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7/28/2019 Dissertacao Entrega 1 Comida de Santo
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN
ANA PAULA NADALINI
COMIDA DE SANTO NA COZINHA DOS HOMENS:UM ESTUDO DA PONTE ENTRE ALIMENTAO E RELIGIO
CURITIBA2009
7/28/2019 Dissertacao Entrega 1 Comida de Santo
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ANA PAULA NADALINI
COMIDA DE SANTO NA COZINHA DOS HOMENS:UM ESTUDO DA PONTE ENTRE ALIMENTAO E RELIGIO
Dissertao apresentada como requisito parcial obtenodo grau de Mestre em Histria, Curso de Ps-Graduao,Setor de Cincias Humanas, Letras e Artes, UniversidadeFederal do Paran.
Orientador: Prof. Dr. Carlos Roberto Antunes dosSantos
CURITIBA
2009
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AGRADECIMENTOS
Primeiramente, gostaria de agradecer agncia CAPES, pela bolsa de incentivo
pesquisa. Agradeo tambm ao programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade
Federal do Paran.
Gostaria tambm de dizer obrigada a todos os Professores que estiveram comigo
nesses anos de muito estudo e dedicao: Professor Carlos Roberto Antunes dos Santos, meu
orientador, a quem muito devo por esta dissertao. Professora Judite Trindade, minha
orientadora de bolsa na graduao, professora de seminrio, parte da minha banca de
qualificao, a quem muitas vezes recorri. Professor Euclides Marchi, cuja contribuio na
banca de qualificao foi de extrema importncia e a quem devo o ttulo do meu trabalho.Ainda agradeo ao Professor Antnio Csar de Almeida Santos, Professora Roseli
Boschilia, Professora Marionilde Brepohl Magalhes e Professora Christine Chaves.
Agradeo muito ao grupo de pesquisa de Histria e Cultura da Alimentao, onde
comecei meus estudos nessa rea. Todas as pessoas do grupo contriburam para o meu
desenvolvimento, porm algumas mais diretamente. Para elas vai, alm do meu obrigado, um
abrao bem apertado: Luciana Patrcia de Moraes por ter encontrado metade das minhas
fontes, Mariana Coro por ter me iniciado nas discusses sobre Histria da Alimentao,Maria Henriqueta Garcia Gimenes e Deborah Agulhan Carvalho, pelas muitas conversas, e-
mails e almoos o que no poderia faltar para quem estuda alimentao.
Aos meus entrevistados, agradeo pela contribuio para a pesquisa. Maria Joana de
Oxum, Izolina de Oxssi, Vanderlei de Oxal, Mrcio de Omolu, Caf Milod de Omolu,
Alex de Oxssi, Rmulo de Oxal, Tatiana de Iemanj, Marize de Omolu, pessoas que tantas
vezes incomodei, visitei, tirei de seus afazeres e que foram muito gentis, compreensivas e
atenciosas.Ainda quero dizer obrigado a todas as pessoas que contriburam direta ou
indiretamente para essa pesquisa, dando um telefone de uma casa de Candombl, indicando
um livro, esclarecendo alguma dvida e que no caberia o nome de todos aqui. Ainda aos
meus amigos que me escutaram falar tantas vezes da pesquisa e que precisaram ter pacincia
comigo em momentos de crise. Em especial a Marilia Herreros, minha amigona e revisora da
dissertao e a Socorro Arajo, que gentilmente cedeu fotos para este trabalho.
Todo meu amor a trs pessoas, porque para eles eu no tenho palavras para dizer o
quanto eu agradeo: Pai, Me e Gigio.
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(...) onosso missal um grande cardpio
Rmulo de Oxal
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RESUMO
A alimentao est ligada, em princpio, maioria das religies. Com jejuns, abstinncias edeterminando o que puro e impuro, as religies influenciam os hbitos alimentares dos fiis.
Este trabalho tem o objetivo de perceber as relaes entre a Histria da Alimentao e o
estudo das religies, unindo essas duas reas do conhecimento. Para tanto, foram realizadas
entrevistas, com base na metodologia da Histria Oral, com membros do Candombl de
Curitiba. Esses registros renem informaes de diversos nveis de especificidade, tais como
a mitologia preservada sobre os Orixs e como a comida aparece nessas histrias, os rituais de
sacrifcios e oferendas, o cotidiano do Povo-de-Santo e sua rotina alimentar, tanto em dias
comuns quanto durante as festividades. Essa complexa cadeia, que permeia as relaes entre
os deuses e a alimentao, a alimentao e os homens e os homens e os deuses, ilumina o
campo da Histria da Alimentao e discute as prticas religiosas como modificadoras do
gosto alimentar.
Palavras-chave: Alimentao, Candombl, Memria.
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ABSTRACT
Eating habits are connected, in principle, to most religions. Through fasts, abstinences and
determining what is pure or impure, religions influence their believers eating habits. This
dissertation aims at perceiving these relationships, merging two areas of knowledge, the
History of Eating and the study of religions. Therefore, interviews with members of
Candomble in Curitiba were conducted, based on the oral history methodology. These
registers gather information from different levels of specificity, such as the mythology
preserved by the Orixas and how food is depicted in these stories, sacrificial rituals and
offerings, the daily routine of the povo-de-santo e their daily eating habits, both on ordinary
and festive days. This complex chain, which permeates the relationships between gods and
eating, eating and men, men and gods, lights the field of the history of eating and discusses
religious practices as a transforming agent of taste.
Key words: Eating, Candombl, Memory.
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LISTA DE IMAGENS
FIGURA 1.......................................................................................................................54FIGURA 2.......................................................................................................................55
FIGURA 3.......................................................................................................................55FIGURA 4.......................................................................................................................57FIGURA 5.......................................................................................................................63FIGURA 6.......................................................................................................................70FIGURA 7.......................................................................................................................73FIGURA 8.......................................................................................................................79FIGURA 9.......................................................................................................................82
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SUMRIO
INTRODUO ............................................................................................................................... 1
1HISTRIADAALIMENTAOREVISITADA ................................................................................... 13
1.1 HISTORIOGRAFIADAALIMENTAOREVISITADA............................................................. 15
1.2 A INFLUNCIA BRASILEIRA NOS ESTUDOS DA ALIMENTAO ......................................................... 25
1.3 ALIMENTAO COMO GNERO DE FRONTEIRA .......................................................................... 39
1.3.1 Histria da alimentao e suas conexes ................................................................................. 43
1.3.2 A ponte entre a Histria da Alimentao e o estudo das religies ............................................... 46
2 A ALIMENTAO E O SAGRADO NO CANDOMBL ......................................................................... 51
2.2 OS ORIXS E A ALIMENTAO ................................................................................................. 522.3 RELIGIES DE MATRIZ AFIRCANA : PERSPECTIVAS DE PESQUISA ............................................ 66
2.1 ENTENDENDO O CANDOMBL ................................................................................................. 86
3 COMIDA-DE-SANTO NA COZINHA DOS HOMENS ................................................. 92
3.1 A PROIBIO DE BEBER E O MITO DE CRIAO DA TERRA ...................................................... 96
3.2 PROIBIO: QUIZILA E PRECEITO ............................................................................................. 99
3.3 ALIMENTAO NO PERODO INICITICO ............................................................................... 104
3.4 ALIMENTAO E RITUAL ........................................................................................................ 107
3.5 COZINHA-DE-SANTO OU COZINHA DOS HOMENS? ............................................................... 109
3.6 COMIDA-DE-SANTO OU COMIDA DOS HOMENS? ................................................................. 113
3.7 RECEITAS................................................................................................................................. 116
CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................... 122
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................................... 126
DOCUMENTOS PESQUISADOS ...................................................................................... 132
ANEXO .................................................................................................................................. 133
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INTRODUO
A alimentao uma das primeiras necessidades humanas e acompanha a vida, mantendo-a
na sua permanncia fisiolgica 1. Pode-se pensar que essa tambm uma necessidade dos
animais ou de todos os seres vivos. Entretanto, a alimentao proposta neste trabalho
acompanhada por conceitos que no a restringem apenas ao ato nutricional. O envolvimento
afetivo do homem com o alimento, o gosto e a sociabilidade proporcionada por tais elementos
fazem com que a alimentao invada o campo das cincias humanas. Brillat-Savarin dedica
um livro A Fisiologia do Gosto2 para contar ao seu leitor sobre essa relao que s o
homem tem com o alimento, alm de explanar sobre o prprio alimento, sua origem e
preparao. Cascudo escreve que comer um ato orgnico que a inteligncia tornou social3,
afirmao a que essa pesquisa est ligada por tratar a alimentao para alm do ato
nutricional.
A alimentao liga, primeiramente, o homem ao seu prprio organismo quando
satisfaz a necessidade biolgica da nutrio. tambm uma de suas primeiras formas de
sociabilidade ligando-o aos outros homens, desde o nascimento, quando amamentado pela
me, passando pelas merendas na escola, os almoos de negcio e os jantares romnticos. H
ainda uma dimenso permeada pela alimentao em que o vnculo criado entre homens e
divindades, a dimenso da espiritualidade.
Uma grande parte das prticas religiosas est ligada ao ato de comer (ou de no
comer). As festas dedicadas aos deuses provedores dos alimentos nas religies indgenas, o
jejum em perodos de sacrifcio como a Quaresma ou o Ramad, a Eucaristia que consiste em
comer o corpo e beber o sangue de Jesus Cristo, a proibio de ingerir carne de porco noJudasmo ou de vaca no Hindusmo so alguns exemplos disso.
Para a realizao desta pesquisa, a religio escolhida foi o Candombl, na qual o papel
da alimentao tem importncia essencial, formando uma de suas bases teolgicas. O
Candombl caracterizado como uma religio afro-brasileira, em que so cultuadas diversas
1 CASCUDO, Luis da Cmara. Histria da Alimentao no Brasil. So Paulo: Editora da Universidade deSo Paulo, 1983. p. 21.
2 BRILLAT-SAVARIN, Jean- Anthelme. A fisiologia do gosto. So Paulo: Companhia das Letras 1995.
3 CASCUDO, L da C. Op. Cit. p. 2.
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entidades, conhecidas mais comumente como Orixs (so tambm chamados de Santos). Tais
divindades esto ligadas a fenmenos ou elementos da natureza e tambm a ancestrais
divinizados. No Candombl uma das principais ligaes entre homens e deuses so as
oferendas de alimentos e sacrifcios.
Para Arno Vogel,
a pedra angular da piedade afro-brasileira o sacrifcio. Sem ele nenhuma passagem pode se efetuarcom xito. Os sacrifcios, no entanto, requerem que se ofeream aos deuses coisas de sua preferncia(...).
Quanto mais importante a passagem, mais dramtico o sacrifcio. Nos minsculos transes doquotidiano, basta o dispndio modesto e plcido das libaes, defumaes e oferendas culinrias. Asgrandes passagens, no entanto, requerem os grandes sacrifcios, o sangue derramado, as hecatombes.
Na relao dos homens com os deuses, o sacrifcio animal constitui o penhor mais precioso.
indispensvel para abrir caminhos em todos os grandes ritos que visam transformar radicalmente aforma de existncia dos seres humanos. Dentre todos eles a iniciao, mais do que qualquer outro,precisa oferecer vida por vida.4
Os Filhos-de-Santo tm obrigaes para com as divindades, especialmente com
aquela de sua origem. Um filho de Iemanj, por exemplo, tem que tratar com carinho o seu
Santo, dando-lhe as comidas que ele gosta, as flores de sua preferncia. Da mesma forma,
tem compromissos com outros Orixs, deve satisfaz-los e relembr-los principalmente em
seu dia de festa, ou ainda por alguma necessidade especfica que o Orix pode intervir.
Pierre Verger defende a mesma viso de Vogel quando fala que nada se faz sem consult-
los e garantir sua proteo. Os homens gozam da abundncia e da prosperidade se
souberem satisfaz-los e, ao contrrio, as catstrofes e calamidades sucedem-se na terra se
esses deuses forem negligenciados ou ofendidos.5
Um membro do Candombl tem sua alimentao diferenciada de acordo com o
perodo da vida religiosa que est passando e o Orix de quem filho, o que determinacoisas que ele no pode comer. Em Comida: uma histria, Felipe Fernndez-Armesto
dedica algumas pginas ao estudo da sacralizao da comida e diz que as sociedades tm
hbitos alimentares que pertencem esfera do sagrado: existem substncias que
consumimos para nos tornar sagrados ou ntimos dos deuses ou dos espritos, outras que se
4 VOGEL, Arno et al. A galinha d'angola: iniciao e identidade na cultura afro-brasileira. Rio de Janeiro:Pallas, 2001. p. 17.
5 VERGER. Pierre. Notas sobre o culto dos Orixs e Voduns na Bahia de todos os Santos e na AntigaCosta dos Escravos na frica. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 2000. p. 16.
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interpem entre a carne e o esprito e aumentam a distncia do divino 6. Observa-se, com
base nessa citao, outro carter desta pesquisa, o estudo do no comer.
Rudolf Otto define o sagrado7
como composto por duas partes o racional e o no-racional. No racional (ou numinoso), para o autor o que no se pode explicar, sendo
compreensvel apenas no momento singular na experincia. em tal irracionalidade que se
localizam os sentimentos religiosos, os quais Otto nomeia de mysterium tremendum et
fascinans, compostos pela unio paradoxal do terror e do fascnio. O autor considera, ainda, o
Sagrado como uma categoria a priori, um instinto religioso. E, considerando que o sentimento
religioso inato, ele no interage apenas com o irracional existente em cada pessoa, mas
tambm com o seu racional, ou seja, o responsvel pela moral e tica, ou mesmo por eleger as
analogias necessrias para explicar a experincia religiosa, ou os smbolos do seu universo
representativo.
Se, de um lado, todas as sociedades possuem os alimentos simblicos do sagrado,
necessitando estes de um ritual para serem ingeridos, do outro lado existem os alimentos cujo
simbolismo negativo, imprprio, muitas vezes imoral. O tabu alimentar est muito
presente no Candombl sob o nome de quizila, que na viso simplista de Manuel Querino a
antipatia supersticiosa que os africanos nutrem por certos alimentos e determinadas aes 8.Cada Orix possui, alm de suas preferncias, os alimentos que no gosta e isto impede a sua
oferenda e restringe o seu consumo.
Portanto, a alimentao possui o seu lado simblico e este um dos temas mais
recorrentes na Histria e Cultura da Alimentao. O gosto alimentar comea a ser
considerado como uma categoria histrica e percebe-se que o que essencial nos hbitos
alimentares de uma poca, no para outra. Nesse sentido, o gosto alimentar determinado
no apenas pelas contingncias ambientais e econmicas, mas tambm pelas mentalidades,
pelos ritos, pelo valor das mensagens que se trocam quando se consome um alimento em
companhia, pelos valores ticos e religiosos []9.
6 FERNNDEZ-ARMESTO, Felipe. Comida: uma histria. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 60.7 OTTO, Rudolf. Le sacr: llment non-rationnel dans lide du divin et as relation avec le rationnel. Paris:
Payot, 1949.
8 QUERINO, Manuel. Costumes africanos no Brasil. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1938. p. 76.
9 SANTOS, Carlos Roberto Antunes dos.Por uma histria da alimentao. Histria: Questes & Debates,Curitiba, v. 14, n. 26/27, p. 154-171, jan./dez., 1997. p. 162.
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Esta pesquisa tem como objetivo estudar as relaes entre prticas religiosas, os
hbitos alimentares e a memria gustativa, buscando entender como esses elementos
interagem entre si. Lana seu olhar para a alimentao e o sagrado, o rito e o mito, a origem e
a tradio no Candombl. Desenvolve-se a problemtica de como os alimentos mitificados
nas histrias dos Orixs10, nas suas guerras, seus nascimentos, doenas, amores, casamentos
so ritualizados pelos membros do Candombl e passados por meio de uma tradio oral, da
memria. O rito, que remete mitologia, expresso de forma muito comum pelas oferendas e
sacrifcios aos Orixs. Para Marcel Mauss,
as relaes destes contratos e trocas entre homens e destes contratos e trocas entre homens e deusesiluminam um lado inteiro da teoria do Sacrifcio. Em primeiro lugar, compreendemo-los perfeitamente,sobretudo nas sociedades em que esses rituais contratuais e econmicos se praticam entre homens, masem que esses homens so encarnaes mascaradas, freqentemente xamanstica e possudas peloesprito de que usam o nome.11
A memria da tradio mitolgica preservada na oralidade pelos membros do
Candombl foi registrada por meio de entrevistas. Os lugares selecionados foram Terreiros de
Candombl localizados em Curitiba e, em alguns casos, reas vizinhas. Utilizando-se os
mtodos da Histria Oral as entrevistas constituem a fonte principal deste trabalho.
A metodologia de histria oral bastante adequada para o estudo de memrias, isto , de representaesdo passado. Estudar essa histria estudar o trabalho de constituio e formalizao das memrias,continuamente negociadas. A constituio da memria importante porque est atrelada construoda identidade. Como assinala Michael Pollak, a memria resiste alteridade e mudana e essencialna percepo de si e dos outros. Ela resultado de um trabalho de organizao e de seleo daquilo que importante para o sentimento de unidade, de continuidade e de coerncia isso , de identidade. Eporque a memria mutante, possvel falar de uma histria das memrias de pessoas ou grupos,passvel de ser estudada atravs de entrevistas de histria oral.12
Desde o incio do sculo XX a Histria vem sofrendo transformaes principalmente
em relao s fontes e aos mtodos de pesquisa. O grupo dos Annales foi o precursor dessa
busca pela valorizao de novos tipos de fontes o que levou a ampliao dos objetos de
anlise, dos mtodos e a toda uma mudana de paradigma em relao pesquisa histrica. A
10 Algumas dessas histrias foram reunidas por Reginaldo Prandi. Em certo conto, era aniversrio de Iemanj eos outros Orixs no sabiam o que dar a ela, Exu, porm, que em pobre servente/ preparou uma plantao deinhames para Iemanj./ Sabia que ela adorava inhames/ e este era o nico presente que ele podia lheoferecer./ No dia do seu aniversrio,/ Exu colheu todos os inhames que havia plantado/ e colocou para colherao sol. PRANDI, Reginaldo. A mitologia dos orixs. So Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 59.
11 MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a ddiva. Lisboa: Edies 70, 1950. p. 72-3.
12 ALBERTI, Verena. Ouvir Contar: textos em histria oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. p. 27.
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Histria Oral no fruto direto da cole desAnnales, mas nasceu por conta dessa discusso
inaugurada na Frana.
Segundo Philipe Joutard, a Histria Oral pensada pela primeira vez nos EstadosUnidos, na dcada de 1950, espalhando-se rapidamente para vrios centros de pesquisa do
mundo. Seu objetivo inicial era recolher entrevistas e arquiv-las para futuras anlises13. Com
o seu desenvolvimento, porm, ela permitiu a explorao de objetos nunca antes estudados,
como a histria de grupos sociais marginalizados, sem documentao.
Por algum tempo, a Histria Oral foi reconhecida como o modo de dar voz aos que
no tm vez, como uma outra histria, a histria dos vencidos. Verena Alberti, em seu texto
Histrias dentro da Histria14, descreve alguns erros de interpretao do mtodo de
entrevistas quando este comeou a ser realizado. A vontade e a necessidade de se fazer uma
histria no oficial, que relatasse as experincias do povo ou das minorias fez historiadores
acreditarem que as fitas gravadas com camponeses fosse a voz do povo, chegando-se desse
modo democratizao da Histria, no percebendo assim que os seus estudos eram uma
viso acadmica e elitizada das minorias. E este engano era trazido pelo historiador
militante, que acreditava que o testemunho oral j fosse a prpria Histria, sem precisar de
anlise. A mesma autora desenvolve um estudo que contraria a viso de que a Histria Oral sepresta apenas para a pesquisa de grupos em que a escrita inexistente, ou quase, ou em que os
documentos tenham sido destrudos. Alberti analisa a entrevista cedida por Evandro Lins
Silva, advogado envolvido em causas polticas que participou de mandatos de vrios
governantes, inclusive o de Fernando Collor na Presidncia da Repblica do Brasil, caso que
rendeu mais fama ao advogado.
O estudo de Alberti descrito acima demonstra que as fontes orais no so apenas uma
alternativa para quando no h fontes ou no se tem acesso a elas. Elas so apenas mais um
tipo de fonte. Documentos sobre a histria poltica do Brasil no faltam, portanto a entrevista
analisada por Alberti foi uma escolha que dependia do enfoque da anlise e no mais da
quantidade de documentos.
13 JOUTARD, Philipe. Histria Oral: balano da metodologia da produo nos ltimos 25 anos. In: FERREIRA,Marieta de Moraes; AMADO, Janana (Orgs.).Usos e abusos da histria oral. Rio de Janeiro: FGV, 2005.
p. 45.
14 ALBERTI, V. Histrias dentro da Histria. In: PINSKY, Carla Bassanezi (Org.). Fontes histricas. SoPaulo: Contexto, 2005. p. 156-9.
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Segundo Jos Carlos Meihy15, existe uma diferena em chamar a Histria Oral de
metodologia ou de tcnica, pois isso depende da importncia legada s fontes. Se a pesquisa
desenvolve uma reflexo em torno das fontes orais e a pesquisa est centrada nelas, ou seja,
elas ocupam o primeiro plano, pode-se chamar a Histria Oral de metodologia, pois ela est
ligada com a essncia do trabalho. Porm, quando as entrevistas so usadas como fontes
complementares, pode-se chamar tcnica, pois apesar de no estar nos fundamentos do
trabalho preciso conhecer o seu processo.
Independente de ser mtodo ou tcnica, as entrevistas procedem da mesma forma.
Meihy define que as fontes orais se formam atravs do trip entrevistador, utenslio eletrnico
para gravar seja ele um gravador de voz, filmadora e entrevistado. O que Meihy defende
que a Histria Oral no pode ser baseada nas anotaes do pesquisador, ou no famoso
caderno de campo dos antroplogos, nem por telefone etc. As entrevistas, apoiadas na base da
problemtica da pesquisa, no roteiro da entrevista e na memria16, precisam ser registradas,
passando por uma anlise objetiva. Para tal autor, a memria a ser estudada por meio dessas
entrevistas a coletiva, apropriando-se do conceito de Maurice Halbwachs17. Ou ainda, como
define Rousso, a memria
uma representao seletiva do passado, um passado que nunca aquele do indivduo somente, mas deum indivduo inserido num contexto familiar, social, nacional. Portanto toda memria , por definio,'coletiva', como sugeriu Maurice Halbwachs. Seu atributo mais imediato garantir a continuidade dotempo e permitir resistir alteridade, ao 'tempo que muda', s rupturas que so o destino de toda a vidahumana; em suma ela constitui eis uma banalidade um elemento essencial da identidade, dapercepo de si e dos outros. Mas essa percepo difere segundo nos situemos na escala do indivduo ena escala de um grupo social, ou mesmo de toda uma nao. Se o carter coletivo de toda memriaindividual nos parece evidente, o mesmo no se pode dizer da idia de que existe uma 'memriacoletiva', isto , uma presena e portanto, uma representao do passado que sejam compartilhadas nosmesmos termos por toda uma coletividade.18
O roteiro de entrevistas do presente trabalho foi formulado e ajustado.19
Primeiramente, foram realizadas entrevistas com os Pais e Mes-de-Santo, normalmente
senhores e senhoras que representam, para as comunidades de Terreiro, os detentores dos
15 MEIHY, Jos Carlos Sebe Bom. Manual de histria oral. So Paulo: Edies Loyola, 1996. p. 44.
16 MEIHY, J. C. S. B. Manual de histria oral. So Paulo: Edies Loyola, 1996.
17 HALBWACHS, Maurice. A memria coletiva. So Paulo: Centauro, 2006.
18 ROUSSO, Henry. A memria no mais o que era. In: FERREIRA, M. de M.; AMADO, J. (Orgs.).Usos eabusos da histria oral. Rio de Janeiro: FGV, 2005. p. 94-5.
19 O questionrio aplicado se encontra em anexo.
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conhecimentos sobre a religio e guardies dos mitos. Em seguida, foram realizadas tambm
entrevistas com membros do Candombl que possuem algum cargo nas casas, como o caso
de Ogs e Ekdes. Por fim, a entrevista foi aplicada a Filhos-de-Santo.
A durao das entrevistas varia de uma a uma hora e meia e o questionrio foi dividido
em trs grupos de perguntas. O primeiro consiste em perguntas mais gerais sobre o
Candombl, o funcionamento dos Terreiros, a histria de vida dos entrevistados. Na segunda
parte se encontram questes voltadas aos Orixs e sua mitologia. A ltima parte envolve os
questionamentos mais especficos sobre a alimentao, as oferendas, o que cada Orix come
e o que no come, sobre o efeito das quizilas (tabus alimentares) e sobre o ritual de iniciao.
Essa a parte mais longa da entrevista, visto que o foco da pesquisa.
O contato com as casas de Candombl foi feito de vrias maneiras. Por indicao de
amigos e conhecidos, com a ajuda da Cebras, rgo que regulamenta os Terreiros de Curitiba
e com o resultado de uma pesquisa feita para a Fundao Cultural de Curitiba20 da qual
participei e tive acesso a uma listagem de Terreiros de Umbanda e Candombl. Cada
entrevista foi marcada previamente, normalmente antecedida de uma visita que explicava o
projeto.
A histria de vida dos Pais-de-Santo contatados tem muito em comum. Suas
entrevistas revelam que a maioria deles natural de outras regies do Brasil e estabeleceram
suas casas em Curitiba, por volta dos anos 80 e 90, com alguns problemas devido ao
preconceito. Conheceram a religio por meio da famlia ou de pedidos feitos a outros Pais-de-
Santo, mais freqentemente para cura de doenas.
Na segunda parte, os entrevistados esto um pouco mais vontade, j esqueceram a
presena do gravador e esto mais seguros. Querem mostrar a casa para falar melhor sobre osOrixs. Contam algumas histrias que lhes foram repassadas. muito interessante observar as
mesmas verses sobre o mesmo mito.
Para Portelli, um mito no necessariamente uma histria falsa ou inventada; , isso
sim, uma histria que se torna significativa na medida em que amplia o significado de um
20 PRA VER A UMBANDA PASSAR: do esquecimento lembrana. Levantamento e mapeamento dos
Terreiros umbandistas em Curitiba, como elementos constitutivos da memria cultural da cidade. Projetode Pesquisa. Fundao Cultural de Curitiba. Edital 016/ 2006 do Fundo Municipal da Cultura, Seleo doprojeto na rea de patrimnio imaterial.
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acontecimento individual, transformando-o na formalizao simblica e narrativa das auto-
representaes partilhadas por uma cultura.21 O contexto a que Portelli se refere muito
diferente do qual se comenta aqui. No entanto, a definio sobre os mitos muito apropriada,
j que so uma das bases teolgicas do Candombl.
Os ritos, os sacrifcios, as festas, os transes so diferentes experincias da mesma
mitologia. O pensamento mtico, totalmente alheio com pontos de partida ou chegada bem
definidos, no efetua percursos completos: sempre lhe resta algo a perfazer 22. E a garantia
da continuidade mtica est em sua performatividade. Mircea Eliade defende que
a funo mais importante do mito , pois, fixar os modelos exemplares de todos os ritos e de
todas as atividades humanas significativas: alimentao, sexualidade, trabalho, educao etc.Comportando-se como ser humano plenamente responsvel, o homem imita os gestos exemplares dosdeuses, repete as aes deles, quer se trate de uma simples funo fisiolgica, como a alimentao, querde uma atividade social, econmica, cultural, militar etc.23
A terceira parte a mais complexa. Exige certa sensibilidade, pois as perguntas muitas
vezes remetem a segredos da religio, s revelados a iniciados. Principalmente quando se
pergunta sobre o ritual de iniciao, pouco se ouve. Basicamente o que se percebe que um
tempo de purificao de preparao para uma nova vida, ento os alimentos so, na maioria,
brancos, sem muito sal nem gordura. Sobre as oferendas e quizilas, os Pais-de-Santo falam de
suas experincias pessoais, do que oferecem aos orixs e em qual ocasio e sobre o que no
podem comer. Carlos Alberto Dria nos d exemplos quando escreve que
enormes eram e so os preceitos e interdies que envolvem essa culinria [de santo]. Se dividiralimentos com os deuses traz-los para nossa vida atravs da mesa, por outro lado preciso observaros tabus alimentares de cada um. Azeite de dend nunca se oferece a Oxal, assim como mel vedadopara Oxssi e o carneiro no pode entrar nos espaos dedicados a Ians. Os filhos de santo estosocialmente obrigados a expressar as mesmas averses dos seus Orixs. 24
Tais entrevistas pedem uma reflexo sobre a memria. O tratamento das fontes orais
21 PORTELLI, Alessandro. O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana, 29 de junho de 1944): mito,poltica, luta e senso comum In: FERREIRA, M. de M.; AMADO, J. (Orgs.). Usos e abusos da histriaoral. Rio de Janeiro: FGV, 2005. p. 120-1.
22 LVI-STRAUSS, Claude. O cru e o cozido (Mitolgicas vol. I). So Paulo: Cosac & Naify, 2004. p. 24.
23 ELIADE, Mircea. O Sagrado e o profano: a essncia das religies. So Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 87.
24 DRIA, Carlos Alberto. Estrelas no cu da boca: escritos sobre culinria e gastronomia. So Paulo: EditoraSenac, 2006. p. 220.
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necessita de um cuidado muito grande, pois
(...) a lembrana reaparece em funo de muitas sries de pensamentos coletivos emaranhados e porqueno podemos atribu-la exclusivamente a nenhuma, imaginamos que independente delas e
contrapomos sua unidade a sua multiplicidade. como acreditar que um objeto pesado, suspenso no arpor uma poro de fios tnues e entrecruzados, permanea suspenso no vazio, e ali se sustenta.25
E pensando em Halbwachs pode-se refletir sobre o interesse dos historiadores pelos
estudos africanos ou afro-descendentes e a valorizao da cultura negra. A abertura dada pelos
chefes de Terreiros para alguns intelectuais e pesquisadores, a rememorao desse objeto
pesado, como diz Halbwachs, est sustentada por uma srie de atitudes da sociedade, como a
luta contra o preconceito encabeada por lderes do movimento negro, as cotas nas
universidades, projetos estudando quilombos, leis normatizando e garantindo a existncias da
religies afro-brasileiras. Antnio Csar de Almeida Santos defende que as lembranas no
vivem no passado, ao contrrio, precisam de um tempo presente de onde sejam projetadas e
ancoradas por um sentido 26. Foge ao objetivo desse trabalho, julgar a inteno e a
efetividade dessas sries de atitudes, mas elas esto envolvendo o ato de rememorao dos
entrevistados para essa pesquisa. E esse campo de interesses est em constante renovao e
crescimento. Em uma semana, pode-se observar duas grandes reportagens sobre as Religies
afro-brasileiras em jornais de grande circulao. A primeira, da Gazeta do Povo do dia 20 de
setembro de 2008, ocupa grande parte do Caderno G, tratando da Umbanda em Curitiba,
explicando seus conceitos e destacando-a principalmente em funo do centenrio da
Umbanda no Brasil27. O jornal Folha de So Paulo no deixou de lembrar o dia dos Ibejis, ou
So Cosme e Damio. Dia 27 de setembro o dia em que os Terreiros se organizam na
distribuio de balas e doces, alm do preparo do Caruru tradicional dos Santos gmeos. no
Caderno Ilustrada da Folha de So Paulo do dia 25 de setembro de 2008 que pode ser
encontrada uma reportagem, ento, sobre a comida tradicional oferecida aos Ibejis, e tambmuma ateno especial ao assunto da mesa com os Orixs 28. Essa reportagem faz referncia a
comida de todo os Orixs, no se limitando apenas aos Ibejis.
25 HALBWACHS, M. A Memria Coletiva. So Paulo: Centauro, 2006. p. 70.
26 SANTOS, Antnio Cesar de Almeida. Fontes orais: testemunhos, trajetrias de vida e histria.Comunicao apresentada Mesa Redonda A produo historiogrfica e as fontes orais, no Eventocomemorativo do Sesquicentenrio do Arquivo Pblico do Paran, em Curitiba, em abril de 2005. p. 3.
27 GAZETA DO POVO, Curitiba, 20 set. 2008, Caderno G. p. 1-3.
28 FOLHA DE SO PAULO, So Paulo, 25 set. 2008, Caderno Ilustrada. p. 5.
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Com base nisso, pode-se pensar um pouco sobre as discusses feitas sobre a histria
do tempo presente, ou histria imediata, e suas relaes com as fontes orais. O campo de
pesquisa to recente quanto a prpria temporalidade que se prope a estudar, a histria do
tempo presente precisa de suas bases epistemolgicas e cientficas mais bem definidas. E sua
ligao com as fontes orais e outros tipos de fontes como as miditicas inevitvel. Agns
Chauveau e Philippe Ttart, no primeiro captulo homnimo do livro Questes para a histria
do presente29, direcionam o objeto da histria do tempo presente para o cenrio poltico e
fazem entender que o estudo da poltica renasceu a partir da histria prxima e dos
acontecimentos monstruosos do sculo XX. O estudo sobre a Comida-de-Santo na cozinha
dos homens pode ser encaixado sim nessa histria prxima, j que lida com memrias de
pessoas vivas que reorganizam e ressignificam tais mitos e tais prticas alimentares.
Alm das entrevistas, foi utilizada como fonte a coluna Umbanda (que passou a ser
chamada de Umbanda/Candombl) do Dirio do Paran, assinada por Dirce Alves. Essa
coluna foi publicada diariamente, a partir de 19 de janeiro de 1978, com exceo das
segundas-feiras, dia em que tambm no se publicava o jornal. Tratava de assuntos cotidianos
do Candombl e da Umbanda em Curitiba e no Paran, assim como reflexes, notcias de
festas, iniciaes, visitas e muitas vezes tratava de fundamentos dessas religies. Em
novembro de 1979, a coluna volta a ter o seu nome original Umbanda e foi publicada com
esse ttulo at 15 de dezembro de 1979.
A anlise das entrevistas realiza-se no ltimo captulo, em que se apresenta os
entrevistados, as suas funes dentro das casas de Candombl e suas falas, entrecruzando-as
com mitos retirados da bibliografia sobre o assunto, com foco evidente para o assunto da
alimentao. As partes destacadas e comentadas so aquelas que permitem enxergar as
prticas religiosas e a tradio familiar e comunitria relacionadas com o Candombl comoreguladoras e influentes no gosto e nos hbitos alimentares dos entrevistados.
Para contextualizar o que ser discutido nas anlises, o segundo captulo dedicado a
explanao sobre o Candombl como religio, um pouco de suas origens, a influncia que a
cultura brasileira carrega graas a seus fundamentos, sua relao com o cotidiano dos
praticantes, mais especificamente, a ligao explcita que o Candombl tem com o alimento.
A esfera do sagrado no se restringe apenas aos Terreiros, sendo isso visvel nas ruas,
encruzilhadas, matas, locais de oferendas, feiras de rua onde h barraquinhas de baianas, nas
29 CHAUVEAU, Agns. Questes para a histria do presente. Bauru: Edusc, 1999.
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quais qualquer um pode comer um Acaraj mesmo sem saber que come um bolinho de Ians.
O Candombl foi escolhido como objeto desta pesquisa por diversas razes. Em
primeiro lugar, a curiosidade e a vontade da pesquisadora em conhecer uma religio tocomum no Brasil. Tambm pelo interesse em conhecer como o Candombl se configura em
Curitiba, uma cidade em que os negros e sua influncia foram, de certa maneira,
invisibilizados. Curitiba desperta interesse pela influncia marcante da Umbanda se
comparada ao Candombl, segundo informaes obtidas na Cebras. Em entrevistas-piloto
feitas no incio da pesquisa, foram visitadas tendas tanto de Umbanda quanto de Candombl e
tambm casas onde as duas religies estavam presentes. As casas exclusivamente de
Umbanda foram deixadas de lado, escolhendo-se apenas as de Candombl, mesmo que com
presena da Umbanda.
A mistura de influncias, encontrada nos Terreiros de Curitiba, pode ser reparada no
seguinte texto da Coluna Umbanda de 28 de janeiro de 1978.
Num rpido apanhado, temos Terreiros [de Umbanda] com forte influncia do Candombl,predominando os trajes vistosos e de cores variadas; o uso de instrumentos consagrados, sacrifcio deanimais, em ocasies propcias; o ritual com protagonistas a danarem; e algo no linguajar Nag. OutrosTerreiros nota-se nitidamente a influncia do catolicismo. Aos pontos cantados e riscados, parte do
ritual umbandista, junta-se a devoo aos Santos Catlicos e s oraes mais comuns; s vezes como asreais novenas. Em grande nmero de Terreiros patente a influncia esprita. So estudadas e lidas asobras de codificaes complementares. Antes das Sesses ler a leitura do Evangelho segundo oespiritismo com a conseqente interpretao. Logicamente, tudo isso vai misturado com a ritualsticapredominante nos cultos umbandistas. Mas o sincretismo no termina a, pois existem templos onde semistura a estas prticas os conceitos doutrinrios do milenar ocultismo.30 (sic)
A colunista ainda no cita a influncia da religiosidade indgena. Pode-se ter uma
noo mais atual da diversidade nas religies afro-brasileiras em Curitiba, especialmente na
Umbanda, assistindo ao filme Pra Ver a Umbanda Passar, resultado da pesquisa j
mencionada na nota 20 desta seo.
O ltimo e mais importante motivo para a escolha do Candombl como objeto o que
o liga ao tema, essncia deste trabalho. A alimentao, as oferendas, os tabus so base
fundamental da religio, sendo a cozinha do Terreiro um dos lugares de maior importncia e
segredo, assim como a cozinheira, Iy-bass, uma das pessoas da religio que possui mais
conhecimento e se dedica em tempo praticamente integral preparao das Comidas-de-
30 ALVES, Dirce. A umbanda vista por fora. Dirio do Paran, (coluna Umbanda), Curitiba, 28 jan. 1978.
Caderno 2. p. 6.
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Santo.
A alimentao de forma geral discutida no primeiro captulo em que construda a
base terica para o trabalho. Nessa parte, a Histria e Cultura da Alimentao sero discutidasde forma ampla e em relao a suas vrias conexes. Para esta pesquisa, uma das conexes
mais importantes feita com a memria, tanto uma memria coletiva composta pelos
membros do Candombl o que levar ao que se chama de memria mtica, quanto memria
gustativa, que faz com que o gosto alimentar seja um processo histrico.
De um lado, este trabalho foca seu objeto sob a ptica da memria gustativa e da
formao do gosto alimentar de um grupo muito especfico. E essa memria do gosto, que faz
escolher determinados produtos e no outros, que faz apreciar certos alimentos e desprezar
outros, pode ser estudada fazendo a ponte com a religio, com o Candombl e com sua
mitologia. Mitos que a tradio oral se incumbiu de repassar, ressignificar e preservar. Essa
memria no pode ser datada por esta pesquisa, ento se trabalha com uma cronologia fluida
para estud-la. Trabalha-se com o tempo da cultura, em que as transformaes so lentas e as
continuidades superficialmente predominam. De outro lado, as fontes encontradas no Dirio
do Paran nos anos de 1978 e 1979 e as entrevistas realizadas nos anos de 2006 a 2008
permitem estabelecer a cronologia de trabalho. Os trinta anos propostos, ainda que com umimenso vazio entre as balizas cronolgicas, permitem estudar a formao da memria
gustativa nos grupos de Candombl em Curitiba e as transformaes e construes das
religies afro-brasileiras nessa localidade.
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1HISTRIADAALIMENTAOREVISITADA
No comer carne nos torna vegetarianos. No poder comer porco pode nos identificar comojudeus. Tomar milk-shake e comer hambrguer nos faz parecer adolescentes. Almoar no bif
por quilo nos caracteriza como brasileiros. Degustar um foie gras nos faz chiques. No comer
foie gras em sinal de protesto ao tratamento dado aos gansos que morrem de tanto comer, nos
torna defensores dos animais. Podemos tambm no comer foie gras por comer midos.
A alimentao nos mostra muito de quem somos, no que acreditamos. Revela que as
pessoas vivem em uma determinada sociedade, em uma comunidade. O que elas comem, ou o
que elas no gostam e ainda o que devem ou no comer reflexo dessa sociedade e pode ser
encarado como um caminho para entend-la. E o quarto aforismo de Brillat-Savarin j
defendia, no sculo XVIII, que estudando a alimentao pode-se entender o homem: Dize-
me o que comes e te direi quem s.1
Pesquisadores da alimentao, socilogos, antroplogos e mais recentemente os
historiadores tinham sempre como preocupao afastar a idia de que o importante ao comer
so apenas os nutrientes. Comer no apenas o ato nutricional e o saciar da fome e da sede,
pois bebidas tambm so alimentos e carregam em si valores simblicos e nutricionais, so
atos sociais. Pensando nessa questo luz das cincias humanas Roland Barthes se questiona
quest-ce que cest la nourriture? Ce nest pas seulemente une collection de produits, justiciablesdtudes statistiques ou dittiques. Cest aussi et en mme temps un systme de communication, uncorps dimages, un protocole dusages de situations et de conduites. Comment tudier cette realitalimentaire, largie jusqu limage et au signe? Les faits alimentaires doivent tre recherchs partouto ils se trouvent: par observation directe dans lconomie, les techniques, les usages, lesreprsentetions publicitaires; par observation indirecte, dans la vie mentale dune population donne.2
Barthes mostra que a refeio no se limita ao momento que as pessoas comem, nem
ao seu preparo, mas inclui as escolhas de produtos e no que essas escolhas so baseadas, o
1 BRILLAT-SAVARIN, Jean- Anthelme. A fisiologia do gosto. So Paulo: Companhia das Letras, 1995. p.15.
2 BARTHES, Roland. Pour une psyco-sociologie de lalimentation contemporaine. In: HMARDINQUER,Jean-Jacques (Org.). Cahier des Annales (28). Paris: Librarie Armand Colin, 1970. p. 309. O que aalimentao? No somente uma coleo de produtos, justificao para estudos de estatstica e dieta. tambm e ao mesmo tempo um sistema de comunicao, um corpo de imagens, um protocolo de usos, de
situaes e de condutas. Como estudar esta realidade alimentar, alargada, chegando imagem e ao signo? Osfatos alimentares devem ser pesquisados onde eles estiverem: por observao direta da economia, dastcnicas, dos usos, das representaes publicitrias; por observao indireta, da vida mental de uma dadapopulao.
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modo de se comportar mesa, os diferentes cardpios para as diferentes ocasies, o
significado dessas ocasies, a escolha dos comensais e a memria gustativa que construda.
Carlos Roberto Antunes dos Santos, ento, vai alm de Savarin quando afirma que to
importante quanto o que se come quando se come, com quem se come, como se come.3
Passou-se a perceber, ento, o gosto, neste caso alimentar, como uma categoria
histrica. Ou seja, o que apreciado e at comestvel4 pode ser passvel de ser estudado
historicamente. E sobre esse tipo de problemtica que os pesquisadores da comida, nesse
caso em especial os historiadores, se debruam ao realizarem suas pesquisas.
Porm, nem s de historiadores vivem os estudos da alimentao. Este primeiro
captulo se dedica a debater um pouco sobre o interesse a respeito dos hbitos alimentares nas
cincias humanas. Para isso, o texto ser divido em trs partes. A primeira seo trata
brevemente do incio das pesquisas sobre a alimentao sob o foco do social e tambm como
essas pesquisas se desenvolveram na Europa, em especial na Frana. Quatro autores e suas
obras so destaque nessa parte. Massimo Montanari e Jean-Louis Flandrin com a obra A
Histria da Alimentao5, uma coletnea de artigos que tratam da alimentao desde a pr-
histria at o que os autores chamam de Imprio McDonalds. Tambm Claude Fischler com o
livro L'Homnivore6, cujo subttulo j diz, um tratado sobre o gosto, a cozinha e o corpo. Eainda Jean-Pierre Poulain com Sociologias da Alimentao7. Os trs livros foram escolhidos
pois tm discusses bsicas e definies de conceitos importantes para qualquer interessado
nos estudos da alimentao.
A segunda parte foca os estudos da alimentao no Brasil com autores da primeira
metade do sculo XX. Esses autores abriram caminho para que discusses mais aprofundadas
na Histria e Cultura da Alimentao pudessem ser realizadas e at mesmo para que esse
campo historiogrfico se formasse. Destacam-se trs autores que trataram a alimentao como
3 SANTOS, Carlos Roberto Antunes dos. A alimentao e seu lugar na histria: os tempos da memriagustativa. Histria: Questes e debates, Curitiba, n. 42, p.11-31, jan./jun., 2005. p. 13.
4 Discusso feita por FISCHLER, Claude. L'Homnivore: le got, la cuisine et le corps. Paris: ditions OdileJacob, 1993. p. 25-37.
5 FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. Histria da Alimentao. So Paulo: EstaoLiberdade, 1998.
6 FISCHLER, C. Op. Cit.
7 POULAIN, Jean-Pierre. Sociologias da alimentao: os comedores e o espao social alimentar.Florianpolis: Ed. da UFSC, 2004.
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foco principal de seus trabalhos, Josu de Castro, Gilberto Freyre e Luis da Cmara Cascudo.
O terceiro subcaptulo trata das pesquisas mais recentes sobre a comida e a formao
de um ncleo de estudos sobre esse assunto na Universidade Federal do Paran. Nessa parte, ofoco a alimentao e suas conexes, em que se demonstra a alimentao como um tema
transdisciplinar, no s abrangendo diversas reas como as unindo. Est localizada nesse
grupo a presente pesquisa que tem como proposta a conexo entre a alimentao e a religio.
1.1 HISTORIOGRAFIA DA ALIMENTAO
O interesse pelo estudo da alimentao existe desde que o homem comeou a refletir
sobre a importncia do que se come. Porm, o estudo do comer nas cincias humanas tem
pouco mais de um sculo.
Dentro do campo da Histria, as primeiras referncias a essa nova possibilidade de
pesquisa se encontram em Lucien Febvre e Marc Bloch, este tratando de transformaes de
regimes alimentares e aquele discutindo sobre a distribuio de gorduras utilizadas nas
cozinhas da Frana. Porm, antes da preocupao com a alimentao se difundir entre oshistoriadores, alguns pesquisadores de outras reas j tinham se envolvido com o tema. Como
o caso dos antroplogos, que desde o sculo XIX se empenharam em desenvolver uma
etnografia dos hbitos alimentares e em buscar interpret-los culturalmente.8 A Antropologia
e a Sociologia cobriram temas como as desordens alimentares, as diferenas nas dietas
quando comparadas nas diversas classes, gneros, nacionalidades , os simbolismos ligados a
alimentao, principalmente na esfera religiosa, os avanos da tecnologia alimentar e ainda o
consumo e suas vrias interfaces. A Histria foi fortemente influenciada por essas pesquisas
quando ingressou na corrente da interdisciplinaridade.
A cole des Annales tem papel fundamental no desenvolvimento desse novo tema de
pesquisa. Braudel teve sua importncia quando situou a alimentao, juntamente com o
vesturio e a habitao dentro do conceito de cultura material. Percebia os hbitos alimentares
como escolhas perdidas no tempo da longa durao, em que os prprios afetados no podiam
ter conscincia delas.
8 MENESEZ, Ulpiano T. Bezerra; CARNEIRO, Henrique. Histria da alimentao: balizas historiogrficas.In: Anais do Museu Paulista - Histria e Cultura Material. So Paulo: Nova Srie, v. 5, p. 9-91, jan./dez.,1997. p. 19.
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J na fase de transio da segunda para a terceira gerao de tal escola historiogrfica,
a alimentao entra cada vez mais em destaque. Em 1970, um nmero inteiro da Revuedes
Annales lanado e dedicado pour une histoire de l'alimentation9, com abertura de Braudel
falando do estudo da alimentao possvel nas vrias duraes. Nesta revista pode-se perceber
a unio das trs geraes. J tendo o representante por excelncia da segunda gerao
Braudel a revista ainda conta com dois artigos do autor da primeira gerao Marc Bloch, o
primeiro sobre a alimentao na Frana antes do sculo XIX, sculo este, considerado pelo
autor, de tendncia a uniformizao da alimentao em toda a escala social e o segundo artigo
sobre o sal. Como representante da terceira gerao, pode-se identificar Jean-Paul Aron, autor
do artigoBiologie et alimentation l'aube du XIXme sicle.
Como marco da terceira gerao, pode-se citar a trilogia Faire l'Histoire, em que a
alimentao est presente tambm no volume intitulado em portugus Histria: novos
objetos. O artigo Cozinha: um cardpio do sculo XIX, que tem autoria de Jean-Paul Aron,
traz tona a discusso do tratamento das novas fontes e como trat-las. Aron defende que a
alimentao
objeto que deve ser abordado sob uma nova tica, se verdade, que nos foi entregue fisicamente em seuprprio enunciado, que no nos promete seno o que nos d, que o saber que aprendemos dele envolve,
numa sntese nica, sua evidncia e suas sombras. Tal como esses nomes de regies que pontuam amemria do Narrador de Proust e cativam-nos sem referncia aos modelos que reproduzem Bayeux,Coutances , palavras-objetos que desabrocham por autarcia no tecido da obra, o objeto-documento dahistria culinria no aparece nem formalizado, material inerte e vazio de sua substncia, nem poeirentosob a vestimenta erudita dos documentos histricos. Ele vivo, e no crescimento de sua vida prpria uma histria total que desenrola10.
Assim, essa nova forma de considerar os documentos e analis-los, possibilita que
estudos a respeito de assuntos ainda no tratados se desenvolvam. Santos defende que desta
forma, a histria do cotidiano e das mentalidades vai dar consistncia aos estudos dasensibilidade alimentar, do gosto, da gastronomia.11
nesse contexto, principalmente francs, que vai nascer algumas das mais importantes
discusses sobre a Histria e Cultura da Alimentao, que servem como base para o estudo da
9 HMARDINQUER, J-J. (Org.). Cahier des Annales (28). Paris: Librarie Armand Colin, 1970.
10 ARON, Jean-Paul. A cozinha: um cardpio do sculo XIX. In: LE GOFF, J.; NORA, P. Histria, novos
objetos. Rio de Janeiro: F. Alves, 1974. p. 161.
11 SANTOS, C. R. A. dos. A alimentao e seu lugar na histria: os tempos da memria gustativa. Histria:Questes e Debates, Curitiba, n. 42, pp.11-31, jan./jun., 2005. p. 14.
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comida e suas diversas relaes.
O primeiro caso tratado o grande compndio chamado Histria da Alimentao. Para
Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari, responsveis pela organizao de tal livro, oshbitos alimentares e tudo o que gira ao seu redor,
embora dem a impresso de serem estticos em relao a outros fenmenos histricos acontecimentos ou ciclos conjunturais evoluem num tempo muito mais lento, o longo tempo dasestruturas, como bem salientou Fernand Braudel. Deixemos de lado a idia de que o cotidiano no temhistria, de que tudo, desde sempre, foi igual ao que conhecemos atualmente. Na realidade, os gestos dodia-a-dia transformam-se, junto a tudo aquilo que esto relacionados: as estruturas do cotidiano deixam-se surpreender pela histria. Durante sculos, os gregos, depois os romanos da Antiguidade,banquetearam-se deitados; mas, desde a alta Idade Mdia, os ocidentais abandonaram essa posio,passando a comer sentados. Ora, essa mudana de postura no pode ser dissociada das transformaesque lhe foram simultneas: tornado livre a mo esquerda, a posio sentada permite trinchar os grandesassados sangrentos, com facas que, a essa poca, aparecem mesa. E, certamente, no foi tambm poracaso que esses comedores de carne a ser trinchada, que tinham as duas mos livres, esses habitus demesas e cadeiras altas, inventaram tambm o garfo. Tampouco foi por acaso que o garfo s se tornouum utenslio de mesa depois da peste negra, entre os sculos XIV e XVIII, poca em que os europeusaumentaram a distncia entre os comensais pela generalizao do uso de pratos, copos e talheresindividuais.12
Com Histria da Alimentao, Flandrin e Montanari querem divulgar trinta anos e
mais de oitocentas pginas de pesquisas de vrios autores. Para tanto, usam a ordem
cronolgica como diviso do livro os seus sete grandes captulos vo desde a pr-histria ata contemporaneidade , mas o foco da obra sua diviso temtica, usando sim a cronologia
para mostrar o processo lento das transformaes dos hbitos e prticas alimentares.
Pelos estudos das eras pr-histricas e das primeiras civilizaes, os autores observam
grandes transformaes que envolvem a esfera da alimentao humana. Com relao aos tipos
de alimentos consumidos, chegou-se a concluso de que o carter onvoro do homem sempre
existiu, com pocas de maior nfase carne e outras com domnio dos vegetais. Sem dvida,
a grande revoluo no sentido do consumo a prtica da agricultura e da pecuria. Essas
prticas permitem o incio da sedentarizao de grupos humanos, aumento da taxa de
natalidade e certa segurana na quantidade de alimentos consumidos diariamente. O modo de
preparo e as tcnicas de cozinha se que se pode falar em cozinha propriamente dita
tambm passaram por grandes variaes com a dominao do fogo. E, ainda, com as
primeiras civilizaes, os primeiros banquetes transformaram as relaes sociais do homem
com a comida.
12 FLANDRIN, J-L.; MONTANARI, M. Histria da Alimentao. So Paulo: Estao Liberdade, 1998. p. 15-6.
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O mundo clssico caracterizado pelo sentimento de distino entre civilizados, ou
seja, os gregos ou romanos, e brbaros. A trade po, vinho e azeite representante da
antiguidade clssica mesmo sendo uma idealizao de frugalidade e de civilizao. Os trs
elementos dependem de cultivo, tcnicas de fabricao e possuem rituais de consumo. O
banquete e o symposion so os smbolos de reunio em torno da comida e da bebida que
marcam mais uma vez a civilizao. A reunio de vrias pessoas para repartir o alimento traz
consigo a sociabilidade e os sinais da convivncia por meio da etiqueta e rituais que precisam
ser conhecidos e seguidos. A distino entre civilizados e no civilizados se d tambm pelo
domnio da agricultura que garante alimentos s cidades e evita o consumo de carnes,
principalmente as de caa, dedicadas aos sacrifcios aos deuses, reafirmando o ideal de
frugalidade em contrapartida idia de insaciabilidade e exageros dos povos brbaros. Porltimo, a cozinha do mundo clssico estava ligada ao conceito de diettica, era quase
medicinal e indicava alimentos diferentes a pessoas de diferentes idades, tipos fsicos, sexo e
atividades.
O espao de tempo que faz a transio do mundo clssico para a idade mdia
tambm onde se encontram tenses das prticas alimentares. Com o fim do imprio romano, a
trade po, vinho e azeite entrava em disputa com a caa de animais, a colheita de frutas
silvestres, a criao de rebanhos em semi-liberdade. Encontrava-se tambm a nova trade
composta por carne, leite e manteiga. O cristianismo era um dos elementos dessa tenso j
que preservava os ideais romanos, em certa medida, e tornava sagrado o po como corpo, o
vinho como sangue de Cristo e o azeite como a uno benta. O sacrifcio grego, de animais
em homenagem aos deuses, substitudo pelo sacrifcio de Jesus pelos homens.
A Idade Mdia tambm foi uma poca de tenses alimentares. O poder exercido pela
f, e fs diferentes, refletiu em uma poca em que os hbitos alimentares iam sendoconstrudos, afirmados e transformados, sofrendo mutaes lentas, porm constantes. O
domnio cristo na grande extenso da Europa era influenciado por regies de dominao
judia e muulmana, bem como fazia sentir sua presso. As rotas comerciais, as invases
rabes e as cruzadas foram eventos que aos poucos miscigenaram culturas, trocaram
experincias, misturaram produtos. Em especial o fim da Idade Mdia conta com contradies
progressivas baseadas na oposio campo/cidade, que d origem a novos pares opostos como
citadinos/camponeses, carne de carneiro/carne de porco, po de trigo branco/po preto devrios cereais, carnes frescas/carnes salgadas. O desejo de reconhecimento ao pertencimento a
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uma dessas categorias faz com que a inveno das boas maneiras, se [cristalize] aos poucos
em meados da Idade Mdia na corte e na cidade [e sirva] para determinar culturalmente os
domnios do privilgio, definindo-os tanto em seus contedos quanto em suas formas. 13 A
mesa, a refeio, o consumo e o modo de consumir determinados produtos so usados como
distino e elevao social.
As grandes navegaes e a descoberta do novo mundo foram fatos que marcaram
convencionalmente a chegada da modernidade Histria. Tambm a troca cultural com novas
terras, novos povos e novos produtos foram caractersticas significativas dessa poca. E,
apesar de alguns produtos demorarem a entrar nas mesas europias, o chocolate, o acar e o
caf foram bem aceitos e consumidos. Na Europa o aumento populacional exigia cada vez
mais que a agricultura abandonasse definitivamente seu carter de subsistncia para se tornar
uma prtica de abastecimento, em especial no que diz respeito ao cultivo de trigo. A inveno
e difuso da prensa permitiram uma Europa mais voltada leitura e a divulgao de livros de
receitas, com destaque para a cozinha francesa.
A contemporaneidade foi marcada na rea da alimentao, justamente pelo fenmeno
da revoluo industrial, pelo desenvolvimento das indstrias alimentares. Este fenmeno
trouxe consigo o maior xodo rural da histria e desenvolvimento desenfreado das cidades. Oritmo de vida e de trabalho acelera e se procura cada vez mais por uma alimentao rpida e
prtica, principalmente com a necessidade do trabalho das mulheres fora de casa. Os
restaurantes passam, ento, a ter mais do que a funo social de destacar os seus
freqentadores como membros importantes da sociedade, mas tambm a funo de alimentar
cotidianamente uma clientela cada vez mais numerosa de homens e mulheres que deixaram de
fazer as refeies em casa porque j no existe algum para prepar-las ou porque trabalham
muito longe de casa14
. Sem dvida, o sculo XX o sculo das contradies e a alimentaoreflete isso de forma clara. Por muito tempo se valorizou o fast-food at que se criou o
movimento do slow-food. O sculo mais urbano da histria comeou a valorizar a
alimentao rural. A grande produo de frangos fez com que essa carne se tornasse mais
barata e acessvel, porm sem gosto. As frutas apresentam aparncia impecvel; escapam dos
13 FLANDRIN, J-L.; MONTANARI, M. Histria da Alimentao. So Paulo: Estao Liberdade, 1998. p.
385.
14 Ibid. p. 701.
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insetos e doenas, mas no dos inseticidas.15 Nunca se produziu tanta comida e a fome
continua e o colesterol aumenta.
Enquanto Flandrin e Montanari se preocuparam com questes bem concretas, pois tmcomo objetivo apresentar a alimentao em vrias pocas, outros pesquisadores se preocupam
com questionamentos tericos e apresentao de conceitos. Um exemplo disso Jean-Pierre
Poulain. Atualmente professor da Universidade de Toulouse Le Mirail, Poulain se
aventurou primeiro pelo mundo da cozinha para depois ser introduzido no mundo dos estudos
da cozinha. Vindo de uma famlia de produtores de presuntos, lingias e embutidos,
profissionalizou-se na rea de hotelaria e atuava na parte de cozinha, inclusive apostando no
trabalho de sua estruturao, montagem e melhoria. Porm, sua vida como um profissional da
prtica da cozinha no estava completa. Procurando a parte mais analtica da alimentao foi
at Edgar Morin, quem orientou seu doutorado. Transferiu, ento, para a Sociologia sua
preocupao com a alimentao e, como reflexo, uma de suas obras chama-se Sociologias da
alimentao: os comedores e o espao social alimentar16.
Esse livro se prope a tratar da sociologia da alimentao fazendo um apanhado de
conceitos e movimentos j ocorridos para colocar em discusso a formao desse novo campo
de pesquisa. Tem o objetivo de esmiuar a sociologia dos comedores e o espao socialalimentar, peas chaves para entender o mtodo de anlise da sociologia da alimentao.
O autor, aps passar por uma reviso das teorias sociolgicas e por uma reflexo sobre
a alimentao, apresenta a proposta de trs possibilidades para a formao do campo da
sociologia da alimentao.
A primeira delas vem baseada no estudo do consumo. Com a criao, na Frana, de
rgos preocupados com a nutrio e o gasto das famlias com a alimentao, pesquisas decunho quantitativo foram feitas, portando grande nmero de dados foram analisados de forma
estatstica e sociolgica. Essas pesquisas foram feitas com mais de dez mil famlias de baixa
renda que preenchiam formulrios sobre o seu consumo alimentar. Chegou-se a concluso que
as famlias mais carentes eram as que gastam mais com alimentao, medindo-se
proporcionalmente os salrios.
15 FLANDRIN, J-L.; MONTANARI, M. Histria da Alimentao. So Paulo: Estao Liberdade, 1998. p.
706.
16 POULAIN, J-P. Sociologias da alimentao: os comedores e o espao social alimentar. Florianpolis: Ed.da UFSC, 2004.
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Ainda dentro da perspectiva da sociologia do consumo, Poulain estuda as mudanas
ocorridas quando as mulheres se vem foradas a sair para trabalhar e as cozinhas domsticas
ficam vazias. Os alimentos adquirem caractersticas de praticidade, facilidade e rapidez, e os
gastos familiares com as refeies realizadas fora de casa ganham maior volume.
Da anlise do consumo, Poulain ainda trata da sociologia do gosto, cuja autoria se
deve a Bourdieu e sua noo de habitus. O gosto diferente nos diferentes grupos sociais. O
que mais aceito por um grupo o que mais se consome, o mais gostoso o que se est
habituado a ingerir. As classes sociais mais abastadas se diferenciam pelos alimentos, locais e
modos de consumo que so inacessveis s classes desprivilegiadas.
A segunda possibilidade de construo do campo da sociologia da alimentao se d
no vis desenvolvimentista. Os socilogos que so enquadrados nessa classificao procuram
pensar a mudana e de uma certa maneira as relaes entre o social, o psicolgico e o
corporal referindo-se aos trabalhos de Elias.17 Esse grupo foca seus trabalhos nas
modificaes dos hbitos alimentares e prticas rituais por meio de processos sociais, como
o caso da colonizao e da globalizao. Dentro do desenvolvimentismo aparece ainda um
grupo que justifica o cultural pelo material, cujo principal representante Marvin Harris. Para
Harris, os tabus alimentares se justificam todos por razes ecolgicas ou higinicas, ou seja,pela explicao funcional e adaptativa. Segundo Poulain, num plano sociolgico, a principal
crtica que se pode enderear tese de Harris de desprezar os processos de diferenciao
social.18
A sociologia da alimentao conta com o terceiro movimento para seu
desenvolvimento, como destaca Poulain, a sociologia do comedor. Sua filiao a esse tipo de
anlise sociolgica da alimentao evidente, pois Edgar Morin, seu orientador, um de seus
fundadores. o movimento de anlise que, engloba, herana de Mauss, as vrias dimenses
da alimentao, seja ela social, biolgica ou psicolgica. Claude Fischler um dos
intelectuais fundamentais para essa corrente. Com sua tese, tambm sob orientao de Morin,
chamada LHomnivore, a alimentao deixa de ser um dos mostradores e afirmadores da
construo das identidades sociais para ser o seu centro. Coloca o gosto como a articulao
17 POULAIN, J-P. Sociologias da alimentao: os comedores e o espao social alimentar. Florianpolis:Ed. da UFSC, 2004. p. 188.
18 Ibid. p. 192-3.
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dos componentes sociolgicos, psicolgicos e biolgicos da alimentao.19
O homem, ou melhor, o onvoro, constitudo em sua estrutura de comedor por trs
segmentos. O pensamento classificatrio, primeiro deles, onde a necessidade biolgica decomer encontra-se inserida num sistema de valores.20 Ou seja, diante da natureza e suas
opes de alimentos, o homem escolhe um sistema de valores para classificar o que ou no
comida.
O pensamento classificatrio est essencialmente articulado ao princpio de
incorporao segundo segmento , no qual o homem se torna o que come tanto fisiolgica
quanto psicologicamente. O canibal incorpora os valores, a moral e as qualidades de sua
vtima. Porm, mesmo que no seja o objetivo, ao mesmo tempo incorpora vitaminas,
protenas, sais minerais, enfim, componentes nutricionais. A renovao diria do corpo e a
continuidade da vida conseguida com a ingesto de alimentos fazem o homem ser o que
come.
O terceiro segmento aquele que restringe a ateno do onvoro de uma gama infinita
de possibilidades alimentares a um sistema culinrio. mais um marcador cultural das
preferncias e hbitos alimentares dos comedores, que abrange a rea das tcnicas, dos modos
de preparo e do modo de consumir os alimentos.
Com relao ao conceito de espao social alimentar, Poulain apresenta-o pela funo
de dar conta das relaes entre natureza e cultura. O espao social alimentar do homem
localiza-se tanto nas suas necessidades nutricionais que o aprisionam diversidade e ao meio
geogrfico, quanto na sua capacidade escolha diante dessa diversidade e na capacidade de
transformao do meio-ambiente. O espao social alimentar pode ser observado em suas
vrias dimenses, sendo a primeira definida como o espao do comestvel. a constatao deque as diversas culturas refletem as escolhas feitas diante da gama de alimentos disponveis,
ainda que todos tenham valores nutritivos. A simbologia depositada nos alimentos, que faz
parte dessa dimenso, leva a sua aceitao ou rejeio dando bases para a formao da
identidade alimentar de uma comunidade.
O sistema alimentar, segunda dimenso, o caminho percorrido pelo artigo da
19 POULAIN, J-P. Sociologias da alimentao: os comedores e o espao social alimentar. Florianpolis:Ed. da UFSC, 2004.p. 195.
20 Ibid. p. 196.
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produo at o consumo. So trs os elementos contidos nesse trajeto: as transformaes
tecnolgicas ou biolgicas sofridas pelos alimentos, como o amadurecimento da fruta, o corte
da carne ou ainda o enlatamento do milho; os lugares por onde passam, por exemplo os
mercados ou restaurantes, a no ser que consistam em elementos de auto-consumo; as pessoas
que o transportam, as quais agregam valor econmico, simblico e social. Essa dimenso est
intimamente ligada terceira, a cozinha, que o autor define como o conjunto de operaes
simblicas e de rituais que, articulando-se sobre as aes tcnicas, participam da construo
da identidade alimentar de um produto natural e o tornam consumvel.21
O espao dos hbitos de consumo alimentar, quarta dimenso, uma das que se
observa a diferena entre culturas com mais facilidade. Trata-se das etiquetas e rituais ligados
refeio, bem como seus horrios, utenslios e locais. Comer com o prato em cima da mesa
em um jantar de gala, no cho sobre uma toalha xadrez em um piquenique, ou no sof em
frente televiso revela diferenas possveis ligadas ao consumo alimentar e seus hbitos.
A temporalidade alimentar, outra dimenso, envolve os ciclos naturais e culturais
ligados s refeies. A refeio de domingo que diferente dos dias de semana, a alimentao
da criana que se distingue da do adulto e do idoso. As pocas de jejum e as pocas de
abundncia. Os alimentos que so consumidos de dia e os que pertencem noite.
A ltima dimenso, o espao de diferenciao social, o mesmo daquele em que se
podem diferenciar as culturas por meio da anlise dos hbitos alimentares, salvo que esse
espao serve para destacar pessoas de uma mesma cultura. Por esses vrios aspectos
destacados por Poulain, o homem visto pela sociologia do onvoro como um comedor
plural. Plural porque na fluidez das regras culturais, que so assumidas inconscientemente, o
comedor aprende a se reconhecer e a reconhecer o outro. Aprende tambm, na sociabilidade, a
revelar as regras de formas originais em diferentes situaes.
J citado por Poulain, Claude Fischler um dos nomes de grande contribuio para
os estudos da alimentao, principalmente na questo que trata do gosto alimentar. Fischler,
aps sua formao em direito e cincia poltica e seu doutorado em sociologia na
Universidade de Paris, participa, na dcada de 1970, da criao do Groupe de Diagnostic
Sociologique liderado por Edgar Morin. A partir de 1973, Fischler volta seus para a
alimentao tendo a interdisciplinaridade como princpio bsico. LHomnivore seu livro que21 POULAIN, J-P. Sociologias da alimentao: os comedores e o espao social alimentar. Florianpolis: Ed.
da UFSC, 2004. p. 257.
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rene uma srie de trabalhos voltados para os hbitos alimentares e seus mecanismos de
transformao, bem como a imagem social do corpo e a presena da cozinha nessas duas
categorias. Atualmente, Fischler diretor de pesquisa do CNRS (Centre National de la
Recherche Scientifique), co-responsvel do CETSAH (Centre dtudes Transdiciplinaires
Sociologie, Anthropologie, Histoire) e participante da equipe de pesquisa de Lcole des
Hautes tudes en Sciences Sociales.
LHomnivore o livro de Fischler que trata das relaes do homem com o gosto, a
cozinha e o corpo atravs da alimentao e lida com o fato do homem ser onvoro, ter ao seu
dispor uma infinidade de alimentos e, ainda assim, selecion-los, escolh-los, descart-los. O
gosto o reflexo claro das escolhas.
Il existe des considrables diffrences entre les choix alimentaires des groupes culturels, entre ceux desclasses ou des categories quils contiennent. Ces diffrences sont sans doute de nature et doriginemultiples historiques, conomiques, symboliques, sociales, religieuses, etc. Mais quels sont lesmcanismes qui, lintrieur dune culture donne, dterminent la transmission, la rproduction etventuellement lvolution de ces choix alimentaires? Comment les individus intriorisent-ils les rglesculinaires au sens large, les taxonomies, le got de leur temps, de leur societ, de leur groupe? Dansquelle mesure, avec quelle latitude, le got collectif varie-t-il dun individu un autre?22
Fischler coloca em questo a formao e a transformao do gosto alimentar; os
mtodos e etapas necessrias para sua transmisso; os vrios nveis da variao ou
permanncia do que se gosta, do que se habituou a comer, do que soa estranho ou repugnante.
Inicialmente, o autor trata da questo biolgica e familiar. Descarta a afirmao do
paladar resumido em apenas quatro sabores. Critica os autores que tratam o doce como sabor
intrinsecamente mais apreciado que o amargo, em uma perspectiva que privilegia o paladar
como resqucio de instintos da vida selvagem em que o amargo representaria produtos
txicos, enquanto o doce lembraria a necessidade de grandes quantidades de caloriasencontradas nos itens que o possuem. Revela, porm a importncia da famlia nas preferncias
individuais. A criana prefere o que est acostumada a ingerir, seja pelo leite materno, seja
pelas escolhas feitas pela me na hora de aliment-lo ou na hora de preparar a comida para a
22 FISCHLER, C. L'Homnivore: le got, la cuisine et le corps. Paris: ditions Odile Jacob, 1993. p. 91. Hconsiderveis diferenas entre as escolhas alimentares dos grupos culturais, entre as classes ou categorias queeles utilizam. Essas diferenas so, sem dvida, de natureza e origem mltiplas histricas, econmicas,simblicas, sociais, religiosas, etc. Mas quais so os mecanismos que, no interior de uma determinada
cultura, determinam a transmisso, reproduo e eventualmente a evoluo das escolhas alimentares? Comoos indivduos interiorizam as regas culinrias em sentido amplo, as taxonomias, o gosto de seu tempo, de suasociedade de seu grupo? Em que medida, com qual latitude, o gosto coletivo varia de um indivduo para ooutro?
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famlia o que leva o beb a uma memria olfativa e visual, alm da memria gustativa.
Essa aprendizagem inter-geracional no se limita ao tipo de alimento consumido, mas
inclui o quando e o modo de comer. A interiorizao das regras e normas que acompanham anutrio operada de forma cotidiana e lenta pela observao e repetio de rituais. A
observao e interiorizao de hbitos alimentares tambm intra-geracional, sendo que des
donnes de plus en plus concordantes montrent en effet que le facteur le plus important dans
llargissement et la socialisation des gots alimentaires de lenfant est linfluence directe de
ses pairs.23 Ento, as crianas e os jovens de forma geral so vistos ao mesmo tempo como
reprodutores das regras sociais e como inovadores e transformadores dos hbitos alimentares,
j que no os possuem bem formados.
Partindo de um estudo com crianas, o autor afirmou que existe uma diferena dos
gostos em diferentes idades. Apesar disso depender muito da experincia individual, a
pesquisa mostrou que existem produtos que no so aceitos na infncia, como o caso de
alimentos cujo gosto ou o cheiro so fortes por exemplo, queijos fortes, mostarda ou
cebolas. Tambm constatou que existe uma diferena de gostos entre homens e mulheres.
Tratando de forma geral, os homens gostam de refeies mais substanciosas e as mulheres de
refeies mais frugais.
Por ltimo, Fischler cita o fenmeno da neofobia, que a demonstrao individual das
escolhas que os onvoros fazem. O habitual (o conhecido) preferido ao misterioso (o
desconhecido).
1.2 A INFLUNCIA BRASILEIRA NOS ESTUDOS DA ALIMENTAO
Esta seo se dedica a explanar sobre a contribuio de intelectuais que iniciaram no
Brasil os estudos da alimentao. Tais estudos se originam na primeira metade do sculo XX
e preciso destacar que as pesquisas dos cientistas sociais brasileiros se voltavam
principalmente para temas nativos. Esse grande interesse por temas nacionais era uma
tendncia na poca, notvel em vrias reas como a pintura com Tarcila do Amaral, Anita
Malfati, a msica com Villa Lobos, a literatura com Oswald e Mario de Andrade, Monteiro
23 FISCHLER, C. L'Homnivore: le got, la cuisine et le corps. Paris: ditions Odile Jacob, 1993. p. 101.Dados cada vez mais coesos mostram, com efeito, que o fator mais importante para o alargamento e asocializao dos gostos alimentares da criana a influncia direta de seus pares.
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Lobato. A sociologia contou com o trio Gilberto Freyre, Srgio Buarque de Holanda e Caio
Prado Jnior.
Tratar-se- de Gilberto Freyre, Josu de Castro e Luis da Cmara Cascudo por terem aalimentao como tema principal de pelo menos um de seus estudos. O livro tratado no caso
de Freyre Acar: Uma sociologia do doce, com receitas de bolos e doces do Nordeste do
Brasil24. Apesar de tratar da alimentao em outros livros como caso de Casa Grande &
Senzala, em Acar que a alimentao aparece como principal foco de interesse. No caso de
Castro, impossvel falar de um livro s, pois sua obra foi dedicada praticamente inteira aos
estudos da alimentao. Cmara Cascudo, folclorista brasileiro, possui uma vasta obra de
assuntos diversos, dentre elas Histria da Alimentao no Brasil25.
Esses autores foram selecionados por contriburem diretamente com a pesquisa
proposta e para a formao do campo da Histria da Alimentao, pois discutem assuntos
essenciais para os novos pesquisadores, j que forjam conceitos que servem de base para os
estudos sobre o assunto.
Josu de Castro nasceu na primeira dcada do sculo XX, em Recife. Era mdico de
formao, atuou nesta rea e, em 1932, tornou-se professor na Faculdade de Medicina do
Recife. Sua preocupao com o social, porm, levou-o a andar por outras reas, assumindo
cargos, ainda em Recife na Faculdade de Filosofia e Cincias Sociais nos anos de 1933 at
1935. Deixou sua cidade natal e se mudou para o Rio de Janeiro, lecionando ento na
Faculdade do Distrito Federal, obtendo a ctedra de Antropologia.
Alm das atuaes acadmicas, Castro era um ativista na luta contra a fome, o grande
tema de seus estudos, tanto na Medicina, quanto na Geografia e na Sociologia. Envolveu-se
em inmeras campanhas e instituies em combate fome e em favor da implantao daalimentao racional, conceito desenvolvido em seus livros. Em 1936, foi membro da
Comisso do Inqurito para Estudos da Alimentao do Povo Brasileiro.
Teve tambm atuaes polticas, elegendo-se deputado federal em 1954 pelo Partido
Trabalhista Brasileiro. Com o Golpe Militar de 1964, foi afastado de seu cargo pblico,
24 FREYRE, Gilberto. Acar: Uma sociologia do doce, com receitas de bolos e doces do Nordeste do Brasil.
So Paulo: Cia das Letras, 1997.
25 CASCUDO, Luis da Cmara. Histria da alimentao no Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; So Paulo:Editora da Universidade de So Paulo, 1983.
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perdendo seus direitos polticos e exilando-se em Paris.26
Sem dvida, seu livro mais famoso Geografia da Fome, lanado pela primeira vez
em 1946 e traduzido para vrios idiomas. Nesse livro, faz-se um estudo da alimentao paracada regio do Brasil procurando, de um lado, descobrir as causas naturais e as causas
sociais que condicionaram o seu tipo de alimentao, com suas falhas e defeitos
caractersticos, e, de outro lado, procurando verificar at onde esses defeitos influenciam a
estrutura econmico-social dos diferentes grupos estudados.27 O autor explica que seu
objetivo, com essa obra, tratar de modo geogrfico os defeitos da alimentao no Brasil e
define como objeto de seu estudo a fome. Porm, ele delimita a fome tratada no livro no
como individual e conceitual, ou seja, fisiolgica, mas a fome de um grupo. Tambm no
apenas o grupo que morre de fome, de inanio, mas comunidades que se deixam morrer
lentamente de fome, apesar de comerem todos os dias. Portanto, tal trabalho trata da fome
parcial, da chamada fome oculta, pela falta permanente de elementos nutritivos.28 Assim,
Castro, mesmo tendo dedicao rea biolgica e das cincias da sade consegue tratar a
fome como um fenmeno social.
Em seu livro A Alimentao Brasileira Luz da Geografia Humana29, Castro faz uma
reflexo sobre as possibilidades de estudos na rea da alimentao e, em 1937, o autor concluique esse um tema transdisciplinar, que precisa levar em conta questes biolgicas,
antropolgicas, fsicas, culturais, etnolgicas, patolgicas, sociolgicas, poltico-econmicas e
histricas30. A preocupao de Castro com a alimentao e a necessidade de estud-la sob
vrios pontos de vista se justifica pela proposta do autor de implantar o que ele chama de
alimentao racional no Brasil, pas onde a fome era, na dcada de 30, e ainda , em 2009, um
grande problema.
Esse conceito de alimentao racional visto pela primeira vez em seu livro
26 Informaes disponveis em: ;. Acesso em: 15/06/2008.
27 CASTRO, Josu de. Geografia da fome: o dilema brasileiro: po ou ao. Rio de janeiro: Antares; Achiam,1980. p. 35.
28 Ibid. p. 37.
29 CASTRO, J. Alimentao brasileira luz da geografia humana. Porto Alegre: Edio da Livraria doGlobo, 1937.
30 Ibid. p. 22.
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Alimentao e Raa31. preciso dizer que Castro tenta dialogar com os intelectuais
contemporneos que esto pensando na idia de raa, sendo rejeitando-a, sendo ratificando-a.
Ele toma o conceito de raa no como biolgico e gentico, mas geogrfico, dando um
enfoque vida material para, ento, notar o desenvolvimento da comunidade em questo.
possvel perceber o desenvolvimento das duas discusses, sobre raa, e sobre a alimentao
racional, principalmente na segunda parte do livro, j que na primeira o autor se detm a uma
explicao fisiolgica dos alimentos. Na segunda parte, Castro rene seus conhecimentos da
Medicina e da Sociologia para estudar os operrios do Nordeste, seus salrios, seus dispndios
com alimentao, moradia e vestimenta. Tambm se dedica ao estudo sobre alimentao e
educao; analisa alimentao e aclimatao de produtos e povos nos trpicos coloniais; por
ltimo mostra uma proposta de um futuro trabalho com enquetes para rastrear o trabalho e otrabalhador agrcola de todo o Brasil, considerando as diferenas regionais, sempre em de
uma relao com os alimentos.
Portanto, o trabalho do livro Alimentao e Raa demonstra mais uma vez que a
alimentao para Castro deve ser estudada sob diversos ngulos. Com o exemplo dos
operrios nordestinos, o autor confirma que a alimentao brasileira no suficiente para
suprir as necessidades dirias da maioria da populao e que os brasileiros sofrem do que ele
chama de fome crnica. Assim, a alimentao precisa ser pensada e calculada para atender as
necessidades de um grupo determinado. E, para Castro, a soluo para estas questes seria a
aplicao do conceito de alimentao racional, pois
no basta, para que uma rao alimentar seja perfeita, que ela contenha o total energtico necessrio sdespesas dos organismos. preciso ainda que a rao seja formada por quantidades satisfatrias, emdeterminadas propores mtuas, das vrias espcies de alimentos simples: albuminas, gorduras,hidratos de carbono, gua, sais minerais e vitaminas. O regime racional deve ser assim um regimesuficiente, completo e harmnico.32
Outra preocupao de Josu de Castro pode ser interpretada como mais cultural. Em
um livro financiado pela Editora da Nestl, em uma empreitada de lanar livros relacionando
alimentao e educao infantil, o autor disserta sobre os tabus, tendo como principais
exemplos os tabus alimentares brasileiros. Em Fisiologia dos Tabus33, Castro explica de
31 CASTRO, J.Alimentao e Raa. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1936.
32 CASTRO, J. Alimentao brasileira luz da geografia humana. Porto Alegre: Edio da Livraria doGlobo, 1937. p. 72.
33 CASTRO, J. Fisiologia dos Tabus. Rio de Janeiro: Editora da Nestl, 1938.
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forma sucinta as teorias da psicologia que trabalharam com tabus, principalmente de Freud,
Wundt e Pavlov. No entanto, percebe-se ao longo do livro, que sua viso cabe muito mais no
trabalho de um antroplogo do que de um psiclogo propriamente dito. Ele defende que
o conceito de tabu o de uma interdio, de uma proibio categrica, sem explicao racional.Interdio que no ordenada por ningum, mas que parece ter se constitudo por si mesma, semnenhum fundamento, nem ao menos uma insinuao lgica; mas que em determinados momentos podeser suspensa, desde que se executem certas manobras compensadoras que constituem um verdadeiroritual.
O tabu precede a todo o conceito religioso, a toda idia de divindade abrange, segundo oantropologista Northcote W. Thomas: 1) o carter sagrado ou impuro das pessoas ou coisas; 2) arestrio que decorre deste carter; 3) a santidade ou impureza que por contgio adquire todo aquele queviola o tabu.34
importante relacionar a definio de tabu noo de alimentao racional de Castro.
Se as prticas alimentares de uma comunidade devem estar contidas em um sistema
suficiente, completo e harmnico, no se pode deixar de lado os costumes e a religio dessa
comunidade, bem como o modo de preparo dos alimentos, a sua importncia, a poca em que
consumido e por quem. A harmonia desse sistema no cabe apenas na quantidade de
calorias e vitaminas, mas envolve todas as suas facetas.
Castro, ento, nota com bastante ateno