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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB MESTRADO PROFISSIONAL EM GESTÃO E TECNOLOGIAS APLICADAS À EDUCAÇÃO - GESTEC ÁREA 2: PROCESSOS TECNOLÓGICOS E REDES SOCIAIS TEMÁTICA: ENSINO DE HISTÓRIA E JOGOS DIGITAIS DISSERTAÇÃO DE MESTRADO Társio Roberto Lopes Macedo GAMES COM NARRATIVA HISTÓRICA COMO DISPOSITIVO DIGITAL PARA MEDIAÇÃO DE EXPERIÊNCIAS FORMATIVAS EM ENSINO DE HISTÓRIA: UMA PESQUISA COM O JOGO “GAME OF THRONES - RPG” Salvador 2013

Dissertação de Tarsio Final Corpo 42

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Pesquisa qualitativa

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  • UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB

    MESTRADO PROFISSIONAL EM GESTO E TECNOLOGIAS

    APLICADAS EDUCAO - GESTEC

    REA 2: PROCESSOS TECNOLGICOS E REDES SOCIAIS

    TEMTICA: ENSINO DE HISTRIA E JOGOS DIGITAIS

    DISSERTAO DE MESTRADO

    Trsio Roberto Lopes Macedo

    GAMES COM NARRATIVA HISTRICA COMO DISPOSITIVO DIGITAL

    PARA MEDIAO DE EXPERINCIAS FORMATIVAS EM ENSINO DE

    HISTRIA: UMA PESQUISA COM O JOGO GAME OF THRONES -

    RPG

    Salvador

    2013

  • UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB

    MESTRADO PROFISSIONAL EM GESTO E TECNOLOGIAS

    APLICADAS EDUCAO - GESTEC

    REA 2: PROCESSOS TECNOLGICOS E REDES SOCIAIS

    TEMTICA: ENSINO DE HISTRIA E JOGOS DIGITAIS

    DISSERTAO DE MESTRADO

    GAMES COM NARRRATIVA HISTRICA COMO DISPOSITIVO DIGITAL

    PARA MEDIAO DE EXPERINCIAS FORMATIVAS EM ENSINO DE

    HISTRIA: UMA PESQUISA COM O JOGO GAME OF THRONES -

    RPG

    Dissertao apresentada ao Programa de

    Ps-graduao GESTEC, Universidade do

    Estado da Bahia (UNEB), como requisito

    para a obteno do grau de Mestre em

    Gesto e Tecnologias Aplicadas

    Educao.

    Autor: Trsio Roberto Macedo Orientadora: Profa. Dra Lynn Alves

    Salvador

    2013

  • FICHA CATALOGRFICA

    Sistema de Bibliotecas da UNEB

    Bibliotecria: Jacira Almeida Mendes CRB: 5/592

    Macedo, Trsio Roberto

    Games com narrativa histrica como dispositivo digital para medio de experincias formativas

    em ensino de histria: uma pesquisa com o jogo game of thrones RPG/ Trsio Roberto Macedo . -

    Salvador, 2013.

    109f.

    Orientadora: Lynn Alves.

    Dissertao (Mestrado) Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Educao. .

    Campus I. 2013.

    Contm referncias e apndices.

  • LISTA DE ABREVIATURAS

    GESTEC Mestrado Profissional em Gesto e Tecnologias aplicadas a Educao

    GURPS - Generic Universal RolePlaying System

    GSA Gaming Security Agency

    PPGEduc Programa de Ps-graduao em Educao e Contemporaneidade -

    UNEB

    RPG Roleplaying Game

    UNEB Universidade do Estado da Bahia

    UFBA Universidade Federal da Bahia

  • H algo no uivar de um lobo que tira um

    homem do seu aqui e agora e o deposita

    numa floresta escura da mente, correndo nu

    frente da matilha.

    George R. R. Martin

  • AGRADECIMENTOS

    Aos meus alunos que, comigo, possibilitaram essa aventura heurstica e formativa.

    professora Lynn Alves, por ter me acolhido, compreendido minhas singularidades

    e pelas orientaes sbias e pertinentes.

    Aos meus pais Roberto e J, meus irmos Igor e Michele e meu cunhado Uzile pelo

    apoio amoroso.

    s minhas professoras Tnia Hetkowski, Lcia Franca Rocha e, especialmente,

    Maria Antonieta Tourinho, pessoas indispensveis para toda a minha itinerncia

    formativa que me trouxe at aqui.

    Ao amigo e colega Scrates Melo, por ter me acolhido na sua residncia quando

    estudante de graduao e pelas ricas experincias conjuntas no entretecimento entre

    o RPG e a formao em histria.

    Aos professores do GESTEC pela luta para construir um programa de Mestrado

    Profissional de relevncia em condies to adversas.

    Aos colegas Grimaldo, Claudia e Nohara, pessoas que dividiram comigo essa

    caminhada e concluem esse ciclo como pessoas inesquecveis.

    Vanessa que, nesses dois anos, de amiga se tornou namorada, de namorada se

    tornou noiva e companheira nesse caminho difcil e maravilhoso do formar-se a

    dois.

    Aos gestores do Colgio Batista Brasileiro pela possibilidade concedida de realizar

    minha pesquisa nos seus mbitos e com seus alunos.

  • Aos pais dos meus alunos, pela confiana num professor de Histria que sonha com

    um ambiente de ensino de Histria, acima de tudo criativo.

    Ao grande Meistre Criador.

  • DEDICATRIA

    Dedico essa dissertao a minha me, J Macedo, que at hoje me cuida com o

    mesmo amor incondicional que me concebeu e me cuidou no seu ventre.

  • SUMRIO

    1 CAPTULO I - ARGUMENTOS INTRODUTRIOS ........................... 11

    1.1 O mtodo ...................................................................................................... 17

    1.2 Organizao da dissertao .......................................................................... 18

    2 CAPTULO II - FORMAO EM HISTRIA E JOGOS DIGITAIS 20

    2.1 Ensino de Histria, educao histrica no contexto da pesquisa ................. 21

    2.2 A articulao com o cotidiano ...................................................................... 22

    2.3 A emergncia da memria ............................................................................ 22

    2.4 A configurao do tempo ............................................................................. 24

    2.5 Problemas para ensino do feudalismo no ensino bsico ............................... 25

    2.6 Apropriao de educao histrica ............................................................... 29

    2.7 Consideraes sobre formao e experincia formativa no fenmeno da

    educao histrica ........................................................................................ 30

    2.8 A experincia formativa ............................................................................... 32

    3 CAPTULO III - O JOGO GAME OF THRONES: RPG, SUAS ESPECIFICIDADES EDUCACIONAIS E FORMATIVAS E O CONTEXTO DA PESQUISA .................................................................... 34

    3.1 RPG e suas potencialidades educacionais .................................................... 37

    4 CAPTULO IV - A OPO METODOLGICA E SUAS

    SINGULARIDADES .................................................................................. 44

    4.1 A observao participante no contexto da pesquisa ..................................... 49

    4.2 A entrevista enquanto dispositivo de construo de fontes orais ................. 52

    4.3 O dirio de campo ......................................................................................... 53

    4.4 O grupo focal ................................................................................................ 55

    4.5 O processo da pesquisa ................................................................................. 56

    4.6 A anlise das informaes e compreenses .................................................. 59

  • 5 CAPTULO V - A EXPERINCIA HERMENUTICA COM JOGOS DIGITAIS E FORMAO EM HISTRIA: UMA ABORDAGEM HEURSTICA E PROPOSITIVA ............................................................ 61

    5.1 Interpretando informaes e compreenses ................................................. 62

    5.2 A interpretao das compreenses histricas: jovens hermeneutas

    contemporneos em narrativas histricas ..................................................... 63

    5.3 Compreenso multirreferencial: a diferena no pede licena ..................... 74

    5.4 Potencial imersivo da compreenso ............................................................. 76

    5.5 Sntese conclusiva ......................................................................................... 79

    6 CONSIDERAES CONCLUSIVAS E PROPOSITIVAS ................... 81

    6.1 Trilhas propositivas ...................................................................................... 86

    PROPOSIO E ESTRUTURAO DE OFICINAS.................................91

    REFERNCIAS .........................................................................................101

    APNDICES ..............................................................................................106

    ANEXOS .....................................................................................................109

  • RESUMO

    Games com narrativa histrica como dispositivo digital para mediao de experincias formativas em ensino de histria: uma pesquisa com o jogo Game of Thrones: RPG uma pesquisa sobre a busca de compreenso de como se configura a experincia compreensiva na formao em histria de alunos do ensino mdio, tendo como dispositivo virtual mediador de interpretao o Game of Thrones. Foram utilizados referenciais tericos implicados ao campo dos games, principalmente atravs de autores como Lynn Alves, Mateus Rocha, Espen Aarseth, Henry Jacoby. Na rea de ensino de histria Maria Antonieta Tourinho, Jaime Pinsky, Isabel Barca foram os principais autores trabalhados. No campo da etnopesquisa e da etnografia, Marli Andr e Roberto Sidnei Macedo fundamentaram a metodologia opcionada. Quanto a discusso sobre a formao como uma experincia irredutvel de sujeitos que aprendem, Marie-Christine Josso e Roberto Sidnei Macedo compuseram a centralidade do campo de estudo terico da pesquisa. A presente dissertao foi configurada por uma pesquisa qualitativa de inspirao etnogrfica, com anlise de contedos de base hermenutica. As concluses apontam para a emergncia de uma formao em histria singular, estruturada pela experincia com games, principalmente no que concerne aos modos de compreenso, ricos em imaginao e perspectivas multirreferencializadas, com densos processos de imerso e possibilidades problematizantes sobre a formao histrica na Escola Bsica. A partir das concluses da pesquisa, propomos o conceito de potencial formativo dos games em ensino de histria, a ser alcanado pela anlise do conjunto de compreenses via as experincias irredutveis de estudantes na aprendizagem de histria, mediados pelos jogos eletrnicos em contextos heterogneos.

    Palavras-chave: games, ensino de histria, formao.

  • ABSTRACT

    Games linked to historical account as a digital device for measurement of formative experiences in history teaching: a research with the Game of Thrones: RPG game is

    a work on the understanding of how the comprehensive experience in high school

    students history formattion works, having the Game of Thrones as a virtual device mediator of interpretation. It was used theoretical frameworks applied to the games field, such as Lynn Alves, Mateus Rocha, Espen Aarseth, and Henry Jacoby. In the

    area of history teaching, the main authors worked are: Maria Antonieta Tourinho,

    Jaime Pinsky, and Isabel Barca. In both ethnosearch and ethnography field, Marli Andr, and Roberto Sidnei Macedo underpin the chosen methodology. As for the

    discussion on the formation as an irreducible experience of subjects who learn, Marie-

    Christine Josso, and Roberto Sidnei Macedo compose the core of this researchs theoretical study field. This Master Thesis was designed with a qualitative-research-

    based ethnographic comprised by a hermeneutical content analysis. The findings point

    out the rise of a singular formation history structured by the gaming experience,

    especially regarding to the modes of understanding, which are rich in both

    multireferenced imagination and perspectives with dense immersion processes and

    possibilities of problematizing the historical training in Elementary School. From the

    research findings, we propose the concept of formative potential of games for history teaching to be achieved through the examination of the understandings set via students irreducible experiences in history learning mediated by electronic games in

    different contexts.

    Keywords: Electronic games. History learning. Educational formation.

  • 11

    CAPTULO I - ARGUMENTOS INTRODUTRIOS

  • 12

    Vale dizer, de incio, que a confluncia de interesses entre a problemtica da

    aprendizagem em Histria e o jogo RPG aparece nas minhas preocupaes, como

    professor de Histria interessado nas questes da educao histrica, a partir de duas

    atividades que se encontram sem qualquer previsibilidade ou sistemtica. Optei,

    durante as minha experincia ldica, desde a infncia, em intensificar a prtica e o

    estudo do RPG. Formei grupos, viajei para jogos coletivos, procurei as atualizaes

    fora da Bahia e do Brasil e descobri, neste jogo, o gosto pela prtica interpretativa

    via personagens jogantes, em realidade, a sua centralidade. Como aluno do curso de

    Histria da UEFS, encontrei comunidades de RPG. Nasce da, para mim, a relao

    entre o RPG e a Histria, como um campo de densidade interpretativa importante

    para construo da educao histrica. Esta relao foi me implicando, cada vez

    mais, nas possibilidades de construo do conhecimento a partir dessa aproximao.

    A partir do processo de convergncia descrito, chego a participar, junto com meu

    colega Scrates Melo, de encontros universitrios em Histria onde a relao RPG e

    ensino de Histria aparecem como tema de ensaios, ainda como construes de

    graduao. (MACEDO e MELO, 2009)

    Neste momento, defino-me e busco o que me foi implicando de forma mais

    densa: formao em histria e jogos eletrnicos, onde a interpretao no seu sentido

    amplo a centralidade enquanto experincia jogante. Essa uma sntese da minha

    histria formativa e de pesquisador, que desejo, alis, continuar a construir e

    expandir a partir dessa dissertao.

    O entretecimento formativo entre a formao em Histria e RPG alarga e se

    afunila com consultas a fontes internacionais, incluindo tambm o meu interesse em

    estudar a relao com os jogos digitais com elementos de RPG, a partir da minha

    aproximao com a Linha de Pesquisa Educao, Tecnologias Intelectuais,

    Currculo e Formao do Educador do PPGEduc - UNEB e com o Grupo de

    Pesquisa Comunidades Virtuais da Professora Doutora Lynn Alves.

    J tomando como centralidade a construo do objeto deste trabalho, temos a

    dizer que, dentro da prtica da formao histrica, a hermenutica como arte da

    interpretao, caracterstica fundamental do RPG, tem um papel de grande

    importncia a desempenhar. A partir do momento em que se narra um processo ou

    acontecimento histrico, este se encontra sujeito s mais diversas (consensuais e

  • 13

    conflituosas), subjetivaes por parte das pessoas que os interpretam como esforo

    de compreenso implicada 1 . A subjetividade dos sujeitos interpreta a histria

    narrada a partir dos seus referenciais (significantes) e assim, as narra tambm da

    maneira que a compreendeu. Essa compreenso varia de acordo com as

    intencionalidades, que esto sujeitas ao que mais importante em um acontecimento

    histrico, quem narra. Nestes termos, alm das qualidades das fontes histricas com

    as quais o ensino de Histria deve lidar, importante ressaltar a qualidade dos

    processos interpretativos e reflexivos que este ato de inteno formativa constri.

    da intercrtica2 do exerccio interpretativo e reflexivo que as verdades histricas

    podem emergir.

    Em Boaventura de Souza Santos (1989, p. 13), temos que a reflexo

    hermenutica torna-se, assim, necessria para transformar a cincia, de um objeto

    estranho, distante e incomensurvel com a nossa vida, num objeto familiar e

    prximo, que, falando uma lngua prpria, capaz de nos comunicar as suas

    valncias e os seus limites, os seus objetivos e o que realiza aqum e alm deles, um

    objeto que, por falar, ser mais adequadamente concebido numa relao eu-tu (a

    relao hermenutica), do que numa relao eu-coisa (a relao epistemolgica), e

    que, nessa medida, se transforma num parceiro de contemplao e da transformao

    do mundo.

    A partir de Santos (1989), possvel compreender como uma abordagem

    histrico-antropolgica da tecnologia e da prxis humana, como fundamentos

    dos processos formativos e educacionais, pode contribuir, sobremaneira, para essa

    discusso. Lima Jr. e Hetkowski trazem uma anlise interessante, quando diz que

    tecnologia um processo, no se limita assimilao e reproduo dos modos de

    fazer (saber fazer), pr-determinados, estanques e definitivos. (LIMA JR,

    HETKOWSKI, 2006, p. 29). Nesse processo, o homem usa do que est disponvel

    ao seu redor para que possa alcanar objetivos. Dessa forma, ele alm de transformar

    a realidade da qual participa, transforma a si mesmo. (2006, p. 29-30)

    1 A implicao entendida como o processo pelo qual subjetivamos nossa relao com o mundo e, assim, nos vinculamos a tudo que nos envolvemos como experincia humana. 2 Um caminho estreito mas possvel de anlise do conhecimento no qual verdades parciais e valores institudos, caminhando ao encontro uns dos outros, dialogizam-se e dialetizam-se. (MACEDO, 2006 p. 49)

  • 14

    Rafael Capurro (2010) refora as afirmaes anteriores ao analisar a

    reconstruo da hermenutica, para um entendimento sobre a contemporaneidade. O

    desafio dos estudos hermenuticos, de acordo com o autor, perpassam em

    compreender as transformaes em que a sociedade do sculo XXI est envolvida,

    com o advento da cultura digital. Esse gnero de anlise se coloca em um caminho

    distinto ao ato de extrair o sentido de um texto independentemente do ato de

    interpretar. Capurro (2010) se referencia nas ideias de Gadamer e Heidegger, nas

    quais interpretar um ato inerente existncia do ser humano. Assim, o autor coloca

    que a hermenutica digital se define no cruzamento entre o intrprete e os

    programas digitais, alm da sua hibridao com os processos naturais e os produtos

    artificiais de seu contexto. Desta maneira, evidenciando o ser humano e sua relao

    com a mquina como uma construo do mesmo e suas interpretaes no centro da

    discusso.

    A partir desse pressuposto, o ensinaraprender3 Histria se depara com o

    desafio de mediar compreenso para formandos inseridos em sua poca, num

    contexto educacional que no os favorece. Para Tourinho, deve-se valorizar

    A busca de caminhos terico-metodolgicos para a construo de um processo de ensino e aprendizagem que possibilite a cada envolvido com o ensino da histria compreender-se como ser histrico e neste mesmo movimento (ou no) compreender a histria. (2004, p. 8)

    Sobre o aspecto evidenciado por Tourinho, posso considerar, a partir das

    ideias de Borges (2005), que o fazer da cincia histria est em fase de franca

    transformao. Hoje, nos primeiros anos do sculo XXI, cada vez mais a perspectiva

    de que uma obra de Histria uma construo do prprio historiador, como

    dissemos anteriormente, se impe. Ele quem escolhe o seu objeto, escolhe como

    vai trabalh-lo, exp-lo, num abandono da crena positivista em uma possvel

    neutralidade, pelo distanciamento entre o historiador e seu objeto de estudo. Desse

    modo, a construo de um processo de pesquisa-ensino-aprendizagem que abra

    possibilidades de autocompreenso dos aprendentes como seres histricos e

    potencialize uma compreenso sobre uma histria, concebvel. Possvel por no se

    pensar mais a histria dos homens como algo absoluto, objetivo, ou seja, uma verso

    verdadeira, nica, mas por se pensar de forma objetivada como um olhar 3 Grafar palavras suprimindo o hfen tem sido uma estratgia dos autores Nilda Alves (2001) e Roberto Sidnei Macedo (2006) quando essa supresso remete ao sentido de indissociabilidade.

  • 15

    historicizado sobre o passado. Sendo assim, alm da realidade ser algo inesgotvel,

    cada investigao, cada nuance de olhar para o caminhar humano no tempo renova o

    passado. Nesses termos, a histria se faz com documentos e fontes e, sobretudo, com

    ideias e imaginao. Como o ofcio de historiador, nos fala Ricoeur (1994) que para

    reconstruir os laos indiretos da histria com narrativas (dos documentos ao

    imaginrio) se faz necessrio trazer luz a intencionalidade do pensamento

    histrico pela qual a histria continua a visar obliquamente ao campo da ao

    humana e sua temporalidade de base.

    Nos jogos eletrnicos de contedos ou caractersticas histricas nota-se uma

    densidade importante de caractersticas culturais e curiosidades prprias, que podem

    ser usadas como dispositivo pedaggico para uma formao em Histria, a partir de

    uma perspectiva hermenutica. Contudo, para alcanar grande vendagem, as

    empresas produtoras chamam mais ateno para os grandes fatos, combates e alta

    dosagem de violncia, por vezes cometendo graves erros historiogrficos,

    principalmente o anacronismo. O interesse desse projeto , inclusive, na sua

    perspectiva tambm propositiva, apontar caminhos compreensivos e qualificados

    para o uso de jogos eletrnicos que esto voltados para a compreenso histrica da

    perspectiva formativa no sentido da formao em Histria, de modo que

    contribuam para uma melhor formao, no seu sentido mais amplo e profundo (em

    termos tcnicos, tico, poltico, esttico e cultural). Para tal, os jogos no seriam

    encarados como produtores de verdades absolutas, mas pensamos nestes como

    dispositivos digitais que podem possibilitar, a partir de um processo de mediao

    criticizante, uma compreenso da histria atravs de um meio que est bem prximo

    do seu tempo e espao, dos seus processos de imaginao, no sentido de uma

    implicao existencial cultural e poltica.

    Os historiadores da Escola dos Anais nos ajudam a entender como se libertar

    de uma concepo de histria que v o passado como uma mera reconstituio, num

    organizar cronolgico e linear, ao passo que o erudito exuma arquivos. O objeto que

    aqui se constitui no dado unicamente pelas fontes, mas pela construo do

    pesquisador a partir das emergncias do tempo presente. Pensar em um game de

    fantasia como fonte de anlise para a educao histrica analisar sua contribuio

  • 16

    para o entendimento do cotidiano da violncia na Idade Mdia, partindo do princpio

    que toda fico contm, em sua construo, algum dado de realidade. Pensamos

    que, inclusive, ajuda evitar assim, via a formao em histria, os perigos da

    histrica nica. (ADICHIE, 2009)

    No caso especfico do RPG (Role Playing Game, ou Jogo de interpretao de

    personagens), tanto o eletrnico quanto o RPG de mesa4, por ser um jogo no qual se

    interpreta algum inserido em um contexto de fico ou histrico, pode possibilitar

    aos jogadores uma noo mais ampla do cenrio5 com embasamento histrico.

    mais um meio, alis, por onde o aluno pode se sentir inserido na histria narrada,

    compreender o cotidiano dessas histrias e fazer contrastes da sua posio, em seu

    contexto, com a atividade ldica da qual participa.

    Os RPGs histricos podem, assim como os games, ser considerados

    potencializadores de alguma aprendizagem significativa, ou seja, que produza

    significantes social e educacionalmente relevantes. Chama ateno por serem, como

    diz Gee, videogames6 voltados para uma boa aprendizagem. De acordo com ele,

    estes, entre outros videogames, incorporam bons princpios de aprendizagem,

    apoiados pelas pesquisas atuais em Cincia Cognitiva, ou seja, possibilita aos

    alunos uma formao cognitiva relevante se analiso suas potencialidades. Neste

    veio, a experincia dos games entram no campo do que posso considerar uma

    aprendizagem enquanto formao, j que, segundo Macedo (2010), a formao

    uma experincia e deve emergir sempre interpretada, valorada, do contrrio no

    formao.

    Diante deste cenrio formativo de incertezas, ambivalncias, inovaes,

    rupturas e esperanas, constru as questes fundantes da minha problemtica, nos

    mbitos do campo da formao histrica e sua relao com os games com aspectos

    histricos:

    Como se configura o processo de compreenso, como uma experincia

    de formao em histria, e suas ressonncias propositivas para esse tipo de

    4 O formato do Role Playing Game mais antigo, onde os jogadores interpretam personagens de forma semelhante ao cenrio de um teatro. 5 Contexto no qual os personagens/jogadores se encontram. Este pode variar de acordo com a narrao do mestre/narrador, variando tambm de cenrios, com base em lendas e filmes, at cenrios com grande fidelidade ao contexto contemporneo. 6 Denominao de Gee, entre outros autores, para jogos virtuais.

  • 17

    formao, quando se utiliza o jogo Game of Thrones: RPG, enquanto um

    dispositivo virtual mediador de interpretaes?

    Meu objeto de pesquisa, portanto, a experincia compreensiva na

    formao histrica, tendo como dispositivo virtual mediador os elementos dos

    games com aspectos histricos, configurado no jogo Game of Thrones: RPG.

    Desta forma, tenho como objetivo geral da pesquisa, compreender como se

    configura a experincia compreensiva na formao em histria de alunos do

    ensino mdio, tendo como dispositivo virtual mediador de interpretao o

    Games com aspectos histricos, tomando o dispositivo digital Game of

    Thrones.

    Os objetivos especficos foram assim configurados:

    - destacar de forma fundamentada nas respostas s questes da pesquisa,

    aspectos contributivos para formao em histria, levando em conta a

    utilizao do game em pauta, como dispositivo virtual mediador de

    interpretao.

    - explicitar como se constri no campo interpretativo dos aprendentes, a

    articulao com os saberes da sala de aula, num contraste com as

    mediaes (in)formativas do jogo Game of Thrones: RPG.

    1.1 O mtodo

    No que concerne ao mtodo opcionado, utilizei um procedimento do tipo

    etnogrfica (ANDR, 2002; GEERTZ, 1989), onde a descrio do fenmeno

    estudado passa a ser um imperativo (MACEDO, 2000). Instaurei como dispositivo

    de coleta de dados fruns de debates como experincia interativa e descritiva sobre a

    experincia formativa vivida. Utilizei tambm observao participante, entrevista

    semi-estruturada, grupo focal e o dirio de pesquisa 7 , como dispositivos de

    descrio da realidade pesquisada. Esses so dispositivos que me possibilitaram

    entrar na especificidade do meu objeto de pesquisa, que tem na compreenso

    propositiva a centralidade do interesse da pesquisa. Quanto ao ato de compreender e

    7 Concordando com Barbosa (2010), preferimos a adoo da expresso dirio por se apresentar prxima ao nosso imaginrio da escrita de nossos assuntos/temas pessoais, vivncias ou acontecimentos (p. 19) onde, tambm, queremos ir alm de uma escrita que se esgota nos limites de um dirio ntimo e pessoal (idem).

  • 18

    interpretar, argumentam e objetivam sugestes e possibilidades sempre coladas

    contribuio heurstica da pesquisa.

    Busquei um campo de pesquisa onde pude estudar uma experincia em

    andamento de utilizao do RPG como dispositivo digital na formao histrica, ou

    mesmo, posso organizar uma experincia com a presena deste dispositivo, com o

    intuito de descrever/compreender/propor de acordo com os objetivos desta pesquisa,

    que foi implementada com um grupo de oito8 estudantes de uma escola pblica do

    ensino mdio, do segundo e terceiro anos. O ensino mdio foi por ns escolhido por

    se tratar do locus onde desenvolvo nossa prtica pedaggica como professor de

    Histria. Nestes termos, efetuo uma descrio densa (GEERTZ, 1989, p. 7) das

    experincias em pauta. Ou seja, um procedimento descritivo minucioso de como se

    apresentam as experincias aprendentes formativas dos estudantes envolvidos na

    experincia pesquisada, como resultante do dispositivo organizado para mediar esse

    processo.

    Em termos de anlise, utilizei a anlise de contedo de base hermenutica

    (MACEDO, 2000; BARBIER, 2004), buscando a coerncia epistemolgica da

    proposta de pesquisa, com o recurso da construo de categorias para trabalhar com

    a interpretao e a organizao do corpus emprico.

    Apesar do jogo trabalhado no ser caracterizado por elementos formais da

    escola, sua dinmica e seus enredos podem ser vistos pela educao com

    possibilidades (in)formativas, como um dispositivo contemporneo de compreenso

    que potencializa interpretaes instituintes para formao em histria. Essa uma

    experincia que imagino trazer contribuies multirreferenciais, perspectivas

    conjugveis nos seus complementarismos, mesmo que, em alguns mbitos,

    contraditrias, para a compreenso contempornea da Histria via a formao nesse

    campo do saber.

    1.2 A Organizao da dissertao

    No captulo I, denominado Argumentos introdutrios, procurei situar a

    problemtica da dissertao a construo do objeto de pesquisa, bem como uma

    sntese da sua abordagem metodolgica. 8 O nmero de estudantes da pesquisa se reduziu no caminhar do trabalho. Portanto, temos assim oito

    alunos no incio da pesquisa

  • 19

    No captulo II, Formao em Histria e Jogos digitais, procurei

    desenvolver uma discusso sobre formao histrica no contexto dos jogos digitais.

    Nesse ponto do trabalho, comeo a construir uma ideia de potencial formativo dos

    games a partir das teorias dos autores pertinentes.

    No terceiro captulo, O jogo Game of Thrones: RPG e suas

    especificidades educacionais e formativas e o contexto da pesquisa, ressalto

    alguns pontos importantes que nos levaram a escolher o jogo e sua relevncia para o

    caminhar da pesquisa.

    No quarto captulo desenvolvo a Opo metodolgica da pesquisa, onde

    trabalho a opo metodolgica pertinente ao trabalho.

    No quinto captulo, A experincia hermenutica com jogos digitais e

    formao em histria: uma abordagem heurstica e propositiva, apresento as

    compreenses produzidas pela anlise das informaes veiculados pelos atores

    sociais que colaboraram com a pesquisa, bem como as contribuies propositivas

    construdas a partir dessas compreenses.

    Nas consideraes conclusivas, apresento o pattern 9 compreensivo e a

    propositiva que emergem da pesquisa, numa espcie de sntese globalizante do que

    resultou todo o esforo de pesquisa como forma de respostas questo formulada.

    9 Pattern, expresso usada pela etnometodologia, significando uma sntese compreensiva e globalizante a partir de um conjunto de informaes.

  • 20

    CAPTULO II - FORMAO EM HISTRIA E JOGOS DIGITAIS

  • 21

    2.1 Ensino de histria, educao histrica no contexto da pesquisa

    Os argumentos inicias conciliam-se com as ideias de Tourinho (2004) que,

    em sua tese de doutorado, dialoga com trs aspectos importantes para o estudo de

    um ensino de histria onde os fenmenos, os inventos e contratempos de professores

    e alunos nos espaos de formao so componentes centrais para o processo que

    aqui estudamos.

    Acredito com a autora, que a procura para se passar uma imagem de um

    ensino de Histria no qual as pessoas lancem mo de seus conhecimentos prvios

    potencializa o aprendizado e, nas palavras de Tourinho, evidencia que os estudantes

    j conhecem diversos aspectos da Histria por associao com outros fenmenos do

    cotidiano, alm de ter uma memria sobre as narrativas e fenmenos experienciados

    que os ajuda a compreender os processos histricos, bem como o fato que liga os

    dois ltimos, que o jogar com as idas e vindas no tempo.

    Nesses termos, concordo com Tourinho ao perceber que muito das histrias

    que queremos contar j estiveram, de alguma forma, presentes na vida desses

    estudantes, eles apenas passaram pelo que importante, sem perceber o que

    perceberam.

    Cenrio medieval no jogo. Disponvel em: http://migre.me/eK6I4 . Acesso em: 25 de mai de 2013.

  • 22

    2.2 A articulao com o cotidiano

    A partir do entendimento de cotidiano, penso que o empenho dos professores

    deve estar em, constantemente, articular os processos histricos ao dia a dia dos seus

    alunos. Assim, acredito ser uma postura de transformao da realidade do ensino de

    Histria ainda impactado pelo tecnicismo e pelo positivismo, empenhar-me em

    apresentar aos alunos maneiras de aprender, relacionada ao cotidiano em que

    vivem.

    Das experincias na disciplina Historiografia contempornea e experincias

    no ensino de Histria, que cursei como aluno especial no programa de ps-

    graduao da Universidade Federal da Bahia, com a professora Maria Antonieta

    Tourinho, entendo que explicitar as aproximaes entre os contedos histricos e o

    cotidiano dos participantes do processo de ensinaraprender tem sido um meio de

    aproximao importante para as relaes entre passado e presente. O aprendente

    tambm se sente mais prximo desse contexto quando fatos e processos discutidos

    em histria tm um significado relevante para sua vida.

    Dessas experincias, decidi, com a ajuda das sugestes da minha orientadora,

    fazer um Grupo Focal com os alunos escolhidos para a pesquisa a partir das

    entrevistas individuais que se seguiram experincia com os jogos. Observaes

    relevantes, que veremos com mais profundidade no captulo de anlise das fontes,

    revelam que o cotidiano na narrativa do jogo Game of Thrones: RPG ressaltado

    como um dos grandes fatores para a potencializao do ensino de histria por parte

    dos gamers. Aspectos como arquitetura e vestimenta detalhados no jogo, bem como

    em outras narrativas que se relacionam, chamaram bastante a ateno dos atores

    entrevistados. Mas, tambm existiram outros fatores relevantes no que concerne ao

    aspecto multirreferencial das interpretaes, a memria situada e relacional surge

    fortemente no imaginrio dos estudantes ao compreenderem aspectos histricos do

    jogo.

    2.3 A emergncia da memria

  • 23

    A memria se constri como segundo elemento central para a construo de

    um discurso sobre as experincias interpretativas em ensino de histria com os jogos

    eletrnicos. Essa memria, inclusive, tem um ponto importante a ser tratado pelo

    fato dos games abordarem caractersticas acerca da mitologia, ressaltando as

    diferenas entre fico e histria e na multirreferencialidade dessas memrias ao

    tratar do jogo, mas sem afastar a importncia de outras narrativas para compor uma

    compreenso histrica, inclusive a narrativa veiculada pela disciplina escolar.

    Reconstruindo os modos de pensar dos povos da Antiguidade do Oriente

    Prximo e Greco-romanos, entendo que todas as explicaes realizadas por esses

    povos, ao que consideramos como o desconhecido, advinham do sobrenatural, do

    discurso mitolgico, que no era, necessariamente, atrelado a uma lgica

    considerada cientfica, de acordo com a maneira positivista de pensar.

    No campo da Histria, os primeiros a disseminar informaes sobre povos do

    passado na sociedade ocidental eram os que se apresentavam nas praas. Conhecidos

    com aedos e rapsodos (ARANHA, 2006, p. 60) difundiam, atravs da oralidade,

    histrias sobre os povos da regio da hlade nas praas pblicas das cidades-estados

    gregas. Nessas histrias, homens, deuses e criaturas mitolgicas se relacionavam

    para compor os cenrios. Mas, a partir do desenvolvimento dos saberes,

    principalmente na matemtica e na filosofia, o mito comeou a perder lugar para o

    logos, convivendo junto durante muito tempo, at que a lgica racionalista se

    tornasse hegemnica.

    Mas a Idade Mdia, que por conta do pensamento do movimento Humanista

    e do Iluminismo francs se tornou uma poca onde imperou o caos e o

    obscurantismo durante aproximadamente dez sculos, tambm mostra seus atrativos

    em termos de histria e mitos associados. Os castelos, reis, rainhas e suas guerras

    contra os brbaros infiis e outras criaturas sobrenaturais como drages e bruxas,

    tambm so evocadas at os dias de hoje em forma de lendas traduzidas para as

    diversas mdias, principalmente os games.

    Grande razo para as lendas e contos medievais a restrio do

    conhecimento promovida pela Igreja Catlica na poca, que vetava o direito de

    aprender a leitura e a escrita a quase toda a populao, inclusive aos nobres. A

    populao mais pobre, que somente podia ouvir as ameaas constantes dos

  • 24

    eclesisticos cristos de serem enviados ao inferno em caso de qualquer desvio s

    leis de Deus, imaginava diversas possibilidades sobre o que habitava para alm do

    mundo conhecido, que, em suma, para muitos dos servos, durante toda a sua vida,

    no ia muito alm do territrio que compreendia o feudo em que vivia. A partir do

    cenrio exposto, diversas ideias sobre o que existia para alm da floresta, at o que

    existia quando o oceano acabava (visto que at a validao das teorias de Coprnico

    acreditava-se que a Terra era plana) povoavam as mentes de boa parte da populao.

    Hoje, essas mitologias (Greco-romana, nrdica, egpcia, europeia da Idade

    Mdia, indiana, chinesa, japonesa, etc.) ainda povoam as mentes das pessoas com os

    seus mistrios. Narrativas em todas as mdias, inclusive nos jogos eletrnicos, so

    lanadas, a todo o momento, evocando caractersticas dessas pocas cercadas de

    fascnio e lendas surpreendentes. Esses elementos so apropriados pelos jogos para

    alcanar o imaginrio dos jogadores a procurar onde essas lendas nasceram de

    verdade.

    As mdias e o volume de informaes que os estudantes acessam diariamente,

    por vezes para entender o porqu de algumas das suas narrativas favoritas se

    constiturem como so, compem suas memrias, que considero interessante para a

    discusso dos jogos eletrnicos (centrado na narrativa de Game of Thrones: RPG)

    como elementos potencializadores de uma compreenso/formao histrica.

    2.4 A configurao do tempo

    Como terceiro aspecto importante e, na minha concepo, fator que d liga

    rede de processos e relaes em que se fundamentam a histria, o tempo aparece

    como aspecto principal para o nosso estudo. Tourinho (2004) ressalta que durante

    suas experincias de ensino, ela percebeu que o cotidiano e a memria, trabalhados

    dentro da dinmica do ir e vir do tempo, podem proporcionar, principalmente no

    mbito da Educao Bsica, um abrir de possibilidades sobre a importncia da

    compreenso do estudo da histria, na constituio de uma sintonia entre passado e

    presente, que faa sentido na vida atual dos aprendentes. Concordo com o

    argumento da pesquisadora, visto que acredito, a partir da nossa vivncia docente,

    que o trabalho com esse ir e vir possibilita subsdios mais concretos para a

    compreenso dos jovens em formao dos processos histricos.

  • 25

    A nossa grande preocupao, no que se refere ao caminhar do processo de

    formao histrica, encontra-se com alguns questionamentos que norteiam o

    argumento de Tourinho. Ao questionar como "possibilitar que um aluno de escola

    pblica "viaje" da Salvador do sculo XXI para a Lisboa do sculo XVI e isso tenha

    sentido na sua vida atual" (2004, p 21) e "como possibilitar que ele chegue prximo

    de acontecimentos como a Revoluo dos Alfaiates, a Sabinada, a Revolta dos

    Mals que, apesar de estarem to perto espacialmente, parecem to distantes dele"

    (idem), nos identificamos com um problema que consideramos mais complexo, que

    o trabalho com a Idade Mdia (e a prpria autora considera um tema mais difcil

    de trabalhar em argumentos posteriores).

    Mas, para trilhar esses caminhos, aceitamos o desfio proposto por Ricoeur,

    que consiste em um processo de entretecimento do que o autor denomina de

    explicao histrica e narrativa compreensiva. Cada uma discursa de um

    determinado lugar, respectivamente: do discurso que se prope cientfico e da fala

    advinda do fenmeno hermenutico. Para se reconfigurar o tempo, aceitando sua

    relao com a narrativa, precisamos entender que se trata de uma obra conjunta das

    duas categorias em que, entendendo os discursos dessa perspectiva, podemos chegar

    percepo de que todo discurso sobre o tempo uma narrativa.

    2.5 Problemas para ensino do feudalismo no ensino bsico

    Se o trabalho com qualquer perodo da histria desafiador, trabalhar com o

    Feudalismo ainda mais, pois, alm de ser um sistema complexo e diversificado no

    tempo e no espao, no temos, em Salvador, referenciais significativos com os quais

    os alunos tenham um mnimo de intimidade.

    Entende-se, a partir da obras de Jos Rivair Macedo (2012) e Aranha (2009)

    que a Idade Mdia foi vista pelos pensadores humanistas e, sobretudo pelos

    iluministas, que esse tempo foi marcado por uma perspectiva cronolgica em

    diversos campos do saber, sendo tambm conhecida como Idade das Trevas e A

    noite dos mil anos. Uma era marcada pela opresso da Igreja Catlica sobre todos

    aqueles que no seguiam seus preceitos e tentavam ir alm destes. Todavia, essa

    perspectiva se originou em uma poca na qual o discurso racionalista, liberal e

  • 26

    anticlerical era essencial para questionar os pressupostos teocntricos elaborados

    pelos representantes da Igreja, em prol da defesa do avano das luzes, da razo e

    do progresso.

    Acontece que, nos dias atuais, diversas pesquisas, a exemplo de Aranha

    (2009) e Le Goff (2007) e Macedo (2012) demonstram que o medievo tinha diversos

    traos originais em termos culturais, e essas pesquisas contriburam para que esse

    ponto de vista fosse reavaliado. Contudo, ainda existe muito desse esteretipo

    atualmente.

    O trabalho no ensino de Histria na Educao Bsica com o perodo

    medieval mais complexo tambm por ser uma poca que no distante em termos

    temporais, mas que tambm longnqua em termos geogrficos. Se pensarmos em

    termos de ligao cultural, o medievo muito distante da vida dos nossos alunos

    pelo fato desse contexto no ter existido em nossa terra (dentro da concepo

    histrica eurocntrica). Portanto, se no atentarmos para caractersticas histricas

    que relacionem o perodo medieval com a nossa atualidade, recairemos num ensino

    meramente decorativo.

    De acordo com Macedo (2012, p. 110), o interessante perceber que, com

    todas essas caractersticas que afastam os alunos dos estudos sobre a Idade Mdia,

    esse mesmo obscurantismo medieval e suas lendas que atrai as massas. dessas

    narrativas que saem criaturas da fantasia medieval, como magos e fadas, duendes e

    elfos, drages, cavaleiros errantes e aventuras fabulosas. Isso explica, de acordo com

    Jos Rivair Macedo:

    O sucesso de jogos de videogame e de computador relativos s conquistas de territrios por prncipes guerreiros, com a ao de foras sobrenaturais de carter mgico. Em todos esses casos, a Idade Mdia constitui apenas um pretexto para a criao ficcional, a imaginao e o divertimento. (2012, p. 110)

    Dessa forma, o autor diz que uma certa viso sobre o tempo histrico

    retratado existe em nosso imaginrio por esse vis e questiona qual o papel da

    escola, mediante a todo esse movimento e a pertinncia desse ensino no Brasil, que

    no participou diretamente de uma experincia histrica propriamente medieval.

    No que se refere aos livros didticos, em alguns deles ainda temos o tempo

    medieval analisado de maneira simplria, atravs dos documentos oficiais, nesses

    termos, revelando somente os marcos temporais da histria poltica dos grandes

  • 27

    nomes e datas, deixando a margem todas as outras pessoas que, em seu cotidiano,

    fizeram parte da caminhada humana no tempo. Mesmo que os historiadores da Idade

    Mdia entendam que categorias como feudalismo, sociedade feudal ou sistema

    feudal sejam apenas conceitos para operacionalizar o estudo, nos livros didticos

    aparece como se esse modus operandi fosse o nico praticado em toda a Europa,

    sem variaes ou regionalismos, sugerindo que o advento da modernidade foi

    consequncia direta da superao do obscurantismo feudal.

    No campo das relaes, os livros escolares em geral trazem-nas engessadas

    nas relaes entre o rei e os senhores feudais, e entre este com os servos. O rei

    sempre como uma figura enfraquecida politicamente diante dos senhores feudais,

    que detinham todo o poder na poca a todo momento oprimiam os servos, que nada

    podiam fazer.

    Jos Rivair Macedo (2012) pontua que no a inteno de sua pesquisa

    necessariamente uma renovao conceitual e temtica a respeito do que se entende

    sobre Idade Mdia no processo do ensinaraprender escolar. Ele compreende que

    muito j se pesquisou, se discutiu e reavaliou em relao aos estudos medievais,

    tanto no campo das macrorrelaes nacionais, quanto nas pequenas histrias

    regionais. Mas tambm evidente que a histria da academia no precisa ser

    necessariamente a mesma histria que se v nas salas de aula do ensino mdio.

    Nesses termos, a partir de Macedo, entendo que a funo social da Histria em sala

    de aula tem estatuto diferente do conhecimento erudito e acadmico, continuando a

    estar ligado constituio da memria da nao, do Estado moderno e da

    supremacia ocidental no mundo (2012, p. 112)

    Em um argumento posterior no seu trabalho, concordo com Macedo ao falar

    sobre a atualidade do legado cultural da Idade Mdia para os nossos jovens. De

    acordo com esse pesquisador, a comunicao eletrnica e a informtica tm sido as

    responsveis por to importante divulgao da Idade Mdia e dos estudos

    medievais (2012, p. 118).

    Para o ambiente especfico da sala de aula, lidando com os jovens do ensino

    fundamental e mdio, penso que devemos adotar uma estratgia diferenciada em

    relao s pesquisas e fontes primrias vistas na internet. No pensamento de Aranha

    (2006), com o volume de informaes veiculada pelos meios de comunicao em

  • 28

    massa, amplia-se a perspectiva em termos de variedade de informaes,

    potencializando a superao de alguns esteretipos.

    Voltando ao pensamento de Tourinho (2004), considero que repensar a

    linguagem tratada o essencial para entendermos os aspectos histricos da Idade

    Mdia. Valer-se exclusivamente da linguagem escrita para entender a poca um

    tanto estranho quando estamos falando de um tempo no qual nem mesmo nobres e

    senhores feudais possuam a habilidade da escrita. Um caminho apontado por

    Macedo (2012) explorar outras maneiras de comunicao que so mais apropriadas

    para a poca, como as imagens e a oralidade. Acredito que nem sempre a

    comparao atravs de semelhanas entre tempos histricos a melhor maneira de

    se entender um processo ocorrido em uma poca anterior. Penso, assim como o

    autor no seu trabalho, que uma anlise sob o vis do contraste ajuda muito na

    compreenso das

    [...] diferenas e a diversidade dos modos de vida dos seres humanos ao longo de outros perodos da Histria, em outras civilizaes ou regies culturais, pode nos revelar nossa prpria originalidade, e nos capacitar melhor a ver o lugar que ocupamos na histria da humanidade. Confrontamos com as diferenas e com diversidade dos modos de vida das pessoas de outros tempos e lugares, teramos como discernir melhor nossa prpria originalidade, e perceber melhor nossa prpria posio no processo histrico universal. (2012, p. 117)

    na relao que os jovens tm com as diversas mdias que hoje constroem as

    narrativas sobre, principalmente, a Idade Mdia na contemporaneidade. Mesmo

    aquelas advindas de histrias fantsticas e mitolgicas, como as contadas nos games

    podem contribuir com um processo de formao histrica valorado. O olhar dos

    jovens para esses processos e caractersticas histricas so datados e, de certa

    maneira, coerentes com as perguntas que sua cultura tem a fazer sobre o passado.

    Ns, educadores, precisamos considerar que a ideia de histria baseia-se numa

    clebre frase de Benedetto Croce [...] que considera que toda histria histria

    contempornea (LE GOFF, 1996, p. 24). Desta forma, entendemos que, por mais

    distantes que paream estar os processos histricos estudados do nosso contexto, a

    histria liga-se s necessidades e s situaes presentes nas quais esses

    acontecimentos tm ressonncia (idem).

    Os jogos eletrnicos, atualmente, se mostram como uma das narrativas que

    trazem para esses jovens algumas das caractersticas desses tempos. Convergimos,

  • 29

    cada vez mais, na multiplicidade de fontes aceitas pelos pesquisadores em ensino de

    histria que a diversidade dos testemunhos histricos quase infinita. Toda a ao

    realizada pelo homem deixa marcas e marcas so testemunhos de seu caminhar pelo

    mundo. As narrativas dos jogos podem e devem ser trazidas para as salas de aula

    com intuito de contribuir para um processo de formao, no qual os estudantes

    sejam participantes ativos da construo do conhecimento histrico.

    2.6 Apropriao de educao histrica

    Cabe aqui realizarmos uma referncia a um campo especfico do ensino de

    histria pelo qual fui influenciado para adentrar nessa pesquisa. A educao

    histrica, apesar de trabalhar mais com o campo cognitivo, nos revelou os esforos

    de professores-pesquisadores que, desde a dcada de 20 do sculo passado, tinham o

    intuito de apresentar propostas preocupadas no como ensinar, chamando a ateno

    para a necessidade de atender s caractersticas das crianas e dos jovens

    (BARCA, 2011, p. 22). As primeiras pesquisas foram todas elas caracterizadas por

    termos prescritos resultantes de observaes mais ou menos impressionistas

    (2011, idem) e tambm muito esparsas.

    A partir da dcada de 60 e 70, temos um impulso nas iniciativas que

    procuravam trazer ao aluno uma motivao maior para o aprender histria. Mediante

    a explorao de fontes e de atividades que envolvessem mais o ldico, dentro ou

    fora da sala de aula, essas propostas, mesmo assim, continuavam a se assentar

    sobretudo na especulao filosfica, utpica e/ou na observao do tipo

    impressionista (2011, idem).

    Nesse nterim, no ensino de Histria, vemos a importncia que foi atribuda

    faixa etria em detrimento a outras caractersticas importantes como a interao

    social, algo que se revelou extremamente nocivo ao plano das concepes de

    professores em relao ao seu poder de interveno no processo de ensinaraprender

    dos estudantes. Reforou-se, assim, remontando o modus parisiensis dos jesutas,

    uma concepo esteriotipada do pensamento que seguia uniformidade atravs das

    faixas etrias, assim atribuindo aos mais jovens (crianas) o nvel de operaes

    concretas e aos alunos adolescentes o nvel das operaes formais, abstratas ou

  • 30

    lgico-dedutivas (uma ideia ainda hoje visvel em discursos de professores).

    (BARCA, 2011, p. 23)

    Contrariando o pensamento sobre padres gerais de pensamento por idades,

    Barca cita alguns proeminentes pesquisadores ingleses como Peter Lee, que

    promoveram investigaes fecundas relacionadas cognio histrica que

    revolucionaram a concepo de educao histrica nas dcadas de 70 a 90, abrindo

    possibilidades para um ensino de histria considerado, pela autora, mais poderoso, a

    partir do momento em que se refuta, empiricamente, a concepo de estgios de

    desenvolvimento estanques aplicados aprendizagem histrica.

    Atualmente, ainda citando as ideias de Barca, nos interessam bastante os

    estudos que acontecem em diversos pases, atravs de pesquisadores como

    Cercadillo, Russen, dentre outros, que do nfase natureza situada no processo de

    ensinaraprender. No faz sentido a transposio simplista no ensinar Histria para

    uma dada realidade de princpios cognitivos inferidos em outros contextos. Por isso,

    tericos portugueses e brasileiros comearam a investigar sobre as concepes de

    alunos e professores acerca da Histria, levando em considerao as experincias de

    vida e de ensinoaprendizagem concretas. Este um campo que muito me interessa,

    pois, apesar desse trabalho no focar o campo cognitivo, um aspecto importante

    para entender as experincias dos nossos estudantes, mesmo trabalhando no campo

    hermenutico da compreenso aprendente.

    Barca (2011) nos traz alguns conceitos que nos so caros na presente

    pesquisa e pertinentes no que se refere compreenso dos discursos dos atores

    sociais participantes. Em termos de explicao e narrativa, percebemos a

    importncia de trabalhos que nos permitem entender como os jovens se relacionam

    com o que chamamos de narrativa histrica, um conceito correlato explicao

    histrica (2011, p. 28) trazido pela pesquisadora, onde encontramos uma categoria

    que se alimenta de discusses filosficas, levando em conta o seu elemento

    particular de explicao intencional, apresentadas por tericos que nos propiciam

    aprofundar a compreenso de caractersticas especficas do saber histrico. Apesar

    dos trabalhos serem conduzidos por uma lgica de perceber padres explicativos

    desses jovens num maior ou menos grau de elaborao histrica, consideramos

    importante o fato de que os estudantes do ensino bsico e de ensino mdio que

  • 31

    participaram das suas pesquisas o de valorizao aberta de uma explicao

    multifatorial, ou, em nossos termos, multirreferencial, mas que nem sempre est

    relacionada a uma narrativa linear, dentro dos moldes positivistas de pesquisa.

    2.7 Consideraes sobre formao e experincia formativa no fenmeno da educao histrica

    Para iniciar esta argumentao, trazemos o conceito de Macedo (2010), ao

    perceber formao como

    [...] o que acontece a partir do mundo/conscincia do Ser ao aprender formativamente, isto , transformando em experincia significativa (intencionada, com explicitada construo de sentidos e significados) acontecimentos, informaes e conhecimentos que o envolvem. (MACEDO, 2010, p. 30)

    necessrio afirmar que, mesmo que o autor esteja desenvolvendo seus

    argumentos a partir do ponto de vista da formao em nveis bsicos, profissional,

    universitrio, dentre outros, quem se apresenta em formao o Ser na sua

    emergncia que, para alm do mbito individual, se apresenta no mbito

    sociocultural e de maneira historicizada. Nesses termos, temos um Ser se formando

    num esforo de compreender o contexto onde vive, a vida e seu ato de formar-se

    permanentemente, levando em considerao os caminhos e descaminhos (e porque

    no, inspirado em Tourinho (2004), inventos e contratempos?) com as quais forma-

    se, vive e projeta o futuro, sintetizadas na sua etnoformatividade, com a qual, alis,

    temos que trabalhar. (MACEDO, idem, idem)

    Entendo que pertinente afirmar, nesse trabalho, que no compreendo

    formao com o pensamento da produo em srie, advinda do modelo

    neoprodutivista das bases econmico-pedaggicas hegemnicas em nosso pas.

    preciso observar com ateno os frutos do processo de massificao educacional que

    o Brasil vive na atualidade. De acordo com Saviani (2010), essa perspectiva se

    baseia no pensamento toyotista de conceber o processo de trabalho, no qual se faz

    necessrio

    [...] trabalhadores polivalentes visando a produo de objetos diversificados, em pequena escala, para atender a demanda de nichos especficos do mercado, [...] requer trabalhadores que, em lugar da estabilidade no emprego, disputem diariamente cada posio conquistada, vestindo a camisa

  • 32

    da empresa e elevando constantemente sua produtividade (SAVIANI, 2010, p. 429)

    Desta maneira, temos a perspectiva de transformar os aprendentes em pessoas

    que deveriam ter um preparo polivalente apoiado no domnio de conceitos gerais,

    abstratos, de modo especial aqueles de ordem matemtica. Manteve-se, pois, a

    crena na contribuio da educao para o processo econmico-produtivo...

    (SAVIANI, idem, idem).

    Nesse contexto, Macedo (2006) pensa que h, evidentemente, nesse processo

    uma prtica de de-formao. Ele compreende como impensvel que apenas por

    indicadores, pesquisas quantitativas, possamos demonstrar, de maneira satisfatria, a

    realidade vivida por nossa educao. Essas pesquisas apontam somente uma viso

    simplificadora da realidade educacional de nosso pas que, na minha compreenso,

    unicamente para ingls ver, como bem diria o jargo nascido na poca em que o

    imprio brasileiro estabelecia regras acerca da abolio gradual da escravido, que

    no resolviam o problema, mas refreavam os anseios ingleses de ver os afro-

    descendentes livres para se tornarem mo-de-obra e mercado consumidor da

    metrpole industrial da poca. Dados estatsticos e grficos, no raro, mostram, de

    maneira superficial, a situao que, em no seu contexto cotidiano, se evidencia

    muito mais grave e sria do que as estatsticas apresentam. Nesse momento, a

    articulao com explicitaes qualitativas fundamental.

    2.8 A experincia formativa

    As experincias de vida esto cada vez mais em evidncia nas produes e

    eventos realizados na rea das humanidades. Na Educao, para alm das pesquisas,

    assistimos ao desenvolvimento de propostas no campo do currculo-formao,

    propondo uma sensibilidade histria dos aprendentes e da sua relao com o

    saber.. (JOSSO, 2002, p. 13)

    Conforme mencionado acima, corroboramos com a perspectiva de Macedo

    (2010) quando pontua a ideia da formao sendo construda como o conjunto de

    condies e processos de mediao propcios para que certas aprendizagens

    socialmente legitimadas, se realizem, conceituando a formao como modo de ser

    que se configura numa experincia profunda e ampliada do Ser humano, que

  • 33

    aprende interativamente, numa incessante atribuio de sentidos, sempre valorados

    (MACEDO, 2010, p. 21), imerso em um determinado contexto e nas suas relaes e

    mediaes.

    O conceito construdo por Josso (2002) sobre experincia formadora

    pertinente diante do que estamos investigando. Acreditamos que nos jogos

    eletrnicos essa experincia acontea devido ao processo interativo de imerso dos

    jogadores com a mdia evidenciada. Alves (2005) enfatiza essa interatividade

    levando em considerao a imerso, navegao, explorao e conversao presentes

    nos suportes de comunicao em rede. De acordo com a autora, nesses termos,

    existe uma possibilidade maior de chegarmos ao que Lvy conceitua como terceiro

    nvel de interatividade, saindo da comunicao um-todos e um-um para uma

    interao na qual todos se comunicam com todos, possibilitando trocas e o

    intercmbio de diferentes saberes ao mesmo tempo. (LVY, 1999, p. 50).

    Os jogos eletrnicos so aqui compreendidos como dispositivos que

    potencializam a construo de diferentes aprendizagens, que, imersos na lgica de

    interatividade discutida por Lvy, apresentam aos jogadores novas possibilidades de

    ter acesso s tecnologias digitais, de interagir, pensar, construir conhecimentos, alm

    de oferecer uma maneira diferenciada de imerso em contextos histricos, polticos,

    econmicos e sociais prximos e/ou distantes do seu cotidiano, provendo maneiras

    de vivenciar e experimentar diferentes realidades nessa cultura da simulao.

    Dessa maneira, acredito que os games favorecem uma experincia formativa

    ampliada, contribuindo de maneira significativa para a aprendizagem de modo

    contextualizado com os interesses dos que aprendem.

  • 34

    CAPTULO III - O JOGO GAME OF THRONES: RPG, SUAS

    ESPECIFICIDADES EDUCACIONAIS E FORMATIVAS E O CONTEXTO

    DA PESQUISA

  • 35

    Desde a minha insero na cultura contempornea, anteriormente conhecida

    como nerd, atualmente denominada pop, soube atravs de podcasts (programas de

    udio gravados periodicamente, em uma estrutura de programa de rdio) e conversas

    com amigos da qualidade da narrativa literria de Martin (2010), principalmente

    quando foi lanada a srie de televiso. Tornei-me um espectador assduo da srie,

    que ficou mais interessante enquanto narrativa quando entrei em contato com o jogo

    Game of Thrones: RPG. A partir da narrativa do cenrio onde os acontecimentos se

    desencadeiam, minha experincia com o jogo ser tambm ressaltada.

    Cabe ressaltar que, antes de comearmos a falar sobre o jogo, precisamos

    realizar o conceito de RPG e sua potencialidade interpretativa no ensino de histria.

    RPG uma sigla para as palavras em ingls Role Playing Game, (Jogo de

    interpretao de personagens) e um tipo de jogo em que os jogadores assumem os

    papis de personagens e assim criam uma histria que se desenvolve de maneira

    cooperativa, num misto de teatro com jogo de estratgia.

    Cassaro (2007), autor de vrios livros do gnero, descreve no incio de uma

    de suas obras, o funcionamento do jogo:

    [...] como um teatro de improviso, como uma brincadeira de policial e bandido, mas,com regras. Os jogadores dizem o que desejam fazer, e ento rolam dados para descobrir se conseguiram. As decises dos jogadores controlam as aes dos personagens e mudam a histria, cujo final pode ser bom ou ruim. (CASSARO, 2007, p. 8)

    Alm disso, por ser um jogo que incentiva as prticas da leitura, cooperao,

    interatividade, socializao e abstrao, RPG ainda possui um importante funo

    como ferramenta pedaggica nas mos dos professores e assim vem sendo no Brasil

    desde de 1990, j tendo sido realizado no pas quatro simpsios sobre RPG10 e

    Educao, alm de diversos trabalhos e eventos em nvel acadmico.

    Retomando os argumentos realizados anteriormente, o RPG a partir da

    interpretao de papis, foi criado de um jogo de estratgia lanado em 1971 por um

    criador de jogos chamado Gary Gygax, o Chainmail.

    Em 1974, contudo, um outro criador de jogos, Dave Anderson, props a

    Gygax que, ao invs de focar o jogo unicamente nas representaes de batalhas

    campais, eles dessem ateno especial ao uso das unidades individuais em outros

    10

  • 36

    cenrios que no a batalha campal, Gygax aprovou. Ento, em 1974, Gary Gygax e

    Dave Anderson criaram um suplemento para o Chainmail de nome Dungeons and

    Dragons, que seria o primeiro jogo de interpretao de personagens do mundo.

    O jogo foi um sucesso e logo conquistou vrios adeptos por todo o mundo,

    dando origem para produes em diversas outras mdias, como por exemplo, a

    animao criada em 1983 chamada Dungeons and Dragons conhecida no Brasil

    como Caverna do Drago, e tambm um filme estrelado pelo ator norte-americano

    Tom Hanks, chamado Mazes and Monsters.

    Posteriormente, vrios outros autores comearam a criar jogos baseados no

    conceito de interpretao de papis elaborado por Anderson e Gygax, contudo

    abordando outras temticas que no a fantasia medieval. O prprio Gygax, em

    conjunto com Brian Blume, criou, em 1975, o jogo Boot Hill, ambientado no

    perodo histrico dos EUA que ia desde o incio de sua colonizao at o fim do

    sculo 19, passando pela corrida do ouro e guerra da secesso.

    Em 1986 o autor norte americano Steve Jackson (1991) criava o G.U.R.P.S,

    Generic Universal Role Playing Sistem ou Sistema Genrico de Interpretao de

    Papis. Esse jogo trazia um conceito inovador do uso de um nico sistema de

    regras genricas para diversas abordagens temticas.

    Sobre o G.U.R.P.S., Mateus Souza Rocha cita:

    De fato um sistema genrico, que possibilitava criar aventuras em quaisquer cenrios ou pocas que a imaginao permitisse. A tendncia do mercado era cada vez mais criar jogos com conjuntos de regras especficos e bem delimitados para cada cenrio, mas o GURPS seguiu um caminho totalmente oposto, criando um sistema sem um cenrio, deixando essa tarefa a cargo dos jogadores, que passaram a ter total liberdade de criao, uma atitude arriscada, porm muito bem sucedida, como a popularidade do GURPS atualmente pode comprovar. O GURPS ainda um dos sistemas mais jogados no mundo. Tornou-se to popular, que foi o primeiro grande sistema de RPG escolhido para ser traduzido para o portugus pela editora Devir. O GURPS elevou o RPG a um novo patamar, permitindo que os jogadores no mais ficassem limitados s possibilidades que os cenrios ofereciam. A partir do GURPS, com sua idia de sistema universal, o limite passou realmente a ser a imaginao dos jogadores.. (ROCHA, 2006, p. 53)

    No fim da dcada de 70 e incio dos anos 80, o RPG chegava ao Brasil pelas

    mos de alunos intercambistas que regressavam dos EUA. Eram livros ainda em

    ingls, que permitiam a prtica do jogo. Era comum tambm que grupos de

    universitrios, que tiveram um primeiro contato com o jogo, comprassem livros no

  • 37

    exterior, que posteriormente eram fotocopiados para os outros membros do grupo de

    jogo. Por essa prtica, essa gerao de jogadores passou a ser conhecida como

    Gerao Xerox.

    Aproveitando-se desse nicho comercial que comeava a surgir no Brasil, a

    editora GSA publicou, em 1991, o primeiro jogo de RPG nacional chamado Tagmar.

    Esse jogo tambm era baseado na literatura tolkiana e seguia o gnero de fantasia

    medieval clssico. No mesmo ano, a editora Devir tambm lanaria uma verso

    nacional do G.U.R.P.S.

    Na dcada de 2000, os jogos de RPG de mesa explodiram em popularidade

    no Brasil, principalmente os gneros de fantasia medieval e os jogos inspirados nas

    revistas em quadrinhos (mang) e os desenhos animados (anime) de origem ou

    influncia japonesa.

    Os jogos eletrnicos, por outro lado, se configuram, como diz Arruda (2009),

    em artefatos culturais contemporneos, baseados em nanotecnologia. Considero

    jogos eletrnicos, games e jogos digitais como sinnimos, dentro da concepo de

    jogos digitais de Arruda, de todos aqueles que podem ser jogados por intermdio de

    estruturas programadas baseadas em cdigos binrios em suporte computacional

    (2009, p. 70) Os jogos em si no se caracterizam como uma novidade, o autor

    considera o ato de jogar como uma caracterstica ontolgica na nossa histria.

    Porm, os jogos eletrnicos ainda so considerados um elemento que pertence

    somente um entretenimento ocioso, sem produtividade evidente.

    Mas esses mesmos jogos digitais se revelaram, na pesquisa, como um

    dispositivo que vai alm do aspecto binrio da programao da mquina,

    influenciando aspectos sociais e culturais na sociedade contempornea. Dessa

    maneira, a imerso do jogador em ambientes diferentes da sua realidade possibilita

    processos de interao e compreenso da prpria realidade num espao de

    simulao.

    Apesar de Arruda considerar que as pesquisas a respeito da imerso do

    jogador e suas relaes fora do jogo [no meu caso, interessando os processos

    formativos], so ainda incipientes e merecedoras de uma ampla investigao (2009,

    p. 60), entendo que no meu caminhar de pesquisador e as experincias outras como

  • 38

    jogador me revelaram as potencialidades formativas desses jogos que extrapolam a

    programao, ditando atitudes e relaes sociais.

    3.1 RPG e suas potencialidades educacionais

    No mesmo ano do lanamento do Tagmar, seria lanado no Brasil o primeiro

    jogo de RPG com carter educativo, o Desafio dos Bandeirantes escrito pelos

    autores Carlos Klimick e Luiz Eduardo Ricon (1991), tambm publicado pela GSA.

    Esse jogo mostrava uma verso mtica do Brasil colonial e explorava os mitos

    indgenas e africanos. Desafio dos Bandeirantes trouxe um conceito novo para o

    jogo. Agora, os autores e professores percebiam que poderiam us-lo como

    ferramenta didtica tanto dentro do espao escolar quanto fora. Nessa mesma poca,

    o RPG tambm passaria a ser adotado para fins teraputicos por psiclogos e

    psiquiatras.

    O conceito de RPG didtico comeou a ser difundido dentro de algumas

    universidades e grupos de estudo e em 1992 foi realizado o primeiro Simpsio de

    RPG e Educao, promovido pela ONG Ludus Culturalis e reunindo trabalhos

    acadmicos na rea de educao advindos de vrias universidades, que foram

    reunidos nos Anais do I Simpsio de RPG & Educao, de autoria de Maria do

    Carmo Zanini (1992) e publicado pela Devir livraria.

    Esse simpsio foi o primeiro passo para um trabalho pioneiro em se falando

    de RPG e educao no mundo. Os educadores brasileiros eram os primeiros a pensar

    no jogo como uma nova ferramenta pedaggica e perfeitamente utilizvel em sala de

    aula. Nesse simpsio, o RPG e suas possibilidades didticas foram apresentadas para

    a comunidade acadmica e as metodologias e mecnicas tanto em nvel de regras

    quanto de ambientao, foram levadas a debate. Aconteceram ainda outros eventos

    acadmicos de abrangncia nacional, cada um discutindo um tema relevante para a

    discusso sobre educao e RPG. O mais recente foi o IV Simpsio de RPG &

    Educao RPG: educao, entretenimento ou violncia?, realizado em So Paulo,

    no campus da Uninove, nos dias 21, 22 e 23 de setembro de 2006.

    Desde o primeiro Simpsio de Educao e RPG, diversos outros trabalhos

    acadmicos e jogos educativos foram desenvolvidos. Dentre eles, vale a pena citar o

    suplemento de jogo G.U.R.P.S. Entradas e Bandeiras, G.U.R.P.S. Descobrimento do

  • 39

    Brasil e G.U.R.P.S. Quilombo dos Palmares, de Luiz Eduardo Ricon, que trazia uma

    perspectiva histrica para o jogo. Ainda temos o Simples Manual para o Uso do

    "RPG" na Educao, por Marcos Tanaka Riyis (2004), sendo esse ltimo um

    sistema de regras de jogo voltado unicamente para sala de aula.

    Sobre o Simples citado que:

    O objetivo do uso do RPG na sala de aula o de proporcionar aos alunos uma atividade ldica que crie um ambiente diferenciado e mais prazeroso para aprendizagem, facilitando, desta forma, o envolvimento do aluno com a temtica a ser trabalhada, criando situaes que se assemelhem realidade. Na viso de Marcos Tanaka Riyis em seu livro "Simples - Manual para o uso do 'RPG' na educao", atravs de uma partida de RPG, a exposio dos alunos a determinadas situaes faz com que esses tenham que exercitar os contedos aprendidos, mesmo que seja atravs de uma aplicao imaginria. A assimilao de contedo maior quando conseguimos pr em prtica aquilo que aprendemos. (site RPGEduc, http://www.rpgeduc.com/index.htm, acesso em: 13 de agosto de 2009)

    O RPG um dispositivo pedaggico que j mostrou sua pontencialidade

    formativa por diversas vezes, posta a prova no apenas dentro das escolas, mas

    tambm nas universidades. uma atividade que, nas palavras de Rocha:

    [...] construdas nos primeiros contatos com os jogadores, foram: leitura, escrita, criao (criatividade), imaginao, raciocnio lgico e hipottico, expresso oral, corporal e experimentao do real atravs do imaginrio. De incio, estas guiavam as entrevistas, porm, conforme avanadas as mesmas, novas categorias foram surgindo e outras foram sendo descartadas ou substitudas por aquelas que se mostravam mais representativas, as quais apareciam com mais freqncia na fala dos entrevistados, resultando nas seguintes: ateno, auto-confiana, auto-controle, auto-conhecimento, criatividade, construo de conhecimentos, experimentao do real pela fantasia, expresso, imaginao, leitura e escrita, pacincia, pesquisa, raciocnio, responsabilidade, sociabilidade e trabalho em equipe. Todas estas categorias foram encontradas nas falas dos entrevistados e muitas outras apareceram sendo incorporadas pelas j citadas, como o caso da motivao, cultura, vocabulrio, valores morais, troca de experincias, amadurecimento, respeito, senso crtico. (ROCHA, 2006, p. 78)

    Para o professor de Histria, o RPG pode ser interpretado como uma maneira

    de fazer o aluno experimentar a realidade histrica que ele deseja apresentar no

    momento da aula, tirando-o da posio de expectador e colocando-o como um

    participante ativo no espao de ensino-aprendizagem, oferecendo-lhe assim uma

    experincia nica, onde poder experimentar a partir de vivncias anteriores e de

    modo ldico, o cotidiano histrico que ele deseja retratar. Considero o RPG de mesa

    uma boa maneira de oferecer uma experincia de imerso social, interagindo com

  • 40

    outras pessoas atravs das mais variadas formas de leitura. um dispositivo que

    pode ser aproveitado por professores no somente da rea de Histria, mas tambm

    pelo educador que se disponha a observar e agir na educao com um olhar

    diferenciado. Trata-se de uma tcnica de linguagem inovadora e instigante nas mos

    dos professores que tm disposio para us-la, mas que ainda carece de pesquisas

    para utilizarmos de maneira significativa no ambiente de ensinoaprendizagem.

    Acerca do RPG eletrnico, temos a dizer que foi uma maneira de chamar a

    ateno dos jogadores do RPG de mesa nos anos noventa do sculo passado para um

    gnero de game que valorizava a profundidade dos dilogos, da construo dos

    personagens por meio de um sistema mais complexo e personalizado de

    caractersticas e finais que poderiam variar de acordo com as suas escolhas. Mesmo

    cientes de que a variedade de alternativas e caminhos a se percorrer seriam limitadas

    programao e inteligncia artificial da tecnologia, o gnero atraiu diversos

    adeptos e muitos ttulos so lembrados at os dias de hoje por sua histria cativante

    e inovaes prprias dos RPGs eletrnicos.

    Como todo jogador do RPG de mesa, essas caractersticas me atraram para

    experienciar o jogo eletrnico. E, assim como muitos, me tornei adepto a esse

    gnero de jogo que hoje empresta muitas de suas caractersticas para jogos de tiro,

    aventura, dentre outros.

  • 41

    Game of thrones: o RPG de mesa e o jogo (RPG) eletrnico. Disponvel em http://migre.me/eK3Eu Acesso em

    25 de mai de 2013.

    Ao experienciar o jogo, estava diante de uma mdia que tinha dois potenciais

    que me implicaram. Primeiro, pelo fato de se tratar da narrativa de Game of

    Thrones, uma srie de televiso que me agradava muito na poca. Segundo, pelo

    fato de se tratar de um RPG, gnero de game que sempre me interessou na

    adolescncia e me instigou a retomar o hbito de jogar. Cabe aqui descrever,

    brevemente, acerca da narrativa para que possamos compreender melhor o mundo

    onde estamos entrando. Acerca da produo da srie...

    Game of Thrones uma srie de televiso americana criada por David Benioff e D. B. Weiss para a HBO. A srie baseada na srie de livros As Crnicas de Gelo e Fogo, escritos por George R. R. Martin, com seu ttulo sendo derivado do primeiro livro. Game of Thrones est sendo filmada principalmente no Paint Hall Studios, em Belfast, e em outras localizaes na Irlanda do Norte, Malta, Crocia e Islndia. (Wikipedia, GAME OF THRONES. Disponvel em 2012)

    Sobre a narrativa, de maneira resumida, podemos apresent-la como uma

    [...] srie de televiso [que] segue as mltiplas histrias dos livros de A Song of Ice and Fire. Se passando nos Sete Reinos de Westeros, onde "veres

  • 42

    duram dcadas e os invernos uma vida inteira", Game of Thrones mostra as violentas lutas dinsticas entre as famlias nobres para ter o controle do Trono de Ferro de Westeros. Enquanto isso, nas regies desconhecidas ao norte da Muralha e nos continentes ao leste, ameaas adicionais comeam a surgir. (2012)

    O game, baseado nos acontecimentos no continente de Westeros na primeira

    temporada da srie, nos coloca diante dos problemas de Mors, um irmo da patrulha

    da noite e Alaster, um Sacerdote vermelho que retorna sua terra natal aps um

    longo tempo exilado, em obrigaes religiosas.

    De acordo com o texto introdutrio do game, na fala do seu narrador, o ano

    de 298 no continente de Westeros, Reino dos Sete Reinos e tambm regio onde

    acontecem as principais cenas do jogo. A antiga linhagem de reis da famlia

    Targaryen foi interrompida depois de reinar na regio durante muitos sculos. A

    Rebelio da famlia Baratheon, liderada pelo guerreiro e atual rei Robert, uniu a

    maior parte das grande Casas dos Sete Reinos sob o seu estandarte, causando a

    queda da dinastia Targaryen. Assim, se passaram quinze anos depois que Robert

    Baratheon assumiu o comando dos Sete Reinos, subindo ao Trono de Ferro.

    Personagem Mors Westford. Disponvel em: http://evrach.perso.sfr.fr/RPG/capture12.jpg Acesso em 25 de mai

    de 2013.

    A narrativa se inicia muito longe do jogo dos tronos e das suas intrigas

    polticas. Ao norte de Westeros, em uma terra de inverno permanente, uma barreira

  • 43

    foi construda para manter toda a ameaa que viesse do norte desconhecido para

    colocar em perigo todos os outros reinos, conhecida simplesmente como A Muralha.

    A Patrulha da Noite (em ingls, Nightwatch) tem feito a guarda dessa muralha por

    milhares de anos, protegendo o reino de todas as ameaas selvagens e outras alm da

    compreenso, vindas do outro lado. Nessa regio, o perigo constante, o frio

    implacvel e, para aqueles que fracassam, a morte o que espera.

    A primeira cena do jogo sobre homens que fizeram os votos da Patrulha da

    Noite e tentam quebrar esse voto, fugindo do local. Um dos mais valorosos

    guerreiros da Patrulha tenta fugir e capturado pelo personagem jogador. A nica

    sentena possvel para a desero: a morte. Logo aps punir o seu ex-companheiro

    de grupo, Mors Westford, o nosso primeiro personagem jogvel, recebe a misso de

    caar mais um traidor que, alm de espancar um dos membros da organizao, tem

    acordos com os selvagens e est tentando abrir uma passagem por um dos portes do

    muro para a entrada dos invasores. Mors entra numa caada implacvel onde, alm

    de ter de treinar um grupo de novatos, precisar estar atento sua caa, um traidor

    que quase to habilidoso em combate quanto ele.

    Na segunda cena, fui apresentado ao segundo personagem com o qual joguei:

    Alester Sarwyck. Sacerdote vermelho de Rhllor, deus do fogo e da luz, abandonou

    seu reino quinze anos antes dos acontecimentos do jogo para se tornar um sacerdote.

    Nesse tempo, o seu reino natal entrou em sria crise poltico financeira, de modo que

    seu pai no conseguiu administrar o reino depois de sua partida, deixando toda

    responsabilidade para sua filha. No tempo do jogo, o rei do local acabara de falecer e

    Alester retorna para sua terra com o objetivo de se despedir do seu pai e retomar o

    que acredita ser seu de direito: o posto de rei de Riverspring. Porm, existem

    diversas outras intrigas polticas que colocam nosso personagem numa situao

    complicada: primeiro, o fato de sua irm no mais confiar no irmo que abandonou

    o reino por quinze anos, alm do fato da famlia Lannister ter feito um acordo para

    que um homem de sua preferncia desposasse sua irm e que assumisse o posto de

    rei de Riverspring. Atravs do dilogo e por outras vezes da espada, Alester ter de

    resolver todas essas questes, caso queira assumir a coroa que outrora foi do seu pai.

  • 44

    Personagem Alester Sarwyck. Disponvel em: http://migre.me/eK5Ye . Acesso em 25 de mai 2013.

    Ao seguir os passos e os destinos dos dois personagens da narrativa, o

    jogador tem acesso a alguns acontecimentos que so importantes para a narrativa de

    base (o seriado de TV) e pode conhecer um pouco mais acerca da srie em termos de

    histrias de Westeros e desse mundo medieval sombrio e violento que George R. R.

    Martin nos traz em Game of Thrones.

  • 45

    CAPTULO IV - A OPO METODOLGICA E SUAS SINGULARIDADES

  • 46

    O presente captulo tem como objetivo explicitar nossas opes

    metodolgicas, assim como, ao exercitar suas principais caractersticas e

    proposies epistemolgicas e de mtodo, narrar formando-nos neste mesmo

    processo. Portanto, a narrativa metodolgica aqui construda no se configura

    apenas numa resposta a um padro de preenchimento de exigncia acadmica, mas a

    produo de uma narrativa que tem a inteno de revelar uma experincia terico-

    metodolgica, avaliada como importante para nossa itinerncia de professor-

    pesquisador em formao ao fundamentar uma pesquisa.

    No que concerne ao mtodo opcionado, utilizaremos uma pesquisa de

    inspirao etnogrfica, com base nas ideias de Andr (2002), onde a descrio do

    fenmeno estudado passa a ser um imperativo (MACEDO, 2006), na medida que

    compreender as compreenses dos aprendentes no contexto da interao com os

    jogos eletrnicos se configura como um estudo relevante sobre o cotidiano desses

    jovens, onde emergem potencialidades fecundas em termos de formao histrica.

    Analisar a prtica cotidiana da interao dos atores com os jogos eletrnicos tem

    importncia fundamental para se compreender algumas caractersticas singulares da

    construo interpretativa acerca de dispositivos e processos histrico-culturais na

    contemporaneidade.

    O mtodo etnogrfico que escolhemos como inspirao de pesquisa

    configura-se principalmente a partir dos estudos de Arruda (2009), nos quais o autor

    fez opo pela etnografia no decorrer de toda uma fecunda trajetria, tornando-se a

    base de sua pesquisa. A tese de Arruda acerca do desenvolvimento de ideias e

    raciocnios histricos produzidos por jovens jogadores contribuiu, sobremaneira,

    para o caminhar metodolgico da nossa pesquisa.

    De acordo com esse pesquisador, por conta da falta de uma metodologia que

    acolhesse a complexidade do objeto da sua pesquisa, necessitou de um percurso de

    experimentaes, sondando possibilidades e, atravs de tentativas e erros, conseguiu

    desenvolver e delinear estratgias de campo, visando compreenso do fenmeno

    que se props estudar. Essa escolha se construiu a partir de uma insero densa,

    intensa e de longa durao, com o objetivo de investigar as aprendizagens,

    raciocnios e ideias histricas construdas por sujeitos/jogadores de um jogo

  • 47

    digital com temtica histrica, no caso, o Age of Empires III11. Aliado perspectiva

    etnogrfica, o autor utilizou o mtodo do paradigma indicirio. Bastante difundida

    entre crticos de arte e nas ltimas dcadas entre historiadores, essa metodologia

    desenvolvida por Ginzburg (1990), procura nos menores detalhes, nos pormenores

    mais negligenciveis de um fenmeno, indcios que contribuam para a singularidade

    de sua compreenso.

    Nesses termos, pensei em analisar etnograficamente como esses estudantes

    interpretam as experincias histrico-culturais presentes nos dispositivos tais como

    os jogos eletrnicos, mais especificamente, os RPGs digitais com caractersticas que

    remetem a elementos culturais de tempos outros. Buscamos primeiramente, em

    Andr (1995), elaboraes acerca dos mtodos para a utilizao da etnografia nos

    espaos escolares.

    Essa autora, ao abrir o debate sobre a etnografia da prtica escolar, nos diz

    que a principal caracterstica da sua pesquisa est no interesse sobre as questes

    relacionadas prtica escolar cotidiana, em vista de encontrar alternativas para o

    redimensionamento do saber e do fazer docentes. Para embasar o seu argumento,

    Andr busca, na histria da etnografia, evidenciar que Dilthey foi um dos primeiros

    a buscar uma metodologia diferenciada para os estudos nas cincias humanas,

    trazendo o argumento de que os fenmenos humanos so dotados de uma

    complexidade distinta em comparao aos estudos das cincias duras. Vale

    ressaltar tambm, que o contexto particular em que os processos se desenvolvem

    um elemento essencial para a sua compreenso.

    No veio dessas reflexes, Andr se baseia nos argumentos de Dilthey para

    sugerir que analisemos as cincias sociais atravs do prisma hermenutico, que se

    preocupa com a compreenso dos significados contidos num texto (entendido hoje

    como muito alm dos documentos escritos), levando em conta a interpretao dos

    sentidos e significados inclusos nesses textos e as inter-relaes que tanto homem

    quanto texto realizam no ambiente em que existem. Alm do campo da histria

    (Dilthey era historiador), Andr destaca que Weber tambm trouxe contribuies

    11 Age of Empires III um jogo para computadores (PC) criado pela Ensemble Studios e lanado em 2005 pela Microsoft Game Studio. um game que utiliza de acontecimentos histricos para desenvolver um jogo de estratgias de guerra em tempo real onde naes se enfrentam por conquista de territrios ou acontecimentos histricos especficos desde a Era dos Descobrimentos at a Era dos Imprios, entre os sculos XVI e XIX.

  • 48

    importantes vindas da tradio da sociologia alem. Nesses termos, o socilogo

    fundamenta suas bases numa cincia de carter compreensivo que diferenciaria a

    cincia social da cincia fsica. Assim, o foco de sua investigao situa-se na

    compreenso da ao social dos indivduos e os significados atribudos pelos

    sujeitos a essas aes. Andr conclui que, como Dilthey, Weber argumenta que

    para compreender esses significados necessrio coloc-los dentro de um

    contexto. (1995, p. 17)

    Foi com base nessas perspectivas que comearam a se configurar as novas

    abordagens de pesquisas qualitativas. Chamadas assim por se oporem ao esquema

    quantitativista de pesquisa, que divide a realidade em unidades individualizadas,

    fragmentadas e que, em teoria, no se relacionam e podem ser exatamente

    mensuradas. Estas defendem uma viso relacional dos processos humanos, na qual,

    diversos fatores interagem e influenciam nos fenmenos sociais reciprocamente.

    Desenvolvida na antropologia, a etnografia pensada por Andr como uma

    corrente que se preocupa essencialmente com o significado que tm as aes e os

    eventos para as pessoas ou grupos estudados. Alguns desses significados so

    diretamente expressos pela linguagem, outros so transmitidos indiretamente por

    meio das aes. (1995, p. 19). A partir desse conceito, o esforo deste trabalho foi

    realizar o que Geertz (1989), denomina de descrio densa, ou seja, compreender a

    cultura emergente entre os jovens gamers. Um procedimento descritivo minucioso

    de como se apresentam as experincias aprendentes formativas dos estudantes

    envolvidos na experincia pesquisada, como resultante do dispositivo organizado

    para mediar esse processo. Para Geertz, o pesquisador que adota como prtica a

    etnografia enfrenta na sua rotina de coletar compreenses durante a sua pesquisa de

    campo,

    [...] uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas s outras, que so simultaneamente estranhas, irreg