Dissertacao Entrega 1 Comida de Santo

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN

    ANA PAULA NADALINI

    COMIDA DE SANTO NA COZINHA DOS HOMENS:UM ESTUDO DA PONTE ENTRE ALIMENTAO E RELIGIO

    CURITIBA2009

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    ANA PAULA NADALINI

    COMIDA DE SANTO NA COZINHA DOS HOMENS:UM ESTUDO DA PONTE ENTRE ALIMENTAO E RELIGIO

    Dissertao apresentada como requisito parcial obtenodo grau de Mestre em Histria, Curso de Ps-Graduao,Setor de Cincias Humanas, Letras e Artes, UniversidadeFederal do Paran.

    Orientador: Prof. Dr. Carlos Roberto Antunes dosSantos

    CURITIBA

    2009

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    AGRADECIMENTOS

    Primeiramente, gostaria de agradecer agncia CAPES, pela bolsa de incentivo

    pesquisa. Agradeo tambm ao programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade

    Federal do Paran.

    Gostaria tambm de dizer obrigada a todos os Professores que estiveram comigo

    nesses anos de muito estudo e dedicao: Professor Carlos Roberto Antunes dos Santos, meu

    orientador, a quem muito devo por esta dissertao. Professora Judite Trindade, minha

    orientadora de bolsa na graduao, professora de seminrio, parte da minha banca de

    qualificao, a quem muitas vezes recorri. Professor Euclides Marchi, cuja contribuio na

    banca de qualificao foi de extrema importncia e a quem devo o ttulo do meu trabalho.Ainda agradeo ao Professor Antnio Csar de Almeida Santos, Professora Roseli

    Boschilia, Professora Marionilde Brepohl Magalhes e Professora Christine Chaves.

    Agradeo muito ao grupo de pesquisa de Histria e Cultura da Alimentao, onde

    comecei meus estudos nessa rea. Todas as pessoas do grupo contriburam para o meu

    desenvolvimento, porm algumas mais diretamente. Para elas vai, alm do meu obrigado, um

    abrao bem apertado: Luciana Patrcia de Moraes por ter encontrado metade das minhas

    fontes, Mariana Coro por ter me iniciado nas discusses sobre Histria da Alimentao,Maria Henriqueta Garcia Gimenes e Deborah Agulhan Carvalho, pelas muitas conversas, e-

    mails e almoos o que no poderia faltar para quem estuda alimentao.

    Aos meus entrevistados, agradeo pela contribuio para a pesquisa. Maria Joana de

    Oxum, Izolina de Oxssi, Vanderlei de Oxal, Mrcio de Omolu, Caf Milod de Omolu,

    Alex de Oxssi, Rmulo de Oxal, Tatiana de Iemanj, Marize de Omolu, pessoas que tantas

    vezes incomodei, visitei, tirei de seus afazeres e que foram muito gentis, compreensivas e

    atenciosas.Ainda quero dizer obrigado a todas as pessoas que contriburam direta ou

    indiretamente para essa pesquisa, dando um telefone de uma casa de Candombl, indicando

    um livro, esclarecendo alguma dvida e que no caberia o nome de todos aqui. Ainda aos

    meus amigos que me escutaram falar tantas vezes da pesquisa e que precisaram ter pacincia

    comigo em momentos de crise. Em especial a Marilia Herreros, minha amigona e revisora da

    dissertao e a Socorro Arajo, que gentilmente cedeu fotos para este trabalho.

    Todo meu amor a trs pessoas, porque para eles eu no tenho palavras para dizer o

    quanto eu agradeo: Pai, Me e Gigio.

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    (...) onosso missal um grande cardpio

    Rmulo de Oxal

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    RESUMO

    A alimentao est ligada, em princpio, maioria das religies. Com jejuns, abstinncias edeterminando o que puro e impuro, as religies influenciam os hbitos alimentares dos fiis.

    Este trabalho tem o objetivo de perceber as relaes entre a Histria da Alimentao e o

    estudo das religies, unindo essas duas reas do conhecimento. Para tanto, foram realizadas

    entrevistas, com base na metodologia da Histria Oral, com membros do Candombl de

    Curitiba. Esses registros renem informaes de diversos nveis de especificidade, tais como

    a mitologia preservada sobre os Orixs e como a comida aparece nessas histrias, os rituais de

    sacrifcios e oferendas, o cotidiano do Povo-de-Santo e sua rotina alimentar, tanto em dias

    comuns quanto durante as festividades. Essa complexa cadeia, que permeia as relaes entre

    os deuses e a alimentao, a alimentao e os homens e os homens e os deuses, ilumina o

    campo da Histria da Alimentao e discute as prticas religiosas como modificadoras do

    gosto alimentar.

    Palavras-chave: Alimentao, Candombl, Memria.

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    ABSTRACT

    Eating habits are connected, in principle, to most religions. Through fasts, abstinences and

    determining what is pure or impure, religions influence their believers eating habits. This

    dissertation aims at perceiving these relationships, merging two areas of knowledge, the

    History of Eating and the study of religions. Therefore, interviews with members of

    Candomble in Curitiba were conducted, based on the oral history methodology. These

    registers gather information from different levels of specificity, such as the mythology

    preserved by the Orixas and how food is depicted in these stories, sacrificial rituals and

    offerings, the daily routine of the povo-de-santo e their daily eating habits, both on ordinary

    and festive days. This complex chain, which permeates the relationships between gods and

    eating, eating and men, men and gods, lights the field of the history of eating and discusses

    religious practices as a transforming agent of taste.

    Key words: Eating, Candombl, Memory.

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    LISTA DE IMAGENS

    FIGURA 1.......................................................................................................................54FIGURA 2.......................................................................................................................55

    FIGURA 3.......................................................................................................................55FIGURA 4.......................................................................................................................57FIGURA 5.......................................................................................................................63FIGURA 6.......................................................................................................................70FIGURA 7.......................................................................................................................73FIGURA 8.......................................................................................................................79FIGURA 9.......................................................................................................................82

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    SUMRIO

    INTRODUO ............................................................................................................................... 1

    1HISTRIADAALIMENTAOREVISITADA ................................................................................... 13

    1.1 HISTORIOGRAFIADAALIMENTAOREVISITADA............................................................. 15

    1.2 A INFLUNCIA BRASILEIRA NOS ESTUDOS DA ALIMENTAO ......................................................... 25

    1.3 ALIMENTAO COMO GNERO DE FRONTEIRA .......................................................................... 39

    1.3.1 Histria da alimentao e suas conexes ................................................................................. 43

    1.3.2 A ponte entre a Histria da Alimentao e o estudo das religies ............................................... 46

    2 A ALIMENTAO E O SAGRADO NO CANDOMBL ......................................................................... 51

    2.2 OS ORIXS E A ALIMENTAO ................................................................................................. 522.3 RELIGIES DE MATRIZ AFIRCANA : PERSPECTIVAS DE PESQUISA ............................................ 66

    2.1 ENTENDENDO O CANDOMBL ................................................................................................. 86

    3 COMIDA-DE-SANTO NA COZINHA DOS HOMENS ................................................. 92

    3.1 A PROIBIO DE BEBER E O MITO DE CRIAO DA TERRA ...................................................... 96

    3.2 PROIBIO: QUIZILA E PRECEITO ............................................................................................. 99

    3.3 ALIMENTAO NO PERODO INICITICO ............................................................................... 104

    3.4 ALIMENTAO E RITUAL ........................................................................................................ 107

    3.5 COZINHA-DE-SANTO OU COZINHA DOS HOMENS? ............................................................... 109

    3.6 COMIDA-DE-SANTO OU COMIDA DOS HOMENS? ................................................................. 113

    3.7 RECEITAS................................................................................................................................. 116

    CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................... 122

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................................... 126

    DOCUMENTOS PESQUISADOS ...................................................................................... 132

    ANEXO .................................................................................................................................. 133

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    INTRODUO

    A alimentao uma das primeiras necessidades humanas e acompanha a vida, mantendo-a

    na sua permanncia fisiolgica 1. Pode-se pensar que essa tambm uma necessidade dos

    animais ou de todos os seres vivos. Entretanto, a alimentao proposta neste trabalho

    acompanhada por conceitos que no a restringem apenas ao ato nutricional. O envolvimento

    afetivo do homem com o alimento, o gosto e a sociabilidade proporcionada por tais elementos

    fazem com que a alimentao invada o campo das cincias humanas. Brillat-Savarin dedica

    um livro A Fisiologia do Gosto2 para contar ao seu leitor sobre essa relao que s o

    homem tem com o alimento, alm de explanar sobre o prprio alimento, sua origem e

    preparao. Cascudo escreve que comer um ato orgnico que a inteligncia tornou social3,

    afirmao a que essa pesquisa est ligada por tratar a alimentao para alm do ato

    nutricional.

    A alimentao liga, primeiramente, o homem ao seu prprio organismo quando

    satisfaz a necessidade biolgica da nutrio. tambm uma de suas primeiras formas de

    sociabilidade ligando-o aos outros homens, desde o nascimento, quando amamentado pela

    me, passando pelas merendas na escola, os almoos de negcio e os jantares romnticos. H

    ainda uma dimenso permeada pela alimentao em que o vnculo criado entre homens e

    divindades, a dimenso da espiritualidade.

    Uma grande parte das prticas religiosas est ligada ao ato de comer (ou de no

    comer). As festas dedicadas aos deuses provedores dos alimentos nas religies indgenas, o

    jejum em perodos de sacrifcio como a Quaresma ou o Ramad, a Eucaristia que consiste em

    comer o corpo e beber o sangue de Jesus Cristo, a proibio de ingerir carne de porco noJudasmo ou de vaca no Hindusmo so alguns exemplos disso.

    Para a realizao desta pesquisa, a religio escolhida foi o Candombl, na qual o papel

    da alimentao tem importncia essencial, formando uma de suas bases teolgicas. O

    Candombl caracterizado como uma religio afro-brasileira, em que so cultuadas diversas

    1 CASCUDO, Luis da Cmara. Histria da Alimentao no Brasil. So Paulo: Editora da Universidade deSo Paulo, 1983. p. 21.

    2 BRILLAT-SAVARIN, Jean- Anthelme. A fisiologia do gosto. So Paulo: Companhia das Letras 1995.

    3 CASCUDO, L da C. Op. Cit. p. 2.

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    entidades, conhecidas mais comumente como Orixs (so tambm chamados de Santos). Tais

    divindades esto ligadas a fenmenos ou elementos da natureza e tambm a ancestrais

    divinizados. No Candombl uma das principais ligaes entre homens e deuses so as

    oferendas de alimentos e sacrifcios.

    Para Arno Vogel,

    a pedra angular da piedade afro-brasileira o sacrifcio. Sem ele nenhuma passagem pode se efetuarcom xito. Os sacrifcios, no entanto, requerem que se ofeream aos deuses coisas de sua preferncia(...).

    Quanto mais importante a passagem, mais dramtico o sacrifcio. Nos minsculos transes doquotidiano, basta o dispndio modesto e plcido das libaes, defumaes e oferendas culinrias. Asgrandes passagens, no entanto, requerem os grandes sacrifcios, o sangue derramado, as hecatombes.

    Na relao dos homens com os deuses, o sacrifcio animal constitui o penhor mais precioso.

    indispensvel para abrir caminhos em todos os grandes ritos que visam transformar radicalmente aforma de existncia dos seres humanos. Dentre todos eles a iniciao, mais do que qualquer outro,precisa oferecer vida por vida.4

    Os Filhos-de-Santo tm obrigaes para com as divindades, especialmente com

    aquela de sua origem. Um filho de Iemanj, por exemplo, tem que tratar com carinho o seu

    Santo, dando-lhe as comidas que ele gosta, as flores de sua preferncia. Da mesma forma,

    tem compromissos com outros Orixs, deve satisfaz-los e relembr-los principalmente em

    seu dia de festa, ou ainda por alguma necessidade especfica que o Orix pode intervir.

    Pierre Verger defende a mesma viso de Vogel quando fala que nada se faz sem consult-

    los e garantir sua proteo. Os homens gozam da abundncia e da prosperidade se

    souberem satisfaz-los e, ao contrrio, as catstrofes e calamidades sucedem-se na terra se

    esses deuses forem negligenciados ou ofendidos.5

    Um membro do Candombl tem sua alimentao diferenciada de acordo com o

    perodo da vida religiosa que est passando e o Orix de quem filho, o que determinacoisas que ele no pode comer. Em Comida: uma histria, Felipe Fernndez-Armesto

    dedica algumas pginas ao estudo da sacralizao da comida e diz que as sociedades tm

    hbitos alimentares que pertencem esfera do sagrado: existem substncias que

    consumimos para nos tornar sagrados ou ntimos dos deuses ou dos espritos, outras que se

    4 VOGEL, Arno et al. A galinha d'angola: iniciao e identidade na cultura afro-brasileira. Rio de Janeiro:Pallas, 2001. p. 17.

    5 VERGER. Pierre. Notas sobre o culto dos Orixs e Voduns na Bahia de todos os Santos e na AntigaCosta dos Escravos na frica. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 2000. p. 16.

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    interpem entre a carne e o esprito e aumentam a distncia do divino 6. Observa-se, com

    base nessa citao, outro carter desta pesquisa, o estudo do no comer.

    Rudolf Otto define o sagrado7

    como composto por duas partes o racional e o no-racional. No racional (ou numinoso), para o autor o que no se pode explicar, sendo

    compreensvel apenas no momento singular na experincia. em tal irracionalidade que se

    localizam os sentimentos religiosos, os quais Otto nomeia de mysterium tremendum et

    fascinans, compostos pela unio paradoxal do terror e do fascnio. O autor considera, ainda, o

    Sagrado como uma categoria a priori, um instinto religioso. E, considerando que o sentimento

    religioso inato, ele no interage apenas com o irracional existente em cada pessoa, mas

    tambm com o seu racional, ou seja, o responsvel pela moral e tica, ou mesmo por eleger as

    analogias necessrias para explicar a experincia religiosa, ou os smbolos do seu universo

    representativo.

    Se, de um lado, todas as sociedades possuem os alimentos simblicos do sagrado,

    necessitando estes de um ritual para serem ingeridos, do outro lado existem os alimentos cujo

    simbolismo negativo, imprprio, muitas vezes imoral. O tabu alimentar est muito

    presente no Candombl sob o nome de quizila, que na viso simplista de Manuel Querino a

    antipatia supersticiosa que os africanos nutrem por certos alimentos e determinadas aes 8.Cada Orix possui, alm de suas preferncias, os alimentos que no gosta e isto impede a sua

    oferenda e restringe o seu consumo.

    Portanto, a alimentao possui o seu lado simblico e este um dos temas mais

    recorrentes na Histria e Cultura da Alimentao. O gosto alimentar comea a ser

    considerado como uma categoria histrica e percebe-se que o que essencial nos hbitos

    alimentares de uma poca, no para outra. Nesse sentido, o gosto alimentar determinado

    no apenas pelas contingncias ambientais e econmicas, mas tambm pelas mentalidades,

    pelos ritos, pelo valor das mensagens que se trocam quando se consome um alimento em

    companhia, pelos valores ticos e religiosos []9.

    6 FERNNDEZ-ARMESTO, Felipe. Comida: uma histria. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 60.7 OTTO, Rudolf. Le sacr: llment non-rationnel dans lide du divin et as relation avec le rationnel. Paris:

    Payot, 1949.

    8 QUERINO, Manuel. Costumes africanos no Brasil. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1938. p. 76.

    9 SANTOS, Carlos Roberto Antunes dos.Por uma histria da alimentao. Histria: Questes & Debates,Curitiba, v. 14, n. 26/27, p. 154-171, jan./dez., 1997. p. 162.

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    Esta pesquisa tem como objetivo estudar as relaes entre prticas religiosas, os

    hbitos alimentares e a memria gustativa, buscando entender como esses elementos

    interagem entre si. Lana seu olhar para a alimentao e o sagrado, o rito e o mito, a origem e

    a tradio no Candombl. Desenvolve-se a problemtica de como os alimentos mitificados

    nas histrias dos Orixs10, nas suas guerras, seus nascimentos, doenas, amores, casamentos

    so ritualizados pelos membros do Candombl e passados por meio de uma tradio oral, da

    memria. O rito, que remete mitologia, expresso de forma muito comum pelas oferendas e

    sacrifcios aos Orixs. Para Marcel Mauss,

    as relaes destes contratos e trocas entre homens e destes contratos e trocas entre homens e deusesiluminam um lado inteiro da teoria do Sacrifcio. Em primeiro lugar, compreendemo-los perfeitamente,sobretudo nas sociedades em que esses rituais contratuais e econmicos se praticam entre homens, masem que esses homens so encarnaes mascaradas, freqentemente xamanstica e possudas peloesprito de que usam o nome.11

    A memria da tradio mitolgica preservada na oralidade pelos membros do

    Candombl foi registrada por meio de entrevistas. Os lugares selecionados foram Terreiros de

    Candombl localizados em Curitiba e, em alguns casos, reas vizinhas. Utilizando-se os

    mtodos da Histria Oral as entrevistas constituem a fonte principal deste trabalho.

    A metodologia de histria oral bastante adequada para o estudo de memrias, isto , de representaesdo passado. Estudar essa histria estudar o trabalho de constituio e formalizao das memrias,continuamente negociadas. A constituio da memria importante porque est atrelada construoda identidade. Como assinala Michael Pollak, a memria resiste alteridade e mudana e essencialna percepo de si e dos outros. Ela resultado de um trabalho de organizao e de seleo daquilo que importante para o sentimento de unidade, de continuidade e de coerncia isso , de identidade. Eporque a memria mutante, possvel falar de uma histria das memrias de pessoas ou grupos,passvel de ser estudada atravs de entrevistas de histria oral.12

    Desde o incio do sculo XX a Histria vem sofrendo transformaes principalmente

    em relao s fontes e aos mtodos de pesquisa. O grupo dos Annales foi o precursor dessa

    busca pela valorizao de novos tipos de fontes o que levou a ampliao dos objetos de

    anlise, dos mtodos e a toda uma mudana de paradigma em relao pesquisa histrica. A

    10 Algumas dessas histrias foram reunidas por Reginaldo Prandi. Em certo conto, era aniversrio de Iemanj eos outros Orixs no sabiam o que dar a ela, Exu, porm, que em pobre servente/ preparou uma plantao deinhames para Iemanj./ Sabia que ela adorava inhames/ e este era o nico presente que ele podia lheoferecer./ No dia do seu aniversrio,/ Exu colheu todos os inhames que havia plantado/ e colocou para colherao sol. PRANDI, Reginaldo. A mitologia dos orixs. So Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 59.

    11 MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a ddiva. Lisboa: Edies 70, 1950. p. 72-3.

    12 ALBERTI, Verena. Ouvir Contar: textos em histria oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. p. 27.

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    Histria Oral no fruto direto da cole desAnnales, mas nasceu por conta dessa discusso

    inaugurada na Frana.

    Segundo Philipe Joutard, a Histria Oral pensada pela primeira vez nos EstadosUnidos, na dcada de 1950, espalhando-se rapidamente para vrios centros de pesquisa do

    mundo. Seu objetivo inicial era recolher entrevistas e arquiv-las para futuras anlises13. Com

    o seu desenvolvimento, porm, ela permitiu a explorao de objetos nunca antes estudados,

    como a histria de grupos sociais marginalizados, sem documentao.

    Por algum tempo, a Histria Oral foi reconhecida como o modo de dar voz aos que

    no tm vez, como uma outra histria, a histria dos vencidos. Verena Alberti, em seu texto

    Histrias dentro da Histria14, descreve alguns erros de interpretao do mtodo de

    entrevistas quando este comeou a ser realizado. A vontade e a necessidade de se fazer uma

    histria no oficial, que relatasse as experincias do povo ou das minorias fez historiadores

    acreditarem que as fitas gravadas com camponeses fosse a voz do povo, chegando-se desse

    modo democratizao da Histria, no percebendo assim que os seus estudos eram uma

    viso acadmica e elitizada das minorias. E este engano era trazido pelo historiador

    militante, que acreditava que o testemunho oral j fosse a prpria Histria, sem precisar de

    anlise. A mesma autora desenvolve um estudo que contraria a viso de que a Histria Oral sepresta apenas para a pesquisa de grupos em que a escrita inexistente, ou quase, ou em que os

    documentos tenham sido destrudos. Alberti analisa a entrevista cedida por Evandro Lins

    Silva, advogado envolvido em causas polticas que participou de mandatos de vrios

    governantes, inclusive o de Fernando Collor na Presidncia da Repblica do Brasil, caso que

    rendeu mais fama ao advogado.

    O estudo de Alberti descrito acima demonstra que as fontes orais no so apenas uma

    alternativa para quando no h fontes ou no se tem acesso a elas. Elas so apenas mais um

    tipo de fonte. Documentos sobre a histria poltica do Brasil no faltam, portanto a entrevista

    analisada por Alberti foi uma escolha que dependia do enfoque da anlise e no mais da

    quantidade de documentos.

    13 JOUTARD, Philipe. Histria Oral: balano da metodologia da produo nos ltimos 25 anos. In: FERREIRA,Marieta de Moraes; AMADO, Janana (Orgs.).Usos e abusos da histria oral. Rio de Janeiro: FGV, 2005.

    p. 45.

    14 ALBERTI, V. Histrias dentro da Histria. In: PINSKY, Carla Bassanezi (Org.). Fontes histricas. SoPaulo: Contexto, 2005. p. 156-9.

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    Segundo Jos Carlos Meihy15, existe uma diferena em chamar a Histria Oral de

    metodologia ou de tcnica, pois isso depende da importncia legada s fontes. Se a pesquisa

    desenvolve uma reflexo em torno das fontes orais e a pesquisa est centrada nelas, ou seja,

    elas ocupam o primeiro plano, pode-se chamar a Histria Oral de metodologia, pois ela est

    ligada com a essncia do trabalho. Porm, quando as entrevistas so usadas como fontes

    complementares, pode-se chamar tcnica, pois apesar de no estar nos fundamentos do

    trabalho preciso conhecer o seu processo.

    Independente de ser mtodo ou tcnica, as entrevistas procedem da mesma forma.

    Meihy define que as fontes orais se formam atravs do trip entrevistador, utenslio eletrnico

    para gravar seja ele um gravador de voz, filmadora e entrevistado. O que Meihy defende

    que a Histria Oral no pode ser baseada nas anotaes do pesquisador, ou no famoso

    caderno de campo dos antroplogos, nem por telefone etc. As entrevistas, apoiadas na base da

    problemtica da pesquisa, no roteiro da entrevista e na memria16, precisam ser registradas,

    passando por uma anlise objetiva. Para tal autor, a memria a ser estudada por meio dessas

    entrevistas a coletiva, apropriando-se do conceito de Maurice Halbwachs17. Ou ainda, como

    define Rousso, a memria

    uma representao seletiva do passado, um passado que nunca aquele do indivduo somente, mas deum indivduo inserido num contexto familiar, social, nacional. Portanto toda memria , por definio,'coletiva', como sugeriu Maurice Halbwachs. Seu atributo mais imediato garantir a continuidade dotempo e permitir resistir alteridade, ao 'tempo que muda', s rupturas que so o destino de toda a vidahumana; em suma ela constitui eis uma banalidade um elemento essencial da identidade, dapercepo de si e dos outros. Mas essa percepo difere segundo nos situemos na escala do indivduo ena escala de um grupo social, ou mesmo de toda uma nao. Se o carter coletivo de toda memriaindividual nos parece evidente, o mesmo no se pode dizer da idia de que existe uma 'memriacoletiva', isto , uma presena e portanto, uma representao do passado que sejam compartilhadas nosmesmos termos por toda uma coletividade.18

    O roteiro de entrevistas do presente trabalho foi formulado e ajustado.19

    Primeiramente, foram realizadas entrevistas com os Pais e Mes-de-Santo, normalmente

    senhores e senhoras que representam, para as comunidades de Terreiro, os detentores dos

    15 MEIHY, Jos Carlos Sebe Bom. Manual de histria oral. So Paulo: Edies Loyola, 1996. p. 44.

    16 MEIHY, J. C. S. B. Manual de histria oral. So Paulo: Edies Loyola, 1996.

    17 HALBWACHS, Maurice. A memria coletiva. So Paulo: Centauro, 2006.

    18 ROUSSO, Henry. A memria no mais o que era. In: FERREIRA, M. de M.; AMADO, J. (Orgs.).Usos eabusos da histria oral. Rio de Janeiro: FGV, 2005. p. 94-5.

    19 O questionrio aplicado se encontra em anexo.

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    conhecimentos sobre a religio e guardies dos mitos. Em seguida, foram realizadas tambm

    entrevistas com membros do Candombl que possuem algum cargo nas casas, como o caso

    de Ogs e Ekdes. Por fim, a entrevista foi aplicada a Filhos-de-Santo.

    A durao das entrevistas varia de uma a uma hora e meia e o questionrio foi dividido

    em trs grupos de perguntas. O primeiro consiste em perguntas mais gerais sobre o

    Candombl, o funcionamento dos Terreiros, a histria de vida dos entrevistados. Na segunda

    parte se encontram questes voltadas aos Orixs e sua mitologia. A ltima parte envolve os

    questionamentos mais especficos sobre a alimentao, as oferendas, o que cada Orix come

    e o que no come, sobre o efeito das quizilas (tabus alimentares) e sobre o ritual de iniciao.

    Essa a parte mais longa da entrevista, visto que o foco da pesquisa.

    O contato com as casas de Candombl foi feito de vrias maneiras. Por indicao de

    amigos e conhecidos, com a ajuda da Cebras, rgo que regulamenta os Terreiros de Curitiba

    e com o resultado de uma pesquisa feita para a Fundao Cultural de Curitiba20 da qual

    participei e tive acesso a uma listagem de Terreiros de Umbanda e Candombl. Cada

    entrevista foi marcada previamente, normalmente antecedida de uma visita que explicava o

    projeto.

    A histria de vida dos Pais-de-Santo contatados tem muito em comum. Suas

    entrevistas revelam que a maioria deles natural de outras regies do Brasil e estabeleceram

    suas casas em Curitiba, por volta dos anos 80 e 90, com alguns problemas devido ao

    preconceito. Conheceram a religio por meio da famlia ou de pedidos feitos a outros Pais-de-

    Santo, mais freqentemente para cura de doenas.

    Na segunda parte, os entrevistados esto um pouco mais vontade, j esqueceram a

    presena do gravador e esto mais seguros. Querem mostrar a casa para falar melhor sobre osOrixs. Contam algumas histrias que lhes foram repassadas. muito interessante observar as

    mesmas verses sobre o mesmo mito.

    Para Portelli, um mito no necessariamente uma histria falsa ou inventada; , isso

    sim, uma histria que se torna significativa na medida em que amplia o significado de um

    20 PRA VER A UMBANDA PASSAR: do esquecimento lembrana. Levantamento e mapeamento dos

    Terreiros umbandistas em Curitiba, como elementos constitutivos da memria cultural da cidade. Projetode Pesquisa. Fundao Cultural de Curitiba. Edital 016/ 2006 do Fundo Municipal da Cultura, Seleo doprojeto na rea de patrimnio imaterial.

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    acontecimento individual, transformando-o na formalizao simblica e narrativa das auto-

    representaes partilhadas por uma cultura.21 O contexto a que Portelli se refere muito

    diferente do qual se comenta aqui. No entanto, a definio sobre os mitos muito apropriada,

    j que so uma das bases teolgicas do Candombl.

    Os ritos, os sacrifcios, as festas, os transes so diferentes experincias da mesma

    mitologia. O pensamento mtico, totalmente alheio com pontos de partida ou chegada bem

    definidos, no efetua percursos completos: sempre lhe resta algo a perfazer 22. E a garantia

    da continuidade mtica est em sua performatividade. Mircea Eliade defende que

    a funo mais importante do mito , pois, fixar os modelos exemplares de todos os ritos e de

    todas as atividades humanas significativas: alimentao, sexualidade, trabalho, educao etc.Comportando-se como ser humano plenamente responsvel, o homem imita os gestos exemplares dosdeuses, repete as aes deles, quer se trate de uma simples funo fisiolgica, como a alimentao, querde uma atividade social, econmica, cultural, militar etc.23

    A terceira parte a mais complexa. Exige certa sensibilidade, pois as perguntas muitas

    vezes remetem a segredos da religio, s revelados a iniciados. Principalmente quando se

    pergunta sobre o ritual de iniciao, pouco se ouve. Basicamente o que se percebe que um

    tempo de purificao de preparao para uma nova vida, ento os alimentos so, na maioria,

    brancos, sem muito sal nem gordura. Sobre as oferendas e quizilas, os Pais-de-Santo falam de

    suas experincias pessoais, do que oferecem aos orixs e em qual ocasio e sobre o que no

    podem comer. Carlos Alberto Dria nos d exemplos quando escreve que

    enormes eram e so os preceitos e interdies que envolvem essa culinria [de santo]. Se dividiralimentos com os deuses traz-los para nossa vida atravs da mesa, por outro lado preciso observaros tabus alimentares de cada um. Azeite de dend nunca se oferece a Oxal, assim como mel vedadopara Oxssi e o carneiro no pode entrar nos espaos dedicados a Ians. Os filhos de santo estosocialmente obrigados a expressar as mesmas averses dos seus Orixs. 24

    Tais entrevistas pedem uma reflexo sobre a memria. O tratamento das fontes orais

    21 PORTELLI, Alessandro. O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana, 29 de junho de 1944): mito,poltica, luta e senso comum In: FERREIRA, M. de M.; AMADO, J. (Orgs.). Usos e abusos da histriaoral. Rio de Janeiro: FGV, 2005. p. 120-1.

    22 LVI-STRAUSS, Claude. O cru e o cozido (Mitolgicas vol. I). So Paulo: Cosac & Naify, 2004. p. 24.

    23 ELIADE, Mircea. O Sagrado e o profano: a essncia das religies. So Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 87.

    24 DRIA, Carlos Alberto. Estrelas no cu da boca: escritos sobre culinria e gastronomia. So Paulo: EditoraSenac, 2006. p. 220.

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    necessita de um cuidado muito grande, pois

    (...) a lembrana reaparece em funo de muitas sries de pensamentos coletivos emaranhados e porqueno podemos atribu-la exclusivamente a nenhuma, imaginamos que independente delas e

    contrapomos sua unidade a sua multiplicidade. como acreditar que um objeto pesado, suspenso no arpor uma poro de fios tnues e entrecruzados, permanea suspenso no vazio, e ali se sustenta.25

    E pensando em Halbwachs pode-se refletir sobre o interesse dos historiadores pelos

    estudos africanos ou afro-descendentes e a valorizao da cultura negra. A abertura dada pelos

    chefes de Terreiros para alguns intelectuais e pesquisadores, a rememorao desse objeto

    pesado, como diz Halbwachs, est sustentada por uma srie de atitudes da sociedade, como a

    luta contra o preconceito encabeada por lderes do movimento negro, as cotas nas

    universidades, projetos estudando quilombos, leis normatizando e garantindo a existncias da

    religies afro-brasileiras. Antnio Csar de Almeida Santos defende que as lembranas no

    vivem no passado, ao contrrio, precisam de um tempo presente de onde sejam projetadas e

    ancoradas por um sentido 26. Foge ao objetivo desse trabalho, julgar a inteno e a

    efetividade dessas sries de atitudes, mas elas esto envolvendo o ato de rememorao dos

    entrevistados para essa pesquisa. E esse campo de interesses est em constante renovao e

    crescimento. Em uma semana, pode-se observar duas grandes reportagens sobre as Religies

    afro-brasileiras em jornais de grande circulao. A primeira, da Gazeta do Povo do dia 20 de

    setembro de 2008, ocupa grande parte do Caderno G, tratando da Umbanda em Curitiba,

    explicando seus conceitos e destacando-a principalmente em funo do centenrio da

    Umbanda no Brasil27. O jornal Folha de So Paulo no deixou de lembrar o dia dos Ibejis, ou

    So Cosme e Damio. Dia 27 de setembro o dia em que os Terreiros se organizam na

    distribuio de balas e doces, alm do preparo do Caruru tradicional dos Santos gmeos. no

    Caderno Ilustrada da Folha de So Paulo do dia 25 de setembro de 2008 que pode ser

    encontrada uma reportagem, ento, sobre a comida tradicional oferecida aos Ibejis, e tambmuma ateno especial ao assunto da mesa com os Orixs 28. Essa reportagem faz referncia a

    comida de todo os Orixs, no se limitando apenas aos Ibejis.

    25 HALBWACHS, M. A Memria Coletiva. So Paulo: Centauro, 2006. p. 70.

    26 SANTOS, Antnio Cesar de Almeida. Fontes orais: testemunhos, trajetrias de vida e histria.Comunicao apresentada Mesa Redonda A produo historiogrfica e as fontes orais, no Eventocomemorativo do Sesquicentenrio do Arquivo Pblico do Paran, em Curitiba, em abril de 2005. p. 3.

    27 GAZETA DO POVO, Curitiba, 20 set. 2008, Caderno G. p. 1-3.

    28 FOLHA DE SO PAULO, So Paulo, 25 set. 2008, Caderno Ilustrada. p. 5.

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    Com base nisso, pode-se pensar um pouco sobre as discusses feitas sobre a histria

    do tempo presente, ou histria imediata, e suas relaes com as fontes orais. O campo de

    pesquisa to recente quanto a prpria temporalidade que se prope a estudar, a histria do

    tempo presente precisa de suas bases epistemolgicas e cientficas mais bem definidas. E sua

    ligao com as fontes orais e outros tipos de fontes como as miditicas inevitvel. Agns

    Chauveau e Philippe Ttart, no primeiro captulo homnimo do livro Questes para a histria

    do presente29, direcionam o objeto da histria do tempo presente para o cenrio poltico e

    fazem entender que o estudo da poltica renasceu a partir da histria prxima e dos

    acontecimentos monstruosos do sculo XX. O estudo sobre a Comida-de-Santo na cozinha

    dos homens pode ser encaixado sim nessa histria prxima, j que lida com memrias de

    pessoas vivas que reorganizam e ressignificam tais mitos e tais prticas alimentares.

    Alm das entrevistas, foi utilizada como fonte a coluna Umbanda (que passou a ser

    chamada de Umbanda/Candombl) do Dirio do Paran, assinada por Dirce Alves. Essa

    coluna foi publicada diariamente, a partir de 19 de janeiro de 1978, com exceo das

    segundas-feiras, dia em que tambm no se publicava o jornal. Tratava de assuntos cotidianos

    do Candombl e da Umbanda em Curitiba e no Paran, assim como reflexes, notcias de

    festas, iniciaes, visitas e muitas vezes tratava de fundamentos dessas religies. Em

    novembro de 1979, a coluna volta a ter o seu nome original Umbanda e foi publicada com

    esse ttulo at 15 de dezembro de 1979.

    A anlise das entrevistas realiza-se no ltimo captulo, em que se apresenta os

    entrevistados, as suas funes dentro das casas de Candombl e suas falas, entrecruzando-as

    com mitos retirados da bibliografia sobre o assunto, com foco evidente para o assunto da

    alimentao. As partes destacadas e comentadas so aquelas que permitem enxergar as

    prticas religiosas e a tradio familiar e comunitria relacionadas com o Candombl comoreguladoras e influentes no gosto e nos hbitos alimentares dos entrevistados.

    Para contextualizar o que ser discutido nas anlises, o segundo captulo dedicado a

    explanao sobre o Candombl como religio, um pouco de suas origens, a influncia que a

    cultura brasileira carrega graas a seus fundamentos, sua relao com o cotidiano dos

    praticantes, mais especificamente, a ligao explcita que o Candombl tem com o alimento.

    A esfera do sagrado no se restringe apenas aos Terreiros, sendo isso visvel nas ruas,

    encruzilhadas, matas, locais de oferendas, feiras de rua onde h barraquinhas de baianas, nas

    29 CHAUVEAU, Agns. Questes para a histria do presente. Bauru: Edusc, 1999.

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    quais qualquer um pode comer um Acaraj mesmo sem saber que come um bolinho de Ians.

    O Candombl foi escolhido como objeto desta pesquisa por diversas razes. Em

    primeiro lugar, a curiosidade e a vontade da pesquisadora em conhecer uma religio tocomum no Brasil. Tambm pelo interesse em conhecer como o Candombl se configura em

    Curitiba, uma cidade em que os negros e sua influncia foram, de certa maneira,

    invisibilizados. Curitiba desperta interesse pela influncia marcante da Umbanda se

    comparada ao Candombl, segundo informaes obtidas na Cebras. Em entrevistas-piloto

    feitas no incio da pesquisa, foram visitadas tendas tanto de Umbanda quanto de Candombl e

    tambm casas onde as duas religies estavam presentes. As casas exclusivamente de

    Umbanda foram deixadas de lado, escolhendo-se apenas as de Candombl, mesmo que com

    presena da Umbanda.

    A mistura de influncias, encontrada nos Terreiros de Curitiba, pode ser reparada no

    seguinte texto da Coluna Umbanda de 28 de janeiro de 1978.

    Num rpido apanhado, temos Terreiros [de Umbanda] com forte influncia do Candombl,predominando os trajes vistosos e de cores variadas; o uso de instrumentos consagrados, sacrifcio deanimais, em ocasies propcias; o ritual com protagonistas a danarem; e algo no linguajar Nag. OutrosTerreiros nota-se nitidamente a influncia do catolicismo. Aos pontos cantados e riscados, parte do

    ritual umbandista, junta-se a devoo aos Santos Catlicos e s oraes mais comuns; s vezes como asreais novenas. Em grande nmero de Terreiros patente a influncia esprita. So estudadas e lidas asobras de codificaes complementares. Antes das Sesses ler a leitura do Evangelho segundo oespiritismo com a conseqente interpretao. Logicamente, tudo isso vai misturado com a ritualsticapredominante nos cultos umbandistas. Mas o sincretismo no termina a, pois existem templos onde semistura a estas prticas os conceitos doutrinrios do milenar ocultismo.30 (sic)

    A colunista ainda no cita a influncia da religiosidade indgena. Pode-se ter uma

    noo mais atual da diversidade nas religies afro-brasileiras em Curitiba, especialmente na

    Umbanda, assistindo ao filme Pra Ver a Umbanda Passar, resultado da pesquisa j

    mencionada na nota 20 desta seo.

    O ltimo e mais importante motivo para a escolha do Candombl como objeto o que

    o liga ao tema, essncia deste trabalho. A alimentao, as oferendas, os tabus so base

    fundamental da religio, sendo a cozinha do Terreiro um dos lugares de maior importncia e

    segredo, assim como a cozinheira, Iy-bass, uma das pessoas da religio que possui mais

    conhecimento e se dedica em tempo praticamente integral preparao das Comidas-de-

    30 ALVES, Dirce. A umbanda vista por fora. Dirio do Paran, (coluna Umbanda), Curitiba, 28 jan. 1978.

    Caderno 2. p. 6.

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    Santo.

    A alimentao de forma geral discutida no primeiro captulo em que construda a

    base terica para o trabalho. Nessa parte, a Histria e Cultura da Alimentao sero discutidasde forma ampla e em relao a suas vrias conexes. Para esta pesquisa, uma das conexes

    mais importantes feita com a memria, tanto uma memria coletiva composta pelos

    membros do Candombl o que levar ao que se chama de memria mtica, quanto memria

    gustativa, que faz com que o gosto alimentar seja um processo histrico.

    De um lado, este trabalho foca seu objeto sob a ptica da memria gustativa e da

    formao do gosto alimentar de um grupo muito especfico. E essa memria do gosto, que faz

    escolher determinados produtos e no outros, que faz apreciar certos alimentos e desprezar

    outros, pode ser estudada fazendo a ponte com a religio, com o Candombl e com sua

    mitologia. Mitos que a tradio oral se incumbiu de repassar, ressignificar e preservar. Essa

    memria no pode ser datada por esta pesquisa, ento se trabalha com uma cronologia fluida

    para estud-la. Trabalha-se com o tempo da cultura, em que as transformaes so lentas e as

    continuidades superficialmente predominam. De outro lado, as fontes encontradas no Dirio

    do Paran nos anos de 1978 e 1979 e as entrevistas realizadas nos anos de 2006 a 2008

    permitem estabelecer a cronologia de trabalho. Os trinta anos propostos, ainda que com umimenso vazio entre as balizas cronolgicas, permitem estudar a formao da memria

    gustativa nos grupos de Candombl em Curitiba e as transformaes e construes das

    religies afro-brasileiras nessa localidade.

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    1HISTRIADAALIMENTAOREVISITADA

    No comer carne nos torna vegetarianos. No poder comer porco pode nos identificar comojudeus. Tomar milk-shake e comer hambrguer nos faz parecer adolescentes. Almoar no bif

    por quilo nos caracteriza como brasileiros. Degustar um foie gras nos faz chiques. No comer

    foie gras em sinal de protesto ao tratamento dado aos gansos que morrem de tanto comer, nos

    torna defensores dos animais. Podemos tambm no comer foie gras por comer midos.

    A alimentao nos mostra muito de quem somos, no que acreditamos. Revela que as

    pessoas vivem em uma determinada sociedade, em uma comunidade. O que elas comem, ou o

    que elas no gostam e ainda o que devem ou no comer reflexo dessa sociedade e pode ser

    encarado como um caminho para entend-la. E o quarto aforismo de Brillat-Savarin j

    defendia, no sculo XVIII, que estudando a alimentao pode-se entender o homem: Dize-

    me o que comes e te direi quem s.1

    Pesquisadores da alimentao, socilogos, antroplogos e mais recentemente os

    historiadores tinham sempre como preocupao afastar a idia de que o importante ao comer

    so apenas os nutrientes. Comer no apenas o ato nutricional e o saciar da fome e da sede,

    pois bebidas tambm so alimentos e carregam em si valores simblicos e nutricionais, so

    atos sociais. Pensando nessa questo luz das cincias humanas Roland Barthes se questiona

    quest-ce que cest la nourriture? Ce nest pas seulemente une collection de produits, justiciablesdtudes statistiques ou dittiques. Cest aussi et en mme temps un systme de communication, uncorps dimages, un protocole dusages de situations et de conduites. Comment tudier cette realitalimentaire, largie jusqu limage et au signe? Les faits alimentaires doivent tre recherchs partouto ils se trouvent: par observation directe dans lconomie, les techniques, les usages, lesreprsentetions publicitaires; par observation indirecte, dans la vie mentale dune population donne.2

    Barthes mostra que a refeio no se limita ao momento que as pessoas comem, nem

    ao seu preparo, mas inclui as escolhas de produtos e no que essas escolhas so baseadas, o

    1 BRILLAT-SAVARIN, Jean- Anthelme. A fisiologia do gosto. So Paulo: Companhia das Letras, 1995. p.15.

    2 BARTHES, Roland. Pour une psyco-sociologie de lalimentation contemporaine. In: HMARDINQUER,Jean-Jacques (Org.). Cahier des Annales (28). Paris: Librarie Armand Colin, 1970. p. 309. O que aalimentao? No somente uma coleo de produtos, justificao para estudos de estatstica e dieta. tambm e ao mesmo tempo um sistema de comunicao, um corpo de imagens, um protocolo de usos, de

    situaes e de condutas. Como estudar esta realidade alimentar, alargada, chegando imagem e ao signo? Osfatos alimentares devem ser pesquisados onde eles estiverem: por observao direta da economia, dastcnicas, dos usos, das representaes publicitrias; por observao indireta, da vida mental de uma dadapopulao.

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    modo de se comportar mesa, os diferentes cardpios para as diferentes ocasies, o

    significado dessas ocasies, a escolha dos comensais e a memria gustativa que construda.

    Carlos Roberto Antunes dos Santos, ento, vai alm de Savarin quando afirma que to

    importante quanto o que se come quando se come, com quem se come, como se come.3

    Passou-se a perceber, ento, o gosto, neste caso alimentar, como uma categoria

    histrica. Ou seja, o que apreciado e at comestvel4 pode ser passvel de ser estudado

    historicamente. E sobre esse tipo de problemtica que os pesquisadores da comida, nesse

    caso em especial os historiadores, se debruam ao realizarem suas pesquisas.

    Porm, nem s de historiadores vivem os estudos da alimentao. Este primeiro

    captulo se dedica a debater um pouco sobre o interesse a respeito dos hbitos alimentares nas

    cincias humanas. Para isso, o texto ser divido em trs partes. A primeira seo trata

    brevemente do incio das pesquisas sobre a alimentao sob o foco do social e tambm como

    essas pesquisas se desenvolveram na Europa, em especial na Frana. Quatro autores e suas

    obras so destaque nessa parte. Massimo Montanari e Jean-Louis Flandrin com a obra A

    Histria da Alimentao5, uma coletnea de artigos que tratam da alimentao desde a pr-

    histria at o que os autores chamam de Imprio McDonalds. Tambm Claude Fischler com o

    livro L'Homnivore6, cujo subttulo j diz, um tratado sobre o gosto, a cozinha e o corpo. Eainda Jean-Pierre Poulain com Sociologias da Alimentao7. Os trs livros foram escolhidos

    pois tm discusses bsicas e definies de conceitos importantes para qualquer interessado

    nos estudos da alimentao.

    A segunda parte foca os estudos da alimentao no Brasil com autores da primeira

    metade do sculo XX. Esses autores abriram caminho para que discusses mais aprofundadas

    na Histria e Cultura da Alimentao pudessem ser realizadas e at mesmo para que esse

    campo historiogrfico se formasse. Destacam-se trs autores que trataram a alimentao como

    3 SANTOS, Carlos Roberto Antunes dos. A alimentao e seu lugar na histria: os tempos da memriagustativa. Histria: Questes e debates, Curitiba, n. 42, p.11-31, jan./jun., 2005. p. 13.

    4 Discusso feita por FISCHLER, Claude. L'Homnivore: le got, la cuisine et le corps. Paris: ditions OdileJacob, 1993. p. 25-37.

    5 FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. Histria da Alimentao. So Paulo: EstaoLiberdade, 1998.

    6 FISCHLER, C. Op. Cit.

    7 POULAIN, Jean-Pierre. Sociologias da alimentao: os comedores e o espao social alimentar.Florianpolis: Ed. da UFSC, 2004.

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    foco principal de seus trabalhos, Josu de Castro, Gilberto Freyre e Luis da Cmara Cascudo.

    O terceiro subcaptulo trata das pesquisas mais recentes sobre a comida e a formao

    de um ncleo de estudos sobre esse assunto na Universidade Federal do Paran. Nessa parte, ofoco a alimentao e suas conexes, em que se demonstra a alimentao como um tema

    transdisciplinar, no s abrangendo diversas reas como as unindo. Est localizada nesse

    grupo a presente pesquisa que tem como proposta a conexo entre a alimentao e a religio.

    1.1 HISTORIOGRAFIA DA ALIMENTAO

    O interesse pelo estudo da alimentao existe desde que o homem comeou a refletir

    sobre a importncia do que se come. Porm, o estudo do comer nas cincias humanas tem

    pouco mais de um sculo.

    Dentro do campo da Histria, as primeiras referncias a essa nova possibilidade de

    pesquisa se encontram em Lucien Febvre e Marc Bloch, este tratando de transformaes de

    regimes alimentares e aquele discutindo sobre a distribuio de gorduras utilizadas nas

    cozinhas da Frana. Porm, antes da preocupao com a alimentao se difundir entre oshistoriadores, alguns pesquisadores de outras reas j tinham se envolvido com o tema. Como

    o caso dos antroplogos, que desde o sculo XIX se empenharam em desenvolver uma

    etnografia dos hbitos alimentares e em buscar interpret-los culturalmente.8 A Antropologia

    e a Sociologia cobriram temas como as desordens alimentares, as diferenas nas dietas

    quando comparadas nas diversas classes, gneros, nacionalidades , os simbolismos ligados a

    alimentao, principalmente na esfera religiosa, os avanos da tecnologia alimentar e ainda o

    consumo e suas vrias interfaces. A Histria foi fortemente influenciada por essas pesquisas

    quando ingressou na corrente da interdisciplinaridade.

    A cole des Annales tem papel fundamental no desenvolvimento desse novo tema de

    pesquisa. Braudel teve sua importncia quando situou a alimentao, juntamente com o

    vesturio e a habitao dentro do conceito de cultura material. Percebia os hbitos alimentares

    como escolhas perdidas no tempo da longa durao, em que os prprios afetados no podiam

    ter conscincia delas.

    8 MENESEZ, Ulpiano T. Bezerra; CARNEIRO, Henrique. Histria da alimentao: balizas historiogrficas.In: Anais do Museu Paulista - Histria e Cultura Material. So Paulo: Nova Srie, v. 5, p. 9-91, jan./dez.,1997. p. 19.

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    J na fase de transio da segunda para a terceira gerao de tal escola historiogrfica,

    a alimentao entra cada vez mais em destaque. Em 1970, um nmero inteiro da Revuedes

    Annales lanado e dedicado pour une histoire de l'alimentation9, com abertura de Braudel

    falando do estudo da alimentao possvel nas vrias duraes. Nesta revista pode-se perceber

    a unio das trs geraes. J tendo o representante por excelncia da segunda gerao

    Braudel a revista ainda conta com dois artigos do autor da primeira gerao Marc Bloch, o

    primeiro sobre a alimentao na Frana antes do sculo XIX, sculo este, considerado pelo

    autor, de tendncia a uniformizao da alimentao em toda a escala social e o segundo artigo

    sobre o sal. Como representante da terceira gerao, pode-se identificar Jean-Paul Aron, autor

    do artigoBiologie et alimentation l'aube du XIXme sicle.

    Como marco da terceira gerao, pode-se citar a trilogia Faire l'Histoire, em que a

    alimentao est presente tambm no volume intitulado em portugus Histria: novos

    objetos. O artigo Cozinha: um cardpio do sculo XIX, que tem autoria de Jean-Paul Aron,

    traz tona a discusso do tratamento das novas fontes e como trat-las. Aron defende que a

    alimentao

    objeto que deve ser abordado sob uma nova tica, se verdade, que nos foi entregue fisicamente em seuprprio enunciado, que no nos promete seno o que nos d, que o saber que aprendemos dele envolve,

    numa sntese nica, sua evidncia e suas sombras. Tal como esses nomes de regies que pontuam amemria do Narrador de Proust e cativam-nos sem referncia aos modelos que reproduzem Bayeux,Coutances , palavras-objetos que desabrocham por autarcia no tecido da obra, o objeto-documento dahistria culinria no aparece nem formalizado, material inerte e vazio de sua substncia, nem poeirentosob a vestimenta erudita dos documentos histricos. Ele vivo, e no crescimento de sua vida prpria uma histria total que desenrola10.

    Assim, essa nova forma de considerar os documentos e analis-los, possibilita que

    estudos a respeito de assuntos ainda no tratados se desenvolvam. Santos defende que desta

    forma, a histria do cotidiano e das mentalidades vai dar consistncia aos estudos dasensibilidade alimentar, do gosto, da gastronomia.11

    nesse contexto, principalmente francs, que vai nascer algumas das mais importantes

    discusses sobre a Histria e Cultura da Alimentao, que servem como base para o estudo da

    9 HMARDINQUER, J-J. (Org.). Cahier des Annales (28). Paris: Librarie Armand Colin, 1970.

    10 ARON, Jean-Paul. A cozinha: um cardpio do sculo XIX. In: LE GOFF, J.; NORA, P. Histria, novos

    objetos. Rio de Janeiro: F. Alves, 1974. p. 161.

    11 SANTOS, C. R. A. dos. A alimentao e seu lugar na histria: os tempos da memria gustativa. Histria:Questes e Debates, Curitiba, n. 42, pp.11-31, jan./jun., 2005. p. 14.

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    comida e suas diversas relaes.

    O primeiro caso tratado o grande compndio chamado Histria da Alimentao. Para

    Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari, responsveis pela organizao de tal livro, oshbitos alimentares e tudo o que gira ao seu redor,

    embora dem a impresso de serem estticos em relao a outros fenmenos histricos acontecimentos ou ciclos conjunturais evoluem num tempo muito mais lento, o longo tempo dasestruturas, como bem salientou Fernand Braudel. Deixemos de lado a idia de que o cotidiano no temhistria, de que tudo, desde sempre, foi igual ao que conhecemos atualmente. Na realidade, os gestos dodia-a-dia transformam-se, junto a tudo aquilo que esto relacionados: as estruturas do cotidiano deixam-se surpreender pela histria. Durante sculos, os gregos, depois os romanos da Antiguidade,banquetearam-se deitados; mas, desde a alta Idade Mdia, os ocidentais abandonaram essa posio,passando a comer sentados. Ora, essa mudana de postura no pode ser dissociada das transformaesque lhe foram simultneas: tornado livre a mo esquerda, a posio sentada permite trinchar os grandesassados sangrentos, com facas que, a essa poca, aparecem mesa. E, certamente, no foi tambm poracaso que esses comedores de carne a ser trinchada, que tinham as duas mos livres, esses habitus demesas e cadeiras altas, inventaram tambm o garfo. Tampouco foi por acaso que o garfo s se tornouum utenslio de mesa depois da peste negra, entre os sculos XIV e XVIII, poca em que os europeusaumentaram a distncia entre os comensais pela generalizao do uso de pratos, copos e talheresindividuais.12

    Com Histria da Alimentao, Flandrin e Montanari querem divulgar trinta anos e

    mais de oitocentas pginas de pesquisas de vrios autores. Para tanto, usam a ordem

    cronolgica como diviso do livro os seus sete grandes captulos vo desde a pr-histria ata contemporaneidade , mas o foco da obra sua diviso temtica, usando sim a cronologia

    para mostrar o processo lento das transformaes dos hbitos e prticas alimentares.

    Pelos estudos das eras pr-histricas e das primeiras civilizaes, os autores observam

    grandes transformaes que envolvem a esfera da alimentao humana. Com relao aos tipos

    de alimentos consumidos, chegou-se a concluso de que o carter onvoro do homem sempre

    existiu, com pocas de maior nfase carne e outras com domnio dos vegetais. Sem dvida,

    a grande revoluo no sentido do consumo a prtica da agricultura e da pecuria. Essas

    prticas permitem o incio da sedentarizao de grupos humanos, aumento da taxa de

    natalidade e certa segurana na quantidade de alimentos consumidos diariamente. O modo de

    preparo e as tcnicas de cozinha se que se pode falar em cozinha propriamente dita

    tambm passaram por grandes variaes com a dominao do fogo. E, ainda, com as

    primeiras civilizaes, os primeiros banquetes transformaram as relaes sociais do homem

    com a comida.

    12 FLANDRIN, J-L.; MONTANARI, M. Histria da Alimentao. So Paulo: Estao Liberdade, 1998. p. 15-6.

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    O mundo clssico caracterizado pelo sentimento de distino entre civilizados, ou

    seja, os gregos ou romanos, e brbaros. A trade po, vinho e azeite representante da

    antiguidade clssica mesmo sendo uma idealizao de frugalidade e de civilizao. Os trs

    elementos dependem de cultivo, tcnicas de fabricao e possuem rituais de consumo. O

    banquete e o symposion so os smbolos de reunio em torno da comida e da bebida que

    marcam mais uma vez a civilizao. A reunio de vrias pessoas para repartir o alimento traz

    consigo a sociabilidade e os sinais da convivncia por meio da etiqueta e rituais que precisam

    ser conhecidos e seguidos. A distino entre civilizados e no civilizados se d tambm pelo

    domnio da agricultura que garante alimentos s cidades e evita o consumo de carnes,

    principalmente as de caa, dedicadas aos sacrifcios aos deuses, reafirmando o ideal de

    frugalidade em contrapartida idia de insaciabilidade e exageros dos povos brbaros. Porltimo, a cozinha do mundo clssico estava ligada ao conceito de diettica, era quase

    medicinal e indicava alimentos diferentes a pessoas de diferentes idades, tipos fsicos, sexo e

    atividades.

    O espao de tempo que faz a transio do mundo clssico para a idade mdia

    tambm onde se encontram tenses das prticas alimentares. Com o fim do imprio romano, a

    trade po, vinho e azeite entrava em disputa com a caa de animais, a colheita de frutas

    silvestres, a criao de rebanhos em semi-liberdade. Encontrava-se tambm a nova trade

    composta por carne, leite e manteiga. O cristianismo era um dos elementos dessa tenso j

    que preservava os ideais romanos, em certa medida, e tornava sagrado o po como corpo, o

    vinho como sangue de Cristo e o azeite como a uno benta. O sacrifcio grego, de animais

    em homenagem aos deuses, substitudo pelo sacrifcio de Jesus pelos homens.

    A Idade Mdia tambm foi uma poca de tenses alimentares. O poder exercido pela

    f, e fs diferentes, refletiu em uma poca em que os hbitos alimentares iam sendoconstrudos, afirmados e transformados, sofrendo mutaes lentas, porm constantes. O

    domnio cristo na grande extenso da Europa era influenciado por regies de dominao

    judia e muulmana, bem como fazia sentir sua presso. As rotas comerciais, as invases

    rabes e as cruzadas foram eventos que aos poucos miscigenaram culturas, trocaram

    experincias, misturaram produtos. Em especial o fim da Idade Mdia conta com contradies

    progressivas baseadas na oposio campo/cidade, que d origem a novos pares opostos como

    citadinos/camponeses, carne de carneiro/carne de porco, po de trigo branco/po preto devrios cereais, carnes frescas/carnes salgadas. O desejo de reconhecimento ao pertencimento a

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    uma dessas categorias faz com que a inveno das boas maneiras, se [cristalize] aos poucos

    em meados da Idade Mdia na corte e na cidade [e sirva] para determinar culturalmente os

    domnios do privilgio, definindo-os tanto em seus contedos quanto em suas formas. 13 A

    mesa, a refeio, o consumo e o modo de consumir determinados produtos so usados como

    distino e elevao social.

    As grandes navegaes e a descoberta do novo mundo foram fatos que marcaram

    convencionalmente a chegada da modernidade Histria. Tambm a troca cultural com novas

    terras, novos povos e novos produtos foram caractersticas significativas dessa poca. E,

    apesar de alguns produtos demorarem a entrar nas mesas europias, o chocolate, o acar e o

    caf foram bem aceitos e consumidos. Na Europa o aumento populacional exigia cada vez

    mais que a agricultura abandonasse definitivamente seu carter de subsistncia para se tornar

    uma prtica de abastecimento, em especial no que diz respeito ao cultivo de trigo. A inveno

    e difuso da prensa permitiram uma Europa mais voltada leitura e a divulgao de livros de

    receitas, com destaque para a cozinha francesa.

    A contemporaneidade foi marcada na rea da alimentao, justamente pelo fenmeno

    da revoluo industrial, pelo desenvolvimento das indstrias alimentares. Este fenmeno

    trouxe consigo o maior xodo rural da histria e desenvolvimento desenfreado das cidades. Oritmo de vida e de trabalho acelera e se procura cada vez mais por uma alimentao rpida e

    prtica, principalmente com a necessidade do trabalho das mulheres fora de casa. Os

    restaurantes passam, ento, a ter mais do que a funo social de destacar os seus

    freqentadores como membros importantes da sociedade, mas tambm a funo de alimentar

    cotidianamente uma clientela cada vez mais numerosa de homens e mulheres que deixaram de

    fazer as refeies em casa porque j no existe algum para prepar-las ou porque trabalham

    muito longe de casa14

    . Sem dvida, o sculo XX o sculo das contradies e a alimentaoreflete isso de forma clara. Por muito tempo se valorizou o fast-food at que se criou o

    movimento do slow-food. O sculo mais urbano da histria comeou a valorizar a

    alimentao rural. A grande produo de frangos fez com que essa carne se tornasse mais

    barata e acessvel, porm sem gosto. As frutas apresentam aparncia impecvel; escapam dos

    13 FLANDRIN, J-L.; MONTANARI, M. Histria da Alimentao. So Paulo: Estao Liberdade, 1998. p.

    385.

    14 Ibid. p. 701.

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    insetos e doenas, mas no dos inseticidas.15 Nunca se produziu tanta comida e a fome

    continua e o colesterol aumenta.

    Enquanto Flandrin e Montanari se preocuparam com questes bem concretas, pois tmcomo objetivo apresentar a alimentao em vrias pocas, outros pesquisadores se preocupam

    com questionamentos tericos e apresentao de conceitos. Um exemplo disso Jean-Pierre

    Poulain. Atualmente professor da Universidade de Toulouse Le Mirail, Poulain se

    aventurou primeiro pelo mundo da cozinha para depois ser introduzido no mundo dos estudos

    da cozinha. Vindo de uma famlia de produtores de presuntos, lingias e embutidos,

    profissionalizou-se na rea de hotelaria e atuava na parte de cozinha, inclusive apostando no

    trabalho de sua estruturao, montagem e melhoria. Porm, sua vida como um profissional da

    prtica da cozinha no estava completa. Procurando a parte mais analtica da alimentao foi

    at Edgar Morin, quem orientou seu doutorado. Transferiu, ento, para a Sociologia sua

    preocupao com a alimentao e, como reflexo, uma de suas obras chama-se Sociologias da

    alimentao: os comedores e o espao social alimentar16.

    Esse livro se prope a tratar da sociologia da alimentao fazendo um apanhado de

    conceitos e movimentos j ocorridos para colocar em discusso a formao desse novo campo

    de pesquisa. Tem o objetivo de esmiuar a sociologia dos comedores e o espao socialalimentar, peas chaves para entender o mtodo de anlise da sociologia da alimentao.

    O autor, aps passar por uma reviso das teorias sociolgicas e por uma reflexo sobre

    a alimentao, apresenta a proposta de trs possibilidades para a formao do campo da

    sociologia da alimentao.

    A primeira delas vem baseada no estudo do consumo. Com a criao, na Frana, de

    rgos preocupados com a nutrio e o gasto das famlias com a alimentao, pesquisas decunho quantitativo foram feitas, portando grande nmero de dados foram analisados de forma

    estatstica e sociolgica. Essas pesquisas foram feitas com mais de dez mil famlias de baixa

    renda que preenchiam formulrios sobre o seu consumo alimentar. Chegou-se a concluso que

    as famlias mais carentes eram as que gastam mais com alimentao, medindo-se

    proporcionalmente os salrios.

    15 FLANDRIN, J-L.; MONTANARI, M. Histria da Alimentao. So Paulo: Estao Liberdade, 1998. p.

    706.

    16 POULAIN, J-P. Sociologias da alimentao: os comedores e o espao social alimentar. Florianpolis: Ed.da UFSC, 2004.

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    Ainda dentro da perspectiva da sociologia do consumo, Poulain estuda as mudanas

    ocorridas quando as mulheres se vem foradas a sair para trabalhar e as cozinhas domsticas

    ficam vazias. Os alimentos adquirem caractersticas de praticidade, facilidade e rapidez, e os

    gastos familiares com as refeies realizadas fora de casa ganham maior volume.

    Da anlise do consumo, Poulain ainda trata da sociologia do gosto, cuja autoria se

    deve a Bourdieu e sua noo de habitus. O gosto diferente nos diferentes grupos sociais. O

    que mais aceito por um grupo o que mais se consome, o mais gostoso o que se est

    habituado a ingerir. As classes sociais mais abastadas se diferenciam pelos alimentos, locais e

    modos de consumo que so inacessveis s classes desprivilegiadas.

    A segunda possibilidade de construo do campo da sociologia da alimentao se d

    no vis desenvolvimentista. Os socilogos que so enquadrados nessa classificao procuram

    pensar a mudana e de uma certa maneira as relaes entre o social, o psicolgico e o

    corporal referindo-se aos trabalhos de Elias.17 Esse grupo foca seus trabalhos nas

    modificaes dos hbitos alimentares e prticas rituais por meio de processos sociais, como

    o caso da colonizao e da globalizao. Dentro do desenvolvimentismo aparece ainda um

    grupo que justifica o cultural pelo material, cujo principal representante Marvin Harris. Para

    Harris, os tabus alimentares se justificam todos por razes ecolgicas ou higinicas, ou seja,pela explicao funcional e adaptativa. Segundo Poulain, num plano sociolgico, a principal

    crtica que se pode enderear tese de Harris de desprezar os processos de diferenciao

    social.18

    A sociologia da alimentao conta com o terceiro movimento para seu

    desenvolvimento, como destaca Poulain, a sociologia do comedor. Sua filiao a esse tipo de

    anlise sociolgica da alimentao evidente, pois Edgar Morin, seu orientador, um de seus

    fundadores. o movimento de anlise que, engloba, herana de Mauss, as vrias dimenses

    da alimentao, seja ela social, biolgica ou psicolgica. Claude Fischler um dos

    intelectuais fundamentais para essa corrente. Com sua tese, tambm sob orientao de Morin,

    chamada LHomnivore, a alimentao deixa de ser um dos mostradores e afirmadores da

    construo das identidades sociais para ser o seu centro. Coloca o gosto como a articulao

    17 POULAIN, J-P. Sociologias da alimentao: os comedores e o espao social alimentar. Florianpolis:Ed. da UFSC, 2004. p. 188.

    18 Ibid. p. 192-3.

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    dos componentes sociolgicos, psicolgicos e biolgicos da alimentao.19

    O homem, ou melhor, o onvoro, constitudo em sua estrutura de comedor por trs

    segmentos. O pensamento classificatrio, primeiro deles, onde a necessidade biolgica decomer encontra-se inserida num sistema de valores.20 Ou seja, diante da natureza e suas

    opes de alimentos, o homem escolhe um sistema de valores para classificar o que ou no

    comida.

    O pensamento classificatrio est essencialmente articulado ao princpio de

    incorporao segundo segmento , no qual o homem se torna o que come tanto fisiolgica

    quanto psicologicamente. O canibal incorpora os valores, a moral e as qualidades de sua

    vtima. Porm, mesmo que no seja o objetivo, ao mesmo tempo incorpora vitaminas,

    protenas, sais minerais, enfim, componentes nutricionais. A renovao diria do corpo e a

    continuidade da vida conseguida com a ingesto de alimentos fazem o homem ser o que

    come.

    O terceiro segmento aquele que restringe a ateno do onvoro de uma gama infinita

    de possibilidades alimentares a um sistema culinrio. mais um marcador cultural das

    preferncias e hbitos alimentares dos comedores, que abrange a rea das tcnicas, dos modos

    de preparo e do modo de consumir os alimentos.

    Com relao ao conceito de espao social alimentar, Poulain apresenta-o pela funo

    de dar conta das relaes entre natureza e cultura. O espao social alimentar do homem

    localiza-se tanto nas suas necessidades nutricionais que o aprisionam diversidade e ao meio

    geogrfico, quanto na sua capacidade escolha diante dessa diversidade e na capacidade de

    transformao do meio-ambiente. O espao social alimentar pode ser observado em suas

    vrias dimenses, sendo a primeira definida como o espao do comestvel. a constatao deque as diversas culturas refletem as escolhas feitas diante da gama de alimentos disponveis,

    ainda que todos tenham valores nutritivos. A simbologia depositada nos alimentos, que faz

    parte dessa dimenso, leva a sua aceitao ou rejeio dando bases para a formao da

    identidade alimentar de uma comunidade.

    O sistema alimentar, segunda dimenso, o caminho percorrido pelo artigo da

    19 POULAIN, J-P. Sociologias da alimentao: os comedores e o espao social alimentar. Florianpolis:Ed. da UFSC, 2004.p. 195.

    20 Ibid. p. 196.

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    produo at o consumo. So trs os elementos contidos nesse trajeto: as transformaes

    tecnolgicas ou biolgicas sofridas pelos alimentos, como o amadurecimento da fruta, o corte

    da carne ou ainda o enlatamento do milho; os lugares por onde passam, por exemplo os

    mercados ou restaurantes, a no ser que consistam em elementos de auto-consumo; as pessoas

    que o transportam, as quais agregam valor econmico, simblico e social. Essa dimenso est

    intimamente ligada terceira, a cozinha, que o autor define como o conjunto de operaes

    simblicas e de rituais que, articulando-se sobre as aes tcnicas, participam da construo

    da identidade alimentar de um produto natural e o tornam consumvel.21

    O espao dos hbitos de consumo alimentar, quarta dimenso, uma das que se

    observa a diferena entre culturas com mais facilidade. Trata-se das etiquetas e rituais ligados

    refeio, bem como seus horrios, utenslios e locais. Comer com o prato em cima da mesa

    em um jantar de gala, no cho sobre uma toalha xadrez em um piquenique, ou no sof em

    frente televiso revela diferenas possveis ligadas ao consumo alimentar e seus hbitos.

    A temporalidade alimentar, outra dimenso, envolve os ciclos naturais e culturais

    ligados s refeies. A refeio de domingo que diferente dos dias de semana, a alimentao

    da criana que se distingue da do adulto e do idoso. As pocas de jejum e as pocas de

    abundncia. Os alimentos que so consumidos de dia e os que pertencem noite.

    A ltima dimenso, o espao de diferenciao social, o mesmo daquele em que se

    podem diferenciar as culturas por meio da anlise dos hbitos alimentares, salvo que esse

    espao serve para destacar pessoas de uma mesma cultura. Por esses vrios aspectos

    destacados por Poulain, o homem visto pela sociologia do onvoro como um comedor

    plural. Plural porque na fluidez das regras culturais, que so assumidas inconscientemente, o

    comedor aprende a se reconhecer e a reconhecer o outro. Aprende tambm, na sociabilidade, a

    revelar as regras de formas originais em diferentes situaes.

    J citado por Poulain, Claude Fischler um dos nomes de grande contribuio para

    os estudos da alimentao, principalmente na questo que trata do gosto alimentar. Fischler,

    aps sua formao em direito e cincia poltica e seu doutorado em sociologia na

    Universidade de Paris, participa, na dcada de 1970, da criao do Groupe de Diagnostic

    Sociologique liderado por Edgar Morin. A partir de 1973, Fischler volta seus para a

    alimentao tendo a interdisciplinaridade como princpio bsico. LHomnivore seu livro que21 POULAIN, J-P. Sociologias da alimentao: os comedores e o espao social alimentar. Florianpolis: Ed.

    da UFSC, 2004. p. 257.

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    rene uma srie de trabalhos voltados para os hbitos alimentares e seus mecanismos de

    transformao, bem como a imagem social do corpo e a presena da cozinha nessas duas

    categorias. Atualmente, Fischler diretor de pesquisa do CNRS (Centre National de la

    Recherche Scientifique), co-responsvel do CETSAH (Centre dtudes Transdiciplinaires

    Sociologie, Anthropologie, Histoire) e participante da equipe de pesquisa de Lcole des

    Hautes tudes en Sciences Sociales.

    LHomnivore o livro de Fischler que trata das relaes do homem com o gosto, a

    cozinha e o corpo atravs da alimentao e lida com o fato do homem ser onvoro, ter ao seu

    dispor uma infinidade de alimentos e, ainda assim, selecion-los, escolh-los, descart-los. O

    gosto o reflexo claro das escolhas.

    Il existe des considrables diffrences entre les choix alimentaires des groupes culturels, entre ceux desclasses ou des categories quils contiennent. Ces diffrences sont sans doute de nature et doriginemultiples historiques, conomiques, symboliques, sociales, religieuses, etc. Mais quels sont lesmcanismes qui, lintrieur dune culture donne, dterminent la transmission, la rproduction etventuellement lvolution de ces choix alimentaires? Comment les individus intriorisent-ils les rglesculinaires au sens large, les taxonomies, le got de leur temps, de leur societ, de leur groupe? Dansquelle mesure, avec quelle latitude, le got collectif varie-t-il dun individu un autre?22

    Fischler coloca em questo a formao e a transformao do gosto alimentar; os

    mtodos e etapas necessrias para sua transmisso; os vrios nveis da variao ou

    permanncia do que se gosta, do que se habituou a comer, do que soa estranho ou repugnante.

    Inicialmente, o autor trata da questo biolgica e familiar. Descarta a afirmao do

    paladar resumido em apenas quatro sabores. Critica os autores que tratam o doce como sabor

    intrinsecamente mais apreciado que o amargo, em uma perspectiva que privilegia o paladar

    como resqucio de instintos da vida selvagem em que o amargo representaria produtos

    txicos, enquanto o doce lembraria a necessidade de grandes quantidades de caloriasencontradas nos itens que o possuem. Revela, porm a importncia da famlia nas preferncias

    individuais. A criana prefere o que est acostumada a ingerir, seja pelo leite materno, seja

    pelas escolhas feitas pela me na hora de aliment-lo ou na hora de preparar a comida para a

    22 FISCHLER, C. L'Homnivore: le got, la cuisine et le corps. Paris: ditions Odile Jacob, 1993. p. 91. Hconsiderveis diferenas entre as escolhas alimentares dos grupos culturais, entre as classes ou categorias queeles utilizam. Essas diferenas so, sem dvida, de natureza e origem mltiplas histricas, econmicas,simblicas, sociais, religiosas, etc. Mas quais so os mecanismos que, no interior de uma determinada

    cultura, determinam a transmisso, reproduo e eventualmente a evoluo das escolhas alimentares? Comoos indivduos interiorizam as regas culinrias em sentido amplo, as taxonomias, o gosto de seu tempo, de suasociedade de seu grupo? Em que medida, com qual latitude, o gosto coletivo varia de um indivduo para ooutro?

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    famlia o que leva o beb a uma memria olfativa e visual, alm da memria gustativa.

    Essa aprendizagem inter-geracional no se limita ao tipo de alimento consumido, mas

    inclui o quando e o modo de comer. A interiorizao das regras e normas que acompanham anutrio operada de forma cotidiana e lenta pela observao e repetio de rituais. A

    observao e interiorizao de hbitos alimentares tambm intra-geracional, sendo que des

    donnes de plus en plus concordantes montrent en effet que le facteur le plus important dans

    llargissement et la socialisation des gots alimentaires de lenfant est linfluence directe de

    ses pairs.23 Ento, as crianas e os jovens de forma geral so vistos ao mesmo tempo como

    reprodutores das regras sociais e como inovadores e transformadores dos hbitos alimentares,

    j que no os possuem bem formados.

    Partindo de um estudo com crianas, o autor afirmou que existe uma diferena dos

    gostos em diferentes idades. Apesar disso depender muito da experincia individual, a

    pesquisa mostrou que existem produtos que no so aceitos na infncia, como o caso de

    alimentos cujo gosto ou o cheiro so fortes por exemplo, queijos fortes, mostarda ou

    cebolas. Tambm constatou que existe uma diferena de gostos entre homens e mulheres.

    Tratando de forma geral, os homens gostam de refeies mais substanciosas e as mulheres de

    refeies mais frugais.

    Por ltimo, Fischler cita o fenmeno da neofobia, que a demonstrao individual das

    escolhas que os onvoros fazem. O habitual (o conhecido) preferido ao misterioso (o

    desconhecido).

    1.2 A INFLUNCIA BRASILEIRA NOS ESTUDOS DA ALIMENTAO

    Esta seo se dedica a explanar sobre a contribuio de intelectuais que iniciaram no

    Brasil os estudos da alimentao. Tais estudos se originam na primeira metade do sculo XX

    e preciso destacar que as pesquisas dos cientistas sociais brasileiros se voltavam

    principalmente para temas nativos. Esse grande interesse por temas nacionais era uma

    tendncia na poca, notvel em vrias reas como a pintura com Tarcila do Amaral, Anita

    Malfati, a msica com Villa Lobos, a literatura com Oswald e Mario de Andrade, Monteiro

    23 FISCHLER, C. L'Homnivore: le got, la cuisine et le corps. Paris: ditions Odile Jacob, 1993. p. 101.Dados cada vez mais coesos mostram, com efeito, que o fator mais importante para o alargamento e asocializao dos gostos alimentares da criana a influncia direta de seus pares.

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    Lobato. A sociologia contou com o trio Gilberto Freyre, Srgio Buarque de Holanda e Caio

    Prado Jnior.

    Tratar-se- de Gilberto Freyre, Josu de Castro e Luis da Cmara Cascudo por terem aalimentao como tema principal de pelo menos um de seus estudos. O livro tratado no caso

    de Freyre Acar: Uma sociologia do doce, com receitas de bolos e doces do Nordeste do

    Brasil24. Apesar de tratar da alimentao em outros livros como caso de Casa Grande &

    Senzala, em Acar que a alimentao aparece como principal foco de interesse. No caso de

    Castro, impossvel falar de um livro s, pois sua obra foi dedicada praticamente inteira aos

    estudos da alimentao. Cmara Cascudo, folclorista brasileiro, possui uma vasta obra de

    assuntos diversos, dentre elas Histria da Alimentao no Brasil25.

    Esses autores foram selecionados por contriburem diretamente com a pesquisa

    proposta e para a formao do campo da Histria da Alimentao, pois discutem assuntos

    essenciais para os novos pesquisadores, j que forjam conceitos que servem de base para os

    estudos sobre o assunto.

    Josu de Castro nasceu na primeira dcada do sculo XX, em Recife. Era mdico de

    formao, atuou nesta rea e, em 1932, tornou-se professor na Faculdade de Medicina do

    Recife. Sua preocupao com o social, porm, levou-o a andar por outras reas, assumindo

    cargos, ainda em Recife na Faculdade de Filosofia e Cincias Sociais nos anos de 1933 at

    1935. Deixou sua cidade natal e se mudou para o Rio de Janeiro, lecionando ento na

    Faculdade do Distrito Federal, obtendo a ctedra de Antropologia.

    Alm das atuaes acadmicas, Castro era um ativista na luta contra a fome, o grande

    tema de seus estudos, tanto na Medicina, quanto na Geografia e na Sociologia. Envolveu-se

    em inmeras campanhas e instituies em combate fome e em favor da implantao daalimentao racional, conceito desenvolvido em seus livros. Em 1936, foi membro da

    Comisso do Inqurito para Estudos da Alimentao do Povo Brasileiro.

    Teve tambm atuaes polticas, elegendo-se deputado federal em 1954 pelo Partido

    Trabalhista Brasileiro. Com o Golpe Militar de 1964, foi afastado de seu cargo pblico,

    24 FREYRE, Gilberto. Acar: Uma sociologia do doce, com receitas de bolos e doces do Nordeste do Brasil.

    So Paulo: Cia das Letras, 1997.

    25 CASCUDO, Luis da Cmara. Histria da alimentao no Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; So Paulo:Editora da Universidade de So Paulo, 1983.

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    perdendo seus direitos polticos e exilando-se em Paris.26

    Sem dvida, seu livro mais famoso Geografia da Fome, lanado pela primeira vez

    em 1946 e traduzido para vrios idiomas. Nesse livro, faz-se um estudo da alimentao paracada regio do Brasil procurando, de um lado, descobrir as causas naturais e as causas

    sociais que condicionaram o seu tipo de alimentao, com suas falhas e defeitos

    caractersticos, e, de outro lado, procurando verificar at onde esses defeitos influenciam a

    estrutura econmico-social dos diferentes grupos estudados.27 O autor explica que seu

    objetivo, com essa obra, tratar de modo geogrfico os defeitos da alimentao no Brasil e

    define como objeto de seu estudo a fome. Porm, ele delimita a fome tratada no livro no

    como individual e conceitual, ou seja, fisiolgica, mas a fome de um grupo. Tambm no

    apenas o grupo que morre de fome, de inanio, mas comunidades que se deixam morrer

    lentamente de fome, apesar de comerem todos os dias. Portanto, tal trabalho trata da fome

    parcial, da chamada fome oculta, pela falta permanente de elementos nutritivos.28 Assim,

    Castro, mesmo tendo dedicao rea biolgica e das cincias da sade consegue tratar a

    fome como um fenmeno social.

    Em seu livro A Alimentao Brasileira Luz da Geografia Humana29, Castro faz uma

    reflexo sobre as possibilidades de estudos na rea da alimentao e, em 1937, o autor concluique esse um tema transdisciplinar, que precisa levar em conta questes biolgicas,

    antropolgicas, fsicas, culturais, etnolgicas, patolgicas, sociolgicas, poltico-econmicas e

    histricas30. A preocupao de Castro com a alimentao e a necessidade de estud-la sob

    vrios pontos de vista se justifica pela proposta do autor de implantar o que ele chama de

    alimentao racional no Brasil, pas onde a fome era, na dcada de 30, e ainda , em 2009, um

    grande problema.

    Esse conceito de alimentao racional visto pela primeira vez em seu livro

    26 Informaes disponveis em: ;. Acesso em: 15/06/2008.

    27 CASTRO, Josu de. Geografia da fome: o dilema brasileiro: po ou ao. Rio de janeiro: Antares; Achiam,1980. p. 35.

    28 Ibid. p. 37.

    29 CASTRO, J. Alimentao brasileira luz da geografia humana. Porto Alegre: Edio da Livraria doGlobo, 1937.

    30 Ibid. p. 22.

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    Alimentao e Raa31. preciso dizer que Castro tenta dialogar com os intelectuais

    contemporneos que esto pensando na idia de raa, sendo rejeitando-a, sendo ratificando-a.

    Ele toma o conceito de raa no como biolgico e gentico, mas geogrfico, dando um

    enfoque vida material para, ento, notar o desenvolvimento da comunidade em questo.

    possvel perceber o desenvolvimento das duas discusses, sobre raa, e sobre a alimentao

    racional, principalmente na segunda parte do livro, j que na primeira o autor se detm a uma

    explicao fisiolgica dos alimentos. Na segunda parte, Castro rene seus conhecimentos da

    Medicina e da Sociologia para estudar os operrios do Nordeste, seus salrios, seus dispndios

    com alimentao, moradia e vestimenta. Tambm se dedica ao estudo sobre alimentao e

    educao; analisa alimentao e aclimatao de produtos e povos nos trpicos coloniais; por

    ltimo mostra uma proposta de um futuro trabalho com enquetes para rastrear o trabalho e otrabalhador agrcola de todo o Brasil, considerando as diferenas regionais, sempre em de

    uma relao com os alimentos.

    Portanto, o trabalho do livro Alimentao e Raa demonstra mais uma vez que a

    alimentao para Castro deve ser estudada sob diversos ngulos. Com o exemplo dos

    operrios nordestinos, o autor confirma que a alimentao brasileira no suficiente para

    suprir as necessidades dirias da maioria da populao e que os brasileiros sofrem do que ele

    chama de fome crnica. Assim, a alimentao precisa ser pensada e calculada para atender as

    necessidades de um grupo determinado. E, para Castro, a soluo para estas questes seria a

    aplicao do conceito de alimentao racional, pois

    no basta, para que uma rao alimentar seja perfeita, que ela contenha o total energtico necessrio sdespesas dos organismos. preciso ainda que a rao seja formada por quantidades satisfatrias, emdeterminadas propores mtuas, das vrias espcies de alimentos simples: albuminas, gorduras,hidratos de carbono, gua, sais minerais e vitaminas. O regime racional deve ser assim um regimesuficiente, completo e harmnico.32

    Outra preocupao de Josu de Castro pode ser interpretada como mais cultural. Em

    um livro financiado pela Editora da Nestl, em uma empreitada de lanar livros relacionando

    alimentao e educao infantil, o autor disserta sobre os tabus, tendo como principais

    exemplos os tabus alimentares brasileiros. Em Fisiologia dos Tabus33, Castro explica de

    31 CASTRO, J.Alimentao e Raa. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1936.

    32 CASTRO, J. Alimentao brasileira luz da geografia humana. Porto Alegre: Edio da Livraria doGlobo, 1937. p. 72.

    33 CASTRO, J. Fisiologia dos Tabus. Rio de Janeiro: Editora da Nestl, 1938.

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    forma sucinta as teorias da psicologia que trabalharam com tabus, principalmente de Freud,

    Wundt e Pavlov. No entanto, percebe-se ao longo do livro, que sua viso cabe muito mais no

    trabalho de um antroplogo do que de um psiclogo propriamente dito. Ele defende que

    o conceito de tabu o de uma interdio, de uma proibio categrica, sem explicao racional.Interdio que no ordenada por ningum, mas que parece ter se constitudo por si mesma, semnenhum fundamento, nem ao menos uma insinuao lgica; mas que em determinados momentos podeser suspensa, desde que se executem certas manobras compensadoras que constituem um verdadeiroritual.

    O tabu precede a todo o conceito religioso, a toda idia de divindade abrange, segundo oantropologista Northcote W. Thomas: 1) o carter sagrado ou impuro das pessoas ou coisas; 2) arestrio que decorre deste carter; 3) a santidade ou impureza que por contgio adquire todo aquele queviola o tabu.34

    importante relacionar a definio de tabu noo de alimentao racional de Castro.

    Se as prticas alimentares de uma comunidade devem estar contidas em um sistema

    suficiente, completo e harmnico, no se pode deixar de lado os costumes e a religio dessa

    comunidade, bem como o modo de preparo dos alimentos, a sua importncia, a poca em que

    consumido e por quem. A harmonia desse sistema no cabe apenas na quantidade de

    calorias e vitaminas, mas envolve todas as suas facetas.

    Castro, ento, nota com bastante ateno