a gente descia a, era tudo mato do
lado, mato de outro. Cada moitona! A gente passava o caminho... O rio s era limpo, s era
limpo no rio. A gente chegava, jogava a roupa, no tinha quem bulisse, era tudo verdinho.
Tinha mato....
Acabou-se... Porque aqui onde tem umas amostrinhas s nessa granja a. por isso que
ela no faz nada l na frente da granja, que s aquele mato. A gente tinha alecrim, era
rebenta boi, coboim, agave... Tudo isso tinha e hoje em dia no tem mais nada. S tem, a,
umas amostrinhas... Daqui pra BR era mato. Era mangabeira, era tudo mato, carrapateira.
Cada carrapateira que era imenso! Quem carregava, a, achava lenha da. Aqui era mangaba
que s no sei o que. Mame mandou Pedro derrubar, mas se no fosse era mato, por isso
que esse vizinho da gente tem muita mangaba. Porque do jeito que tem a os ps de
mangaba, aqui tambm tinha.
A degradao ambiental do rio foi um tema recorrente em nossas conversas. A
referncia funciona, para Dona Mida, como uma espcie de metfora para ler o mundo.
Ler as metforas de Dona Mida um exerccio que exige ateno e sensibilidade. Isso
porque, na maioria das vezes, pode haver um choque de esquemas de linguagens entre o
pesquisador e o pesquisado. Essa condio, somada ao ilusrio sentimento de
importncia acadmica, pode resultar no empobrecimento do trabalho de pesquisa. Com
essa ateno que transcrevo abaixo outra dessas referncias:
Ah! O rio era uma beno. Todo mundo vinha tomar banho. De l de Passagem de Areia at
aqui. Menina! Esse rio era uma beno. Uma coisa maravilhosa para muita gente. Gente de
toda essa Parnamirim. Hoje em dia... Ah, Virgem Maria!
Vale a pena registrar que a degradao ambiental da rea do Rio Pitimbu
atualmente um dos assuntos de pauta dos debates a respeito da sustentabilidade da
oferta de gua para a regio urbana de Natal. Trata-se de um processo socioambiental
ocorrido nas trs ltimas dcadas e cujos desdobramentos negativos ainda esto para ser
estimados.
J em relao insegurana, um registro que fizemos no nosso dirio de campo
d uma amostra do impacto que a emergncia desse problema tem tido sobre a famlia
de Dona Mida:
Hoje, cheguei por volta das 10h30. Dona Mida, Dona Nazar e algumas filhas estavam
reunidas nas cadeiras e sof que ficam embaixo das rvores. Dessa vez eu no tinha
nenhum ponto objetivo para explorar. Em verdade, fui para manter o elo, jogar conversa
fora...
Elas estavam um pouco caladas. Eu fiquei inicialmente pensando que seria por causa da
minha presena. Depois fiquei sabendo que havia acontecido oroubo de todas as galinhas
37
de Dona Mida, que estavam dentro do stio, pela madrugada. Ningum havia escutado
nenhum barulho. Elas, apesar de tristes, tentavam especular o que teria acontecido. Ser que
foi algum conhecido?Pelo que me foi possvel depreender, pelas conversas paralelas, elas
suspeitam de algum conhecido. (Dirio de Campo, 27/06/2010).
A insegurana no entorno da rua em frente ao stio (e s propriedades vizinhas
de membros da comunidade) se tornou ponto de pauta das nossas conversas no Stio. E
essa realidade, que expressa o aumento da vulnerabilidade do lugar, passou a fazer parte
tambm das nossas preocupaes. Uma situao, registrada no nosso dirio de campo,
expressiva nesse sentido:
Hoje, tentei fazer mais uma visita e no foi possvel. Desta vez fui dirigindo o carro.
Quando eu estava a caminho, com o carro em baixa velocidade, percebi dois rapazes vindos
em minha direo, um caminhado e o outro em uma bicicleta. Eles fizeram uma
movimentao que eu li como a inteno de me assaltar. Voltei assustada para cassa.
Telefonei para Dona Mida. Ela perguntou detalhes e disse que a rea realmente estava
muita insegura. Disse-me que em uma reunio dos quilombolas o assunto dos assaltos teria
sido colocado em pauta. Lembrou que sua parenta americana havia sido assaltada em uma
rua prxima ao stio. Ao final da conversa telefnica, Dona Mida disse-me que eu no
deixasse de ir l.(Dirio de campo, 15/02/2011).
1.3. O lugar como comunidade quilombola e a questo da posse da
terra
Os diversos fatores que levaram ao declnio das atividades agrcolas, alguns
estruturais, outros ligados a processos endgenos comunidade (como a dinmica
familiar do ncleo estabelecido por Dona Mida), tm levado a que a dinmica de
ocupao urbana do solo venha se impondo tambm na rea, particularmente no Stio
So Pedro. Esse resultado, que cria novos focos de tenso e angustia Dona Mida e sua
me, de forma paradoxal, foi produzido pela interveno dos organismos
governamentais (INCRA, em especial), que levaram identificao de Moita Verde
como comunidade quilombola.
A identificao da rea como comunidade quilombola se resolve o problema da
posse da terra, dado que estabelece garantias legais para o usufruto do solo, cria
complicaes para os ttulos individuais de propriedade. E os membros da famlia,
especialmente aqueles que no fazem parte do ncleo familiar de Dona Mida e que, h
tempos, haviam sado da rea do stio, agora encontram no novo estatuto
(quilombola) uma justificativa para uma entrada (invaso?) do stio.
Como abordaremos em outra parte deste trabalho, o processo de construo
social da comunidade quilombola, ativamente encaminhado por ONGs, e, no ltimo
ano, tambm assumido pela Prefeitura Municipal de Parnamirim, implica em certo
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rebaixamento da capacidade de autodeterminao dos moradores locais. No deixa de
ser uma situao paradoxal. Novas foras intervm, supostamente atuando a favor da
comunidade, mas contribuem indiretamente, talvez at contra as vontades individuais,
para a diminuio da autonomia das pessoas, conforme pudemos ler nos
acontecimentos. Contribuem tambm para o no reconhecimento das particularidades
desse povoado. Isso porque a criao da categoria quilombola e sua aplicao prtica
nas polticas pblicas, de certa forma, homogeneza todo um conjunto populacional com
particularidades histricas, polticas, sociais e culturais. Vale lembrar que grupos sociais
como foram mantidos, historicamente, socialmente invisveis e excludos das polticas
do Estado brasileiro.
Exemplo de uma situao em que foras que esto supostamente a favor
contribuem para a minoridade (e dinamitam o projeto emancipador que, na retrica,
anunciam) o caso a respeito da tentativa de ingerncia de uma ONG na gesto da
prpria Lavanderia Me & Filhas. Referimo-nos sugesto, feita por um dirigente da
ONG Quilombo, para que a lavanderia criada por Dona Mida se tornasse uma
lavanderia coletiva. A sugesto, rejeitada com veemncia por ela, contraria os
projetos de evoluo do empreendimento desejados por Dona Mida e suas filhas. E a
direo desejada no outra seno aquela de uma pequena empresa prestadora de
servios. Seria esse mesmo o melhor caminho que a iniciativa da Lavanderia Me e
filhas deveria tomar? Quem tem legitimidade para fazer tal afirmao?
O mesmo processo se d com a Prefeitura Municipal de Parnamirim ou, quem
sabe, com o prprio governo federal. O reconhecimento do stio como comunidade
quilombola e a criao das chamadas ZEIS (Zona de Especial de Interesse Social) faz
com que a prefeitura acesse recursos do Governo Federal para a construo de casas
em Moita Verde. No jogo de foras entre os rgos da Prefeitura e a liderana
quilombola, o direito propriedade individual e familiar, assim como a titulao das
terras, tem sido sacrificado em nome do coletivo (comunidade quilombola). Para a
Prefeitura, trata-se de uma situao ideal: feiras podem ser distribudas, casas podem ser
construdas a baixo custo, sem que se tenha que arcar com os custos advindos da
resoluo dos aspectos legais da titulao dos imveis.
Uma traduo do que mencionamos acima um caso que testemunhei quando
tive a oportunidade de participar em abril de 2011 de uma das reunies com os
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quilombolas e representantes da prefeitura. Assim, estando em minha casa, em um
certo dia do ms de abril, eis que ouo o anncio vindo de um carro que transitava pelas
ruas do conjunto, convidando os moradores para uma reunio que aconteceria s sete
horas da noite no stio Santo Antnio. Na oportunidade, seriam discutidas questes
referentes s obras de drenagem e lagoa de capitao do conjunto Jockey Clube e Moita
Verde, estando todos os moradores convidados a participar. Como eu no havia sido
convidada para participar de reunies no quilombo esta seria a minha vez de observar
uma reunio.
Nossa primeira observao foi a deque o pblico era em sua maioria composto
por mulheres e crianas, os poucos homens presentes se mantiveram distantes, em
posio de observao. Moradores das casas do conjunto Jockey Club, apenas eu. A
pauta da reunio foi iniciada com a apresentao de uma representante de uma ONG,
que trabalha com micro crdito destinado criao de pequenos negcios em
comunidades quilombolas. O dinheiro para os respectivos emprstimos provm de um
banco suo. A apresentao da proposta, um tanto de modo imperativo, foi esplanada
pela representante da ONG, tendo sido referendada por representantes da Caixa
Econmica Federal e da prefeitura. Enquanto os quilombolas tentavam entender a
proposta, apresentada em uma linguagem que gerou dificuldades para quem a ouvia,
inclusive a pesquisadora, a representante da ONG se incomodava diante da apatia do
pblico:
Vamos, gente! Quem aqui j tem um pequeno negcio que queira expandir? Quem trabalha
com encomenda de docinhos para festa? Atelier de costura, trabalhos manuais, lavanderia
de roupas? Vamos, gente! Aqui ningum trabalha, no? Vocs podem fazer esse
emprstimo para comprar material, para poder comear a trabalhar. Por exemplo, se lava
roupas, compra sabo. Se a pessoa faz doces e no pode aceitar uma encomenda maior,
agora pode comprar farinha, acar... So pequenos emprstimos para comear o negcio.
Seguidamente entra em cena uma vassoura feita de garrafa pet. Manipulando a
vassoura enquanto falava, a representante da ONG ressaltava que o que eles estavam
vendo no era apenas uma vassoura; aquilo era um sonho de uma vida melhor. A
vassoura o resultado de um trabalho desenvolvido em uma das comunidades
quilombolas assistidas pelos emprstimos com o banco suo. A mesma pessoa afirma
que eles deveriam querer tambm aquele sonho para suas vidas. Entre o pblico da
reunio, uma das mulheres, levantando a mo, diz que deseja tambm montar uma
fabrica de vassouras pet.
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No trmino da reunio, toma a fala um dos secretrios da prefeitura, com um
discurso para enfatizar as aes da prefeitura atual: Olhem, percebam que em trinta
anos nunca Moita Verde foi lembrada e agora vocs esto recebendo uma casa para
morar.
No entanto, mais que uma casa pra morar obedecendo aos moldes do governo, o
que incomoda a populao de Moita Verde atualmente tem sido mesmo a invaso das
guas da chuva, decorrente da pavimentao das ruas do conjunto Jockey Club e
consequentemente da impermeabilizao da rea que antes servia de filtro natural
dessas guas. E isso explodiu na reunio com os reclamos velados de um ou outro
morador. Mas o clima ficou tenso com os gritos de Das Dores, uma das primas de Dona
Mida:
Agente no quer casa, no, a gente no quer reforma, no! E essas guas? Quando que
vo darum jeito nessa gua? Estamos vendo a hora de essas guas sarem arrastando as
casas e todo mundo junto. Por que no tocam nesse assunto? Que coisa essa? um
absurdo!
Alm da necessidade emergencial de construo de uma lagoa de captao, o
saneamento bsico tem o mesmo carter. Isso porque uma vala construda por uma
administrao anterior, para receber guas pluviais, acabou servindo de escoadouro de
guas servidas, depositadas pela prpria populao do entorno, de modo que todas essas
guas servidas esto sendo depositadas no rio que corta a propriedade da famlia de
Dona Mida. No entanto, de acordo com o que diz o secretrio da prefeitura, eles devem
ter pacincia e aceitar, j que esto recebendo as casas, as reformas e, em um futuro
prximo, recebero o benefcio da construo de uma lagoa de captao na rea do
conjunto Jockey Club. Essa construo impediria que as guas entrassem na rea do
quilombo. Nas palavras do secretrio, caso vierem a exigir uma obra de maior porte,
que seria o caso da drenagem das guas e tambm do saneamento bsico da rea do
entorno, com certeza isso dificultaria e os prazos se estenderiam enormemente.
Nessas condies de negociao tenho dvidas se realmente apropriada a
colocao da palavra ou de dilogo ou aproximao com os atores da poltica local,
fica claro a fragilidade em que sempre estiveram a famlia de nossa personagem, e que a
condio de tornarem-se quilombolas, embora traga benefcios materiais e
reconhecimento simblico, tambm implica em perda substantiva de autonomia.
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Sobre essa delicada questo, a qual no deixa de atravessar tanto o campo da
militncia poltica (especialmente dos atores engajados em ONGs) quanto o acadmico,
vale a pena, embora a citao seja um tanto longa, transcrevermos a apreenso feita por
um pesquisador que analisou a construo social das terras de preto no estado do
Maranho:
A redefinio conceitual (de terra de preto para quilombo, AMC) implica tambm numa adequao aos contextos polticos nos quais as presses sociais ou o prprio Estado
impem determinados temas como problemas a serem examinados segundo os interesses
em disputa. No jogo poltico, que se reflete em diferentes campos intelectual, institucional e de mediao o Estado, ao mesmo tempo em que impe o objeto de disputa, estrategicamente sugere que d importncia s demandas oriundas desses campos, o que faz
com que os atores referidos aos mesmos joguem o jogo posto em funcionamento.
(SOUSA FILHO, 2008, p. 27).
Hoje a comunidade ou quilombo de Moita Verde faz parte de uma ZEIS.
Demarcada pela prefeitura, com o suporte de pesquisadores locais, essa definio serve
de critrio para o repasse de verbas federais para o municpio. A ZEIS na qual est a
rea, no municpio de Parnamirim, engloba quilombolas e no quilombolas. Essa
situao facilita as aes da prefeitura no que diz respeito ao manejo e aplicao
desses recursos, legitimando obras em reas no quilombolas. Essa situao tem feito
emergir problemas que anteriormente se resolviam entre as foras de interveno
familiares. Esse o caso das construes de casas por membros mais novos das famlias
agora identificadas como quilombolas, com o apoio da Prefeitura, mas sem o
consentimento dos seus familiares mais velhos.
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Ilustrao 04: Representao grfica, inserida em projeto oficial, da rea de Moita
Verde.
O que foi escrito mais acima ganha traduo viva quando levamos em conta as
percepes e sentimentos dos atores. No trecho mais abaixo, retirado do nosso dirio de
campo, um pouco dessa realidade transmitida:
Logo ao atravessar o portal de entrada do stio, fui surpreendida com a construo de uma
casa. Achei estranha a posio em que estava sendo erguida a casa. Fui at a casa de Dona
Nazar. Ela estava meio abatida. Aps alguma conversa, contou-me que o seu filho mais
novo tinha protagonizado uma briga no stio porque queria construir a casa para o filho da
mulher dele. Para Dona Nazar, Dona Mida e suas filhas, o rapaz no teria direito de
construir ali, dado que no neto biolgico da matriarca. O rapaz enteado do filho de
Dona Nazar. Para complicar, o rapaz havia ordenado que construssem a casa de uma
forma que impedia a passagemdos pedestres e carros.Conversando com uma das filhas de
Dona Mida, ela me contou que a briga fui muito grande. E que ela e suas irms no
conseguiam entender como o seu tio havia conseguido o direito da construo das casas,
atravs de um programa do governo e da prefeitura para as comunidades quilombolas, j
que ele tem sua prpria casa e o rapaz que iria morar, no vivia ali e nem fazia parte da
famlia. (Dirio de Campo, 20/05/2011).
A identificao da rea como comunidade quilombola um processo que tem
reaes contraditrias. H rejeies veladas, foi possvel perceber. Mas tambm existe,
nos discursos de uma das filhas de Dona Mida, a clara conscincia de que alguma
coisa est vindo pra gente. A prpria Dona Mida, em uma de nossas entrevistas,
referiu-se a essa dimenso:
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No ano passado veio uma feira grande para 25 famlias. A feira s para quem t passando
preciso. Quem trabalha, no recebe. Ficou de ser para todo mundo daqui dos quilombos,
mas primeiro s uns que vo receber. A feira grande, d para trs meses. de cinco
quilos de cada coisa, e vm trs sacolas, uma quantidade para cada ms. E as casas? Desde
2007, quando teve uma reunio aqui... Veio um monte de gente, prefeito e tudo. Foi antes
da eleio. Agora que vieram fazer as casas...
Dadas as questes anteriormente expostas, a interrogao sobre a posse da terra
por parte da famlia de Dona Mida importante. Pelo menos era assim que
pensvamos durante grande parte do nosso trabalho. Essa foi uma preocupao que no
deixou de ser registrada no nosso dirio de campo:
Perguntei mais uma vez a respeito da propriedade da terra. Dona Nazar contou a seguinte
histria: A filha do Manuel Jorge, Frana, escondia os documentos da terra. Uma vez,
quando precisou comprovar, os documentos haviam enferrujado porque ela o escondia em
uma lata enterrada. Quando j estava viva, apareceram umas pessoas fazendo medio dos
terrenos todos da rea e disseram que o governo disse que terra que no era cercada no tinha dono. Enquanto Dona Nazar falava, dona Mida fazia referncia que essas pessoas
seriam o povo do Jockey3.
No texto acima, mais do que uma narrativa sobre o processo de aquisio da
propriedade da terra, temos a apresentao de algo que se pode, com alguma
condescendncia do leitor, denominar de mito fundador. Essa compreenso no
diminua a nossa inquietao em relao posse da terra.
Como foi possvel que a famlia do pai de Dona Mida tivesse garantido a posse da
terra na qual se situa o Stio So Pedro? O preo que Dona Nazar, sua me, teve que
pagar para manter o domnio da propriedade no foi pequeno. Mas isso s no explica
essa situao. Durante muito tempo, no desenvolvimento da pesquisa, fomos levados a
avanar nesse questionamento. Em determinado momento, percebemos, enfrentamos
resistncias. O assunto no era confortvel para as minhas interlocutoras. Por outro
lado, em um exerccio de auto-objetivao, demo-nos conta do quanto estvamos
enveredando por uma investigao quase paralela a respeito do processo de posse da
terra. No seria essa preocupao uma manifestao de etnocentrismo acadmico? No
estaramos, de algum modo, dando vazo a uma inquietao tpica do universo da classe
mdia a respeito da posse de algo (uma propriedade rural que foi sendo incorporada
dinmica urbana da Grande Natal e que, em consequncia disso, tornou-se valorizada
monetariamente?). O desenvolvimento dessa reflexividade nos levou a abandonar
tarefas tais como a investigao em cartrios do municpio, a respeito do processo de
3 Ao falar de Povo do Jockey, Dona Midas e refere no aos moradores, mas aos grupos de
empresrios rurais ligados criao de gado e organizao de Jockey existente nas dcadas de 50, 60, onde hoje o conjunto residencial Jockey Club.
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transmisso da posse. At porque essas interrogaes suscitaram atitudes de reservas
por parte de minhas interlocutoras. Ento, em certo momento de autoanlise nos
perguntamos o que mesmo estamos procurando? De que vale potencializar em nosso
trabalho questes referentes titulao dessa terra? De que valeria isso para essa
pesquisa em especial? O valor de mercado que ela tem hoje? A nossa insistncia em
tocar nesse tema-tabu poderia comprometer o desenvolvimento de nossa investigao.
Ento, resolvemos no insistir nessa questo, at para respeitar os limites tcitos que a
relao pesquisador e pesquisado pressupe.
1.5. Dona Nazar, a fora do Stio So Pedro
Se os atores esto em permanente (re) construo, o mesmo ocorre com os
lugares. E com o lugar onde se situam as pessoas que tratamos nesta narrativa no
diferente. Moita Verde? Rio dos Negros? Stio So Pedro? Os nomes emergem nas
memrias de Dona Mida, e, mais amide, naquelas de sua me, Nazar dos Santos
Moura, Dona Nazar.
Pode-se dizer que Rio dos Negros a denominao que, segundo nossas
interlocutoras, a mais antiga e corresponde ao nome que identificava o lugar quando
Dona Nazar, ento recm-casada com Moiss Crispiniano da Silva, veio morar a,
advinda de Capoeira dos Negros, localidade situada no municpio de Bom Jesus,
distante no mais do que 80 km de onde veio morar, mas um lugar que, na sua narrativa,
adquire uma distncia gigantesca. Como ela nos conta, o que ela encontrou foi como se
fosse um outro mundo. E efetivamente era, podemos deduzir pela sua fala. Enquanto
em Capoeira, j encravada na rea de transio entre o Agreste e o Semirido, as
privaes eram grandes, no Rio dos Negros do seu tempo, havia muitos refrigrios
e bonana: fruteiras, plantaes na margem do Rio, alm de um regime de chuvas que
permitia pelo menos uma colheita segura no ano.
A situao, at certo ponto singular, de membros de uma populao negra
possuir a posse de uma faixa de terra situada em uma rea de h muito ambicionada pela
especulao imobiliria, envolve estrias e histrias. O que podemos asseverar que,
atravs de um processo de negociao e mobilizao de antigas relaes de
apadrinhamento, as pessoas da comunidade conseguiram a posse de uma extenso de
terra, a qual foi repartida entre os filhos da primeira gerao que l chegaram, formando
um aglomerado de pequenos stios.
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Vale a pena registrar que esses stios localizavam-se em uma extensa rea de
terras que passou a ser propriedade de um portugus por nome de Manuel Machado, na
segunda dcada do sculo XX. A regio na qual se situa atualmente o Stio So Pedro
distante da parte central da propriedade, na qual se localizava uma estao da ferrovia
que ligava Natal a Nova Cruz, inaugurada na dcada de 1880. Tal estao, denominada
de Cajupyranga, era na verdade localizada na sede da propriedade. Dada a importncia
desse personagem para a nossa narrativa, j que tanto Dona Nazar quanto Dona Mida
referem-se a ele como tendo doado (ou autorizado a posse) da terra para os seus
ancestrais, vale a pena uma referncia maior.
Nessa mesma poca, presume-se que tenham chegado capital potiguar os irmos
portugueses Manuel e Cludio Machado. Na esquina da rua Chile com a Tavares de Lira,
Ribeira, abriram uma loja que vendia de tudo, conhecida pelo sugestivo nome de Dispensa Natalense. Os dois enriqueceram no comrcio, integrando-se vida social local. A firma M. Machado & Cia era uma das mais conceituadas no Estado e logo diversificou os
negcios. Manuel Machado casou-se, em 1903, com dona Amlia Duarte, filha do
proprietrio de um hotel na antiga Rua das Virgens, bairro das Rocas, e em 1920 comprou
de Jorge Barreto o casaro da praa Dom Vital, ao lado da Igreja do Rosrio, Cidade Alta.
Em 1927 ele j era o dono das terras do Engenho Pitimbu, que se estendiam dos limites
com os Guarapes, Macaba, ao norte, as terras do Engenho Cajupiranga, ao sul.
(PEIXOTO, 2003, p. 29).
Um primeiro fato histrico que redefiniu a dinmica espacial desse lugar foi o
acordo dos governos brasileiro e norte-americano, durante a Segunda Guerra Mundial.
Este impactou enormemente a vida da cidade de Natal e seu entorno. Especialmente de
Parnamirim, onde foi construda uma base militar norte-americana, a Parnamirim Field.
Distante no mais do que quatro quilmetros, mesmo se de mata fechada, estavam os
moradores de Rio dos Negros. E, entre eles, Dona Nazar, seu esposo e seus quatro
filhos pequenos.
Do lugar, relata-nos Dona Nazar, ouviam-se os rudos dos avies em
Parnamirim Field, mas esses eram acontecimentos compli