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Folclore e cultura popular no Brasil: Década de 50 – institucionalização do folclore como ciência social Década de 60 – folclore enquanto uma ideologia política Década de 70 – Folclore como patrimônio NA DECADA DE 50 Para assegurar as fronteiras e articulações do espaço nacional e consolidar a dita “identidade” territorial, houve a valorização de elementos da cultura brasileira, idealizando um sentimento de brasilidade, que seria capaz de diluir as diferenças existentes no país, fruto do nosso crescimento desigual e afobado. A lógica de escolha de determinados elementos pinçados na cultura brasileira – o reconhecimento de determinados elementos como sendo representativos dela – veio acompanhado da tendência à idealização da cultura, construindo muitas vezes um passado idílico para o país. (HERMANN, p.13) “Se o folclore brasileiro é o produto histórico da convergência de três grandes troncos culturais, outras contribuições, poderiam, sem ameaçar a integridade deste todo, incorporar-se a ele” (VILHENA, 1994, p.195) Mais do que a manifestação empírica de um objeto qualquer eleito “autêntico” e símbolo das classes populares e/ou da identidade nacional, o discurso da cultura popular assume no tempo e no espaço sentidos diferentes no conjunto das práticas e representações literárias, artísticas e científicas que formam o campo discursivo das Interpretações sobre o Brasil, em geral, e do discurso das Ciências Sociais, em particular. (ROCHA, 2009, p.220) As discussões iniciais acerca do patrimônio imaterial, também denominado intangível, coincidem com as discussões em torno do significado antropológico de cultura no mundo

Dissertação - Cultura Popular e Autenticidade

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Folclore e cultura popular no Brasil:

Década de 50 – institucionalização do folclore como ciência social

Década de 60 – folclore enquanto uma ideologia política

Década de 70 – Folclore como patrimônio

NA DECADA DE 50

Para assegurar as fronteiras e articulações do espaço nacional e consolidar a dita “identidade” territorial, houve a valorização de elementos da cultura brasileira, idealizando um sentimento de brasilidade, que seria capaz de diluir as diferenças existentes no país, fruto do nosso crescimento desigual e afobado. A lógica de escolha de determinados elementos pinçados na cultura brasileira – o reconhecimento de determinados elementos como sendo representativos dela – veio acompanhado da tendência à idealização da cultura, construindo muitas vezes um passado idílico para o país. (HERMANN, p.13)

“Se o folclore brasileiro é o produto histórico da convergência de três grandes troncos culturais, outras contribuições, poderiam, sem ameaçar a integridade deste todo, incorporar-se a ele”

(VILHENA, 1994, p.195)

Mais do que a manifestação empírica de um objeto qualquer eleito “autêntico” e símbolo das classes populares e/ou da identidade nacional, o discurso da cultura popular assume no tempo e no espaço sentidos diferentes no conjunto das práticas e representações literárias, artísticas e científicas que formam o campo discursivo das Interpretações sobre o Brasil, em geral, e do discurso das Ciências Sociais, em particular. (ROCHA, 2009, p.220)

As discussões iniciais acerca do patrimônio imaterial, também denominado intangível, coincidem com as discussões em torno do significado antropológico de cultura no mundo contemporâneo. Haja vista o que diz Lúcia Lippi Oliveira (2008, p. 135): “nos dias de hoje, os discursos sobre patrimônio enfatizam seu caráter de construção ou invenção, derivado das concepções antropológicas de cultura, que passa a ser tomada como sistema simbólico, como estrutura de significado pelas quais os homens orientam suas ações”. Também Mariza Peirano, durante o Seminário Folclore e Cultura Popular (1992), identificou este momento como um reencontro da Antropologia com o Folclore, depois de um longo período de hegemonia da Sociologia no campo das Ciências Sociais no Brasil, e de “ideologismo” político da cultura popular no período pós-60. (ROCHA, 2009, p.229)

Temos assistidos nos últimos anos inúmeros movimentos e processos de construção de identidades, revitalização de expressões culturais, enfim, ações que apontam para um conjunto de representações que

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designam um momento de resgate das tradições culturais. É sabido que, para que uma tradição permaneça existindo ela deve modificar-se. Neste sentido, uma justificativa para a retomada da tradição, da memória e dos processos de construção identitária, por meio do patrimônio imaterial, sem que isso signifique uma volta ao modelo folclorista, consiste no peso dado à criatividade. (ROCHA, 2009, p.230)

Oscilando entre o rigor metodológico defendido pela Sociologia e a atividade etnográfica – se se pode dizer, bricoleur, experimentada no trabalho de campo e próxima da experiência folclórica – é que a Antropologia e a Cultura Popular se encontram, para além do bem e do mal. A aproximação recente da antropologia com o folclore encontra no patrimônio, mais uma vez, um meio termo para expressar em outras bases a cultura popular. Esta posição liminar, objeto de muitas críticas e sugestões é, talvez, o que nos permite compreender as dificuldades na definição do que é Cultura Popular. (ROCHA, 2009, p.233)

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O campo semântico da noção de „ritual‟ é, portanto, amplo, cheio de teorizações, transitando entre muitas acepções sugestivas. Na Antropologia brasileira, ocupam lugar de destaque os estudos pioneiros empreendidos por Roberto DaMatta (1973,1979) para quem os ritos „inventam‟ a vida social, representando uma dimensão eminentemente criativa e reflexiva. Vale lembrar os desdobramentos teóricos que o tema suscita (Peirano 2001), a atenção que os historiadores vêm devotando ao estudo das festas (Abreu 1999; Jancsó & Kantor 2001), e o crescente interesse pelo estudo de dramas e performances compartilhado por antropólogos, folcloristas, músicos, dramaturgos, estudiosos da linguagem e historiadores em geral (Turner 1982, 1987; Bauman 1978, 1992; Schechner, R. 1985) (CAVALCANTI, 2010, p.101)

Nesta análise, proponho explorar a rentabilidade analítica da noção de ritual a partir do exame etnográfico e comparativo de dois processos rituais festivos contemporâneos – o Carnaval carioca e o Boi-Bumbá de Parintins/Amazonas. [seus objetos de estudo] (CAVALCANTI, 2010, p.101)

além da capacidade de ampla articulação social e do desenvolvimento de linguagens artísticas sofisticadas, há outra razão, igualmente decisiva, porém mais dificilmente percebida, para o sucesso que, tanto no caso dos desfiles carnavalescos como no do festival de Parintins, tem aguçado a atenção da mídia televisiva e movimentado uma das maiores indústrias do planeta: a do entretenimento. (CAVALCANTI, 2010, p.103)

Os pessimistas ou nacionalistas extremados, ao acreditarem na inexorável homogeneização do mundo por valores alheios, sempre veem nessas festas o último suspiro da cultura popular. Urge enxergá-las sob outro ângulo. Essas festas falam – de maneira politicamente incorreta e sempre muito problemática, pois se trata afinal de cultura e não de ideologia – de formas de ser e de estar na história contemporânea tão expressivas quanto originais. (CAVALCANTI, 2010, p.103)

As duas festas existem, entretanto, na nossa história contemporânea. Um aspecto decisivo de sua significação repousa no encontro, momentâneo e crítico, entre a temporalidade histórica e progressiva e a temporalidade ritual cíclica. Um ponto central de sua manufatura coletiva é, justamente, a elaboração de mecanismos simbólicos que desenvolvem e correlacionam noções diferenciadas de tempo (CAVALCANTI, 2010, p.117)

[...]Tanto no carnaval como no Boi-Bumbá, o uso e a definição ritual do espaço concretizam e problematizam o jogo entre a temporalidade linear e a circular. (CAVALCANTI, 2010, p.118)

Através da visualidade do espaço e da lógica de seu uso pela dinâmica das respectivas narrativas, esses rituais expressam e problematizam diferentes noções do tempo e de sua passagem. Por isso, a preeminência do olhar na apreensão dessa informação, esse olhar integrado e sinestésico acionado nos contextos festivos que indiquei acima, é a razão cultural primeira do caráter espetacular de ambas as festas. (CAVALCANTI, 2010, p.118)

A estrutura simbólica dessas duas festas guarda também importante vínculo com a organização social mesma de suas competições, estabelecendo relações diversas com as cidades que as promovem.

Fenômeno até agora eminentemente regional, o Bumbá revela a contemporaneidade dos esforços de reformulação de um universo social de base tradicional. O desfile, por sua vez, desenvolveu um esquema competitivo essencialmente aberto. Esse mecanismo permitiu-lhe

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identificar-se, ao longo do século XX, com a redefinição e o crescimento de uma metrópole que problematiza através dele a sua própria ‘modernidade’. (CAVALCANTI, 2010, p.124)

Dado que já é praticamente inevitável negociar com a indústria e a política do entretenimento, o dilema principal agora passa a ser como estabelecer limites para essas negociações. Muitas das tradições afro-americanas desejadas para consumo são tradições sagradas e o sagrado não é negociável. Danças rituais de origem africana como o candomblé, o congado, o maracatu, as „taieiras‟ e seus equivalentes em outros países são performances de extrema sofisticação estética, porém profundamente devocionais: ocorrem de acordo com um calendário religioso e segundo as conexões mitológicas e rituais que dão sentido e colocam limites às expressões artísticas deles derivadas. (CARVALHO, 2010, p.59)

A estrutura do turismo étnico, que é a principal responsável pela “espetacularização” das tradições culturais exóticas, é o pano de fundo do incidente do Cuzco e de inúmeros outros que ocorrem frequentemente durante as apresentações de artistas populares. (CARVALHO, 2010, p.62)

Não esqueçamos, porém, das complexidades embutidas nessa alternância topológica de identidades. Lembremos que uma das principais habilidades de um mestre ou uma mestra da cultura popular é sua capacidade de brincar de ser muitos outros. Logo, pensemos que o artista forâneo (em geral branco) que canibaliza o lugar do mestre ou da mestra e rouba a sua cena, deseja brincar de ser o outro que é o mestre ou a mestra. Mas o canibal não consegue brincar de ser os vários outros que o mestre ou a mestra são capazes de brincar. Enquanto o canibal só consegue vestir uma máscara, o mestre ou a mestra podem lançar mão de várias. A „mascarada‟ não é, portanto, apenas a usurpação de um lugar que não nos pertence; ela implica, além disso, em duas destituições: 1) um achatamento e uma banalização do jogo polissêmico das metamorfoses dos mestres e das mestras; e 2) uma simplificação e uma redução desse lugar de expressão e criatividade. A „mascarada‟ é também, neste sentido, um correlato do pensamento único capitalista que converte todas as coisas, materiais e imateriais, em mercadoria: uma única máscara que destitui várias máscaras. (CARVALHO, 2010, p.68)

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AUTENTICIDADE

I! sintomático o próprio fato de que poucos têm sido os estudos produzidos com a intenção de pensá-la como um problema. Ao contrário, são muitos os que a tomam como um dado existencial ou histórico. (GONÇALVES, 1988, p.264)

Os ideólogos da "nacionalidade" ou da "etnicidade" dedicam especial atenção ao problema do patrimônio cultural. No contexto dos chamados movimentos étnicos, assim como nos Estados nacionais, é considerada como fundamental a elaboração e implementação de políticas culturais - entre as quais se situam as políticas de patrimônio - visando a construção e comunicação de uma identidade nacional ou étnica. (GONÇALVES, 1988, p.266)

Do ponto de vista dos seus ideó1ogos, a nação é pensada como uma unidade objetiva, autônoma, dotada de nítidas fronteiras territoriais e culturais e de continuidade no tempo. (GONÇALVES, 1988, p.266)

Na verdade, a própria idéia de um passado ou de urna memória como um dado relevante na construção das identidades pessoais e coletivas pode ser pensada como uma invenção moderna e que data de fins do século XVIII. (GOLÇALVES, 1988, p.267)

Em outras palavras, não estou interessado em construir simbolicamente a nação; antes, estou tentando problematizar a "realidade" ou "autenticidade" dessa categoria. (GOLÇALVES, 1988, p.273)

Desse modo, somos levados a problematizar categorias como as de nação, que, supostamente, são expressas pelos chamados patrimônios culturais. Estes, na medida em que não consideremos como dadas sua autenticidade ou inautenticidade, podem ser pensados como construções ficcionais sem nenhum fundamento necessário na história, na natureza, na sociedade ou em qualquer outra realidade com que confortavelmente justifiquemos nossas crenças nacionalistas. (GOLÇALVES, 1988, p.273)

A nação, assim, pode ser discutida menos como uma questão de fato do que como uma questão ficcional. (GOLÇALVES, 1988, p.273)

De acordo com a perspectiva pós-moderna, a autenticidade não é um fenômeno; é uma construção social, que pode ser negociada (Reisinger y Steiner 2003, p. 69; Bruner 1994 e Hughes 1995 apud Cohen-Hattab 2004, p. 61), que está contaminada com a questão das identidades políticas e sociais. Não há como definir o ponto de inflexão onde o autêntico se transforma em inautêntico, onde o puro passa a ser impuro pela contaminação com o outro e por interesses provenientes das mais diversas áreas. (BARRETO, 2008, p.5)

A forma encontrada pelos agentes culturais de superar este descompasso entre a busca por esse tipo de autenticidade e a aspiração das populações nativas de integrar-se ao processo civilizatório, tem sido a criação de centros culturais e museus onde mostrar, com autênticas recriações, como a vida era em séculos passados. (BARRETO, 2008, p.8)

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I argue for a perspective on the study of authenticity that acknowledges the simultaneous co-existence of more than one parallel manifestation of authenticity in any given negotiation of the authentic. (Theodossopoulos, 2013, p.337)

“temos que seguir as coisas em si mesmas, pois seus significados estão inscritos em suas formas, seus usos, suas trajetórias” (APPADURAI1, 2008, p. 17). Para o antropólogo, a análise sobre a circulação de certos bens deve ser precedida por algum conhecimento sobre a vida social desses bens ao longo da história.Partindo desse princípio, pretendo abordar, no presente trabalho, a vida social dos bens culturais no período conhecido como modernidade. Para chegar a uma análise do trânsito desses bens, proponho, como quer Appadurai, empreender um rastreamento histórico que leve em consideração os diferentes lugares sociais que lhes foram imputados ao longo dos dois últimos séculos.

The multiplicity of meaning under negotiation at any given discussion about authenticity can help us appreciate that a universal definition of authenticity is “a mission impossible” (van de Port2 2004, p.6)

For now, I would like to attract attention to what I see as the major weaknesses of the quest for a deeper-level authenticity within the Self or beyond the surface of social life. The first is its reliance on a singular vision of an authentic Self or an authentic culture: the assumption that there is only one “real” Self or “real” cultural identity awaiting discovery. This limited vision neglects the possibility that part-personal identities or variations of cultural motifs and practices exist simultaneously. A second weakness relates to the denigration of the surface of social life or the surface of objects (see Miller 2005, 2010): if “real” authenticity lies within the Self or the backstage, surface sociality and materiality are presumed to be inauthentic. Considerations such as these have led anthropologists, such as Ed Bruner (1994, 2005), to question the presupposition of a hidden social reality or the idea of simulacra in the performance of authenticity. “I do not look behind, beneath, or beyond anything,” Bruner maintains; in cultural performance “there is no simulacrum because there is no original” (2005:5). We can easily extend the same argument to discussions about personal or social identities. (Theodossopoulos, 2013, p.344)

Considering that local authenticities are predicated upon evaluative criteria, the study of authenticity as a process necessitates an engagement with those criteria. Given that authenticity is a relational concept, its study will benefit from comparative ethnographic analysis. (Theodossopoulos, 2013, p.356)

There is more work that needs to be done in this direction, new authenticities to be explained, and since their meaning is context-specific and begs for ethnographic attention, new ethnographies of authenticity will eventually be written. The articles that follow take a first step in this direction and explore particular categories of the authentic in processes of authentication, shedding some light on how people construct identities for themselves and others—and for artifacts and practices too—through the continuous, relentless negotiation of authenticity. (Theodossopoulos, 2013, p.356)

1 APPADURAI, Arjun. Introdução: mercadorias e a política de valor. In: APPADURAI, Arjun (org.). A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niterói: Ed. UFF, 2008.2 van de Port, Mattijs. 2004a. “Registers of Incontestability: The Quest for Authenticity in Academia and Beyond.” Ethnofoor XVII(1/2):7-22.