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1 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Direito HERMENÊUTICA TRIBUTÁRIA, TIPICIDADE E DIREITOS FUNDAMENTAIS: uma análise paradigmática do sistema tributário rumo ao Estado Democrático de Direito. Felipe Faria de Oliveira Belo Horizonte 2008

Dissertacao Felipe Faria de Oliveiraparadigmática do sistema tributário rumo ao Estado Democrático de Direito. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação em Direito

HERMENÊUTICA TRIBUTÁRIA, TIPICIDADE E DIREITOS

FUNDAMENTAIS: uma análise paradigmática do sistema tributário rumo

ao Estado Democrático de Direito.

Felipe Faria de Oliveira

Belo Horizonte

2008

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Felipe Faria de Oliveira

HERMENÊUTICA TRIBUTÁRIA, TIPICIDADE E DIREITOS

FUNDAMENTAIS: uma análise paradigmática do sistema tributário rumo

ao Estado Democrático de Direito.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Direito da Pontifícia Universidade

Católica de Minas Gerais como requisito parcial

para obtenção do título de Mestre em Direito.

Orientador: Álvaro Ricardo de Souza Cruz

Belo Horizonte

2008

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Felipe Faria de Oliveira

Hermenêutica tributária, tipicidade e direitos fundamentais: uma análise

paradigmática do sistema tributário rumo ao Estado Democrático de Direito.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais como requisito parcial para

obtenção do título de Mestre em Direito.

Belo Horizonte, 2008.

____________________________________________________

Álvaro Ricardo de Souza Cruz (orientador)

____________________________________________________

Marciano Seabra de Godoi

___________________________________________________

Élcio Fonseca Reis

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Agradecimentos

A Deus, pela vida que colocou em minha frente, e pela sabedoria de me conceder cada graça no momento apropriado, mesmo em contrário à minha ansiedade. À minha família, pai, mãe e Tuca, razão primeira de meu sorriso. Suas doações diárias me fizeram quem sou hoje. Sempre me espelho em vocês para tentar ser uma pessoa melhor. À Dan, pelo carinho e companheirismo, sempre essenciais. Conseguimos andar de mãos dadas em mais esta (porém não última) jornada. Aos amigos, em especial, Rangel que, mesmo no atribulado mundo corporativo, conseguiu tempo pra ler parcela dos originais deste trabalho. Ao Álvaro, orientador e amigo, por me apresentar uma nova forma de ver e pensar o Direito. Que sua boa “mania” pela excelência acadêmica me contagie neste e em futuros trabalhos.

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“Ridículo, patético, mas inelutável, as palavras são de

fato um mistério, um dia eu escrevo um livro louco, só

quero escrever um livro louco em que as palavras

possam detonar, explodir em todos os tipos de

significado, provocar todo tipo de reação. Eu queria

libertar todas as palavras...”

João Ubaldo Ribeiro (A Casa dos budas ditosos)

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RESUMO

Muito embora seja possível situar as diversas disciplinas do Direito em um paradigma pós-positivista, constata-se a manutenção dos pressupostos da filosofia da consciência em todo o sistema tributário, bem como sua doutrina e jurisprudência. Presos à concepção cartesiana de uma metodologia neutra capaz de garantir a certeza de um resultado previamente determinado pela lógica subsuntiva relegada ao intérprete, os tributaristas percebem na estrutura tipológica e sua linguagem descritiva e exauriente da realidade a resposta para os anseios de estabilização de expectativas consubstanciada na segurança jurídica tributária. Ignoram, portanto, a superação do esgotamento do conteúdo jurídico em textos escritos e formalizados em um procedimento legislativo pontuado no tempo e espaço. Percorrer a evolução da construção do pensamento jurídico significa comprovar como as bases hermenêuticas dos mais influentes tributaristas remontam não apenas o racionalismo da modernidade cartesiana e kantiana, mas mesmo às construções de Platão e Aristóteles. Colocada referida postura hermenêutica à prova, são dois os pontos em que sucumbe e resta demonstrada sua insustentabilidade no seio jurisdicional. Em atenção à construção da matéria fiscal aos ditames da supremacia constitucional, as particularidades e propósitos tributários surgidos em cada geração de direitos fundamentais restam inatingíveis caso se tenha a legalidade descritiva como fonte de emanação jurídica. Noutra argumentação, a própria validade de seus pressupostos hermenêuticos perde qualquer credibilidade frente os giros lingüístico e hermenêutico proporcionados por Wittgenstein e Gadamer. Diante da impossibilidade da adoção de uma metodologia ilusória e temerária tal qual o formalismo positivista, a construção de um Estado Democrático de Direito, ao qual deve se conformar o sistema tributário, requer uma reviravolta nas bases de validade e legitimidade jurídica. A abertura procedimental habermasiana reposiciona a racionalidade comunicativa em busca de um entendimento entre os próprios afetados pelas normas jurídicas, bem como revisita a legitimidade das normas em atenção aos conteúdos jurídicos a serem aplicados em cada caso concreto. Com isso, também os direitos fundamentais e os instrumentos fiscais pedem revisão, implicando uma nova forma de construção do Direito Tributário.

Palavras-chave: Hermenêutica discursiva – Direito Tributário – direitos fundamentais – procedimentalismo – Estado Democrático de Direito – tipicidade tributária – crítica.

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ABSTRACT

Even though it is possible to situate the various law disciplines in a pos-positivism paradigm, we verify the maintenance of the conscious philosophy basis in fiscal system, and also in judicial decisions and authors. Stuck to the Cartesian view and a neutral methodology able to assure the certain of pre-determinated results connected to a subsuntive logic relegated to the interpret, the fiscal law professionals believe in the typological structure and its exhaustive and descriptive language as an answer to their will of expectative stabilization verified in the juridical security. They ignore that the law content restricted in written texts formalized in a time-space situated legislative process is already surpassed. The quest for the law structure evolution means to prove that the most important fiscal authors remain with their basis not only in the cartesian and kantian modern thought, but also in Platen and Aristotle. Once tested this hermeneutic posture, there are two points in which it falls and is fulfilled the demonstration of its impossible permanence in the jurisdictional environment. Putting the fiscal matters in attention to the constitutional supremacy, the particularities and purposes emerged in which fundamental rights generation remain inaccessible to the law if restricted to the descriptive legality. In another argumentation, the validity of its hermeneutic basis loose its credibility once faced the linguistic and hermeneutic turns developed by Wittgenstein and Gadamer. Considering the legalist positivism as an illusionist and reckless methodology impossibility, the formation of a Democratic State of Law in which the legal system must be adapted, demands a law validity and legitimacy basis turn. The habermasian procedimental openness replace the communicative rationality in search for an understanding between the affected by the rules, such as review the law legitimacy focusing the law contents to be applied in the particular cases. Consequently, the fundamental rights and fiscal instruments demand revision, which implicates a new kind of view of the fiscal law. Key words: Discursive hermeneutic – Fiscal Law – fundamental rights – procedimentalism – Demopcratic State of Law – fiscal typology – critics.

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LISTA DE SIGLAS

ADIn – Ação Direta de Inconstitucionalidade

Agr – agravo (recurso)

CIDE – contribuição de intervenção no domínio econômico

CF – Constituição Federal

CPMF – contribuição provisória sobre movimentação financeira

CTN – Código Tributário Nacional

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

ICMS – imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de

serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação

IE – imposto sobre exportação, para o exterior, de produtos nacionais ou nacionalizados

II – imposto sobre importação de produtos estrangeiros

IOF – imposto sobre operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores

mobiliários

IPI – imposto sobre produtos industrializados

IPTU – imposto sobre propriedade predial e territorial urbana

IPVA – imposto sobre propriedade de veículos automotores

ITBI – imposto sobre transmissão inter vivos, a qualquer título, por ato oneroso, de bens

imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de

garantia, bem como cessão de direitos à sua aquisição

ITCD – imposto sobre transmissão causa mortis e doação de quaisquer bens ou direitos

ITR – imposto sobre propriedade territorial rural

OCDE – Organização de Cooperação de Desenvolvimento Econômico

STF – Supremo Tribunal Federal

STJ – Superior Tribunal de Justiça

RE – recurso extraordinário

RESP – recurso especial

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SUMÁRIO

I – INTRODUÇÃO ................................................................................................................12

II – HERMENÊUTICA JURÍDICA: UM CAMINHAR PELA EVOLUÇ ÃO DA

CONSTRUÇÃO E INTERPRETAÇÃO DO DIREITO À ATUALIDADE

TRIBUTÁRIA ........................................................................................................................15

2.1 – Primórdios da hermenêutica jurídica .........................................................................16

2.2 – O período antigo e os filósofos gregos..........................................................................17

2.3 – O direito natural teológico............................................................................................23

2.4 – O homem na era das certezas........................................................................................30

2.5 Do jusnaturalismo ao positivismo jurídico.....................................................................39

2.5.1 – O Direito e sua legitimidade positivada.......................................................................43

2.5.2 - Do neopositivismo vienense ao normativismo de Hans Kelsen..................................47

2.6 – O Direito como questão de fato.....................................................................................55

2.7 – O Direito Tributário atual e a hermenêutica clássica-positivista..............................56

2.7.1 – A doutrina e jurisprudência brasileiras......................................................................57

III – O DIREITO TRIBUTÁRIO SOB A ÓTICA DOS DIREITOS

FUNDAMENTAIS ..................................................................................................................72

3.1 – Introdução.......................................................................................................................72

3.2 – O Direito Tributário sob o crivo da Constituição.......................................................72

3.3 – As “gerações” de direitos e algumas ressalvas............................................................81

IV – O DIREITO TRIBUTÁRIO E A DIMENSÃO LIBERAL ........................................87

4.1 – Breves antecedentes aos direitos liberais.....................................................................87

4.2 – Os direitos individuais e a tributação...........................................................................95

4.2.1 – Dos antecedentes tributários ao Estado fiscal ............................................................95

4.2.2 – A igualdade formal.......................................................................................................99

4.2.3 – A legalidade formal e a garantia da segurança/previsibilidade jurídica.................104

4.2.3.1 – Legalidade e tipicidade tributária........................................................................110

4.2.3.2 – Legalidade e a irretroatividade e anterioridade tributárias ..............................116

4.2.3.3 – Legalidade, propriedade e elisão fiscal................................................................118

4.3 – A interpretação descritiva e a primeira geração de direitos....................................124

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V – OS DIREITOS DE SEGUNDA DIMENSÃO E A TRIBUTAÇÃO ..........................133

5.1 – O Estado e os direitos sociais......................................................................................133

5.2 – A tributação em consonância com os direitos sociais...............................................147

5.2.1 – Igualdade substancial e justiça tributária.................................................................148

5.2.1.1 – O princípio da capacidade contributiva...............................................................149

5.2.1.1.1 – Capacidade contributiva absoluta e relativa..........................................................158

5.2.1.1.2 – A capacidade contributiva e seus subprincípios...................................................161

5.2.2 – Concretização da igualdade fiscal.............................................................................162

5.2.2.1 – Progressividade e proporcionalidade tributárias................................................162

5.2.2.2 – Tributos direitos e indiretos..................................................................................165

5.2.2.3 – Nível arrecadatório................................................................................................169

5.2.3 – A intervenção do Estado no domínio econômico como concretização dos direitos

sociais......................................................................................................................................173

5.2.3.1 – A extrafiscalidade...................................................................................................174

5.2.3.1.1 – Limites da extrafiscalidade e seu conflito com a capacidade

contributiva.............................................................................................................................180

5.2.4 – Reflexos hermenêuticos: a interpretação econômica e a inflação normativa pelo

Executivo................................................................................................................................183

5.3 – Os direitos de segunda geração e a ineficácia da interpretação descritivo-

formalista...............................................................................................................................189

5.3.1 – A elisão fiscal e a capacidade contributiva...............................................................192

5.3.2 – A elisão fiscal e a extrafiscalidade............................................................................197

5.3.3 – A “discricionariedade” positivista...........................................................................200

VI – O SURGIMENTO DOS DIREITOS DIFUSOS E O DIREITO

TRIBUTÁRIO .......................................................................................................................205

6.1 – Tributação e o meio ambiente: uma realidade constitucional.................................213

6.1.1 – Os princípios ambientais-tributários.........................................................................218

6.1.1.1 – Princípio da prevenção..........................................................................................219

6.1.1.2 – Princípio do poluidor-pagador.............................................................................220

6.2 – Concretização dos direitos difusos ambientais via tributação.................................224

6.2.1 – A extrafiscalidade.......................................................................................................224

6.2.2 – Arrecadação................................................................................................................226

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6.3 – A terceira dimensão de direitos e a interpretação positivista-descritiva dos

textos.......................................................................................................................................230

6.4 – Direitos de outras dimensões?.....................................................................................233

VII – A INTERPRETAÇÃO TRIBUTÁRIA FRENTE A HERMENÊUT ICA

CONTEMPORÂNEA: A DESCONSTRUÇÃO E A IMPOSSIBILIDADE DOS

PRESSUPOSTOS INTERPRETATIVOS-POSITIVISTAS............................................236

7.1 – A reviravolta lingüístico-pragmática de Wittgenstein..............................................238

7.2 – A interpretação como processo construtivo e a impossibilidade da neutralidade

científica: a fusão de horizontes interpretativa..................................................................248

7.3 – A nova hermenêutica e a interpretação econômica..................................................263

VIII – O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E UM PROCEDI MENTALISMO

SUGERIDO...........................................................................................................................268

8.1 – Falácias procedimentalistas?......................................................................................281

8.2 – Os direitos fundamentais e o sistema tributário.......................................................290

IX – CONCLUSÃO ...............................................................................................................302

BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................................304

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CAPÍTULO I – INTRODUÇÃO

Ao iniciarmos o estudo do Direito há alguns anos, ainda na graduação, duas

disciplinas, em pouco tempo, chamaram atenção: Direito Penal e Direito Tributário. A forma

de pensar em ambas as matérias destoava do restante, sua maneira objetiva, quase

matemática, em busca de um estudo de adequação/subsunção dos fatos à norma nos fez

vislumbrar um Direito simples e descomplicado – talvez mesmo pelo interesse, sempre

presente, pelas ciências exatas. À época, mal poderíamos imaginar a complexa rede de

conteúdos hermenêuticos subjacentes à tentativa de objetificar o Direito, tampouco as

conseqüências nocivas e desvirtuadoras dos próprios fundamentos jurídicos que tal postura

hermenêutica vinha acarretar.

Muitos autores (ADORNO et. al, 1996) trilham suas pesquisas em busca de uma

resposta à manutenção desta forma (não)interpretativa de desenvolver o Direito. Seria uma

ação planejada e consciente das classes dominantes a fim de perpetuar o status quo? Ou um

mero prolongamento de uma tradição histórico-cultural cujas bases racionalistas não se

desgarraram de nosso núcleo jurídico? Os motivos, se sociais, econômicos, políticos, etc., não

interessam por agora. Acreditamos ser o tema aqui trabalhado já espinhoso o bastante para

enveredar em outro “mar de polêmicas”.

Fato é que, doutrina e jurisprudência, majoritariamente, persistem em sustentar uma

visão positivista-descritiva do Direito Tributário, e com espeques no princípio da tipicidade,

reafirmam o entendimento de que apenas o conteúdo previsto expressa e textualmente nas

normas legais pode ser compreendido como inserido no mundo jurídico. Algo não muito

diferente do que sugere Shakespeare, na conhecida história do mercador de Veneza que deve

retirar pedaço de carne de seu devedor, sem, porém, derramar uma gota de sangue, pois tal

conseqüência era imprevista no acordo firmado. É situação que, muito embora todos

percebam como absurda, nossos juristas não acordam para o fato de se calcar na mesma idéia

tipificante que embasa suas visões do sistema tributário.

Diante do conhecimento, já consolidado, de que outras áreas jurídicas – p.e. Direito

Constitucional – já amadureceram e se libertaram do ranço positivista que ainda assola o

âmbito fiscal, pairou sobre nossa mente a indagação: será que, no que tange o Direito

Tributário, excepcionalmente, seria pertinente a sobrevida concedida à interpretação

positivista exauriente das normas legais? Seriam as especificidades de suas disciplina

justificativa bastante para tal anacronismo?

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Eis a razão para colocar sua hermenêutica à prova. Mas a conclusão final da indagação

supra apenas poderia ser lograda pela verificação de dois questionamentos: 1)

pragmaticamente, em um exame da realidade, a postura hermenêutica vigente é suficiente e

eficiente na efetivação de seus objetivos tributários?; 2) a visão interpretativa antedita possui

sustentabilidade hermenêutica, possui embasamento que garanta às suas premissas

subsistência?

Com vistas a este escopo, será iniciado um caminhar pela evolução da epistemologia

em conjunto com o pensamento jurídico, no intuito de apresentar ao leitor do que se trata,

efetivamente, a corrente positivista, quais suas causas, premissas, e mais importante, se suas

idéias podem ser identificadas, ainda hoje, no seio da doutrina e jurisprudência. Ver-se-á

como as bases hermenêuticas dos mais influentes tributaristas remontam, não apenas o

racionalismo da modernidade cartesiana e kantiana, mas mesmo às construções de Platão e

Aristóteles (Cap. II).

Lançadas as luzes sobre o objeto a ser investigado, criar-se-á uma estrutura necessária

para responder ao primeiro questionamento. Nessa trilha, necessário, esclarecer quais podem

ser considerados os objetivos precípuos do Direito Tributário a serem alcançados pela

hermenêutica descritiva. Convencidos da supremacia constitucional, e de seu papel de “locus

hermenêutico”, serão desenvolvidas, para o leitor, as razões pelas quais todos os ramos

jurídicos devem se conformar à garantia e efetivação dos direitos fundamentais. Nessa toada,

o Direito Tributário, para se perceber inserido no ordenamento jurídico, deve subsumir suas

técnicas, instrumentos e características aos propósitos constitucionais, sob pena de perda de

sua própria validade. A partir deste ponto, a evolução dos paradigmas constitucionais e suas

“gerações” de direitos fundamentais será decisiva. O delineamento apartado dos direitos e

garantias que preponderaram em cada distinto momento constitucional é capaz de facilitar a

identificação das nuances tributárias nos diversos paradigmas.

No entanto, destaca-se, desde já: a indivisibilidade dos direitos fundamentais,

entendida como a interação necessária e simbiótica entre os distintos direitos reconhecidos

nas mais diversas etapas da evolução constitucional, impede que seja argumentada uma real

segmentação em “gerações” dos mesmos. Ver-se-á, de forma clara, que a escolha por sua

utilização tem motivos meramente didáticos!(Cap. III)

Por meio deste acompanhamento será realizada uma radiografia do sistema fiscal ante

os direitos liberais (Estado mínimo, fiscalidade, segurança jurídica, tipicidade, previsibilidade

tributária e defesa da propriedade), sociais (intervenção estatal, supremacia do interesse

público, isonomia, capacidade contributiva, progressividade, extrafiscalidade) e difusos – em

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especial, os direitos ambientais (princípio poluidor pagador, princípio da prevenção,

extrafiscalidade, arrecadação). Juntamente a isso, duas outras verificações poderão ser

esclarecidas: a identificação do quanto a corrente interpretativa positivista-descritiva remete

suas raízes ao liberalismo protecionista; e por derradeiro, se a hermenêutica clássica consegue

efetivar os reflexos tributários dos direitos fundamentais de cada geração constitucional (Cap.

IV a VI).

Já com foco ao segundo questionamento a ser investigado, proceder-se-á o confronto

entre as bases científicas que encampam a visão hermenêutica preponderante no meio fiscal, e

as evoluções filosóficas e hermenêuticas já consolidadas (Cap. VII). Tentar-se-á desestruturar

a crença em um engessamento dos conteúdos normativos e em um intérprete atemporal capaz

de captar de forma neutra o Direito já presente nas normas elaboradas com exatidão pelo

Poder Legislativo. Com a conclusão pela falibilidade das premissas colocadas à prova, ver-se-

á que a crítica à adoção de uma tipicidade tributária de fontes positivistas não deve ser

encarada como um debate sobre uma “melhor teoria interpretativa”, mas sim um debate pela

própria impossibilidade de suas idéias!

Por fim, na tentativa de fuga de uma postura de mera censura, partir-se-á ao

delineamento de nossa visão acerca do atual Estado Democrático de Direito, bem como da

prática hermenêutica tributária que deve acompanhá-lo. O desenvolvimento de um

procedimentalismo habermasiano é capaz de possibilitar um salto do Direito Tributário rumo

à contemporânea relação democrática e dialógica que deve encampar o sistema jurídico. (cap.

VIII).

Desde já, porém, deve-se deixar claro ao leitor.

Não se ignora o quão problemáticas podem se mostrar as conclusões deste trabalho. A

persistência de parcela dos tributaristas em estudar sua disciplina cegos ao entorno

hermenêutico e constitucional é assustadora! Daí a certeza de futuras críticas. De todo modo,

em conjunto com nosso marco teórico, temos a esperança de ser lançado o debate, sempre

enriquecedor.

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CAPÍTULO 2 – HERMENÊUTICA JURÍDICA: UM CAMINHAR PEL A EVOLUÇÃO

DA CONSTRUÇÃO E INTERPRETAÇÃO DO DIREITO À ATUALIDA DE

TRIBUTÁRIA.

Ao contrário da doutrina constitucional, parece-nos que a doutrina tributária

permanece, em regra, avessa a quaisquer incursões de cunho filosófico-hermenêutico. Essa

situação hermética da seara tributária, representadora da própria concepção codificante e

(pseudo)autônoma do Direito Tributário, acaba por gerar uma forte resistência por parte dos

leitores para quaisquer obras que venham a discorrer de forma mais extensa sobre temas que

não ligados à dogmática e jurisprudência imediatamente aplicada aos processos judiciais e

administrativos relativos à área fiscal.

Ocorre, porém, que como todo o Direito, o Direito Tributário não se sustenta sem um

embasamento filosófico. A própria origem dos pressupostos nos quais hoje tenta se pautar a

doutrina (segurança jurídica, limitação de arbítrio estatal, proteção de uma propriedade

supostamente sacralizada, etc.) acaba por encontrar suas bases em argumentos de teoria do

Estado, de filosofia jurídica, e ainda de teorias hermenêuticas que se ligam aos dois elementos

anteriores.

Nesses termos, não se pode hoje pensar em um estudo academicamente sustentável

sem considerar, ainda que indiretamente, concepções da filosofia que encampam a forma de

construir e compreender o Direito. Essa é a esfera hermenêutica a qual tentar-se-á dar espaço

em nosso debate envolvendo o Direito Tributário.

Tentaremos, porém, não pecar pelo excesso de verticalização filosófica. Juntamente

com Kaufmann, entendemos que “à pergunta, já várias vezes colocada, sobre qual das

filosofias do direito será pior, a dos ‘puros filósofos’, ou a dos ‘puros juristas’, dever-se-á

responder que são igualmente más” (KAUFMANN, 2002, p. 25).

Diante disso, remete-se, desde já, o leitor a uma busca pelo aprofundamento das bases

hermenêutico-filosóficas nas obras mencionadas ao longo do presente trabalho, poupando

corpo textual deste para o desenvolvimento mais fluido das idéias sem, porém, deixar nosso

leitor carente da apresentação ao conteúdo necessário para a compreensão da crítica que nos

motiva.

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2.1. Primórdios da hermenêutica jurídica

Desde as primeiras e mais rudimentares formas de composição social, a presença de

uma estrutura normativa e coativa pode ser constatada como instrumento de organização

estrutural das comunidades. É o momento do “complexo indiviso de convicções” a que se

refere Habermas(2003 p. 42), em que a composição do Direito se misturava de forma

inseparável com a religião, superstição e normas morais.

Ao analisar a evolução do Direito junto à sociedade, Niklas Luhmann (1983, p. 182 e

ss.) realiza uma divisão dos períodos referentes às etapas de formação do embasamento de

legitimidade do ordenamento jurídico, identificando um “direito arcaico”, seguido pelo

“direito antigo” e culminando no “direito moderno”.

Durante o período arcaico, quando vigorou o modelo tribal de sociedade, o aparato

jurídico e social se mostrava entranhado às relações de parentesco. Ainda em seu aspecto mais

rudimentar, o Direito era caracterizado pela idéia de instintos básicos e força física, fazendo

valer a conhecida concepção retributiva da Lei de Talião.

Fundamentações mágicas e transcendentais serviram de base para a construção de uma

noção de Direito que existia predominantemente nos contos, mitos e hábitos dos grupos. No

entanto, ainda não se pode falar efetivamente em uma relação de origem divinatória dos

ordenamentos, como se este, em si, fosse uma construção já acabada enviada pelos deuses tal

qual proposto pelo Direito Natural que se seguiria. Nesta primeira etapa, “forças sobrenaturais

protegem o direito [...] mas não geram nem modificam o direito” (LUHMANN, 1983, p. 188).

A presença do ocultismo e a ausência de explicações para os acontecimentos

contribuíram para que, no período arcaico, a relação do homem com os eventos naturais fosse

de mera contemplação. Essa relação de observância adicionou, segundo Kaufmann, à

formação do necessário aparato para o surgimento Direito Natural que despontaria. Afinal,

“se havia leis na natureza física, não as deveria também na natureza metafísica?”

(KAUFMANN, 2004, p. 32).

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2.2. O período antigo e os filósofos gregos

Uma vez ultrapassado o período arcaico, as sociedades, em razão de uma

complexidade cada vez maior, passaram a exigir um Direito coerente e eficaz. Para isso, não

mais as tradições orais, os mitos e sagas eram capazes de lograr a estruturação social que se

pretendia com os sistemas jurídicos. Nesse aspecto, o desenvolvimento da escrita – que se

iniciara no período anterior (CRUZ, 2004, p. 32) – se mostrou um elemento essencial para

garantir a segurança e satisfazer os anseios de organização das polis gregas, simulacros dos

posteriores Estados Nacionais1.

Com o surgimento da filosofia na Ásia e na Grécia, a razão, o questionamento e a

busca por fundamentações e legitimidade anunciaram a predominância da razão em

detrimento da posição passivista antes vigente.

Em que pese a gama de pensadores que durante o período contribuíram para a

formação do conhecimento humano – ainda que por vezes ausente uma interação direta entre

os mesmos (COMPARATO, 2001, p. 12 e ss.) – Platão e Aristóteles se destacam entre esses

por terem demarcado os rumos da filosofia, servindo de base para a construção das teorias

epistemológicas séculos à frente.

Discípulo de Sócrates, Platão foi o principal meio de acesso aos ensinamentos de seu

mestre. Fundador da Academia de Atenas, Platão concebeu sua teoria calcado em uma

dualidade metafísica que serviria de base para as teorias jusnaturalistas teológicas

posteriores2.

Para Antiseri e Reale (2003, p. 137), Platão foi o verdadeiro fundador da realidade

metafísica, supra-sensível e transcendental, situada além da possibilidade cognoscitiva

sensorial do homem. A dualidade radical que o caracteriza percorre todo seu pensamento,

1 Não obstante possamos fazer uma comparação entre a Cidade-estado grega com os posteriores Estados Nacionais que surgiriam muitos séculos a frente é de se destacar que a relação entre a polis/cidadão é bastante distinta das teorias contratualistas ou mesmo liberais que surgiriam na modernidade. Conforme leciona Cruz, “a pólis precedia ao indivíduo, que não era auto-suficiente, pois precisava da vida social e política para realizar-se como homem. Viver em grupo não era visto como escolha, mas sim com condição humana” (CRUZ, 2004, p. 33). Assim, “nas idéias de Platão e Aristóteles não pertence o indivíduo a si mesmo, senão ao Estado” (BONAVIDES, 1993 p. 151.). Nesse sentido, o homem apenas existia se inserido na polis, ele era um ser propriamente social. Por isso, mesmo, as penas de ostracismo e banimento eram tidas como severas durante o período grego, pois retiravam o indivíduo de seu habitat natural. 2 Jaeger, ciente da importância que Platão teve na estruturação das teorias naturalistas de base teológica assevera que Platão “ se destaca de todos os seus predecessores, em importância religiosa. Só projetada neste fundo se pode avaliar a sua teoria central sobre a idéias do Bem. Platão é o teólogo do mundo clássico” (JAEGER, 2001, p. 873).

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repercutindo tanto no plano supra-físico antedito quanto na separação alma/corpo que o

filósofo acabou por identificar.

Até então, todos os predecessores de Platão – ditos “naturalistas” – buscaram

explicação dos acontecimentos amparados em causas de caráter físico, tais como o vento, o ar,

o fogo, a terra. Afinal, esses eram elementos que, em virtude dos sentidos, o homem tinha

pleno acesso, e, por conseguinte, certeza de existência. Gomes (2004, p. 36 e ss.) nos traz

exemplos claros. Dentre os filósofos pré-socráticos, Tales tinha a água como o princípio

básico de todas as coisas. Já em Anaxímenes, é o ar infinito e indeterminado que permite a

geração de todos os demais elementos da realidade, etc.

Ocorre que Platão passou a questionar a existência de causas superiores, acima dessas

“pseudo-causas” a que temos contato fisicamente. Buscava o filósofo uma realidade

transcendente que fosse a base fundamentadora de todas as formas, objetos e acontecimentos

percebidos pelos homens.

Nesta busca, Platão identificou duas instâncias distintas de realidade.

No nosso plano do conhecimento sensorial, estaria o mundo sensível, ao qual temos

acesso graças à capacidade de sentir, ver e tocar, constituída, assim, de caráter físico-

mecânico. Nessa esfera “inferior”, tudo é efêmero, esvai-se, as pessoas envelhecem e morrem,

os objetos podem ser feitos de forma imperfeita, bem como podem se quebrar. Por isso

mesmo, esse seria o mundo do “não-ser” (KELSEN, 1997, p. 81 e ss.).

Mas, essa mera realidade sensível não seria, de fato, o local onde se buscar o

fundamento e a legitimidade dos acontecimentos e existência dos objetos.

Transcendendo o mundo sensível, Platão tomou a existência de um mundo das Idéias

– ou inteligível –, local onde se encontram as molduras, as fôrmas perfeitas que servem de

base para a construção da realidade empírica. Essas Idéias eram caracterizadas pela sua

abstração e imutabilidade, o que lhes garantia a capacidade de servirem de matriz para o

surgimento das imperfeitas e efêmeras cópias que habitam o mundo empírico – pois só o que

é eterno pode legitimar o mutável.

Para atingir o conhecimento das Idéias, no qual estaria presente o princípio supremo

do Bem (JAEGER, 2001 p. 876), deveria o homem realizar a “segunda navegação platônica”,

ou seja, apenas através da razão, do intelecto, é o filósofo capaz de ter contato com a

perfeição do mundo inteligível. Referida travessia, que é posta diante dos filósofos, é

representada ludicamente pelo conhecido “mito da caverna”3.

3Tentando retratar o papel dos filósofos no alcance das Idéias, Platão imaginou uma situação em que os moradores de uma caverna lá vivessem desde sua infância, acorrentados, e sendo-lhes permitido olhar

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O reconhecimento de um plano autônomo e metafísico por parte de Platão serve para

um objetivo claro: “podemos concluir que, com a teoria das Idéias, Platão pretendeu sustentar

o seguinte: o sensível só se explica mediante o recurso ao supra-sensível, o relativo com o

absoluto, o móvel com o imóvel, o corruptível com o eterno” (REALE; ANTISERI, 2003,

p.141).

Percebe-se, assim, que Platão buscou argumentar que o mundo sensível é dependente

e fundamentado pelo mundo das Idéias. Tentando trazer a argumentação à nossa realidade,

qual a razão de alguém ver sobre si a incidência de uma cobrança tributária de IPTU (imposto

sobre propriedade predial e territorial urbana)? A resposta imediata, captada pela faculdade

sensorial impulsionará a responder a existência de propriedade imóvel urbana. Entretanto,

essa é apenas a aparente causa física, que no entender do filósofo, remete, necessariamente, a

uma causa Ideal transcendental. Nessa esteira, a verdadeira fundamentação dessa exação

fiscal seria, para Platão, um valor metafísico que legitima a realidade imperfeita a que temos

contato (ser proprietário de bem imóvel).

Dessa forma, Platão transpunha para a esfera normativa a mesma concepção dualista

ideal/real. Comungando das mesmas características das Idéias, ele identificava a existência de

leis imutáveis, eternas e perfeitas4 que norteavam o projeto de vida e deveriam ser obedecidas

no plano fático em que se encontravam os homens.

Algo não muito diferente é realizado pela atual doutrina tributária. Concebe a mesma a

descrição legislativa como uma perfeita situação fática ou jurídica – mundo das Idéias – que

deve ser reproduzida no mundo empírico para que reste configurada a possibilidade de

cobrança tributária. O que nossos autores não percebem, porém, é que para chegar a essa

construção metafísica do espectro normativo, eles mantêm a concepção platônica de que as

palavras e os termos lingüísticos utilizados na tipificação são meras representações dos

unicamente para frente. Nesta caverna, devido sua profundidade, apenas por uma extensa galeria consegue chegar a luz. Essa fonte luminosa, em contato com os habitantes da caverna faz sombras que se refletem nas paredes, que em razão do “aprisionamento” das pessoas, é a única visão das mesmas. Imagine, porém que um dos habitantes dessa caverna consiga se libertar de suas correntes e chega à luz exterior. Primeiramente, ele terá dificuldades de enxergar devido a excessiva claridade que cega seus olhos, posteriormente, após se acostumar, ele irá se maravilhar com as cores e formas que compõem o mundo exterior. Ao retornar à caverna para libertar seus pares, ele tenta compartilhar de sua experiência libertadora, afirmando que todas as visões as quais os habitantes da caverna são submetidos são unicamente sombras, reflexos imperfeitos de objetos reais. Entretanto, a população, por conhecer apenas a realidade das sombras não acreditará no indivíduo e acabaria matando-o. No entender de alguns autores, esta é uma clara referência à repercussão que os pensamentos de Sócrates causaram na comunidade grega. Sócrates foi condenado a ingerir cicuta, veneno que culminou em sua morte (Cf. JAEGER, 2001 p. 883 e ss.) 4 “Platão afirmava que obedecer às leis é obedecer aos deuses. Por ser divina, a lei era imutável. Nunca se revogava uma lei, que subsistia sempre, por maior que fosse o antagonismo entre ela e a lei nova” (POLETI apud CRUZ,204 p. 34)

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objetos, daí se poder pretender uma lei escrita que consegue refletir a perfeição ideal da

realidade observada (STRECK, 2003, p.114).

Percebe-se assim que, no que tange à análise da linguagem em si, para Platão, ela é

caracterizada pela sua mera função instrumental-representativa da realidade. Inaugurando um

posicionamento denotativo da linguagem, o filósofo entendia que a compreensão e

conhecimento da realidade poderia se dar de forma autônoma à utilização lingüística5. Esta

última teria a função de apresentar a realidade alcançada, e apenas teria conteúdo por estar

ligada a um objeto empírico representado por um conjunto de sons relacionados

(OLIVEIRA,1996, p. 20 e ss). São bases lançadas e que apenas no século XX sofrerão uma

efetiva revisão.

Pupilo dos ensinamentos de Platão, Aristóteles negou alguns pensamentos de seu

mestre (p.e., o dualismo radical platônico), o que não o torna menos influente no

desenvolvimento da filosofia ocidental.

Não obstante ser possível caracterizar Platão como o fundador da metafísica, base

precípua da teoria do Direito natural, foi com Aristóteles que este atingiu seu ápice

(KAUFMANN, 2002b, p. 68 e ss.). É ele quem finalmente dissocia de maneira substancial

um ordenamento jurídico natural6, e um ordenamento jurídico positivo na seara humana,

5 “Aqui está a tese fundamental de Platão e de toda a filosofia do Ocidente: ele pretende, com essa discussão das diferentes teorias vigentes de seu tempo, mostrar que na linguagem não se atinge a verdadeira realidade (aletheia ton onton) e que o real só é conhecido verdadeiramente em si (aneu ton onomaton) sem palavras, isto é, sem a mediação lingüística. A linguagem é reduzida a puro instrumento, e o conhecimento do real se faz independentemente dela [...] a linguagem não é, pois, constitutiva da experiência humana do real, mas é um instrumento posterior, tendo uma função designativa: designar com sons o intelectualmente percebido sem ela (OLIVEIRA, 1996, p. 22) 6 Não obstante possa ser afirmado, juntamente com os autores mencionados supra, ser Aristóteles o primeiro filósofo a trabalhar com maior delineamento a secção entre direito natural e positivo, não se pode negar que mesmo antes já se tinha um debate acerca dos mesmos. Alexandre Tavessoni relembra o episódio de Antígona que retrata bem a presença desses conceitos: “Polínices e Etéocles, irmãos de Antígona, duelaram até a morte. O rei Creonte mandou enterrar Etéocles com todas as honras, mas proibiu que Polínices fosse enterrado. Estabeleceu que aqueles que violassem sua ordem seriam condenados à morte por lapidação. Mandou anunciar a sua decisão a todos, colocando homens de guarda junto ao cadáver, para evitar que alguém o roubasse e enterrasse. Antígona, atendendo ao último pedido do irmão, que morreu em seus braços, jogou uma fina camada de areia sobre o corpo, suficiente, porém para que os deuses dos Ínferos considerassem que fora enterrado. Diante da notícia, Creonte, enfurecido, ordenou que os guardas continuassem vigiando o corpo, afim de descobrir quem havia violado sua ordem. Quando descoberta, Antígona foi levada ao rei, que, após reconhecer sua sobrinha, afirma: ‘ – Sua Tola! – exclamou ele -, confessará ou desmentirá este feito? - Eu confesso – disse ela, erguendo a cabeça. - E você sabia que infringia uma lei? - Sim, sabia – disse Antígona, firma e serena. – Mas esta não é uma lei que foi dada pelos deuses imortais. Eu conheço outras leis, que não foram criadas ontem ou hoje, mas que têm um valor perene, e que ninguém sabe de onde vieram. Nenhum mortal pode infringi-las sem tornar-se vítima do ódio dos deuses de minha própria mãe. Se esta forma de agir parece-lhe tola, tolo é quem me acusa de tolice’ O ethos atinge, portanto, em Antígona, o status de lei natural de origem divina, que vincula o direito positivo, conferindo-lhe validade.” (GOMES, 2004, p.43-44)

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distinção que irá prevalecer por mais de quinze séculos, e que também pode ser interpretada

em conjunto com a dualidade de Platão.

Aristóteles faz uso de dois critérios para identificar as duas espécies de Direito:

a)o direito natural é aquele que tem em toda parte (pantachoû) a mesma eficácia (o filósofo emprega o exemplo do fogo que queima em qualquer parte), enquanto o direito positivo tem eficácia apenas nas comunidades políticas singulares em que é posto; b) o direito natural prescreve ações cujo valor não depende do juízo que sobre elas tenha o sujeito, mas existe independentemente do fato de parecerem boas a alguns ou más a outros ou más para alguns. Prescreve pois ações cuja bondade é objetiva [...]O direito positivo, ao contrário, é aquele que estabelece ações que, antes de serem reguladas, podem ser cumpridas indiferentemente de um modo ou de outro, mas uma vez reguladas pela lei, importa [...] que sejam desempenhadas do modo prescrito pela lei (BOBBIO, 1995, p. 17)

Dessa forma, Aristóteles constata um ordenamento jurídico que, por ser natural, é

decorrente da própria estrutura de mundo existente. São leis universais e anteriores ao homem

que estabelecem o que é bom ou mau, justo ou injusto de forma objetiva, e por isso,

incontestável. Por isso mesmo, o direito natural é o mesmo em todos os lugares, a todo o

tempo. Sua legitimidade tem espeques em valores metafísicos de justiça, o que remete

Aristóteles à transcendentalidade de seu antecessor7.

Noutra senda restaria o Direito positivo, que apenas estabelecia o certo ou errado,

justo ou injusto após a definição realizada pelo homem através da lei escrita. Em suas

palavras:

A justiça política é em parte natural e em parte legal. A parte natural é aquela que tem a mesma força em todos os lugares e não existe por pensarem os homens deste ou daquele modo. A legal é o que de início pode ser determinado indiferentemente, mas deixa de sê-lo depois que foi estabelecido. (ARISTÓTELES, 2003, p.117)

Para Comparato, a ligação do direito natural com o direito positivado e escrito é

fundamental, resultando em sua utilização em prol de uma limitação do Estado já em Atenas

na Grécia Antiga:

essa convicção de que todos os seres humanos têm direito a ser igualmente respeitados pelo simples fato de sua humanidade nasce vinculada a uma instituição

7 “Em Aristóteles encontramos, também, pela primeira vez, uma definição do direito natural e do direito positivo: ‘o direito da pólis divide-se no natural e no legal (positivo). Natural é aquele que tem a mesma validade por toda a parte, independentemente de parecer bom aos homens ou não; legal é aquele cujo conteúdo é, à partida, indiferente, mas que, uma vez estabelecido por lei, tem o seu conteúdo definido’” (KAUFMANN, 2002b p. 68).

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social de capital importância: a lei escrita como regra geral e uniforme, aplicada igualmente a todos (COMPARATO, 2001, p. 12)

É com base nessa idéia que surge o jus gentium (direito das gentes). Ligado à

aplicação de um Direito Internacional (REZEK, 2006, p. 03 e ss), o direito positivo da época

reconhecia o direito das gentes com base na legitimidade do direito natural. Ora, acreditada a

existência de valores e leis universais, no mínimo essas normas deveriam ser aplicadas aos

estrangeiros, afinal, sua incidência alcançava todos os povos!

A perspectiva universalista e objetiva de justiça que encampa o direito natural coaduna

com a ontologia aristotélica que marca as idéias do filósofo. Sua preocupação ontológica, a

observância do “ser enquanto ser” é perceptível até mesmo em uma das definições que

Aristóteles elabora acerca da metafísica, sendo para ele a ciência responsável pela análise da

totalidade do ser enquanto objeto8.

Resta delineada a “filosofia do objeto” ou “filosofia do ser”, forma de pensamento que

foca sua atenção nas coisas em si, no objeto como potência e que tem em sua essência a

definição de sua finalidade e utilização. Para conhecer a realidade, deveria o homem se ater a

descobrir o que as coisas querem “transmitir” para o intérprete, já que as mesmas já detêm um

propósito que independe da pragmática do sujeito9. O objeto se esgota em si mesmo, pois

detentor prévio de conteúdo e finalidade.

Na mesma senda, seu entendimento acerca da utilização da linguagem. “Aristóteles

acreditava que as palavras só possuíam um sentido definido porque as coisas possuíam uma

essência” (STRECK, 2003, p. 118). Ou seja, por representarem objetos, que por sua vez

detinham em si um uma materialidade exauriente em sua própria existência, as palavras e

expressões contemplavam um conteúdo material já definido ontologicamente: os significados

dos signos e expressões já estavam delimitados previamente ao uso pelo sujeito.

É a idéia que ainda hoje encampa alguns teóricos defensores de uma descrição da

realidade capaz de expressar todas as nuances, e conter todo o significado anterior ao

intérprete (algo próximo ao brocardo in claris cessat interpretatio). Reside tal argumanetçaão

8 “São nada menos do que quatro as definições que Aristóteles deu da metafísica: a) a metafísica ‘indaga as causas e os princípios primeiros ou supremos’; b) a metafísica ‘indaga o ser enquanto ser’; c) a metafísica ‘indaga a substância’; d) a metafísica ‘indaga Deus e a substância supra-sensível” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 179). 9 Em um exemplo simples, podemos imaginar que um objeto qualquer, uma mesa, por exemplo, já detém uma finalidade própria que antecede o sujeito que a iria utilizar. Assim, se sua finalidade é servir de apoio para que alguém escreva algo sobre tal mesa, este objeto já tem seus propósitos de utilização pré-determinados. Assim, como explicar que essa mesma mesa pode servir como escada, se alguém subir sobre ela para trocar uma lâmpada, ou mesmo como arma, caso alguém resolva atirar essa mesma mesa sobre outra pessoa? Esses exemplos simples mostram uma falha na teoria aristotélica: o propósito e finalidade de um objeto não se esgotam no objeto em si, mas dependem da forma como o mesmo será utilizado pelo sujeito.

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na lógica do pensamento tipificante de que em um texto legal já se tem compreendido todo o

conteúdo da realidade que se quer tributar – a lei como objeto e com conteúdo pré-

determinado antes mesmo de ser interpretada.

Entretanto, à frente de seu tempo, Aristóteles percebia a necessidade de realizar a

contextualização das normas para sua incidência concreta. Para o autor,

assim como a régua de chumbo só concretiza a sua virtude prática de ajustar as molduras lésbicas ao se adaptar à forma de pedra, é através do adaptar-se ao caso, mediante o decreto corretivo, que a lei universal e por isso regra indeterminada atualiza concretamente a sua normatividade. Na concretude do caso é que se realiza e se determina a normatividade da lei (GALUPPO, 2002, p. 33)

Ainda na Antiguidade, Aristóteles – mesmo acreditando em uma ontologia dos objetos

e termos – já compreendia a impossibilidade de uma previsão abstrata capaz de fornecer

previamente todas as respostas a todos os casos. A contextualização dos textos legais é a

única forma de possibilitar a aplicação de uma norma a um determinado caso. Mais tarde

perceber-se-á o quão importante se faz a observância da pragmática no que tange à construção

dos conteúdos normativos, identificando que apenas com a análise da praxis há identificação

do verdadeiro conteúdo de uma norma jurídica.

Mas não apenas. Caso nosso leitor não tenha se convencido, com os exemplos

trabalhados, a presença das visões platônica e aristotélica na hermenêutica jurídica atual, será

possível, já na próxima seção, atrelar a evolução filosófica ora vista com as formas e técnicas

interpretativas que marcaram (e ainda marcam) a construção do Direito.

2.3 O direto natural teológico

As bases da metafísica proporcionadas pelos pensadores gregos impulsionaram a

criação de um pensamento que aglutinou a concepção de um plano natural – prévio ao

Homem e detentor de regras universais imutáveis no tempo-espaço – com a religiosidade que

marcou a Idade Média.

Dentre as várias escolas filosóficas pós-Aristóteles (peripatéticos, os cínicos, os

epicuristas, para citar alguns) o estoicismo foi a ponte de ligação entre o pensamento

desenvolvido na Antiguidade para a teoria do direito natural teológico, mais especificamente,

o direito natural cristão (KAUFMANN, 2002b, p. 70).

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Os estóicos não se prenderam apenas aos pensamentos supra-físicos platônicos, mas

sem dúvida conservaram suas características, que ao final, se mostraram determinantes para o

delineamento de um dualismo naturalístico-teológico.

Quando dos estudos realizados pela escola estóica, os questionamentos acerca da

filosofia ultrapassaram os limites geográficos das Cidades-Estado gregas. Com isso, ocorreu o

encontro dessas reflexões com o império romano, tal como Cícero, que mantinha a idéia de

existência de uma lei natural intrínseca e reguladora homem desde o seu nascimento (lex

indita10).

Conhecedores da escrita, os romanos faziam seu uso como uma forma de tornar mais

segura e justa a aplicação do Direito, em detrimento da mera utilização de costumes que,

paulatinamente, foi cedendo espaço para as normas positivadas. Em decorrência disto, a

compilação sistematizada de regras positivadas realizada pelos romanos e corporificada no

Corpus Juris Civiles representou um embrião da codificação que mais tarde invadiria os

ordenamentos jurídicos ocidentais na modernidade.

Com a derrocada do império romano, os povos bárbaros invadiram a região antes

ocupada pela complexa estrutura jurídica, política e social decorrentes da dominação romana.

Os conhecimentos dos predecessores eram infinitamente à frente da realidade esperada pelos

bárbaros, incapazes de realizar a imposição de seu aparato ideológico, jurídico e técnico.

Dessa forma,

... parcela significativa da cultura dos dominados foi assimilada pelos conquistadores. O latim permaneceu como língua escrita. Carente do corpo técnico capaz de desempenhar funções tão especializadas, Clóvis, rei dos francos optou por sua conversão ao catolicismo na Catedral de Reims. Seus objetivos políticos eram claros: facilitar a dominação, ganhando o melhor corpo de burocratas para colaborar na administração de seu império: o clero católico. (CRUZ, 2004p. 39)

Após a incorporação de uma fusão entre o direito canônico e o direito tribal, o

primeiro foi gradativamente garantindo sua superioridade e importância. Isso se deu não

apenas pela carência de suporte teórico do Direito vulgar – que não lograva o necessário êxito

na resolução dos conflitos – mas também em razão da postura assumida pelo catolicismo de

expansão de seus domínios consubstanciada na criação de universidades e mosteiros ao longo

10 “Tal como Sócrates, os estóicos, sobretudo Cícero, defendiam a idéia de que a lei natural seria inata ao homem como lex indita [...] Foi por meio do estoicismo que se iniciou o contacto entre as filosofias grega e romana. Já foi mencionado acima, que a fórmula do suum cuique, que contém a idéia fundamental da justiça, foi cunhada por Cícero. Sob a influência de Cícero, surgiu depois também, em Roma, o ius gentium, que não tem o significado actual de direito das gentes, era antes direito natural e, com tal, válido para qualquer homem, fosse ele cidadão ou estrangeiro, livre ou escravo” (KAUFMANN, 2002b, p. 73-74).

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da Europa. Ciente disso, Vaz afirma que “a partir de Justino no século II e dos Alexandrinos

Clemente e Orígenes no século III, tem lugar um esforço constante para se integrar

organicamente a filosofia no discurso religioso” (VAZ,1997, p. 296).

Nessa toada, a dogmática da Igreja Católica, que já havia tomado contato com a

doutrina filosófica da Antiguidade, passou a exercer influência ímpar nos ordenamentos

jurídicos.

A partir de então, esses mesmos ordenamentos jurídicos passariam a buscar a

fundamentação das normas positivadas em leis eternas e imutáveis situadas em um plano de

existência metafísico, tal qual defendido por Platão. Ocorre que, com a presença cristã na

construção dogmática e científica, a força legitimadora dessas leis seria justamente a vontade

divina.

As mesmas características de imutabilidade e universalidade presentes no Direito

natural de Platão e Aristóteles persistiram. Também aqui restava presente uma cisão entre

dois planos: um plano superior e retor de regras norteadoras da própria existência humana

onde, previamente, já se estabelecera quais ações eram naturalmente boas ou más, justas ou

não; e uma esfera inferior e secundária, um ordenamento positivado que precisava do trabalho

humano terreno para sua construção.

Entretanto, a partir deste momento, torna-se possível a identificação de uma origem

“personificada” desse Direito natural e suas regras inatas aos homens.

Com a ascensão da Igreja Católica ao poder político, no decorrer da Idade Média, o racionalismo, referência característica do período clássico, foi abandonado em troca da crença em um Deus cristão, legislador todo-poderoso na formulação das leis da natureza. Essas leis divinas seriam deterministas e universais, já que a vontade de Deus não se modificaria no decorrer da história e sempre alcançaria todos os lugares do globo (BARBOSA, 2006, p. 202).

Nessa trilha, Santo Agostinho, o fundador da patrística, foi o primeiro a reunir

conscientemente a filosofia grega da Antiguidade com os ensinamentos do evangelho cristão,

abrindo os campos para o desenvolvimento do direito natural teológico.11 Por isso mesmo,

fora chamado de “o primeiro filósofo existencialista cristão” (KAUFMANN, 2002b, p. 75).

11 É interessante notar que a concepção de aceitação de um direito natural proveniente da mera existência do homem é uma característica da filosofia ocidental, e que não percorreu todo o globo. Nesse sentido, “a noção das leis da natureza é uma noção ocidental. Na China, no Japão, jamais existiram leis da natureza. Os jesuítas foram recebidos com ironia quando falavam das leis da natureza porque, na concepção oriental, a natureza é, por definição, espontaneidade e harmonia, e, nessas condições, falar de leis da natureza parece o cúmulo do antropomorfismo” (PRIGOGINE, 2003, p. 52).

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Agostinho, cuja contribuição se deu entre os séculos IV e V, teve sua formação

fortemente marcada pelas obras de Platão, razão pela qual sua própria teoria apresenta as

marcas que permitem identificar a proveniência grega de suas idéias. Tal qual o filósofo da

Antiguidade, Agostinho percebeu a secção entre corpo humano e alma, entre mundo terreno e

transcendental. Enfim, também para ele, o dualismo seria o traço marcante e caracterizador do

pensamento.

Dessa forma, assim como Platão assumira a existência de um plano superior

consubstanciado no Mundo das Idéias acessível por meio da razão, o neoplatônico Agostinho

percebeu “idéias” superiores. Entretanto, para o segundo, referidas “idéias” significavam a

verdadeira vontade divina.

Daí a não dinamicidade do plano supra-físico: assim como Deus é imutável e perfeito,

sua vontade também seria inalterável, correspondendo a regras e valores universais que

deveriam ser seguidos por todos os homens em qualquer tempo e qualquer lugar.

Destarte, Agostinho incrementa a metafísica platônica com a religiosidade cristã. Se

Platão realizara a “segunda navegação” que deveria ser alvo do filósofo em sua busca das

Idéias pela racionalidade, Agostinho, usando os mesmos termos, inaugura a “terceira

navegação” (REALE; ANTISERI: 2003b p. 91).

A mera desenvoltura intelectual proposta por Platão não era capaz, em sua concepção,

de atingir a Verdade do plano superior – que para Agostinho era o próprio sinônimo de Deus.

Apenas munido da razão (filosofia) em conjunto com a fé poderia o homem atingir a

plenitude. É interessante notar que, para ele, não há uma relação excludente entre as esferas

da racionalidade e da fé, mas sim complementaridade entre as mesmas, daí a noção de uma

filosofia cristã.

A fé não substitui nem elimina a inteligência; antes pelo contrário, como já acenamos, a fé estimula e promove a inteligência. A fé é um ‘cogitare cum assensione’, um modo de pensar assentido; por isso, sem pensamento não haveria fé. E analogamente, por seu turno, a inteligência não elimina a fé, mas a fortalece e, de certo modo, a clarifica. Em suma: fé e razão são complementares (REALE; ANTISERI, 2003b, p. 88)

As idéias agostinianas já esboçam uma relação entre a vontade divina – fonte de toda a

realidade – e o direito positivo. Este último, situado no plano terreno, deve se adequar à sua

matriz transcendental divina. Entretanto, por estar ligada também aos homens premiados com

o livre arbítrio, a lei positiva é mutável no tempo, sendo também chamada por ele de “lei

temporal” (GOMES, 2004, p.73).

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Não obstante a fusão entre filosofia e fé possibilitadora de uma maior força da

dogmática cristã seja marcada pela patrística agostiniana, é Santo Tomás de Aquino quem

pode ser apontado como a expressão da vontade eclesiástica em dominar a construção de

conhecimento na Idade Média.

Tomás de Aquino, que firmou em Aristóteles sua ligação com a filosofia da

Antiguidade, desenvolveu uma metafísica do ser, significando, para ele, a potencialidade

presente na essência dos entes. Nessa toada, o homem é capaz de perceber a finalidade que os

objetos naturalmente se prestam, sua ordem finalística, cujo ápice reside na vontade divina12.

Entretanto, para caracterização do pensamento hermenêutico tomista, é sua

compreensão acerca dos diversos planos legais que mais nos interessa.

Aquino distinguiu quatro espécies de leis estruturadas hierarquicamente: lei eterna, lei

natural e a lei humana. Acima delas, a lei divina.

A lei eterna, de origem divinatória, compõe a ordem universal que rege todas as

coisas. Graças à sua origem transcendental, a vontade divina é incorruptível e universal. “Os

universais são perpétuos e incorruptíveis, mas o verdadeiro é maximamente universal, pois é

convertível com o ente; portanto a verdade é perpétua e incorruptível [...] ‘porque a justiça é

eterna e imortal’, mas a verdade faz parte da justiça” (TOMAS DE AQUINO, 1999, p.

197;195).

Todos os seres irracionais seguem naturalmente os ditames da lei eterna, porém, ao

homem apenas há tal obediência por força de seu próprio arbítrio, liberdade essa que Aquino

não apenas reconhece, como argumenta ser fundamentadora da lei humana.

Não obstante seja a lei eterna a fonte divina que tudo ordena, apenas Deus e os bem-

aventurados têm acesso direto à mesma. A todos os demais apenas indiretamente, através da

expressão da lei eterna na lei natural é possível conhecer o conteúdo natural regente. Essa lei

natural é responsável por apresentar à racionalidade humana a essência de bondade ou

maldade, justiça ou injustiça, e seu núcleo pode ser expresso na idéia de que “deve-se fazer o

bem e evitar o mal”.

Caracterizando – e criticando – toda a doutrina naturalista, Kelsen faz sucinta

exposição:

12 “Portanto, a verdade está primeira e propriamente no intelecto divino; própria, mas secundariamente no intelecto humano; nas coisas, todavia, imprópria e secundariamente [...] supondo que o intelecto humano não existisse nem pudesse existir, as coisas permaneceriam em sua essência; entretanto, a verdade que delas se diz em comparação com o intelecto divino acompanha-as inseparavelmente, posto que estas só podem existir pelo intelecto divino que as produz no ser.”(TOMAS DE AQUINO, 1999, p.181).

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Acima do Direito positivo, imperfeito, criado pelo homem, existe um Direito natural, perfeito (porque absolutamente justo), estabelecido por uma autoridade divina. Consequentemente, o Direito positivo é justificado e válido apenas na medida em que corresponda ao Direito natural (KELSEN, 1997, p.142)

Dessa forma, em que pese o intelecto humano ter acesso direto à lei natural como

intermediária da lei eterna, ao homem é dado escolher seguir ou não o caminho da bondade e

da justiça. Afinal, há pessoas que são propensas a se entregarem aos vícios e distanciarem da

ordem estabelecida pelo plano divino. Por isso mesmo, se faz necessária uma terceira ordem

legal: a lei humana, que faz uso de coerções e persuasão com escopo de evitar o mal que pode

ser cometido.

A lei escrita pelos homens – lei positivada – para ser efetivamente válida, deveria se

coadunar com os preceitos determinados pela lei natural, e consequentemente, pela lei eterna:

À questão de saber se é válida uma lei humana, que se desvia da lei natural, S. Tomás responde com uma referência a Santo Agostinho: ‘Uma lei injusta não é nenhuma lei’, e acrescenta: uma tal lei que se desvia da lei natural é ‘uma destruição da lei’, uma legis corruptio.(KAUFMANN, 2002b, p. 77)

Por conseguinte, Santo Tomás concebeu uma hierarquização de normas em que uma

inferior buscava legitimidade de validade em uma norma superior, cujo valor hierárquico

correspondia à gradativa abstração da mesma.

Ocorre, porém, que a lei eterna, fonte maior da ordem natural e legal que deve reger os

comportamentos humanos e que garante a validade e legitimidade de todas as normas e

condutas tinha apenas um intérprete. De forma conveniente para a Igreja, Aquino entendia

que não era possível ao homem atingir o conteúdo da lei suprema. Necessário um

intermediário que pudesse certificar-se da correta interpretação da revelação. Para ele, “se o

intelecto pudesse oferecer a visão beatífica de Deus, a vontade humana não poderia deixar de

querê-la. Mas aqui em baixo, isso não é possível”(REALE, ANTISERI, 1990 p. 566) E esse

intermediário não poderia ser outro que não a própria Igreja Católica.

Nessa toada, Aquino13 traz à Igreja a fonte de decisão acerca da legitimidade do direito

positivado. Apenas ela, com acesso à vontade divina, seria capaz de afirmar se uma lei

13 Além da teoria de fundamentação teológica e monopolista da Igreja, a escolástica medieval representa outra vertente de contribuição à hermenêutica, já apresentando crença a uma linguagem unívoca extremamente utilizada pelos modernos em sua busca incessante pela matematização do Direito: “Tem-se por objectivo a linguagem inequívoca, exacta. Neste sentido, já a escolástica medieval procurara compreender a linguagem como espelho (speculum) da realidade e, com o auxílio de uma ‘gramática especulativa’, pôr a descoberto os princípios universais e imutáveis, segundo os quais a palavra, enquanto sinal, seria mediadora entre as coisas e o entendimento e, como tal, veículo de conhecimento verdadeiro” (HAFT, 2002, p. 311).

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humana estava ou não de acordo com a vontade de Deus. E a mesma religiosidade autoritativa

restava presente na construção do conhecimento da época:

a pesquisa científica medieval passava também ao monopólio da Igreja Católica. Dessa maneira, os métodos retóricos da física/biologia do estagirita foram, então, abonados por Aquino e pelo Papado como verdades absolutas na percepção humana da lei eterna promovida pela Igreja. Logo, qualquer crítica à física aristoteliana incluindo a visão geocêntrica do Universo se tornaria uma afronta ao poder temporal da Igreja (CRUZ, 2004, p.48)

É interessante notar que, quando do período do desenvolvimento das idéias aludidas,

não se tinha uma estruturação tripartida dos poderes, tal qual conhecida atualmente. Nessa

trilha, as decisões provenientes da atividade judicante se mostravam como a mais imponente

fonte jurídica a ser respeitada. Ocorre, porém, que a interpretação acerca de tal fonte deveria

representar, invariavelmente, a vontade eclesiástica.

Não é difícil proceder a relação entre o argumento de autoridade tomista – força da

vontade superior divina relatada pela Igreja – com a prática ainda comum de nossos juristas

de conceberem como Direito, apenas a “verdade revelada” pelas súmulas expedidas pelos

tribunais, únicos detentores da sabedoria jurídica a ser meramente copiada, tal qual a Igreja de

outrora. Assim, afirmam de forma categórica, encerrando a possibilidade argumentativa e

interpretativa, com autoridade: “está na súmula!”. Mal percebem a fragilidade cognoscitiva a

que se entregam ao abrirem mão da capacidade de pensarem o Direito fora dos moldes quase

transcendentais que lhes são apresentados.

Pois bem, detentora do crivo de validade absoluto, a Igreja passou a ser a controladora

das ciências, pensamentos e normas produzidas na baixa Idade Média.

O surgimento dos Estados modernos, culminando no fim do descentralizado sistema

feudal propiciou uma manutenção do poder eclesiástico. A centralização do poder

monárquico precisou compor uma relação simbiótica com a Igreja, que fundamentava o poder

da coroa com suas teorias divinatórias e contava com excelente corpo de burocratas, e em

troca, mantinha sua influência em acordo com o Estado. Entretanto, o fluxo excessivo de

dominação buscado pela cúpula eclesiástica culminou no refluxo de sua própria negação.

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2.4 O homem na era das certezas

Nos termos esboçados supra, a patrística agostiniana seguida da escolástica de Aquino

incorporaram à concepção da Antiguidade de conhecimento da realidade pela racionalidade –

segunda navegação –, a completude de fé e razão na busca da vontade divina.

Com o advento do Estado moderno e a centralização dos poderes monárquicos, foi

aberto o caminho para o desenvolvimento do humanismo, antropocentrismo e individualismo

que iriam auxiliar na alteração da forma de acesso do homem à realidade empírica.

Passou o homem a observar a regularidade dos fenômenos naturais na busca de uma

coerência de regras e princípios ordenadores da repetibilidade dos eventos do mundo em uma

noção de causa/efeito infalível. Para isso, parou de buscar toda a legitimidade em um

fundamento divino metafísico em benefício de uma ordem lógica, de leis naturais

responsáveis por regular com precisão absoluta os eventos observados na realidade.

Leciona Boaventura Souza Santos que

um conhecimento baseado na formulação de leis tem como pressuposto metateórico a idéia de ordem e de estabilidade do mundo, a idéia de que o passado se repete no futuro. Segundo a mecânica newtoniana, o mundo da matéria é uma máquina cujas operações se podem determinar exatamente por meio de leis físicas e matemáticas, num mundo estático e eterno a flutuar em um espaço vazio [...] Esta idéia do mundo-máquina é de tal modo poderosa que vai transformar na grande hipótese universal da época moderna: o mecanicismo (SOUZA SANTOS, 2001, p. 17).

A concepção newtoniana de um “mundo-máquina” mencionado pelo autor ibérico

ilustra bem o paradigma de conhecimento que começa a se formar a partir do século XVI. O

homem começa a querer se agarrar na “era das certezas”, em uma busca frenética pela

invariabilidade das causas e conseqüências dos eventos, em um superdimensionamento da

segurança consubstanciada em resultados matematicamente previsíveis. Tudo isso embasado

na crença de que a razão humana individual, despida de qualquer interferência externa –

inclusive religiosa – seria capaz de perceber essas leis universais.

Nesse sentido, fazendo referência ao pensamento científico que passa a se formar no

período, Rangel Garcia Barbosa faz menção ao “mito da verdade una, absoluta e verificável

como pressuposto de toda e qualquer teoria que, daí por diante, aspirasse ser reconhecida

como ‘científica’” (BARBOSA, 2006, p. 205).

E, de fato, assim ocorreu. Apenas aquelas áreas do conhecimento capazes de fornecer

um rigor aritmético em seus resultados e previsões poderiam se intitular como “ciência”.

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As áreas sociais, com suas variações e imprevisibilidades devido ao seu próprio objeto

investigativo, se viram relegadas a uma posição inferior. Por isso mesmo, passaram a buscar

leis com as mesmas características das ciências exatas. Prossegue Barbosa, delineando o que

poderia ser considerada uma lei cientificamente válida – concepção que, posteriormente,

adentraria também no seio das ciências sociais, mais especificamente, do Direito:

Tendo em vista esses três elementos (legalidade, determinismo e reversibilidade), poderia rascunhar que uma lei científica, nas concepções clássicas seria aquela capaz de prever acontecimentos futuros, reconhecer acontecimentos passados e dominar todas as variáveis de comportamento e posição do seu objeto (BARBOSA, 2006, p. 206) (acréscimos nossos).

Reparem como o delineamento das certezas aritméticas aqui trabalhadas se encaixa

perfeitamente na construção doutrinária referente à legalidade e tipicidade tributárias. É a

mesma idéia de uma legislação que possa determinar, a priori , quais serão os resultados das

atividades interpretativas no futuro, juntamente com a garantia de repetibilidade e identidade

de resultados/interpretações nas mais diversas experiências ocorridas. Desde já se pode acenar

como nossos autores ainda se amarram à tradição da modernidade.

Os detalhes que marcaram a consolidação dessa forma de pensamento, porém, ainda

não foram apresentados ao leitor.

Cruz (2004, p. 56 e ss.) aponta quatro principais fatores para a alteração do modelo de

conhecimento na modernidade: a Reforma Protestante, a consolidação do capitalismo, a

Revolução Científica e o Racionalismo Filosófico.

Confrontadora do poder papal, a Reforma protestante abalou a supremacia católica na

Europa, principalmente na figura de Martinho Lutero, símbolo da contestação religiosa.

Lutero acreditava na igualdade formal e aritmética entre os homens, o que o coloca

também ligado à isonomia das Revoluções burguesas. Diante disso, Lutero criticava

vivamente o monopólio interpretativo da Bíblia que a Igreja adotou com base na doutrina de

Tomás de Aquino. Para ele, todos os homens seriam capazes de ler e compreender os

ensinamentos divinos, não necessitando de intermediários para dizer quais as leis divinas e

eternas.

Com esse pensamento, Lutero exaltou o antropocentrismo, colocando o homem não

como um figurante distante do conhecimento, mas sim como ator que busca, por si próprio e

com sua racionalidade, o acesso à verdade.

O foco dado ao indivíduo prosseguiu com a extinção do regime feudal de estrutura

estamental e a ascensão capitalista, que propiciava ao homem posição social não em razão de

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nascimento, mas sim pelo valor que o trabalho lhe garantia14. Com isso, cada indivíduo

passou a ser capaz de escolher seu modo de vida, dando ao homem aquilo que antes não

detinha: controle de seu destino.

Seguindo a linha de contestação da dominação eclesiástica, a Revolução Científica se

mostrou determinante na alteração da forma de conhecimento da realidade empírica. A Igreja

Católica, fincada na suposição de única intérprete das leis eternas, e fortemente calcada nas

bases aristotélicas, monopolizava/controlava toda a produção do conhecimento (CRUZ, 2004,

p. 58 e ss.). Apenas aquelas teorias e obras validadas pela vontade papal detinham o privilégio

de serem tidas por aceitáveis, escapando da excomungação e da censura do Index

inquisitorial.

A derrocada da infalibilidade da Igreja se inicia com Copérnico, responsável pela

demonstração da falácia da teoria geocêntrica antes prevalecente. Ao colocar o Sol no centro

do universo, Copérnico produziu uma reviravolta na forma de pensar o mundo. Galileu

Galilei, por sua vez, apresentou à sociedade a compreensão de um universo calcado em leis

matemáticas compondo um sistema lógico a ser descoberto e compreendido pelo homem e

ausente do crivo religioso (BARROSO, 2003, p. 23).

Entretanto, a alteração de bases epistemológicas em detrimento da submissão da

ciência à vontade da Igreja não se deu pacificamente. Galileu Galilei foi obrigado a

reconsiderar e “desmentir” suas teses para continuar vivo, porém enclausurado em prisão

domiciliar.

Giordano Bruno não teve sorte tão branda. Árduo defensor das idéias copernicanas,

Bruno foi preso, torturado, e relutante em se retratar tal qual feito por Galileu, foi finalmente

condenado à morte pelas heresias prolatadas contra a Igreja15. Seu destino fora efetivamente

determinante para o surgimento do pensamento cartesiano que se seguiria.

14 “Tal individualismo consolidou-se no campo econômico com o esgarçamento das relações feudais. O homem não se posicionava mais na sociedade em razão de seu nascimento, seu status não provinha mais de suas origens de classe ou estamento. Ao contrário, o aquecimento do comércio, originariamente pelo fim das epidemias e das invasões bárbaras pelas Cruzadas e depois pelo descobrimento das Américas, bem como as contínuas e sangrentas revoltas camponesas e a centralização excessiva do poder político na figura do rei, foram paulatinamente desfazendo as relações medievais entre senhor e servo. O indivíduo passou a posicionar-se socialmente em razão do trabalho e, mais radicalmente, do valor que esse trabalho lhe proporcionava [...] O pluralismo econômico ajudou a fazer desaparecer a concepção de um projeto único da comunidade católica da Cidade de Deus agostiniana” (CRUZ, 2004, p. 57-58). 15 “Em 1591, a convite de um nobre veneziano, voltou imprudentemente à Itália. Um ano depois, foi denunciado ao Santo Ofício, preso, transferido para Roma e encarcerado. Nos sete anos seguintes, apesar da mais extrema e prolongada tortura, discutiu tenazmente com a Inquisição. À exigência dos Inquisidores de que se retratasse, recusou-se obstinada e repetidamente. Por fim, em 1600, foi oficialmente condenado por heresia e sentenciado à morte. A 17 de fevereiro daquele ano foi para a estaca. Levaram-no amordaçado, a fim de que sua continuada rebeldia não se revelasse embaraçosa para os carrascos ou perturbadora para os espectadores reunidos” (BAIGENT; LEIGH, apud CRUZ, 2004p. 59).

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Ainda que a contragosto do poder cristão, a matematicidade, a certeza e

previsibilidade já haviam sido incorporadas nas ciências naturais tais como a química e a

física. Nessa trilha, as ciências sociais, carentes desses elementos, perdiam seu status de

cientificidade, passando por uma grave crise se identidade e validade. Isso porque, a princípio,

as ciências sociais não podem estabelecer leis universais porque os fenômenos sociais têm um longo caminho a percorrer no sentido de se compatibilizar com os critérios de cientificidade das ciências naturais [...] as ciências sociais não podem estabelecer leis universais porque os fenômenos sociais são historicamente condicionados e culturalmente determinados, [...] os fenômenos sociais são de natureza subjectiva e como tal não se deixam captar pela objectividade do comportamento; as ciências sociais não são objectivas porque o cientista social não pode libertar-se, no acto da observação, dos valores que informam a sua prática geral e, portanto, também a sua prática de cientista (SOUZA SANTOS, 2001, p.10 a 21).

Modificando esse cenário, Descartes seria o responsável por garantir às ciências

humanas a racionalidade e a certeza, antes exclusivas das ciências descritivas da natureza.

A princípio, Descartes havia escrito uma obra com tema relacionado ao estudo físico

da luz. Contudo, assustado com o destino lançado a Giordano Bruno e Galileu, René

Descartes postergou o lançamento de seu trabalho, publicando anteriormente a obra “Discurso

do método” em uma tentativa de justificar “futuras” opiniões contrárias às bases científicas

validadas pela Igreja e testar as opiniões resultantes16 17.

Assumindo sua predileção pelas ciências matemáticas em razão da certeza delas

resultante, Descartes parte para a busca de uma metodologia que fosse universal para a

elaboração de qualquer pensamento científico – onde podemos também situar o Direito.

Ele buscava um método de absoluta racionalidade que fosse capaz de garantir a

verdade do objeto pesquisado. Se assim o era na matemática, também o deveria nas demais

ciências: “pois, enfim, o método que ensina a seguir a verdadeira ordem e a enumerar

exatamente todas as circunstâncias do que se procura contém tudo o que dá certeza às regras

de aritmética [...] por meio dele, tinha a certeza de usar em tudo minha razão” (DESCARTES,

1996, p.25-26).

16 “Em O mundo ou tratado da luz, Descartes desenvolvera, a propósito do problema particular da luz, as idéias diretrizes de sua física. A obra influenciaria definitivamente a antiga cosmologia de inspiração aristotélica, ainda ensinadas nas escolas e fundaria , finalmente, o mecanicismo dos modernos. Mas a doutrina era vinculada às concepções heliocêntricas que, desde Copérnico, despertavam um interesse cada vez maior. Ora, o Santo Ofício acabava de condenar Galileu, que delas se utilizava. Assustado, Descartes renunciou à publicação de seu livro.” (DESCARTES, 1996, prefácio p. XVII) 17 O receio de Descartes fica claro ao longo de sua obra. Não obstante queira o autor afirmar a neutralidade do conhecimento, e a ausência de espaço para a religiosidade na construção do pensamento científico, Descartes vacila a todo o momento, fazendo questão de sempre mencionar sua ligação com a fé cristã.

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Para assim demonstrar a previsibilidade e a segurança racional presente nas ciências

naturais, Descartes chegou à conclusão da necessidade da exaltação da racionalidade e da

neutralidade do conhecimento científico. Ao contrário das teorias teológicas anteriores que

reuniam fé e razão, Descartes fez questão de se utilizar unicamente da racionalidade humana

para perseguir a construção científica e religiosa18.

Para ele, qualquer influência externa à razão, seja a fé, os sentidos, os preconceitos

anteriores, as crenças ou qualquer outro elemento deveria ser distanciado do pesquisador.

Apenas assim o cientista conseguiria identificar as universais regras de causa/efeito

responsáveis realizar a descrição do mundo empírico. Foi uma reviravolta que alterou

profundamente o método de acesso ao conhecimento!

Assim, porque os nossos sentidos às vezes nos enganam, quis supor que não havia coisa alguma que fosse tal como eles nos levam a imaginar [...] pois enfim, quer estejamos acordados, quer dormindo, nunca nos devemos deixar persuadir senão pela evidencia de nossa razão. Há que se notar que digo de nossa razão, e não de nossa imaginação, nem de nossos sentidos. Assim, embora vejamos o sol muito claramente, nem por isso devemos julgar que ele seja apenas no tamanho que o vemos (DESCARTES, 1996, p. 37-45)

Esta é a concepção que iria invadir a produção científica na modernidade. Algo

próximo à idéia tão difundida de que, ao analisar uma lide, o julgador deve abstrair de todas

suas opiniões prévias, de todos seus preconceitos e crenças sob pena de “viciar” o resultado

almejado.

Esta postura ganhou, no cenário jurídico, a fórmula de subsunção da previsão

legislativa aos fatos concretos percebidos pelo observador jurídico isolado de qualquer

elemento subjetivo que viesse a macular a certeza interpretativa. É entendimento que bem

coadunou com a visão liberal de contenção absoluta das vontades estatais que, quando do

Absolutismo real, adentravam de forma excessiva na esfera dos direitos individuais, de

liberdade (Direito Penal) e patrimônio (Direito Tributário). Afinal, estavam a buscar

elementos que garantissem, com a certeza que Decartes prometia, o enlaçamento dos arbítrios

de outrora. Nessa trilha, caso pudesse o intérprete “intrometer” no resultado interpretativo,

restaria desvirtuada a rigidez das leis científicas que apenas a razão conseguiria alcançar.

18 Apesar de reconhecer a modificação da filosofia iniciada por Descartes, Henrique Lima Vaz entende que não há uma verdadeira ruptura com o paradigma antigo-medieval: “À medida que avançamos no conhecimento dos grandes sistemas, das correntes profundas, das matrizes conceptuais determinantes do pensamento antigo-medieval vemos, não sem surpresa que a pretensa ruptura dos modernos operou-se em domínios bem mais restritos do que inicialmente se pretendera. Uma extraordinária reiteração de temas, problemas e categorias atravessa toda a história da filosofia ocidental e lhe confere uma unidade e continuidade sem dúvida dinâmicas e polimorfas, mas incontestáveis...” (VAZ, 1997, p. 288).

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Ingenuidade pensar, porém, que tal postura se restringiu ao período liberal ou à

formulação de Descartes durante o século XVI. Desde já, adiantando um debate que se verá

ao final do capítulo, observe como referida concepção avança até os dias de hoje não sendo

muito distinta a construção teórica de Alberto Xavier:

A exigência de ‘reserva absoluta’ transforma a lei tributária em’ lex stricta’ (princípio da estrita legalidade), que fornece não apenas o fim, mas também o conteúdo da decisão do caso concreto, o qual se obtém por mera dedução da própria lei, limitando-se o órgão de aplicação a subsumir o fato na norma, independentemente de qualquer valoração pessoal (XAVIER, 2001, p. 18) (grifos nossos)

Nesse sentido, a perspectiva de um Direito unicamente ligado à razão é tributária a

Descartes, que expandiu para a área das ciências sociais a busca pela certeza imaculada pela

fé e pelos sentidos.

Se ao francês é atribuída a separação do amálgama normativo antes existente,

retirando-lhe a religião, Kant (2003) continuou o trabalho cartesiano, separando o direito da

moral19, e realizando ainda uma mudança paradigmática sobre a forma de pensar.

O prussiano Immanuel Kant20 se deparou com uma realidade epistemológica dividida

entre racionalistas e empiristas. Segundo os primeiros – dentre os quais apontamos Descartes

e Spinoza – a racionalidade intelectual do homem era instrumento suficiente e necessário para

se conhecer a realidade. Para eles, todo o conhecimento humano estava lotado na razão, sendo

dispensados os dados fornecidos pelos sentidos tal qual mencionado supra. Noutro lado, os

empiristas – p.e. Hume – afirmavam que apenas através da experiência, apenas por meio do

sentir humano é possível reunir subsídios para conhecer o mundo.

Kant refutou o absolutismo das duas correntes. Em seu entendimento, o homem

necessita tanto dos dados fornecidos pelos sentidos, quanto do intelecto para a formação do

conhecimento humano (GOMES, 2004, p.95 e ss.).

19 “A distinção entre legalidade (conformidade ao dever) e moralidade (conformidade ao dever pelo dever) fornece um dos elementos para a distinção entre direito e moral [...] Uma primeira característica do direito é, portanto, a de prescindir da intenção do sujeito operante – que, ao contrário, é essencial à moralidade de uma ação. Prescindindo da intenção, do motivo de quem age, o direito admite também que o motivo da ação possa ser um impulso sensível: o medo da punição. Outra característica das leis jurídicas é que seu conteúdo (aquilo que elas prescrevem) nem sempre pode ser justificado pela razão, embora a razão apresente como dever a obediência às leis jurídicas. Quando aquilo que é imposto por uma lei externa (jurídica) pode ser conhecido como dever até apenas com a razão (como acontece, por exemplo, com as leis que proíbem o homicídio ou o furto), a lei é denominada natural; já as leis que ‘sem uma real legislação externa de modo algum obrigam, e que, em conseqüência, sem essa legislação não seriam leis, denominam-se ‘leis positivas’” (ROVIGHI,1999, p. 586-587). 20 Cronologicamente, Kant está bem à frente de autores que apenas mais à frente serão mencionados, p.e., Grócio e seu jusnaturalismo. Não obstante, preferimos posicionar a menção à teoria kantiana junto às demais tentativas de isolamento do Direito dos demais elementos antes a ele aglutinados – religião e moral.

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Em sua concepção, pelos sentidos é captada não a realidade ontológica-em-si tal qual

pregado pelos empiristas, mas sim a realidade tal qual é mostrada. Gaarder (1995, p. 347-348)

faz alegoria didática e ilustrativa ao afirmar o seguinte exemplo: ao se colocar um óculos de

lentes vermelhas, a impressão dada pela visão será de que todos os objetos detêm coloração

avermelhada. Entretanto, isso não é verdade, os objetos não são todos vermelhos na realidade,

apenas essa é a forma que eles se apresentam em razão dos óculos utilizados. Da mesma

forma a impressão acerca dos dados dos sentidos. Não se apreende a realidade tal qual é, mas

sim tal qual se mostra para o sujeito.

Daí a necessidade de conjugação com a razão. Caso se tenha um substrato decorrente

da experiência sensitiva, passa-se a depender agora da razão para “processar” esses dados. Por

isso, Kant fala na existência de “formas” ou “intuições puras” consubstanciadas nas noções de

tempo e espaço que são responsáveis por amoldar os dados derivados da experiência na

formação do conhecimento (REALE; ANTISERI, 2005, p. 357 e ss).

Ora, é de perceber que com essa teoria, Kant reformula a filosofia até então vigente.

Conforme mencionado anteriormente, desde a Antiguidade é viável identificar uma “filosofia

do objeto”, na qual cabia ao homem tentar conhecer qual a essência que o objeto tinha em si.

Dessa forma, o sujeito “girava em torno” do objeto.

Kant inverte a ordem desses elementos. Não é o homem que deve conhecer as “leis do

objeto”, e sim as impressões do objeto que devem se amoldar à racionalidade humana! A

partir de então, é o objeto que deve girar em torno da razão humana21. Assim sendo, da

mesma forma que Copérnico inverteu os papéis entre o Sol e a Terra, Kant realizou sua

“revolução copernicana” ao estabelecer a primazia dos objetos à capacidade cognoscitiva

racional do sujeito, impulsionando, assim, a chamada “filosofia da consciência”, algo já

preconizado por Romagnosi22.

Cruz também percebe que

21 “Até então, tentara-se explicar o conhecimento supondo que o sujeito devia girar em torno do objeto. Mas, como desse modo muitas coisas permaneciam inexplicadas, Kant inverteu os papéis, supondo que o objeto é que deveria girar em torno do sujeito. Copérnico havia feito uma revolução análoga: dado que, mantendo a terra firme no centro do universo e fazendo os planetas girarem em torno dela, muitos fenômenos permaneciam inexplicados, ele pensou em mover a terra e fazê-la girar em torno do sol. Deixando de lado a metáfora, Kant considera que não é o sujeito que, conhecendo,descobre as leis do objeto, mas sim, ao contrário, que é o objeto, quando é conhecido que se adapta às leis do sujeito que o recebe cognoscitivamente [...] Com sua ‘revolução’, portanto, Kant supôs que não é a nossa intuição sensível que se regula pela natureza dos objetos mas que são os objetos que se regulam pela natureza de nossa faculdade intuitiva” (REALE; ANTISERI, 2005, p.358). 22“ Depois de afirmar que o Eu pensante deve estudar a si mesmo do mesmo modo que estuda a órbita dos planetas e a vegetação das plantas, Romagnosi apresenta como dado de fato aquilo que em geral era admitido a partir de Descartes e Locke, ou seja, que o eu vê os fenômenos externos somente refletidos em si mesmo, ‘em nós e jamais fora de nós’” (ROVIGHI, 2004, p.19).

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desde Kant, sabe-se que o conhecimento não pode ser reduzido a uma relação objeto/objeto [...] em outras palavras, o exame da ‘coisa-em-si’ seria uma falácia, posto que o que nos alcança sempre é a ‘coisa-para-mim’[...] o segundo paradigma da filosofia transcendental caracteriza-se pelo exame das condições subjetivas do pensar e do conhecer. Ao invés da objetividade do ente, passa-se agora ao exame das condições de possibilidade do conhecimento (CRUZ, 2007, p. 77)

É de se notar ainda que tudo isso se dá, para Kant, em um indivíduo isolado. É o

sujeito solipsista, contando com seus sentidos e sua razão cognoscitiva individual que faz as

bases de seu acesso ao mundo e ao conhecimento. Acompanhando a exacerbação da

autonomia individual que caracterizou o pensamento jurídico burguês do século XVIII,

também o filósofo concebia um homem dotado de auto-suficiência cognoscitiva23.

Segundo Kant, a razão é capaz de conduzir a vontade, e justamente em razão da

universalidade de existência de capacidade intelectiva que se pode detectar, nesses casos, lei e

princípios morais universais. E para detectar essas “leis morais”, Kant desenvolve a

concepção de imperativos categóricos24, “ordens” norteadoras dos comportamentos humanos:

O imperativo categórico, que como tal se limita a afirmar o que é a obrigação, pode ser assim formulado: age com base em uma máxima que também possa ter validade como uma lei universal. Tens, portanto, que primeiramente considerar tuas ações em termos dos princípios subjetivos delas; porém, só podes saber se esses princípios têm também validade objetiva da seguinte maneira: quando tua razão os submete à prova, que consiste em conceber a ti mesmo como também produtor de lei universal através deles, e ela qualifica esta produção como lei universal [...]qualquer máxima que não seja assim qualificada é contrária à moral (KANT, 2003 p.68)

O autor chegou mesmo a formular três regras para se reconhecer, racionalmente,

quando se está diante de um imperativo categórico:

sendo assim, o imperativo categórico só pode ser um, e sua fórmula mais apropriada é a seguinte: ‘age de modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre, ao mesmo tempo, como princípio de legislação universal’...diz a segunda:’age de modo a considerar a humanidade, seja na tua pessoa, seja na pessoa de qualquer outro, sempre como objetivo e nunca como simples meio’...a terceira formulação da Fundamentação diz: ‘age de modo que a vontade, com sua

23 “Sob as premissas da filosofia da consciência, é possível aproximar a razão e a vontade no conceito da autonomia – porém essa capacidade da autodeterminação é atribuída a um sujeito [...]ao eu da ‘crítica da razão prática” (HABERMAS, 2003, p. 137). 24 “...há dois tipos de imperativos: o hipotético, que subordina a ordem de ação a executar à obtenção de um objetivo (faça isso se você quer obter aquilo; por exemplo: economize quando jovem se quer ter uma velhice tranqüila), e o categórico, que ordena a ação em si mesma, absolutamente (não mentir, não para ter a estima dos homens ou por qualquer outra finalidade, mas porque a mentira é condenável em si). A norma moral deve ser um imperativo categórico, porque do contrário, não teria mais valor em si mesma, mas dependeria da tendência a este ou àquele objetivo” (ROVIGHI, 1999, p. 578).

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máxima, possa ser considerada como universalmente legisladora em relação a si mesma’” (REALE; ANTISERI, 2005, p. 381)25

Nessa toada, reconhecendo a imperatividade dessas ordens morais, Kant acaba por

entender uma subordinação do Direito frente à moral. O caráter deontológico do sistema

jurídico, o dever-ser característico do Direito já nasce vinculado aos preceitos reconhecidos

nas leis morais identificadas pela consciência. A legalidade da ação humana passa a buscar

fundamento na legalidade, que por sua vez é conformada pela moralidade passada pelo crivo

da universalidade dos imperativos kantianos (KANT, 2003, p. 64 e ss.).

Reparem, porém, como a visão kantiana se adeqüa à perspectiva jurídica burguesa que

concomitantemente ganhava força. Assim como procedente a relação entre o solipsismo do

filósofo com a autonomia privada desenvolvida no cerne dos ordenamentos jurídicos da época

– mais tarde culminando na idéia de validade das práticas elisivas tributárias – é possível a

ligação entre os imperativos categóricos de Kant e o formalismo jurídico e isonomia formal

que se despontou com o liberalismo pós- Revolução burguesa. Percebam como a exposição

do pensamento em análise recai em uma argumentação por uma igualdade tipicamente liberal

e universalista, atingindo a todas as pessoas da mesma forma , indiferente às particularidades

individuais:

Esse comando ou imperativo é categórico porque ordena incondicionalmente; e ordena incondicionalmente porque exprime uma universalidade absoluta; para exprimir uma universalidade absoluta tem de ser formal, independente de todo conteúdo, de todos os motivos e fins particulares, pessoais, sociais ou culturais considerados como valores (SALGADO, 1995, p. 212-213).

Todo esse aparato filosófico, a exacerbação da racionalidade humana e a separação do

Direito ao “amálgama normativo” que antes o aglutinava junto à moral e religião, é

responsável pelo salto realizado pelo homem no que tange à fundamentação do ordenamento

jurídico. Nesse sentido, é possível agora compreender como se deu a superação do direito

natural teológico já aludido páginas atrás, bem como a transição do jusnaturalismo

racionalista para o positivismo jurídico que ainda hoje pode ser apontado em nossa doutrina e

jurisprudência. É o que veremos no item subseqüente!.

25 Em exemplificação didática, Galuppo demonstra a lógica do pensamento kantiano: “a representação de uma máxima segundo a qual seja permitido o furto ao pode ser convertida em uma lei e deve ser, portanto, repelida uma vez que tal máxima implicaria uma autocontradição de princípios: se me fosse permitido furtar, quer dizer que tal conduta seria permitida a qualquer um; se o furto fosse permitido a qualquer um, eu não poderia gozar o ‘benefícios’ de meu furto,vez que outra pessoa poderia, furtando-me, impedir que eu ficasse com o bem. Assim, uma autorização para furtar se contradiria e não poderia, por isso mesmo, ser universalizada” (GALUPPO, 2002, p. 84).

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2.5 Do jusnaturalismo ao positivismo jurídico

A exacerbação do racionalismo humano proveniente das contribuições de autores tais

quais Descartes e Spinoza, juntamente com o repúdio pela submissão do conhecimento à

vontade da Igreja realizaram uma modificação na concepção do Direito natural teológico,

culminando em sua passagem para o jusnaturalismo.

Tendo Grócio como seu principal expoente, o jusnaturalismo mantém o dualismo neo-

platônico de duas ordens jurídicas distintas: um direito natural prévio, perfeito e imutável e

um ordenamento positivo elaborado pelos homens e subordinado ao primeiro. Entretanto, se

por um lado o direito natural divinatório era alcançado pela revelação da fé, o jusnaturalimo

laicizou a fundamentação jurídica e apontou a razão como meio de acesso ao plano jurídico

supra-humano (CAMARGO, 2003, p.62).

O direito natural é um ditame da justa razão destinado a mostrar que um ato é moralmente torpe ou moralmente necessário segundo seja ou não conforme a própria natureza racional do homem, e a mostrar que tal ato é, em conseqüência, disto vetado ou comandado por Deus, enquanto autor da natureza [...] o atos relativamente aos quais existe um tal ditame da justa razão são obrigatórios ou ilícitos por si mesmos (GRÓCIO, apud BOBBIO, 1995, p.20-21)

Não obstante, o jusnaturalismo encontrou seu algoz rapidamente (muito embora, ver-

se-á a seguir que alguns autores tributários sejam ainda marcados pelas suas premissas). Suas

bases filosóficas já marcadas pelo antropocentrismo racionalista e o contexto cientificista de

objetividade e neutralidade plantado por Descartes, culminaram em sua efêmera transição a

um modelo positivista de Direito ligado às características do individualismo liberal

concomitante – conforme se verá, assim como o liberalismo apresenta um homem auto-

referencial, hermético, autônomo e individualista, o positivismo pode ser delineado como um

sistema jurídico de auto-fundamentação, fechado e à parte dos fatos e influências externas ao

texto legal.

Em realidade, a concepção de legitimidade com espeques em uma ordem imutável

apenas existia para fundamentar o Direito positivado consubstanciado na constitucionalização

e codificação jurídicas que ocorriam. Em razão desse quadro, o foco de atenção foi-se

transplantando paulatinamente ao resultado final – lei escrita – em busca de legitimação do

ordenamento jurídico estatal. Isso porque foi desenvolvida a noção de que a única finalidade

de um plano metafísico de Direito natural seria a fundamentação do Direito positivo. Ora, se

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este era o núcleo de importância do Direito, é no Direito positivo que se deveria buscar a

justificação normativa26 (KELSEN, 1997, p.145 e ss.)

Para Ferreira Filho (1999, p. 20 e ss.), a única limitação para o gozo dos direitos

naturais era a faculdade de outro indivíduo de iguais direitos fazê-lo. E não havia outro

instrumento que não a lei para regulamentar e corporificar essa regulação. Daí a transição para

o direito positivo27.

Fato é que se mostra tênue a linha que separa o jusnaturalismo laicizado de Grócio e a

fundamentação positivista do Direito. Tanto o é que todos os projetos de codificação

decorrentes das revoluções burguesas, grandes símbolos do direito positivo, foram inspirados

na proteção de direitos naturais da humanidade. Codificação essa que possibilitou a

instrumentalização objetivada e cartesiana da atuação interpretativa dos fatos às normas28.

Juntamente a todos esses elementos, também os teóricos contratualistas

fundamentadores do Estado nacional e sua estruturação impulsionaram a sedimentação de um

sistema jurídico estatizado e auto-poiético.

Thomas Hobbes, não obstante seja um defensor do absolutismo precedente ao

positivismo jurídico pode ser visto como um precursor das idéias daquela corrente. Para ele, o

Estado deve ser a personificação do Direito vigente, pois apenas assim conseguir-se-ia limitar

a maléfica liberdade humana representada na expressão hobbesiana de que “o homem é o lobo

do homem”.

Dessa forma, “Hobbes lançou as bases do pensamento liberal positivista, propondo

uma separação ontológica entre Estado e sociedade, bem como um respeito absoluto à lei, e

essa, somente poderia ser assim considerada se fosse monopólio normativo do Estado”

(CRUZ, 2004, p.67). Calcado na visão supra, esse teórico do absolutismo acabou por adiantar

alguns dos fundamentos do positivismo liberal-burguês: o monopólio estatal na criação do

Direito e o formalismo.

26 “Hobbes sustenta que o Direito positivo nunca pode ser contrário à razão, isto é, contrário à lei da natureza [...] Hobbes afirma que os advogados concordam que o Direito não pode ser contrário à razão. Mas ele pergunta ‘de quem é a razão que será recebida como Direito’. E sua resposta é: [...] a razão do Estado, da nação, que segundo Hobbes, determina o conteúdo do Direito, e esse Direito é simultaneamente o Direito positivo e o Direito natural” (KELSEN, 1997, p. 145). 27 Nesse sentido, de se verificar o art. 4º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: “o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão os que asseguram aos demais membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos[...]Estes limites não podem ser estabelecidos senão pela lei” 28 “Siéyès, para aduzir um argumento a favor de tal instituição, sustenta que, no dia em que a codificação vigesse, o procedimento judiciário consistiria somente de um juízo de fato (isto é, assegurar que fossem verificados os fatos previstos pela lei), visto que o direito se tornaria tão claro que a quaestio juris (a saber, a determinação da norma jurídica a ser aplicada no caso em exame) não apresentaria qualquer dificuldade, já que todas as questões de direito que o juízo tradicionalmente comportava (e que exigiam a intervenção de técnicos do direito) eram exclusivamente fruto da multiplicidade e da complicação irracional das leis” (BOBBIO, 1995, p.67)

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Entretanto, se para Hobbes o Estado deve ser o único ente facultado a produzir o

Direito, sua intenção era concentrar poderes nas mãos do soberano. Ocorre que os abusos

decorrentes do absolutismo monárquico fizeram eclodir as revoluções burguesas que

implicaram justamente em uma negação da excessiva interferência estatal na esfera jurídica e

social da população.

Convém lembrar que se está falando de um momento em que as potencialidades

individuais estão em seu ápice, com um racionalismo auto-poiético e uma autonomia

individual servindo de guias para os comportamentos. Se assim o era, como sustentar um ente

externo ao homem ditando quais os caminhos seguir, interferindo em sua esfera individual de

direitos? Afinal, esse mesmo homem tinha em sua auto-suficiência a razão última para o

reconhecimento de sua racionalidade e seu direitos individuais subjetivos.

Mas como então limitar a ingerência estatal cerceadora da absoluta suficiência

individual? Apenas através da segurança e certeza legais! Eis a razão para que em áreas em

que o Estado ainda é visto como inimigo do cidadão, tais como o Direito Penal (liberdade) e

Tributário (propriedade) ainda se mantenha a crença em leis necessárias à limitação da

atuação estatal29.

Contemporâneo à Revolução Gloriosa na Inglaterra (1688) que consolidou a

prevalência do parlamento naquele país, Locke sustentava que apenas através da divisão de

poderes entre Executivo e Legislativo é possível a estruturação de um regime democrático

moderno e conseqüente proteção dos direitos individuais. Entretanto, foi Montesquieu quem

definiu a teoria de tripartição de poderes que inspirou o constitucionalismo ocidental.

Por sua vez, identificando o Estado como um corpo segmentado por partes

independentes e harmônicas, o Barão de Montesquieu defendia uma prevalência do Poder

Legislativo como detentor da competência legislativa, única capaz de elaborar leis abstratas e

genéricas atribuídas à razão humana. Diante disso, a fundamentação de legitimidade da norma

restava calcada na observância dos ritos de elaboração a que estavam adstritos os membros do

legislativo. Não importava o conteúdo da norma, mas sim se proveniente ou não do Poder

Legislativo.

29 Mais uma vez é fácil a percepção da manutenção de premissas seculares em nossos doutrinadores, basta a observação dos seguintes títulos: “O contribuinte brasileiro: vítima do Fisco” (ISIDORO,1999); “Os limites da legalidade tributária no estado democrático de direito: fisco X contribuinte na arena jurídica: ataque e defesa” (NOGUEIRA, Alberto 1999). Nesses casos, justamente a percepção de um Estado autoritário, capaz de digladiar face o contribuinte no intuito de cerceá-lo de suas garantais fundamentais naturais é a responsável pela crença em uma legislação capaz de preservar a propriedade individual.

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Se até aqui, o conceito de lei era uno, reunindo características formais e materiais, agora distingue-se entre o conteúdo da lei – lei em sentido material - ,por um lado - , e o comando da lei, por outro. O aspecto fulcral desta distinção reside no facto de a validade de uma lei apenas depender da observação do procedimento legislativo formal [...] Para o positivismo, qualquer lei é, em princípio, válida, desde que a sua emissão tenha respeitado a forma para ela prevista. Lembramo-nos imediatamente de Kant. Só a forma é fornecida a priori, não o conteúdo. (KAUFMANN, 2002b, p.115-117)

Com bases hermenêuticas cartesianas, buscava-se a aplicação da lei da forma mais

pura possível. Para se garantir a certeza jurídica e a previsibilidade jurisdicional, cabia ao juiz

realizar a simples subsunção dos fatos às normas, com a mais absoluta neutralidade. “A

metáfora da justiça pela mulher vendada ilustra bem o quadro, pois a justiça deveria ser

cega/neutra, ou seja, sem vontade própria” (CRUZ, 2004, p. 73).

Resta configurada, assim, a cisão absoluta entre fato e norma. Ambos não se

confundem, caso contrário, estaria maculada a pureza e certeza que Descartes prometeu às

ciências. Todos os homens seriam capazes de apreender o conteúdo normativo do

ordenamento de forma abstrata, pois todos munidos da racionalidade.

Além do mais, o texto era percebido como capaz de descrever a realidade fática que se

concretizaria no “mundo real”. Dessa forma, bastaria realizar a subsunção, o encaixe da

descrição exata presente no texto legal com os dados de fato ocorridos para se alcançar o

objetivo de aplicação do Direito sem as arbitrariedades antes perpetradas pelo Estado.

Quem seguir a concepção – ingênua – segundo a qual o juiz deduziria a sua decisão jurídica da lei, ‘subsumiria’ o caso na norma codificada, atribui à codificação a função de fonte única de toda a decisão jurídica. A actividade jurisprudencial será ‘correcta’ se transportar o conteúdo da norma codificada para o caso a decidir, sem lhe acrescentar ou retirar nada [...] a vinculação do juiz à lei é imperativa. O ideal de segurança jurídica parece atingido: a norma geral vincula a decisão de vários casos no sentido de estabelecer a jurisprudência regular e uniforme. As decisões jurídicas particulares podem ser, cada uma delas, previstas de antemão, pois decorrem da norma jurídica antecipadamente formulada. (HASSEMER, 2002, p.282).

Conclui-se pelo fetichismo da lei, a crença de que apenas uma aplicação carente de

qualquer influência contextual (fatos) ou pessoal (subjetividade do intérprete) seria capaz de

possibilitar a previsibilidade e a segurança que as ciências deveriam denotar30. É nesse sentido

30 Não se pode mencionar o positivismo jurídico sem referenciar o positivismo filosófico de Augusto Comte, base para a construção desse sistema hermético e auto-referencial do Direito. Para ele, o termo positivo deve excluir tudo aquilo que não pode ser explicado pela experiência. Nesse sentido, a certeza positivista seria a “eliminação das dúvidas, dos problemas insolúveis da antiga metafísica: não existem problemas que não possam ser resolvidos com os resultados da ciência.” (ROVIGHI, 2004, p. 120). Dessa forma, Comte enuncia sua lei das três fases que bem pode representar a evolução da filosofia e do conhecimento até aquele momento:

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que Wolkmer entende que a segurança e a certeza jurídicas são “princípios-fim do Direito

Moderno” (WOLKMER, 2005, p. 31).

Conclui Larenz, assim, que

o que, abstraindo da lógica e da matemática, é susceptível de conhecimento científico são, na concepção positivista, os ‘factos’ sensíveis, juntamente com as ‘leis’ que neles se manifestam e se comprovam na experimentação. Nesta postura revela-se como paradigmático o modelo das ciências ‘exactas’ da natureza. (LARENZ, 1997, p.46-47).

Repare a semelhança junto à postura científica propalada por Descartes: a busca em

uma comprovação das leis humanas tais quais as leis da natureza - observação do sujeito

externo ao evento; a ausência de interferência do observador já implica outra conseqüência

imediata - neutralidade do intérprete, que, dispensando sua subjetividade, deve meramente

contemplar com sua racionalidade o sistema jurídico que apresenta, por si só, conclusões

prontas a serem apontadas pelo julgador.

2.5.1 O direito e sua legitimidade positivada

Diante desse paradigma objetivo-racionalista, os juristas se viram situados em uma

estrutura científico-cartesiana de se fazer o Direito. Deveriam os mesmos elaborar sistemas

metodológicos que possibilitassem o êxito pretendido pela racionalidade solipsista que

marcou a epistemologia da modernidade.

A codificação, revelando-se uma vitória da razão e consubstanciada em um corpo

normativo a combater ambigüidades e obscurecimentos, possibilitou o surgimento da

Escola da Exegese, no princípio do século XIX na França (CAMARGO, 2003, p. 66 e ss).

Essa corrente compreendia o Direito como um sistema hermético coerente e completo

de normas. Todas as respostas para o sistema jurídico se encontravam dentro do próprio

ordenamento, razão pela qual enalteciam o direito codificado, compilação de normas que se

-fase teológica ou fantástica: interpretação dos eventos e fenômenos de forma a responsabilizar agentes sobrenaturais; - fase metafísica: mesma lógica da anterior, havendo apenas a substituição dos agentes sobrenaturais por abstrações ( p.e. Deus); -fase positiva: há negação ao conhecimento absoluto. Apenas os dados perceptíveis pela razão e observação de leis invariáveis podem ser tidos como relevantes (Cf: ROVIGHI, 2004, p126-127)

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pretendia auto-suficiente em seu objetivo regulatório. Por isso mesmo, apenas o exame da

dogmática positivada demonstrava importância.

Uma vez ser o Direito tão auto-completivo, nada mais cabia ao juiz a não ser realizar a

fria subsunção normativa silogística. Assim como Aristóteles havia demonstrado como se

chegar a conclusões pelo silogismo lógico (premissa maior: todo homem é mortal; premissa

menor: João é homem; conclusão: João é mortal), a Escola da Exegese propunha a simples

realização deste silogismo objetivo na aplicação jurisdicional. Dessa forma, seria uma

premissa maior: “todo proprietário de bem imóvel urbano deve pagar tributo”; premissa

menor: “João é proprietário de bem imóvel urbano”; conclusão: “João deve pagar tributo”.

Parece bem simples, não? Afinal, se contamos com um texto representador de fatos

empíricos, e buscamos a neutralidade e certeza das ciências exatas, nada mais lógico do que

limitar a atuação do intérprete – mero contemplador do método matemático – para que este

avalie a compatibilidade do fato à norma.

Em razão deste método exegético-dedutivo, a grande preocupação dos juristas se

concentrava na análise de regras de pontuação gramaticais, de questões sintáticas ou

semânticas dos textos utilizados pelo ordenamento.

Uma primeira resposta à concepção formalista dogmática da Exegese foi elaborada

por Carl V. Savigny, fundador da Escola Histórica do Direito. Para Savigny, não se poderia

afirmar que a única fonte de análise do Direito se reduz ao texto legal, independentemente de

seu conteúdo.

Diferentemente do que pregava a corrente exegética, Savigny não acreditava que a

razão humana fosse a-histórica e imutável, independente das influências de seu passado

histórico para sua formação (BOBBIO, 1995, p.48 e ss.). Para ele, o volkgeist, o espírito do

povo, sua cultura e tradições, eram essenciais para que se perceba qual o efetivo conteúdo das

normas jurídicas direcionadas àquela comunidade respectiva. Dessa forma, cada nação

apresentaria uma identidade própria determinante para a construção de seu ordenamento31.

Para ele, a interpretação significava reconstruir a vontade da lei. Para isso, Savigny

elaborou quatro cânones interpretativos: a interpretação gramatical, que opera no âmbito da

31 Bobbio (1995, p. 51 e ss.) aponta cinco pontos caracterizadores do historicismo: 1) individualidade e variedade do homem: não existe direito único e idêntico em qualquer tempo e espaço tal qual pregado pelo Direito natural. O sistema jurídico é fruto de seu desenvolvimento histórico; 2) irracionalidade das forças históricas: o direito não é imediatamente derivado da justiça percebida pela razão. O justo e o injusto são expressados pelo jurídico e se encontram nas origens dos povos; 3) pessimismo antropológico: receio das inovações e tendência a manter sobrevida de ordenamentos antigos; 4) amor pelo passado; 5) sentido da tradição: valorização da tradição jurídica consubstanciada no costume.

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palavra; a interpretação lógica, ligada à estrutura, à relação lógica entre as partes; a

interpretação histórica, em atenção aos elementos históricos de quando da elaboração da

norma jurídica; e por derradeiro, a interpretação sistemática, que busca uma coerência em

respeito ao contexto interno do ordenamento.

Interessante notar que em sua acepção, não há que se falar em qualquer hierarquia

entre esses métodos interpretativos. Todos deveriam ser utilizados com o escopo de se atingir

a vontade histórica do legislador representadora do “espírito do povo” (KAUFMANN, 2002b,

p.166-167).

Em que pese uma aparente evolução da hermenêutica formalista da Exegese, também

a escola savignyana, ainda referencial para a doutrina tributária, apresenta vícios e

pressupostos cartesianos e formalistas.

Tanto o é que o autor rechaça a possibilidade de interpretações extensivas ou

restritivas, pois que ampliando ou diminuindo o alcance da norma, se estaria a fugir da razão

da própria norma. Ou seja, ao juiz não é dado contribuir para o conteúdo do ordenamento,

pois assim, iria o mesmo ingerir na atividade do legislador (LARENZ,1997, p. 11e ss.).

Não consegue Savigny fugir da referência e prisão à atividade legislativa. Ele apenas

incorpora uma visão histórica a essa característica, pedindo ao intérprete que se coloque no

lugar do legislador para apreender a correta interpretação.

A metodologia hermenêutica construída por Savigny observou rigorosamente os objetivos do racionalismo cartesiano na busca de uma correção e certeza compatíveis com a matemática. Seu método incorporou raciocínio de aplicação dedutiva por meio do pressuposto que o texto da norma subsumiria o fato. (CRUZ, 2004, p. 77)

Assim como é falaciosa a pretensão da exegese em sua busca por uma univocidade de

entendimento acerca da norma jurídica em combinação com uma neutralidade interpretativa

livre de eventuais pré-compreensões precedentes, é também insuficiente a proposta do autor

em comento. Nem um nem outro compreendem que o próprio sentido do texto normativo está

ligado também à historicidade do intérprete. “Não sendo esta (a norma) totalmente

determinável nem pelo texto nem pelo contexto histórico ou sistemático, a responsabilidade

pelo sentido formado no processo interpretativo recai sobre o intérprete.” (ELLSCHEID,

2002, p.213-214) (acréscimos nossos).

Além do mais, a postura de busca por regras reguladoras da própria interpretação

acaba por cair no fetiche normativo característico do positivismo legalista. É o mesmo

objetivo de Descartes: instituir um método prévio garantidor de uma conclusão correta.

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Ocorre que dessa forma, já se encontra viciada a própria conclusão, que se vê determinada

pelo método anterior à pesquisa. Além do mais, os próprios métodos interpretativos devem

ser objeto de interpretação! É um ciclo infinito que não cessa o papel interpretativo-

construtivo.

Discípulo de Savigny, Puchta seguiu no desenvolvimento de teorias formalistas-

positivistas, criando a chamada “jurisprudência dos conceitos” ou “genealogia dos conceitos”

(LARENZ, 1997, p.21 ss.).

Segundo Puchta, o Direito é constituído por expressões ou termos jurídicos que podem

ser situados hierarquicamente. Uma vez realizado esse escalonamento subordinativo, um

instituto/conceito jurídico servirá de fundamentação para um conceito/instituto jurídico

inferior, e assim sucessivamente.

O estudo universalizado e fechado de um instituto, como se divorciado de seu entorno

teórico reflete-se ainda hoje nas obras fiscais que se restringem à análise de um único e

isolado ponto do Direito Tributário, como se possível fosse proceder à averiguação “do

lançamento tributário”, ou “da imunidade tributária” para posterior encaixe em sua ordem

hierárquica jurídica.

Seguindo esta trilha, este autor acreditava ser capaz de proporcionar conceitos claros e

unívocos, garantindo, assim, uma interpretação segura e exata das normas. Dessa forma,

buscava-se uma exacerbação do silogismo lógico-dedutivo já apresentado em toda a

construção do ordenamento, até se chegar à certeza do conteúdo de um texto normativo. Não

é difícil imaginar uma pirâmide conceitual onde a esfera inferior busca sua fundamentação na

superior, uma alegoria que adianta a teoria kelseniana.

A ideia de PUCHTA é a seguinte: cada conceito superior autoriza certas afirmações (por ex., o conceito de direito subjectivo é de que se trata de um ‘poder sobre um objecto’); por conseguinte, se um conceito inferior se subsumir ao superior, valerão para ele ‘forçosamente’ todas as afirmações que se fizerem sobre o conceito superior (para o crédito, como uma espécie de direito subjectivo, significa, por ex., que ele é um ‘poder sobre um objecto que esteja sujeito à vontade do credor e que se poderá então vislumbrar, ou na pessoa do devedor, ou no comportamento devido por este último’) (LARENZ, 1997, p. 25)

A persecução da certeza interpretativa e a adoção de uma metodologia formalista-

cartesiana deixam clara a postura racional-objetiva que a genealogia dos conceitos fez

persistir.

A evolução hermenêutica ocorrida ao longo do século XIX e princípio do século XX

fez eclodirem pensadores outros cujas idéias não poderão ser esboçadas. Windsheid, seguindo

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ditames de Savigny perseguiu a vontade do legislador. Von Ihering, com sua “Jurisprudência

de Interesses” esboçou suas idéias dentro do positivismo sociológico fugindo do objetivismo

de Puchta (CRUZ, 2004, p. 104 e ss.) e assim por diante. Entretanto, daremos um salto em

nossa visita à evolução hermenêutica para apresentar uma corrente que representou um

resgate dos pressupostos cartesianos, porém direcionando-os à linguagem, e

consequentemente, à interpretação de textos.

2.5.2 Do neopositivismo vienense ao normativismo de Hans Kelsen

A moldura de racionalidade cartesiana debatida até então ganhou considerável

impulso no entre-guerras. Em Viena, um grupo de amigos intelectuais no início dos anos de

1920 costumava se reunir em um café da cidade para debater temas filosóficos e científicos32.

Mais tarde, com o ganho de substância dos debates e a redação de um “manifesto” que logrou

delinear uma corrente de pensamento própria, surgiu o Wiener Kreis (Círculo de Viena),

também chamado de neopositivismo ou positivismo lógico.

A própria formação de seus integrantes – grande parte ligada à lógica ou matemática –

já denota certas características do pensamento vienense do início do século passado. Ainda

gravado pelas influências do racionalismo, o neopositivismo se consagrou como uma corrente

extremamente anti-metafísica, com pressupostos científicos de verificação (seguimento da

idéia de “causa-efeito” de Descartes), além de uma intensa preocupação com o estudo da

linguagem e da ciência em si. Todos esses elementos restavam submetidos à perseguição de

um conhecimento tão exato quanto o lógico-matemático presente em suas bases científicas.

Para Sofia Rovighi, essa doutrina “é caracterizada não apenas por elementos positivos [...]

mas também por uma radical aversão à metafísica, unida à valorização das ciências

experiementais e da lógica formal” (ROVIGHI, 2004, p.473).

Outro ponto marcante desse novo modelo de pensamento é a busca por atrelar a

função da linguagem ao desenvolvimento da filosofia.

32 “Assim, em 1922, Sclick foi chamado a Viena. Entretanto, como conta Herbert Feigl, antes ainda da guerra de 14/18, ‘um grupo de jovens doutores em filosofia, que haviam estudado sobretudo física, matemática ou ciências sociais – dentre os quais se destacavam Philipp Ferank, Hans Hahn, Richard von Mises e Otto Neurath -,encontravam-se toda sexta-feira à noite, em um café da velha Viena, para discutir especialmente questões de filosofia da ciência. Naqueles dias, era principalmente o positivismo de Ernst Mach que inspirava esse pequeno grupo de estudiosos.”(REALE; ANTISERI, 1991, p.992)

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Para os integrantes do neopositivismo, todos os grandes problemas da filosofia não

estavam na filosofia em si, mas sim na sua forma de expressão. Toda discordância filosófica,

toda incompreensão da realidade não passam por uma incompreensão ou desconhecimento da

filosofia “stricto sensu”, mas sim por uma carência lingüística. Por isso mesmo a própria

filosofia deveria se ocupar da linguagem.

Em passagem sobre Rudolf Carnap, membro do pensamento vienense, Manfredo

Araújo afirma que

sua convicção era de que a maioria dos problemas filosóficos autênticos era controvérsia a respeito do quadro lingüístico adequado a uma pesquisa científica ou descritiva sobre fatos dos quais tais pesquisas tratam, as confusões existentes na filosofia provêm do fato de os filósofos não terem clareza a respeito dessa realidade, isto é, que as perguntas filosóficas são, nesse sentido, perguntas puramente lingüísticas [...] Isso significa, então, que todos os problemas filosóficos são, na realidade, problemas de sintaxe lógica (OLIVEIRA, 1996, p. 81;82) (grifos nossos)

Segundo esses pressupostos, entendia-se que, para se ter a pretensão de um

conhecimento efetivamente verificável, antes era necessária uma linguagem capaz de realizar

esse tipo de análise. Em razão disso, ao dissertarem acerca das teorias do neopositivismo,

Reale e Antiseri inserem dois elementos:

que o trabalho que resta ao filósofo sério é o da análise da semântica (relação entre linguagem e realidade à qual a linguagem se refere) e da sintática (relações dos sinais de uma linguagem entre si) do discurso significante, isto é, do discurso científico; [...] por isso, a filosofia não é doutrina, mas sim atividade:atividade clarificadora da linguagem.(REALE; ANTISERI, 1991, p.994)

Seguindo esse pensamento, Frege33 – ele mesmo um estudioso da matemática, física e

química (OLIVEIRA, 1996, p.57 e ss.) – tentou aproximar a lógica e a linguagem. Em sua

concepção, os próprios princípios e estruturas que encampam a aritmética deveriam também

embasar uma linguagem capaz de proporcionar uma ciência verdadeira. Com isso se teria uma

linguagem exata em que cada expressão, cada palavra, cada signo teria um sentido próprio

correspondente.

Dessa forma, bastaria realizar uma análise dos símbolos presentes em uma frase ou

proposição para que todos os intérpretes conseguissem extrair o mesmo significado. A um

jurista, por exemplo, seria dada a tarefa de realizar o estudo de pontuações e expressões

33 É muito importante deixar claro o fato de que Frege, em realidade, não chega a compor efetivamente o Círculo de Viena, mas sim o antecede, pertencendo à chamada filosofia analítica. Não obstante, suas idéias de matematização da linguagem estão em consonância e embasaram os estudos que ora se faz menção.

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gramaticais presentes em textos normativos, fonte absoluta de todo o Direito. Afinal, se cada

expressão ou palavra utilizada teria um conteúdo correspondente, não havia que se falar em

ambigüidades interpretativas. Foi o mesmo embasamento que se tentou reproduzir no CTN

(art. 111) inserindo a busca por uma literalidade interpretativa capaz de representar uma

identidade de resultados hermenêuticos.

O exemplo que Delacampagne traz do pensamento de Boole (algumas décadas

anterior a Frege), expressa bem a idéia que se tentou firmar:

Suponhamos que as variáveis x e y representem classes de objetos quaisquer. A contribuição específica de Boole consiste em notar com 1 a classe cheia ( o universo do discurso), com 0 a classe vazia e com o símbolo v [...] a palavra ‘alguns’. Graças a essa notação, um julgamento da forma: ‘todos os homens são mortais’, se torna: ‘todos os y são alguns x’, ou seja: y = vx. Da equação correspondente, y – vx = 0, é fácil tirar, por uma série de operações algébricas elementares, outras fórmulas, como, por exemplo: y(1 – x) = 0 ( ‘os homens não-mortais não existem’ (DELACAMPAGNE, 1997 , p.21)

Caso se realize a transposição dessa perspectiva para o mundo do Direito, com uma

linguagem logicamente exata tal qual pensava Frege, o dogma subsuntivo restaria

extremamente simples e ausente de erros ou dúvidas! Bastaria o intérprete analisar o conteúdo

determinado por um tipo tributário – já que as palavras corresponderiam a um sentido já

determinado – e observar se os fatos ocorridos se encaixam no “modelo normativo” com

exata perfeição. Ou seja, é o próprio pensamento da tipicidade estrita tributária!

Por óbvio, a linguagem ordinariamente utilizada não apresenta essa exatidão

pretendida pelos neopositivistas. E Frege também não ignora esse dado. Tanto o é que o

mesmo se viu envolto em uma tentativa de criação de uma linguagem artificial34 que lograsse

êxito em seu propósito de certeza e univocidade:

Nessa tentativa, Frege achou a linguagem natural incapaz de exprimir as estruturas lógicas com a precisão necessária. Por isso ele tentou construir uma linguagem

34 Não apenas Frege, mas também outros autores ligados à exatidão lingüística, muitos deles neopositivistas, dentre os quais se destaca Rudolf Carnap, já aqui mencionado, perseguiram o objetivo de uma matematização da linguagem humana. Carnap, por sua vez, defendia o pensamento de que os vícios metafísicos que eventualmente surgiam na ciência e filosofia eram decorrentes de uma carência presente na utilização da linguagem natural, direcionando-o também para o estudo de uma linguagem artificial. Carnap, encarna bem os pressupostos e objetivos do Círculo de Viena, conjugando a certeza da linguagem com a negação de traços metafísicos na filosofia. Conforme leciona Manfredo Araújo de Oliveira: “As reflexões de Carnap sobre a linguagem se situam em seu programa antimetafísico, isto é, como ele mesmo dizia da ‘superação da metafísica por meio da análise lógica da linguagem’. Para ele, as especulações metafísicas se originam da falta de convenções que determinam o uso das linguagens naturais”. (OLIVEIRA, 1996, p. 76-77). Além disso, Carnap passou a desenvolver uma linguagem que poderia ser entendida por si mesma, ou seja, uma linguagem universal que todos a que a ela tivessem acesso poderiam se utilizar com a possibilidade de uma comunicação sem dubiedades.

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artificial na qual, com poucos símbolos, fosse possível exprimir com exatidão todas as formas lingüísticas (OLIVEIRA, 1996, p. 59)

Importa destacar um dado interessante. Ainda que seja latente o repúdio que os

integrantes do neopositivismo manifestavam em relação a qualquer elemento metafísico junto

às ciências, a postura descritiva da linguagem presente em suas obras parece trair seus

próprios ideais.

A concepção de ser possível destacar em um signo qualquer – p.e. “livro” – uma

descrição unívoca de um elemento da realidade é uma ilusão que parece lembrar a dualidade

Idéia/mundo sensível de Platão. Eis o lado metafísico velado do pensamento ontológico

positivista.

Mas não pára aí. Será identificado mais adiante que a teoria da tipicidade tributária da

forma como é tratada pela doutrina atual vem a se calcar justamente nessa visão platônica de

representação de um mundo ideal a ser atingido pelo jurista. Assim, tão metafísica quanto as

idéias esboçadas na Grécia Antiga!

Mais à frente ter-se-á oportunidade de desenvolvimento, em melhores termos, das

idéias ora jogadas. Mas de forma breve, veja quão insatisfatória se mostra a proposta: diante

da linguagem indúbia do Círculo de Viena, é determinante o dispositivo constitucional que

prevê imunidade tributária aos livros e papéis para sua impressão (art. 150, VI “d” da CF/88).

A princípio, poder-se-ia afirmar que os signos utilizados detêm em si uma representação

determinada e única da realidade: aos livros não é possível a exação de impostos.

Entretanto, como saber se catálogos ou álbuns de figurinhas podem ser tidos como

inseridos no benefício fiscal mencionado? E quanto aos livros eletrônicos? Estariam os

mesmos representados na descrição constitucional? Mas, tradicionalmente “livro” é entendido

como “conjunto de folhas impressas e reunidas em volume encadernado ou brochado”

(LAROUSSE CULTURAL, 1992, p. 694). Como um CD-ROM pode se inserir nessa

proposta? Observe a impossibilidade de se cercar todas as hipóteses relativas à realidade que

o Direito vem a se relacionar.

Em que pese a importância de pensadores como Frege e Carnap, é Wittgenstein tido

como o mais importante filósofo do início do século XX35. Em sua obra “Tratactus” (2002),

35 A alta relevância que é dada ao pensamento de Wittgenstein é muito mais tributária não a este momento de sua contribuição filosófica ora comentada, mas sim pela sua obra póstuma “Investigações Filosóficas” que mais à frente faremos menção e que originou o chamado “giro-linguistico”.

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Wittgenstein mantém a percepção dos demais neopositivistas de uma linguagem meramente

instrumental, uma forma de designação de sentidos e conteúdos já determinados36.

Imaginando uma identidade estrutural entre os elementos componentes da realidade e

aqueles que compõem o raciocínio humano, ele pensava que o homem utilizava a linguagem

como uma forma de representação, de descrição da realidade correspondente. Isso porque da

mesma forma em que os objetos se relacionam entre si, a mesma estrutura relacional é

realizada entre as expressões lingüísticas, e da mesma forma no intelecto. Nessa trilha, a

estrutura de relações, que é o foco de atenção de Wittgenstein, não se altera.

Do mesmo modo que um mapa geográfico ‘representa’ uma paisagem sensível, a conexão dos elementos no interior da proposição ‘representa’ a conexão dos objetos do mundo. Mais ainda, essas duas conexões são idênticas. Elas são o mesmo que a ‘forma de representação’ comum ao mundo e à imagem que nossa linguagem nos dá deste (DELACAMPAGNE, 1997, p.21)

Mas, para isso, é preciso supor que cada palavra tenha um significado ontológico

respectivo, seu conteúdo próprio indicador de um dado, fato, coisa ou situação na realidade

empírica – ainda que consideremos a palavra presente em seu contexto tal qual Wittgenstein.

Em que pese a exposição de posicionamentos mais radicais como os de Frege e

Carnap em suas tentativas de criação de linguagens artificiais logicamente exatas, é fácil o

leitor rechaçar essas tentativas como sendo improváveis, ou mesmo impraticáveis.

Entretanto, o que se quer realmente destacar com essa evolução é a presença desses

mesmos pressupostos cartesianos de matematização da linguagem e certeza interpretativa em

teorias que ainda hoje dão suporte para ideais subsuntivos presentes em nossa doutrina e

jurisprudência.

Em termos simplificados, a ‘filosofia da consciência’ supunha que o ser ciente era capaz de idealizar mentalmente qualquer objeto (maçã) ou conceito (Teorema de Pitágoras), permitindo-lhe ter uma perspectiva de suas características e elementos. Nesse contexto, a linguagem seria mero mecanismo de padronização/intermediação do sujeito com o objeto de sua análise [...] era um mero elo de ligação entre a consciência humana e o fenômeno pesquisado.(CRUZ, 2004, p. 143)

36 Ainda que seja possível identificar um caráter de ontologização no pensamento de Wittgenstein nessa primeira fase, é necessário destacar que já em sua obra inicial, o autor já percebia que apenas se pode afirmar que um termo ou expressão possui conteúdo se presente dentro de uma proposição. Ou seja, Wittgenstein já tinha ciência da importância que o contexto tem para se saber o conteúdo de uma expressão gramatical. Nesse sentido, “para o Wittgenstein do Tratactus, o sentido de uma frase é fruto da associação das significações de seus elementos. O que há de novo aqui é que o elemento só tem significação enquanto elemento, isto é, enquanto membro de uma frase, e não mais independente dela como era antes [...] no isolamento, os predicados são destituídos de qualquer significação.” (OLIVEIRA, 1996, p.97). Isso demonstra que desde já, Wittgenstein já apresentava uma noção relacional dos objetos. Apenas em uma interação termo-termo, ou objeto-objeto, os mesmos podem ser pensados com alguma relevância.

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A mesma linha de pensamento descritivo da realidade, fazendo uso da linguagem

apenas com fins de representação de um conteúdo previamente determinado, e por isso de

univocidade interpretativa é presente ainda hoje nas teorias de tipicidade e legalidade. Sobre

isso ver-se-á mais adiante.

Mas, antes de adentrar nesse ponto, mister identificar a relação existente entre o

neopositivismo vienense e o pensamento jurídico de um dos autores mais influentes no

Direito.

Bebendo nas fontes do racionalismo solipsista de Kant, bem como da pureza do

conhecimento científico iniciada por Galileu e Descartes, Hans Kelsen é tido como um

continuador das idéias desenvolvidas no Círculo de Viena (KAUFMANN, 2002b, p.178 e ss).

Não obstante, a teoria kelseniana apresenta saltos que marcam certa independência em relação

aos seus antecessores vienenses.

Extremamente contrário a qualquer traço metafísico na elaboração do conhecimento

científico, Kelsen acreditava que toda ciência deveria ser construída e estudada preservando a

pureza de sua área de conhecimento – daí a denominação de sua obra “Teoria pura do direito”

(1998). Dessa forma, o Direito não apenas poderia, mas sim deveria se ater à descrição do

ordenamento jurídico, deixando questões subjetivas, fáticas ou sociais para as ciências

próprias tais quais Sociologia e Política, desligado de qualquer elemento concreto ou factual

de observação.

É essa linha de raciocínio que irá levar Kelsen a desligar o Direito de seu conteúdo

proferido, e mesmo defender a hipótese de um controle concentrado de constitucionalidade37

em que há debate acerca da constitucionalidade da norma sem qualquer possibilidade de

exame de questões fáticas pelo STF38.

Assim como Puchta havia determinado uma genealogia dos conceitos, Kelsen, em um

intenso exercício silogístico, percebia o Direito estruturado como uma pirâmide hierárquica.

Nela, a norma hieraquicamente superior serviria de fundamentação para a norma inferior, que

37 Sobre a democraticidade do controle concentrado e difuso de constitucionalidade, e mesmo sobre a possibilidade hermenêutica de se realizar essa aparente cisão, imprescindível a leitura das obras “Jurisdição constitucional democrática” (CRUZ, Álvaro Ricardo); “Hermenêutica constitucional e(m) crise” (STRECK, Lênio Luiz) e “Hermenêutica constitucional e(m) debate” (CRUZ, Álvaro Ricardo). 38 Nesse sentido, apregoa a súmula 279 do STF: “para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário”. Em que pese se tratar de súmula aplicada ao controle difuso de constitucionalidade, este é exemplo cabal de como o se tenta manter a realização de um controle “objetivo” do conteúdo do Direito, como se fosse possível conceber qualquer materialidade jurídica sem a apreciação das nuances fáticas, sendo que, em realidade, sem essas últimas, não há qualquer Direito. Mais uma demonstração de tentativa (ilusória) de cisão entre fato e norma...

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apenas teria legitimidade se apresentasse adequação com a primeira. E assim sucessivamente

até chegar às decisões judiciais, tidas por Kelsen, como uma norma de aplicação individual.

A ordem jurídica de um Estado é, assim, um sistema hierárquico de normas legais. Em forma bastante simplificada, apresenta o seguinte retrato: o nível mais baixo é composto de normas individuais criadas pelos órgãos aplicadores do Direito, especialmente os tribunais. Essas normas individuais são dependentes dos estatutos, que são as normas gerais criadas pelo legislador, e das regras do Direito consuetudinário, que formam o nível superior seguinte da ordem jurídica. Esses estatutos e regras de Direito consuetudinário, por sua vez, dependem da constituição, que forma o nível mais elevado da ordem jurídica como sistema de normas positivas (KELSEN, 1997, p. 215-216)

A título exemplificativo, a Constituição Federal39 serviria de parâmetro e fundamento

para uma lei que prevê obrigação tributária àqueles proprietários de bem imóvel urbano.

Noutro lado, essa mesma lei ordinária serviria de fonte de legitimidade para que o juiz, ao

proferir sua decisão, “criasse” lei entre as partes e determinasse o pagamento do tributo

devido.

Conforme constata Chamon Junior,

Tal fundamentação só é possível segundo a teoria desenvolvida, se lançarmos mão de um raciocínio silogístico [...] toda a questão se desenvolve no sentido de a norma superior – premissa maior – ser o fundamento da norma inferior – conclusão – ainda que intermediado por um fato da ordem do ser – premissa menor (CHAMON JUNIOR ,2005, p. 23).

A ponta final do processo hermenêutico, seria uma derivação da regra da causalidade

apontada por Descartes. Se nas ciências naturais é seguida a regra: se A, é B (p.e., se há ação,

há reação igual e em sentido contrário), nas ciências sociais, poderia ser identificada a regra

da imputação: se A, deve ser B (Se João tem bem imóvel urbano, deve pagar tributo).

Com isso, Kelsen focou o critério de aferição de validade da norma em suas questões

formais, ou seja, na obediência ao sistema de legitimação em que uma norma jurídica é fonte

fundamentadora de outra inferior – daí o caráter dinâmico de sua teoria (KELSEN, 1998,

p.215 e ss.). Deixa de lado, porém, questões centrais do conteúdo do sistema jurídico a ser

analisado40.

39 Acima da Constituição, Kelsen previu a existência de uma “norma hipotética fundamental” que serviria de fundamento para a primeira. Referida norma não seria escrita, mas sim algo fruto da racionalidade humana que deveria trazer a legitimidade à Constituição escrita e positivada. (Cf. KELSEN, 1997, p. 216) 40 Esse raciocínio fundamentou severas críticas ao normativismo kelseniano, ligando-o ao regime nazista alemão. Pensava-se que Kelsen defendia a idéia de que, se há fundamentação formal de uma lei nazista em uma constituição de superior hierarquia, essa mesma lei seria válida e deveria ser cumprida. Não obstante a Corte Alemã, de fato, tenha usado essa técnica hermenêutica para a legitimação dos atos do Fürer, hoje já se percebe

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Calcado na ilusória separação entre fato e norma – ironicamente próximo à postura

metafísica de Platão de cisão entre mundo sensível e inteligível que Kelsen tanto rejeitava –

ele acreditava que ao juiz é dada a tarefa de análise jurídica pura. Entretanto, Kelsen foi além

da postura neopositivista de univocidade interpretativa.

Para ele, toda norma possuía mais de uma possibilidade de interpretação, algo como

uma moldura na qual possível a inserção de vários quadros. Caso o conteúdo interpretativo

fosse compatível com a moldura, seria o mesmo aceitável.

... a indeterminação do ato jurídico pode também ser a conseqüência não intencional da própria constituição da norma [...]aqui temos em primeira linha a pluralidade de significações de uma palavra ou seqüência de palavras em que a norma de exprime [...] O direito a aplicar forma, em todas as hipóteses, uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro deste quadro em moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido possível. Se por interpretação se entende a fixação por via cognitiva do sentido do objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, consequentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldura existem (KELSEN, 1998, p. 389-390).

Não obstante se possa afirmar a superação de uma pretensão de unicidade absoluta de

conteúdo interpretativo, Kelsen não se esquiva de alguns problemas.

Em primeiro lugar, é mantida a racionalidade solipsista kantiana, ou seja, o juiz,

isoladamente, decide qual o conteúdo a ser atribuído à norma legal. Não há uma construção

intersubjetivamente compartilhada, não há a presença efetiva das partes/sociedade na

construção da substância normativa. Kelsen persiste, assim, na percepção de identidade entre

Direito e Estado. Apenas quando emanado por este último de forma direta, detém o Direito

validade (KELSEN,1998, p. 316 e ss.).

Outro ponto a ser anotado é a insistência em elaborar uma visão de pureza tanto

ideológica quanto científica da ciência jurídica, tal qual a tradição racionalista que o precedeu.

Ao crer em uma separação estanque entre fatos e normas – mais uma vez ressaltamos: ligada

à visão do controle concentrado de constitucionalidade – Kelsen suponha ser possível

interpretar uma norma jurídica independentemente de qualquer realidade fática.

que, em realidade, a teoria pura de Kelsen foi instrumentalizada de maneira deturpada. (Cf. KAUFMANN, 2002b, p. 179 e ss.)

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2.6 O Direito como questão de fato

Não se realizou tal digressão filosófica apenas por mero deleite. As bases do

pensamento jurídico atual devem ser compreendidas em atenção a toda a fundamentação

filosófica ora trabalhada.

Caso se observe os preceitos de um racionalismo solipsista e de neutralidade científica

– e ver-se-á que vários autores o fazem – cair-se-á na pretensão de uma atividade

interpretativa com características que, de imediato, fazem lembrar alguns preceitos da

doutrina tributária:

Um primeiro ponto é que a atividade interpretativa é realizada com base em uma

linguagem descritiva da realidade. Dessa forma, apenas aqueles fatos cuja norma tenha

definido textualmente de forma expressa, sem deixar margens para ambigüidades ou dúvidas

interpretativas, podem ser tidos por ensejadores de obrigação fiscal. Com isso, é mantida a

concepção de que a linguagem já denota em si, uma correspondência com a realidade, a

mesma pretensão de que com um texto escrito é possível ter, ontologizada, uma situação

descrita pela legislação.

É delineada, assim, a busca por uma certeza matematizada da atividade hermenêutica,

e consequentemente, das obrigações tributárias. Tal qual os pensadores modernos, é almejada

uma exatidão de resultados interpretativos, sem o qual não é dado o caráter científico ao

Direito Tributário. Obviamente que, para isso, o intérprete deveria se abster de qualquer

subjetividade, qualquer influência externa capaz de macular o sentido presente na norma.

Ora, se é buscada a exatidão das expectativas jurídicas, juntamente com uma

linguagem pretensamente capaz de denotar de forma absolutamente clara os dados presentes

no mundo real, deve-se reconhecer legitimidade jurídica unicamente às legislações

provenientes de um órgão estatal próprio! É o dogma da legalidade absoluta e da “prevalência

legislativa”.

Seguindo essa linha, uma vez aceita a legalidade estrita tem-se por certo o fato de que

apenas o Estado é legítimo para estipular o conteúdo do Direito que cabe à população

passivamente obedecer. Na mesma trilha, exaurindo o conteúdo jurídico em uma norma

unívoca, é resumida a atividade judicial à adequação subsuntiva dos fatos à norma. É o

mesmo raciocínio silogístico de Aristóteles e que o Círculo de Viena retomou com maior

requinte.

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Nesse sentido, pode-se entender que quanto ao conteúdo jurídico não há que se

debater qualquer controvérsia, pois não haveria controvérsia! O Direito se resumiria em uma

mera pesquisa factual. Ao esboçar essa mesma postura hermenêutica, Dworkin leciona que

o direito nada mais é que aquilo que as instituições jurídicas, como as legislaturas, as câmaras municipais e os tribunais decidiram no passado, se alguma corporação desse tipo decidiu que os trabalhadores podem ser indenizados por danos ocasionados por colegas de trabalho, será isso, então, o direito. Se a decisão for contrária, então este será o direito. Portanto, as questões relativas ao direito sempre podem ser respondidas mediante o exame dos arquivos que guardam os registros das decisões institucionais [...] e portanto, não pode haver controvérsia entre eles quando ao direito assegurar ou não a indenização por danos ocasionados por companheiro de trabalho (DWORKIN, 2003, p. 10)

Esse mesmo pensamento o autor define como sendo “o direito como simples questão

de fato”(DWORKIN, 2003, p. 11-41). Isso porque ao jurista/intérprete, é dado unicamente

verificar questões factuais: realmente existe a norma em comento? Ela ainda se encontra

válida em nosso ordenamento? Caberia perguntar: os fatos ocorridos se adeqüam à

delimitação exaustiva da norma jurídica? O conteúdo prévio determinado pelo texto legal

incidirá neste fato específico? Todas questões fáticas! Momento algum se argumenta em torno

da construção do conteúdo normativo, ou mesmo sua melhor conformidade com os

dispositivos constitucionais, já que as convenções precedentes já esgotaram todo o debate

possível acerca da substancialidade jurídica.

Lamentável é que tal concepção é mantida no Direito Tributário brasileiro ainda no

século XXI!

2.7 O Direito Tributário atual e a hermenêutica clássica-positivista.

A caracterização da hermenêutica clássica e sua evolução se dariam absolutamente

inócuas se não a relacionássemos com a doutrina e jurisprudência atual. Por isso mesmo,

muito embora se considere as transformações sofridas pela doutrina tributária ao longo dos

séculos (SOUZA, 1975, p. 76 e ss.) acreditamos que o Direito Tributário parece ter se

esquecido de acompanhar os debates hermenêuticos ocorridos após a década de 1930.

Neste tópico tentar-se-á demonstrar como ambas – doutrina e jurisprudência – estão

gravemente marcadas pelas bases filosóficas da hermenêutica clássica moderna – e alguns

casos mesmo a filosofia pré-moderna! – seja de forma explícita, seja camuflada em seus

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argumentos tributários. Mas, afigura-se claro que o tema não poderá ser esgotado no próximo

tópico. A apresentação das raízes hermenêuticas clássicas será retomada também no capítulo

que se seguirá, quando da apresentação, com maior cuidado, dos princípios da legalidade e

tipicidade.

2.7.1 A doutrina e jurisprudência brasileiras.

Em que pese o posicionamento expresso dos autores brasileiros no que tange à

necessidade da atuação interpretativa do operador do Direito, poucos serão os que

argumentarão em defesa do papel mecânico do jurista tal qual no século XVIII. Por óbvio, a

postura escancarada em defesa de um órgão judicial que seja la bouche de la loi é tido por

anacrônico por todos aqueles que defendem a evolução do sistema jurídico, e os diversos

autores que formam o centro do debate tributário não ignoram esse dado. Observe como suas

obras rechaçam claramente a tacanha (e ilusória!) retração do Direito à prisão aos termos e

expressões legislativos:

Nesse sentido, Hugo de Brito Machado (2005, p. 117) afirma que a redução ao sentido

gramatical dos termos normativos é insuficiente para os objetivos do sistema jurídico-

tributário. Também Fanucchi, ao tratar da literalidade como único instrumento interpretativo,

tal qual imaginado pela teoria clássica, afirma que “com tal preceito, desapareceria a

necessidade de interpretação, passando a solução dos problemas a depender de simples exame

de texto, de uma indagação: o fato está ou não expressamente previsto em lei? Conduzia-se a

legislação para um terreno perigoso...” (FANUCCHI, 1976, p.195).

Ruy Barbosa, tendo por certa a defasagem da perspectiva legalista absoluta, chega a

afirmar que

Em tempos já remotos, chegou-se à afirmação de que as leis eram odiosas, excepcionais e que a interpretação da lei tributária deveria ser feita restritivamente, só comportando a interpretação literal. Isto já é arqueologia fiscal, como também foram as chamadas interpretação‘in dubio pro fiscum’ ou ‘in dubio contra fiscum’ (NOGUEIRA, Ruy Barbosa 1999, p.89) (grifos nossos).

Ao se deparar com posicionamentos tão enfáticos, poder-se-ia crer em uma superação

da perspectiva hermenêutica clássica.

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Entretanto, ao discorrerem acerca dos variados institutos tributários, todos esses

autores parecem olvidar de suas afirmações e voltam a fundamentar seus posicionamentos

com espeques em pressupostos que remetem à pureza cartesiana e à certeza matematizada do

Círculo de Viena.

Ives Gandra da Silva Martins parece se basear em ideais filosóficos anteriores mesmo

ao posicionamento de Descartes, incorporando aos seus ensinamentos raízes próprias do

jusnaturalismo de Grócio. Em obra destinada à matéria fiscal, afirma o autor:

Estamos convencidos da existência de um direito natural que rege as normas da sociedade em geral da mesma forma que as leis naturais regem os fenômenos conhecidos, como a chuva, o vento, a expansão da luz, etc. Na medida, entretanto, em que o homem não capta a essência dos princípios maiores, cria-se um descompasso entre o direito positivo e o direito natural (MARTINS, 1983, p. 20).

Outros doutrinadores, porém, parecem se identificar mais com os pressupostos

concernentes ao positivismo e ao normativismo de Kelsen. Ainda que inconscientemente, eles

passam a aderir a concepção de um “direito como questão de fato”. Crendo em uma

linguagem descritiva e exauriente da realidade, pensam que todo o Direito se encontra na

expressão legislativa, cabendo ao intérprete verificar unicamente questões fáticas para que

seja realizada a atividade subsuntiva, esta última, a única capaz de possibilitar a certeza e

previsibilidade encontradas nas ciências exatas.

Seguindo essa linha de raciocínio, identifica-se a posição de autores clássicos da

doutrina tributarista. Alfredo Augusto Becker assevera que

Uma vez criado o tributo, os intérpretes da lei devem investigar sua verdadeira natureza jurídica e esta poderia resultar, como se viu, do critério subjetivo do intérprete[...] e a única maneira de sair do manicômio jurídico tributário é encontrar o critério ‘objetivo’ que independa das flutuações subjetivas de cada intérprete [...] praticabilidade e certeza são especificidades do jurídico.(BECKER, 1972, p. 332-333)

Na mesma linha segue Geraldo Ataliba:

Assim, a lei descreve hipoteticamente um estado de fato, um fato ou um conjunto de circunstâncias de fato, e dispõe que a realidade concreta, no mundo fenomênico, do que foi descrito, determina o nascimento de uma obrigação de pagar um tributo [...] a lei tributária deve – sob pena de ter-se por ineficaz – descrever exaustiva e completamente a hipótese de incidência, em todos seus aspectos. (ATALIBA, 2005, p. 53; 200).

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Também nomes de peso da atualidade do Direito Tributário não escapam dessas

mesmas armadilhas. As raízes positivistas que encampam seus pensamentos podem

facilmente ser percebidas quando da leitura de suas argumentações em torno dos princípios da

legalidade, tipicidade, anterioridade, dentre outros. Essa identificação será realizada quando

do estudo desses mesmos princípios nos capítulos posteriores.

Nesse sentido, Roque A. Carrazza conjuga os princípios da tipicidade e o anseio da

previsibilidade científica própria de Descartes. Afirma o autor que

o tipo tributário (descrição material da exação) há de ser um conceito fechado, seguro, exato, rígido, preciso e reforçador da segurança jurídica. A lei deve, pois, estruturá-lo em ‘numerus clausus’ [...] Se não se realiza o fato imponível tributário (fato gerador in concreto), isto é, se não se cumprem integralmente os elementos do suposto fato legal (sempre minucioso, de modo a permitir que o contribuinte calcule antecipadamente a carga tributária que terá o dever de suportar, o lançamento e a arrecadação do tributo serão inválidos. (CARRAZZA, 2004, p. 235; 398) (grifos nossos)

Na mesma trilha, Alberto Xavier, que se apresenta como um drástico defensor da

hermenêutica clássica:

A exigência de ‘reserva absoluta’ transforma a lei tributária em’ lex stricta’ (princípio da estrita legalidade), que fornece não apenas o fim, mas também o conteúdo da decisão do caso concreto, o qual se obtém por mera dedução da própria lei, limitando-se o órgão de aplicação a subsumir o fato na norma, independentemente de qualquer valoração pessoal (XAVIER, 2001, p. 18) (grifos nossos)

E continua o autor em favor do método silogístico41: “a aplicação da norma tributária a

um caso concreto traduz-se num raciocínio lógico, subsuntivo que tem como premissa maior a

norma tributária geral e abstrata, como premissa menor a situação fática da vida...” (XAVIER,

2001, p.34).

41 Não podemos deixar de registrar, desde já, alguns elementos que fragilizam a percepção silogística do Direito. Aroldo Plínio Gonçalves nos lembra, assim, que “o silogismo da aplicação poderia ter tido seu golpe de misericórdia com o auxílio da própria lógica. Não porque fosse verdadeiro ou falso, coreto ou incorreto, provável ou improvável, conveniente ou inconveniente, mas simplesmente porque era logicamente inviável. Não havia, na verdade, sequer silogismo, no modelo proposto, porque não havia como se estabelecer previamente a distribuição dos termos dos juízos. Nos três juízos, a lei é a premissa maior, o caso concreto é a premissa menor e a sentença é a conclusão, não há meio de se identificar onde está o termo maior e o termo menor. E essa identificação seria de absoluta necessidade para o modelo de raciocínio que se postulava, pois o termo maior é o termo predicado da conclusão, e a premissa maior deve contê-lo. Não há como se identificar, igualmente o termo médio, que não aparece na conclusão, mas comparece nas premissas. Apenas depois de proferida a sentença seria possível encontrar as proposições que lhe teriam servido de base, mas não antes.” (GONÇALVES, 1992, p. 37-38.)

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Partidário da mesma posição, Amílcar Falcão, em trecho que denota o papel de

observador a que é relegado o jurista assevera que “o intérprete, portanto, não cria, nem inova,

limita-se a considerar e a, simplesmente, declarar-lhe a acepção, o significado e o alcance”

(FALCÃO, 1993, p. 63).

Repare como o autor, ainda que não intencionalmente, faz uso da ontologia

aristotélica. Tal qual os pensadores do Círculo de Viena, Falcão parece aceitar que as palavras

utilizadas em um texto normativo já têm em si mesmas um significado intrínseco. Por essa

razão, todos os intérpretes conseguiriam chegar à mesma conclusão jurídica, afinal, todo o

conteúdo do direito encontra-se adstrito ao conteúdo engessado pelas expressões normativas.

Outros autores também poderiam ser mencionados. Misabel Derzi, muito embora se

apresente francamente progressista no estudo tributário, acaba por perseguir uma segurança

jurídica impraticável.

Em obra exclusiva sobre a tipologia tributária, Misabel faz estudo digno de nota. Após

minuciosa análise acerca das características dos “tipos tributários”, conclui a autora, em

concordância com os filósofos alemães, que os tipos não são efetivamente cerrados como

pressupõe toda a doutrina. Pelo contrário. Sua forma de construção acaba por lhes acarretar

uma abertura que lhes é própria, concluindo, assim, pela “abertura do tipo, que se revela na

inesgotabilidade de suas notas” (DERZI, 1988, p. 64). E de fato assim o é!

Todavia, após compreender os tipos tributários por demais abertos e flexíveis, tal

como já propusera Wittgenstein na década de 1930, Misabel passa a demandar a utilização de

uma linguagem mais hermética e insuscetível de variações de entendimento: “exige-se, então,

não só que a lei tipifique os fatos jurígenos e seus efeitos, mas que ela limite, tanto quanto

possível, a imprecisão conceitual, transformando-os em conceitos fechados” (DERZI In:

BALEEIRO, 1998, p. 137).

Noutro lado, Dario da Silva ao tentar trabalhar o art. 145 da CF também se utiliza de

métodos que o aproximam de Frege e Carnap:

Não se trata de proceder a uma interpretação meramente gramatical; aliás, não se trata de uma questão interpretativa. O que se que se quer é, antes de entrar-se no mérito da questão jurídica, fazer-se, corretamente, uma análise da sintaxe do § 4º do art. 145 da Constituição Federal. Observando a colocação das palavras na frase inicial do § 4º do art. 145 da nossa Constituição e a relação lógica das frases entre si deste parágrafo, chegar-se-á à conclusão de que... (OLIVEIRA JUNIOR, 2000, p.52-53)

Também na jurisprudência, conforme se depreende dos votos dos ministros do

Supremo Tribunal Federal, é possível identificar lampejos da hermenêutica clássica. Desse

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modo, o Min. Marco Aurélio Mello, em mais de uma oportunidade, mostrou-se um

pesquisador dos conteúdos intrínsecos aos termos normativo-constitucionais.

Quando em análise do RE 198.08842 (DJ 05/09/2003), debatia-se acerca da

possibilidade ou não de incidência de ICMS (imposto sobre circulação de mercadorias e

serviços – art. 155, II da CF/88) sobre aquisição de lubrificantes e outros derivados de

petróleo realizada por uma empresa paulistana no estado do RJ. A lide tinha como base o

dispositivo constante no art, 155 § 2º, X, “b” da CF/88, onde se lê que o ICMS não incidirá

“sobre operações que destinem a outros Estados petróleo, inclusive lubrificantes,

combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e energia elétrica”.

Nessa oportunidade, o Ministro Marco Aurélio não demonstrou dúvidas. Preso à

disposição textual presente no dispositivo constitucional, Marco Aurélio, em voto vencido,

compreendeu que a imunidade deveria abranger toda a operação de circulação de derivados de

petróleo, desconsiderando qualquer razão argumentativa que pudesse acarretar uma

interpretação de conteúdo diverso ao expresso na literalidade do texto. Sua argumentação

deixa clara a linha adotada pelo Ministro: “está na norma, Excelência [...] os constituintes

deveriam ter pensado nisso [...] já disse que a Carta atual uma Carta decaída. Que venha uma

emenda para corrigir o que nela está”(p. 645; 647; 649).

Repare como seu pensamento caminha na linha de esgotamento do conteúdo jurídico

naquilo que textualmente está presente no ordenamento jurídico!

Outra hipótese que clarifica a postura hermenêutica ainda presente em nosso Supremo

Tribunal reside nos votos do RE 201.465 (DJ 17.10.2003)43, objeto de inatacável análise

hermenêutica por parte de Godoi e Rolim(2006).

No ano de 1990, a correção monetária até então calculada por determinados índices,

passou a ser referenciada por outros indicadores em razão da lei 8.088/90. Encerrado o

período-base de cálculo do Imposto de Renda, observou-se um descompasso substancial entre

42 EMENTA: TRIBUTÁRIO. ICMS. LUBRIFICANTES E COMBUSTÍVEIS LÍQUIDOS E GASOSOS, DERIVADOS DO PETRÓLEO. OPERAÇÕES INTERESTADUAIS. IMUNIDADE DO ART. 155, § 2º, X, B, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Benefício fiscal que não foi instituído em prol do consumidor, mas do Estado de destino dos produtos em causa, ao qual caberá, em sua totalidade, o ICMS sobre eles incidente, desde a remessa até o consumo. Conseqüente descabimento das teses da imunidade e da inconstitucionalidade dos textos legais, com que a empresa consumidora dos produtos em causa pretendeu obviar, no caso, a exigência tributária do Estado de São Paulo. Recurso conhecido, mas desprovido. 43 EMENTA: CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE RENDA. DEMONSTRAÇÕES FINANCEIRAS. CORREÇÃO MONETÁRIA. LEI 8.200/91 (ART. 3º, I, COM A REDAÇÃO DADA PELA LEI 8.682/93). CONSTITUCIONALIDADE. A Lei 8.200/91, (1) em nenhum momento, modificou a disciplina da base de cálculo do imposto de renda referente ao balanço de 1990, (2) nem determinou a aplicação, ao período-base de 1990, da variação do IPC; (3) tão somente reconheceu os efeitos econômicos decorrentes da metodologia de cálculo da correção monetária. O art. 3º, I (L. 8.200/91), prevendo hipótese nova de dedução na determinação do lucro real, constituiu-se como favor fiscal ditado por opção política legislativa. Inocorrência, no caso, de empréstimo compulsório. Recurso conhecido e provido

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a variação do poder monetário afirmado pelo IBGE (1.800%) e aquele utilizado pelo Governo

em seu novo cálculo (850%).

Reconhecida a diferença, poder-se-ia facilmente afirmar que a lei que introduziu um

índice irreal realizava tributação de números que não compunham a renda do contribuinte44.

Reconhecendo esse fato, o Congresso editou a lei 8.200/90 que reconhecia o expurgo dessa

diferença, porém postergando ao ano de 1993 o abatimento da diferença mencionada.

O tema presente no RE 201.465 é a legitimidade da espera determinada pela lei

8.200/90. Caso se entendesse a diferença do cálculo da correção monetária ocasionada pela lei

8.088/90 legítima, poderia o Governo determinar o adiamento da “compensação” antedita –

seria um mero benefício proporcionado ao contribuinte. Ocorre que referido posicionamento

implica afirmar que a legislação formal pode entender como “renda” toda e qualquer situação,

independentemente de seu conteúdo real. Noutra senda, caso tida por ilegítima tal diferença, o

abatimento não poderia ser postergado.

Nesse sentido, é o debate: todo e qualquer conteúdo textual presente em uma lei que

passou pelo processo formal de elaboração é considerado Direito, independentemente de

qualquer outro motivo? Há na atualidade a prevalência dos procedimentos formais legislativos

para identificação do conteúdo que compõe nosso ordenamento jurídico em detrimento de sua

análise substancial? Noutros termos, a construção do Direito se encerra em um momento

pontual e acrítico de elaboração legislativa tal qual pensado pelos positivistas formalistas? Ou

não, é possível sim contestar o conteúdo das normas e reconstruí-las interpretativamente em

uma postura hermenêutica mais coerente com a contemporaneidade?

44 “Imagine-se que uma empresa comercial constituída em 01/01/2006 receba, como aporte inicial de seus sócios (capital social), o valor de R$100.000,00. imagine-se que a empresa aplique integralmente esse capital na compra de estoques e na formação de seu capital de giro, e não adquira nenhum imóvel, máquina ou equipamento cujo valor nominal possa ser alterado pela inflação. Suponhamos que em 31/12/2006 essa empresa apure em seu resultado um lucro de R$30.000,00. Esse lucro de R$30.000,00 não levará em conta a desvalorização sofrida ao longo do ano, pelo capital inicial dos sócios. Suponhamos que a inflação no ano de 2006 seja de 50%. Se a empresa fosse liquidada em 31/12/2006, os sócios receberiam de volta o capital inicial de R$10.000,00 mais os lucros produzidos durante o ano (R$30.000,00). Ocorre que, pela corrosão do poder de compra da moeda causada pela inflação, os sócios não terão obtido qualquer ganho real durante o ano, pois o poder de compra de R$130.000,00 no dia 31/12/2006 é menor do quer o poder de compra de R$100.000,00 no dia 01/01/2006 (...) O efeito deletério desse expurgo pode ser demonstrado por um exemplo simples e real. Um indivíduo adquire um imóvel por R$100.000,00 em 1º de janeiro. Se a inflação neste ano for de 950% (valor do expurgo de 1990), esse imóvel valerá R$1.050.000,00 no dia 31 de dezembro. Vendendo esse imóvel por exatos R$1.050.000,00 no dia 31.12, seu proprietário terá em mãos o mesmo poder aquisitivo que tinha no dia 1º de janeiro. Será razoável exigir que esse indivíduo pague 15% de imposto de renda sobre a correção monetária de R$950.000,00 (diferença entre o valor da aquisição e o valor da alienação).” (GODOI; ROLIM, 2006, p.61; 65). Diante dessa didática explicação dos autores, pode-se compreender o tema relativo ao RE 201.465. Caso o Fisco considere um percentual de correção monetária inferior ao real, ele estará tributando um valor nominal que não corresponde a qualquer ganho real por parte do contribuinte. Daí o debate: pode a legislação criar, através de uma lei formal a obrigação de exação não abrangida pelo real – renda – ainda que o texto legal chame tal ganho fictício de “renda” tal qual determinado pela divisão de competência constitucional?

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Debruçado sobre essa temática, o então Ministro do STF Nelson Jobim, cujo

posicionamento baseou o acórdão da Corte45, apostou na liberdade ampla do poder legislativo,

desde que cumpridos seus requisitos formais. Asseverou o Ministro que “o conceito de lucro

real é um conceito decorrente de lei [...] para efeitos tributários, não há que se falar em

LUCRO REAL que não seja o decorrente de definição legal” (p.398; 399)46.

A linha hermenêutica convenceu também outros Ministros. O voto completo da

Ministra Ellen Gracie: “Sr. Presidente, no mérito, acompanho integralmente o eminente

Ministro Nelson Jobim, fixando-me no fato de renda é aquilo que a lei define como

tal.”(p.420)

Outra linha argumentativa que também se destaca é aquela que se filia à já trabalhada

Escola Histórica do Direito iniciada por Savigny, que por sua vez, identificava 4 modelos

possíveis de interpretação: interpretação gramatical; interpretação lógica; interpretação

histórica; e interpretação sistemática, todas elas utilizadas sem uma hierarquia pressuposta,

mas sempre em observância ao volkgeist (conferir supra). Nesse diapasão, Bernardo Ribeiro

de Moraes (2002b, p. 181 e ss.), e Celso Ribeiro de Bastos (1999, p. 184). Mas dentre eles, é

mesmo Ricardo Lobo Torres quem se destaca.

Muito embora já se tenha apontado as mazelas que a Escola Histórica do Direito pode

acarretar, dentre elas a prisão ao próprio texto a que Savigny acaba por se encontrar, Lobo

Torres, particularmente, refina o estudo da interpretação tributária quanto ao tema.

Em uma primeira análise, o autor trabalha a tarefa hermenêutica da mesma forma que

Savigny: “a melhor e mais duradoura classificação de métodos de interpretação forneceu-a

Savigny, que os reduzia a 4: gramatical, lógico, histórico e sistemático” (TORRES, 2005,

p.151)

Contrário à hierarquia de métodos interpretativos tal qual o autor alemão, Torres

defere severas críticas ao legislador do CTN, em especial ao art. 109 (Cf. TORRES, 1990,

p.70 e ss). Em seu pluralismo metodológico, o autor, tal qual Savigny, não identifica qualquer

prevalência entre os métodos interpretativos, “até por que não são contraditórios, mas sim se

complementam e intercomunicam” (TORRES, 1990, p.83).

45 É importante anotar que, em outras oportunidades, o STF adotou entendimento diverso. Nesse sentido, conferir artigo de Godoi e Rolim que trabalha de forma completa o histórico das decisões da Corte no que tange à liberdade legislativa para definição de pressupostos de incidência tributária: (GODOI; ROLIM, 2006, p. 62 e ss.) 46 É interessante destacar que, em seu voto, Nelson Jobim se utiliza de argumentos contrários à hermenêutica clássica, como a não ontologização dos significados (Cf. p.432), para fundamentar um posicionamento próprio da corrente positivista.

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No entanto, Torres parece ciente dos riscos que a postura savignyana pode apresentar.

Tanto o é que ele mesmo já aponta considerações contrárias ao pensamento clássico

interpretativo. Afinado com a evolução filosófica, o tributarista leciona que o CTN, com sua

regulação acerca da interpretação e integração pretendia inconscientemente superar a

interpretação da aplicação do Direito, pensamento que ainda em Kelsen encontra defesa. E

mais, já ciente da fragilidade das bases lingüísticas do positivismo e normativismo, Lobo

Torres reconhece que

Com os progressos da lingüística, não se pode mais defender a univocidade da linguagem do Direito e a plena aptidão da letra da lei para expressar a ‘ratio’. No Direito Tributário nem os conceitos fundamentais são unívocos, eis que reina a imprecisão a respeito do significado de ‘imposto’, ‘taxa’, ‘fato gerador’, etc. (TORRES, 1990, p.100)

No plano da jurisprudência, também é possível identificar partidários da utilização dos

métodos da Escola Histórica do Direito. Quando dos RE’s 134.509 e 255.11 (DJ

13.09.2002)47, debatia-se se o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA)

presente no art. 155, III da CF/88 poderia incidir sobre aeronaves e embarcações.

Iniciando entendimento que levaria à conclusão da Corte, o Ministro Francisco Rezek

fez uso dos métodos de Savigny para alcançar o resultado de sua tarefa interpretativa. Rezek

busca em uma interpretação histórica o objetivo do constituinte em criar o IPVA como um

sucedâneo da “taxa rodoviária” da Constituição precedente (p.373). Repare, porém como sua

argumentação busca alcançar a vontade constituinte, da mesma forma como Savigny tentava

chegar ao volkgeist:

e não me pareceu, examinados os sucessivos textos constitucionais recentes que, em qualquer momento, tenha sido a intenção do constituinte brasileiro autorizar aos Estados, sob o pálio do imposto sobre propriedade de veículos automotores, a cobrança sobre a propriedade de aeronaves e embarcações de qualquer calado (p. 374)

Segue o Ministro posteriormente, acompanhado pelo Min. Sepúlveda Pertence e a

maioria da Corte, em argumentação ligada à interpretação sistemática. Considerando que os

registros de aeronaves e embarcações são realizados a nível federal, não há que se falar em

exação incidente sobre as mesmas a ser cobrada pelos Estados.

47 EMENTA: IPVA - Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores (CF, art. 155, III; CF 69, art. 23, III e § 13, cf. EC 27/85): campo de incidência que não inclui embarcações e aeronaves.

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Aos partidários dessa mesma linha de pensamento, alertamos que a percepção de um

Direito sistêmico, conjugando os vários dispositivos de forma a se construir um significado

coerente em atenção aos dados do caso concreto e às razões normativas presentes é, de fato,

fonte de legitimidade argumentativa. Não obstante, utilizar a interpretação sistemática tal qual

proposta por Savigny, tendo a expectativa de que uma análise conjunta trará a resposta no

texto legal se mostra, no mínimo, ilusória, pois atrelada às características sintáticas e

semânticas da linguagem.

Noutros termos, como observa o professor Álvaro Ricardo S. Cruz em sala de aula,

uma hermenêutica que pressuponha o Direito como um sistema se distingue da chamada interpretação sistemática de Savigny. Isso porque a construção de sentido de uma norma considerando sua inserção no ordenamento jurídico, constitui-se para a hermenêutica filosófica apenas o preconceito inicial a ser depurado pelo círculo hermenêutico quando da análise de um caso concreto.

Ainda que firmes na convicção de que a doutrina e jurisprudência brasileiras (a

primeira, em especial) se mantêm marcadas pelos ideais hermenêuticos próprios do início da

modernidade, não se pode deixar de destacar os autores que, atentos às inovações do campo

da epistemologia, deixam para trás a concepção matematizada e previsível da normatividade

tributária.

Humberto Ávila em vários trabalhos deixa claro que percebe ultrapassada a visão

antedita. Em texto acerca do estatuto do contribuinte, Ávila chega a criticar mesmo alguns dos

métodos de Savigny:

É inexato, pois, definir a interpretação como mera descrição do significado, quer no sentido de comunicação de uma informação ou conhecimento a respeito do texto, quer no sentido da intenção do seu autor [...] pois o significado não é algo incorporado às palavras, mas algo que depende precisamente do uso e da interpretação [...] por outro lado, a concepção que aproxima o significado da intenção do legislador pressupõe a existência de um autor determinado e de uma vontade unívoca fundadora do texto. Isso, no entanto, também não sucede... (ÁVILA, 2001, p.04)

Já em obra ligada ao estudo de regras e princípios, afirma o autor que “como os

dispositivos hipoteticamente construídos são resultado de generalizações feitas pelo

legislador, mesmo a mais precisa formulação é potencialmente imprecisa” (ÁVILA, 2005,

p.48).

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Também Marco Aurélio Greco demonstra consistente conhecimento acerca da

atividade hermenêutica, não se deixando iludir pelo anseio de precisão absoluta e previsão

exata de conteúdos normativos através da linguagem descritiva.

Sem dispensar a importância da legalidade tributária, Greco concebe que a

multiplicidade de interesses, vontades, interações e relações presentes na realidade fazem com

que essa seja sempre mais complexa e rica quando comparada com a previsão casuística

realizada pelo legislador. Para ele,

Na medida em que a realidade é complexa e, em última análise, não existem fatos ou condutas absolutamente idênticos [...] pretender que (no campo da legislação) o direito posto contenha a previsão exata de todas e cada uma das condutas possíveis é absolutamente irreal e inatingível [...] os fatos não são inequívocos, nem quanto à sua ocorrência, nem quanto ao seu significado, por envolverem, no mais das vezes, valorações que extrapolam dados meramente empíricos. (GRECO, 2004, p.62; 373)

No que tange à jurisprudência, também é viável identificar momentos de fuga à prisão

neopositivista. Nesse sentido, quando da análise da validade da EC 41/03, utilizou-se o

Supremo Tribunal Federal da técnica de ponderação de valores. A teoria proposta por Alexy

(1997) vê nos princípios uma importante fonte normativa juntamente com as normas

positivadas.

Robert Alexy, em refluxo ao esvaziamento de conteúdo jurídico gerado pelo

positivismo e seu formalismo, cunhou uma importante visão principiológica do Direito ao

aglutinar essas espécies normativas em conjunto com as regras escritas e antes dominantes.

Mas não apenas. Também o aspecto dialógico permeado por regras básicas48, importante peça

na teoria alexyana, é um segundo mérito de sua construção teórica que possibilitou uma fuga

às concepções ontológicas do conteúdo jurídico pré-interpretativo.

48 “A validade do primeiro grupo de regras é uma condição prévia da possibilidade de toda comunicação lingüística que dá origem a qualquer questão sobre a verdade ou a correção: (1.1) Nenhum orador pode se contradizer. (1.2) Todo orador apenas pode afirmar aquilo em que crê. (1.3) Todo orador que aplique um predicado F a um objeto tem de estar preparado para aplicar F a todo

objeto que seja semelhante a ‘a’ em todos os aspectos importantes. (1.4) Diferentes oradores podem não usar a mesma expressão com diferentes significados.” (ALEXY, 2001,

p. 187) Não obstante, Alexy percebia que não bastavam as regras básicas. Necessária ainda a observância da regra de racionalidade, que implicava que ao pronunciar seus posicionamentos, o orador deveria justificar racionalmente para que outros participantes pudessem contestar suas justificativas: “todo orador tem de dar razões para o que afirma quando lhe pedem para fazê-lo, a menos que possa citar razões que justifiquem uma recusa em dar uma justificação. Esta regra pode ser chamada de ‘regra geral de justificação’” (ALEXY, 2001. p.190).

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Em que pese representar uma efetiva superação do ranço positivista, e por isso ter seu

merecido reconhecimento no desenvolvimento jurídico, Alexy encampa seu pensamento em

dois pontos frágeis.

Muito embora acerte quanto a necessidade de uma construção dialógica para a

aplicação do Direito ao caso concreto, referido embate discursivo poderia, para o autor,

adentrar em toda sorte de argumentação, seja ela de ordem jurídica, seja de ordem política.

Nessa trilha, em contrário aos entendimentos de Günther (2004) e Habermas (2003), ele

ignora a diferenciação entre os discursos de fundamentação (escolhas políticas) e de aplicação

(fundamentação principiológica presente no momento jurisdicional)49, estando ambos aptos a

serem verificados quando da decisão jurisdicional.

Ocorre, porém, que apenas os legisladores, democraticamente eleitos para tanto, detêm

a competência para gerir o debate acerca de escolhas deliberativas que devem reger aquela

dada comunidade (p.e. qual a área de prioridade de investimentos na sociedade). Agrava tal

situação a possibilidade, pensada pelo autor, de as decisões ocorridas em um caso concreto

serem estendidas aos demais! Ora, assim o sendo, o julgador passa a ingerir de forma

determinante na esfera destinada ao Poder Legislativo, mitigando de forma irreparável a

separação dos poderes necessária para o Estado democrático.

Não fosse suficiente, Alexy, apesar de suas tentativas em apontar um caráter

deontológico (dever-ser) à espécie principiológica, acaba por adotar uma postura axiológica

(valorativa) mesmo em relação aos princípios jurídicos (HABERMAS, 2003 p. 314 e ss.).

Isso porque, em seu entendimento, a aplicação dos mesmos deve se dar tanto quanto

possível, desde que observadas as regras para a ponderação de valores alexyana: adequação

dos meios escolhidos pela norma aos objetivos colimados; necessidade de escolha da medida

49 “Em discursos de aplicação não se trata da validade e sim da relação adequada da norma à situação [...] certamente, os passos complexos de uma interpretação construtiva não se deixam normatizar processualmente; porém eles subjazem ao controle da racionalidade processual de um discurso de aplicação institucionalizado juridicamente. Em todo caso, a jurisdição constitucional que parte do caso concreto está limitada à aplicação de normas (constitucionais) pressupostas como válidas; por isso a distinção entre discursos de aplicação de normas e discursos de fundamentação de normas oferece, mesmo assim, um critério lógico argumentativo de delimitação de tarefas legitimadoras da justiça e da legislação” (HABERMAS, 2003 p. 270; 323-324). Souza Cruz nos brinda com exemplo interessante acerca do debate entre a distinção necessária entre esses dois momentos da construção do Direito. “um exemplo vem, pois, a calhar: de uma forma geral, ninguém é contra o princípio da igualdade ou contra ações de inclusão social para pessoas mais carentes. Pergunte a qualquer um (sic) verá! Contudo, a questão ganha nova coloração quando a mesma é posta em um discurso de aplicação, tal como quando se está diante de um caso no qual um representante de alguma minoria pretere alguém (com nome, CPF, carteira de identidade, etc) no ingresso de um curso de ensino superior a coisa muda de figura. Ou seja, a argumentação que envolverá a legitimidade da decisão no discurso de justificação é distinta daquela que se emprega em um discurso de aplicação” (CRUZ, 2007 p. 193) É de se notar, porém, que Habermas dá um passo adiante à proposta de Günther, pois a relaciona com a perspectiva dworkiana de distinção entre argumentos de princípio e argumentos de política (CRUZ, 2007, p. 223).

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menos onerosa; e ponderação em sentido estrito, consistente na própria noção de otimização

principiológica, o custo/benefício entre a prevalência de um princípio ou outro (ALEXY,

1997, p.112): “...do conceito de princípio resulta que na ponderação não se trata de uma

questão de tudo ou nada, mas sim uma tarefa de otimização.” (tradução nossa)50 (ALEXY,

1997, p.166).

É de se observar como o autor, por meio de sua teoria ponderativa, cai na

desestruturação do sistema do Direito, fazendo-o sucumbir frente o sistema político com a

ampla ingerência do Judiciário no seio de questões e escolhas que, pelo regime democrático,

deveriam residir na esfera legislativa.

No que tange a identificação da ponderação de valores, Humberto Ávila é expresso

defensor de sua adoção:

O dever de proporcionalidade aplica-se a casos de colisão de princípios. Quando há uma colisão entre princípios, é preciso decidir qual princípio, em concreto, obtém prevalência [...] de um lado, há casos nos quais dois ou mais bens jurídicos se imbricam, de tal sorte que deve ser decidido se o meio é adequado para atingir o fim almejado (relação meio-fim), se o meio é o mais suave relativamente aos direitos fundamentais atingidos (relação meio-meio) e se os efeitos negativos da escolha do meio não são desproporcionais aos efeitos positivos decorrentes da promoção do fim (relação meio-fim).” (AVILA, 2006, p.93; 101) (grifos nossos)

Já quanto ao Supremo Tribunal, não se pode afirmar que o mesmo percorra de forma

explícita todo o trajeto que Alexy constrói para sua teoria. Entretanto, a análise própria de

custo/benefício de escolhas originariamente detidas no campo político é facilmente detectado

nas decisões da Corte, bem como a superação da limitação positivista.

Nessa trilha, cumpre destacar as ADIN’s 3105 e 312851, (DJ 18/02/2005). Na

oportunidade, debatia-se a constitucionalidade da inserção, pela EC 41/2003, da exação de

contribuições previdenciárias de servidores inativos. Diante de uma argumentação que

envolvia a disposição positivada de impossibilidade de burla aos direitos adquiridos (art. 5º,

XXXVI da CF/88) bem como princípios magnos, tais como a isonomia constitucional e

50 No original: “del concepto de principio resulta que en la ponderación no se trata de una cuestión de todo o-todo-o-nada, sino una tarea de optimización.” 51 EMENTAS: 1. Inconstitucionalidade. Seguridade social. Servidor público. Vencimentos. Proventos de aposentadoria e pensões. Sujeição à incidência de contribuição previdenciária. Ofensa a direito adquirido no ato de aposentadoria. Não ocorrência. Contribuição social. Exigência patrimonial de natureza tributária. Inexistência de norma de imunidade tributária absoluta. Emenda Constitucional nº 41/2003 (art. 4º, caput). Regra não retroativa. Incidência sobre fatos geradores ocorridos depois do início de sua vigência. Precedentes da Corte. Inteligência dos arts. 5º, XXXVI, 146, III, 149, 150, I e III, 194, 195, caput, II e § 6º, da CF, e art. 4º, caput, da EC nº 41/2003. ...Não é inconstitucional o art. 4º, caput, da Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003, que instituiu contribuição previdenciária sobre os proventos de aposentadoria e as pensões dos servidores públicos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações. 3. Inconstitucionalidade. Ação direta. Emenda Constitucional (EC nº 41/2003, art. 4º, § únic, I e II).

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justiça social, o Supremo decidiu pela improcedência da ação e conseqüente

constitucionalidade da exação.

Noutros termos, o Supremo percebeu a existência de conteúdo jurídico mesmo em

confronto com um dispositivo expresso da Constituição. O embate que se viu formado

compreendia ainda o conflito de princípios constitucionais admitidos como fonte normativa

pela Corte – aqui, superação do modelo clássico – havendo, ainda, a relativização de um

frente outro prevalecente.

Em voto, o Ministro Cézar Peluso (ADI 3128 DJ 18/02/2005), relator para o acórdão

fundamentou:

Esse tratamento tributário diferenciado encontra justificação no conjunto de elementos político-normativos representados pelo caráter contributivo do sistema, pela obrigatoriedade de equilíbrio atuarial e financeiro, pelo imperativo de solidariedade social, pela distribuição eqüitativa dos encargos do custeio e pela diversidade da base de financiamento (pág. 104)

Em outro momento, passa à argumentação de que a decisão a ser proferida pelo STF

deveria observar se as modificações constitucionais seriam adequadas para empreender o

objetivo escolhido pelo constituinte reformador:

Ditaram essa transmutação do regime previdencial, entre outros fatores político-legislativos, o aumento da expectativa de vida do brasileiro e, conseqüentemente, do período de percepção do benefício, bem como a preocupação permanente com o dito equilíbrio financeiro e atuarial do sistema, tudo isso aliado à queda da taxa de natalidade e à diminuição do acesso aos quadros funcionais públicos. Essa equação, de crescente pressão financeira sobre uma estrutura predominantemente solidária e distributiva, conduziria a inexorável desproporção entre servidores em atividade e aposentados, tendendo ao colapso de todo o regime...este inquietante quadro social, econômico e político, em que, sob juízo isento e desapaixonado, não se pode deixar de situar o país, interessa ao Direito, porque subjaz como fonte da razão normativa (ratio iuris) à aprovação da EC nº 41/2003, que estendeu aos servidores públicos inativos o ônus de compartilhar o custeio do sistema previdenciário. (pág.92-93; 95)

E percebe também ser sua interpretação a menos onerosa e mais interessante para se

lograr tais resultados, adentrando em um viés político:

Seria desproporcional e até injusto sobrecarregar o valor das contribuições dos servidores ativos para concorrerem à manutenção dos benefícios integrais dos inativos, sabendo-se que os servidores ora em atividade (grupo iii) poderão, à aposentadoria, receber, no máximo, proventos cujo valor não ultrapassará dez salários mínimos, de modo que, fosse outro o tratamento, contribuiriam para manter benefícios equivalentes a proventos integrais, mas receberiam até o limite do regime geral da previdência (pág.. 104-105)

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Já o Ministro Joaquim Barbosa, em seu voto, argumentou que

a tese sustentada na ação direta omite o fato de que o princípio dos direitos adquiridos, do mesmo modo que outros princípios constitucionais, admite ponderação ou confrontação com outros valores igualmente protegidos pela nossa Constituição. Numa palavra, estamos diante de princípios constitucionais relativos, (pág.43)

Noutra hipótese aqui já comentada, em razão do RE 198.088 (DJ 05-09-2003) debatia-

se junto à Corte a tributação ou não de petróleos e derivados em operações interestaduais.

Face o art. 155 §2º, X da CF/88, haveria imunidade tributária total da operação respectiva, ou

seria dado aos estados de destino a competência tributária?

Seguindo voto vencedor, repare como o Ministro Nelson Jobim acaba por descambar

por um utilitarismo, uma relação custo/benefício para determinar sua interpretação

constitucional, e consequentemente, a decisão jurisdicional proferida pelo Supremo:

...se a decisão fosse no sentido preconizado pelo Ministro Marco Aurélio, como conseqüência de uma leitura dessa forma sugerida por ele, teríamos a seguinte situação: todo consumidor que adquirisse petróleo – e quando em consumidor estou falando na indústria, estou falando na indústria de alumínio, estou falando em toda indústria que tenha como insumo o petróleo -, toda indústria deixa de pagar o tributo se adquirir o petróleo em outro Estado, pois pagará se adquirir internamente. O que isso significa? Significa que vamos ter uma enorme busca e alteração completa de toda malha distributiva de petróleo no país (p. 649)

Não se questiona aqui a correção ou não da conclusão final apresentada pela maioria

dos componentes do Supremo Tribunal Federal. O que se quer demonstrar é a forma de

argumentação que se evoca para alcançar o resultado tido por acertado com fulcro no “bom

senso” daqueles que ali estão para averiguar os aspectos de aplicação jurisdicional das

normas.

Em que pese a utilização da ponderação de valores pelo Supremo Tribunal Federal,

temos algumas resistências, por entendermo-la frágil em sua proposta de caráter axiológico,

bem como pela configuração de um legislador constituinte alternativo, tal qual já apontado

supra52. Não obstante, não se pode deixar de afirmar o salto dado pela mesma quando em

análise a hermenêutica clássica que ainda figura na maioria da doutrina e jurisprudência

tributária. A identificação de um espectro jurídico além das amarras positivistas/legalistas é,

sem dúvida alguma, um avanço!

52 Sobre o tema, é imprescindível a leitura de CRUZ, 2004, p. 157 e ss.

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As considerações acerca da ponderação de valores, porém, demandariam obra própria,

seja em razão da explicação pormenorizada de suas premissas, seja pela refutação de suas

bases fundamentais. Diante desses obstáculos, remetemos os leitores aos autores que dela

trataram em maiores detalhes53.

Retornando ao destaque dado aos poucos autores e decisões que lograram escapar da

quase-hegemonia positivista na seara tributária, voltamos a alertar o leitor acerca da

prevalência da postura hermenêutica antedita na seara tributária, para que o mesmo não se

iluda com as passagens trabalhadas supra.

Uma vez identificada a massiva presença dessas bases filosóficas, cabe-nos agora

analisar duas questões:

Primeiramente, será que a adoção da hermenêutica clássica pela doutrina e

jurisprudência é eficiente e conveniente para o sistema tributário? Ou seja, com ela, consegue

o Direito Tributário alcançar os objetivos aos quais se propõe?

Em um segundo momento, dever-se-á ainda analisar se essa mesma técnica

interpretativa é viável, ou seja, se ela é possível de ser alcançada pelo jurista em razão de suas

bases epistemológicas.

53 Nesse sentido, conferir CRUZ, 2007.

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CAPÍTULO 3 – O DIREITO TRIBUTÁRIO SOB A ÓTICA DOS D IREITOS

FUNDAMENTAIS

3.1 Introdução

Pois bem, já apresentado ao leitor como se deu a evolução da construção do

conhecimento científico – e consequentemente da interpretação jurídica – até o início do

século XX, momento em que o positivismo ainda detinha fortes bases epistemológicas.

Tentou-se também identificar, em nossa realidade tributária, uma persistente presença desses

embasamentos hermenêuticos na doutrina e jurisprudência.

Agora, uma nova proposta é apresentada. Será que essas teorias hermenêuticas

calcadas em uma linguagem descritiva da realidade e na crença de uma certeza objetiva das

legislações e obrigações fiscais é satisfatória ao Direito Tributário? Será que essa forma de

pensar e interpretar o Direito Tributário consegue preencher todos os anseios que marcam o

sistema tributário brasileiro? Caso isso ocorra, eventuais objeções contrárias à sua adoção,

obviamente, perderão força.

Entretanto, esse é um exame que nos demandará um esforço maior. Isso porque, para

que se torne possível analisar a suficiência ou não da hermenêutica clássica, necessário

apontar o que o sistema fiscal deve lograr para que considerado inserido dentro do sistema

democrático que hoje caracteriza nosso ordenamento. Tarefa impossível sem a análise do

Direito Tributário em sintonia com o conteúdo constitucional.

3.2 O Direito Tributário sob o crivo da Constituição

Nos mais variados campos do ensinamento jurídico, estudiosos têm direcionado suas

pesquisas atentos a uma interpretação e construção de seus respectivos institutos, com vistas a

uma hermenêutica construtiva e condizente com as normas constitucionais.

A tentativa de uma busca acerca dessa mesma observância nas obras de Direito

Tributário exporá a extrema carência de uma abordagem efetivamente concatenada com a

evolução constitucional.

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Obviamente, não se pode afirmar a ausência absoluta de autores dedicados a uma

matéria fiscal condizente com os ditames do constitucionalismo. Entretanto, as obras

existentes se revelam geralmente dedicadas aos artigos relativos ao Direito Tributário

localizados no corpo do texto constitucional. É como se apenas aquelas normas presentes em

um documento de rito de elaboração diferenciado (leia-se constitucional) estivessem, de fato,

comprometidas com o conteúdo constitucional que visa reger todo o sistema do Direito.

Essa é uma crítica também apontada por Humberto Ávila: “é desacertada, pois, a

afirmação de que o sistema tributário se resume aos artigos 145 a 162 da Constituição de

1988. Esses dispositivos nada mais são do que uma parte dos pontos de partida para a

concepção do sistema tributário” (ÁVILA, 2001, p.03).

Ainda que nos coloquemos de acordo com Ávila, a postura apresentada pela doutrina

majoritária pode ser compreendida com certa naturalidade, uma vez a própria estrutura do

Direito Tributário em que inserida a mesma estar ainda extremamente arraigada à perspectiva

liberal-iluminista.

Essa forma de pensamento iluminista, detentora de uma racionalidade cartesiana e

compartimentalizada do conhecimento, acabou por resultar em uma ampla atividade de

análise – no sentido mais próprio do termo: divisão em prol da pureza científica – do saber em

si. Por isso mesmo, as mais diversas dicotomizações e fragmentações (p.e.direito

adjetivo/substantivo; fato e norma) são oriundas desse período histórico. Nesse sentido, a

postura cognitiva de segmentação da ciência exigiu uma documentação escrita para cada

“sub-área” do Direito, gerando, assim, o movimento de codificação – cujo fruto mais notório

é o código civil de Napoleão de 1.804 – que até hoje permeia a realidade de nosso sistema

jurídico.

É mais um indício da sobrevida que a filosofia clássica galga junto ao Direito

Tributário. Basta lembrar das características apontadas supra à Escola da Exegese e seu

estudo voltado unicamente à pesquisa e comentários da lei escrita.

A divisão estanque em códigos “auto-suficientes” visava justamente a simplificação e

matematização do saber científico propalado por Descartes. Um saber codificado ajudaria a

limitar os “devaneios da interpretação”, e por isso, conservaria a vontade e certeza legislativa.

A forma como se almejava trabalhar com um código tributário deixa bem claro o propósito de

sua inauguração:

procurou-se dar, com o CTN, uma sistematização ao Direito Tributário que fosse absolutamente rigorosa e que levasse a respostas categóricas do tipo ‘sim ou não’ [...] desenvolveu-se um Direito Tributário apoiado em conceitos frios, objetivos em

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que os grandes princípios não comportavam debates substanciais. Anterioridade não comportava debate por que se resumia a uma data [...] legalidade idem, ou está na lei ou não está.” (GRECO, 2004, p. 51-52)

Em que pese a codificação como método analítico classificatório, sua adoção gerou a

sugestão/impressão de cisão dentro do estudo do Direito e de sua interpretação e aplicação. A

tentativa de tornarem estanques as diversas disciplinas ocasionou o equivocado entendimento

de que a busca (ou melhor dizer, a construção!) de sentido dos institutos jurídicos deveria se

apresentar confinada em sua respectiva seara.

A exaltação da autotomia tributária, plenamente influenciada pelo processo de

codificação já aludido, pode ser percebida em passagens diversas nas obras tributaristas:

Decisivo para qualquer argumento sobre a autonomia do ramo do Direito aqui estudado, e inclusive, para a escolha da denominação que se lhe deseja dar, é o aparecimento, em nosso direito positivo, a exemplo do que ocorre em vários outros países, de um Código Tributário. (FANUCCHI, 1976, p. 24)

Entretanto, ainda que se busque uma segmentação do conhecimento, seja para fins de

maior didaticidade, seja mesmo para satisfação das vaidades dos estudiosos de suas

respectivas áreas, trata-se de tarefa um tanto ingrata. Isso porque, não importa quão

empolgante sejam as argumentações, quantos princípios e institutos exclusivos se encontrem

para a aclamação da autonomia e emancipação de uma determinada área jurídica, virá o

jurista a se debater face uma impossibilidade. O Direito Tributário dialoga, necessariamente,

de forma constante com as demais disciplinas jurídicas: Direito Civil, Empresarial,

Administrativo, Processual, etc. Caso mencionado o Direito Constitucional, esse diálogo não

apenas se intensifica, como ainda acaba por se tornar conformador à área fiscal!

Afinal, não se pode olvidar do fato de o Direito Tributário, sem embargo à sua

importância na configuração do Estado Democrático, é apenas mais um sub-sistema dentro da

complexa rede de interações que hoje caracteriza a sociedade. Conforme se verá mais à frente,

nem mesmo o Direito (aqui em sentido lato) pode se esquivar do diálogo e irritação com

outros sistemas presentes na vida social.

É por isso que Paulo de Barros Carvalho, argumentando pela inadmissibilidade de

“tais foros de autonomia científica”, arrebata, de forma objetiva e irrefutável que “mesmo em

obséquio a finalidades didáticas, não deixaria a cisão de ser a cisão do incindível, a seção do

inseccionável”(CARVALHO, 2004, p. 13).

Também enfático o ensinamento de Sacha Calmon, para quem “o Direito é uno, todo

interligado a regrar a vida social. São tolices essas ‘autonomias científicas’ dos diversos

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ramos do Direito [...] ora, essa divisão é a um só tempo, funcional e didática, nada mais.”

(COELHO, 2004, p. 33) (grifos nossos).

É nesse quesito que a supremacia da Constituição serve de grande valia. A

caracterização da Constituição, em sua genuína supremacia, acaba por rechaçar a

possibilidade de tentativa de compreensão do Direito Tributário distante do campo

constitucional. Não mais subsiste a idéia de uma carta constitucional desvinculante, uma mera

sugestão utópica para as diversas áreas jurídicas. Exige-se, de imediato, uma conformação de

todo o sistema para com as normas constitucionais (CRUZ,2006, p.146).

Assim, “a principal manifestação de preemência normativa da Constituição consiste

em que toda a ordem jurídica deve ser lida à luz dela e passada pelo seu crivo, de modo a

eliminar as normas que não se conformam com ela.” (CANOTILHO; MOREIRA, 1.991,

p.45.). Não é a Constituição que deve ser analisada e conformada com as disposições legais. É

a legislação ordinária que deve ser lida e adequada ao conteúdo constitucional que a preside!

Nesse sentido, Pereira trabalha com a idéia da Constituição como um “locus

hermenêutico”: “o lugar a partir do qual há uma conformação das possibilidades de sentido de

todas as normas inferiores, não tendo como, pois, compreender, interpretar e aplicar o Direito

independentemente do padrão constitucional” (PEREIRA, 2001, p. 120). Já Streck, com

outras palavras, mas na mesma direção, vê o texto magno como um “topos hermenêutico que

conformará a interpretação jurídica do restante do sistema jurídico [...] colocando à disposição

os mecanismos para a concretização do conjunto de objetivos traçados no seu texto normativo

deontológico” (STRECK, 2003 p. 241).

Diante dessa necessidade precípua de observação constitucional para a construção dos

diversos institutos presentes no sistema jurídico, a denominada “interpretação conforme” pode

ser entendida como um instrumento de concretização de fácil visualização, que ainda hoje

habita em nosso ordenamento.

Percebida por Hesse (1998, p. 70-75) como um dos princípios decorrentes da

supremacia constitucional, essa técnica hermenêutica, adotada pela nossa Corte

Constitucional, consiste na atribuição de um conteúdo interpretativo a determinado instituto

amoldado à substância constitucional. Ou seja, é a interpretação conformada pelo conteúdo

presente na Constituição, funcionando essa como um instrumento delineador das demais

normas jurídicas.

Essa contextualização representada pela construção de significado com olhos às

normas orientadoras de todo o ordenamento – Constituição – acaba por se mostrar um

importante instrumento não apenas à democracia, mas também capaz de trazer às demandas

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atuais, textos legislativos elaborados em períodos históricos de realidade distinta, tal qual o

CTN. Noutros termos, é ferramenta para fazer com que institutos jurídicos elaborados há

tempos atrás dêem um salto para a atualidade. Afinal,

...de nada vale qualquer concepção epistemológica emancipatória se continuarem os juízes a aplicar as leis do século passado com a cabeça do século passado. Ou pior, se continuarem a ler os novos instrumentos e valores trazidos pela nova ordem jurídica (a instaurada no Brasil com o advento da Constituição de 1.988) sob o influxo da ordem anterior ou, ainda, insistirem em adaptar a Constituição ao espírito da legislação infraconstitucional. (SCHIER, 1.999, p. 62)

Se acreditamos demonstrada a importância da necessidade de análise do conteúdo

constitucional quando do estudo, não apenas do Direito Tributário, mas de qualquer disciplina

do sistema jurídico, não é difícil a percepção da especial importância da análise do conteúdo

dos direitos fundamentais.

Representadores de um núcleo de importância constitucional, os “direitos

fundamentais são matrizes de todos os demais; são direitos sem os quais não podemos exercer

muitos outros. São os direitos fundamentais, direitos que dão fundamento a todos os demais”

(SALGADO, 1986 p. 09).

Como repercussão dessa importância, poucas são as dúvidas, na melhor doutrina,

referentes às conseqüências que o conteúdo dos direitos fundamentais traz para o sistema

jurídico de uma forma geral. Cientes disso, Sarlet (2003), assim como Perez Luño (1998) já

ressaltaram as duas dimensões – objetiva e subjetiva – que os direitos fundamentais carregam

consigo.

A dimensão subjetiva, tida como a face dos direitos ligada à relação entre Estado e

cidadão e entre particulares entre si54, está relacionada com a regulação imediata de direitos

tais quais “liberdade” e “igualdade” da pessoa.

Não obstante, há ainda a dimensão objetiva, esta sim de maior importância para a

presente argumentação. Pela dimensão objetiva dos direitos fundamentais, tais direitos não se

atêm a reservar ao indivíduo garantias em face do Estado e dos demais membros da

54 Sarlet, ao mencionar a dimensão subjetiva dos direitos fundamentais, se mostra mais arraigado à idéia de que a mesma está interligada apenas com a relação Estado/cidadão, restringindo referida faceta à competência negativa do Estado de atuação na esfera individual (Cf. SARLET, 2003.p. 149). Entretanto, já se considerarmos as lições de Sarmento (2004b) não mais podemos pensar os direitos fundamentais apenas na relação vertical tratada por Sarlet, mas também na relação horizontal, ou seja, entre particulares. Nesse sentido, Perez Luño se coloca mais atento, inserindo na dimensão subjetiva ora em comento, as relações entre os particulares. “En su dimensión subjetiva, los derechos fundamentales determinan el estatuto jurídico de los ciudadanos, lo mismo em sus relacionaes com el Estado que em sus relaciones entre sí. Tales derechos tienden, por tanto, a tutelar la libertad, autonomía y seguridad de la persona no sólo frente al poder, sino también frente a los demás miembros del cuerpo social” (PEREZ LUÑO, 1998. p. 22)

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sociedade. Ganham os mesmos, força autônoma, alcançando assim, todo o corpo de regras

que compõem o sistema do Direito.

Dessa forma,

como primeiro desdobramento de uma força jurídica objetiva autônoma dos direitos fundamentais, costuma apontar-se para o que a doutrina alemã denominou de uma eficácia irradiante (Ausstrahlungswirkung) dos direitos fundamentais, no sentido de que estes, na sua condição de direitos objetivos, fornecem impulsos e diretrizes para a aplicação e interpretação do direito infraconstitucional, o que, além disso, apontaria para a necessidade de uma interpretação conforme aos direitos fundamentais (SARLET, 2.003. p. 152).

Se o conteúdo dos direitos fundamentais consegue “se irradiar” para todas as áreas do

Direito e conformar materialmente seus conteúdos, torna-se fácil concluir que os direitos

fundamentais constituem um “ponto de referência sistêmico” (CANOTILHO, 1995 p.505)

para a compreensão dos institutos jurídicos. Não há mais como seccionar a hermenêutica

constitucional – em especial os direitos fundamentais – da hermenêutica infraconstitucional.

Não há como tentar entender e aplicar o Direito Tributário ignorando o conteúdo desses

direitos.

Ciente do quão determinante se apresenta o conteúdo constitucional para a

conformação dos inúmeros institutos jurídicos, Misabel Derzi identifica princípios tributários

pela sua simples compatibilidade com a efetivação dos direitos fundamentais esboçados na

Constituição. Na acertada opinião da autora, imunidades diversas, bem como certos princípios

tributários são decorrentes da própria idéia sistêmica que permeia o mundo constitucional,

sem qualquer expressão textual no CTN ou mesmo na nos “capítulos tributários” da

Constituição Federal. Nas suas palavras,

... há certas imunidades que, por serem logicamente dedutíveis de princípios fundamentais irreversíveis como a forma federal de Estado e a igualdade – capacidade contributiva, independem de consagração expressa na Constituição. É o caso das imunidades recíprocas das pessoas estatais e das instituições de educação e assistência social sem finalidade lucrativa, por exemplo. (DERZI, In: BALEEIRO, 2005, p. 115)

Mas, poder-se-ia argumentar, porém, que a doutrina brasileira é recorrentemente

presenteada com tratados que trabalham a tributação face o conteúdo constitucional. Essa

afirmativa não está de toda equivocada. Entretanto, os diversos autores que assim o fazem

parecem interpretar o Direito Tributário calcados em um antagonismo e parcialidade também

passíveis de críticas. Nesse sentido, não são raras as obras comprometidas com a construção

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do sistema tributário unicamente para fins de reconhecimento de benefícios aos contribuintes

face o Estado, tais como imunidades, legalidade e proteção à propriedade.

Não se busca aqui a negativa desses direitos serem advindos na “irradiação” dos

direitos fundamentais. A evolução e conquista de direitos individuais faz sim parte da

estruturação de nosso seio constitucional, e, conseqüência direta, a observação desses

preceitos quando do planejamento e execução da tarefa tributária. Neste tocante, os

argumentos tecidos pelos autores em prol a uma “dimensão negativa”, são legítimos55.

Todavia, não se pode restringir a hermenêutica constitucional-tributária ao critério de

unicamente beneficiar o particular.

A análise constitucional do Direito Tributário deve se atentar para o conteúdo dos

direitos, ainda que, por vezes, isso resulte em construções jurídicas que irão reavaliar

garantias supostamente tidas por certas aos indivíduos tributados (p.e., a isenção de imposto

de renda aos magistrados analisada no RE 236.881 - DJ 26/04/2002)56.

É um equívoco que muitos autores insistem em realizar. Percebendo as disposições

constitucionais unicamente como cerceadoras da atividade arbitrária estatal, entendem tais

autores que o Direito Constitucional tem o escopo apenas de delimitar a área do Fisco em

benefício do contribuinte. E neste grupo, ainda preso a um pensamento maniqueísta acerca da

relação Estado/contribuinte, encontram-se nomes de grande peso e importância na formação

do Direito Tributário, geralmente com ênfase na defesa da propriedade individual. É mais

uma vez a influência de nossas raízes liberais no que tange à proteção da propriedade tal qual

um direito derivado da absoluta autonomia da vontade.

Nessa trilha, repare a diferença de tratamento com que Ives Gandra trabalha as

garantias constitucionais do contribuinte e do Fisco:

55 Ávila se mostra atento à necessidade de conformação do conteúdo fiscal à matéria constitucional. Para ele, “... essas normas funcionam como limites à intervenção tributária. Daí o significado fundamental da dimensão negativa das normas constitucionais. Isso não pode, porém, conduzir a um desprezo da dimensão positiva das limitações. A própria expressão ‘limitação’ conduz a uma descrição prioritariamente circunscrita à dimensão negativa, sem que outras normas, que instituem diretrizes positivas e possuem apenas uma eficácia mediata relativamente ao poder de tributar, sejam dignas da devida atenção (dignidade humana, proteção da família, desenvolvimento regional, etc)” (ÁVILA, 2006, p. 22). 56EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. REMUNERAÇÃO DE MAGISTRADOS. IMPOSTO DE RENDA SOBRE A VERBA DE REPRESENTAÇÃO. ISENÇÃO. SUPERVENIÊNCIA DA PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. ISONOMIA TRIBUTÁRIA. INSUBSISTÊNCIA DO BENEFÍCIO. 1. O artigo 150, inciso II, da Constituição Federal, consagrou o princípio da isonomia tributária, que impede a diferença de tratamento entre contribuintes em situação equivalente, vedando qualquer distinção em razão do trabalho, cargo ou função exercidos. 2. Remuneração de magistrados. Isenção do imposto de renda incidente sobre a verba de representação, autorizada pelo Decreto-lei 2.019/83. Superveniência da Carta Federal de 1988 e aplicação incontinenti dos seus artigos 95, III, 150, II, em face do que dispõe o § 1º do artigo 34 do ADCT-CF/88. Conseqüência: Revogação tácita, com efeitos imediatos, da benesse tributária. Recurso extraordinário não conhecido.

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Sempre que o princípio for uma garantia do contribuinte, como a uniformidade, a generalidade, à evidência o legislador ordinário não tem a faculdade de não admiti-lo. É obrigado a adotá-lo, pois caso contrário desrespeitaria a constituição. Sempre que o princípio caracterizar-se, essencialmente, como um direito à imposição, tem o Poder Tributante a faculdade de se utilizar ou não de tal opção (MARTINS, 1989, p. 63-64)

É também com espeques nessa forma de pensamento que Carrazza, ao dissertar acerca

do “estatuto do contribuinte” passa afirmar que

os direitos fundamentais, evidentemente, também amparam os contribuintes contra os poderes do Estado, inclusive o Legislativo. Deveras, todo o Título II da Constituição brasileira delimita o exercício das competências tributárias das pessoas políticas, impedindo-as de ingressarem nas áreas reservadas aos direitos à vida, à igualdade, à segurança e à propriedade dos contribuintes... As pessoas políticas, enquanto tributam, não podem agir de maneira arbitrária e sem obstáculo algum, diante dos contribuintes. Muito pelo contrário: em suas relações com eles, submetem-se a um rígido regime jurídico. Assim, regem suas condutas de acordo com as regras que veiculam os direitos fundamentais e que colimam, também, limitar o exercício da competência tributária, subordinando-o à ordem jurídica. (CARRAZZA, 2005, p. 392 – 394)

Obviamente, não se pode perder de vista que, de fato, os direitos fundamentais

consagrados pelos movimentos constitucionalistas iniciaram-se, no século XVIII, com o

objetivo precípuo de delimitar as tarefas e insurgências de um Estado até então arbitrário.

Momento algum poderíamos olvidar as garantias e direitos daí decorrentes.

Entretanto, a efetivação dos direitos constitucionais, em especial, os direitos

fundamentais na esfera do Direito Tributário, abarca um plexo muito mais amplo do que

meras garantias a fim de beneficiar os contribuintes de um “vil e autoritário” Estado. Também

o Fisco – ou melhor a sociedade nele incorporada – passa a ter garantidos alguns direitos que

visam assegurar uma arrecadação que irá auxiliar na concretização dos ideais sociais (e

também liberais!) presentes na gama de direitos fundamentais

Dentre os autores brasileiro, importante mencionar a obra de Nogueira (1997, p.96),

que em uma postura de “direito/dever” não apenas do contribuinte, mas também do Estado,

rechaça a idéia de tributo como faculdade estatal, para ser “dever” da Administração para fins

de concretização dos ideais da sociedade.

De se notar ainda o trabalho do lusitano José Casalta Nabais. Traçando um

entendimento de “deveres fundamentais” paralelos à idéia de “direitos fundamentais”, o autor

trabalha em uma perspectiva de obrigação constitucional de pagamento de impostos com

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vistas à efetivação constitucional57. Nabais rejeita a ainda dominante concepção da tributação

como mera restrição individual, e passa a concebê-la como parte de um plexo de obrigações

constitucionais do indivíduo. Para ele, “os impostos não podem ser havidos como restrições

aos direitos fundamentais, mas sim, na medida em que integram o dever fundamental de pagar

impostos, como limites imanentes a esses direitos.” (NABAIS, 2004, p. 399)

Munidos da necessidade de observância dos direitos fundamentais, aliada à

necessidade de construção e interpretação dos institutos conformados com o Direito

Constitucional, concluímos que o bom entendimento do que seja o tributo e o sistema

tributário, implica percorrer aqueles mesmos elementos de estudo. Caso tenha o CTN tentado,

em seu artigo terceiro, conceituar os tributos, apenas o fez de maneira formal – e ainda assim

defeituosa (AMARO, 2005, p. 19 e ss.).

Desde o período liberal, vários são os autores que também tentaram conceituar e

delimitar o tributo58 e, por conseguinte, delimitar o papel da seara fiscal. No entanto, quanto a

essas possibilidades de definição “ressente-se cada uma de um espírito que evolua com o

tempo em atenção às inclinações sociais.” (SIDOU, 1978. p.02). É uma concepção derivada

da presença dos pressupostos de engessamento ontológico de significado em um signo pré-

determinado, tal qual apontado no Círculo de Viena.

Aliás, essa é a grande problemática de estabelecimento de conceituações/delimitações

para institutos cujo papel na sociedade é tão mutante quanto os anseios daquela: facilmente se

tornam descontextualizados. Exemplo concreto se faz ao buscarmos as conceituações

clássicas de tributo, que sempre o consideram instrumento de confronto ente particular e

Estado, visão que hoje se denuncia anacrônica!

Ainda que as tentativas dos autores contemporâneos sejam, de certa forma,

proveitosas, não possibilitam, com completude, o entendimento acerca dos fins e

características que devem nortear a tributação. Afinal, conforme já constatou Heidegger

(2006), toda conceituação não obstante lance luzes, também gera sombras que nos impedem

de enxergar de forma abrangente. Em razão disso, no presente não procuraremos seguir os

exemplos anteditos e alcançar um conceito objetivo para o tributo.

57 Nos termos do autor: “resulta óbvio que o imposto se nos apresenta como um dever fundamental , isto é, um instituto jurídico que tem a sua disciplina traçada ao mais alto nível – ao nível constitucional - , onde integra a “constituição do indivíduo” (NABAIS, 2004, p. 185) 58 Dentre nós, Bernardo Ribeiro de Moraes, mesmo reconhecendo a dificuldade de uma conceituação possibilitar o entendimento em sua plenitude, afirmou que “tributo pode ser conceituado como um ônus instituído pelo Estado, com base no seu poder fiscal, definido em lei, exigido compulsoriamente das pessoas que vivem dentro de seu território, a fim dele poder desenvolver duas atividades na busca de suas finalidades.” (MORAES, 2002, p. 351-352)

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Uma vez ser a tributação ligada à evolução constitucional dos direitos fundamentais, o

instituto tributário deve se mostrar compatível com a evolução daqueles. Nessa toada, uma

feição hermenêutica mais fidedigna deve abordar qual o papel que a tributação deve

desempenhar em um Estado democrático e atual, sem necessariamente concluir com uma

delimitação engessadora do que seja tributo. Temos por certo porém, que “hoje em dia, o

tributo se configura como um instituto jurídico-constitucional ao serviço da realização dos

mandatos constitucionais” (tradução nossa)59 (MORO,1999 p. 46).

O não exaurimento da tributação em si mesma impulsiona, assim, um estudo coligado

com os direitos fundamentais que se seguem. Devemos conhecê-los para alcançarmos o que

os tributos devem representar na contemporaneidade condizente com o conteúdo

hermenêutico constitucional tal qual afirmado. Nesse sentido, cabe-nos percorrer o trajeto que

os direitos fundamentais atravessaram pelos ao longo da evolução de paradigmas antes de

formarem seu conteúdo atual, para, por fim, realizar um paralelo dos mesmos aos sistemas

tributários respectivos.

3.3 As “gerações” de direitos e algumas ressalvas

A caracterização dos direitos constitucionais em cada momento não se dá de maneira

aleatória, desprendida de seu contexto real. A construção dos conteúdos das normas jurídicas

constitucionais é fruto, dentre outras coisas, de sua realidade histórica, pontuada no tempo, e

pelas premissas filosóficas e sociais então vigentes.

Também é certo afirmar que, por vezes, algumas diretrizes comuns pairam sobre a

construção dos saberes científicos, sociais, políticos e jurídicos de um dado momento.

Tal situação não significa absolutismo ou unanimidade de pensamento, mas apenas

comunhão de idéias debatidas em um mesmo momento que acabam por compor o horizonte

hermenêutico daqueles estudiosos, e, por conseguinte, influenciam suas formações e pré-

compreensões. Por isso mesmo, “as grandes etapas históricas de invenção dos direitos

humanos coincidem com as mudanças nos princípios básicos da ciência e da

técnica”(COMPARATO, 2001 p. 50).

59 No original: “hoy em dia, el tributo se configura juridicamente como un instituto jurídico-constitucional al servicio de la realización de los mandatos constitucionales”

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Os ditos paradigmas seguem a concepção referida. Segundo as idéias defendidas por

Khun, as ciências se desenvolvem dentro de um compartilhamento de premissas que

demarcam o campo do conhecimento. Esse pano de fundo que influencia as tomadas de

posições e pontos de partida científicos é que marcam os “paradigmas” de estudo.

(HABERMAS, 2003b, p.131)

É com essa perspectiva que muitas vezes vemos tratados os paradigmas

constitucionais liberal, social e o contemporâneo, também chamado de pós-social ou Estado

Democrático de Direito.

Em 1979, Karel Vasak propôs, no Instituto Internacional de Direitos do Homem em

Estraburgo, uma forma classificatória para a evolução dos direitos fundamentais divididas em

três gerações, que normalmente, não apenas acompanham, mas caracterizam, no Direito, os

três paradigmas mencionados acima:

a primeira, surgida com as revoluções burguesas dos Séculos XVII e XVIII, valorizava a liberdade; a segunda, decorrente dos movimentos sociais democratas e da Revolução Russa, dava ênfase à igualdade e, finalmente, a terceira geração se nutre das duras experiências passadas pela humanidade durante a Segunda Guerra Mundial e da onda de descolonização que a seguiu, refletirá os calores da fraternidade (SAMPAIO, 2004 p. 259)

Apesar de ser largamente utilizada pelos livros jurídicos – e aqui também o será – a

classificação elaborada por Vasak, se mal interpretada, traz a uma série de aporias e

equívocos que se tentará ressalvar.

Uma das principais críticas que se faz à idéia de “gerações” de direitos é que tal

terminologia leva a entender a existência de rupturas às amarras da geração anterior e

conseqüente negação dessa, pela subseqüente. Em maior clareza, seria admitir que quando da

conquista dos direitos sociais ou de segunda geração houvesse negação e retirada do

ordenamento jurídico dos direitos liberais de primeira geração.

Ora, nada mais absurdo. Conforme já mencionado, os direitos, sejam fundamentais ou

não, se apresentam como fruto de um processo histórico e dinâmico. Com isso, a agregação

de novos direitos, e a releitura daqueles já conquistados ocorrem de forma incessante.

Por isso mesmo, não se pode afirmar que os direitos fundamentais se apresentam com

uma substancialidade determinada pela Constituição. Através de procedimentos garantidores

da democracia, o conteúdo desses direitos se submete ao constante crivo argumentativo, e por

conseqüência, a uma constante reavaliação. Nesse sentido, há quem afirme que os verdadeiros

direitos fundamentais são aqueles possibilitadores de procedimentos (postulados) que

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permitem à sociedade rever e reconstruir seu conteúdo, impedindo, assim, um engessamento

ou determinação prévia de formas de vida protegidas pela Constituição (HABERMAS. 2003,

p. 159). Nesse entendimento, seriam direcionados aos direitos fundamentais dois papéis de

relevância: o de possibilitador do discurso, em uma concepção inclusiva na participação da

formação do Direito, e um segundo papel de fruto, como conteúdo jurídico do debate

democrático realizado com a atuação ampla de cidadãos, agora não apenas destinatários, mas

também autores das normas.

Dessa forma,

de uma lado, os direitos fundamentais, como condição do procedimento discursivo, são pressupostos da comunicação, e, portanto, despidos de conteúdo substantivo. Contudo, de outro lado, os direitos fundamentais, entendidos como conseqüências/produtos do procedimento discursivo, certamente estão repletos de substância (CRUZ, 2006, p. 172).

De todo modo, quando da modificação de “geração de direitos”, haverá uma revisão

do conteúdo daquelas garantias/direitos60 antes assegurados. Não há um repúdio à liberdade

ou aos diretos individuais pelas constituições sociais. A relação que os acompanha não é de

exclusão, e sim de complementaridade. No entanto, há uma adequação desses direitos já

incorporados ao ordenamento anterior à nova estrutura jurídico-social que é posta pela

sociedade transmutada, daí o termo “releitura” ou “reconstrução” dos direitos fundamentais.

A conquista de direitos liberais se deu de forma contínua e não se esgotou durante o

paradigma liberal. E junte-se a isso, também não foi exclusivo neste período cronológico da

história. Conforme alerta Bobbio, os direitos são “nascidos de modo gradual, não todos de

uma vez e nem de uma vez por todos” (BOBBIO,1992 p. 05).

Nessa toada, não obstante seja o século XVIII, na França, caracterizado como o marco

do período liberal, a Declaração Francesa de 1789 ostentava em seu artigo 21 a seguinte

redação, típica de um pensamento social: “A sociedade deve a subsistência aos cidadãos

infelizes, seja procurando-lhes trabalho, seja assegurando os meios de existência aos que não

têm condição de trabalhar”.

Encara a evolução dos direitos da mesma forma Perez Luño, para quem o processo

dialético de conquistas de direitos “jamais foi linear no qual não faltaram retrocessos e

contradições” (tradução nossa)61 (PEREZ LUÑO, 1998 p. 33).

60 Não adentraremos no presente na análise da diferenciação caráter instrumental ou material das garantias e direitos. 61 No original: “jamás fue lineal y en el que no faltaron retrocesos y contradicciones”.

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Reforça o pensamento supra a noção de que a conquista de direitos e garantias não se

deu de maneira regular e concomitante nos diversos Estados nacionais. A França apresentou

ao mundo seus primeiros documentos liberais apenas no século XVIII, enquanto na Inglaterra,

em 1215, já havia a Magna Carta restringindo os poderes monárquicos.

Idéia outra que merece destaque dentro do estudo dos paradigmas dos direitos

fundamentais é a fragilidade da argumentação de completa cisão entre os diversos direitos

conquistados ao longo da evolução constitucional. Cada vez mais os autores (MAGALHAES,

2000, p. 08) se mostram cientes de que o gozo de um direito perpassa pela garantia de outros.

Não subsiste a perspectiva fragmentada e analítica dos direitos, tal qual uma mentalidade

cartesiana. Assim se compõe a noção de indivisibilidade dos direitos fundamentais: a sua

impossibilidade de fruição quando ausentes outros direitos, ainda que de outra “geração”.

Relacionando os direitos políticos (primeira geração) com os de prestação positiva

(segunda geração), José Adércio Sampaio dá exemplo claro de como não se pode cindir a

percepção e garantia dos direitos fundamentais: “não há voz forte o bastante para ser ouvida

no espaço democrático sem que antes se tenha bem alimentado na alma e no corpo”

(SAMPAIO, 2004 p. 289).

E da mesma forma segue Cruz:

Não há como se pretender apartar os direitos individuais dos direitos sociais, como por exemplo na discussão da extensão das cláusulas pétreas da Constituição (art. 60, § 4º inciso IV). De modo metafórico, é possível estudar de forma apartada os sistemas circulatório e respiratório do homem, mas na prática eles não podem subsistir sem o outro (CRUZ, 2007, p.337) .

Por todos esses motivos, há quem não aprove a terminologia “gerações de direitos”,

sendo mais adequada a menção a “dimensões”, ou mesmo “ondas geracionais” (SAMPAIO,

2004) de direitos fundamentais.

Cançado Trindade relembra que essa mesma divisão entre direitos individuais e

sociais foi realizada, no plano internacional, antes mesmo da elaboração teórica de Vasak.

Tanto o é que em 1951, a Assembléia Geral das Nações Unidas elaborou dois pactos

internacionais distintos, para tratar de dois grupos “distintos” de direitos humanos:

Pressupunha-se, na época, que enquanto os direitos civis e políticos eram suscetíveis de aplicação ‘imediata’, requerendo obrigações de abstenção por parte do Estado, os direitos econômicos, sociais e culturais eram passíveis de aplicação apenas progressiva, requerendo obrigações positivas (atuação do Estado) [...] mas afigurou-se, antes, como um reflexo da profunda divisão ideológica do mundo no início dos anos cinqüenta (CANÇADO TRINDADE, 2003, p.446-447).

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Mas, já na época, percebia-se a fragilidade dessa construção segmentadora dos direitos

fundamentais. Na própria leitura do Pacto dos Direitos Civis e Políticos é possível identificar

direitos que serão efetivados ao longo do tempo, “progressivamente” tais quais os típicos

direitos sociais. Em contrapartida, também o pacto de Direitos Econômicos, Sociais e

Culturais apresenta em seu bojo, dispositivos cujos direitos requerem uma “aplicação

imediata”.

A consciência internacional acerca da impossibilidade de segmentação dos direitos

fundamentais restou mais fortemente expressa quando da I Conferência Mundial de Direitos

Humanos realizada no Teerã, em 1968. Nessa ocasião, a Conferência expressou a

indivisibilidade dos direitos humanos fundamentais, reconhecendo que a fruição de direitos

civis e políticos passa, inexoravelmente, pela plenitude dos direitos sociais e econômicos, bem

como esses em relação àqueles (CANÇADO TRINDADE, 2003, p. 452).

No campo tributário, Ávila (2006, p. 46), em expressa referência aos posicionamentos

adotados pelos Tribunais alemães, constata a concordância e complementaridade entre

garantias fiscais originariamente tidas por antagônicas – p.e., liberdade e propriedade vs.

dignidade humana. Há necessariamente, uma “justificação recíproca” entre os princípios das

diversas dimensões de direitos, cada qual buscando em um segundo seu próprio significado

normativo.

Mesmo diante desses dados, é recorrente a secção entre os diversos direitos

fundamentais, distinguindo, p.e. os direitos de segunda geração como sendo direitos

prestacionais, a que o Estado deva atuar positivamente. De fato, essa é a caracterização

comumente apresentada pela doutrina – e não sem razão, conforme se verá adiante. No

entanto, mais um ponto merece menção para que a afirmativa supra não sirva de guarida para

equívocos.

Por muito tempo – provavelmente uma tentativa de descrédito dos direitos de cunho

social – defendeu-se a idéia de que os direitos liberais, considerados “negativos” seriam de

custos menores ou mesmo inexistentes, enquanto os direitos sociais, implicadores de

prestações estatais, apresentariam alto custo, inviabilizando-os. Isso porque os últimos

demandariam um aparato estatal necessário para suprir os dispendiosos compromissos

constitucionais que os ordenamentos sociais criaram, enquanto os primeiros implicariam uma

mera abstenção do Estado.

É, porém defeituosa a conclusão. Nesse sentido “o primeiro passo a ser dado pela

doutrina é a difusão de que todos os direitos fundamentais possuem uma dimensão negativa e

uma prestacional e que todos, sem exceção ‘custam dinheiro ao erário” (CRUZ, 2007, p. 335)

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A obra de Stephen Holmes e Cass Sustein (HOLMES; STEPHEN, 1999), de sugestivo

título (The cost of rights: why liberty depends on taxes) aborda bem a questão. Argumentam

os autores que mesmo para a efetivação de liberdades e direitos de propriedade (supostamente

negativos) há necessidade de alocação de recursos e atuação positiva estatal. Dessa forma, a

contratação e manutenção de uma estrutura policial demandam gastos vultosos que se

equiparam àqueles ligados aos direitos sociais supostamente responsáveis pelo

depauperamento dos cofres públicos.

Assim, para a garantia de direitos de aparente abstenção estatal, deve o Estado atuar

positivamente para sua efetivação. Dessa forma, os direitos fundamentais nunca são

unicamente positivos ou negativos. Nunca o são unicamente de primeira ou de segunda

geração. Assim, juntamente com Sarlet

importa que firmemos a nossa posição no sentido de que os direitos fundamentais podem exercer – inclusive simultaneamente – uma função defensiva e prestacional. Assim, por exemplo, o direito à saúde será direito negativo quando se cuida de afastar (direito de defesa) eventuais condutas que venham a violar a saúde das pessoas, mas será direito a prestações (isto é, direito positivo) quando se estiver a considerar um direito de acesso aos serviços e bens na área da saúde (SARLET, 2004 p. 440)

Conforme se percebe, não são poucos os cuidados que o trabalho junto à metodologia

de “gerações de direitos fundamentais” exige. Poder-se-ia argumentar, então, que melhor seria

se tomássemos outra linha de estudo, que não implicasse todas as ressalvas por nós abordadas.

No entanto, o sistema apresentado por Vasak e suas implicações tem também seus

méritos. A didaticidade e facilidade de percepção de direitos de características comuns que,

majoritariamente, foram conquistados em dado momento histórico e em razão de lutas e

acontecimentos específicos devem lhe ser atribuídas.

E esse mesmo motivo, conjugado com a familiaridade que os juristas brasileiros têm

com a técnica antedita, nos faz utilizar – porém cientes de suas armadilhas – a classificação

geracional de diretos.

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CAPÍTULO IV - O DIREITO TRIBUTÁRIO E A DIMENSÃO LIB ERAL

4.1 Breves antecedentes aos direitos liberais

A terminologia “direitos fundamentais” surgiu em 1770, na França, na esteira de

acontecimentos político-culturais que, posteriormente, culminaram na Declaração de Direitos

do Homem e do Cidadão de 1789 (PEREZ LUÑO, 1998 p. 29) Pioneiros na criação da

nomenclatura que iria marcar o constitucionalismo, os franceses, à época, acreditavam ser

precursores, também, no reconhecimento de direitos dessa categoria.

Criticavam a Antiguidade pela caracterização do indivíduo relacionada à sua atuação

na polis62, bem como pelo seu necessário atrelamento a um corpo coletivo para a valorização

individual. Essas idéias causavam estranheza ao pensamento francês, que enaltecia o

individualismo burguês criador de barreiras de restrição justamente face o Estado – relação

diametralmente oposta à configuração cidadão/Estado da Antiguidade. Daí não creditarem à

Antiguidade a conquista de quaisquer direitos humanos ou fundamentais63.

Não obstante os franceses do século XVIII se reputarem “descobridores” desses

direitos fundamentais, é possível apontar, ainda na Antiguidade, o ponto de partida dos

mesmos.

Os sofistas, por exemplo, com fincas na igualdade biológica única, já caminhavam

para o reconhecimento de uma perspectiva isonômica entre os seres humanos (CANOTILHO,

1995, p. 501 e ss.). Até mesmo a idéia do cidadão da polis grega, tão áspera à burguesia

francesa, pode ser entendida como precursora dos direitos políticos do séc. XVIII.

No entanto, a identificação de direitos naturais ligados à “revelação dos deuses” foi

sem dúvida a maior fonte impulsionadora desses direitos. Assim fala Ferreira Filho, para

quem

62 “Nas idéias de Platão e Aristóteles não pertence o indivíduo a si mesmo, senão ao Estado” (BONAVIDES, 1993 p. 151.) 63 Apesar de aqui tratarmos os “direitos humanos” e os “direitos fundamentais” como sinônimos, não podemos deixar de registrar posicionamento diverso, que relaciona o primeiro com a ordem internacional e o segundo com o ordenamento constitucional - “direitos fundamentais aplica-se para aqueles direitos da pessoa reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional de determinado Estado, ao passo que a expressão direitos humanos guarda relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se atribuem ao ser humano como tal (hoje já reconhecendo-se a pessoa como sujeito de direito internacional), independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional” (SARLET, 2004 p. 417)

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remoto ancestral dos direitos fundamentais é, na Antiguidade, a referência a um Direito superior, não estabelecido pelos homens mas dado a estes pelos deuses. Neste caso, cabe a citação habitual a Antígona, de Sófocles, em que isso é literariamente exposto, em termos inolvidáveis (FERREIRA FILHO,1999 p. 09)

Também o cristianismo propagado por Paulo de Tarso e a divulgação dos

ensinamentos de Jesus Cristo se mostrou importante elemento para o desenvolvimento de

direitos pertencentes à esfera do ser humano64. Para isso, o cristianismo começaria a se apoiar

na perspectiva de reconhecimento em uma ordem superior de leis destinadas a regular o

mundo dos homens. Já é um embrião que mais tarde se transformaria no já comentado direito

natural teológico que impulsionou de forma determinante o surgimento dos direitos

fundamentais.

Dentro da escolástica, Santo Agostinho iniciou o desenvolvimento de um

embasamento filosófico de vinculação a uma ordem divinatória. Todavia, foi Santo Tomás de

Aquino o maior representante dessa forma de pensamento.

Identificando quatro classes de leis (Lei Divina; Lei Eterna; Lei Natural e Lei

Humana) Aquino defendia que as Leis Humanas, criadas pelo Homem deveriam coadunar-se

com as Leis Eternas, que por sua vez se expressavam na Lei Natural. Caso assim não o fosse,

não haveria uma lei propriamente dita, mas sua simples distorção causada pelos homens não

respeitadores de um ordenamento superior e anterior à vontade humana. Tratava-se de

verdadeira busca de legitimidade em um sistema metafísico de direitos imutáveis já presentes

na esfera humana65 (Cf. capítulo II)

Conveniente para a Igreja, Aquino entendia que não era possível ao homem atingir o

conteúdo da lei suprema, consubstanciada na lei divina. Necessário um intermediário que

pudesse certificar-se da correta interpretação da revelação. Para ele, “se o intelecto pudesse

64 Nesse tocante, Fábio Comparato faz contundente crítica afirmando que, ainda que se perceba na “teoria cristã” uma defesa às condições de respeito e igualdade entre homens, mulheres, judeus, cristãos, senhores e escravos no “reino dos céus”, em realidade, a Igreja continuou apoiando a escravidão e subjugação das mulheres, dentre outras discriminações. Ressalta ainda o autor que quando das descobertas das Américas, houve a defesa por parte da Santa Sé que “os índios americanos eram inferiores aos espanhóis, assim como as crianças em relação aos homens, e até mesmo pode-se dizer, como os macacos em relação aos seres humanos” (COMPARATO, 2001 p. 18) 65 Ainda que fazendo referência a um período cronológico posterior, é interessante a ilustração que Raul Machado Horta nos oferece acerca da presença da religião no campo dos direitos: “A permanência se aliava à transcendência, infundindo na Constituição a sobrenaturalidade da criação divina. O culto idolátrico da Constituição ficou reconstituído na passagem de “Dansette” autor da “Historia religiosa da França contemporânea”, em texto citado por La Bigne de Villeneuve, no qual descreve o cerimonial observado na primeira sessão da Assembléia Legislativa. Doze representantes, escolhidos dentre os mais idosos, apresentavam a Constituição aos seus colegas. O representante que carregava o “livro divino” caminhava lentamente, olhos baixos, a cabeça inclinada. Os deputados se levantavam enquanto o cortejo passava. A Constituição assemelhava-se ao “Cristo Abstrato”. (HORTA, 2003, p. 98)

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oferecer a visão beatífica de Deus, a vontade humana não poderia deixar de querê-la. Mas

aqui em baixo, isso não é possível” (REALE; ANTISERI, 1990 p. 566).

Entretanto, alguns séculos mais tarde, os acontecimentos históricos e o

desenvolvimento científico começaram a ocasionar uma diferente forma de cognição, de

percepção da realidade. Com Copérnico, Descartes e outros, o racionalismo e o

antropocentrismo passam a se sobrepor às crenças religiosas, culminando assim, na derrocada

do naturalismo divinatório.

Por conseguinte, a partir de Grócio, não mais se falava em direitos naturais anteriores

ao homem e apenas reconhecidos por meio de intermediários da Igreja. Continuava a existir

uma ordem natural que faziam parte da própria condição humana, mas agora laicizada, ela era

percebida pela reta-razão. Surge, assim, o jusnaturalismo, caracterizado pela identificação de

direitos inerentes à existência do homem.

É com base desses pressupostos teórico-científicos que a burguesia articulou seus

movimentos revolucionários intimamente ligados com a construção das teorias de direitos

fundamentais individuais.

Diante de um quadro histórico de abusos e ingerências constantes por parte da

monarquia, conjugado com um desprestígio político da burguesia e as bases jusnaturalistas

supra mencionadas, estavam postas as condições para a modificação da estrutura despótica de

Estado e banimento da simbiose entre Estado Absolutista e Igreja da sociedade oitocentista. O

homem burguês não mais admitiria seu papel coadjuvante na formação de sua própria

história. Daí, estão lançadas as condições para o surgimento dos primeiros direitos

fundamentais.

Juntamente a esse aparato jusnaturalistíco, Sampaio elenca, nesse período, três outras

matrizes para os direitos humanos: religiosa, processual e a propriedade (SAMPAIO, 2004, p.

141).

A Reforma Protestante, que rompeu com a unicidade religiosa e de interpretação da

Bíblia, transferiu a religião, antes presente na esfera pública, para a esfera individual.

Martinho Lutero foi, nesse aspecto, o nome mais representativo da liberdade individual de

interpretação dos textos bíblicos. Para ele, não poderia o homem ser um mero destinatário

passivo das normas divinas interpretadas e ditadas unicamente pela Igreja, mas sim o

verdadeiro protagonista de sua relação com o divino.

Repare desde já a exaltação dos caracteres individuais que mais tarde encarnarão na

caracterização dos direitos do indivíduo a serem reconhecidos como fundamentais.

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No que tange à matriz processual, a exigência na Magna Carta (Inglaterra - 1215) do

“due processo of law” trouxe à baila instrumentos de controle da arbitrariedade da coroa,

símbolo publicístico do Estado. É mais um golpe à pujança ilimitada da Monarquia.

Noutro plano, a propriedade, antes desestimulada e objeto do alvedrio absolutista,

passou a ser o centro da sociedade burguesa em sua formação capitalista. A concepção de

busca individual de um projeto de vida próprio, cujo resultado final se consubstanciava na

acumulação patrimonial é um bem representativo da mentalidade individualista-burguesa que

começou a se formar.

Diante de todo esse quadro propício à formação de esferas jurídicas de proteção ao

indivíduo, nasce a primeira obra burguesa identificando os direitos naturais intrínsecos ao

homem. O inglês John Locke argumentava que havia uma gama de direitos que pertenciam ao

ser humano desde sua existência. Fiel ao paradigma de idéias de sua época, os direitos

elencados pelo autor eram aqueles capazes de proporcionar ao homem um vida de auto-

determinação, cuja exaltação da liberdade o distanciaria das amarras do Absolutismo que

antes tolhia qualquer anseio individual.

Locke creditava assim à “(vida, liberdade, propriedade e resistência) uma eficácia

oponível, inclusive aos detentores de poder”(SARLET, 2003 p. 43).

Ainda que anteriormente outros autores – p.e. Hobbes – houvessem trabalhado com o

jusnaturalismo, sempre o fizeram com o escopo de fundamentar o contrato social absolutista,

que não previa limites para a atuação estatal66. Mas, a partir desse momento, justamente como

refluxo do poder excessivo dos monarcas, passa-se a fundamentar os limites do Estado nos

direitos naturais que, por serem anteriores ao Homem – e por conseqüência, pré-estatais – não

poderiam ser violados por ninguém, nem mesmo pelo Estado. Essa é a lógica de Locke!

Daí a contribuição do jusnaturalismo à doutrina dos direitos fundamentais. Por serem

inerentes à condição humana, e intangíveis ao Estado, esses direitos individuais foram

classificados como fundamentais à vida do Homem.

As defesas da liberdade, autonomia individual e igualdade formal se transformaram

em ponto comum nas obras iluministas. No entanto, é o culto à propriedade individual que

mais marca esse período, podendo ser apontada como pressuposto para o próprio

66 Não podemos deixar de notar a existência de posições contrárias à idéia de Hobbes como um defensor do Estado Absolutista tal qual aqui trabalhado: “Se assumirmos a perspectiva de Kant e olharmos para trás em direção a Hobbes, descobriremos um modo de ler que vê em Hobbes o teorizador de um Estado constitucional burguês sem democracia, muito mais do que o apologeta do absolutismo desenfreado” (HABERMAS, 2003, p. 123).

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reconhecimento do direito de liberdade burguês (CANOTILHO; MOREIRA, 1991, p. 102 e

ss.).

Também, é esse o entendimento de Magalhães, para quem

a primeira fase do Estado Liberal caracteriza-se pela vitória da proposta econômica liberal, aparecendo teoricamente os direitos individuais como grupo de direitos que se fundamentam na propriedade privada, principalmente na propriedade privada dos meios de produção. O alicerce teórico da liberdade é a propriedade [...] assim, o cidadão será apenas o proprietário (MAGALHAES, 2002 p. 63) (grifos nossos)

No mesmo sentido, Bobbio reconhece no culto à propriedade privada, o embrião para

o surgimento de todos os demais direitos. Relacionando a idéia exposta no parágrafo acima,

afirma o autor: “Numa sociedade em que só os proprietários tinham a cidadania ativa, era

óbvio que o direito de propriedade fosse levado a direito fundamental” (BOBBIO, 1992 p.

77).

Não por outro motivo, o artigo 17 da Declaração dos Direitos do Homem de 1789

prescrevia a propriedade como “direito inviolável e sagrado”! Vislumbrando uma

absolutização do direito natural à propriedade, seu conteúdo não poderia sofrer cerceamento

de qualquer espécie! Com esse raciocínio, já se vislumbra a relação da proteção patrimonial

com a tributação e seu rigor legalista.

Apoiados nessa gama de direitos individuais, passam a surgir os documentos

burgueses de restrição de atuação estatal e reconhecimento de direitos inalienáveis presentes

na esfera do cidadão. Parte-se assim para a segmentação entre as esferas público e privada,

com a exaltação desta última como uma garantia ao status de liberdade individual a ser

atribuída aos cidadãos agora soltos das amarras totalizantes do Estado anterior.

Já em 1215, a Magna Carta determinava, em solo inglês, limitações para a atuação do

Rei, dentre as quais, a máxima do princípio da legalidade tributária “no taxation without

representation”. Inobstante a falta de universalidade a compor o documento, a Magna Carta

inglesa tem como mérito apontar a direção para a qual se desenvolveriam os direitos

fundamentais a serem logrados. Ainda na Inglaterra é comum o apontamento ao Petition of

Rights (1628) e ao Bill of Rights (1689)67, que consolidaram o culto à lei como forma de

controle dos governantes.

67 Apesar do pioneirismo do movimento inglês, cujo primeiro documento data de 1.215, há críticas acerca do reconhecimento desses textos como sendo parte do momento liberal. Isso se dá em razão da falta de um caráter revolucionário, fazendo com que os direitos prescritos não fossem conquistados, mas sim convencionados. Assim se deu com a Magna Carta, que em nada foi além de um acordo entre os Barões e o Rei João Sem Terra. Da mesma forma se deu com o Bill of Rights, uma imposição da burguesia inglesa para dar o trono a Guilherme de Orange de forma acordada. Por isso mesmo, a Declaração De Direitos da Virgínia, de 1776, e a declaração

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No Novo Mundo, a Declaração de Virgínia de 1776 incorporou a ideologia

jusnaturalista que contaminara a Europa e alçava os direitos civis individuais à categoria

fundamental. Lê-se: art. 1º “Todos os seres humanos são, pela sua natureza, igualmente livres

e independentes, e possuem certos direitos inatos”.

Mas, é a Revolução Francesa corriqueiramente apontada como sendo o grande

símbolo da transição de um Estado absolutista para uma nova estrutura social. Em 1789, é

elaborada, em meio a conturbados movimentos, a Declaração Francesa, proclamando que “a

sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos (fundamentais) nem

estabelecida a separação de poderes não tem Constituição” (acréscimos nossos). Logo após,

foi seguida pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, esta última grande

influenciadora de todo o constitucionalismo posterior68 69.

Bobbio, em referência ao movimento burguês na França constata que

da concepção individualista da sociedade, nasce a democracia moderna (a democracia no sentido moderno da palavra) que deve ser corretamente definida não como faziam os antigos, isto é, como o governo do povo, e sim como o poder dos indivíduos tomados um a um [...] a democracia moderna repousa na soberania não do povo, mas dos cidadãos (BOBBIO, 1992 p. 119)

Com isso restou consolidada a gama de direitos de primeira geração que marcaram o

século XVIII.

Com a prevalência da autonomia/liberdade individual, igualdade aritmética

formal e ampla defesa da propriedade, formou-se uma corpo composto de indivíduos

presos em sua própria racionalidade. Uma verdadeira “poeira de átomos”.

A auto-suficiência individual e a crença na abstinência estatal resultaram em um

modelo de “Estado mínimo”70 impedido de intervir em qualquer seara, seja na economia, ou

Francesa, de 1789, são apontadas como marcos dos direitos fundamentais individuais - “em que pese a sua importância para a evolução no âmbito da afirmação dos direitos, inclusive como fonte de inspiração para outras declarações, esta positivação de direitos e liberdade civis na Inglaterra, apesar de conduzir a limitações do poder real em favor da liberdade individual, não pode, ainda, ser considerada como o marco inicial, isto é, como o nascimento dos direitos fundamentais no sentido que hoje se atribui ao termo. Fundamentalmente, isso se deve ao fato de que os direito e liberdades – em que pese a limitação do poder monárquico – não vinculavam o Parlamento” (SARLET, 2003p. 47) 68 Por força do Preâmbulo da Constituição Francesa de 1958, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão está ainda em vigor na França (Cf. FERREIRA FILHO, 1999 p. 19) 69 No decorrer do presente texto, daremos preferência para os movimentos franceses por apresentarem mais definidas as modificações do pensamento burguês. 70 Nesse sentido: “Na lógica do Estado Liberal, a separação entre Estado e sociedade traduzia-se em garantia da liberdade individual. O Estado deveria reduzir ao mínimo a sua ação, para que a sociedade pudesse se desenvolver de forma harmoniosa. Entendia-se, então, que a sociedade e Estado eram dois universos distintos, regidos por lógicas próprias e incomunicáveis” (SARMENTO, 2004 p. 383)

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mesmo na prestação positiva de serviços à coletividade. Daí a noção de direitos de feição

negativa.

Como forma de controle dos excessos públicos, a positivação e culto à legislação se

apresentaram como o remédio mais eficaz. Em realidade, todo o cenário da revolução

burguesa confluía para a adoção de uma perspectiva de segurança jurídica com fulcros no

texto legal.

Tendo o jusnaturalismo como força teórica, estavam postas as condições para um

positivismo calcado no texto normativo.

De fato, a única limitação para o gozo e fruição dos direitos naturais, inalienáveis,

imprescritíveis e anteriores ao homem, é a possibilidade de outro igual fazê-lo. No entanto,

referida regulação de fruição de direitos não pode se dar arbitrariamente, sendo possível

lograr tal justiça unicamente por meio da lei!

Nesse sentido, o artigo 4º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de

1789: “A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo. Assim, o

exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que

asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites

apenas podem ser determinados pela lei”. Tanto o é que este é dispositivo em que Kant se

apóia para formular seu princípio jurídico de universalização das ações jurídicas

(HABERMAS, 2003, p. 114).

Dessa forma,

a afirmação, pelo jusnaturalismo moderno, de um Direito racional, universalmente válido teve efeitos práticos importantíssimos, seja na teoria constitucional, seja na obra de codificação que vieram a caracterizar a experiência jurídica do séc. XIX. Estes efeitos, no entanto, contribuíram para corroer o paradigma que os inspirou, de fato, a codificação terminou por constituir-se em ponto involuntário entre o jusnaturalismo e o positivismo jurídico (LAFER, 1988 p. 38-39)

A racionalidade solipsista exacerbada, conjugada com a crença de exatidão na ciência

e na hermenêutica da época, apontava para o texto escrito como única forma de garantia de

delimitação dos comportamentos estatais antes abusivos. Afinal, por meio dele, busca-se uma

técnica racional capaz de trazer uma verdade unívoca e clara, que não permitisse o mal das

ambigüidades em que pudesse se apoiar o Estado vil. Nesse sentido, com base na idéia

aristotélica de que as leis contrariamente aos homens, não têm paixões, tentou-se construir

“um governo de leis e não de homens”(FERREIRA FILHO, 1999, p. 01).

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Não por outro motivo, os documentos ingleses já aludidos faziam tanto apelo à norma

legal, como se vê na máxima da Magna Carta “no taxation without representation”.

Diante disso, é possível afirmar que o direito positivado relacionava justiça com

legalidade (inclusive tributária), tratando-os como sinônimos.

Essa identificação tem, como é óbvio, grande utilidade para operadores jurídicos, pois elimina, ou pelo menos atenua sensivelmente, as ambigüidades inerentes a qualquer discussão sobre o que é justiça [...] nesse sentido, a identificação entre o conceito formal de justiça e o conceito formal de direito confirma o princípio da inegabilidade dos pontos de partida do Direito Positivo – a Dogmática Jurídica – para dessa maneira, encaminhar de modo controlado, o processo decisório no Estado e na sociedade (LAFER, 1988 p. 66-67) (grifo nosso)

Da mesma forma a Revolução Francesa. Não sem motivo François Furet, citado por

Nogueira (1997, p. 63)asseverou que “A Revolução Francesa constitui o advento da Lei”.

Não apenas o controle estatal e proteção da propriedade privada dependiam do

princípio da reserva legal: também seus pressupostos de igualdade desembocavam na adoção

da lei como forma de justiça suprema. Por meio dela, não haveria distinções de nascimento.

Através do rigor legislativo, se concretizaria a igualdade formal que flamulava na bandeira

francesa. Afinal, conforme já se pensava em Atenas com Eurípedes, “uma vez escritas as leis,

o fraco e o rico gozam de um direito igual; o fraco pode responder ao insulto do forte, e o

pequeno, caso esteja com a razão, vencer o grande”(EURÍPEDES apud COMPARATO, 2001

p. 12).

Ainda que a princípio possa-se afirmar que o período liberal foi marcado pela

positivação de direitos abstratos, não tendo o homem concreto como objeto de estudo, ácida

foi a crítica de Marx ao concluir que, ao contrário, trata-se de direitos direcionados a um

homem por demais concreto e determinado: o homem burguês (MARX, 2000, p.34-35).

Delineado o surgimento e principais pontos dos direitos fundamentais individuais,

passemos a relacioná-los com o sistema tributário.

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4.2 Os direitos individuais e a tributação

4.2.1 Dos antecedentes tributários ao Estado fiscal

Não se sabe precisamente quando da primeira aparição do tributo em meio às

sociedades humanas. Sabe-se, porém, que tal instituto há muito habita o seio dos sistemas

jurídicos. Para Balthazar, a longevidade da figura fiscal é tamanha que, “com a formação dos

grupos sociais, em face da sedentarização das tribos, o homem sentiu a necessidade de formar

fundos financeiros (pecuniários) arrecadados de todos os membros da comunidade para

atender às necessidades coletivas” (BALTHAZAR, 2005, p. 19).

Ainda que sustentando a mesma nomenclatura “tributo”, o instituto ora analisado não

manteve suas características. É certo, portanto, que o lastro que se constrói remetendo a um

passado tão distante tão qual ora se faz, implica em considerar a tributação em seu aspecto

mais simples e diversificado.

Não é possível a identificação em períodos precedentes de todos os elementos que

hoje dão forma à exação fiscal. Essa dinamicidade mutacional impulsionou Marciano Godoi,

em menção à estrutura tributária de épocas remotas, a afirmar que: “nada obstante, a

tributação existente em civilizações como estas, e mesmo a tributação nas sociedades

medievais, têm em comum com a tributação do período moderno e contemporâneo talvez só o

nome” (GODOI,1999, p. 173-174).

Na Antiguidade, o tributo era comumente utilizado como uma imposição dos países

vencedores aos sucumbidos nas guerras, sendo, dessa forma, uma afirmação de um povo

frente a outro, não demonstrando a relação de verticalidade (Estado/cidadão) nos mesmos

moldes que hoje presenciamos.

Entretanto, a falta de consistência na utilização dos instrumentos fiscais fez com que o

tributo não carreasse apenas essa feição. São diversas as utilizações que o instituto em tela

representou ao logo da história.

De acordo com Ruy Barbosa (NOGUEIRA, Ruy Barbosa 1999, p. 05 e ss.), subsídios,

doações, confisco, imposições de guerras, exigências do soberano para armar cavaleiros,

incrementar casamentos e festas, enfim, foram várias as destinações e motivações das exações

na época antiga, o que torna tormentosa a tarefa de delimitação de seus caracteres.

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Já de acordo com Alberto Nogueira (1997, p. 112 e ss.), até mesmo a utilização de

uma tributação semelhante à atual pôde ser observada na Roma Antiga em meio às demais

utilizações dos impostos.

Seguindo a dinâmica apresentada, no período da formação dos Estados nacionais e

concentração de poder absolutista, a tributação mais uma vez mudou sua estruturação. Em que

pese tal período, porém, o sistema fiscal passa a ser mais delineado, apresentando assim, uma

sistemática mais específica e condizente com sua realidade.

Durante o lapso cronológico compreendido pelo fim do feudalismo e o declinar do

absolutismo, a concentração de poderes nas mãos monárquicas era caracterizadora do

momento histórico. Essa acumulação excessiva fez com que a relação entre Estado e

economia fosse extremamente estreita, não apenas no que tange à intervenção nas práticas

comerciais, como também à própria exploração mercantil estatal.

É tida como decorrência dessas características a identificação, no orçamento público,

de ingressos numerários predominantemente advindos dos rendimentos da propriedade e

patrimônio monárquicos. Diante desse marcante elemento indicador histórico, atribui Ricardo

Lobo Torres (1991, p. 13) a esse período a classificação de “Estado Patrimonial”.

Sidou, ao tratar da história da tributação, já afirmava, em referência ao sistema de

concentração de poderes monárquicos, que “durante a mais negra e mais longa noite da

História, o príncipe era o senhor absoluto dos direitos individuais, porém, contentava-se com

as rendas de suas propriedades, no que se concentrava toda a riqueza do

Estado”(SIDOU,1978, p. 28).

Também Adam Smith corrobora a assertiva de Sidou e a classificação de Lobo Torres,

professando que “a renda proveniente das terras da Coroa constituiu por muito tempo a maior

parte da receita das antigas soberanias da Europa” (SMITH, 2003, p. 1040).

Diante do inflado desempenho dos patrimônios estatais, o papel atribuído à tributação

era meramente coadjuvante no que tange à arrecadação de recursos para os fins do Estado.

Entretanto, havia clara presença da figura tributária na economia absolutista. Momento das

grandes navegações, da concentração metalista e do apogeu da balança comercial do

mercantilismo, a tributação tinha uma nítida finalidade extrafiscal de proteção das

exportações e inibimento das importações, preservando assim, o saldo de exportação dos

países.

Todavia, ainda que presente a extrafiscalidade aduaneira, não há que se questionar a

negligência em relação à tributação, bem como sua subsidiariedade no que tange às despesas

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públicas. No entanto, como defender a tese antedita diante da notória importância do aspecto

tributário para o estourar dos movimentos revolucionários71?

Arrebata eventual dúvida Gail Bossenga, lecionando que “não foi o peso do imposto,

mas o caráter arbitrário, a repartição injusta e a incapacidade de reformar o sistema que

provocaram um ódio profundo contra a estrutura do imposto” (BOSSEGA, Gail, apud

NOGUEIRA, 1997, p. 67). Essa disparidade na distribuição do ônus tributário é muito bem

ilustrada na frase proferida pelo Bispo de Sens a Richilieu: “O costume antigo era que o povo

contribuísse com seus bens, a nobreza com seu sangue, e o clero com suas preces”

(HUGON,1945, p. 65) .

Com o sucumbir da política absolutista pelos movimentos burgueses, mais

notadamente com a Revolução Francesa, percebe-se uma radical ruptura com a forma de

Estado antes dominante. Por conseguinte, também na tributação intensa alteração pôde ser

observada, reflexo direto do surgimento dos direitos naturais individuais alçados à categoria

de direitos fundamentais.

Sabe-se que a constante presença abusiva do Estado (antes Absolutista) passou a ser

rechaçada pós-revoluções burguesas. No entanto, ainda que o ente estatal fosse neste

momento visto como um “inimigo social”, referida instituição não poderia ser simplesmente

extinta. Conseqüentemente, sua manutenção exigia alguma forma de geração de riquezas.

Considerando que não mais cabia à esfera pública explorar economicamente qualquer

área do mercado, agora de exclusividade privada, não havia outra maneira senão a tributação

como método de sustento dos dispêndios estatais.

Passa-se a conceber, neste período, uma marcante dicotomia entre os papéis do Estado

e da sociedade, dicotomia essa que caracterizaria a nítida divisão Direito Público/Direito

Privado, tributária ao Iluminismo e hoje objeto de contestação.

Assim sendo, o sistema econômico, ligado aos interesses particulares, se mostrava

detentor de características próprias, distintas do perfil estatal. Enquanto a exploração

mercantil, para ser bem sucedida, deveria ter por finalidade precípua a lucratividade, não se

atentando para demais responsabilidades, ao Estado caberia preocupar-se unicamente com

questões obstativas da busca dos interesses individuais. A divisão entre essas duas esferas era,

na visão dos liberais, determinante.

É nesse sentido que o liberal Adam Smith argumenta, afirmando que

71 Conforme leciona Derzi, um dos maiores motivos para a eclosão da Revolução Francesa foi o fato de nobres e clérigos não sofrerem qualquer exação tributária, o que simbolizava a carência de igualdade que maculava o período. (Cf. BALEEIRO,1998, p. 535 e ss.)

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não parece haver tipos mais incompatíveis que o comerciante e o soberano [...] a natureza instável e perecível do capital e dos créditos não permite que se confiem a eles os principais fundos daquela receita certa, constante e permanente, a única que pode garantir segurança e dignidade ao governo (SMITH, 2003, p. 1038-1040)

Com a exclusividade da exploração privada destinada aos particulares, a tributação

ganha um novo status de principal fonte de recursos estatais72. É celebrada a ascensão do

“Estado Fiscal”73, prevalecente na atualidade74.

No exemplo brasileiro, pode-se identificar a fiscalidade da estrutura estatal ao

observar o conteúdo presente no artigo 173 da CF/88, onde se lê:

Art. 173. Ressalvados os casos previstos nessa Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.

Essa perspectiva dicotômica acerca dos papéis do Estado e da sociedade em áreas tão

distintas pode ser relacionada com a concepção negativista que se tinha do Estado na época.

Como um refluxo do absolutismo antecessor, a visão do ente estatal como um inimigo do

particular restou dominante nas décadas liberais.

Conjugando tal fato com a identificação do tributo à figura do Estado em razão de ser

sua nova fonte de financiamento, passou-se a perceber o instituto em comento como uma

ameaça patrimonial ingerente e vil. Por isso mesmo afirma-se que “as várias definições

clássicas [...] limitavam-se a considerar o tributo pondo de confronto o contribuinte e o

Estado” (SIDOU, 1978, p. 05). Desde já nos perguntamos: somente as definições clássicas do

período o fazem? Veremos que não. Ainda na atualidade muitas das posturas típicas do

paradigma liberal persistem em habitar as obras ligadas ao Direito Tributário.

72 Apesar de constatar a existência dessas duas fases na história tributária, Ricardo Lobo Torres identifica em alguns países (Alemanha, Espanha, Áustria, algumas cidades da Itália e Portugal na era Pombalina) uma fase de transição denominada de “Estado de Polícia”. Entretanto, por não se apresentar como uma constante nos demais países europeus, fonte primária da presente análise histórica, não foi realizada uma menção expressa cerca de tal fase, sem porém, deixar de registrar sua ciência. Cf. TORRES, 1991, p. 54 73 Segundo José Casalta Nabais, “a expressão e o conceito de estado fiscal devem-se a Lorenz von Stein” (NABAIS, 2004, p. 191) 74 Apesar de o modelo de tributação ligada às necessidades financeiras públicas serem regra na época atual, pode-se também mencionar algumas raras exceções existentes. Conforme afirma o português Casalta Nabais, “há certos estados que, em virtude do grande montante de receitas provenientes, por exemplo, da exploração de matérias primas (petróleo, gás natural, ouro, etc) ou até da concessão do jogo (como Mônaco ou Macau) podem dispensar os respectivos cidadãos de constituírem com os seus rendimentos e patrimónios o seu principal suporte financeiro”(NABAIS, 2004, p. 193)

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Já lançadas as características centrais desse novo Estado Fiscal, é possível agora

relacionar os direitos fundamentais burgueses logrados no período iluminista com as novas

características que o Direito Tributário passou a aparentar.

4.2.2 A igualdade formal

Considerando a igualdade formal e aritmética que os revolucionários oitocentistas

franceses almejaram e concretizaram pós-revolução como direito inerente à condição humana,

impossível seria não haver modificações na estrutura tributária liberal. A mesma concepção

formalista de igualdade caracterizadora do constitucionalismo burguês foi importada para o

sistema fiscal.

Em virtude disso, a igualdade tributária passa a ser entendida meramente como a

generalidade na contribuição ao Estado. Busca-se, nesse momento, a negação dos privilégios

desarrazoados (questões de nascimento – nobreza – ou classe social – clero) até então

vigentes no sistema jurídico-tributário.

Se antes era a discriminação de alguns que maculava o cenário jurídico e culminava na

carência de igualdade e justiça, o refluxo liberal consistiu no posicionamento diametralmente

contrário: um tratamento isonômico absoluto com fins a abolir quaisquer benefícios que

pudessem desacreditar o papel da justiça no Direito.

Consubstanciou-se essa nova igualdade no idêntico tratamento diante da lei.

Eventual atuação em sentido diverso por parte da legislação seria contemplada como uma

ingerência estatal e uma discriminação inadmitida, cerceadora dos ideais prevalecentes.

Entende Alberto Deodato que

Para os liberais que Adam Smith chefia, a imposição não deve, tanto quanto possível, mudar a repartição das rendas e da fortuna, nem nada transpôr nas relações individuais e as da fortuna [...] para êles, generalidade é tomada ao pé da letra: todo indivíduo ligado ao Estado, quer sua renda seja grande ou fraca, quer conste de rendas ou de produtos do trabalho, é, em princípio, contribuinte de impostos. Nenhuma isenção lhe é concedida para o mínimo necessário à subsistência. (DEODATO, 1949, p. 27).

É com fincas nessa busca por uma igualdade burocrática que autores da época

buscavam argumentação em favor de impostos indiretos sobre consumo.

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Ainda que tal dicotomia seja objeto de algumas contestações75, a classificação entre

impostos diretos e indiretos é utilizada em larga escala por toda a doutrina.

São considerados diretos os impostos que reúnem em uma mesma figura a pessoa

responsável pelo pagamento da exação e a pessoa que irá arcar efetivamente com o ônus

financeiro decorrente da tributação. Implicam tais tributos na identidade do contribuinte de

direito e de fato. É o caso do IPVA (imposto sobre veículos automotores), por exemplo. A

pessoa que deve recolher o tributo é aquela que irá sofrer uma diminuição patrimonial em

razão da exigência fiscal. Esse tipo de imposto permite uma maior individualização da

tributação, contribuindo, então, com o tratamento diferenciado entre os vários contribuintes,

conforme veremos mais adiante.

Noutra senda, são considerados indiretos os impostos que possibilitam uma cisão entre

os contribuintes de fato e de direito. Nesses impostos indiretos, o responsável tributário que

deverá repassar o numerário para os cofres públicos não será o mesmo que irá arcar, no final

da cadeia, com o ônus pecuniário derivado da tributação.

Moraes, ao elucidar a classificação ora em análise, leciona que a tributação indireta

acarreta uma secção entre os momentos de percussão e repercussão na incidência fiscal.

Entende o autor, por momento da percussão do imposto, como sendo aquela etapa do impacto

imediato, do alcance pela tributação do contribuinte de direito, responsável pelo pagamento

em dinheiro para o Estado. Lado outro, o momento da repercussão “(do latim: repercuter,

repetição, repercutere, bater) se dá quando o contribuinte legal (contribuinte percutido,

contribuinte de jure) transfere o ônus do imposto, no todo ou em parte, para um terceiro,

denominado contribuinte de fato, ou contribuinte repercutido” (MORAES,2002, p. 464)76.

Nesse sentido, pode-se indicar o ICMS (imposto sobre circulação de mercadorias e

serviços). Durante a cadeia produtiva, o ICMS incide sobre a circulação dos produtos,

fazendo com que os comerciantes das diversas etapas produtivas tenham que repassar certa

quantia para o Estado. Entretanto, ao final da cadeia de consumo, não serão tais comerciantes

(contribuintes de direito) que irão sofrer os impactos financeiros dos encargos ficais, mas sim

o consumidor final, uma vez tal tributação ser transferida para o mesmo. Na terminologia

popular, é como se os impostos estivessem “embutidos” no preço final do produto, cabendo

ao consumidor suportar sua incidência.

75 Bernardo Moraes, mencionando nomes como Gaston Jèze e Benedecto Captan, leciona que a classificação impostos diretos/indiretos aponta para uma série de problemáticas. Cf, MORAES, 2002, p. 432. 76 No entender de Bernardo Ribeiro de Moraes, seria possível anda identificar o momento da incidência final do imposto, quando da última transferência ou passagem do ônus fiscal, além de um momento da difusão do imposto, que ocorre quando seus efeitos econômicos atingem o mercado em razão da não transferência total do sacrifício decorrente da exação. Cf. MORAES: 2002, p. 465 e 466

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Através desse instrumento fiscal, todos os indivíduos, ao realizarem qualquer

consumo, estariam arcando com os custos tributários. A justificativa liberal predominante

fundamentava que a incidência fiscal não pouparia ninguém – nem mesmo clero ou nobreza,

antes largamente beneficiados – uma vez a parcela destinada ao erário já presente no custo

dos produtos (NOGUEIRA, 1997, p. 72 e ss.).

É o instrumento mais conveniente para atingir não apenas o objetivo de impedimento

de discriminações arbitrárias, como também para lograr a isonomia formal entre os

indivíduos. Isso porque, quando da incidência do IPI (imposto sobre produtos

industrializados) ou do ICMS (imposto sobre circulação de mercadorias e serviços), rico e

pobre pagam a mesma tributação para a aquisição de um produto. A igualdade em seu sentido

“absoluto”!

Intensifica a relação anunciada entre impostos indiretos e isonomia formal o fato de

que naqueles, não é possível mensurar diversas alíquotas – progressividade – em razão dos

distintos perfis de contribuintes. Ganha força, com isso, a idéia de uma identidade de

tratamento entre os diversos cidadãos77.

Também Ruy Barbosa Nogueira relaciona a tributação indireta com a concepção de

igualdade caracterizadora do período liberal.

Os chamados impostos indiretos sobre o consumo, gastos ou despesas do indivíduo surgiram no final da Idade Média, com o objetivo não só de fornecer ao Tesouro maior arrecadação para atender à necessidades financeiras do Estado, mas para alcançar também as classes privilegiadas (clero e nobreza) que não eram atingidos pela tributação direta (NOGUEIRA, Ruy Barbosa1999, p. 08) (grifos nossos)

Corrobora nossa assertiva Aliomar Baleeiro (1987, p.181). Estudando a evolução

tributária, o autor aponta autores que, na busca de uma igualdade efetiva, se mostravam

indignados com o descaso social com que os impostos indiretos sobre o consumo

apresentavam.

A noção de tributação neutra, aritmeticamente isonômica e indiferente às vicissitudes

sociais derivadas do sistema liberal se propagou por todo o mundo, havendo poucos países, no

77 Exemplo que denota a característica ora apontada é aquele contatado por Moura Filho em pesquisa à tributação açucareira na França. Ressalva-se, porém, a adiantada iniciativa na monarquia francesa: “Com duplo objetivo — intuito arrecadador e desejo de justiça fiscal — Colbert, ministro de Luis XIV, buscou em 1664 uma forma de substituir o imposto direto — do qual eram isentos a nobreza e o clero — por impostos indiretos, cujo pagamento seria proporcional aos gastos de cada um. O açúcar de cana, na época um produto de luxo, destinado exclusivamente aos ricos e portanto ainda excluído de qualquer tributação, foi logo taxado.” (MOURA FILHO,2001 p. 4).

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início de século XX que, de fato, demonstravam sinais de alguma tributação direta como o

imposto de renda.

É também o pensamento de Marciano Godoi, que, lembrando os ensinamentos de

Souza Franco, caracteriza os sistemas fiscais do liberalismo como “incidindo os tributos

principalmente sobre a riqueza das classes agrárias e sobre o consumo, sendo que a idéia de

utilizar o imposto como forma de realizar a justiça, redistribuindo renda e riqueza, ainda está

longe de se estabelecer” (GODOI,1999, p.177).

Na mesma situação, é possível apontar outra técnica de tributação imediatamente

ligada à igualdade burguesa: a utilização de impostos de alíquotas proporcionais.

Necessário, antes de adentrar na fundamentação proposta, municiar o leitor do

conteúdo a que se refere a proporcionalidade.

É possível classificar os tributos em três espécies, tomando como referência a alíquota

dos mesmos: tributos fixos, proporcionais e progressivos.

São fixos os tributos que implicam uma mesma quantia final a ser paga por todo e

qualquer contribuinte, indiferentemente a qualquer individualidade. Trata-se de medida

atualmente rejeitada para fins de exação de impostos e contribuições, sendo, porém, utilizada

para as taxas, já que o valor dessas pressupõe o custo de um serviço público específico e

divisível ou o exercício de um poder de polícia (art. 77 CTN).

Objetos da presente análise, são proporcionais os tributos cujo valor final da exação

varia de acordo com a base de cálculo respectiva, mantendo estável, porém, a alíquota

incidente.

Nessa toada, é proporcional o imposto que incide sobre 10% do valor da renda da

população. A quantia a que se resumirá a obrigação tributária dos indivíduos será diversa

(quem aufere R$100.000,00 pagará R$10.000,00, enquanto quem recebe R$1.000,00 arcará

com R$100,00), entretanto mantém-se imutável a alíquota de 10% sobre os diversos

contribuintes. A variação final é decorrente da variação da base de cálculo.

Noutro lado, são progressivos os tributos que apresentam alíquotas diversas crescentes

na medida em que aumenta a expressão de riqueza da base de cálculo. Seria o caso de tributar

aqueles que auferem R$100.000,00 com 20% de alíquota sobre a renda adquirida, enquanto se

faz incidir a alíquota de 5% sobre a renda de R$1.000,00.

É de se notar que a proporcionalidade dos impostos se apresenta perfeitamente

compatível com a linha de pensamento burguesa, que pregava a igualdade de tratamento a

todos os indivíduos sem a possibilidade de diferenças discriminatórias, ainda que positivas.

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Inadmite-se, nesse período, um eventual direcionamento fiscal com cargas não

equivalentes aos vários contribuintes. A igualdade árdua e sangrentamente conquistada não

permitiria uma discriminação causada pela progressividade tributária, não consagradora da

repartição isonômica almejada78.

É possível constatar, assim, serem os impostos proporcionais paralelos à razão

aritmética de igualdade. Poderíamos mesmo classificar tais impostos de “impostos neutros”,

uma vez não interferirem em nada na proporção de riquezas entre os indivíduos.

Insta salientar, porém, que mesmo nesse momento, não se desconsidera uma

necessidade de observação da capacidade econômica de cada um contribuir para os

dispêndios do Estado. Tanto o é que são repudiados, desde já, os chamados impostos fixos.

Ensina Derzi (In: BALEEIRO, 1998, p.03) que os pressupostos básicos de um sistema

tributário, dentre os quais o princípio da capacidade contributiva, foram desenvolvidos por

Von Justi e disseminados por Adam Smith já no século XVII. Já Godoi (1999, p.188) afirma

ser a capacidade contributiva um verdadeiro cânone das idéias smithianas, identificando assim

o princípio em tela já no momento liberal.

Não se equivocam os autores, já que a noção de proporcionalidade implica certa

observância, ainda que tímida, da expressão de riqueza do contribuinte, respeitando, porém, a

manutenção da proporção a ser paga por cada qual. Entretanto, a relação entre perspectiva

igualitária burguesa e o critério de identidade de alíquotas salta aos olhos!

O que também deve ser destacado é a adoção da linha de pensamento liberal da

“teoria do benefício” para fins de capacidade contributiva: a correta divisão das exações

estatais corresponderia ainda à igual medida de proteção que o indivíduo se beneficiava do

Estado.

Considerando que dentre suas poucas tarefas cabia ao ente público a segurança interna

e externa como forma de salvaguarda da propriedade adquirida pela autonomia privada,

quanto mais propriedade detivesse o indivíduo, mais benefícios diretos estaria fruindo das

atividades estatais. É mesmo um acordo contratual que fazem particular e Estado, em sua

postura mais liberal do civilismo burguês!

É nesse sentido que argumenta o pai da economia clássica: “É necessário que os

súditos de todos os estados contribuam o mais possível para a conservação do governo,

78 Nesse sentido argumenta Michel Troper que diante da perspectiva de igualdade que circulou nos pensamentos burgueses, “é provável que eles tivessem estimado que um imposto progressivo não fosse igualmente repartido”. (Troper, apud NOGUEIR,: 1997, p. 63)

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proporcionalmente às suas respectivas capacidades, isto é, em proporção aos rendimentos que

cada um usufrui sob a proteção do Estado” (SMITH, 2003, p. 1046).

Hector Villegas (1980, p. 11), ao dissertar acerca das teorias de fundamentação dos

impostos, faz menção a uma secção que pode facilmente ser aglutinada na idéia smithiana. O

autor distingue em duas diferentes correntes a “teoria do preço de troca” – baseada na

retribuição aos serviços prestados pelo Estado – e a “teoria da retribuição pela segurança”. É

de se notar, entretanto, que ambas podem ser encontradas dentro da idéia contraprestacional

ampla a que se refere Smith.

4.2.3 A legalidade formal e a garantia da segurança/previsibilidade jurídica

É habitual a identificação da Magna Carta de 1215 como representação do marco

inicial do aparecimento do princípio da legalidade tributária nos sistemas jurídicos. De fato, o

documento celebrado entre o Rei João Sem Terra e os Barões ingleses demonstra a força que

a concentração de poder real viria a perder nos séculos seguintes, culminando na instauração

de governos burgueses pela Europa.

No que tange à comum caracterização de precursora da legalidade da Magna Carta,

Misabel Derzi, amparada em Victor Uckmar, contesta a idéia de auto-tributação iniciada

apenas pelo texto de 1215. A tributarista mineira cita os seguintes fatos exemplificadores da

autotributação anteriores à Carta inglesa, embora instrumentalizada de maneira diversa:

a promessa de Anselmo a Willian Rufus, em 1096; de quinhentas libras esterlinas, repelida pelo rei, por insuficiente, teve na recusa do arcebispo um empecilho para ser aumentada; a auto-tributação eclesiástica, consagrada no Lateran Council, de 1179; as decisões de 1188, que instituíram o tributo de um décimo da renda, foram tomadas com a intervenção pessoal de Henrique II a fim de se obter o consentimento da cidade ao pagamento; incidente semelhante se dá em 1192, quanto ao recolhimento de cem mil libras esterlinas necessárias para resgatar Ricardo I, etc.(DERZI: In BALEEIRO,1998, p.50)

Entretanto, o documento britânico de 1215 tem por mérito realizar o cerceamento das

arbitrariedades da coroa. Para isso, instituiu a máxima no taxation without representation,

idéia que apenas posteriormente viria a ser incorporada pelos movimentos franceses.

Com essa postura de “autorização popular”, o consentimento dos

destinatários/contribuintes passa, assim, a ser forma de compatibilização entre a liberdade de

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utilização da propriedade e a tributação “contrária” ao patrimônio dos cidadãos79. O que

importa vislumbrar nesse momento, é a legalidade como uma amarra àqueles atos tidos por

indesejáveis praticados pelo Estado e contrários aos direitos naturais. Dentre esses direitos, a

garantia da propriedade em sua plenitude!

Mencionado anteriormente que, a partir desse período, o culto ao texto legal, situando-

o como sinônimo de legitimidade, percorreu todo o ordenamento jurídico. Não poderia ser

diferente com o campo tributário. O princípio da legalidade transformou-se na principal arma

de controle dos arbítrios fiscais anteriores.

Calcados na busca de uma previsibilidade matematizada das incidências tributárias e

ingerências estatais, buscavam os liberais uma segurança jurídica consubstanciada na

ausência de ambigüidades ou espaços para a criação de exações não previstas ou esperadas

pelo contribuinte. Pautavam-se os autores na idéia de que a inequivocidade das palavras

escritas garantiriam a paz jurídica que inabitou o período antecessor. Lembrem-se que no

período da Revolução Francesa, as descobertas de Galileu já haviam “sacudido a Europa”, e

os pensamentos matematizantes de Descartes estava em plena expansão.

Aparece hipertrofiada a segurança jurídica em que passa a se pautar a sociedade

liberal. Com vistas a esse objetivo precípuo, nada mais eficiente do que a utilização de uma

legislação que não teria olhos para discriminações, nem mesmo possibilitaria interpretações

dúbias “convenientes” às discricionariedades arbitrárias do chefe do Executivo em detrimento

dos direitos da sociedade.

E para otimizar a pretensão liberal, acenava-se a limitação da atividade do intérprete,

afinal, apenas com a ausência de subjetividade seria garantida a pureza do método

subsuntivo.

É nítido como a concepção ora trabalhada se coaduna com a teoria de separação de

poderes, tão ventilada à época! Observem bem como tal concepção ainda hoje permanece

presente no seio do sistema tributário:

Conforme já trabalhado, a expectativa de esgotamento do conteúdo do Direito nos

estritos termos constantes nas normas legais, culminando na prática meramente silogística do

fato à norma, visava deixar toda a determinação da materialidade jurídica nas mãos dos

legisladores legitimamente habilitados. Com isso, não apenas a atividade judicial, mas

também administrativa, têm seu âmbito de atuação severamente tolhidos, impedidas, portanto,

79 Em que pese a definitiva importância que o desenvolvimento da autotributação por meio da legalidade no século XIII apresente para o atual Direito Tributário, mister assinalar que referida concepção possui sentido e alcance distintos das hoje observadas. Sobre o tema, conferir NABAIS, 2004, p. 325 e ss.

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de participarem da reconstrução interpretativa, ou no entendimento clássico, obstados de se

utilizarem de quaisquer elementos ponderativos que pudessem levar à arbitrariedade

repudiada pelo liberalismo.

Em razão deste mesmo motivo, em conjunto com o receio da violação da igualdade

construída no período oitocentista, é que se torna possível a leitura, no CTN, do art. 142

parágrafo único: “a atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória, sob

pena de responsabilidade funcional”. Percebam como a “vinculação” do ato administrativo de

realizar o lançamento por parte dos agentes fiscais cumpre, justamente, a ausência de qualquer

discricionariedade, qualquer liberdade de pensamento e interpretação, seja dos fatos, seja das

normas. É a exaltação máxima do culto à prevalência legislativa decorrente do fetichismo

legal que habitou o cenário constitucional há mais de duzentos anos.

Na cátedra de Cruz, em seus debates em sala,

os pressupostos metateóricos do ato administrativo vinculado são os mesmos da Escola da Exegese, ou seja, de que a aplicação do Direito possa ser mecânica. Assim, o administrador, ao fazer o lançamento do tributo, não deve pensar, não deve raciocinar, não deve interpretar. Em outras palavras, separar o incindível, aquilo que lhe faz ser humano: sua condição hermenêutica!

Mas nosso Código Tributário não encerra sua nostalgia legalista apenas no dispositivo

mencionado. Da mesma forma, a atividade judicial se vê castrada de sua necessária

construção interpretativa. É a mesma lógica que rege o art. 111: “interpreta-se literalmente a

legislação tributária que disponha sobre: I – suspensão ou exclusão do crédito tributário; II –

outorga de isenção; III – dispensa do cumprimento de obrigações tributárias ou acessórias”.

É interessante notar que, neste caso, há duas questões distintas reunidas: em que pese a

prisão ao conteúdo do texto normativo e uma restrição do mesmo aos termos e vocábulos

constantes na legislação, o CTN tenta realizar a literalidade unicamente quando se está em

jogo potenciais benefícios aos contribuintes.

De todo modo, o que importa destacar é o fato de que, no século XVIII – com ecos na

atualidade – é possível afirmar que a legalidade teve como principal suporte propulsor, a

necessidade de segurança e certeza jurídica cuja inexistência contrariava os anseios privados e

impedia a prevalência de uma tranqüilidade dos contribuintes, que nunca conseguiam

antecipar a ciência de suas obrigações perante o Fisco80.

80 Nesse sentido, Derzi: “correspondendo sempre a um ideal de coparticipação (sic) política, o princípio da legalidade, seja em matéria penal, administrativo-orçamentária ou tributária, floresceu graças aos fatores sócio-econômicos do Estado burguês, representando a mais significativa expressão do princípio jurídico da segurança[...] a concepção de Estado de Direito liga-se à de Democracia e de contenção do arbítrio. A segurança

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A legalidade passou, então, a representar a maior garantia constitucional do

contribuinte. É Nabais quem leciona que

A idéia de protecção da confiança não é senão o princípio da segurança jurídica na perpectiva do indivíduo, ou seja, a segurança jurídica dos direitos e demais posições e relações jurídicas dos indivíduos [...] Mas esta protecção da confiança pressupõe, por seu turno, a segurança jurídica do direito objectivo, ou seja, das normas jurídicas enquanto padrões ou critérios de actuação dos indivíduos e de decisão das entidades públicas... Daí que o princípio da segurança jurídica no domínio do direito dos impostos tenha a ver fundamentalmente com o legislador...(NABAIS, 2004, p. 395-396)

Observe como as palavras do liberal Adam Smith caracterizam bem o momento a que

se refere:

É preciso que o tributo que todo indivíduo está obrigado a pagar seja fixo, e não arbitrário [...] Na tributação, a certeza sobre aquilo que todo indivíduo precisa pagar é uma questão de tal relevância, que, segundo mostra a experiência de todas as nações, creio não haver mal tão grande como a existência de um grau ,mínimo de incerteza. (SMITH,2003, p. 1047) (grifos nossos).

Mas ainda na doutrina atual, sob a justificativa de segurança e previsibilidade para o

contribuinte, permanece a concepção de legalidade como possibilidade de ontologização e

objetificação das obrigações tributárias. Não se dissipou completamente a idéia de utilização

de instrumentos pretensamente unívocos e garantidores da certeza obrigacional como forma

de instituição de proteção individual face ao Estado. Reparem que não diferem muito as

palavras de Smith das de Hugo de Brito Machado, para quem

o princípio da legalidade pode ser entendido em dois sentidos, a saber, (a) o de que o tributo deve ser cobrado mediante o consentimento daqueles que o pagam, e (b) o de que o tributo deve ser cobrado segundo normas objetivamente postas, de sorte a garantir a plena segurança nas relações entre o fisco e os contribuintes. (MACHADO, 1991, p. 14)

Mas não é exclusividade do tributarista antedito o anseio por uma segurança jurídica

como forma de previsibilidade das obrigações fiscais. O trecho retirado da obra de Renato

Martins Prates acerca da interpretação no Direito Tributário reforça nosso argumento no

sentido de que, ainda hoje, a doutrina tributária brasileira se mantém apegada à busca por uma

certeza algébrica prévia das obrigações particulares para com o Fisco: “... a segurança jurídica

jurídica fica, então, hipertrofiada e a lei parece o caminho mais idôneo para alcançá-la”(DERZI In: BALEEIRO, 1998, p. 51-72)

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encontra-se resguardada [...] quando as pessoas podem saber de antemão o que é

juridicamente permitido e o que é juridicamente proibido” (PRATES, 1992, p. 37).

Trata-se de posicionamento amplamente discutível. Enquanto se pauta a segurança

jurídica em uma necessidade legislativa para que válida a exigência tributária, há razões para

sua aceitação. Entretanto, a previsibilidade das obrigações materiais, adiante se perceberá,

não se trata de escolha dos contribuintes, mas propriamente de uma impossibilidade

lingüística e humana!

Em adiantamento à argumentação que será desenvolvida posteriormente, Günther, em

obra relacionada com a elaboração e aplicação das normas, identifica um princípio de

universalização (princípio “U”) que bem se adeqüa às pretensões de Prates e demais

tributaristas quanto à antevisão dos conteúdos normativos presentes nas legislações fiscais.

Nesse esteio, a vertente “forte” do princípio “U” aludido, consiste em: “Uma norma é válida

e, em qualquer hipótese, adequada, se em cada situação especial as conseqüências e os efeitos

colaterais da observância geral desta norma puderem, ser aceitos por todos, e considerados os

interesses de cada um individualmente” (GÜNTHER, 2004, p. 65).

Observem: caso uma norma seja considerada válida em toda e qualquer situação

semelhante, é possível, sim, prever de forma precisa (e cartesiana) quais seus efeitos, qual

será a materialidade jurídica decorrente de seus mandamentos. Estaria então cumprida a

vontade dos nossos doutrinadores!

Ocorre, porém, que o próprio Günther aponta uma série de problemas que não podem

simplesmente ser ignorados, e que mais à frente merecerão maior deslinde. Inicialmente,

pressupor a capacidade de previsão de todas as situações a que uma norma é aplicável é,

incontestavelmente, uma condição idealizante no sentido mais platônico do termo, o que já

coloca a pretensão previsibilista em um patamar metafísico.

Ademais, a aceitação de manutenção de conteúdos normativos para todas as hipóteses

com similitudes àquela pensada originalmente pelo intérprete – o que poderia ensejar uma

antecipação dos conteúdos à aplicação jurisdicional – é encampada na necessidade de que tal

intérprete se preserve enclausurado em um individualismo racionalista e solipsista tal qual

imaginado por Kant. Afinal, todo caso concreto será marcado por variáveis que influenciarão

o conteúdo do Direito aplicado, e a perspectiva alheia, a contribuição de visões e

interpretações dos demais envolvidos é um dos elementos contributivos para a integração de

tais variáveis (GÜNTHER, 2004, p. 44 e ss.). Daí se afirmar que a postura hermenêutica em

que persistem os doutrinadores pátrios é um retorno explícito à filosofia da consciência da

modernidade!

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Também ciente dessas vicissitudes, Dworkin, de forma sucinta, assevera que “após o

caso ser decidido, nós podemos dizer que o mesmo se adeqüa a uma determinada regra [...]

mas a regra não existe antes de o caso ser decidido” (tradução nossa)81 (DWORKIN, 1978, p.

28)

E de fato assim, o é. Não há que se falar em regras jurídicas ou conteúdos legais antes

de sua argumentação frente a um caso concreto, com sujeitos, elementos externos, variáveis e

variantes, enfim, uma série de contributos outros que irão compor a construção de seu

conteúdo àquela situação. Se em todas as lides tributárias assim o são, como afirmar uma

previsão normativa sem facear obstáculos intransponíveis?

Interessante também anotar o intercâmbio que as idéias de legalidade e contraposição

sociedade/Estado derivadas do pensamento liberal minimalista apresentam. A lógica do apego

à pretensa segurança derivada dos preceitos literais da norma reside no fato de que o Estado é

compreendido como um ente na constante iminência de abusar dos poderes concedidos. Essa

recorrente ameaça, que nas idéias liberais desvirtuaria a natural organização da sociedade,

culminou justamente na exaltação dos instrumentos que prometiam a certeza do papel do

Estado e das obrigações particulares.

Eis mais um elemento que auxilia na constatação de que nossa doutrina parece não

querer se desgarrar do liberalismo burguês. Observem como a passagem de Cordelli Alves

busca bases em uma visão dicotômica e oposicionista entre Estado/sociedade, importando-a

do pensamento liberal e trazendo para o sistema jurídico atual:

Formulou o legislador constituinte [...] uma regra de competência negativa, vedando à pessoas de direito público interno a criação ou aumento de tributo sem a competente previsão legal. Justifica-se plenamente essa preocupação exagerada do constituinte, na medida em que a exigência de tributos configura-se como o exemplo mais significativo de ingerência do Estado no patrimônio particular [...] a inviolabilidade dos direitos individuais concernentes à segurança e à propriedade e mesmo à liberdade, somente poderá ser garantida se essa ação tributária obedecer a limites rígidos estabelecidos em lei. (CORDELLI ALVES, 1984, p. 48-49)

Isso se dá em razão da manutenção de uma anacrônica premissa. A mais expressiva

parcela da doutrina permanece lançando suas argumentações tendo como base a oposição

cerrada entre Estado e particular, em um retardatário refluxo de um absolutismo que há muito

já se esvaiu.

81 No original: “After the case is decided, we may say that the case stands for a particular rule [... ] but the rule does not exist before the case is decided.”

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Impressiona a força da perspectiva liberal. O quanto os autores ainda se agarram à

idéia de um Estado vil e agressor que tributa indiscriminadamente o sagrado patrimônio

individual do particular – seu “direito natural” – não poupando esforços para fazer valer o

arbítrio fiscal e predatório...

Para não sermos taxados de um eventual exagero, observem os seguintes títulos de

obras contemporâneas: “O contribuinte brasileiro: vítima do Fisco” (ISIDORO,1999); “Os

limites da legalidade tributária no estado democrático de direito: fisco X contribuinte na arena

jurídica: ataque e defesa” (NOGUEIRA, Alberto, 1999).

Reputamos já ultrapassada, porém, essa visão maniqueísta em que se apóiam alguns

de nossos autores. Já não mais se sustenta a perspectiva combativa e oposicionista entre as

esferas público/privada, Estado/particular. Compomos todos uma complexa e interligada

estrutura social, onde os âmbitos público e privado não apenas deixam de se enfrentar em uma

arena de disputa, com ainda se confundem em suas próprias substâncias.

Vejam agora outros aspectos da legalidade no que tange à busca pela segurança

jurídica exaltada no século XVIII.

4.2.3.1 Legalidade e tipicidade tributária

Ainda que presentes algumas ressalvas, talvez seja o princípio da legalidade o

principal contributo do sistema tributário liberal para a atualidade82. Se queremos aqui

questionar a forma como a doutrina e jurisprudência nacionais persistem, majoritariamente,

em trabalhar a concepção legalista de tributo, momento algum acreditamos possível

abandonar essa conquista democrática originada com o paradigma liberal. Todavia, é

importante destacar o posicionamento tanto dos liberais oitocentistas, quanto da doutrina

atual, no sentido de buscar uma previsibilidade absoluta de obrigações fiscais através do

exaurimento legal.

82 Cumpre ressaltar a curiosidade de que, não obstante a previsão do princípio da legalidade assole a quase unanimidade dos ordenamentos contemporâneos, a Argentina não contempla, expressamente o princípio da legalidade tributária (Cf. OLIVEIRA JUNIOR, 2000, p. 22)

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A presente Constituição, não obstante tenha já previsto no texto de seu artigo 5º, II83 a

obrigatoriedade de legislação para a instituição de obrigações particulares, preferiu o

constituinte ser mais minucioso quanto à legalidade tributária84, expressa no artigo 150, I:

Art.150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;

Para autores como Campos (1984, p.218), não basta a simples elaboração de um

instrumento legal para a satisfação e obediência do princípio da legalidade tributária. Deve-se

perquirir a reserva absoluta da lei. Ou seja, para efetivamente lograr a segurança e tolhimento

de discricionariedade do Fisco, o princípio da legalidade deve ser alçado a uma esfera ainda

mais restritiva. Cabe à legislação a previsão dos critérios ligados à exação tributária, sendo

certo que, para alguns (MACHADO, 2005, p 54), mesmo elementos secundários à atividade

fiscal – p.e. prazo para recolhimento de tributo – exigem antecedente legal autorizativo,

posicionamento que, na atualidade, não encontra respaldo jurisprudencial.

Nessa mesma trilha, preferem outros autores trabalhar com a segmentação entre o

princípio da legalidade e seu sub-princípio da tipicidade tributária.

Seguindo lição de Bernardo Moraes (2002b, p. 96 e ss.) e Carrazza (2004, p.398 e ss.),

tipicidade tributária, que não foge da lição da tipicidade penal, é a necessidade de previsão de

todo e qualquer elemento da tributação em seu respectivo instrumento normativo. Não basta a

simples autorização legislativa permissiva para a instituição de uma exação, caso contrário,

poderia a mesma prever a delegação de tal tarefa a um outro poder ou órgão que o exerceria

através de um decreto normativo.

Na linha desses autores, não fosse a tipicidade tributária, o Legislativo, poder

característico da representação da vontade popular, poderia meramente autorizar, por meio de

lei, ao chefe do Executivo a instituição ou majoração de tributos. Seria o mesmo resultado

absurdo de não se exigir qualquer ato normativo!

83 Art. 5º, II da CF: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. 84 Leciona Oliveira Junior (2000, p. 05 e ss.) que o princípio da legalidade sempre esteve presente nas ordens constitucionais brasileiras. Previa a Constituição do Império de 25 de março de 1824: “art. 36. É privativa da Câmara dos Deputados a iniciativa sobre: I – impostos (...) Art. 171. Todas as contribuições directas, á excepção daquellas, que estiverem applicadas aos juros, e amortisação da Dívida Pública, serão anualmente estabelecidas pela Assembléia Geral, mas continuarão, até que se publique a sua derrogação, ou sejam substituídas por outras.”

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Para a doutrina tradicional, a legalidade, na acepção da tipicidade, implica um

exaurimento no que tange à expressão dos dados fáticos que irão autorizar a incidência

tributária. A descrição abstrata de que decorre a tipicidade tributária assim compreendida

acarreta uma delimitação exaustiva das condições possibilitadoras da obrigação fiscal. Nesses

termos, Sacha Calmon, ao trabalhar os elementos caracterizadores do tributo escreve que

“conceituar até a exaustão, tipificar tudo o que diz respeito às matérias acima exalta o

princípio da tipicidade” (COÊLHO, 2005, p. 227).

Alberto Xavier (2001) talvez seja o mais eloqüente defensor da obediência estrita à

tipicidade da tributação. Para o autor, a não observância da legalidade em seu aspecto mais

intenso – tipicidade – macula de forma irreparável a lisura e a democraticidade do sistema

fiscal. Mas não apenas.

Segundo Xavier, é a legalidade estrita que permite a conservação da separação de

poderes. Para ele, o exclusivismo que é dado ao legislador como sendo o único capaz de

interferir, em qualquer nível, na identificação dos fatos e situações tributáveis impede que

outros poderes interfiram na atividade legiferante. Parece pensar o autor que a interpretação

que venha a acrescentar qualquer elemento não intentado pelo legislador é ingerência à

atividade do Legislativo (Cf. XAVIER, 2001 p. 26). Mais uma vez pode ser apontada a

relação entre o fetiche legalista e exauriente das normas legais e a noção de lançamento

tributário como ato vinculado trabalhada páginas atrás, em consonância com a separação

absoluta dos poderes, tal qual argumentado por Xavier.

Em sua obra, os corolários que o luso-brasileiro entende por imprescindíveis para a

configuração da tipicidade no âmbito da tributação descrevem bem a postura de exatidão que

aqui se pretende delinear:

- seleção – necessidade de a lei tributária descrever minudentemente os tipos que irão

exaurir modelos de uma realidade que o Estado quer tributar;

- numerus clausus – a tipicidade pressupõe uma taxatividade de suas hipóteses de

previsão, não se admitindo situação que não descrita na forma do requisito supra;

- exclusivismo – a ocorrência no mundo fenomênico da realidade pretensamente

descrita pelo tipo tributário é necessário e suficiente para o surgimento da obrigação

pecuniária para com o Estado

- princípio da determinação ou da tipicidade fechada – esse derradeiro requisito

determina a necessidade de uma precisão dos termos utilizados pelo legislador na elaboração

dos tipos tributários. “Por outras palavras: exige a utilização de conceitos determinados,

entendendo-se por estes [...] aqueles que não afetam a segurança jurídica dos cidadãos, isto é,

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113

sua capacidade de previsão objetiva dos seus direitos e deveres tributários” (XAVIER,2001,

p. 19)

Repare que todos os elementos que o autor ressalta para a configuração da reserva

absoluta da lei/tipicidade são calcados em pressupostos dignos de uma linguagem descritiva e

representativa da realidade, possibilitadora de uma delimitação ligada a um positivismo em

sua mais pura expressão. É a própria hermenêutica clássica tendo sobrevida aos cuidados do

autor, com todo seu aparato de cerceamento de “acréscimos interpretativos” em virtude de um

receio de arbitrariedades ou distorções da vontade legislativa.

A divisão liberal dos poderes apóia-se numa interpretação estrita desse conceito de lei. Ela caracteriza a lei através de princípios semânticos gerais e abstratos e considera preenchido o princípio da legalidade da administração, quando a execução administrativa se limitar rigorosamente a uma concretização do conteúdo normativo geral, de modo adequado às circunstâncias. Na linha dessa interpretação, a lei não deve a sua legitimidade ao processo democrático, mas à sua forma gramatical. O encurtamento semântico propõe uma interpretação da divisão de poderes seguindo uma lógica de subsunção. (HABERMAS, 2003, p. 236).

Novamente, legalidade e segurança jurídica se apresentam não apenas interligadas,

mas mesmo ensejadoras uma da outra. A tentativa de uma descrição taxativa dos elementos

fáticos do tipo tributário busca impedir eventuais ambigüidades que pudessem prejudicar a

previsibilidade do contribuinte no que tange aos seus débitos para com o Estado. É a

confiança extrema no texto da lei, que tem por objetivo expulsar qualquer subjetivismo do

aplicador e intérprete tributário85. Tanto ao Poder Judiciário quanto à Administração (basta

lembrar do lançamento) nada mais restaria do que a aplicação subsuntiva, neutra e

vinculada da realidade fática descrita e exaurida no texto legal.

O princípio da tipicidade impõe que o tributo só seja exigido quando se realiza, no mundo fenomênico, o pressuposto de fato a cuja ocorrência a lei vincula o nascimento da obrigação tributária. Dito de outra maneira, o tributo só pode ser validamente exigido quando nasceu por vontade da lei. Se não se realiza o fato imponível tributário (fato gerador in concreto), isto é, se não se cumprem integralmente os elementos do suposto fato legal (sempre minucioso, de modo a permitir que o contribuinte calcule antecipadamente a carga tributária que terá o

85 Em referência ao princípio da tipicidade no sistema jurídico alemão, bem como às características aludidas no texto supra, Nabais leciona que “todavia e independentemente da construção dogmática a que se adira ou perfilhe, o certo é que a generalidade da doutrina e jurisprudência alemãs vê no princípio da tipicidade fiscal um qualificado princípio da legalidade da administração, concluindo que, relativamente ao objecto do imposto, ao sujeito do imposto, à matéria colectável e ao montante do imposto, quem deve decidir é o legislador pelo que a lei deve, quanto a estes elementos, ou seja, quanto aos elementos essenciais dos impostos, levar a sua disciplina tão longe quanto possível, excluindo-a assim, quer da competência da administração, traduza-se esta em poder normativo (regulamentar) ou numa qualquer margem de livre decisão decorrente da utilização pela lei de cláusulas gerais ou de conceitos (normativos) indeterminados...” (NABAIS, 2004, p. 354)

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dever de suportar, o lançamento e a arrecadação do tributo serão inválidos. (CARRAZZA, 2004, p. 398) (grifos nossos)

Por isso mesmo, é de praxe argumentar que, ausente na previsão legislativa qualquer

elemento ocorrido empiricamente, há óbice no nascimento da obrigação e conseqüente

cobrança fiscal. É o que Aires Barreto denomina “insuficiência da hipótese tributária”

(BARRETO, 1995, p. 267).

Com base nesses pressupostos, não raro, encontra-se afirmações no sentido de que a

tipicidade tributária exige a utilização de uma linguagem mais cerrada, fechada e rígida por

parte do legislador (MORAES, 2002b, p.96).

Pauta-se o sub-princípio da legalidade ora em análise pela busca de uma densidade

descritiva mais intensa e determinante, em contraponto à indefinição interpretativa que

supostamente culminaria em uma ingerência patrimonial abusiva. Não se admitem tipos

fluidos capazes de permitir presunções ou ficções atentatórias à certeza jurídica. A prática do

silogismo aristotélico é, para tal corrente, a única solução para a determinabilidade ansiada.

Quando em estudo da tipicidade tributária, Misabel Derzi (In: BALEEIRO, 1998, p.

117) critica a terminologia adotada pela quase totalidade da doutrina fiscal, adotando um

“princípio da especificação conceitual”.

Mais atenta às vicissitudes da linguagem, Derzi, em obra dedicada ao tema, alerta

sobre a impossibilidade de maximização da segurança jurídica em toda a esfera legislativa.

Mais. A autora acerta novamente, ao perceber que o Direito Tributário não pode ser

compreendido como um dado pronto pelo legislador, mas sim um construir constante e

ininterrupto. (DERZI,1988, p. 287-288).

No desenvolvimento de um estudo diferenciado, a tributarista realiza minuciosa

análise acerca da tipologia, buscando encontrar quais as características dos ditos “tipos

tributários”. Com vistas a esse objetivo, recorre aos filósofos alemães para concluir, com

excelência, que os tipos não são efetivamente cerrados como pressupõe toda a doutrina. Pelo

contrário. Sua forma de construção acaba por lhes acarretar uma abertura que lhes é própria,

concluindo, assim, pela “abertura do tipo, que se revela na inesgotabilidade de suas notas”

(DERZI:1988, p. 64).

Não obstante, após constatar o equívoco por que se pauta a doutrina, Misabel retorna

sua mente para a busca da mesma precisão que caracterizam os autores já apontados, filiando-

se à postura dominante de busca por uma legalidade engessadora, enaltecendo a segurança

jurídica por meio da técnica legislativa.

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Nesse sentido, após realizar minuciosa distinção entre os “tipos legais tributários” e a

“especificação conceitual” por ela utilizada, Misabel conclui que a utilização de tipos abarca

uma abertura conceitual inadmissível para os parâmetros fiscais. Para ela, seriam os tipos por

demais flexíveis, permitindo assim, graduações e concessões que culminariam na

indeterminação rechaçada pela certeza tida por escopo. Por isso mesmo, a lei deveria ser

“fonte fundamental e exclusiva de produção de normas tributárias novas, abstratas e

genéricas, as quais espancam ou devem espancar, na medida do possível, a discricionariedade

dos atos de aplicação, quer administrativos, quer judiciais...” (DERZI, 1988, p. 287) (grifos

nossos).

É importante deixar claro, desde já,q eu também somos contrários à

discricionariedade, entretanto, com base em razões distintas, conforme se verá adiante. De

todo modo, reparem como Derzi, mesmo identificando o problema que assola a teoria da

tipicidade cerrada, cai na armadilha de uma saga por uma especificação conceitual que, mais

descritiva e exaustiva, não permitiria os espaços abertos negligenciados pela tipologia,

culminando, dessa forma, em uma vinculação das atividades administrativas (lançamento,

fiscalização, etc) e jurisdicionais.

Percebe-se, assim, que as expectativas originadas no período liberal ainda estão

presentes entre nós. As mesmas noções de busca incessante pela segurança jurídica em

virtude de um receio de abusos de um Estado Absolutista (?), bem como a adesão a uma visão

matematizante do Direito e da linguagem se mostram bem à vontade nas obras de nossos

autores.

Em meio à doutrina, Ávila, com desenvoltura hermenêutica, questiona o entendimento

dominante acerca da tipicidade, denominado por ele de “princípio da determinabilidade

fática” (AVILA, 2006, p. 308 e ss.). Tendo por inatingível a pretensão de descrição absoluta e

cerrada dos pressupostos fáticos a serem observados pelo aplicador tributário, Ávila prefere

alterar o enfoque dado ao princípio.

A exigência constitucional, para o autor, se materializa em uma determinação de

existência normativa, e não em uma pré-determinação conceitual das obrigações presentes na

legislação fiscal. Segundo ponto, seria um direcionamento ao legislador para que busque,

quando da tarefa de elaboração normativa, uma maior clareza (mas não certeza

interpretativa!) quanto aos elementos essenciais da tributação.

Todavia, ainda que vozes isoladas acompanhem Ávila neste entedimento (dentre as

quais no filiamos), não se pode questionar a exponencial prevalência da postura descritiva e

fechada do princípio da tipicidade no seio doutrinário. Mais adiante, tentar-se-á desvendar:

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será que essa perene busca pela utilização precisa da linguagem é capaz de garantir a

previsibilidade e certeza jurídica que objetivam os tributaristas?

4.2.3.2 Legalidade e a irretroatividade e anterioridade tributárias

Ainda que seja a legalidade a principal ferramenta no embate pela segurança jurídica

tributária, também outros princípios merecem menção. Dentre esses, destacam-se os

princípios da anterioridade e irretroatividade das leis fiscais, sem os quais, a própria idéia de

legalidade se esvairia no limbo da inocuidade. Ávila percebe esses princípios tão ligados à

segurança jurídica chega a descrevê-la em duas perspectivas:

Primeiro, o cidadão deve saber previamente quais são as normas válidas. Isso só é possível, quando elas atingirem fatos ocorridos após a sua edição (proibição da retroatividade) e quando o cidadão tiver condições de conhecer com antecedência o conteúdo das leis (regra da anterioridade). (AVILA, 2006, p. 145)

Ora, se não pode haver imposições fiscais sem a “expressa e detalhada” previsão legal,

as leis tributárias também não podem atingir fatos que precederam sua vigência, momento

antecedente em que ainda não havia legislação respectiva. É o comando do princípio da

irretroatividade.

Trata-se de conseqüência lógica da própria noção de legalidade, tanto o é que

Bernardo Moraes (2002b, p.97) o classifica como corolário do princípio da reserva da lei.

Caso pudesse a lei retroagir e alcançar situações cronologicamente anteriores à sua existência,

acabar-se-ia por onerar fatos, e exigir obrigações com um fundamento legal que simplesmente

não compunha o sistema jurídico do momento. Seria o mesmo que cobrar tributo sem

embasamento legal – que, com efeito, não ali estava quando do fato gerador.

Caso fosse isso possível, tocaria por terra toda a noção de certeza acerca das

obrigações que a legalidade tenta se pautar. Destarte, seguindo a idéia esboçada, a segurança

jurídica volta-se não apenas para o futuro – com a reserva absoluta da lei fiscal – como

também para o passado, com a garantia da irretroatividade das leis tributárias86.

86 Misabel, confirmando a excelência e detalhamento de seus trabalhos, chega a diferenciar a retroatividade própria ou autêntica, da retroatividade imprópria, ou retrospectiva. Seria a retroatividade própria aquela ocorrida quando a legislação atinge relações jurídicas e fatos que exauriram completamente seu ciclo de formação antes do aparecimento da lei no espectro jurídico correspondente. Quanto a tal espécie, conforme profere a autora, não há espaço para qualquer dúvida quanto à sua inconstitucionalidade, já que contrária à confiança na lei e à

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Para Amaro (2005, p.118 e ss.), a Constituição de 1988 já consagra a irretroatividade

(relativa, para o autor) em seu art. 5º, XXXVI, determinando que a lei não pode atingir o

direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Todavia, preferiu o constituinte

elaborar preceito específico, atualmente presente no artigo 150, III”a”, onde se lê:

Art. 150 . sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: ... III . cobrar tributos: a) em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado;

No mesmo sentido de proteção da faculdade de planejamento fiscal, apresenta-se o

princípio da anterioridade tributária, identificado como a “dimensão formal temporal da

segurança jurídica” (ÁVILA, 2006, p.305).

Ainda que se respeite a exigência de lei formal e material para a criação e modificação

de tributos, bem como a observância da não retroatividade das mesmas, não se conseguiria

deixar intocada a possibilidade de antecipação da visão do contribuinte, no que se refere ao

seu planejamento e débitos fiscais, se de um dia para ou outro pudesse surgir lei inteiramente

nova que passasse a exigir expressiva obrigação em pecúnia.

Nessa toada, sem a garantia de um lapso mínimo entre a vigência da lei e sua

possibilidade de cobrança, não estaria acobertado o indivíduo das surpresas e inconsistências

das normas tributárias.

Atualmente no Direito brasileiro, a anterioridade tributária vê-se expressa em dois

dispositivos constitucionais. Com eles, não apenas a lei respectiva deve ser anterior ao

exercício financeiro em que irá começar a incidir, como também deve observar o lapso

temporal de noventa dias para surtir os efeitos correspondentes. Nessa senda, o texto

constitucional:

Art. 150 . sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: ...

segurança do sistema jurídico. Noutro lado, é imprópria ou retrospectiva a retroatividade quando a lei não se prende completamente ao passado, ou mesmo ao futuro, mas sim “...em um presente ainda não concluído, porém em vias de formar o fato jurídico e as relações jurídicas [...] no caso dos impostos periódicos, ela é editada no curso do ano, antes do temo final do nascimento do Direito” (TIPKE apud DERZI In: BALEEIRO,1998, p. 192) Nesses casos, não houve a completa formação do fato gerador a que se refere a nova legislação tributária. Essa foi elaborada no intercorrer, no “meio” da realização do fato imponível. Exemplo pragmático é a súmula 584 do STF, que afirmava que “ao imposto de renda calculado sobre os rendimentos do ano-base, aplica-se a lei vigente no exercício financeiro em que deve ser apresentada a declaração”. Esse entendimento, porém, já se demonstra superado pela doutrina, legislação e jurisprudência (Cf. AMARO, 2005, p. 133).

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III . cobrar tributos: ... b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou; c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b;

Acerca do princípio da anterioridade da lei tributária, Derzi esclarece que o Fisco

chegou a argumentar no sentido de que a anterioridade deveria se dar apenas em relação à

deflagração do processo de cobrança dos créditos tributários. Segundo tal linha de

pensamento, a constituição da obrigação tributária, a incidência da lei sobre o fato gerador

poderia se dar de forma imediata.

Todavia, contrária a tal posicionamento do Fisco que, de tão pouco adotado é hoje

inexpressivo, a autora afirma que “a única interpretação compatível é aquela que permite a

adequada proteção da segurança jurídica, pela abolição da surpresa tributária” (DERZI In:

BALEEIRO,1998, p. 172).

Nítida assim, a preocupação que os tributaristas demonstram quando em análise a

possibilidade de usurpação da garantia de segurança e previsibilidade jurídicas. A

anterioridade e irretroatividade incorporam nosso ordenamento para apoiar e corroborar o

apelo pela certeza obrigacional exaltada pela doutrina, ainda como eco do

iluminismo/liberalismo do século XVIII!

4.2.3.3 Legalidade, propriedade e elisão fiscal

Ponto que não pode ser desconsiderado quando da análise das influências dos direitos

fundamentais de primeira geração para a construção do ordenamento tributário é a estreita

ligação que a legalidade mencionada guarda com a proteção absolutizante da propriedade

individual.

A percepção de salvaguarda da esfera patrimonial privada como um dos pilares do

desenvolvimento social figurou como um dos elementos cerceadores da presença estatal na

esfera econômico-social. Juntamente a isso, a tributação era percebida claramente como um

instituto, embora necessário, atentatório à esfera fundamental do indivíduo, onde a

propriedade privada encontrava posição de destaque.

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É clara a proximidade com que os autores liberais proclamavam a proteção da

propriedade tal qual a garantia da liberdade – ecos até hoje presentes em nosso corpo

doutrinário. O mesmo valor dado à liberdade humana é também identificado, nessa linha de

pensamento, à propriedade individual. Tanto o é que a instrumentalização das áreas penal e

tributária se deu da mesma forma: a tipificação cerrada e estrita das hipóteses em que o

“Estado-malfeitor” poderia adentrar nessas duas esferas de quase absolutização e sacralização.

Douglas Yamashita explica o entendimento:

... o Direito Tributário, assim como o Direito Penal são ramos jurídicos sensíveis, pois limitam direitos fundamentais do cidadão, tais como a liberdade e a propriedade. É por isso que num Estado Democrático de Direito exige-se do Direito tributário o máximo de segurança jurídica, traduzida na certeza jurídica (YAMASHITA, 2000, p. 735)

Ora, pressupondo que se deveria limitar ao máximo a presença fiscal maculadora do

auferimento de resultados provenientes da autonomia individual, não havia melhor remédio

que a segurança jurídica trazida pela legalidade tributária. Com a previsibilidade “inerente” ao

pretenso engessamento das obrigações por parte da legislação, buscava-se o mínimo

pagamento de tributos, que não poderiam advir de qualquer outro instrumento que não a

legislação formal burocrática.

Em razão desses elementos que ganha força a defesa à elisão fiscal.

Uma vez identificado o princípio da legalidade, a dedução de sua esfera negativa não

demanda maiores esforços. Se apenas pode ser passível de cobrança fiscal aqueles

fatos/situações textualmente previstos, tudo aquilo que não o é não pode ser objeto de

obrigação tributária.

Diante dessa perspectiva, surge a clara possibilidade de optar por negócios jurídicos,

ou “roupagens jurídicas” que geram menores ônus fiscais. Bernardo Moraes (2002, p. 468)

chega a afirmar a quase obrigatoriedade por parte do contribuinte na escolha dessas formas

menos custosas. Compartilha esse pensamento Caio Goulart Penteado. Assim, assevera o

autor, que “se existem alternativas, escolhe-se a de menor impacto fiscal, manda a lógica, o

bom sendo. E não o impede a lei ou a ética” (PENTEADO, 1988, p. 05).

É nítida a relação de pertinência entre tal concepção e a prevalência da autonomia da

vontade apontada no sistema jurídico liberal do século XVIII. Essa representa, em realidade, o

próprio núcleo argumentativo fundamentador das práticas elisivas.

É isso que nos faz concordar com o entendimento de que

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... é, porém óbvio o (excesso de ) positivismo dum tal entendimento que, por seu turno, tem subjacente uma concepção de homem soberano isolado (no contexto dum estado inimigo das liberdades) e de contribuinte interessado em pagar o menos possível de imposto(s), como se lhe assistisse um direito fundamental de não pagar impostos.(NABAIS, 2004 p. 386) (grifos nossos)

Por essa trilha, segue Alberto Xavier, expoente na defesa da elisão tributária e que a

percebe como conseqüência direta da garantia dos direitos fundamentais dos contribuintes em

exaltação da legalidade e proteção patrimonial.

Os princípios da legalidade e da tipicidade da tributação constituem uma garantia individual que tem por objeto proteger os direitos do homem consistentes no ‘direito de propriedade’ e no ‘direito de liberdade econômica’ no qual se inclui a liberdade de contratar (XAVIER, 2001,p. 111)

A objetificação a que se propõe a exigência legal estrita possibilitaria o amplo

planejamento fiscal das empresas privadas, que teriam capacidade de realização do

planejamento econômico-tributário, inerente à atividade de exploração mercadológica

capitalista.

Com isso, potencializar-se-ia a faculdade dos particulares em desenvolver ao máximo

suas habilidades individuais. A segurança jurídica fiscal culmina, para a corrente oitocentista

(e ainda atual!), na valorização da iniciativa privada e no incentivo às empresas adentrarem no

mercado econômico. Restringindo a condução da atividade mercantil unicamente à vontade

individual, nada mais lógico que disso resultasse a conclusão no sentido de que o

planejamento fiscal, voltado para o crescimento dos lucros e maior viabilidade econômica dos

empreendimentos privados se submetesse também à autonomia da vontade.

Partindo dessa perspectiva,

em termos do (sub) sistema tributário, implica o reconhecimento da livre conformação fiscal dos indivíduos, traduzindo-se na liberdade destes para planificarem a sua vida econômica sem consideração das necessidades financeiras da respectiva comunidade estactual e para actuarem de molde a obter o melhor planejamento fiscal (tax ou fiscal planning, Steuerplanung) da sua vida, designadamente vertendo a sua ação econômica em actos jurídicos ou actos não jurídicos de acordo com a sua autonomia privada, e guiando-se mesmo por critérios de evictação de impostos ou de aforro fiscal (NABAIS,2004, p. 205-206)

Neste campo, ganha fôlego a defesa à prática da elisão fiscal, que segundo Malerbi,

é a expressão empregada pela doutrina para designar a descrição tipológica de determinados comportamentos que os particulares manifestam perante a tributação, e que se fundem em um ponto referencial comum a todos: comportamentos tendentes a evitar uma incidência tributária ou a obter uma incidência tributária

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menos onerosa, mediante via jurídica lícita que lhe proporcione tal desiderato. (MALERBI, 1984, p.14-15)

Carlos Vaz (1987, p. 16) realiza diferenciação digna de nota.

Segundo o autor, há “elisão induzida” quando o legislador, levado por motivações

extrafiscais, incita a realização de negócios beneficamente tributados ou ainda, carentes de

qualquer forma de incidência fiscal, tal qual ocorre com as isenções.

No que tange a tais práticas elisivas, não há muito o que argumentar. Nesses casos, o

particular meramente segue uma oportunidade que o governo, conscientemente, coloca em

disponibilidade. Obviamente, porém, no período liberal não se detectava, tal qual na

atualidade, a indução de comportamentos no intuito de direcionamento do mercado e

economia. Conforme será possível observar, esta é prática que o Estado apenas deterá, com

maior ênfase, quando do surgimento do Estado social.

Noutra senda, a chamada “elisão resultante de lacunas da lei”, nomenclatura do

próprio Vaz, para quem “resulta ela das próprias brechas, furos ou lacunas da lei, que os

norte-americanos denominam de loopholes, por onde passam incólumes vários contribuintes,

havendo até, segundo Baleeiro, especialistas na arte de orientá-los no aproveitamento desses

pontos fracos do direito positivo” (VAZ, 1987, p. 18).

É este nosso foco de análise.

Mediante a busca de métodos lícitos, pressuposto básico para a caracterização da

elisão fiscal, o instituto em comento utiliza “artimanhas”, estratégias de fuga fiscal legalmente

protegida visando o não pagamento ou retardo no cumprimento das obrigações tributárias.

Nessa toada, não há como confundir a elisão fiscal, com a evasão fiscal, instituto

caracterizado pela sua ilicitude, pelo não pagamento anti-jurídico de um tributo devido ao

Fisco.

Forma de identificação pragmática e de fácil operacionalização é aquela adotada por

quase totalidade da doutrina pátria, consistente na verificação do momento da atuação do

contribuinte. Se anterior ao fato gerador, evitando-o, trata-se de elisão fiscal. Se posterior ao

fato gerador, o tributo já é devido, e seu não pagamento será considerado evasão, com a

conseqüente tentativa de, por meio de um ardil, ludibriar a Administração Tributária e se

furtar de sua obrigação legal.

No que tange à evasão fiscal, não gastaremos muitas letras. A elisão fiscal sim, é

objeto de certa controvérsia.

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Segundo leciona a doutrina, os principais instrumentos que os contribuintes têm à sua

disposição para a realização de práticas elisivas são: o negócio fiduciário, e o negócio

indireto.

Entende-se por negócio fiduciário a transmissão de direito ou objeto a um indivíduo

para um fim específico e previamente acordado. Este adquirente do objeto ou direito assume a

posição de fiduciário, a confiança de realizar o fim respectivo e posteriormente, devolver ao

seu proprietário genuíno.

Leciona Greco (2004) que o STF já considerou o negócio fiduciário instrumento para

realização de fraude à lei em um caso concreto, desconsiderando, assim, sua imposição

perante o Fisco e a tributação (RE 82.447 DJ 17/09/1976). Entretanto, segundo a linha dos

defensores da elisão fiscal, caso não se apresentem as características do abuso de direito e da

fraude à lei, poderia sim haver sua utilização lícita para atingir as finalidades perseguidas.

O negócio indireto, por sua vez se apresenta de diversa forma.

Entende-se que há um negócio jurídico indireto, ou com fins indiretos, quando as

partes realizam um negócio jurídico lícito, mas com vistas não em sua finalidade ou

conseqüência típica, mas sim no desiderato de lograr conseqüências que seriam atingidas por

um outro negócio jurídico mais oneroso. Insta destacar que as partes, de fato, querem realizar

aquele mesmo negócio, elemento que o diferencia da simulação. No entanto, a mola

propulsora que as guia é atípica.

Pesquisando a origem civilista do instituto, Alberto Xavier, com base em Galvão

Telles ensina que

o contrato que se celebra compreende só os elementos típicos de determinada espécie contratual, mas na intenção das partes, pela forma como esses elementos estão dosados ou pelo jogo das circunstâncias, ela seria também adequada para atingir a finalidade inerente a outra espécie contratual. (TELLES apud XAVIER, 2001, p. 59)

O mesmo Xavier traz um exemplo de negócio indireto que pode aclarar a perspectiva

do leitor ao lembrar do “uso do contrato de compra e venda, oneroso, para atingir um fim da

liberalidade [...] em que o preço de favor permite atingir os mesmos fins que uma doação do

vendedor, e em que um preço excessivo permite atingir os mesmo fins que uma liberalidade

do comprador” (XAVIER, 2001, p. 59)

Não obstante, imprescindível ressaltar que, ainda que a escolha alternativa de dado

negócio acarrete menor ônus fiscal para o contribuinte, suas conseqüências empíricas,

econômicas ou negociais serão as mesmas do negócio jurídico de tributação mais excessiva.

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Conseqüências essas que muitas vezes tenta o governo coibir por meio de tributação daquele

respectivo negócio. Esse é um ponto que será valioso adiante quando de sua relação com a

extrafiscalidade e a intervenção estatal no domínio econômico.

Godoi (2007, p. 237 e ss.), fugindo do posicionamento adotado pela esmagadora

maioria da doutrina brasileira, não se restringe à classificação esboçada acima, revendo toda

sua estruturação.

Em artigo dedicado ao tema, o tributarista identifica não apenas duas espécies

classificatórias (elisão e evasão), mas também uma terceira: a “elusão fiscal”. Segundo seus

ensinamentos, que acompanham as legislações de grande parte dos países europeus, há

momentos em que o planejamento tributário perpetrado pelo contribuinte, ainda que não

chegue a configurar uma evasão fiscal, ultrapassa a mera expectativa de economia fiscal, pois

se utiliza de uma artificialidade não condizente com a lisura do sistema jurídico. Nesses casos,

não se trata mais de uma elisão fiscal propriamente dita, em que a licitude da economia

tributária é perfeita, mas sim de elusão fiscal.

Ainda que existam especificidades técnicas no sistema de cada país, há três parâmetros muito recorrentes para diferenciar a elisão da elusão: 1. o manifesto artificialismo das configurações ou formalizações jurídicas adotadas pelo contribuinte (abuso de forma, abuso das possibilidades de configuração que o direito positivo oferece, fraude à lei), 2. a completa inexistência de um motivo não-tributário que possa explicar ou justificar a escolha do contribuinte por aquelas formas jurídicas artificiosas e 3. a vulneração que seria promovida nos propósitos da lei e do sistema tributário, caso pudesse prevalecer o esquema montado pelo contribuinte. (GODOI, 2007, p. 247)

Mister asseverar que o autor apresenta uma inovação quando comparado com o

contexto de defesa pura e simples da autonomia privada geralmente calcada em argumentos

típicos do século XIX. O exame “pragmático” que ele faz se insere na perspectiva do Estado

Democrático de Direito que será visto mais adiante.

Em que pese a correção da doutrina do autor, que reestrutura a concepção elisiva

dentro do Direito brasileiro, tentar-se-á trabalhar, no presente, com a visão “clássica” acerca

da elisão fiscal sob pena de se desvirtuar dos pressupostos basilares do trabalho. Afinal,

sempre bom reforçar, o próprio objetivo que guia a presente pesquisa consiste na verificação

de procedência do entendimento positivista e formalista expressados na absolutização da

tipicidade tributária que também encampa a visão tradicional de elisão tributária, questão já

superada pela visão esboçada por Godoi.

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4.3 A interpretação descritiva e a primeira geração de direitos.

Encerrado o desenvolvimento e caracterização do Direito Tributário em razão da

primeira geração de direitos fundamentais, será agora desenvolvido um outro enfoque do

trabalho.

Já argumentado, quando da evolução do cap. III, que não se pode pensar qualquer

ramo do Direito sem a observância do Direito Constitucional, em especial, os direitos

fundamentais. Assim, para a verificação se uma técnica interpretativa é satisfatória e eficiente

aos anseios jurídicos, pode-se realizar a análise de seu sucesso na concretização desses

direitos. É este o desafio que se apresenta agora. Uma vez constatado que a postura legislativa

descritiva da realidade, fechada em precisões conceituais consegue efetivar todos os direitos

fundamentais, eventuais críticas em direção a esta postura hermenêutica perdem qualquer

sentido!

Sem embargo, a recíproca também se mostra verdadeira. Se concluída a insuficiência

de qualquer técnica hermenêutica, a mesma deve, de imediato, ser repensada, pois não

condizente para com seus escopos. E quanto à primeira geração de direitos, a previsibilidade

das obrigações materiais em receio aos abusos estatais pode ser caracterizada como o

principal instrumento de proteção aos direitos fundamentais emergentes: propriedade,

liberdade e igualdade formal.

Em resposta ao absolutismo precedente, em conjunto com a falta de tratamento

isonômico, limites à vontade monárquica e autoritarismo estatal, a burguesia liberal,

influenciada pelo pensamento científico que gritava a exatidão matematizada da representação

da realidade pelo intelecto humano, passou a limitar a atuação do Estado por meio da certeza

cartesiana que a legislação formal seria capaz de proporcionar. A lei objetiva, descritiva de

uma realidade que pretendia tributar, não permitia privilégios ou abusos. Afinal, ao intérprete

– inclusive ao Fisco – não cabia agregar qualquer elemento subjetivo que pudesse macular a

pureza legal expedida pelo Legislativo. Ao Executivo e Judiciário, cabia a neutralidade da

aplicação da lei, e nada mais.

Ora, se possível atingir essa certeza da descrição da realidade, dos fatos empíricos, já

há como garantir a identidade de tratamento (isonomia) e a previsibilidade dos ônus fiscais

direcionados ao contribuinte (propriedade)! Basta que o legislador trate minuciosamente as

hipóteses de incidência. Não há mais problemas! Essa é a síntese do pensamento liberal que

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propiciou a maximização dos princípios da legalidade e da tipicidade. É a “hipertrofia” da

segurança jurídica a que se refere Derzi (In: BALEEIRO: 1998, p. 72).

Já apresentado, quando do estudo acerca da tipicidade tributária, a persistência dos

autores atuais em se filiarem ao posicionamento supra. Para Carrazza, “o tipo tributário

(descrição material da exação) há de ser um conceito fechado, seguro, exato, rígido, preciso e

reforçador da segurança jurídica”(CARRAZZA, 2004, p.235). Na mesma linha Alfredo

Becker, que faz referência justamente à idéia de certeza algébrica que se tenta dar às

obrigações fiscais: “a regra jurídica incide porque o incidir infalível (automático) é justamente

uma ‘especificidade do jurídico”(BECKER, 1972, p. 280). Também Geraldo Ataliba: “a lei

tributária deve – sob pena de ter-se por ineficaz – descrever exaustiva e completamente a

hipótese de incidência, em todos os seus aspectos (ATALIBA, 2005, p. 200).

Com efeito, a legislação deve sim ser considerada fonte fundamental de obrigações

tributárias, é bom deixar claro que, momento algum, se propõe aqui um retorno ao

arbítrio e discricionariedade na aplicação jurisdicional. Aliás, imbuídos desse propósito é

que rejeitamos a ponderação de valores de Alexy (Cf cap. II).

Entretanto, não é pelo fechamento dos sentidos dos vocábulos que se logrará tal

objetivo. A única forma de se manter a legitimidade jurídica das normas, bem como fiscalizar

a adoção de teses pelo judiciário é a garantia de um procedimento argumentativo, e não

tentando esgotar a realidade em signos como se esses fossem capazes de exaurir toda sua

significação.

É ciente disso que Derzi reconhece a inevitabilidade de conceitos imprecisos.

...reconhecemos em qualquer campo do Direito, mesmo no Direito Tributário, onde a segurança jurídica, a uniformidade na aplicação da norma e a praticabilidade reforçam a legalidade estrita, a existência daquela zona de penumbra a que se refere Carrió, onde são fartos os conceitos legais obscuros e indeterminados (DERZI, 1988, p. 287)

Todavia, conforme já apontado, não abre mão a autora da matematização do Direito

Tributário: “exige-se, então, não só que a lei tipifique os fatos jurígenos e seus efeitos, mas

que ela limite, tanto quanto possível, a imprecisão conceitual, transformando-os em conceitos

fechados” (DERZI In: BALEEIRO, 1998, p. 137). Mais uma vez torna-se possível a relação

entre o paradigma liberal e os pressupostos epistemológicos do neopositivismo do Círculo de

Viena!

O ponto central que se busca aqui colocar à prova é justamente este: será que a

tipicidade e a legalidade tributária, apoiadas em uma descrição fechada, exaustiva da

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realidade conseguem garantir os mecanismos de alcance dos direitos individuais, aqui

compreendidos na segurança jurídica e a previsibilidade das obrigações perante o Estado?

Não temos tanta convicção...

Pensemos as imunidades constitucionais. Trata a CF/88 de hipóteses em que não é

possível a incidência de ônus fiscais em razão das imunidades constitucionais ali

estabelecidas. Se pautados pelos escopos esboçados pelos autores supra mencionados,

devemos ter a segurança jurídica de antecipar, de prever qual será o teor total das obrigações

tributárias incidentes.

Nos termos do art. 150 VI, “d” da CF/88, é vedado aos entes da Federação instituir

impostos sobre “livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão”.

Segundo as premissas ora em debate, este dispositivo constitucional é claro, e tem em

si a representação da realidade jurídico-tributária que deve reger as relações pertinentes. Não

pode haver incidência de impostos sobre livros, jornais, periódicos e papéis destinados a sua

impressão. Será que diante dessa simples determinação será possível antecipar quais serão as

obrigações tributárias de uma editora que confecciona e distribui livros e periódicos em geral?

Afinal, assim como a tipicidade que gera a obrigação fiscal, também as imunidades devem ser

expressas por uma linguagem fechada, sem margem a ambigüidades e incertezas87.

É claro que o objetivo que se persegue não é atingido! Não se pode inferir todas as

implicações jurídico-tributárias que existem e ainda irão existir através de uma simples

disposição legal.

Nesse sentido, poder-se-ia perguntar: quais os objetos que podem ser beneficiados

pela imunidade ora apresentada?

Os livros, obviamente! Mas em que “os livros” consistem? Carrazza (2004, p. 716)

enfrenta essa dificuldade. Como saber se o produto que confecciono deve ou não ser onerado

por obrigações fiscais? Como ter a certeza de minhas obrigações?

87 Àqueles que possam vir a argumentar a impossibilidade da utilização de exemplos envolvendo imunidade em razão de já haver uma predisposição interpretativa extensiva, arrebatamos com dois argumentos: a primeiro, estamos aqui a demonstrar didaticamente como a tentativa de exaurimento da realidade se mostra impossibilitada por meio da tipicidade fechada proposta pela doutrina. Para isso, tanto exemplos envolvendo imunidades quanto tributação são satisfatórios. A segundo, não procede o argumento de que a doutrina compreende a imunidade de forma extensiva ao ponto de invalidar nossa exemplificação. Nessa toada, a argumentação de Ávila: “A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal também interpreta de modo mais declaratório as imunidades quando, ao analisar o dispositivo constitucional que menciona a imunidade de ‘impostos’, entendeu que a imunidade alcança ‘apenas’ os impostos; não as contribuições; também interpreta literalmente, quando entende que não há livro, periódico ou jornal, sem papel, por ter a Constituição previsto um dos elementos destinados à obtenção do produto final assegurado pela imunidade. A mesma Segunda Turma interpreta de modo restritivo as imunidades, quando cria distinções que não estão previstas no conteúdo mais imediato dos dispositivos constitucionais...” (AVILA, 2001b, p.15)

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Seriam “os livros” aqueles definidos nos dicionários da língua portuguesa? Devemos

entender imunes todo o “conjunto de folhas impressas e reunidas em volume encadernado ou

brochado” (LAROUSSE CULTURAL, 1992, p.694)?

Nesse sentido, caso um contribuinte realize a impressão e a encadernação de um livro

jurídico, o mesmo está tranqüilo acerca da incidência da imunidade constitucional em tela.

Mas, se pretende atingir os estudantes de baixo poder aquisitivo, barateando seus produtos,

poderia imprimir o mesmo conteúdo em folhas e apenas grampeá-las e não encardená-las?

Será que estará incluso na hipótese constitucional?

Pela definição anterior, acreditamos que não. Mas, perante a isonomia – e lógica –

constitucional – não há qualquer racionalidade em onerar fiscalmente apenas aqueles produtos

que visam repassar o conteúdo intentado a uma parcela que apenas pode ter acesso a meios de

estudo mais baratos.

Atento a esse desafio, Carrazza elaborou definição distinta. Para ele, “são

considerados ‘livros’ para fins de imunidade tributária, os que se prestam a difundir idéias

informações, conhecimentos, etc.” (CARRAZZA, 2004, p. 720). Ora, assim sendo, a apostila

antedita seria beneficiada!

E, quanto à editora que lança um livro jurídico em dois formatos distintos: impresso e

em CD-ROM? Como poderia a mesma saber previamente quais serão suas obrigações fiscais?

Como poderia se planejar com a precisão e a segurança jurídica que os autores reputam

imprescindíveis? Afinal, nas idéias expostas por Hugo de Brito, “o planejamento empresarial

[...] supõe assim uma possibilidade de previsão objetiva e esta exige, por seu turno, uma

segurança quanto aos elementos que a afetam” (MACHADO,1991, p. 17).

Ocorre que é impossível saber de antemão todas essas implicações tributárias!

Esses debates ora apresentados não se restringem apenas no campo doutrinário.

Também o STF teve que perquirir qual o conteúdo a ser atribuído aos vocábulos presentes no

dispositivo constitucional examinado.

No RE 174.476 (DJ 12/12/1997) discutia-se se era possível a cobrança de ICMS sobre

filmes fotográficos para imagens monocromáticas e papéis fotográficos para fotocomposição

por laser, produtos que são consumidos quando da impressão de jornais.

Nesse caso, contrariando a perspectiva descritiva e exaustiva dos textos normativos, o

STF percebeu a necessidade de se desobstruir os empecilhos fiscais à produção e circulação

de meios de informação. Concebeu a Corte que também os insumos para a impressão

deveriam ser interpretados dentro do dispositivo constitucional. Foi vencido o pressuposto

metodológico liberal esboçado pelo Min. Maurício Corrêa para quem

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o papel que na verdade desses autos se faz referência, vernacularmente não é o papel na sua acepção usual [...] não é papel para a impressão de jornal, mas sim meio técnico para se chegar à impressão [...] fora está, pois, da abrangência da norma específica contida no art. 150, VI ‘d’ da Carta Política (p. 648)

Em outra oportunidade, porém, decidiu o STF pela não incidência de imunidade às

tintas para impressão, ainda que também percebidas como insumo para impressão (RE

265.025 DJ 21/09/2001).

Sobre a mesma questão, o que se interpretar efetivamente como “jornais livros e

periódicos”? Outro ponto derivado da ausência de unanimidade interpretativa com que se

deparou o Supremo. No RE 221.239 (DJ 25/05/2004) e RE 183.403 (DJ 07/11/2000)

prevaleceu o entendimento de que os “álbuns de figurinhas” e também “apostilas” deveriam

ser abrangidos pela imunidade em tela.

Notem como são todas questões que denotam as dúvidas e incertezas interpretativas

acerca das obrigações tributárias derivadas de um texto constitucional aparentemente claro.

Contrárias, portanto, ao objetivo de matematização e previsibilidade das exações.

Diante do desafio interpretativo que apresentou o texto constitucional, o Supremo

Tribunal Federal expediu a súmula 657, na tentativa de pacificar o tema e expressar sua

tendência interpretativa: “A imunidade prevista no art. 150, VI, d da CF abrange os filmes e

papéis fotográficos necessários à publicação de jornais e periódicos.” Pautou-se o Supremo na

idéia de que, caso houvesse a consolidação do Direito em virtude de um entendimento

sumulado, o judiciário estaria resolvendo todos os problemas interpretativos. Afinal, a partir

daí não haveria mais controvérsias acerca das hipóteses de sua incidência!

De se destacar que, mesmo a súmula elaborada pela Corte não conseguirá afastar as

ambigüidades e garantir a segurança comentada. Também seu enunciado será objeto de

interpretação e ensejará incertezas e duplicidades significativas tal qual o texto constitucional,

afinal são ambos objetos a serem interpretados pelo sujeito.

O mesmo pode ser apontado em outras situações. Derzi, em atualização à obra de

Baleeiro questiona-se quando trata das imunidades relativas a instituições de assistência social

(art. 150, VI “c” da CF/88): “mas o que é uma instituição? E uma instituição de assistência

social?” (DERZI: In BALEEIRO, 1998, p.320).

É a mesma problemática enfrentada pelo STF no RE 202.700 (DJ 01/03/2002) em que

a Corte se debruçou sobre a temática da incidência ou não de impostos sobre as entidades de

previdência privada. Estariam as mesmas compreendidas no âmbito da expressão “instituição

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de assistência social” utilizada pela CF/88 em seu art. 150, VI ‘c’? Ou teriam os vocábulos

utilizados pelo constituinte um conteúdo descritivo prévio, capaz de delimitar exaustivamente

quais instituições e obrigações fiscais se situam no plexo jurídico obrigacional a que se refere

o dispositivo aludido?

No caso, mais uma vez o STF preferiu sumular a questão. Segue o enunciado 730: “a

imunidade tributária conferida a instituições de assistência social sem fins lucrativos pelo art.

150, VI, "c", da constituição, somente alcança as entidades fechadas de previdência social

privada se não houver contribuição dos beneficiários.”

E que não venham argumentar que a insatisfação da segurança jurídica reside

unicamente na esfera da concessão de benefícios fiscais. Seguindo a mesma trilha, a recente

decisão do Superior Tribunal de Justiça acerca da legitimidade do recolhimento de

contribuições sociais do SESC e SENAC pelas empresas prestadoras de serviço. Muito

embora a expressão “empresa” fosse antes facilmente entendida como “empresa comercial”, o

STJ percebeu que a práxis jurídico-tributária possibilitava a compreensão de que ali estavam

abrangidas as empresas que fazem comércio, seja de bens, seja de serviços, daí a possibilidade

de sua exação tributária (REsp. 895.87888, DJ 08/08/2007). Ora, mas não seria plausível ao

contribuinte imaginar que, pelo fato de sua empresa ser uma prestadora de “serviços”, ela não

deveria ser obrigada a contribuir com um tributo destinado a “empresas comerciais”? Afinal,

trata-se de duas espécies distintas de empresa! Obviamente que, seguindo o posicionamento

de exaurimento do conteúdo legal nos termos normativos, essa certeza jurídica deveria restar

garantida. Mas mais uma vez as expectativas de uma exatidão milimétrica e antecipada da

matéria tributária foram lançadas ao espaço89!

88 CONTRIBUIÇÕES SESC/SENAC. EMPRESAS PRESTADORAS DE SERVIÇO. A Primeira Seção reiterou o seu entendimento e considerou legítimo o recolhimento das contribuições sociais do SESC e SENAC pelas empresas prestadoras de serviço. A Min. Relatora afirmou que modernamente o conceito de empresa comercial é amplo, devendo, pois, abarcar todas as empresas que fazem comércio, seja de bens, seja de serviços. Assim, a Seção negou provimento ao recurso. Precedentes citados: RESp 431.347-SC, DJ 25/11/2002; REsp 719.146-RS, DJ 2/5/2005; REsp 705.924-RJ, DJ 21/3/2005, e REsp 446.502-RS, DJ 11/4/2005. REsp 895.878-SP, Rel. Min. Eliana Calmon, julgado em 8/8/2007. 89 Muito embora se tenha optado por apontar apenas alguns exemplos elucidativos de como a tentativa de se engessar um conteúdo normativo a determinadas expressões utilizadas em nosso ordenamento jurídico é esvaziada pela pragmática, são vastas as situações com a qual se poderia argumentar. Assim, é possível lembrar também a controversa questão acerca do “direito adquirido”. Muito embora a hermenêutica clássica venha argumentar que a mera determinação constitucional (art. 5, XXXVI da CF/88) de que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito, e a coisa julgada”, o delineamento do que consista referido “direito adquirido” se mostra algo longo da univocidade ansiada pelos tributaristas brasileiros. Sampaio (2005) elenca uma série de possibilidades e correntes envolvendo o instituto jurídico aludido. Entretanto, restringindo a exemplificação, apenas quanto a relação entre os servidores públicos e a Administração, pelo menos três conteúdos distintos podem ser apontados. Assim o sendo, a corrente “contratualista” (SAMPAIO, 2005, p.94 e ss.) compreende que a relação entre servidores e Estado detém as mesmas características de uma relação privada, razão pela qual, assim como ocorre com os direitos trabalhistas, há proteção, pelo direito adquirido, de todos os direitos e deveres que vigoravam quando da inserção do servidor nos quadros públicos. Noutra vertente, a

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É por isso que se afirma. Não há a determinabilidade almejada na utilização dos

termos lingüísticos, ainda que se faça com escopo de construir uma tipicidade fechada. O

alcance dos conteúdos de todo e qualquer termo (dentre os quais aqueles utilizados na

elaboração normativa) nunca será estagnado, nunca terá unanimidade. Não viveremos para

presenciar todas as pessoas concordando absolutamente com o significado de uma palavra ou

de uma legislação, tendo por certo seu âmbito de incidência apenas pela leitura de um

dispositivo legal.

Se assim o é, não apenas a questão patrimonial, compreendida pelos liberais na

previsibilidade supra, é alvejada pela prática tributária. Também a pretensão de um isonomia

formal, outro direito fundamental de primeira dimensão, consubstanciada na identidade de

tratamento perde foco. Afinal, se há tantas variantes para um mesmo texto legal, impossível

determinar fielmente que todos os indivíduos receberão o mesmo conteúdo interpretativo.

Aqui nem se está a tratar da implausibilidade filosófica dos pressupostos das teorias

interpretativas em cheque. Desta análise ocupar-se-á posteriormente. As presentes palavras

buscam apenas demonstrar como a tentativa de representação exaustiva da realidade não é

suficiente para garantir a segurança jurídica e isonomia formal pretendida pelos autores

tributaristas diante do princípio da legalidade e da tipicidade. Se não se pode garantir uma

univocidade de significados, como atingir a certeza e previsibilidade do conteúdo de uma

legislação, e consequentemente, das obrigações tributárias? Como antecipar quais serão os

ônus fiscais da empresa que lançou o livro em CD ROM?

É como Dworkin afirma quando em estudo o “convencionalismo” ou “teorias

semânticas” 90 como técnica de interpretação jurisdicional. Em observação à realidade

americana, Dworkin reúne, nessa corrente interpretativa, as escolas de pensamento que tentam

corrente “unilateralista” (SAMPAIO, 2005, 96 e ss.) argumenta que os direitos e deveres tangentes à relação servidor-Estado são derivados de leis vigentes e elaboradas unilateralmente pelo segundo. Dessa forma, também a alteração de eventuais condições e privilégios também podem ocorrer por meio de um instrumento legal e unilateral. Não fosse bastante, Sampaio (2005, p. 99 e ss.) indica uma terceira corrente “mista”, que incorpora algumas nuances de ambas anteriores. Assim, a corrente mista desconsidera eventual proteção à expectativa de direito, mas protege o direito adquirido, ainda que este ainda não tenha sido usufruído. Entretanto, a mesma corrente admite hipóteses excepcionais de se flexibilizar também o direito adquirido, quando ocorre uma gritante violação à justiça constitucional. Observem como um único instituto possibilita uma variedade de concepções distintas quanto ao seu conteúdo. Mais uma vez, não pode determinar, de antemão, quais serão as repercussões de uma aplicação da proteção ao “direito adquirido”. Tanto o é, que quando do julgamento das ADIN’s 3105 e 3128 (DJ 18/02/2005) referentes à inserção, pela EC 41/2003 da cobrança de contribuições previdenciárias de servidores públicos inativos – temática ligada à legislação fiscal e à relação servidor/Estado – referida proteção ao direito adquirido foi francamente ignorada pelo Supremo Tribunal Federal, permitindo de forma ampla a cobrança das exações correspondentes. Ora, mas caso fosse observado o engessamento dos conteúdos normativos em sede de termos lingüísticos a posição aderida pelo STF não seria a mesma, pois conservaria uma pretensa materialidade antevista pelos contribuintes consistente na impossibilidade de realizar retroações. 90 O autor apresenta uma sutil diferença entre as duas classificações, pouco importante para o presente estudo. (DWORKIN, 2003, p. 144)

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pautar o direito unicamente (!) em uma construção escrita e anterior ao intérprete – no nosso

caso, a lei positivada.

Aponta o autor o argumento a favor do convencionalismo, aproximando sua obra dos

argumentos da tipicidade e previsibilidade tributárias:

O sistema convencionalista é melhor porque a eqüidade requer que o povo seja informado quando seus planos possam ser interrompidos pela intervenção do poder de Estado, privando-o de liberdade, propriedade ou oportunidade. Intervenções desse tipo só se justificam quando as ocasiões de intervenção tiverem sido anunciadas com antecedência, de tal modo que os que ouçam possam saber e entender (DWORKIN, 2003, p.171)

Mas, esclarece Dworkin em comunhão com nossa crítica que “não importa quão

explícitos sejam esses procedimentos convencionais, ou quão escrupulosamente venham a ser

usados, casos vão surgir, como os que usamos em nossos exemplos, nos quais as instruções

serão vistas como obscuras ou incompletas” (DWORKIN, 2003 p. 171-172).

Diante disso é que também não aceitamos a justificativa de que basta a expedição de

outros atos normativos para exaurir eventuais dúvidas que forem surgindo em razão das

legislações ou súmulas anteriores. Isso não é suficiente. Afinal, também quando em confronto

com essa nova legislação, os intérpretes terão diferentes entendimentos acerca da mesma.

Necessitará então de uma terceira lei para esmiuçar ainda mais seu conteúdo. O mesmo

ocorrerá. E assim por diante. É um ciclo infindável.

O que se deve ter em mente é a impossibilidade de o legislador antecipar as diversas

interpretações de uma norma legal, ou ainda os casos concretos que existirão no mundo fático.

Inexiste a faculdade de um texto legal conseguir abranger todas as situações que estão por vir.

Até mesmo porque não consegue o mesmo representar e descrever a realidade a qual se

tentará aplicá-lo.

A única conseqüência concreta que se pode observar dessa compulsão legislativa que

tenta, por meio da utilização de inúmeros atos legislativos, exaurir por completo o conteúdo

das normas, é a inflação legislativa que hoje contamina, principalmente, o Direito Tributário.

A quantidade de leis, portarias, decretos, etc., ao invés de possibilitar um maior

conhecimento do conteúdo das normas tributárias e garantir seu conhecimento por parte dos

contribuintes para que os mesmos possam gozar da previsibilidade tão enaltecida, apenas

dificulta sua compreensão por parte de profissionais e demais particulares. Distancia nosso

sistema jurídico ainda mais da univocidade e da segurança jurídica pleiteada.

Alfredo Becker, dissertando acerca desse “manicômio tributário” ressalta que

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A lei é promulgada e ambos os Ministérios supõem que o problema foi resolvido e que a unanimidade e a harmonia na interpretação da lei fiscal entre os dois Ministérios permanecerão. Pura ilusão. Em todos os tempos e em todos os Estados os Ministros sempre tardam muito em baixar do plano olímpico das abstrações, em descer dos problemas abstratos e das soluções abstratas. E quando, passados muitos meses ou anos, finalmente seus pés tocam a terra dos homens, ficam perplexos e irritados ao verem que o antigo problema continua insolúvel e que aquela perfeita solução abstrata é um novo perfeito problema concreto. (BECKER, 1999, p.15) (grifos nossos).

Resta concluir, dessa forma, a pouca eficácia que a tipicidade fechada, e a busca por

um exaurimento legislativo, face o objetivo de segurança jurídica e previsibilidade das

obrigações fiscais. Os direitos fundamentais de primeira geração, instrumentalizada nesses

pressupostos, permanecem distantes com tal postura hermenêutica. Será, porém, que a

descrição legislativa logra as propostas decorrentes das demais dimensões de direitos

fundamentais?

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CAPÍTULO V – OS DIREITOS DE SEGUNDA DIMENSÃO E A TR IBUTAÇÃO

5.1 O Estado e os direitos sociais

Não obstante a estruturação social da sociedade burguesa – propícia e propulsora da

então iminente Revolução Industrial – parecesse correta, a concretização no mundo empírico

não se deu da maneira ansiada, acarretando a destruição dos próprios pilares do liberalismo.

Dessa forma, a inércia estatal, ao invés de possibilitar a livre concorrência e autonomia

individual/empresária tal qual deveria, acabou por ocasionar uma dominação do mercado pelo

poder do capital91. Em detrimento da liberdade concorrencial e consumerista, trustes,

holdings, cartéis e monopólios desestabilizavam e enfraqueciam as condições e existência de

empregos. As condições fáticas esboçadas pelo papel isolado da autonomia da vontade

resultaram na própria limitação da liberdade individual.

Não se pode negar que se tratou de período de intensa produção e acumulação de

riquezas. Entretanto, como os cidadãos partiam de pontos iniciais distintos não tinham a

possibilidade de competirem ou perquirirem seus direitos de maneira equivalente – a

igualdade formal implicava na exata igualdade de tratamento entre o grande industrial e o

proletariado, p.e. Por conseguinte, o cenário resultante do sistema liberal-capitalista foi uma

sociedade de intensa exploração da mão de obra – caracterizada pelas excessivas jornadas e

exploração infantil – desemprego, degradação social, miséria e exclusão. “A materialização

resulta do fato de que ‘a liberdade de direito, portanto, a permissão jurídica para fazer ou

deixar de fazer algo não possui nenhum valor sem a liberdade de fato, ou seja sem a

possibilidade de escolher entre aquilo que é permitido...” (HABERMAS, 2003b, p. 140)

Crítico dessa forma de estruturação social, Godoi (1999, p. 211) conclui que um

sistema jurídico como o apresentado, que impossibilita a todos os indivíduos uma igualdade

concreta de perseguir seus projetos e aspirações pessoais, não é um sistema jurídico legítimo.

Nesses casos, é obrigação do Estado se utilizar de instrumentos modificadores das

arbitrariedades privadas e desigualdades provocadas.

91 “A concepção de um liberalismo atomista, de liberdade do indivíduo no âmbito do mercado, veio a ser desmentida pela realidade histórica. A partir de meados do século XIX o capitalismo se transforma. As unidades se unem, formando grupos, dando origem ao novo Estado industrial. Com os grupos econômicos surgem os primeiros questionamentos sobre a plena liberdade de comércio.” (LEOPOLDINO DA FONSECA, 2004 p. 257).

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Ainda que cientes de que as palavras proferidas por Fidel Castro têm por referência a

conduta norte-americana em outro momento histórico, poder-se-ia facilmente compreendê-las

como ilustração da crítica que o Estado social direciona ao seu modelo precedente: “nunca lhe

importou a miséria, a ignorância, a insalubridade, a falta de escolas, de hospitais, de serviços

médicos, nunca lhe importou, realmente, o desemprego...” (tradução nossa)92

(CASTRO,1985, p.06).

É única a conclusão de Magalhães:

esse liberalismo utópico do século XVIII, que afirma a neutralidade do Poder Público diante dos problemas sociais, conduziu os povos livres a um capitalismo absorvente, desumano e escravizador. A sociedade fica reduzida a uma comunidade de cidadãos teoricamente livres e materialmente escravizados (MAGALHAES, 2002 p.131)

Em que pese a crítica ao modelo liberal ser mais enfática no início de século XX, não

se pode deixar de reconhecer alguns autores que, desde o século XVIII, previam a ineficácia

dessa forma de pensar a abstenção estatal.

Ainda que ordinariamente classificado como um pensador liberal em razão de

contemporaneidade ao século das luzes, Rousseau já lançava lampejos de insatisfação perante

a escravidão do modelo capitalista burguês. Também não concebia a idéia de um homem que

bastasse em si mesmo, enclausurado em sua própria racionalidade tal qual apregoado à época.

Bonavides chega a caracterizar este filósofo genebriano como uma “arma de combate (que)

constitui o primeiro incentivo à grande rebelião anticapitalista do século XX” (BONAVIDES,

1993 p. 165) (acréscimo nosso).

A corroborar a assertiva do constitucionalista, na obra rousseauniana “Contrato

social”, o filósofo expressa todo seu receio acerca da igualdade formal burguesa: “Sob os

maus governos esta igualdade é só ilusória e aparente, e não serve senão para manter o pobre

na sua miséria e o rico na sua usurpação” (ROUSSEAU, 1970, p. 57).

E, mais adiante, prossegue em sua crítica à exacerbação da autonomia individual e

acumulação de riquezas excessivas, percebendo a necessidade de provimento de condições

mínimas aos cidadãos, até mesmo para a sobrevivência da democracia: “...e quanto à riqueza,

que nenhum cidadão seja bastante opulento para poder comprar o outro, e nenhum tão

paupérrimo para necessitar vender-se.” (ROUSSEAU, 1970 p. 88).

92 No original:“nunca le importó la miseria, la ignorancia, la insalubridad, la falta de escuelas, de hospitales, de servicios médicos, nunca le importo, realmente, el desempleo...”

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Se surpreende a quase profetização da falácia liberal por parte de Rousseau – que não

presenciou as conseqüências devastadoras do capitalismo burguês –, com o aparecimento dos

primeiros sinais de esgotamento da perspectiva liberal, várias foram as movimentações

ideológicas em torno de uma nova visão de sociedade.

Anarquistas, socialismo utópico93 ou socialismo cristão (encíclica Rerum novarum do

Papa Leão XIII em 1891), não faltavam críticas ao modelo vigente cujas conseqüências

feriam os olhos dos observadores.

Multiplicam-se os defensores das reformas e surgem os que vislumbravam a possibilidade de um mundo diferente para melhor. Melhor porque todos os homens seriam iguais, sem exploração e sem opressão de uns sobre os outros, baseada que seria na solidariedade ou no cooperativismo e não no individualismo ou na propriedade privada. Eram os que viriam a ser chamados por Marx (2001) e Engels (1985) socialistas utópicos. (SAMPAIO, 2004 p. 212)

Com efeito, impossível percorrer o surgimento das idéias sociais sem mencionarmos o

nome de Karl Marx, pensador que vivenciou pessoalmente as mazelas geradas pela Revolução

Industrial na Inglaterra (BARBER, 1976, p. 120-121).

Com maior “dimensão de realidade” (para o momento político do século XIX) acerca

do fenômeno social, Marx defendia que o capitalismo seria seu próprio algoz, uma vez

inevitável a insustentabilidade do quadro que criaria, e de fato criou. Não contava o autor,

porém, com a dinamicidade e alta capacidade de adaptação que o sistema por ele combatido

acabou por apresentar.

De toda forma, este revolucionário pensador dicotomizou os conflitos que, de certa

maneira, refletiam o exacerbado fosso social, resumindo sua análise em um embate de classes.

Contemporaneamente a essas idéias, o crescimento de movimentos operários e de

camponeses famintos exigindo garantias de direitos mínimos, conjugados com a

universalização do sufrágio, inflaram os ânimos sociais e impulsionaram uma reviravolta no

quadro dos direitos fundamentais.

93 “O socialismo utópico, de pensadores como Charles Fourier, Robert Owen e Louis Blanc, também questionavam o liberalismo, considerando-o incapaz de resolver a questão social, mas não propunha, como solução, que os proletários tomassem o poder pela força, parecendo acreditar na possibilidade de convencimento da burguesia da necessidade de promoção de reformas sociais, esta corrente, apesar do seu idealismo algo inocente, desempenhou um papel relevantíssimo na criação do Direito do Trabalho. Já a doutrina social da Igreja, embora discordando radicalmente da idéia marxista de luta de classes, abria-se para a questão operária, defendendo instituição de direitos mínimos para o trabalhador” (SARMENTO, 2004 p. 386-387).

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É importante, porém, destacar que essa nova gama de conquistas não significou a

negação do capitalismo ou mesmo dos direitos individuais consagrados pelos liberais. Refuta-

se essa possibilidade pela assertiva contrária.

Em realidade, a modificação no quadro político e sócio-econômico representou a

adoção de uma via capaz de sustentar e revigorar um sistema que já apresentava sinais de

exaustão. Dessa forma, a atenuação do individualismo presente, seja nos direitos

fundamentais, seja na condução econômica, foi uma tentativa bem sucedida de sobrevida ao

capitalismo, que diante da Revolução Russa de 1917 percebeu-se ameaçado de extinção. Não

houve a sucumbência do Estado liberal entre as demandas sociais, e sim sua transmutação em

Estado social!

Tal interligação se mostra tão expressiva que, a título de exemplo, a primeira

legislação de conteúdo intervencionista se deu com o desiderato de garantia dos ideais liberais

de concorrência (Lei Sherman/1890).

Este raciocínio se estende a todos os direitos sociais perante aqueles de primeira

geração/dimensão, o que reforça nosso pensamento acerca da indivisibilidade94 dos direitos

fundamentais. Afinal,

... para que realmente os direitos individuais pudessem ser usufruídos, deveriam ser garantidos os meios para que isso fosse possível. Dessa forma, se o liberalismo proclama a liberdade de expressão e de consciência, deve toda a população ter acesso ao direito social à educação, para formar livremente sua consciência política, filosófica e religiosa [...] Portanto, os direitos sociais aparecem como mecanismo de realização dos direitos individuais de toda a população. (MAGALHAES, 2002 p. 46)

Desponta o surgimento, então, de um novo conjunto de direitos que vêm

complementar a geração anterior e impor uma reconstrução de seus conteúdos. Se antes eram

encontrados direitos de titularidade meramente individual, novas garantias pertencentes a toda

a coletividade passam a residir nesta esfera de direitos. A partir de então não apenas o cidadão

isolado poderia demandar alguma postura de outrem, mas também os grupos sociais veriam

seus interesses garantidos.

Isso significa que, diante da ineficácia da abstenção estatal, este percebeu que não

mais poderia quedar inerte. Passaria o Estado a garantir uma série de prestações positivas com

intuito de suprir as necessidades vitais básicas que o sistema burguês não logrou êxito. Não

94 “Assim, com o passar do tempo foi se consolidando a convicção de que, até para o efetivo desfrute dos direitos individuais (liberdade negativas) era necessário garantir condições mínimas de existência para cada ser humano (liberdades positivas)” (SARMENTO: 2004 p. 387)

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mais poderia manter sua anterior posição de “um simples árbitro das competições econômicas

destinada a garantir aos vencedores os frutos de uma luta socialmente desigual” (GRAU,

2000, p. 21).

É interessante como este engrandecimento das funções e importância estatal Estado é

refletido e embasado nas doutrinas filosóficas que começavam a despontar.

Muito embora Georg W. Friedrich Hegel tenha vivido nos anos em que a construção

filosófica dos Estados liberais burgueses mais ganhava força no Velho Mundo (1770-1831), o

desenvolvimento de suas teorias e de sua concepção de Estado são amostras de um

pensamento que iria se coroar justamente no Estado Social, algumas décadas à frente – mais

uma comprovação de que os momentos paradigmáticos não se desenrolam de forma estanque

e perfeitamente pontuada no tempo-espaço.

Contemporâneo à racionalidade exacerbada pela filosofia da consciência, Hegel não

abandona a razão prática kantiana intimamente ligada aos ideais liberais vistos no capítulo

antecedente, nem mesmo se desvencilha do ideal de um Direito consubstanciado nas normas

legais e positivadas (HEGEL,1997, p.183 e ss.)

Todavia, ainda que conservando tais elementos do constitucionalismo burguês, este

filósofo alemão constrói seus pensamentos de forma a se opor, frontalmente, à relação

cidadão/Estado apresentada no constitucionalismo liberal. Nessa toada, Hegel tenta realizar

um giro na dialética existente entre as esferas pública e privada, fazendo com que o Estado

deixe de ser mero elemento de garantia da individualidade, para que esta se torne subordinada

à consagração dos interesses públicos. Este é o ponto que mais o traz em ligação com a

caracterização do paradigma social em estudo.

A posição anteriormente esboçada pelos teóricos burgueses de mera observância dos

anseios particulares não conseguia explicar, em sua visão, a complexidade das relações

sociais constatadas na interação existente entre os indivíduos situados dentro de um corpo

coletivo. Daí o autor classificar a prevalência dos interesses individuais como uma postura

“autodestrutiva” da liberdade tão clamada pelos revolucionários franceses (PADUANI, 2005,

p. 77). Não se pode afirmar que Hegel se equivocara em seu prognóstico. Conforme

desenvolvido supra, de fato, a exaltação ilimitada da autonomia e interesses individuais,

conjugada com a inércia estatal culminaram em uma realidade que, não obstante tenha a

liberdade garantida como direito absoluto, as condições fáticas determinavam seu próprio

estrangulamento, em uma direta negação aos princípios do liberalismo – vide a liberdade de

concorrência e a liberdade contratual entre patrões e empregados, ambas reduzidas a um jogo

de força cujo o detentor de maiores recursos dita as regras.

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Diante desse quadro de decadência da organização jurídica e estatal, Hegel percorreu

caminho bem diverso de seus contemporâneos. Assim, ele inverte a ordem de prioridades

dentro das esferas de interesses públicos e privados, colocando os primeiros com uma

premência necessária para a sobrevivência não apenas da instituição estatal, mas também para

a própria satisfação do particular, agora compreendido como membro de um

universo/grupamento maior e transcendente à sua individualidade:

Hegel contrapõe a uma concepção privatística do direito uma concepção pública, a uma teoria do direito como princípio de organização. E cumpre este passo adiante na elaboração do sistema jurídico precisamente porque se dá conta da insuficiência de uma imagem do direito extraída das relações de direito privado para representar a complexidade do Estado moderno (BOBBIO, 1991, p.91)

Neste novo cenário de supremacia do interesse público sobre o privado (qualquer

semelhança com os princípios administrativos não é mera coincidência), o Estado Social,

aqui antevisto nas idéias de Hegel, ganha novo destaque. Ele deixa de ser um apêndice às

relações privadas, para se tornar o foco do interesse e preocupação do Direito.

Isso porque, para Hegel, o Estado não é um simples agrupamento de indivíduos, mas

algo superior à soma de vários elementos antes isolados, anterior e superior a eles, e portanto,

identificado como a representação de uma eticidade universal95. Tanto o é, que tanto Estado

como Constituição devem, para ele, representar o conjunto de costumes, valores, ideais e

particularidades de seu povo respectivo.

Ora, mas se para o autor o Estado passa a ser o centro gravitacional a partir do qual

todos os demais interesses deveriam convergir, começa a se tornar fácil o entendimento da

idéia de sacrifício dos direitos e anseios particulares em benefício de uma articulação pública,

afinal, o ente público passa a ser ao mesmo tempo, fundamento e fim, para qual convergem

todas as vontades. Sua afirmação da prevalência do público sobre o privado se inflama ao

ponto de afirmar que, caso não seja observada tal supremacia, será constatado o próprio

desaparecimento do Estado96.

95 Salgado faz estudo minucioso acerca do filósofo alemão, e leciona que “o Estado é, então, o momento de superação (Aufhebung) da sociedade civil, superior, enquanto a sociedade civil permanece imersa no confronto das necessidades econômicas em que prevalece o interesse particular de cada um , o Estado organiza-se como realização da liberdade, fim supremo de cada um. Desse modo, não pode ser compreendido como organização destinada a garantir a ‘propriedade e liberdade pessoal’. Essa é a liberdade como pessoal no nível simplesmente do direito abstrato, ou a liberdade como livre-arbítrio a todos reconhecida na sociedade civil e anteriormente, no Estado de direito. Entretanto,no Espírito objetivo, o indivíduo só tem ‘objetividade, verdade e moralidade’, só é indivíduo livre e real na medida em que participe do Estado, considerado como seu fim e destino, a que todas as demais satisfações individuais se subordinam” (SALGADO, 1996, p.400) 96 Por óbvio, Hegel não discursa por uma sufocação completa dos interesses individuais. Seu argumento caminha por uma trilha diversa. Ele reconhece a liberdade particular – e até lhe dá bastante crédito – mas afirma que

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Quando a organização política perde a natureza pela qual é o fim supremo a que se subordinam todas as particularidades e interesses individuais ou quando o Estado de fim passa a ser meio para as satisfações desses interesses, nas suas relações empíricas, então não há mais Estado [...] não é mais um Estado a organização em que o interesse particular ou os privilégios se consagram ou predominam sobre o interesse comum e sobre os direitos de igualdade inscritos no racional fundamento da humanidade (SALGADO, 1996, 403) (grifos nossos)

Reparem como que, com isso, os direitos materiais que antes estavam garantidos de

forma absoluta no constitucionalismo anterior passam a sofrer revisão. A defesa da liberdade

e propriedade, por exemplo, antes na base do pensamento burguês, passam a ter sentido

unicamente se adequadas às finalidades do interesse público. Não é problemática a relação

desta teoria com a idéia de função social da propriedade. Ao bem da verdade, é exatamente

essa a pregação da observância da utilização da propriedade com vistas ao contexto público e

social.

Outro ponto da tributação do Estado social que se coaduna com o pensamento

hegeliano é a observância de uma capacidade contributiva material. Ainda que representando

uma diminuição no patrimônio particular (antes inadmissível!), a exação tributária torna-se

legítima, desde que fundamentada na satisfação dos interesses públicos, p.e., a igualdade

substancial. Afinal, a plenitude da propriedade privada e a consagração da liberdade somente

conseguem ser verificadas caso os interesses privados se mostrem condizentes com a

observância dos interesses do Estado!

Mas não apenas! Com a maximização do Estado, que agora deveria suprir todas as

demandas sociais, antes ignoradas pelo constitucionalismo liberal, a atividade prestacional

pública atingiu seu ápice. E, com isso, o espaço que o interesse público ocupou dentro do jogo

social, o que por sua vez significou um inchaço ainda maior da máquina estatal!

Observem como Bonavides leciona de forma elucidativa e detalhada o

engrandecimento do papel do Estado no que tange sua relação com a sociedade antes

absoluta:

apenas quando o cidadão age em conformidade e em atenção às finalidades de “algo maior” ele consegue atingir plenamente tal liberdade. Assim, ele tenta conjugar as esferas pública e privada, para que, com a supremacia da primeira, seja a segunda, indiretamente, alcançada. Em suas palavras: “Na verdade, não deve o interesse particular ser menosprezado e suprimido, mas sim, conservado em harmonia com o interesse geral para que, assim, um e outro sejam assegurados. O indivíduo que está subordinado pelos deveres, no cumprimento deles como cidadão obtém a proteção de sua pessoa e da sua propriedade, o respeito pelo seu bem particular e a satisfação da sua essência substancial, a consciência e o orgulho de ser membro do conjunto”. (HEGEL, 1997, p.213).

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... quando o Estado, coagido pela pressão das massas, pelas reivindicações que a impaciência pelo quarto estado faz ao poder político, confere, no Estado constitucional ou fora deste os direitos do trabalho, da previdência, da educação, intervém na economia como distribuidor, dita o salário, manipula a moeda, regula os preços, combate o desemprego, protege os enfermos, dá ao trabalhador e ao burocrata a casa própria, controla as profissões, compra a produção, financia as exportações, concede crédito, institui comissões de abastecimento, provê necessidades individuais, enfrenta crises econômicas, coloca na sociedade todas as classes na mais estreita dependência de seu poderio econômico, político e social, em suma, estende sua influência a quase todos os domínios que dantes pertenciam, em grande parte, à área de iniciativa individual, pode o Estado, com justiça receber a denominação de Estado social97 (BONAVIDES, 1993 p. 182).

Os textos constitucionais tidos como precursores de previsão dos direitos sociais98 se

materializam na Constituição Mexicana de 1917 – com forte influência do pensamento

anarquista de Bakunin – e a Constituição de Weimar de 1919.

Essa última, com maior projeção em relação à primeira, era extremamente incisiva na

mudança de postura. Seu artigo 153 prescrevia que a “propriedade obriga”, impondo assim,

uma preocupação social com a coletividade na fruição dos direitos individuais. Esses direitos

antes tidos por absolutos na esfera individual, tal qual a propriedade, não mais poderiam ser

gozados sem a preocupação e adequação com seu contexto social. É o mesmo entendimento

trabalhado por Hegel.

Inseridos nesse conjunto de “inovações” sociais, dois merecem destaque.

Intimamente ligada à noção de função social da propriedade mencionada na

Constituição alemã de Weimar, a igualdade entre os cidadãos sofreu significativa

reformulação. Se anteriormente bastava a igualdade aritmética, os direitos sociais irão

vislumbrar os indivíduos preocupados com suas diferenças. É o velho brocardo jurídico

“tratar os iguais como iguais e os desiguais como desiguais”.

Para efetivar a igualdade tal qual propalada, cabia ao Estado – e também à sociedade,

embora tal construção não estivesse à época bem definida – o fornecimento de instrumentos

capazes de possibilitar a manutenção das condições básicas da vida humana.

Passa a imperar uma busca por uma igualdade substancial, em que o tratamento

equivalente entre pessoas distintas é objeto de uma profunda revisão material. A concepção de

97 Justamente em razão desta gama de direitos que agora passam a pertencer à esfera estatal, surgem, permeando as constituições sociais,teorias de fundamentação duvidosa que ainda hoje habitam as discussões jurídicas, tais como “reserva do possível”, ou mesmo normas constitucionais de “eficácia diferida”, ou “normas constitucionais programáticas”. 98 Cumpre referenciar, entretanto, a posição de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, para quem “ o principal documento da evolução dos direitos econômicos e sociais foi a Constituição francesa de 1848” (FERREIRA FILHO, 1999 p. 45). Ocorre que, não obstante a modificação do cenário liberal para o social tenha se dado de forma gradual – já afirmamos a historicidade que os direitos fundamentais carregam consigo – costuma-se pontuar cronologicamente a I Guerra Mundial juntamente com a crise da Bolsa de Valores de Nova York em 1929, como símbolos da derrocada do sistema liberal e o aparecimento de constituições sociais.

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isonomia abandona a equivalência de tratamentos, e se foca no resultado final, momento em

que a igualdade deveria efetivamente ser alcançada. É onde o Estado passa a atuar de forma

ativa da alteração dos quadros sociais através de uma atuação assistencial e paternalista na

prestação de serviços públicos (saúde, educação, etc).

Paralela à ilação acima é a posição de Comparato, que ao comentar a Constituição de

Weimar pós-guerra defere à mesma “uma orientação determinada na política de investimentos

e de distribuição de bens; o que implica uma intervenção estatal no livre jogo do mercado e

uma redistribuição de renda pela via tributária” (COMPARATO, 2001 p. 200) (grifos nossos).

Noutro ponto, cumpre ressaltar a nova postura de participação ativa do Estado no

desenvolvimento econômico.

Conforme já tratado anteriormente, a concepção de liberalização econômica, apoiada

na crença da auto-regulação do mercado e da economia e consubstanciada no laissez-faire

laissez-passer não alcançou o êxito pretendido. Seu fracasso não se ateve unicamente no

campo econômico, uma vez suas conseqüências irradiarem para o colapso social em que

adentrou a Europa e América no século XIX.

Por conseguinte, passou-se a perceber a importância que o aspecto econômico de uma

sociedade apresentava para a concretização dos direitos fundamentais. Não mais era

admissível a postura de coadjuvante estatal. A entidade pública deveria assumir a

responsabilidade de atuar no mercado econômico com fulcro de não permitir o abuso do

poder financeiro e o conseqüente desvirtuamento dos direitos fundamentais tal qual se dera no

lapso temporal liberal.

Garantidor da ordem econômica, o Estado – não confundir com monopólio econômico

estatal, este caracterizador dos Estados socialistas – alcança papel de concretização dos

direitos previstos, e também modificação da realidade posta99.

Nesse contexto, emerge o pensamento keynesiano, promessa de modificação no

cenário sócio-econômico com uma atuação responsável do Estado. Tendo como pano de

fundo uma caótica Europa entre Guerras, Keynes se esforçou em se afastar das radicais

críticas marxistas acerca dos desacertos capitalistas. Segundo ele, o núcleo central do sistema

capitalista poderia facilmente ser preservado. Mas para isso, deveria o Estado largar sua

99 Dando uma guinada no pensamento econômico, Keynes volta à doutrina mercantilista de acumulação de capital. É mérito seu a introdução de novos elementos para o cálculo das taxas de juros, como p.e. a especulação, facilmente detectável na atual economia. Keynes se preocupava com a estabilidade econômica a curto prazo, utilizando-se do jargão “a longo prazo todos morreremos”. Justamente por isso, conjugado com sua preocupação com a poupança, taxa de juros e especulação, esse notório economista não concebia a inércia estatal quanto a econômica nos termos defendidos pelos liberais.

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posição distante da realidade do mercado, uma vez a desregulamentação ser contrária à

empregabilidade e estabilidade da economia100.

Sua crítica ao “laissez faire” se pautava no argumento de que um mercado

desregulado era inevitavelmente instável. A abstenção estatal não apenas deixava de trazer

benefícios, mas poderia ser entendida como um vício social. Keynes, percebendo a

importância dos tributos extra-fiscais no andamento da economia, chegou a afirmar que

diante de flutuações, “os remédios da política fiscal seriam mais eficientes que os da política

monetária” (BARBER,1979, p.224).

A presença da figura pública no cenário econômico para a geração do

desenvolvimento financeiro e social foi de importância ainda maior em países de

desenvolvimento tardio que, pela sua própria condição retardatária, necessitavam de um

maior auxílio estatal para a contenção das externalidades econômicas. A Itália, denotadora de

uma progressão econômica recente, percebeu, após a II Guerra, a necessidade de criar, em

1956, o “Ministério da Participação Estatal”, responsável por realizar um controle direto

sobre o mercado privado, a política governamental e as empresas públicas. Seguindo a

mesma “fórmula interventiva” foi criado, ainda, o “Instituto de Reconstrução Industrial”,

além de outros entes ligados ao incentivo de setores específicos da economia.

Os resultados? Deixamos para Souza (1999, p.74) constatar: “o valor da produção

industrial triplicou entre 1938 e 1961, sendo que ela duplicou somente nos anos de 1950. a

causa desse rápido crescimento, conhecido como milagre italiano, deveu-se ao Plano

Marshall e à participação do Estado na economia”.

Da mesma forma, é possível situar a economia brasileira em um cenário de

desenvolvimento retardatário, o que demonstra como as argumentações ora realizadas não se

restringem às latitudes acima da linha do Equador.

Até a ascensão do governo Vargas, no início do século XX, a postura governamental

brasileira seguiu, predominantemente, a visão liberal, mantendo-se timidamente distante da

regulação econômica (RIANI, 1997, p. 42). Entretanto, com o caminhar da década de 1920

para 1930, em combate com as conseqüências da queda da Bolsa norte-americana em 1929, o

100 “Keynes já se tinha dirigido a essa conclusão em meados da década de 20, com o reconhecimento de que o laissez faire convencional era inadequado aos problemas crescentemente complexos das sociedades industrializadas [...] sua educação profissional tinha-lhe ensinado a respeitar as forças analíticas do neoclassicismo e advertira-o quanto às fontes de seu poder de permanência. Como estrutura lógica elegante, o neoclassicismo apresentava um encanto indubitável; não obstante, o sistema neoclásico (que, na Teoria Geral, ele chamou de ‘teoria clássica’ representava ‘a maneira em que gostaríamos que a Economia se comportasse. Mas supor que ela realmente faz isso é supor que nossas dificuldades desapareceram’ [...] sua argumentação buscava mostrar que um sistema de mercado não-regulado tendia a ser cronicamente instável e incapaz de garantir a plena utilização dos recursos produtivos. ” (BARBER, 1979, p. 220; 239).

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Estado passou a atenuar a frieza das regras econômicas, comprando o café produzido para

posteriormente queimá-lo e assim manter a estabilidade de renda no sistema econômico

(SOUZA, 1999, p.380). Muito embora a postura visualmente diminuta, a intervenção do

Estado frente a crise ensaiada no período despertou seu interesse de forma determinante para

o desenvolvimento da industrialização brasileira e sua diversificação econômica.

Dois episódios, porém, marcaram o envolvimento mais direto do governo na economia nesse período. O primeiro refere-se à criação do Conselho Federal do Comércio Exterior, composto das principais expressões econômicas da época que procuravam traçar medidas de políticas econômicas visando à intensificação do comércio exterior e ao desenvolvimento industrial do país. O segundo episódio que marca definitivamente a intervenção ou a participação direta do governo na economia foi a criação da Cia. Siderúrgica Nacional. [...] Esse processo de intervenção teve seu ponto máximo de envolvimento após a revolução de 1964. Dentro do modelo implantado, o Estado passa a exercer um papel-chave dentro do processo de crescimento. Ele se torna a mola propulsora do crescimento (RIANI, 1997, p. 43-44) (grifos nossos)

Conforme visto nas linhas antecedentes, a aparição do Estado pode ser compreendida

como uma intervenção no domínio econômico em combate aos abusos e distorções do sistema

capitalista desregulado. Entretanto, sua eficácia não reside neste único aspecto.

Outra postura estatal determinante na modificação do status quo é a possibilidade de

conduzir ou conformar posturas privadas capazes de resultar em uma otimização dos direitos

sociais. Ou seja, através de instrumentos de caráter nitidamente econômicos, o Estado

consegue modificar os comportamentos dos cidadãos para que estes auxiliem na efetivação de

direitos fundamentais. A soberania estatal e seu aparato coercitivo podem ser alocados no

direcionamento das próprias atitudes dos administrados.

Nessa toada, é exemplo a imunidade tributária concedida a instituições de assistência

social que auxiliam na tarefa de concretização de direitos como educação, saúde, alimentação,

lazer, dentre outros. Nesses casos, há o incentivo e a facilitação àqueles que querem atuar em

conjunto com o poder público na prestação de serviços sociais conquistados pelo

constitucionalismo no início do século XX.

No plano do atual sistema jurídico brasileiro, lê-se na Constituição de 1988:

Art. 174- Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. § 1º A lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento.

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No que tange à matéria em análise, o constituinte, ao prever a possibilidade de

intervenção pública com escopos de maior desenvolvimento, se demonstra alinhado com o

próprio cenário internacional, conforme bem ressalta Clark:

O Direito ao Desenvolvimento, que faz parte dos Direito Humanos dos Povos, é determinado pela carta de Direitos e Deveres dos Estados da ONU (Resolução n. 45.111, editada em 1972), que aponta o direito das nações em desenvolvimento, ou melhor, do Terceiro Mundo, de se desenvolverem – respeitadas suas soberanias – por meio de intervenções no domínio econômico e social, além de receberem ajuda internacional das nações desenvolvidas. (CLARK, 2001 p. 198)

Se foi possível a remissão a Hegel para exemplificar as razões jusfilosóficas que

impulsionaram o agigantamento de uma Administração Pública prestacional caracterizadora

do Estado social, também no campo hermenêutico pode-se destacar o desenvolvimento de

obras que visavam modificar a forma de perceber e interpretar o Direito no anseio de melhor

adeqüá-lo às nuances do Estado social que estava a surgir.

Situado nesta gama, Carl Schmitt elaborou sua teoria do Estado calcado em certa

continuidade dos ensinamentos hegelianos, principalmente no papel preponderante que aquele

detinha junto à relação público/privado. Assim como Hegel, Schmitt parte da crítica à

concepção burguesa de um ente estatal subserviente às vontades particulares, e por isso,

excessivamente controlado pela sociedade. A visão de uma obediência cega e respeito

absoluto a direitos subjetivos individuais tal qual outrora trabalhado serviria unicamente para

a manutenção do status quo, em detrimento do fortalecimento de um Estado capaz de

efetivar direitos e garantias a um leque muito maior de administrados.

Partindo dessa premissa, Schmitt se encontra no refluxo ao formalismo jurídico-

positivista. Para ele, o grande mal que adentrava nas raízes da hermenêutica formalista

desenvolvida pelo Estado burguês era a possibilidade de se legitimar qualquer espécie de

conduta ou conteúdo, desde que observado o rito de elaboração normativa. Conforme lembra

Bonavides (1996, p. 46 e ss.), é de se imaginar o absurdo que essa técnica interpretativa abre

ao se criar a possibilidade de se afirmar que uma legislação que se consubstancia em um

golpe de Estado possa ser, por razões formais, “estritamente legal”!

O distanciamento da realidade que marcava a forma de pensar o Direito positivado

implicava diretamente uma despreocupação com a “qualidade normativa”, noutros termos,

com a substancialidade, o conteúdo das leis que vinham a compor o ordenamento jurídico.

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Em busca de uma solução para esse impasse dentro da teoria jurídica vigente, Schmitt

identificou a necessidade de se incrementar as normas legais de um elemento político, ligado

à representação da vontade material do Estado.

Schmitt critica o formalismo que caracteriza a concepção liberal de lei e propõe uma concepção política de lei. A concepção formal de lei é definida por Schmitt como um acordo dos órgãos legislativos competentes, dentro do procedimento legislativo prescrito. A compreensão da lei, entretanto, não poderia ser reduzida a essa concepção formal, principalmente porque possibilitaria ao legislador realizar tudo através da lei, mesmo que em afronta aos princípios do Estado de Direito [...] A concepção política de lei, em contraste com o Estado de Direito burguês, resulta da forma de existência política do Estado e de uma conformação concreta da organização do domínio. (BARACHO JUNIOR, 1999, 76)

Mas o desenvolvimento da hermenêutica política de Schmitt não se encerra na mera

repulsa ao formalismo jurídico. Extremamente conveniente para a existência de um ente

estatal massivo e presente tal qual o Social, o autor identifica uma prevalência absoluta do

Poder Executivo nas relações entre poderes, bem como na condução das interpretações

legislativas e constitucionais.

De forma similar à visão hegeliana, o constitucionalista alemão se mostra tendente a

identificar o Estado como um organismo representativo da homogeneidade dos valores sociais

vigentes em sua respectiva base populacional. A partir daí, ele passa a se perguntar quem tem

condições para tornar concretos os anseios e vontades da sociedade.

O Legislativo, apesar de ser a imediata fonte representativa da vontade popular, se

mostrava demasiadamente preso a interesses econômicos e partidários, uma vez o jogo

político significar, na prática, a representação de um grupo ou associação que elegeu seu

parlamentar respectivo.

Noutro lado, o Judiciário, “está submetido a determinações formais preexistentes,

quais sejam, a Constituição formal e a lei” (BARACHO JUNIOR, 1999, p.80).

Assim sendo, caberia ao chefe do Executivo a guarda e defesa do Estado

constitucional. Ao contrário dos demais poderes, o Executivo seria o único realmente

independente e alheio aos jogos e influências externas. Além do mais, em virtude do seu papel

de representante da unidade nacional e da homogeneidade social, ele é o único habilitado a

identificar, com precisão, qual a vontade popular a ser sanada pelo Estado.

Munido dessas idéias, e partindo da cisão entre Constituição formal (escrita) e material

(substantiva) – próxima à dualidade platônica ideal/real (CRUZ, 2004, p.108) – Schmitt

elabora entendimento no sentido de que, muito embora haja um texto constitucional

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positivado, apenas o Füher, o chefe do Poder Executivo é legitimado para afirmar qual o

conteúdo a ser interpretado do texto, e assim, determinar o sentido da Constituição material.

Noutros termos, apenas o chefe Executivo detinha o poder interpretativo da Constituição, e,

por conseguinte, a determinação do conteúdo da mesma residia em sua única vontade!

Não fosse bastante, Schmitt cria a atuação paralela entre os poderes Legislativo e

Executivo. Muito embora o autor reconheça o papel que o legislador detém em um Estado que

se pretenda democrático, ele aponta, juntamente ao “legislador ordinário”, a existência de um

“legislador extraordinário” corporificado mais uma vez no Poder Executivo. Dessa forma, o

Füher, pela sua discricionariedade, poderia estabelecer medidas quaisquer voltadas à proteção

da segurança e interesse público e gravá-las com o status de lei.

Em que pese possa o legislador ordinário editar leis, a lógica do Estado Liberal o separa do aparato necessário à aplicação, ao passo que o legislador extraordinário ratione necessitatis tem a faculdade de dar, a todas as disposições singulares que adotar, o caráter de lei. Em conseqüência, o presidente do Reich, ao invés de decretar normas gerais, pode promulgar instantaneamente e de uma maneira imediata uma ordem singular [...] Schmitt afirma a existência de uma supremacia do legislador extraordinário ratione necessitatis perante o legislador ordinário, pois o próprio legislador extraordinário é o árbitro sobre os pressupostos de seus poderes (BARACHO JUNIOR, 1999, p. 90)

É o direcionamento máximo do poder jurídico às mãos do Executivo, demarcando de

vez, a predominância do político sobre o Direito!

Reparem, porém, como essa construção hermenêutica e de teoria do Estado consegue

legitimar os mecanismos necessários para a sustentação de um Estado superdimensionado tal

qual se delineava com o paradigma social. Além do mais, a necessária conformação dos

interesses particulares aos objetivos publicísticos se torna a argumentação perfeita para

fundamentar o sacrifício de direitos antes tidos por subjetivos (p.e. propriedade) em benefício

de finalidades e compromissos agora presentes na esfera de obrigações estatais. Noutros

termos, sendo interesse público a intervenção do Estado na economia ou na sociedade, torna-

se também possível a supressão da propriedade, seja pela desapropriação (Direito

Administrativo), seja pela exação fiscal!

Assim, até mesmo em um nível de interação inter-estatal é possível identificar a

preocupação com um intervencionismo positivo ao foco de atingir todos os anseios sociais.

Após a delimitação, dentro do paradigma social, dos elementos mais marcantes ao

sistema tributário – igualdade material e intervenção do Estado no domínio econômico –, não

se possível isentar este texto da reflexão das palavras de Édis Milaré, que questiona o papel

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dos cidadãos na construção de uma sociedade concretizadora daqueles ideais que proclama

buscar. É para todos o trecho a seguir:

Infelizmente somos herdeiros – e por vezes praticantes convictos – de um sistema ético mal elaborado ou, até mesmo, deformado. Crescemos orientados por preceitos de uma moral individual (para não dizer individualista). Damo-nos por honrados e probos se, nas relações interpessoais de nossa esfera individual, não nos apropriamos indebitamente dos bens de outrem ou não lhe fazemos violência. Saldar débitos, cumprir a palavra, não causar prejuízo são obrigações da quais, em rigor, não poderíamos vangloriar – são comezinhas. Se ficarem nisso, exclusivamente, e discursando a visão social, elas se revestem de certo caráter farisaico. A moral que nos falta – pensando em termos de ética do Bem Comum e Ética do Meio Ambiente – é aqueloutra menos conhecida e praticada: a moral de cunho e alcance sociais. (MILARE, 2004 p. 90)

5.2 A tributação em consonância com os direitos sociais

Um primeiro ponto a ser observado quando da realização de um estudo acerca do

sistema tributário e o surgimento dos direitos sociais de segunda geração, é a elucidação de

um eventual entendimento errôneo induzido pelo momento do surgimento do Estado Fiscal.

Ainda que, de fato, seja coincidente o nascimento de uma estrutura de receitas públicas

baseada na tributação e o insurgir das revoluções liberais, não se pode restringir o Estado

Fiscal ao modelo de Estado mínimo burguês.

Mesmo quando diante de um Estado Social, a prevalência de sustento do erário

público por meios fiscais se mantém. Consolida a argumentação o fato de Ricardo Lobo

Torres (2005, p.08) fazer uso da denominação “Estado Social Fiscal”.

Casalta Nabais, além de reconhecer a afirmativa supra, ainda faz a diferenciação:

... não se deve identificar o estado fiscal como estado liberal, uma vez que aquele, no entendimento que dele temos, conheceu duas modalidades ou dois tipos ao longo da sua evolução: o estado fiscal liberal, movido pela preocupação de neutralidade econômica e social, e o estado fiscal social economicamente interventor e socialmente conformador. O primeiro, pretendendo-se um estado mínimo, assentava numa tributação limitada – a necessária para satisfazer as despesas estritamente decorrentes do funcionamento da máquina administrativa do estado –, uma máquina que devia ser tão pequena quanto possível. O segundo, movido por preocupações de funcionamento global da sociedade e da economia, tem por base uma tributação alargada – a exigida pela estrutura estadual correspondente. (NABAIS, 2004 p. 194)

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Nos termos já adiantados pelo autor lusitano, não obstante permaneça no paradigma

social a sistemática de Estado Fiscal, certas modificações na seara tributária podem ser

percebidas.

Não se poderia pensar de outra forma. As modificações e releituras dos conteúdos de

direitos fundamentais deram uma nova faceta para o perfil sócio-econômico das nações.

Conseqüência direta, também as concepções, crenças e instrumentos tributários refletiram

essa modificação.

No que tange às alterações provenientes da nova gama de direitos reconhecidos no

primeiro paradigma, dois pontos se mostram centrais para o campo fiscal: a nova acepção de

igualdade material e atuação estatal no domínio econômico como forma de concretização dos

demais direitos sociais.

5.2.1 Igualdade substancial e justiça tributária

O debate e indagações acerca de uma justiça igualitária e distributiva remetem a

Aristóteles em “Ética a Nicômaco” (2003, p. 108 e ss.). No entanto, foram os

questionamentos advindos da modificação do conteúdo igualitário, endossados pelos teóricos

dos direitos sociais, que repercutiram na utilização da tributação como forma de efetivação da

igualdade101.

Se, pelo plexo de direitos precedentes, a igualdade bastava-se no tratamento isonômico

perante a lei e excluía toda forma discriminatória, neste momento, com uma nova concepção

de igualdade concreta, o sistema tributário acompanha os ditames constitucionais e passa a se

atentar para as peculiaridades dos contribuintes. Noutros termos, a capacidade contributiva

passa a incorporar nova faceta, e consequentemente, desempenhar novo papel no campo

fiscal.

Abandona-se a idéia de generalidade e universalidade tributária tal qual entendida

anteriormente – consubstanciada na máxima de que todos, sem exceção devem contribuir para

com o Estado. E adota-se um conceito mais próximo de nossa aceitação, que implica o

101 Apesar do maior espaço adquirido com a conquista dos direitos de segunda geração, leciona Aliomar Baleeiro que há cerca de cinco séculos já se conhecia a possibilidade de utilização da tributação como forma de redistribuição de riquezas entre os indivíduos. (Cf. BALEEIRO, 1987, p. 179)

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entendimento de generalidade tributária como sendo a não possibilidade de isenções em razão

de privilégios odiosos102, tais quais os do Ancièn Regime103.

Discriminações outras, porém, se tornam não apenas compatíveis com a nova

concepção de universalidade, mas sim exigidas. Nos termos já mencionados quando do estudo

da reconstrução conteudística da igualdade, tratamentos desiguais, desde que fundamentados

racionalmente, passam a ser instrumento de efetivação de uma nova acepção igualitária,

modificando, assim, a lógica do pensamento tributário até então dominante. Todo o estudo da

tributação - e consequentemente, da justiça tributária – deve se atentar para o contexto social e

concepções ideológicas, filosóficas e políticas vigentes.

5.2.1.1 O princípio da capacidade contributiva

Entendido como sendo a observância da capacidade econômica do contribuinte, o

princípio da capacidade contributiva é tido como sendo o maior reflexo e talvez o maior

representante de um tratamento isonômico substancial na esfera jurídico-tributária. De fato, se

temos por pressuposto a nova acepção de isonomia que passa a incorporar os ordenamentos

constitucionais em uma análise individualizada das peculiaridades dos diversos indivíduos

para um tratamento condizente à sua realidade, é a capacidade contributiva a principal

ferramenta nas mãos do Estado.

102 Algo próximo foi enfrentado pelo Supremo Tribunal quando do RE 236.881 (DJ 26/04/2002), onde se debatia as imunidades de Imposto de renda a militares e magistrados pela mera posição profissional ostentada pelos mesmos: EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. REMUNERAÇÃO DE MAGISTRADOS. IMPOSTO DE RENDA SOBRE A VERBA DE REPRESENTAÇÃO. ISENÇÃO. SUPERVENIÊNCIA DA PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. ISONOMIA TRIBUTÁRIA. INSUBSISTÊNCIA DO BENEFÍCIO. 1. O artigo 150, inciso II, da Constituição Federal, consagrou o princípio da isonomia tributária, que impede a diferença de tratamento entre contribuintes em situação equivalente, vedando qualquer distinção em razão do trabalho, cargo ou função exercidos. 2. Remuneração de magistrados. Isenção do imposto de renda incidente sobre a verba de representação, autorizada pelo Decreto-lei 2.019/83. Superveniência da Carta Federal de 1988 e aplicação incontinenti dos seus artigos 95, III, 150, II, em face do que dispõe o § 1º do artigo 34 do ADCT-CF/88. Conseqüência: Revogação tácita, com efeitos imediatos, da benesse tributária. Recurso extraordinário não conhecido. 103 No caso do atual ordenamento constitucional brasileiro, essa idéia de isonomia impedindo privilégios pessoais desmotivados é embasada no artigo 150, II da CF/88: “Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados ao Distrito Federal e aos Municípios: II – instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação semelhante, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos”

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É o princípio em tela que permite a adequação pormenorizada do sistema tributário às

particularidade individuais. Isso porque o princípio da capacidade econômica ou contributiva

determina que a legislação fiscal seja compatível com a força contributiva real de cada

cidadão, dando assim, uma maior percepção e concretização de justiça e igualdade

constitucional.

Desde Benevuto Griziotti, Dino Jarach e Emílio Giardina104, há uma forte corrente

doutrinária que defende ser a capacidade contributiva a própria razão da instituição dos

impostos. Seria esse ditame a própria corporificação da igualdade no Direito Tributário,

resumindo a justiça fiscal unicamente na observância das forças econômicas de cada

contribuinte.

É outro o entendimento mais atual de autores como Derzi, Moro (1999, p. 64 e ss) e

Godoi. Este último, ao tratar da acepção ora mencionada, chega a asseverar que “o primeiro

equívoco era considerar que a capacidade contributiva podia por si só e com exclusividade dar

conta de implementar, no campo tributário, a igualdade como valor constitucional” (GODOI,

1999, p. 212). E conclui o autor pela insuficiência da unicidade reducionista que pode

ocasionar o exclusivismo da capacidade contributiva na representação da igualdade

constitucional. Todavia, Godoi não deixa de reconhecer sua inegável posição de destaque na

concretização do mencionado direito fundamental: “o princípio que orienta a justiça tributária

é o princípio da igualdade, sendo a capacidade contributiva um subprincípio importante e

atuante, mas não o único” (GODOI,1999, p. 213-214).

Pela mesma trilha caminha Misabel Derzi. Afirma a tributarista mineira, após

considerar a indiscutível importância do princípio em questão, que “é, entretanto errôneo

pretender reduzir a justiça tributária ao princípio da capacidade contributiva. Nem a

igualdade, nem a justiça tributária se reduzem aos limites da capacidade contributiva. Nem

assim o sistema tributário”. (DERZI. In: BALEEIRO: 1998, p. 697-698).

Ainda que não reste pacífico o exaurimento ou não da igualdade na esfera da

capacidade contributiva, indiscutível o reconhecimento do papel predominante deste princípio

no intento de materialização dos ideais igualitários. Nesse sentido, comungamos com o

posicionamento expressado por Ives Gandra Martins (1983, p.28), que reconhece a

capacidade contributiva e a redistribuição financeira como “princípios dorsais” da estrutura

normativa tributária.

104 Acerca das idéias dos pensadores supra, verificar BALEEIRO,1998, p. 714 e ss., e GODOI, 1999, p. 212

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Conforme já abordado, desde Adam Smith e demais membros da corrente liberal a

capacidade contributiva já era considerada quando do estabelecimento da tributação.

Afirmado anteriormente, porém, o entendimento míope que abarcava tal princípio. Restrito a

um objetivo de mera proporcionalidade, a capacidade contributiva rezava uma rigorosa

relação entre os benefícios auferidos pelo cidadão e a quantidade de tributos a serem pagos.

Era momento em que a teoria do benefício – ou na nomenclatura de Paul Hugon (1945, p. 16)

“teoria do lucro” – permeava a justificativa da observância da expressão de riqueza dos

diversos contribuintes, calcada fortemente na perspectiva contraprestacional.

Tido atualmente por insuficiente, a crítica ao pensamento supra é adiantada pelo

próprio John Stuart Mill, economista da escola liberal:

Na teoria da justiça que estamos analisando, os menos capazes de se ajudarem e defenderem a si próprios, por serem aqueles para os quais a proteção é a mais indispensável, teriam que pagar a cota maior do preço dessa proteção – o que é inverso do verdadeiro conceito de justiça distributiva, que consiste não em imitar, mas em corrigir as desigualdades e os erros da natureza (MILL, 1983, p.291).

Com efeito, a noção de capacidade contributiva calcada na proporção em razão do

benefício fruído não encontra mais guarida. Isso porque, de encontro aos ideais de justiça

esboçados neste novo paradigma de Estado Social, a teoria smithiana de igualdade de

benefícios tem um embasamento puramente econômico, sem qualquer atenção aos anseios

contemporâneos de justiça social.

O tributarista e economista mineiro Marciano Seabra de Godoi, diante do perfil

mercadológico que se pode perceber na visão de capacidade contributiva da teoria do

benefício, delineia a mesma como sendo detentora de um “fundo contratualista e característica

dos albores do liberalismo político e econômico” (GODOI, 1999, p. 189).

Também Casalta Nabais não poupa a idéia em comento. Caracterizando-a como sendo

extremamente objetiva, o autor lusitano conclui que a teoria sob análise é incapaz de

expressar a real capacidade contributiva dos indivíduos. Remete ainda a dois pontos

intransponíveis. Em primeiro lugar, é de se considerar que uma série de benefícios não são

passíveis de terem os impostos como contrapartida – p.e. o objetivo estatal de erradicar a

pobreza. Além do mais, é tormentosa, para não dizer impossível, a busca pela mensuração dos

benefícios usufruídos por cada cidadão!

Por fim, constata Nabais que, se é dado aos impostos a imprescindível tarefa de

custeio da estrutura estatal, juntamente com suas atividades consagradoras dos objetivos

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constitucionais, é de todos a responsabilidade de contribuição tributária, independentemente

dos benefícios individualmente auferidos (NABAIS,2004, p. 451).

Teoria fundamentadora da capacidade contributiva que parece dominar a doutrina

pátria é aquela referente a uma “igualdade de sacrifícios”. De acordo com essa segunda teoria,

não devem os cidadãos contribuir em observância a suas fruições dos benefícios estatais, mas

sim de forma a garantir os dispêndios do Estado, respeitando uma equivalência entre os

sacrifícios sofridos pelos contribuintes. É idéia que desde o século XIX é aventada pelo

economista Stuart Mill:

A igualdade de tributação, portanto, como máxima de política, significa igualdade de sacrifício. Significa distribuir a contribuição de cada pessoa para cobrir as despesas do governo de tal forma que ela não sinta nem mais nem menos incômodo, com a cota que lhe cabe pagar, do que qualquer outra sente, pagando a dela (MILL, 1983, p. 290).

Seguindo essa corrente de pensamento, identifica-se a possibilidade de ajustamento da

tributação às peculiaridades individuais dos contribuintes. Noutros termos, já há uma

instrumentalização para se alcançar a igualdade substancial.

Leciona ainda Godoi105 em sua minuciosa análise que, em países como Espanha e

Itália, diante do advento do Estado Social, também a teoria do sacrifício vem recebendo certas

críticas, principalmente em razão de seu “viés individualista”.

Murphy e Nagel (2005, p. 34 e ss.) acompanham a crítica, mas sob outra ordem de

fundamentação. Constatam os autores que a teoria do sacrifício pressupõe uma justa

distribuição dos resultados do mercado, ou seja, a teoria parte de um pressuposto de que a

divisão final das riquezas do sistema capitalista é legítima.

Partindo da idéia de que se deve cobrar a mesma parcela de sacrifícios dos indivíduos,

mantendo uma proporcionalidade dessas cotas de sacrifício, concluem os autores que a teoria

em análise contabiliza os resultados distributivos como forma de parâmetro para a

metrificação do tributo a ser pago pelo contribuinte, tendo-os, assim, como legítimos. Afinal,

é a partir dessa divisão final que se verifica a exação de cada um, bem como o “sacrifício” de

cada contribuinte.

105 Marciano Seabra, em atenção à doutrina européia acerca do tema colaciona a seguinte passagem de Pedro Manuel Herrera Molina, que bem exemplifica a concepção de solidariedade que vem justificar o princípio da capacidade contributiva: “La contribución al interés general mediante el sistema impositivo no tiene el sentido de contraprestación o un beneficio ni es expresión de un interés individual. Representa, por el contrario, una exigencia del caráter social de la naturaleza humana: el principio de la solidariedad” (MOLINA apud GODOI: 1999, p. 220)

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Ocorre que, para eles, não é lógica a afirmativa de que a pessoa detenha qualquer

direito sobre uma propriedade ou renda que acumula antes das exações tributárias.

Em melhores palavras, a divisão proveniente da economia de mercado é, em grande

parte, derivada da própria política econômica e legislativa adotada pelo Estado. Nesse sentido,

a receita de um empresário da área siderúrgica é diretamente ligada à legislação ambiental que

o Estado elabora. Ou ainda, os grandes lucros de um investidor da bolsa de valores são

resultados, em parte, das flutuações das taxas de juros determinadas pelo Banco Central

(MURPHY; NAGEL, 2005, p. 47). Percebe-se, assim, a ausência de titularidade exclusiva e

pré-estatal dos resultados de lucro ao indivíduo.

Uma vez haver auxílio do governo para o alcance desses resultados, não se pode

reputá-los justos para com aqueles não beneficiados pelas ações públicas. Para eles, o direito

de propriedade é produto derivado de uma complexa teia de elementos dentre os quais o

sistema tributário faz parte.

Nessa baila, certos da ilegitimidade da repartição de resultados do mercado anteriores

à atuação mitigadora do Estado, os autores criticam o próprio pressuposto da teoria do

sacrifício – divisão de lucros pelo mercado – entendendo suas idéias vinculadas ao

“libertanismo vulgar” que marcou os ideais burgueses.

Calcados nisso, Murphy e Nagel perseguem outra justificativa para a observância da

capacidade contributiva. Para eles, “a idéia de tributação de acordo com a capacidade

contributiva é entendida em função da noção de que a justiça exige uma redistribuição outra

que não a efetuada pelos retornos do mercado” (MURPHY, NAGEL:2005, p. 43).

É também nessa esteira que se funda noção de capacidade contributiva baseada na

solidariedade social destacada por Godoi (1999, p. 191 e ss.) e aplicada em certos países

europeus. A acepção de comunhão de uma sociedade em que se deve perquirir uma justiça

social que irá permitir uma melhor condição de vida a todos passa a ser, nesses locais, a mola

propulsora que possibilita a tributação diferenciada entre ricos e pobres.

Com efeito, a teoria do sacrifício apresenta algumas dificuldades de trabalho.

Primeiramente, não é fácil a mensuração dos sacrifícios perdidos por cada indivíduo, nem

mesmo estabelecer os critérios adequados a essa aferição. Dworkin torna isso claro ao

trabalhar, analogamente, a concepção de igualdade por equivalência de bem-estar106.

106 “Mas podemos observar, antecipadamente, que cada um dos conceitos conhecidos de bem-estar dá origem a óbvios problemas conceituais e práticos com relação ao teste e à comparação dos níveis de bem-estar de cada pessoa. Cada um deles tem como conseqüência que as comparações de bem-estar serão sempre indeterminadas: sempre acontecerá que entre duas pessoas nenhuma delas terá menos bem-estar, embora seu bem-estar social não seja igual [...] meu primeiro argumento contra essa versão restrita da igualdade de satisfação também se baseia

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Não fosse bastante, a manutenção de uma proporção de sacrifícios pode ensejar uma

utilização míope da capacidade contributiva, redundando na idéia de tributação proporcional e

neutra combatida pelo Estado social.

Não obstante, corretamente utilizada, a teoria em comento pode ensejar uma

modificação da perspectiva tributária, possibilitando-a incorporar a possibilidade de alteração

da estrutura social com a qual defronta, apresentando uma “concepção ativa” da atuação do

princípio da capacidade contributiva. Concluímos assim, que ultrapassados alguns obstáculos

abstratos e teóricos, e aplicada de forma coerente com os anseios sociais constitucionais, os

resultados práticos da teoria em tela podem equivaler àqueles decorrentes das teorias de

distributividade de riquezas ou de solidariedade social.

Tanto o é que, calcados nesse aparato teórico, é que os autores do início do século XX

passaram a argumentar a capacidade contributiva como reflexo positivo da isonomia

constitucional.

De todo modo, essa nova idéia de capacidade contributiva com vistas à efetivação do

direito fundamental da igualdade substancial ganhou notabilidade com autores como Wagner

e F. Flora (BALEEIRO, 1987 p. 181) que, objetos de questionamento, foram por vezes

classificados com “tendências comunistas”. Tais juristas, porém “desejavam apenas melhor

distribuição da renda nacional, tributando-se as classes prósperas segundo a capacidade

contributiva e melhorando-se a situação das classes pobres pelas despesas de assistência e

seguros sociais” (BALEEIRO, 1987, p. 181).

Adolf Wagner, por exemplo, demonstrava perplexidade diante da tributação com

equivalência formal entre a renda proveniente do trabalho e de capitais. Da mesma forma,

discursava pela incompatibilidade entre o Estado Social e o rechaçamento de isenções aos

incapacitados de contribuir, tal qual pretendia a universalidade tributária burguesa. Para ele, a

realização da igualdade substancial implicava um maior ou menor gravame ante as nuances

apresentadas por cada contribuinte (DEODATO, 1949, p. 28-30).

Mesmo recentemente, no Brasil, o princípio analisado foi recebido por alguns com

timidez. Sampaio Doria, em alusão ao texto constitucional brasileiro de 1946, comenta o

ceticismo que alguns tributaristas da época encaravam a aplicação efetiva da capacidade

contributiva (DORIA,1986, p. 181).

no argumento que empreguei contra a igualdade de êxito relativo. O principal atrativo de uma forma restrita de igualdade de satisfação está na afirmação de que ela torna as pessoas iguais no que todas valorizam do mesmo modo e fundamentadamente no que diz respeito a sua posição pessoal. Mas não se pode sustentar esse atrativo, pois as pessoas diferem, de fato, na importância que cada uma dá à satisfação, até no sentido mais amplo que faz desse termo a definição de estados de consciência” (DWORKIN, 2005, p. 10; 46).

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Todavia, parece restar tranqüila a idéia, na atualidade, de que a tributação deve

observar as condições reais dos contribuintes para exigir-lhes uma exação tributária107. Da

mesma forma, não parece haver quem questione a atitude discriminatória do legislador ou

constituinte ao estabelecer isenções ou imunidades àqueles que não apresentam qualquer

possibilidade financeira, permitindo assim, que os custos do Estado sejam compartilhados

apenas entre os mais favorecidos pelo jogo econômico.

Segundo Leão, Hector Villegas atribui quatro principais conseqüências ao princípio, a

partir das quais podemos delinear suas características básicas:

1. todos devem contribuir para os gastos públicos, exceto aqueles que possuem um nível econômico muito baixo; 2. o sistema tributário deve-se estruturar de tal maneira, para que aqueles que possuem maior capacidade econômica tenham uma participação mais alta na entrada de dinheiro para o cofre público; 3. não se podem selecionar como fato imponível circunstâncias ou situações que não sejam abstratamente idôneas para refletir a capacidade contributiva; 4. em nenhum momento o tributo que recai sobre o contribuinte pode exceder à razoável capacidade contributiva das pessoas. (LEAO, 1999, p. 18) (grifos nossos)

Assim sendo, certo é que a capacidade contributiva, ainda hoje, encorpa nosso sistema

tributário. Em busca de previsão expressa, pode-se encontrar a seguinte redação na

Constituição Federal:

Art. 145. [...] §1º. Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão cobrados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.

Mister destacar já em princípio, o fato de não mais perdurar a dúvida presente quando

da Constituição de 1946. Conforme relembra Ulhôa Canto (1989, p. 03), restava incerto

107 Embora não termos encontrado, na doutrina brasileira, qualquer autor que se demonstrasse expressamente contrário à observância da capacidade contributiva, o ibérico Casalta Nabais indica alhures corrente representada por W. Leisner que considera a noção de capacidade contributiva por demais indeterminada, e em razão disso, acaba o princípio em comento por apresentar-se como uma “expressão da pura brutalidade do poder”, sem qualquer fundamentação racional justificante face à idéia de liberdade que norteia o pensamento do autor. É o próprio autor lusitano em sua extensa e completa obra acerca do dever da tributação quem responde as críticas apontadas à capacidade contributiva: “porém, um tal entendimento parece ignorar, como logo fez notar A. Berliri, aquando das discussões suscitadas pelas primeiras aplicações do princípio pela Corte Constitucional italiana, que os conceitos indeterminados não são desconhecidos do direito em geral: assim, conceitos como os de interesse público, ordem pública, bons costumes, moral equidade, alimentos, etc., em toda a parte são considerados conceitos jurídicos ... outra objecção contra o argumento da indeterminabilidade do princípio da capacidade contributiva: é que este, afinal de contas, outra coisa não representa senão uma expressão específica do entendimento, por toda a parte considerado definitivamente ultrapassado da constituição como um conjunto de normas essencialmente programáticas...” (NABAIS,2004 p. 459-460)

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quanto à possibilidade de ter o texto constitucional da época dado uma natureza meramente

programática ao princípio. Não resistiram as controvérsias, e resta pacificada a noção de ser

norma de eficácia a ser obedecida pelo legislador e intérprete.

Cumpre registrar, desde já, a inovação que Greco (2004) realiza ao não restringir a

irradiação de efeitos da capacidade contributiva à sua eficácia negativa, como se a mesma

acarretasse unicamente uma limitação constitucional ao poder de tributar. Já inserido na

superação do oposicionismo entre Estado e sociedade, o autor constrói uma faceta positiva do

princípio em questão, galgando-lhe, assim, a função de viabilização dos direitos

fundamentais.

Dessa forma, juntamente com o já consolidado entendimento de que o Estado não

poderá alcançar fatos e situações incapazes de denotar capacidade contributiva, Greco parte

para a afirmação de que sempre que houver possibilidade de o mesmo atingir demonstrações

de força financeira, deverá fazê-lo. Afinal, conforme já aprendido, uma vez compreendida

como um princípio constitucional, a capacidade contributiva remete diretrizes à atuação

negativa, mas também positiva do Estado, exigindo deste último, sua efetivação.

Muito embora a alusão às idéias de Greco seja pertinente no momento para fins de

situá-lo junto aos demais autores que lidam com a capacidade contributiva, o grau de

refinamento de sua análise constitucional-tributária demanda que seja postergado o maior

deslinde de seu pensamento ao estudo do paradigma do Estado Democrático de Direito.

Uma segunda anotação acerca do princípio em análise e sua disposição constitucional

refere-se à sua abrangência. Segundo consta no texto do art. 145 § 1º da CF/88, “sempre que

possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade

econômica do contribuinte...”.

Em que pese a menção “sempre que possível” e “os impostos” expressos no texto

constitucional, diante da função de concretização de um direito fundamental que a capacidade

contributiva representa, deve-se entender que, não “sempre que possível”, mas “sempre”

devem “todos os tributos” observar a capacidade econômica dos contribuintes. E não nos

encontramos sós nesse posicionamento. Afirma Hugo de Brito Machado (2005, p. 59) que a

expressão “sempre que possível” expressa no texto constitucional abarca apenas a

pessoalidade dos impostos, sendo certo que todos os impostos devem sempre se adequar à

capacidade econômica. Parece se restringir o autor, porém, ao alcance dos impostos.

Em sentido oposto argumentam Luciano Amaro (2005, p. 139 e ss.) e Roque Antonio

Carrazza (2004, p. 95 e ss.). Para esses autores, a Constituição permitiu exceções à capacidade

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contributiva para os impostos, já que algumas espécies não se compatibilizariam com o tal

princípio, como p.e., os impostos indiretos.

Já registramos nossa discordância acerca dessa idéia, e sobre a capacidade contributiva

nos impostos indiretos dissertaremos adiante. Entretanto, cumpre, no presente, aludir outro

posicionamento do qual partilhamos, e que encontra certa resistência por parte da doutrina.

Em nossa concepção, todos os tributos devem observar a força contributiva dos

indivíduos quando de sua instituição e quantificação. Isso implica afirmar que não apenas

impostos, mas também contribuições variadas, empréstimos compulsórios e taxas devem se

atentar para a determinação constitucional.

Grande parte dos autores, dentre os quais Misabel Derzi (In: BALEEIRO, 1998, p.

695), e Gilberto de Ulhôa Canto (1989, p. 11-12) entendem que não precisam as taxas

observar obrigatoriamente os ditames da capacidade econômica. Pautam a argumentação

sobre o fato de as taxas, por serem o pagamento do custo do exercício do poder de polícia ou

de prestação de serviço específico e divisível, têm seu valor atrelado aos gastos necessários

para a realização das atividades pertinentes. São atividades ligadas não a uma situação ou

característica relacionada ao contribuinte – p.e. manifestação de riqueza – mas sim na

contraprestação por uma relação presente entre Estado e indivíduo.

No mesmo sentido argumenta Werther Botelho (SPAGNOL, 1994, p. 42 e ss), que

realiza divisão entre as espécies tributárias e identifica nas taxas e contribuições de melhoria,

mero objetivo fiscal de pagamento ou ressarcimento; enquanto os impostos, contribuições e

empréstimos compulsórios são mais afetados pela possibilidade de realização de justiça

distributiva.

Com efeito, a estrutura do fato gerador tributário e sua forma de quantificação tornam

mais trabalhoso o vislumbre da capacidade contributiva em taxas tributárias. Obviamente que,

em razão disso, as formas de expressão da capacidade econômica não se darão da mesma

forma que nos impostos. No entanto, há instrumentos capazes de proceder à adequação dessas

espécies tributárias ao princípio estudado108.

Atentos a isso, somos mais filiados à argumentação de Sacha Calmon (COÊLHO,

2005, p.56 e ss), para quem, nas espécies tributárias tidas como mais resistentes à aplicação da 108 Não podemos deixar de ressaltar decisão por parte do Supremo Tribunal Federal em que se observou que a corriqueira relação realizada entre taxas e capacidade contributiva não tem, de fato, esse conteúdo. Quando do RE 177.835 (DJ 25/05/2001), o Supremo se viu diante da verificação de constitucionalidade da cobrança da taxa de polícia por parte da Comissão de Valores Mobiliários, em observância ao patrimônio que a empresa apresenta perante o mercado. A decisão pela constitucionalidade desta cobrança variável à expressão patrimonial das empresas, apesar do que possa aparentemente denotar, não se tratou de uma observância da capacidade contributiva na exação de taxas. Mas sim a relação entre o valor cobrado e o serviço a ser exigido por parte da CVM, órgão responsável pela fiscalização da atividade mercantil mobiliária.

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capacidade contributiva – taxas e contribuições de melhoria – é possível sua concretização em

uma dimensão negativa pela “incapacidade contributiva”.

Noutros termos, é factível a discriminação daqueles que não detêm a capacidade de

arcar com o ônus proveniente das espécies tributárias anteditas, ainda que beneficiados pelo

serviço, poder de polícia, ou melhoramento decorrente de obra realizada. Nesses casos, houve

certa adequação da incidência tributária à realidade econômica dos contribuintes, ainda que

apenas no sentido de desoneração dos mais deficitários.

É o que ocorre, a título exemplificativo, com o a isenção da taxas de fiscalização

judiciária incidente sobre as atividades notariais cujos custos são repassados aos usuários, nos

termos da lei estadual mineira 15.424/04. Expressa, em seus artigos 20 a 22 hipóteses de

isenção do pagamento do tributo (taxa de fiscalização judiciária) referenciado para

beneficiários da justiça gratuita e para pobres no sentido legal em certas circunstâncias. Faz a

lei a desoneração daqueles que não detêm um potencial financeiro compatível com o ônus

fiscal que lhes é repassado. Não seria isso uma incidência da capacidade contributiva?

5.2.1.1.1 Capacidade contributiva absoluta e relativa

Critério importante para a percepção do alcance e abrangência do princípio

constitucional estudado é sua classificação em capacidade contributiva absoluta e relativa.

Calcada nos ensinamentos de Emilio Giardina, Misabel Derzi109 detalha bem os

impactos da capacidade contributiva nas várias esferas jurídicas, caracterizando com rigor a

secção ora analisada. Explica a autora ser a capacidade contributiva objetiva ou absoluta

aquela ligada ao momento inicial de elaboração normativa. De observação obrigatória por

parte do legislador, a capacidade contributiva absoluta impõe a escolha dos fatos geradores e

alíquotas desveladoras da força econômica para a redação das normas pertinentes à previsão

de incidência. Não é dado ao Legislativo pinçar fatos tributáveis que não sejam expressão de

uma força econômica disponível, ou mesmo fatos que se amparam em exibições futuras ou

mesmo remotas de aptidão financeira.

Acompanha o entendimento acerca da necessidade de observação da capacidade

contributiva absoluta Cristóbal Moro, para quem “o legislador deverá tipificar como fato

109 DERZI In: BALEEIRO, 1998, p. 690 e ss. A autora apresenta ainda quadro explicativo com base em Regina helena Costa acerca classificação ora aduzida de grande peso didático.

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imponível de um tributo todas as situações expressivas de capacidade econômica no sujeito

que respondam à idéia de justiça que informa o estabelecimento do mesmo” (tradução

nossa)110 (MORO,1999, p. 68).

Nestes casos, o princípio analisado tem duas funções. A primeira delas é funcionar

como pressuposto da tributação. Caso haja a criação de qualquer tributo (ou imposto,

dependendo da corrente de pensamento) sem a observância da capacidade contributiva, o

ordenamento não aceitará tal espécie tributária como parte do sistema jurídico. É o “sentido

negativo” da capacidade contributiva percebida por Nabais (2004, p. 469).

Há ainda a capacidade contributiva como critério de escolha e quantificação dos fatos

geradores tributários, ou seja, mesmo perante duas hipóteses de expressão econômica pelos

contribuintes, qual é a mais propícia para alcançar o objetivo constitucional? E qual alíquota

deve ser utilizada para que compatível com os ditames de igualdade substancial do

constitucionalismo social? Essas são as perguntas que embasam a segunda vertente da

capacidade contributiva absoluta ou objetiva.

Reparem, porém, como esta acepção do princípio em tela acarreta, caso utilizado de

forma isolada, uma homogeneização de exações dos contribuintes meramente em razão da

escolha de fatos ou situações jurídicas tributáveis, desconsiderando, porém, as nuances e

particularidades de casa situação distinta. De fato, a capacidade contributiva absoluta

representa, sem sombra de dúvidas, uma conquista na efetivação da isonomia material

caracterizadora do constitucionalismo social. Entretanto, sua aplicação pode culminar em uma

miopia, caso desconsidere a análise singular que cada indivíduo ou empresa demanda para a

construção de um conteúdo igualitário legítimo.

Não à toa, Derzi continua sua lição desenvolvendo a concepção de capacidade

contributiva subjetiva ou relativa, mais ligada à real aptidão financeira do contribuinte. Atenta

à verdadeira acepção que a isonomia e a capacidade contributiva devem denotar, a autora

destaca que a correta aplicação do ditame constitucional culmina na observância da

subjetividade como um todo, e não meras escolhas de determinados fatos ensejadores da

tributação. Em conjunto com a vertente “absoluta” da capacidade contributiva, devem ser

consideradas outras peculiaridades individuais que irão compor a realidade financeira de cada

contribuinte, o que implica, também, a consideração de gastos com saúde, educação, moradia,

número de indivíduos dependentes, dentre outros elementos. A verificação das nuances

110 No original: “el legislador deberá tipificar como hecho imponible de um tributo todas las situaciones expresivas de capacidad económica en el sujeto, que respondan a la idea de justicia que informa el estabelecimento del mismo”

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individuais objetivadas pela materialização da igualdade substancial não pode ser restringida a

uma abordagem superficial de dados homogeneizantes de uma pretensa realidade financeira

(p.ex. avaliação unicamente dos rendimentos mensais do contribuinte). Toda a subjetividade

do cidadão deve ser objeto de ponderação para que se chegue ao objetivo final, que é a

incidência tributária condizente com sua realidade financeira efetiva. Mais uma vez, deixar-

se-á um maior detalhamento da capacidade contributiva relativa ou subjetiva ao momento do

constitucionalismo contemporâneo, em razão de compatibilidade de idéias.

De todo modo, conjugando as perspectivas objetiva e subjetiva da capacidade

contributiva, o limite mínimo, ou básico que se costuma apontar a que deve garantir tal

princípio é o mínimo existencial, parcela mínima de subsistência que não pode, em hipótese

alguma, ser objeto de exação fiscal. A imposição tributária apenas pode ocorrer se

ultrapassado esse limite mínimo, essa esfera mínima garantidora dos direitos fundamentais do

indivíduo, a partir da qual a justiça jurídica não aceita realizar cobranças. É entendimento há

muito debatido no seio da tributação111.

Trilham por esse caminho Baleeiro (1987, p. 259), Godoi112, e mesmo Casalta Nabais.

Apesar de constatar a complexidade de se trabalhar com a concepção de mínimo existencial

(NABAIS, 2004, p. 578), conclui o autor lusitano que

o princípio da capacidade contributiva exige, relativamente ao imposto pessoal sobre o rendimento, o respeito pelo princípio do rendimento disponível, segundo o qual ao rendimento líquido, ou melhor, à soma dos rendimentos líquidos, há que proceder às deduções de despesas provadas, sejam as imprescindíveis à própria existência do contribuinte (mínimo de existência individual), sejam as necessárias à subsistência do casal ou da família (mínimo de existência conjugal ou familiar). Efectivamente, a capacidade contributiva só começa a contar a partir desses mínimos, ou seja a partir do que cada pessoa ou conjunto de pessoas precisa para a sua existência física (alimentação, vestuário e habitação) e existência humana (instrução e educação), enquanto pressuposto respectivamente do direito à vida e a uma vida minimamente digna como ser humano. (NABAIS, 2004, p. 522)

Segue a mesma linha Ricardo Lobo Torres (2005, p. 69 e ss), que não admite a

tributação aquém de um mínimo existencial-social que a todos deve ser garantido. Segundo

111 O economista John Stuart Mill nos leciona que desde Jeremy Benthan, já se tem a ciência da possibilidade de se atingir uma igualdade substancial por meio da não-tributação do mínimo existencial: “A maneira de reparar essas desigualdades de ônus, que parece ser a mais eqüitativa é a recomendada por Benthan: isentar de tributo determinado mínimo de renda, suficiente para garantir o indispensável para a subsistência” (MILL, 1983, p. 292). 112 O economista e tributarista mineiro expande a perspectiva de mínimo existencial para fins de capacidade contributiva também para as empresas: “ o conceito de capacidade contributiva começa a formar-se quando, no caso das pessoas físicas, preserva-se o mínimo vital individual e familiar, e no caso das pessoas jurídicas deduzem-se todos os gastos e elementos passivos que influem na situação econômica do contribuinte.” (GODOI: 1999, p. 197)

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ensinamento propalado pelo autor, no Direito Constitucional pátrio, são vários os dispositivos

a partir dos quais identificamos o ditame de respeito ao mínimo existencial. Dentre estes, a

própria concepção substantiva de igualdade (art. 5º da CF/88), e de dignidade da pessoa

humana (art. 1º, III da CF/88).

5.2.1.1.2 A capacidade contributiva e seus subprincípios.

Há autores que, ao detalhar o estudo acerca da capacidade contributiva, acabam por

identificar outros subprincípios entendidos como expressão daquele primeiro, muitos deles, de

também previsão constitucional e objetivo igualitário.

Nessa senda, no entender de Leão(1999, p. 19 e ss.), surgem os subprincípios da

proporcionalidade, personalização, progressividade e seletividade. Para Moro (1999), reflexos

da capacidade contributiva seriam os princípios da progressividade e proibição do confisco.

No que tange à proibição de confisco113, fácil é a interligação entre ambos. É

entendida como confiscatória aquela tributação que extrapola as forças financeiras do

contribuinte com tal intensidade, que acaba por implicar confisco de seu patrimônio.

Obviamente, para que haja respeito ao substrato econômico que o contribuinte pode dispor,

certamente, não pode a cobrança fiscal ter escopo de confiscar os bens daquele. O não

confisco é, em realidade, o ditame mais extremo do respeito à força econômica do

contribuinte.

Não obstante seja intimamente ligado à capacidade contributiva, pode a proibição do

confisco ser percebido já nos ideais liberais. Considerando ser a tributação confiscatória

forma de sufocamento das riquezas privadas produtivas do particular, ela acaba por atacar a

própria fonte originária da tributação contrária, assim, à linha liberal já estudada.

A personalização, prevista no art. 145 § 1º da CF/88, é a própria noção de efetivação

da isonomia e da capacidade contributiva subjetiva, uma vez corresponder na adequação da

oneração fiscal às condições pessoais de cada indivíduo. Os demais subprincípios elencados

113 Na constituição brasileira, o artigo 150 veda a todos os entes federados “IV – utilizar tributo com efeito de confisco;”

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são instrumentos de concretização da capacidade contributiva, razão pela qual estudaremos no

próximo tópico114.

5.2.2 Concretização da igualdade fiscal

Pois bem, já compreendida a modificação que a reconstrução do conteúdo da

igualdade ocasiona na teoria do Direito Tributário. Em razão dessa nova concepção de

igualdade substancial derivada das conquistas do constitucionalismo social, a capacidade

contributiva passa a adquirir papel de destaque na estrutura fiscal.

Entretanto, como de fato concretizar empiricamente essas idéias? Quais os

instrumentos disponíveis para a efetivação dessa isonomia que caracteriza o segundo

momento da evolução dos direitos fundamentais?

5.2.2.1 Progressividade e proporcionalidade tributárias

Afirmado anteriormente como a capacidade econômica, aos olhos liberais, restringia-

se à adoção de uma proporcionalidade tributária – alíquotas fixas e comuns a todos – ligando,

assim, a concepção de proporcionalidade ao tratamento isonômico de todos perante a lei –

mera igualdade formal burguesa.

Desconsiderando a progressividade, por ser exageradamente ingerente ao status quo, o

sistema tributário liberal não deu qualquer ênfase a essa técnica de tributação115, pautando-se

principalmente pelos tributos proporcionais. Tentou-se, com isso, manter a neutralidade

114 Roberto Wagner Lima Nogueira (NOGUEIRA, 2003, p.94) apreende do conteúdo de capacidade econômica não mais um princípio derivado, mas sim flexibilização de princípios constitucionais consagrados. Para o autor, a capacidade contributiva permeia todo o sistema jurídico brasileiro, forçando uma interpretação que se coadune com os objetivos de justiça fiscal determinados pelo princípio do qual nos ocupamos. Assim sendo, até mesmo o sigilo fiscal, com fulcro no direito à intimidade (art. 5, XXX da CF/88) deve ser interpretado à luz da justiça tributária, entendimento que se consubstancia na polêmica Lei Complementar 105/2001. 115 Neste tocante, é importante a menção à seguinte passagem de Nabais: “É certo que mesmo no quadro do estado liberal, em que a exigência de uma igualdade social estava por natureza ausente, não faltou quem defendesse a progressividade de alguns impostos, estribando-se para tanto que na necessidade de compensar com ela a regressividade de outros impostos, que na ideia do aumento mais que proporcional da capacidade contributiva com o aumento do rendimento, mas nenhuma destas ideias põe em causa as conclusões alcançadas...” (NABAIS, 2004, p. 494)

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cartesiana que embasa o pensamento liberal, fazendo uso de um método que não modificasse

a distribuição de riquezas atingidas pela pureza do sistema econômico.

A mesma visão de preservação das regras naturais das ciências empíricas é destinada

também à ciência econômica, daí não caber ao homem interferir nas distribuições

patrimoniais geradas pelo mercado. Por isso a proporcionalidade ser, para Derzi (In:

BALEEIRO, 1998, p. 540), representada pela idéia “leave them as you find them”.

Com efeito, é de se notar a falta de compatibilidade entre a acepção de igualdade

constitucional reconstruída pelo constitucionalismo social, detentor de uma visão ativista e

substancial, e a técnica da proporcionalidade.

Já deve estar claro que, enquanto a igualdade material implica uma atuação positiva do

Estado para corrigir as distorções que o mercado causa na divisão de riquezas entre os

cidadãos, dando-lhes real paridade isonômica, a proporcionalidade, nos termos aludidos

acima, busca uma manutenção dessa estrutura social. Ora, diante da modificação de postura

de direitos fundamentais, é de se argumentar pelo anacronismo dos sistemas fiscais baseados

nesta forma de fixação de alíquotas.

Partindo da premissa de tratamento diferenciado para contribuintes com realidades

distintas, a igualdade substancial pode apenas ser atingida por meio da progressividade,

sistema de mensuração que melhor se adeqüa às distorções entre os indivíduos com diversas

capacidades contributivas116 - já visto serem progressivos117 os tributos que apresentam

alíquotas diversas crescentes na medida em que aumenta a expressão de riqueza da base de

cálculo (vide cap.IV).

Percebendo a força e expressividade que a progressividade apresenta para fins de

modificação da realidade social e efetivação da igualdade, se manifesta com seu particular

estilo Aliomar Baleeiro:

O imposto pessoal e progressivo poderá ser o instrumento surdo e adequado a uma revolução social, sem ‘sangue, suor ou lágrimas’, mas tão radical quanto as de caráter catastrófico que têm congestionado cemitérios, cárceres e orfanatos, apavorando as sociedade ameaçadas pela sua propagação insinuante e insidiosa (BALEEIRO, 1998, p. 699).

116 Percebendo uma maior justiça tributária e isonomia constitucional na progressividade, afirma Hugo de Brito Machado: “A idéia de injustiça da rigorosa proporcionalidade entre um indicador de capacidade contributiva e o calor do imposto nos autoriza, então a concluir afirmando que a progressividade é, realmente, uma forma justa de calcular os impostos.” (MACHADO, 2005, p. 299) 117 Progressividade na CF/88: Imposto de renda ( art. 153, § 2º, I da CF/88); IPTU (art. 156, § 1º c/c art. 182, § 4º, II ambos da CF/88) e ITR ( art. 153, § 4º, I da CF/88)

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Certo é que, percebidos os contribuintes com forças econômicas distintas, também a

incidência das obrigações tributárias devem consistir em intensidades diferentes. Não apenas

em razão do montante da base de cálculo relacionada, mas também pela própria alíquota

respectiva. É a lógica que prevalece. Aqueles com maiores condições de participação

contributiva devem se submeter a alíquotas crescentes.

Isso porque, para o contribuinte que aufere renda mensal de R$50.000,00, o dispêndio

de 10% de sua renda tem significado marginal inferior à arrecadação de 10% da renda de um

trabalhador de R$500,00 mensais. A discrepância da utilidade final que cada unidade de real,

bem como cada ponto percentual descontado de seus rendimentos tem para esses dois

contribuintes distintos é inquestionável.

Enquanto os R$5.000,00 tornados indisponíveis ao primeiro contribuinte seriam

destinados para a compra de um belo terno, ou na ostentação do gasto deste valor em um

único jantar, os R$50,00 arcados pelo segundo seriam destinados à compra da cesta básica

familiar, ou mesmo de medicamentos imprescindíveis para a manutenção de sua saúde.

É isso que justifica o abandono da adoção exclusiva do critério proporcional, com

alíquota única a todos os destinatários, em benefício de uma diferenciação não apenas de

montantes obrigacionais, mas mesmo de alíquotas percentuais entre os contribuintes118.

Não é outro o pensamento de Cristóbal Moro, para quem “se constitui em um dos

instrumentos de penetração no marco do sistema tributário [...] o princípio da progressividade

afeta a concretização do princípio da capacidade econômica na configuração dos tributos”

(tradução nossa)119 (MORO, 1999, p. 71).

Na opinião de Carrazza (2004, p. 82 e ss.), a progressividade deve abarcar todos os

impostos, sem qualquer exceção, sendo essa a única forma de se atingir a pessoalidade e

capacidade contributiva constitucionais. Em razão disso, chega mesmo o autor a defender a

inconstitucionalidade dos impostos de alíquota fixa – proporcionais!

Mas nem todos se mostram tão receptivos à idéia de progressividade no Direito

Tributário.

Gilberto de Ulhôa Canto identifica a existência de uma corrente que atrela a noção de

progressividade com “objetivos ideológicos anti-capitalistas” e, portanto, contrária ao

118 Nessa mesma trilha, argumenta Conti, citado por Leão (1999, p.28) : “la proporcinalidad tributaria que en Adam Smith venia instrumentada mediante impuestos proporcionales con alícuotas constantes aplicadas a la base imponible, se perfecciona con la progressividad construída con alicuotas crescientes aplicadas sobre dicha base, con la finalidad de obtener la igualdad de sacrifício en el pago de las cargas impositivas”. 119 No original: “se constituye en uno de los instrumentos de penetración en el marco del sistema tributário...el principio de progressividad afecta a la concreción del principio de capacidad economica en la configuración de los tributos”

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desenvolvimento econômico dos países. Diante dessa pretensa controvérsia acerca da

correção da utilização da progressividade, o autor se mostra descontente com a previsão da

mesma em nosso texto constitucional. São suas as palavras seguintes: “não quero considerar o

mérito das opiniões em ambos os sentidos, mas o simples fato da existência de controvérsia

parece contraindicar (sic) uma tomada de posição em termos de norma constitucional”

(CANTO, 1989, p. 24). Como se todos os institutos constitucionais aplicados fossem dotados

de unanimidade interpretativa!

Arrebata a argumentação contrária a afirmação de Aliomar Baleeiro (1998, p. 701),

que após reconhecer a maior dificuldade de manuseio dessa técnica fiscal, conclui

acertadamente que a personalização dos impostos não compromete o desenvolvimento

econômico. Antes pelo contrário. A instrumentalização de uma maior justiça na distribuição

dos gastos públicos – e conseqüentemente, na distribuição de riquezas – é elemento que

contribui para um desenvolvimento otimizado e democrático do Estado. Ilusão é pensar que a

manutenção da atual desigualdade sócio-econômica é o correto caminho para se atingir a

plenitude dos objetivos da justiça social.

5.2.2.2 Tributos diretos e indiretos

Não obstante a definição das alíquotas fiscais tenha, de fato, um papel

determinantemente importante na efetivação dos desideratos de isonomia do

constitucionalismo social, também a escolha dos fatos geradores altera os dados da

capacidade contributiva no ordenamento tributário.

Nos termos já mencionados, pautaram as sociedade do século XIX em uma maior

utilização de impostos indiretos, incidentes a todos com a mesma alíquota. Foi a maneira mais

racional de se atingir a totalidade dos contribuintes sem permitir as discriminações negativas

do Ancièn Regime. Nogueira relata que a partir do sistema tributário liberal, a utilização dos

impostos indiretos sobre consumo “foi-se ampliando para atingir a quase-totalidade dos

artigos de consumo” (NOGUEIRA, Ruy Barbosa, 1999, p. 09).

O primeiro ponto a ser observado é que a tributação indireta, principalmente sobre o

consumo, dificulta a utilização da progressividade, que conforme pudemos perceber, é

importante instrumento para a capacidade contributiva. A propósito, é justamente essa

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peculiaridade dessas espécies tributárias que fez os liberais receberem-na tão bem em suas

teorias jurídicas.

Por estar a exação fiscal já presente no preço final do produto comercializado –

“imposto embutido no preço” -, é dificultado ao Fisco realizar a incidência diferenciada de

alíquotas para os diversos consumidores. Afinal, todos irão sofrer a mesma cobrança para a

compra do produto consumido.

Nesse sentido, os impostos indiretos não são capazes de apresentar a mesma

flexibilidade que os impostos diretos pessoais, tal qual o Imposto de Renda. Esse último, p.e.,

permite a determinação de várias faixas de alíquotas sendo, assim, detentor de maior

compatibilidade com a progressividade fiscal e com o exame da individualidade do

contribuinte.

Mas não é apenas isso. A utilização dos impostos indiretos, que no caso brasileiro são

exemplos o ICMS (art. 155, II da CF/88) e o IPI (art. 153, IV da CF/88), pode, na prática,

levar a um efeito regressivo, ou seja, onerar de forma mais excessiva justamente quem detém

menos recursos.

Ocorre que, por manter a mesma alíquota sobre o consumo de determinados bens, o

imposto acaba por exigir o pagamento dessa mesma alíquota por parte de todos os

contribuintes – a repetição de tal dado já se faz redundante. No entanto, é de se observar que

os contribuintes mais abastados direcionam um percentual muito menor de sua renda para o

consumo do que um contribuinte menos favorecido.

Em exemplificação simplória, uma família que detenha uma renda líquida mensal de

R$10.000,00, poderá direcionar, por exemplo, R$5.000,00 – 50% da renda – para o consumo

não apenas de suas necessidades mais imediatas, mas também para a satisfação de certos

luxos. Noutro lado, uma segunda família com renda de apenas R$1.000,00 terá que destinar

uma parcela muito maior de sua renda, p.e. R$800,00 – 80% da renda líquida – para a

satisfação unicamente de suas necessidades primárias.

No exemplo, houve um efeito regressivo do imposto indireto, pois o mesmo acabou

onerando de forma mais expressiva aquele contribuinte que deveria ser poupado das

exigências fiscais. Noutras palavras, é o contrário do ideal de capacidade contributiva!

É isso que faz Aliomar Baleeiro argumentar que

consideram-se ‘regressivos’ o Imposto sobre Produtos Industrializados e o Imposto sobre Operações de Circulação de Mercadorias sobre artigos essenciais à vida, porque retiram do total das despesas das famílias modestas frações proporcionalmente maiores que de pessoas mais abonadas. É velha a observação de que tanto menor é o salário, tanto maior a parcela destinada à satisfação das

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necessidades fundamentais (Lei de Engels). (BALEEIRO, 1998, p. 751) (grifos nossos).

Em que pese esse caráter regressivo dos impostos indiretos e sua conseqüência

obstadora da capacidade contributiva, há autores que se mantêm céticos às críticas

direcionadas aos sistemas em que prevalecem tais espécies tributárias.

Nessa toada, calcado em um projeto de desenvolvimento econômico, Ives Gandra

professa longa argumentação contrária à tese de que impostos indiretos são regressivos e

destoantes do conteúdo constitucional fundamental da igualdade. Não podemos deixar de

trazer suas exatas palavras, com marcantes raízes liberais:

O fundamento ideológico de tal postura é que o tributo indireto é regressivo e injusto socialmente, e o direto é justo e distributivo. A tendência dos países em reverter tal concepção ideológica idealística de utilizar-se da tributação indireta, prevalecendo sobre a direta tem constatações práticas. É que a tributação direta desestimula a poupança, o investimento, gerando menor desenvolvimento, menos emprego e, por outro lado, menor arrecadação. Por ser a tributação indireta neutra, a maior disponibilidade que a reduzida tributação direta produz gera maiores estímulos aos investimentos e poupanças, portanto, progresso econômico e nível de volume arrecadatório superiores.( MARTINS, 1989, p. 44-45) (grifos nossos)

E prossegue o autor afirmando o caráter ideológico de uma corrente e o pragmático da

oposta, concluindo, por derradeiro, com sua discordância acerca da opção constituinte:

os ideais que defendem a predominância da tributação direta sobre a indireta são bem maiores do que os resultados. Já os resultados dos que defendem a predominância da tributação indireta sobre a direta são bem maiores que os ideais. Por voto, os países desenvolvidos têm deixado os ideais com os ideólogos e adotado as soluções práticas que lhes têm permitido, na década de 80, acentuada evolução [...] o nosso constituinte preferiu adotar a tese dos ideólogos mal sucedidos e não dos práticos bem sucedidos, razão pela qual expressou sua preferência pela tributação direta, desestimuladora da poupança, do trabalho e do investimento. (MARTINS, 1989, p. 46; 48-49)

Com a devida vênia, discordamos do pensamento esboçado por Ives Gandra. Não há

que se atrelar a utilização de tributos indiretos ao desenvolvimento das nações de primeiro

mundo. Nesse sentido, Sacha Calmon (COELHO, 2005, p. 47 e ss.) ressalta que mesmo

países como EUA e Inglaterra não colheram bons frutos da tributação indireta. Antes pelo

contrário, notaram esses mesmos países uma intensificação da desigualdade social.

Destaca ainda Sacha que o Brasil, recorrente privilegiador dos tributos indiretos, não

obteve aumentos significativos na poupança e em investimentos, o que fragiliza o argumento

de necessária relação entre os impostos indiretos e o desenvolvimento sócio-econômico.

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Noutro lado, mesmo quando enfrentados tributos indiretos, não são atadas as mãos do

legislador para a observância da capacidade econômica dos indivíduos120.

A seletividade121, ou seja, a escolha de quais bens serão tributados em razão de sua

essencialidade, podem direcionar a tributação para aquelas classes sociais relacionadas com

alguns fatos geradores específicos.

Nessa toada, produtos relacionados à cesta básica alimentar, higiene, saúde e vestuário

devem ser objeto de menor ou nenhuma tributação já que, por si só não são capazes de refletir

eventual riqueza de seu comprador, além de necessários para a manutenção de um mínimo

vital intangível à tributação.

Em contrapartida, produtos denotadores de um excesso financeiro, que expressam uma

forte presunção de capacidade contributiva, tais como artigos de luxo, podem ser objeto de

uma tributação mais onerosa, resultando, justamente, em uma maior imposição fiscal àqueles

com maior disponibilidade pecuniária.

É fraca, no entanto, a expressividade da essencialidade para fins de capacidade

contributiva. Enquanto os impostos diretos permitem um maior detalhamento em seu processo

de individualização de alíquotas para os distintos perfis de contribuintes, a essencialidade dos

impostos indiretos acarreta a adoção de uma sistemática fiscal objetiva e distante, baseada

unicamente na presunção de aquisição de determinados produtos.

Com propriedade, é nítida a compatibilidade entre a essencialidade e a capacidade

contributiva. No entanto, sua eficácia, quando comparada à tributação direta se mostra pouco

empolgante122.

Ainda que se tenha apontado instrumentos tributários a partir dos quais decorrem

efeitos sociais e econômicos distintos, não se pode absolutizar e pretender um sistema fiscal

calcado apenas em tributos pessoais e repudiar aqueles ligados ao consumo, por exemplo. A

utilização de uma única metodologia tributária inexoravelmente nos levaria a uma distorção

do sistema em si, não propiciando os objetivos que aqui argumentamos buscar.

120 Em sentido contrário, Carrazza argumenta que pela natureza, certos impostos não permitem o atendimento da capacidade contributiva, tais como o ICMS, que é um dos impostos indiretos aos quais nos referimos. Segundo o autor, isso ocorre em razão da característica que apresentam tais impostos de não serem custeados pelo responsável tributário, e sim repassados aos consumidores. (CARRAZZA, 2004, p. 94 e ss) 121 No direito brasileiro, a seletividade é obrigatória para o IPI ( art. 153 § 3º, Ida CF/88) e permitida ao ICMS ( art. 155, § 2º, I da CF/88) 122 Corrobora nossa argumentação Casalta Nabais, para quem “resulta claro a fraca, senão mesmo fraquíssima expressão do princípio da capacidade contributiva nos impostos indirectos, os quais hão-de-ser aferidos basicamente através do recurso a outros princípios ou preceitos constitucionais [...] Daí que não nos parece compatível com o princípio da capacidade contributiva uma tributação inteira ou esmagadoramente assente em impostos indirectos.” (NABAIS, 2004 p. 482)

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A idéia de equidade horizontal, definida como a igualdade de tratamento das pessoas igualmente situadas em relação a algum critério de equidade vertical, leva em si um erro. Esse erro consiste em tomar-se a renda, o consumo, ou a riqueza pré-tributárias como uma base moral e depois procurar-se formular um critério de justiça que diga o quanto de imposto cada indivíduo tem de pagar de acordo com sua posição nessa base (MURPHY, NAGEL, 2005p. 225)

No entanto, ainda que fazendo uso de todas essas técnicas tributárias, deve-se sempre

atentar aos seus princípios retores para que possível adequá-las aos ditames constitucionais

ora observados. Mais uma vez se destaca: é a efetivação dos pressupostos constitucionais que

fundamentam e reconstroem os conteúdos dos institutos fiscais.

5.2.2.3 Nível arrecadatório

Além de toda essa instrumentalidade fiscal de que se dispõe o Estado para fazer valer

os anseios sociais que o pautam, também um outro mecanismo é crucial para o êxito

pretendido: a arrecadação. O potencial dos cofres estatais pode influenciar – e muito – na

atuação direta do Estado na mitigação das desigualdades sociais.

Nesse sentido, cada vez mais autores reconhecem, na capacidade contributiva, uma

possibilidade real de redistribuição de fortunas, uma forma de alterar a distribuição imediata

realizada pelo mercado capitalista.

Para Sidou, a nitidez dessa caracterização vem ao estudar os objetivos dos impostos:

Atuando sobre a repartição, o objetivo equilibrador do imposto é diretamente social e indiretamente econômico, porque, compensando as desigualdades de fortuna [...] função imediata, objetiva o crescimento da capacidade econômica do contribuinte, função diferida [...] A função diferida decorre de que o desestímulo aos desníveis da fortuna privada num grupo social, à medida em que reduz aritmeticamente o poder econômico das classes mais abastadas, aumenta geograficamente a capacidade contributiva dos menos abastados. (SIDOU,1978, p. 41)

De fato, parece a capacidade contributiva ter adquirido cada vez mais essa função. Nos

termos estudados anteriormente, não cabe mais ao Estado manter sua posição de mero

espectador em um jogo parcial e desbalanceado que é o mercado econômico.

Antes pelo contrário. Cabe ao ente estatal agir, neutralizando os vícios que maculam o

sistema liberal e compensando os absurdos desníveis de igualdade que insistem em

caracterizar o mundo contemporâneo. Porém como realizar tal desiderato redistributivo?

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Os instrumentos afirmados anteriormente auxiliam esse propósito? Obviamente que

sim. A progressividade e seletividade na tributação permitem direcionar a maior parcela dos

custos de manutenção estatal para aqueles que expressam uma maior aptidão econômica para

concorrer com os mesmos. Poupar as classes menos favorecidas em atenção às suas

dificuldades econômicas já é grande expressão de igualdade constitucional. Porém, não

suficiente.

Sendo responsabilidade do Estado atuar de forma a minimizar as desigualdades que

assolam a humanidade, pode o mesmo direcionar parcela dos recursos angariados pela

atividade tributária para as camadas mais necessitadas. É a própria idéia de um sistema

tributário possibilitando a concretização de um aspecto social que até então era tido por

ausente na matéria fiscal.

Nesse sentido professa Derzi:

O belo no Direito Tributário é que esse ramo visa a tirar recursos financeiros dos mais ricos para utilizá-los em educação, saúde, assistência, e previdência social, etc, especialmente em benefício dos economicamente mais fracos. A justiça tributária é norma informativa de todo o direito, assim como de todas as espécies de tributos, mas acentua seu caráter redistributivo nos impostos (DERZI In: BALEEIRO, 2005, p. 200)

Não se ignora o fato de o artigo 167, IV da CF/88 impedir a vinculação dos recursos

advindos dos impostos, o que, em uma primeira análise poderia fazer cair por terra toda nossa

argumentação acerca da destinação dos numerários advindos da arrecadação para fins sociais.

Afinal, não há qualquer garantia de que o produto das exações advindas dos impostos terá, de

fato, destinação ligada à diminuição das desigualdades sociais.

Não obstante, a argumentação pela secção ente Direito Tributário e Direito

Orçamentário como dois pontos estanques não pode subsistir. Para vislumbrar a tributação

como forma de redistribuição de rendas, deve-se considerar a tributação em conjunto com o

Direito Orçamentário, uma vez ser este último o responsável pela alocação dos recursos

advindos daquela.

O tributarista mineiro Werther Spagnol, apoiado nos ensinamentos de Bereija, acaba

por concluir que a relação de instrumentalidade entre receita e gastos implica um estudo que

considere a relação de sistematicidade entre essas duas esferas, sob pena de perda da própria

razão normativa. E não carece de acerto o autor em comento.

Uma vez concluído que a tributação tem como um de seus fundamentos retores a

capacidade contributiva, também a destinação de seus gastos deve efetivar esses pressupostos.

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Afinal, é a mesma racionalidade constitucional que embasa e justifica tanto a exação quanto a

alocação financeira das verbas públicas. Conclui Werther que “a análise do binômio

ingressos-gastos passa necessariamente pela via orçamentária, responsável pela sua

contabilização, não podendo, portanto, a tributação ser estudada, enquanto meio de obtenção

de ingressos, apartada dessa dinâmica” (SPAGNOL,1994, p. 47).

Reforça o posicionamento antedito os americanos Murphy e Nagel, para quem

a maioria das questões acerca da justiça ou da imparcialidade do sistema tributário devem ser resolvidas considerando-se a tributação como um elemento de um panorama econômico muito mais abrangente, que inclui gastos com bens públicos e com a redistribuição (MURPHY, NAGEL,2005, p. 223)

Mas, mesmo para aqueles mais céticos e resistentes à idéia de uma atuação conjunta

do Direito Tributário e Orçamentário, pode a arrecadação ser percebida como efetiva forma

de destinação de recursos.

Isso porque não obstante sejam os impostos caracterizados pela sua não-afetação (art.

167, IV da CF/88), há tributos que apresentam característica exatamente oposta. É o caso da

previsão constante no artigo 149 da CF/88 que abarca as contribuições sociais, de intervenção

no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas.

Quando em análise as contribuições, é taxativa a determinação de sua destinação. Na

lei criadora desses tributos, deve, desde já, ser estabelecido o destino final das verbas deles

originários123.

Nessa trilha, não é difícil imaginar a União instituíndo uma contribuição sobre a

movimentação financeira cuja arrecadação efetivamente seja direcionada para custear projetos

da saúde, por exemplo.

No hipotético exemplo imaginado, o correto pagamento do tributo devido implicará

um repasse indireto para aqueles menos capazes de suprir a básica necessidade de

atendimento hospitalar ou gastos com a saúde em geral. Lado outro, seu não pagamento

significaria óbice na redistribuição de riquezas em benefício dos que permanecem em

condições precárias de vida.

Assim como é possível perceber a existência de um direito fundamental social em

relação à igualdade substancial, direito à moradia, saúde, enfim, toda a gama de direitos de

123 “O que importa sublinhar é que a Constituição caracteriza as contribuições sociais pela sua ‘destinação’, vale dizer, são ingressos necessariamente direcionados a instrumentar ou financiar a atuação da União (ou dos demais entes políticos, na específica situação prevista no § 1º do art. 149 renumerado pela EC n. 33/2001, com a redação da EC n. 41/2003) no setor da ordem social.” (AMARO, 2005 p. 53)

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segunda geração comumente elencados, é também possível apontar a existência de um dever

fundamental de segunda geração.

Conforme bem trabalha Nabais (2004), todo direito fundamental implicará também

um dever fundamental contraposto possibilitador de sua realização. Trata-se, no caso, de um

dever fundamental do contribuinte participar, com sua cota tributária, para que haja a

efetivação dos direitos fundamentais de segunda geração.

Posição mais radical de utilização redistributiva dos tributos é aquela defendida por

Murphy e Nagel.

Ao discorrer acerca da capacidade contributiva, os autores não se contentam a

trabalhar com um “mínimo universal” intangível pela fiscalidade tal qual se mencionou

anteriormente. Para eles, deve haver uma tributação negativa para aqueles indivíduos abaixo

desse “nível mínimo” representada na efetiva transferência de recursos financeiros para os

mesmos.

No entender dos autores, apenas será possível atingir os efeitos pretendidos pela

progressividade tributária se incrementarmos a renda daqueles que, não apenas não podem ser

tributados, mas ainda necessitam de auxílio financeiro direto.

Nós mesmos preferimos aquelas concepções de justiça segundo as quais a sociedade deve ter o objetivo de proporcionar a todos os seus membros pelo menos um nível mínimo de bem estar e de acesso às oportunidades. Essa doutrina exige que se considerem cuidadosamente dois tipos de progressividade no sistema tributário. Em primeiro lugar, a progressividade de uma substancial renda mínima universal, que resulta num imposto de renda negativo (transferência de dinheiro) para as faixas de baixa renda. Em segundo lugar, a progressividade das alíquotas marginais (MURPHY, NAGEL, 2005, p. 191)

No que tange à transferência direta de recursos aos contribuintes deficitários,

permanecemos tímidos em nosso posicionamento, não possuindo subsídios para concluir pela

sua eficácia ou ineficácia em um âmbito mais amplo. Mas de não se pode deixar de considerar

o risco de um paternalismo que, ao invés de propiciar uma inclusão democrática, acarreta, em

realidade, um passivismo cívico que contraria qualquer evolução social.

Entretanto, o que é mister destacar, e presente em ambas as atuações distributivas

fiscais, é a importância que a arrecadação apresenta no que tange à concretização do ideal

igualitário. A correta exação fiscal não mais representa uma agressão do Estado ao patrimônio

particular, mas sim é instrumento que torna capaz a atuação do Estado em seus objetivos de

isonomia constitucional.

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É certo que não apenas os direitos sociais, mas toda a gama de direitos fundamentais

depende de uma satisfatória arrecadação tributária. Afinal, conforme já debatido no início

deste trabalho, todos os direitos demandam um custo e prestações positivas por parte do

Estado.

Não se pode desconsiderar, porém, que foi a partir do constitucionalismo social que

mais se deu valor à atuação estatal dependente de recursos públicos. Diante disso, e

preservando nosso propósito de apontar as características básicas de cada momento

constitucional, não poderíamos deixar de apontar a importância da arrecadação tributária para

concretização das atuações estatais a partir do estudo dos direitos de segunda geração.

5.2.3 A intervenção do Estado no domínio econômico como concretização dos

direitos sociais

No início deste capítulo, chegou-se à conclusão de que a intervenção estatal na esfera

econômica é necessária para a efetivação dos direitos de segunda geração. A inércia do Estado

já comprovou ser, a duras conseqüências, desvirtuadora do conceito material de justiça e

igualdade. Esses foram os frutos da abstenção pública teorizada nos séculos XVII a XIX.

Da mesma forma, concluiu-se que a realização dos direitos de segunda geração (e

também de outras gerações!) implica uma atuação na vida econômica, evitando assim, o

abuso do capital privado e a manipulação do mercado por parte deste. Mas não apenas.

A intervenção pública se mostra também imprescindível se analisada a possibilidade

de conformação das ações privadas visando o alcance de um direito determinado. Essa

dimensão negativa, a capacidade de induzir os particulares com escopo de otimizar a

efetivação dos objetivos constitucionais pode ser tão determinante quanto a atuação direta e

imediata do Estado na vida social (dimensão positiva).

Não por outro motivo Alberto Deodato (1949, p. 05-15), em obra destinada

exclusivamente à extrafiscalidade e elaborada ao final da década de 40, se defronta com a

percepção social dos estragos sociais em que o “Estado Gendarme” culminou. Apontando

medidas combativas de uma crise social tal qual observada anteriormente, Deodato apóia-se

nos artigos constitucionais (art. 145 e 146 da CF/1946) em que consta previsão de uma ordem

econômica justa com presença estatal.

Como atuar a fim de efetuar tais desideratos é o que se verá a seguir.

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5.2.3.1 A extrafiscalidade

Após o desenvolvimento das características que marcaram o aparecimento e

desenvolvimento do constitucionalismo social, espera-se já restar claro o quão necessária a

presença do Estado para a efetivação dos direitos ditos de segunda geração. A anterior inércia

estatal demonstrou ser, a duras penas, desvirtuadora da idéia de justiça e igualdade. Porém,

mais uma vez deve-se destacar. Não apenas esses, mas todos os direitos fundamentais

demandam tal presença, sejam eles classificados como liberais, sociais ou mesmo difusos!

Mesmo porque não se pode segmentar, de forma estanque, o bloco único e inter-relacional

que compõem tais direitos. Momento algum é abandonada a indivisibilidade que hoje se

reconhece aos mesmos (Cf. cap. III). Eventuais críticas pela análise apartada ora realizada

representarão, em realidade, o não entendimento da preferência meramente didática em

apresentar ao leitor as nuances predominantes em cada momento constitucional. Acredita-se,

assim, já restar clara a implausibilidade de se destacar, de forma objetiva, quais direitos

pertencem a cada geração respectiva. Afinal

conforme o caso, por exemplo, o direito ao meio ambiente saudável pode ser tratado argumentativamente como questão interindividual de direito de vizinhança, como condições adequadas de trabalho de uma categoria profissional, ou, até mesmo, como direito das gerações futuras: depende da perspectiva argumentativa, se individual, coletiva, social ou difusa de quem o defende em juízo (OLIVEIRA, 2003, p. 137)

Quando do Estado Patrimonial, a tributação não apresentava o relevo para as contas

públicas tal qual a atualidade, permanecendo assim, com caráter de subsidiariedade. De todo

modo, certas tarefas determinantes para aquele modelo de Estado eram atribuídas ao sistema

fiscal, principalmente em decorrência dos tributos extrafiscais, entendidos como aqueles

destinados a propósitos outros que não a arrecadação financeira estatal. Seu foco deixa de ser

a arrecadação, para se dirigir a outros interesses.

Nessa senda, perseguem os tributos extrafiscais fins imediatos sociais, políticos,

econômicos, ou mesmo o escopo de determinar, ou pelo menos, estimular ou desestimular

alguma outra conduta por parte dos contribuintes que esteja em consonância com os interesses

estatais.

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Essa atuação indireta do Estado por meio do sistema tributário pode ser alcançada pela

exação positiva ou negativa, ou seja, tanto pela maior oneração tributária, como também por

reduções e isenções/benefícios fiscais.

Trata-se assim, de normas (fiscais) que, ao preverem uma tributação, isto é, uma ablação ou amputação pecuniária (impostos), ou uma não tributação ou uma tributação menor [...] estão dominadas pelo intuito de actuar directamente sobre os comportamentos econômicos e sociais dos seus destinatários [...] ou seja, de normas que contêm medidas de política económica e social. (NABAIS, 2004, p. 629)

Percebendo que a majoração ou redução de tributos aduaneiros acarretava alterações

no número de importações e exportações em razão da modificação do preço dos produtos

correspondentes, o Estado utilizava tal estratégia fiscal a fim de manter positiva sua balança

comercial. Era a época do mercantilismo e da preponderância das exportações sobre as

importações como medida de desenvolvimento das nações.

O posterior período liberal, calcado na crença de auto-regulação econômica, inadmitia

a intervenção estatal em qualquer seara que pudesse macular a pureza do sistema sócio-

econômico, inclusive através de regulações indiretas por meio da tributação. Em razão disso,

a extrafiscalidade, ameaçadora da neutralidade retora dos ideais liberais, perdeu fôlego à

época sem, contudo, desaparecer completamente.

Nesse período, vislumbrava-se a tributação apenas em sua finalidade fiscal, ou seja,

em sua capacidade de auferir rendas para sustento dos dispêndios públicos. Nesse sentido,

tal finalidade corresponde à meta econômica dos sistemas tributários mais antigos, que limitavam a utilização dos impostos para um fim unicamente fiscal, determinado pelo total das necessidades públicas [...] A economia clássica, condenando em princípio toda intromissão do Estado no desenvolvimento econômico, propugna pelo imposto como instrumento exclusivamente financeiro, para servir como carreador de receitas públicas necessárias para as despesas do Estado, não para outros fins. (MORAES, 2002, p. 441) (grifos nossos)

Certo é, porém, que já com A. Wagner, no final do século XIX, se buscava a

concepção de que os impostos, além de sua mera função fiscal, deveriam também ser

utilizados para correção das distorções do mercado (NABAIS, 2004, p. 229). Desde já se

percebia que a ausência de mecanismos para conter as distorções causadas pelo jogo

econômico levaria ao próprio caos que caracterizou a transição do século XIX ao século XX.

No entanto, a visão do autor antedito se restringiu aos teóricos do socialismo estatal, não

alcançando de forma plena o âmbito financeiro-tributário.

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Para Nabais (2004, p. 230 e ss.) a crítica ao pensamento de Wagner acerca da

instrumentalidade da figura tributária começou com negação absoluta e incisiva à função

extrafiscal dos impostos, não a admitindo em qualquer grau ou intensidade. Essa rejeição foi

motivada pelo resquício das idéias liberais contrárias a uma postura intervencionista por meio

do Fisco.

Posteriormente, porém, em razão do próprio avanço do Estado social, passa-se a exigir

a instituição de mecanismos de atuação estatal no domínio econômico. Essa era, ademais, a

própria crítica que Keynes direcionava ao abstencionismo estatal. Para ele, a economia

clássica conseguia seus desideratos quando o cenário era favorável, mas uma vez

estremecidas as condições econômicas, cabia à intervenção estatal garantir a estabilidade e o

desenvolvimento (BARBER,1979, p. 239 e ss.). Com essas idéias em ascensão, foram

mitigados os argumentos contrários à extrafiscalidade, dando azo, assim, à sua aceitabilidade

inicial. A partir desse momento passa a ser propagada a “teoria do fim extrafiscal secundário”.

Segundo essa linha de pensamento, é aceitável que os impostos tenham por escopo

fins outros que não a mera arrecadação de verbas de custeio, apresentando, assim, uma

finalidade secundária que não a finalidade fiscal. Esta última, mantendo a força adquirida no

período liberal, não tinha de ser exclusiva, mas mantinha seu status de objetivo principal da

tributação. Daí a “secundariedade” da finalidade extrafiscal identificada já na classificação da

teoria.

Em que pese a falta de expressividade da extrafiscalidade, na sessão de 1948 em

Roma, Neumark deu novo ânimo ao debate. Após examinar a realidade tributária de sua

época, concluiu o autor que os impostos são, de fato, instrumento de política econômica,

social e demográfica dos países (BALEEIRO, 1987, p. 182).

Diferente não poderia ter sido. O próprio momento histórico pedia um maior espaço à

intervenção estatal tributária. Após a crise da bolsa americana em 1929 e o reconhecimento do

fracasso da inércia do Estado, a extrafiscalidade passou a ganhar novo terreno como política

de intervenção econômica, possibilitando assim, o alargamento da “Central Banking Policy”

(HUGON, 1945, p. 28).

De todo modo, apenas mais tarde, no entardecer do século passado, em meados da

década de setenta que o caráter “secundário”, ou subsidiário, da extrafiscalidade é

abandonado. Torna-se mais visível que a utilização extrafiscal da tributação, não contradiz o

Estado social, mas de fato, é um eficaz instrumento à sua disposição. Uma vez a realidade

social e econômica tendo se mostrado sensíveis à extrafiscalidade, essa passa a ser percebida

como viabilizadora dos próprios objetivos lançados ao constitucionalismo social.

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A compatibilidade dessas idéias é clara. Conforme mencionado, não mais se cogita a

hipótese de uma inércia do ente estatal comungando com as conseqüências sócio-econômicas

(im)previsíveis do liberalismo sem freios. Nessa toada, nada mais adequado que a utilização

de um instituto já presente na esfera soberana para conciliar os objetivos estatais e atuar na

ordem econômica.

Nesse sentido, conforme bem expressa o autor lusitano que alude a essa evolução

histórica,

os objectivos extrafiscais dos impostos não são apenas admissíveis, mas antes exigíveis, de modo a que a actividade fiscal concorra directamente para a prossecução dos fins constitucionais, nos quais se inclui a própria modificação da base económica e social exigida pela constituição em ordem à realização da já referida igualdade de facto. Em suma, o uso do instrumento tributário no sentido extrafiscal, não é apenas constitucionalmente legítimo, antes se tornou num dever constitucional. (NABAIS,2004, p. 240) (grifos nossos)

Com efeito, não se pode negar a capacidade que a tributação tem em incitar ou inibir

comportamentos particulares, onerando ou desonerando124 certas atividades.

Mesmo encarando-se o imposto como tendo a única função de financiar as despesas públicas e de repartir os encargos coletivos, os seus efeitos estão longe do ideal de neutralidade financeira. Qualquer medida fiscal, queira o legislador, queira não, terá repercussões não fiscais (DEODATO,1949, p. 46)

Exatamente por isso, não apenas é possível identificar a extrafiscalidade125 na

tributação, sendo desconsiderado o questionamento acerca de sua legitimidade constitucional,

como também a própria classificação clássica acerca dos papéis das espécies tributárias não

mais se sustenta.

Tradicionalmente, os tributos são divididos entre parafiscais, fiscais e extrafiscais.

124Esclarece ainda Nabais (2004, p. 636 e ss.) que durante longo tempo houve certa reticência quando à aceitação dos benefícios fiscais como mecanismo extrafiscal, posicionamento que hoje não mais persiste, com a ressalva de alguns poucos, tais como L. Ras-Tello. 125 Acerca dos autores espanhóis: “la doctrina, cuando aborda la concepción de la extrafiscaliadd, lo hace, mayoritaritamente, desde una perspectiva negativa: la define como el fenómeno tributario que provoca un alejamiento de mayor o menor grado, respecto del fin natural del instituto tributario, que es el fiscal, conforme al cual se configura el mismo instrumento medial, allegando los medios económicos necesarios para alcanzar los fines del Estado. De lo expuesto podemos deducir que la mayoria de la doctrina define la extrafiscalidad como un fenómeno sin entidad propia, sin unos perfiles claros [...] En la actualidad, el fenómeno de la extrafiscalidad se presenta de modo cualitativamente distinto. Incluso pude definirse de modo positivo. Desde ésta perspectiva, la extrafiscalidad deja de ser um modo de configuración de los tributo ajeno o marginal al fenómeno tributário para presentarse como um modo de ser del fenómeno impositivo em la época contemporanea, encaminado a hacer realidad, dentro del respeto a los princípios materiais de justicia, los mandatos constitucionales” (MORO: 1999, p. 50)

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Certas vezes, o Estado prefere atuar em conjunto com pessoas jurídicas distintas, seja

pela sua maior especialização, seja pela própria simplicidade administrativa desoneradora do

Estado. Podem, então, ocorrer duas hipóteses.

Em uma primeira situação, o sujeito ativo particular arrecada e fiscaliza a exação, com

todas as garantias e privilégios pertinentes (art. 7º do CTN), mas repassa, ao final, o produto

da arrecadação ao ente político competente.

Há possibilidade, porém, de o sujeito ativo, além de arrecadar e fiscalizar a respectiva

obrigação fiscal, manter consigo os valores advindos da tributação, utilizando-o na prestação

de suas atividades específicas. É o caso da parafiscalidade.

Nessa toada, são parafiscais126 aqueles tributos que têm suas “receitas diretamente

atribuídas a certas entidades criadas pelo poder público para o desempenho de determinadas

atividades, cujas características técnicas exigem autonomia administrativa e financeira”

(BECKER,1972, p. 349). Exemplo claro são as contribuições destinadas ao terceiro setor:

SESC, SENAC, etc..

Discordamos da lição de Alfredo Becker apenas em um ponto. Enquanto para o autor

apenas entidades criadas pelo poder público podem se relacionar com o Estado por meio da

parafiscalidade, entendemos que também as entidades privadas podem atuar em conjunto com

o poder público, posicionamento este, mais concordante com as lições de Bernardo Moraes127

e de Geraldo Ataliba (ATALIBA, 2005, p. 35).

Em que pese nosso posicionamento crítico à distinção classificatória tradicional, a

diferenciação dos tributos parafiscais ainda pode se afirmar pertinente. Mas é interessante

observar que o direcionamento de recursos advindos da tributação a entidades privadas para

estimulá-las a atuar em conjunto com o Estado pode também ser entendido como uma espécie

de extrafiscalidade. Ou seja, mesmo aqui há uma confusão entre as diversas classes de

tributos identificados pela doutrina. Mais uma vez nos firmamos contrários à segmentação

absoluta que relembra o cartesianismo do século XVIII.

Prosseguindo, seriam fiscais aqueles tributos destinados unicamente à obtenção de

receitas para o sustento dos gastos públicos. Teriam assim, função exclusivamente financeira,

126 Conforme ensina Aliomar Baleeiro, “a expressão – parafiscalidade – se consagrou a partir do inventário de Schumann, realizado na França, em 1946, que levantou e classificou os encargos assumidos por entidade autônomas e depositários de poder tributário, por delegação do Estado, como parafiscais” (BALEEIRO,2005, p. 82) 127 “Assim, podem figurar como sujeito ativo da obrigação tributária relativa à contribuição especial tanto a união, como suas autarquias ou órgãos de assistência social (SESI, SENAC, SENAI, etc.) ou profissionais (sindicatos, órgãos de classe, etc.). Portanto, a lei pode oferecer capacidade tributária ativa tanto para a União como para pessoa distinta do Estado, desde que investida em funções públicas específicas” (MORAES,2002, p. 646)

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de garantir ao Estado o orçamento pecuniário para a concretização das atividades estatais, sem

qualquer reflexo em outras searas da vida social. Para Paulo de Barros Carvalho,

fala-se, assim, em ‘fiscalidade’ sempre que a organização jurídica do tributo denuncia que os objetivos que presidiram sua instituição, ou que governam certos aspectos de sua estrutura, estejam voltados ao fim exclusivo de abastecer os cofres público, sem que outros interesses – sociais, políticos ou econômicos – interfiram no direcionamento da atividade impositiva. (CARVALHO, 2004, p. 230)

Por fim, os tributos extrafiscais já apresentados ao leitor, cuja implementação – ou não

implementação, caso dos benefícios fiscais tais como isenções e imunidades – o Estado

consegue incitar ou coibir certas práticas ou políticas adotadas pelos particulares.

A problemática que se impõe acerca da classificação supra mencionada é que não mais

é possível realizar a distinção delineada entre tributos exclusivamente fiscais e extrafiscais.

Todo o sistema tributário está tanto impregnado de extrafiscalidade, e sua conseqüente

tentativa de influenciar os comportamentos particulares, quanto de intuito arrecadatório.

Obviamente, é equivocado o entendimento de que, após alçado o reconhecimento da

extrafiscalidade tributária, a tributação tenha perdido sua função inicial de obtenção de

receitas para os gastos públicos. O Fisco ainda é a fonte de custeio dos gastos estatais.

Entretanto, não se pode deixar enganar pela ilusão de se conseguir trabalhar de forma

estanque apenas a fiscalidade dos tributos.

Pautados pela lógica da acumulação de riquezas, qualquer oneração fiscal com que se

depararem, irão os particulares apresentar maior resistência em manter a prática dos fatos

geradores, buscando, assim, outras alternativas que lhes possibilitem menos despesas. Essa

lógica prevalece ainda que, a princípio, a instituição da exação tenha ocorrido em virtude

apenas de objetivos arrecadatórios.

Além do mais, a previsão por parte do legislativo quanto a todas as possíveis

conseqüências de uma criação ou modificação na carga tributária se mostra inimaginável.

Assim, várias serão as hipóteses em que uma norma de objetivos fiscais irá gerar efeitos

econômicos, sociais ou políticos mesmo sem a intenção estatal.

E a recíproca também é verdadeira.

Dessa forma, há momentos em que o Estado, voluntariamente, institui, aumenta ou

diminui uma obrigação fiscal com a expectativa de modificar os comportamentos dos sujeitos

passivos a ela relacionados.

É o caso, por exemplo, da utilização da progressividade dos tributos IPTU (art. 156 §

1º, c/c art. 182, § 4º, II, ambos da CF/88) e o ITR (art. 153, § 4º, I da CF/88). No caso do

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IPTU progressivo, trata-se de uma expressa intenção constitucional em promover a função

social da propriedade urbana, criando obstáculos àqueles que com ela não se adeqüam. É

assim instrumento de efetivação do conteúdo de propriedade preocupada com o entorno social

(fruto do paradigma social) por meio da tributação.

No entanto, a adoção dessas medidas também irá gerar impactos sobre a arrecadação

tributária. Não há como argumentar contrariamente.

Nas palavras de Gouvêa, “a fiscalidade e a extrafiscalidade não se excluem, senão que

se complementam sempre, pois não há fiscalidade (arrecadação) que não importe outras

conseqüências, nem extrafiscalidade que se opere sem a arrecadação de receitas

tributárias.(GOUVEA, 2006, p. 80)

Não obstante essa evolução da visão classificatória, ainda há aqueles que persistem em

uma análise seccionante da tributação. Tanto o é que definem limites distintos à atuação

tributária de “espécies fiscais” e “espécies extrafiscais”.

5.2.3.1.1 Limites da extrafiscalidade e seu conflito com a capacidade contributiva

Interessante questão se apresenta quando da análise dos limites aos quais deve se

atentar a utilização da extrafiscalidade. Para doutrinadores como Werther Botelho, os limites

à extrafiscalidade não se distinguem das demais técnicas tributárias. Percebendo o sistema

fiscal como um corpo único, Werther recorda que

não se pode olvidar que a tributação responde a princípios globais e, devem ser os mesmos interpretados em consonância com as normas constitucionais, visto que interdependentes[...] é mister fincar que os limites à tributação extrafiscal são os mesmos impostos de maneira geral ao poder de tributar (SPAGNOL, 1994, p. 40)

Por sua vez, para Casalta Nabais (2004, p. 645 e ss.), há limites distintos aos tributos

fiscais e extrafiscais, o que de per se implica a admissão da classificação dicotômica acima

questionada. Preferimos optar pela idéia de que há tributos que apresentam maior densidade

ou tendência extrafiscal, ou maior densidade ou tendência fiscal. Nesses casos,

compatibilizam-se as idéias de Nabais com a desconstrução classificatória realizada por

Gouvêa.

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Para o autor lusitano, os tributos fiscais devem ficar mais atentos aos limites traçados

pelo princípio da legalidade tributária e a suposta rigidez que essa garantia legalista propõe.

Por outro lado, as exigências da legalidade devem ser atenuadas diante das influências que as

demandas sociais, políticas e ambientais exigem da tributação. Em virtude disso, a

extrafiscalidade apresenta, para o autor, uma “legalidade soft” (NABAIS, 2004, p. 655).

Com efeito, há impostos no Direito brasileiro que, após instituídos por meio de lei,

podem ter suas alíquotas alteradas por meio de decreto do Poder Executivo, representando,

assim, exceção ao princípio da legalidade. É o que ocorre com o IPI (impostos sobre produtos

industrializados), II (imposto sobre importação), IE (imposto sobre exportação) e IOF

(imposto sobre operações financeiras) (art. 153, incisos I, II, IV e V, c/c §1º do mesmo art.

153 da CF/88), tributos cujas modificações de alíquotas ocasionam rápidos efeitos no

mercado econômico. Da mesma forma, a diminuição e restabelecimento da alíquota da CIDE

referente a petróleos e derivados (art. 177, § 4º, I”b” da CF/88).

E de outra forma não poderia se dar. Considerando a forte mutabilidade dos cenários e

decisões econômicas, deve o Estado ter em mãos instrumentos interventivos de semelhante

agilidade sob pena de total perda de eficácia. Para que esses impostos extrafiscais consigam

acompanhar as necessidades regulatórias do mercado, a própria legalidade, princípio absoluto

em momento precedente, deve parcialmente ceder.

Questão diferente se encontra a limitação da extrafiscalidade pela igualdade ou

capacidade contributiva.

Dentro da doutrina brasileira, identifica-se corrente, da qual é componente Lobo

Torres (2005, p. 97), no sentido de a extrafiscalidade ter como principal limite a própria

capacidade contributiva.

Noutra trilha, há autores na defesa de que, quando a tributação se dirige a estimular ou

desestimular comportamentos particulares, ela não é capaz de observar a o princípio

contributivo.

É isso que faz Nabais afirmar que o princípio da igualdade não tem qualquer aplicação

nessas espécies tributárias: “no concernente ao primeiro setor – o dos impostos extrafiscais ou

dos agravamentos extrafiscais de impostos –, o princípio da legalidade fiscal sofre uma

atenuação, enquanto o princípio da igualdade fiscal não tem em rigor aplicação” (NABAIS,

2004, p. 659).

Já na construção do pensamento de Ávila (2006, p. 350 e ss.), a questão deve ser

resolvida, jurisdicionalmente, por meio da ponderação de valores teorizada por Alexy.

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Muito embora a teoria alexyana possa representar uma superação do ranço positivista,

ela acaba por cair em algumas armadilhas. Destaca-se o fato de não ser capaz de diferenciar

argumentos jurídicos e políticos, permitindo, assim, uma análise “custo-benefício” por parte

do intérprete. Tarefa essa que, a princípio, resta situada na esfera legislativa, e não

jurisdicional.

Dessa forma, Ávila acredita que cabe ao jurista verificar se a violação ao direito da

igualdade tem uma relação de “medida-fim” com o objetivo extrafiscal. Noutros termos,

caberia ao intérprete verificar se o benefício da extrafiscalidade justifica o custo da

desigualdade provocada pela ação não-fiscal dos tributos, realizando a análise de vantagens e

desvantagens que a prevalência da extrafiscalidade sobre a igualdade acarreta no caso

concreto128.

Não é a opinião com a qual compartilhamos.

De fato, quando se realiza a graduação de alíquotas para fins extrafiscais, há

incidência das mesmas sobre todos os particulares inseridos no papel de sujeito passivo da

obrigação tributária. Ora, se o objetivo que impulsiona o Estado é a conformação dos

comportamentos dos cidadãos – e não a repartição dos encargos dos cofres públicos –, não se

pode falar em exceção à exação fiscal. Mesmo aos menos favorecidos. Esse é o ponto que

constrói o pensamento de total anulação do princípio da igualdade.

Não se pode esquecer, porém, que a capacidade contributiva absoluta é um verdadeiro

ditame constitucional que não pode ser simplesmente largado para que o Estado possa atuar

na economia. A busca por uma conquista social – presença estatal na sociedade – não

contraria a outra – respeito à isonomia.

Assim, a extrafiscalidade pode sim afastar a capacidade contributiva para fins de

critério de gradação. No entanto, deve observar sempre a escolha dos fatos geradores que

servirão de base para a cobrança fiscal. É de se lembrar o posicionamento de Moro

mencionado páginas atrás: “o legislador deverá tipificar como fato imponível de um tributo

todas as situações expressivas de capacidade econômica no sujeito, que respondam à idéia de

justiça que informa o estabelecimento do mesmo” (tradução nossa)129 (MORO,1999, p. 68)

128 “...a desigualdade com base em fins externos (finalidades extrafiscais) deve ser proporcional (relação ‘medida-fim-bem-jurídico’) no sentido de saber se a medida (o meio) é apto para promover a finalidade extrafiscal almejada (relação ‘meio-fim’), se a medida consiste no meio mais suave relativamente ao direito fundamental à igualdade de tratamento (relação ‘meio x meio’) e se as vantagens decorrentes da promoção da finalidade extrafiscal estão em relação de proporção com as desvantagens advindas da desigualdade (relação ‘vantagens x desvantagens’).” (ÁVILA,2006, p. 350-351). 129No original: “el legislador deberá tipificar como hecho imponible de um tributo todas las situaciones expresivas de capacidad económica en el sujeto, que respondan a la idea de justicia que informa el estabelecimento del mismo”

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E isso porque “o fato de a tributação extrafiscal colimar fins diversos da simples

captação de dinheiro para o erário não autoriza o legislador e demais operadores do Direito a

olvidarem a capacidade contributiva” (LEÃO, 1999, p. 28).

Não fosse suficiente, é interessante ressaltar que a utilização de impostos com maior

dimensão extrafiscal, pode, última análise, ser instrumento de efetivação da própria igualdade

substantiva.

Quando o Estado atua no campo econômico, ele o faz em busca da maximização dos

objetivos constitucionais, dentre eles, a igualdade. Tomem o exemplo das políticas de

investimento e atração de indústrias para determinadas regiões do país por meio da alteração

de alíquotas tributárias. Apesar de uma aparente violação à idéia de isonomia – já que certas

empresas serão mais beneficiadas que outras situadas em local distinto – não há que se falar

em desigualdade constitucional, antes pelo contrário.

É importante estar atento para a nova concepção isonômica que o constitucionalismo

social trouxe aos ordenamentos jurídicos. Igualdade não mais significa um tratamento

idêntico entre todos, mas sim em um tratamento desigual, desde que arrazoado e justificado. É

nesse sentido que o próprio texto constitucional vem prever no art. 151, I, c/c art. 170, VI, a

vedação de criação de tributo federal não uniforme entre pessoas federativas, sendo possível,

porém, a concessão de incentivos para melhor promover o equilíbrio sócio-econômico entre

as diversas regiões brasileiras e redução de suas desigualdades regionais e sociais. Daí que

essa postura de extrafiscalidade não desrespeita, mas sim corrobora a efetivação da igualdade.

5.2.4 Reflexos hermenêuticos: a interpretação econômica e a inflação normativa

pelo Executivo.

Vencida a análise dos impactos materiais dentro do sistema fiscal em razão da

alteração que o constitucionalismo social apresentou quando comparado com seu antecessor,

mister referenciar os reflexos hermenêuticos que surgiram neste novo momento constitucional

em ligação do com Direito Tributário.

Com a maior imponência estatal, representada tanto na assunção de um maior número

de serviços prestacionais, como em uma maior atuação na esfera econômica, o Estado, na

pessoa do chefe do Poder Executivo, sentiu necessidade de um aumento progressivo na

condução dos espaços social, econômico, e também jurídico. A supremacia do interesse

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público, esboçada nas idéias de Hegel, ganhou uma instrumentalização hermenêutica

importante com o desenvolvimento da teoria do Estado de Carl Schmitt. Nos termos já

destacados, este teórico alemão segmentou a Constituição em dois planos (formal e material),

dando o chefe do Executivo a habilitação para determinar qual a única interpretação correta

da mesma. Noutros termos, o conteúdo material da Constituição residia nas mãos do Füher.

Esta é tese que, justamente por ser característica dos Estados totalitários, não ganhou adeptos

em todos os Estados sociais.

Contudo, sua teoria não se esgota neste ponto. Schmitt também previu a existência de

um legislador extraordinário, paralelo ao Poder Legislativo propriamente dito, por meio do

qual o Poder Executivo poderia lançar medidas normativas para regulamentar as nuances

sócio-políticas enfrentadas.

É algo próximo ao que ainda se identifica no cenário tributário brasileiro. É de largo

conhecimento o fato de que o compêndio de normas tributárias já não se esgota nas

legislações emanadas pelo Congresso Nacional. Antes pelo contrário!

Não fossem suficientes as medidas provisórias com reconhecida legitimidade para

criação de tributos, e cuja “urgência e relevância” não são aferidas, em regra, pelo Poder

Judiciário (AI-AgR 489108 STF – DJ 26/05/2006), há também o oceano de portarias,

resoluções, instruções normativas, etc.

Atuando como um “legislador extraordinário schmittiano”, o Executivo acaba por se

apoderar de funções muitas vezes destinadas ao Poder Legislativo! Obviamente, não se ignora

aqui o entendimento teórico no sentido de que os atos administrativos não detêm legitimidade

para inovar no cenário jurídico, devendo unicamente regulamentar a “moldura” delineada pela

legislação formal. Mas ainda que observada tal limitação (o que nem sempre ocorre), a

regulamentação apropriada aos decretos, resoluções, portaria e outros instrumentos emanados

pelo Executivo, a inflação normativa propiciada pela atuação desmesurada do Estado vem

desfacelando o sistema tributário.

É o que Becker (1999, p.17 e ss.) constata e caracteriza como um “carnaval

tributário”.

No que tange a tais implicações aos contribuintes, já destacado no capítulo anterior. A

quantidade excessiva de normas, ao contrário de assegurar uma melhor atenção aos seus

conteúdos, resulta, unicamente, em uma complexa rede legislativa em que nem mesmo os

operadores do Direito conseguem navegar apropriadamente, quiçá os contribuintes!

Mas um segundo reflexo do paradigma do Estado social dentro da prática tributária

brasileira pode ser percebido. Já estudado que, em virtude da forte mutabilidade dos mercados

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econômicos, há impostos no Direito Brasileiro que, após instituídos por meio de lei, podem

ter suas alíquotas alteradas por meio de decreto do Poder Executivo, representando, assim,

exceção ao princípio da legalidade. É o que ocorre com o IPI, II, IE e IOF (art. 153, incisos I,

II, IV e V, c/c §1º do mesmo art. 153 da CF/88).

Nesses casos, em consonância com a ampliação de poderes do chefe do Executivo, o

Governo consegue determinar decisões cuja força normativa, a princípio, deveria ser

reservada às decisões articuladas pelo Poder Legislativo democraticamente eleito para tanto.

Todavia, este não é a única questão ligada à hermenêutica tributária que se apreende

da verificação da maximização do papel do Estado. Juntamente a isso, imprescindível

destacar a interpretação econômica, intimamente ligada aos demais elementos que

emergiram no mesmo período.

Tanto assim o é, que a primeira aparição positivada da teoria da interpretação

econômica ocorreu em 1919, quando da promulgação do Código Tributário Alemão em cujo

anteprojeto, de autoria de Enno Becker, se lia:

§ 4º: Na interpretação das leis fiscais deve-se ter em conta a finalidade, o seu significado econômico e a evolução das circunstancias. § 5º: A obrigação do imposto não pode ser evitada ou diminuída mediante o abuso das formas e das possibilidades de adaptação do direito civil

O marco cronológico de seu surgimento, por si só, já argumenta a proximidade que a

interpretação econômica guarda com a nova composição de direitos fundamentais e ideais que

surgiam à época. Capacidade contributiva, igualdade material, presença estatal na vida

econômica, enfim são todos elementos que bem coadunam com a Constituição de Weimar,

também datada de 1919, e apontada como marco do constitucionalismo social.

Em que pese a aparição, não por acaso, em conjunto com o nascimento do segundo

paradigma, a antevista interpretação ganhou maior espaço junto ao apogeu dos regimes

nazista e fascista na Europa (BECKER,1999, p. 139-143). Sua adoção pelos regimes

totalitários, em que a força da discricionariedade do Executivo se torna exacerbada,

estigmatizou a interpretação econômica, criando-lhe uma áurea negativamente mitificada. De

todo modo, não se pode deixar de apontar que, de fato, sua proposta hermenêutica dispensa os

formalismos legalistas e assegura um maior campo de manobra para os anseios estatais.

Segundo sua proposta, o Direito não pode restar preso a aspectos formais que visam

burocratizar os procedimentos fiscais. Assim, para fins de exação, deixam de ser consideradas

as referências meramente técnicas consubstanciadas em nomes de institutos jurídicos diversos

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– p.e. doação; compra e venda – como fonte discernidora das obrigações tributárias, para

dirigir seu foco de análise a uma postura mais pragmática e buscar os aspectos e impactos

econômicos efetivamente realizados no mundo jurídico. Segundo tal técnica interpretativa,

passaria a ser regra, e não exceção, o norteamento do intérprete, não pelos fatos ou atos

jurídicos formalmente apresentados, mas sim o fato ou efeito econômico implícito ou

subjacente à formalização antedita. Este enfoque econômico seria, nessa trilha, a fonte, ou

melhor, o próprio objeto de estudo do intérprete.

Esta nova perspectiva de análise dos fatos, atos e situações jurídicas tributáveis viria à

tona e se desvencilharia do método anterior sempre que houvesse alguma espécie de

utilização abusiva das formas jurídicas postas à disposição dos contribuintes quando da

realização de seus negócios privados. E referido abuso se daria, no entender de seus

formuladores, sempre que o indivíduo ou a empresa se utilizasse de uma estrutura jurídica

com vistas a objetivos atípicos à mesma.

Sua predisposição em analisar a lei pelo viés financeiro ganhou alguns adeptos dentre

os autores pátrios (FALCAO, 1993) muito em razão de sua instrumentalização a favor da

efetivação e observância da capacidade contributiva dos fenômenos tributados.

Mas, como tal efetivação ocorre, e qual a polêmica junto à doutrina brasileira?

Dentre as diversas possibilidades de diálogo da seara tributária com os demais sub-

sistemas jurídicos, destaca-se o art. 110 da CTN, onde se lê que

a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado utilizados, expressa ou implicitamente pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.

Em nossa concepção estamos diante unicamente de dispositivo que reforça a

delimitação de competências tributárias decorrente do federalismo brasileiro. Nesses termos,

uma vez o art. 155, I da CF/88 determinar que compete aos Estados e Distrito Federal instituir

impostos sobre doações e, paralelamente, o art. 156, II do mesmo texto deferir aos Municípios

a criação de impostos sobre transmissões inter vivos por ato oneroso, não pode uma lei

estadual afirmar que, para fins de ITCD, entende-se doação toda alienação realizada

onerosamente.

Isso sim, poderia ser considerado um desvirtuamento de institutos de Direito Privado

para fins de instituição tributária. Repare, porém, que, pelo nosso entendimento do artigo

citado, a interpretação econômica não serviria de qualquer efeito, pois doações e compra e

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venda detêm realidades econômicas distintas e respeitadas por esta nova técnica

interpretativa.

Entretanto, os autores tendem a pensar o art. 110 do CTN de forma diversa.

Considerável parcela dos doutrinadores tem demonstrado um pendão para compreender que,

caso a legislação tributária faça qualquer menção a determinado instituto de direito privado,

tal norma deverá ser entendida com base na tipicidade descritiva fiscal, restringindo ao

máximo qualquer possibilidade interpretativa ao núcleo do respectivo instituto, ainda que

outras hipóteses pudessem ser abrangidas pela competência tributária constitucional.

Ocorre que referido formalismo poderia vir a cair por terra caso a interpretação

econômica viesse a desconsiderar essas nuances privatísticas e atingisse de forma similar as

distintas situações formalizadas, mas com idêntico impacto econômico. Noutros termos, boa

parte das atividades elisivas calcadas na distinção formal de institutos em busca da realização

de negócios indiretos seria desbaratada em razão da obtenção dos mesmos resultados

financeiros típicos dos negócios jurídicos formais tributados e evitados pelos contribuintes

elisivos. E o obstamento da elisão fiscal representaria, para o Estado social, uma otimização

arrecadatória tida como necessária para as teorias à época – ainda que não tenha sido criada

intencionalmente com tal propósito (GODOI, 2007, p. 259 e ss.).

A identificação da interpretação econômica no Direito Pátrio já havia sido ventilada

quando do anteprojeto de Código Tributário Aranha de Souza (PRATES, 1992, p. 70 e ss.).

Entretanto, o debate acerca de sua incorporação ao nosso sistema jurídico ganhou novo fôlego

com o advento do parágrafo único do art. 116:

a autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.

Alguns autores nacionais, geralmente filiados a uma busca pela igualdade material

instrumentalizada pelo Direito Tributário, acompanham a possibilidade de sua utilização.

Muitos deles, porém, afirmam que sua aceitação em nada depende da disposição trazida no

art. 116 do CTN.

Nesse sentido, Amílcar Falcão assevera que interpretar economicamente a norma

tributária nada mais é do que respeitar a própria lógica do sistema fiscal, afinal, se “ em

direito civil interessam os efeitos dos atos e as condições de validade exigidas para a sua

constituição ou formação [...] ao direito tributário só diz respeito a relação econômica a que

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esse ato deu lugar...” (FALCAO, 1993, p. 76). Em sua concepção, não se trata de uma

atividade construtiva ou inovadora por parte do hermeneuta tributário, mas simples adequação

às peculiaridades que a seara fiscal exige quando do trato de suas normas.

Todavia, é fato que a grande maioria da doutrina brasileira, acompanhando a postura

formalista descritiva até o momento apontada e criticada, apresenta sérias rejeições frente a

possibilidade de utilização da interpretação econômica, principalmente embalada em uma

argumentação contrária à arbitrariedade e insegurança jurídica que viriam de mãos dadas com

esta forma interpretativa. E, para tanto, é recorrente a exemplificação de “quão autoritários”

eram os Estados que a adotaram (COELHO, 2005, p. 238 e ss.).

Prates (1992, p. 76 e ss.) cai no mesmo maniqueísmo apontado quando do surgimento

do constitucionalismo liberal, eis que caracteriza sua adoção uma deformação do Direito

Tributário, a fim unicamente de satisfazer o Fisco, este “inimigo voraz dos pobres

contribuintes”. Já para Hugo de Brito, a consideração de dados econômicos em detrimento das

regras clássicas de interpretação “implicaria em (sic) negar o Direito, afetando a segurança

que o mesmo empresta às relações humanas na sociedade.” (MACHADO, 2005, p. 124).

Na mesma trilha segue Alberto Xavier, forte defensor do legalismo em sua expressão

mais rígida:

O princípio da legalidade em geral e o da legalidade da tributação em especial, exige que a interpretação dos conceitos jurídicos adotados pela lei se faça por ‘métodos jurídicos’ e ainda, que tanto a interpretação do ato jurídico concreto quando sua qualificação face à lei tenha em consideração os ‘efeitos jurídicos do ato’ (XAVIER, 2001, p. 39)

Contudo, parecem estes autores olvidar que, conforme destaca Godoi, a teoria da

interpretação econômica, em que pese ter surgido em um clima de efetiva insegurança

jurídica, ganhou ares mais brandos ao longo de sua evolução tributária.

A maioria dos autores aprendeu a aplaudir e a apoiar sem qualquer espírito crítico a infundada vinculação que Alfredo Augusto Becker promoveu (sem um mínimo de método ou rigor científico) entre a interpretação econômica do direito tributário e as idéias nazistas. Com um mínimo de rigor, imparcialidade e disposição para a pesquisa bibliográfica, chega-se a duas conclusões: é grosseiramente falsa a vinculação entre o surgimento da teoria da interpretação funcional do direito tributário e as idéias de matiz autoritário como o nazismo ou o fascismo; após a etapa inicial da “interpretação funcional” (BECKER, JARACH), a teoria evoluiu para posições bem mais equilibradas (BLUMENSTEIN, HENSEL), que atingiram um grau muito maior de segurança jurídica (GODOI, 2007, p. 257-258)

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É neste esteio que se pode afirmar, sem receios, que a interpretação econômica ora

trabalhada surge muito mais em virtude de um constitucionalismo social voltado à igualdade

material e demais pressupostos fundamentais do momento, do que no intuito de propiciar

totalitarismos verificados posteriormente.

Muito embora encontre razão a asseveração supra, não se pode negar que, tanto

doutrinária, quanto jurisprudencialmente130, prevalece o entendimento pela inaplicabilidade

da interpretação econômica. E de outro modo não poderia se dar. Afinal, conforme se tem

constatado ao longo do texto, nossa realidade hermenêutica-tributária caminha junto a uma

utilização da tipicidade estrita como dogma interpretativo, o que, por si só, refuta a

possibilidade de adoção conjunta com uma visão econômica do Direito. Tanto assim o é, que

se escolheu como cerne do trabalho demonstrar a inviabilidade de uma interpretação

formalista e descritiva da realidade, pois essa sim, habita as obras fiscais, ao contrário da

interpretação econômica ora ventilada.

5.3 Os direitos de segunda geração e a ineficácia da interpretação

descritivo-formalista

Ultrapassada a análise e caracterização dos direitos fundamentais de segunda geração,

bem como sua relação com a disciplina tributária, proceder-se-á tal qual realizado em relação

aos direitos liberais-individuais. Assim, cabe a pergunta: será então que a hermenêutica

positivista, com suas bases cartesianas e inserida em uma postura ontológica e descritiva da

realidade consegue concretizar os direitos surgidos no paradigma social?

No que tange aos direitos da geração burguesa, já restou constatada sua ineficácia.

Caso se conclua pela sua inconsistência também em relação aos direitos sociais, este será um

grande golpe à argumentação em favor de sua manutenção nos ensinamentos tributários!

As conseqüências nefastas da inércia estatal consagrada no Estado revolucionário

burguês tornaram nítida a impossibilidade de o Estado persistir alheio ao jogo sócio-

econômico que os particulares travavam sem quaisquer regras estabelecidas. O fosso social

130 Conferir, a título de exemplo: junto ao STF: RE AgR 465.143 DJ 16/02/2007. Já quanto ao STJ: RESP 797.799 DJ 15/02/2007. Em ambas, não houve a tributação por entenderem, os respectivos ministros, que não podem prevalecer, unicamente, os impactos econômicos dos negócios jurídicos para fins de exação.

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delineado, e o ocaso do próprio sistema capitalista exigiam uma modificação urgente na

forma de se pensar a relação Estado-sociedade.

Dois são os pontos necessários para a edificação social dentro do campo fiscal.

Em primeiro lugar, a observância da capacidade contributiva ganha novo fôlego, não

apenas em virtude da pretensão de se materializar a igualdade substancial negligenciada pelos

liberais, mas também como forma de arrecadação de valores pecuniários com vistas aos

serviços públicos prestacionais, agora no seio das funções do Estado embalado pela

isonomia.

Ao bem da verdade, já comentado que todos direitos fundamentais, inclusive aqueles

classificados como negativos ou liberais exigem frutos da exação fiscal. A garantia e proteção

dos direitos individuais reclama, tal qual as gerações posteriores, um dispêndio estatal e uma

prestação positiva em última análise. Afinal, como gozar plenamente a liberdade sem uma

rede de policiamento estruturada e com extensa folha salarial? Enfim, não se quer afirmar

aqui, qualquer cisão, qualquer direcionamento arrecadatório unicamente aos direitos de

segunda geração. Entretanto, para fins de labor didático, e em respeito ao pensamento

desenvolvido quando do surgimento dos direitos sociais, deter-se-á a questão da arrecadação e

a interpretação positivista neste tópico.

Segundo elemento que emergiu no constitucionalismo social, em virtude do fracasso

anterior, o Estado passa a ser ator com expressiva interação junto à economia. Para isso, na

seara tributária, contava com o instrumento da extrafiscalidade, nos termos já debatidos.

Em que pese a relação a ser procedida entre o princípio da tipicidade estrita e esses

mecanismos tributários em destaque do paradigma social, importante relembrar o leitor de um

instituto comentado quando dos direitos liberais de primeira geração.

Quando da investigação do pano de fundo que começava a se mostrar no Estado

Gendarme, restou destacada, juntamente com a proeminência da legalidade e segurança

jurídica, a exacerbação da autonomia da vontade e propriedade material, todas questões

intimamente ligadas ao racionalismo e antropocentrismo que embasaram a filosofia da

consciência.

Calcado nas bases individualistas do momento histórico, o contribuinte do Estado

burguês apostava na crença de que poderia desenvolver suas atividades comerciais e

individuais da forma como bem entendesse, o que incluía a realização de planejamentos

tributários (elisão fiscal) com escopo de evitar o pagamento de tributos, atividade à época

compreendida como verdadeiro direito fundamental.

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Ocorre que, para se proceder às práticas elisivas – em seu conceito clássico131 – o

contribuinte acaba por tomar apoio, justamente, na interpretação positivista-descritiva,

principalmente quando sua elisão fiscal se consubstancia nos já estudados “negócios

indiretos”. A existência dos negócios indiretos é identificada quando as partes realizam um

negócio jurídico lícito, mas com vistas não em sua finalidade ou conseqüência típica, mas sim

no desiderato de lograr conseqüências que seriam atingidas por outro negócio jurídico mais

oneroso. Em que pese a economia do tributo – que seria devido caso houvesse a realização do

negócio jurídico típico – as conseqüências empíricas, econômicas ou negociais dos negócios

indiretos ou atípicos serão as mesmas daquele mais oneroso.

Repare assim que, não obstante seja possível inferir uma mesma substancialidade na

conclusão dos negócios jurídicos, o contribuinte se apóia em um formalismo jurídico, em uma

distinção de roupagens formais de institutos que descrevem de maneira distinta, relações

comerciais ou situações jurídicas sem considerar suas razões, conseqüências, motivos ou

qualquer outro elemento.

Nesse sentido, a tentativa de enquadrar suas atividades desoneradoras de tributos em

loopholes ou brechas da lei não foge de uma base de interpretação firmada nas descrições de

institutos sem qualquer referência aos conteúdos respectivos. Nessa toada, o que se pretende

destacar é a íntima relação que se quer afirmar entre a elisão fiscal e a absoluta adoção da

hermenêutica positivista, imprescindível para sua viabilidade. Tanto o é que a legalidade se

apresenta como o mote principal dos defensores da elisão fiscal.

É neste caminho que segue a defesa de Xavier a favor da elisão:

Os princípios da legalidade e da tipicidade da tributação constituem uma garantia individual que tem por objeto proteger os direitos do homem consistentes no ‘direito de propriedade’ e no ‘direito de liberdade econômica’ no qual se inclui a liberdade de contratar (XAVIER, 2001, p. 111)

Diante desses termos, muito embora venha ser utilizada a argumentação da elisão

fiscal como um óbice à concretização dos direitos sociais, referida construção deve ser lida

como uma demonstração de como a hermenêutica formalista ora combatida embarga tais

direitos.

131 Obviamente, a elisão fiscal aqui trabalhada se refere àquela adotada pela doutrina tributária que se utiliza do instrumento da tipicidade estrita para sua realização, o que demonstra ser a doutrina dominante. O entendimento esboçado por autores como Godoi (2007) não será objeto de menção, pois, por adotar uma visão hermenêutica progressista, o autor acaba por determinar um novo conteúdo ao instituto “elisão fiscal”, nos termos já vislumbrados no presente trabalho.

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5.3.1 A elisão fiscal e a capacidade contributiva

Aprendido que há muito se argumenta ser a capacidade contributiva fundamento e

limite da tributação. Ou seja, apenas pode haver exação onde há saúde financeira dos

contribuintes para tal. Da mesma forma, onde há tal demonstração de capacidade econômica

deve haver tributação sob pena de quebra à isonomia constitucional.

As cargas tributárias devem ser repartidas tendo em conta a possibilidade de

pagamento de cada contribuinte, sendo certo também que aqueles em igual situação devem

sofrer também igual tributação. É pressuposto lógico e que não demanda maior deslinde.

Ora, se a capacidade contributiva se consubstancia também na correta cobrança

daqueles que demonstram situação financeira condizente à mesma, as variadas tentativas de

ludibriar o Fisco acabam por violar esse princípio constitucional-tributário. É nesse aspecto

que a elisão fiscal passa a contrariar a capacidade contributiva e a isonomia constitucional.

Sua proposta em fazer com que os contribuintes deixem de realizar o pagamento com fulcro

na exacerbação da autonomia da vontade e no formalismo legislativo acarretam uma distorção

na correta distribuição dos encargos fiscais entre os contribuintes.

Além do mais, a elisão fiscal, para ser bem executada, demanda um aprofundado

estudo dos rios de legislação tributária que hoje incidem sobre as empresas. Estudo este que

apenas consegue ser realizado com qualidade satisfatória por profissionais específicos,

contratados unicamente por empresas de considerável porte financeiro, ou mesmo

contribuintes individuais com montantes de riqueza que lembram mesmo faturamentos de

pessoas jurídicas. A análise pormenorizada das possibilidades de alterações formais nos

negócios jurídicos, a pesquisa de portarias ou decretos que possam apresentar as “lacunas

jurídicas” – graças à exaustividade e fetiche descritivo das normas tributárias – acabam por

demandar uma complexidade acessível apenas àqueles com significativo montante a ser

economizado frente o Fisco.

O ponto que se quer aqui destacar é a exclusividade da realização da elisão fiscal

apenas àqueles que possuem uma expressividade econômica justificadora de substancial

parcela da tributação caso observada a capacidade contributiva.

Ora, se apenas os mais afortunados conseguem financiar um estudo que possa resultar

em uma economia fiscal, e a tributação deve, por princípio, tributar mais onerosamente

justamente essas pessoas, pode-se concluir que o resultado imediato dessas atividades é a

possibilitação de uma economia justamente daqueles que mais deveriam contribuir!

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E quanto a isso nem mesmo os defensores da elisão fiscal discordam! Seus

argumentos hoje nem mesmo tentam desconsiderar que a elisão, calcada em uma

interpretação das normas tributárias descritiva-subsuntiva, tem por conseqüência certa

distorção dos ditames contributivos constitucionais. Tentam os mesmos desconsiderar o

combate à elisão por outros pressupostos.

Assim, Xavier entende que a igualdade que é violada pela elisão fiscal deve ser

concebida apenas como uma garantia individual do contribuinte, e não um direito do Estado

que possa ensejar uma tributação a desconsiderar a elisão fiscal (XAVIER, 2001, p. 128).

Mais uma vez se depara com a idéia de que a proteção das garantias dos contribuintes

apenas se dá em um conflito polarizado público/privado. Deve-se entender que o Estado não

se resume em um fim em si mesmo. A necessidade de as exações observarem a capacidade

contributiva não é unicamente com vistas a angariar maiores quantias ao Fisco, mas também

para efetivar a idéia isonômica entre os indivíduos que compartilham o sustento estatal.

Esquece o autor que, nesses casos, a prática elisiva acaba por atingir também a

isonomia constitucional que permite àquele em inferior situação financeira ter menores

encargos do que outro contribuinte mais abastado. A capacidade contributiva não é apenas

uma limitação do poder de tributar face o Estado, mas também uma garantia de tratamento

igualitário entre os próprios contribuintes fiscais. Como então afirmar que a elisão fiscal não

agride direitos dos particulares?

Imaginem assim o seguinte exemplo. A legislação referente ao Imposto de

Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) existente no Município “M” determina que todos

aqueles que adquiram bens imóveis a título oneroso devem arcar com o pagamento do

imposto devido. Ocorre que, nos termos da legislação, apenas aquelas transmissões que

tenham a base de cálculo superior a R$100.000,00 (cem mil reais) permitem a exação

comentada.

Com isso, visa o município “M” preservar os cidadãos que não detêm capacidade

contributiva suficiente para participar do custeio fiscal.

Ocorre que o contribuinte “C” deseja adquirir um imóvel no valor de R$400.000,00

(quatrocentos mil reais) – significativo potencial contributivo – mas não deseja efetivar o

pagamento tributário correspondente.

Diante disso, “C” faz a seguinte prática elisiva: primeiramente, “C” negocia com o

alienante para que este transmita 25% do imóvel a cada um dos quatro filhos de “C”. Nesse

primeiro negócio jurídico, não haverá o pagamento de ITBI, uma vez cada transação ter como

valor-base a quantia de R$100.000,00 (cem mil reais). Posteriormente, cada um de seus filhos

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transmite sua cota-parte a “C” que deterá 100% do imóvel. Também neste segundo momento

não haverá qualquer exação tributária, pois cada uma das transferências não excederá o valor

de R$100.000,00 (cem mil reais) definidos pela legislação.

Dessa forma, o contribuinte “C” conseguiu adquirir um imóvel no valor de

R$400.000,00 (quatrocentos mil reais) sem realizar o pagamento do tributo correspondente.

Afinal calcado em uma linguagem descritiva, “M” não pode exigir a obrigação tributária de

“C”, uma vez cada transmissão realizada ao longo do processo não ultrapassar o valor-limite.

Caso se adote a interpretação formalista e descritiva tal qual o neopositivismo, essa é a

conclusão apresentada!

Diante desta situação, é possível identificar os valores constitucionais feridos pela

elisão fiscal em comento. Um segundo contribuinte que adquira um imóvel de mesmo valor,

sofrerá uma oneração fiscal não incidente sobre “C”. Neste primeiro momento já se pode

argumentar pela não observância da isonomia constitucional, já que duas pessoas com mesmo

potencial financeiro sofreram imputações distintas.

Da mesma forma é passível de questionamento o respeito à capacidade contributiva

quando em comparação a outro indivíduo “X” que efetivamente não detenha capacidade

contributiva e adquira um imóvel no valor de R$100.000,00 (cem mil reais). Não se pode

reputar constitucional que ambos detenham a mesma realidade obrigacional sendo que eles

não comungam da mesma capacidade contributiva.

É simples o exemplo, mas suficiente para demonstrar como as práticas elisivas podem

subverter esse princípio constitucional representador da isonomia no Direito Tributário. E

mais. Vendo o Fisco sua arrecadação se esvaindo, irá o mesmo aumentar as cargas tributárias

para compensar a diminuição do fruto das exações. Carga essa que irá incidir justamente

sobre aqueles que não detêm a estrutura para realizar comportamentos elisivos.

Em última análise, a elisão fiscal resulta em um direcionamento da carga tributária

àqueles que menores condições têm de arcar com os gastos públicos. Nesse sentido, nos EUA,

de 1990 a 1997, as pessoas jurídicas, reduziram 60 bilhões em seus ônus tributários, enquanto,

no mesmo período, a pessoas físicas, com menor poder financeiro, aumentaram 80 bilhões

seus gastos com tributos (GRECO, 2004, p. 12-13).

Em seminário realizado pela Escola de Fiscalização Fazendária o palestrante Luiz

Arruda Vilela destacou que

o Comissário Rossotti, que é o Comissário – Chefe da Receita americana, num depoimento ao Congresso Americano, estimou em US$195 bilhões quanto o fisco americano federal deixava de .arrecadar por conta de elisão e de evasão [...] esses

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US$195 bilhões estimados pelo Rossotti correspondem a US$1.600 por contribuinte norte-americano, quer dizer, isso é o quanto custa a cada contribuinte, um cálculo per capita médio [...] que indica que o planejamento tributário de alguns, o não-cumprimento de alguns tem um custo que é transferido para aqueles que pagam... (VILLELA, 2002 p. 37) (grifos nossos)

O mesmo fato se dá também no Brasil. Leciona Greco que “considerações feitas

diversas vezes pelo então Secretário da Receita Federal Eduardo Maciel, em seus

pronunciamentos no sentido de que, das quinhentas maiores empresas do Brasil, cerca de

metade não pagava imposto sobre a renda há vários anos” (GRECO, 2004, p. 11-12). Como

conseguiam tais empresas um feito desse monte? Justamente por meio da elisão fiscal ora em

comento.

É a transferência dos encargos fiscais às empresas sem poder aquisitivo, ou mesmo às

pessoas físicas! Tudo isso é resultado desse planejamento tributário calcado em brechas e

excessividade formalística das normas e exações em nosso sistema.

É por isso que Douglas Yamashita afirma que a incidência das práticas elisivas acaba

por instituir um “imposto sobre a ignorância”. “É um imposto odioso por sua regressividade,

pois quanto mais pobre o contribuinte, menos recursos ele tem para se instruir sobre a forma

jurídica abusivamente elisiva e mais imposto ele paga” (YAMASHITA, 2000, p. 747).

E é a forma interpretativa que possibilita a subversão da capacidade contributiva.

Angariar a interpretação tributária apenas em elementos formalísticos, pautando por um

exaurimento descritivo das possibilidades de exação – tipicidade estrita – acaba por ocasionar

uma não observação de outros elementos que compõem a realidade jurídica, dentre eles, o

elemento econômico que fundamenta a tributação.

Mas a doutrina, de uma forma geral parece permanecer receosa em abandonar esse

“anacrônico” método hermenêutico, ainda que consciente das conseqüências dirigidas à

capacidade contributiva. Sacha Calmon, embora sensível à importância que o princípio

contributivo exerce em nosso ordenamento, prefere priorizar, em teoria, a pretensa segurança

jurídica que anteriormente demonstramos inalcançável pelo formalismo jurídico.

Assim, acerca de uma hipótese interpretativa que considera critérios econômicos

quando da incidência fiscal assevera: “ainda que alguns estejam levando vantagem, é

preferível manter o princípio da legalidade do que estender ao Administrador poderes que

amanhã se tornariam muito difíceis de controlar” (COELHO, 2005,p. 245).

Ora, momento algum pretendemos estender ao Executivo poderes para o arbítrio,

apenas discordamos que isso possa ser feito por meio de instrumentos típicos do século

XVIII. Todavia, não se pode desconsiderar, ou mesmo subestimar, o fato de que se está

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desconstruindo a capacidade contributiva com a elisão fiscal calcada em um positivismo

interpretativo de subsunção do fato à lei escrita.

Diante dessa hipótese, se revolta Alberto Xavier. Para o autor, não se pode cogitar

uma flexibilização à tipificação quase-algébrica que ainda hoje perseguem os tipos tributários.

A legalidade estrita e o formalismo apresentado pelos sistemas tributários são, para ele,

elementos nucleares para a proteção dos cidadãos contra posturas autoritárias do Estado.

Nesse sentido, a liberdade individual de buscar uma menor exação fiscal, ainda que calcada

em negócios indiretos elisivos, não pode ser cerceada por objetivos de incidência isonômica.

O autor chega a exaltar, ainda, o quanto seria um “despautério” a flexibilização do princípio

da tipicidade:

Levada às últimas conseqüências a doutrina do abuso de direito conduz à conseqüência de submeter os direitos e garantias individuais (e não apenas a legalidade e a tipicidade da tributação) à cláusula de ‘reserva de abuso’, pois na lógica dessa doutrina, o abuso é causa legítima de perda da tutela (XAVIER, 2001 p. 136)

E de fato, é isso que queremos ressaltar! Nem mesmo a legalidade, nem mesmo a

tipicidade tributária podem ser sustentadas ante sua utilização espúria. Não mais se pode

pautar o ordenamento em princípios de um Estado de Direito, onde apenas se considera algo

quando previsto textualmente em lei. O art. 1º da CF/88 lembra bem: estamos em um Estado

Democrático de Direito, que abarca a proteção individual, mas também a busca pela

realização de uma isonomia e uma capacidade contributiva constitucional. Outros direitos

fundamentais também exigem concretização!

A partir do momento em que a formalização jurídica é utilizada apenas para desvirtuar

objetivos constitucionais, deve-se sim flexibilizá-la, deve-se sim considerá-la não absoluta tal

qual Xavier denuncia!

Não se pode afirmar uma prevalência de direitos individuais sobre os sociais, ou vice-

versa (se é que Xavier acerta ao atrelar a segurança jurídica aos direitos individuais). A

Constituição, em sua complexidade, exige a efetivação de todos os direitos fundamentais que

ali encontram abrigo (GRECO, 2004 p. 45). Dentre eles, a isonomia substancial corporificada

na capacidade contributiva. Ademais, a indivisibilidade dos direitos fundamentais, não apenas

permite, mas exige a observância de todas as garantias constitucionais para a plena

possibilidade de gozo, inclusive dos direitos individuais. É concepção que até mesmo liberais

como R. Dworkin já admitem:

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Segundo a igualdade de recursos, os direitos à liberdade que consideramos fundamentais são uma parte ou um aspecto da igualdade distributiva, e estão, portanto, automaticamente protegidos sempre que se alcança a igualdade. A prioridade da liberdade está assegurada, não à custa da igualdade, mas em seu nome. (DWORKIN, 2005, p. 177)

Não fosse bastante, a exaltação da autonomia da vontade corporificada na elisão fiscal

e conseqüente desvio da obrigação contributiva gera efeitos também nos níveis arrecadatórios

perpetrados pelo sistema fiscal. É argumento de ordem lógica.

Nesse sentido, desfalcando os cofres estatais, indiretamente se está pauperisando a

possibilidade de atuação pública instrumentalizada a fim de promover direitos fundamentais

de toda e qualquer dimensão constitucional. Nesse tocante, inserimos também as liberdades

individuais e direitos difusos.

Mais um exemplo de insuficiência da interpretação descritiva em consagrar direitos

fundamentais pela tributação.

5.3.2 A elisão fiscal e a extrafiscalidade

O fosso social em que se afundaram as nações, e a destruição dos próprios

pressupostos liberais serviram de alerta para a impossibilidade de manutenção da inércia

estatal e da plena confiança nas regras do jogo de mercado.

O Estado não apenas poderia intervir, ele deveria intervir! É uma de suas obrigações

conseguir manter uma economia saudável e atenta aos ditames do art. 170 da CF. Para tal, não

há outro remédio senão a interferência no espaço econômico, direta ou indiretamente. São os

ensinamentos advindos da teoria econômica keynesiana.

Nesse campo, é a extrafiscalidade o melhor instrumento tributário destinado a orientar

as condutas de indivíduos e empresas junto ao mercado. Neste propósito, pode o Estado tanto

inibir práticas indesejadas e prejudiciais à coletividade, onerando esses mesmos negócios

jurídicos, como também incentivar setores ou atividades que representam ganho ao interesse

público através de uma desoneração fiscal.

Todavia, caso o Estado se mantenha adepto da postura hermenêutica em debate, suas

armas para dissuadir os particulares em realizar as condutas indesejadas acabam por se tornar

demasiadamente restritas. Referida assertiva se baseia no fato de que, ao onerar fiscalmente

alguma conduta contrária aos interesses públicos, a descrição dos fatos geradores nunca

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conseguirá abarcar todas as formas de se atingir aquele mesmo resultado lesivo. Afinal, já se

constatou a impossibilidade de exaurimento de todas as acepções decorrentes dos termos

lingüísticos utilizados nas normas legais.

Exemplificativamente, caso entenda pertinente o Fisco estadual onerar os proprietários

de veículos automotores com escopo de desestimular a compra e utilização de qualquer meio

de transporte que venha a contribuir para a poluição atmosférica resultante em gastos com

saúde e prejuízos na indústria do turismo, conseguirá o Estado alcançar seu desiderato? Mais

uma vez nos deparamos com a insuficiência descritiva. O que pode ser entendido como

veículo automotor? Carros? Motos? E quanto a aeronaves e navios132, os primeiros com tanto

potencial poluidor quanto os carros? Percebam como, também aqui, na tentativa de uma

atuação extrafiscal por parte do Estado, as vicissitudes da linguagem alcançam o operador do

Direito e se coloca como contraponto à utilização mecânica dos termos normativos.

Mas a questão que por ora se mostra mais relevante é a realização dos chamados

negócios indiretos, estes sim relacionados com a elisão fiscal que se tem sob análise.

Para a demonstração de como esse outro objetivo constitucional-social é frustrado

pelas práticas elisivas, que por sua vez têm o formalismo interpretativo como pressuposto,

apoiar-se-á em uma exemplificação que, embora simples, torna clara a problematização

pretendida no que tange à efetivação dos planejamentos estatais133.

A redação original do decreto-lei 1.598/77, regulamentador do imposto de renda,

previa em seu art. 64 § 5º que “a sociedade que resultar de fusão e a que incorporar outra

sucedem as sociedades extintas no seu direito a compensar prejuízos no prazo previsto neste

artigo”. Nestes termos, o que se apreende do conteúdo normativo é que caso uma empresa

altamente lucrativa venha a incorporar uma segunda empresa cujo resultado financeiro tenha

demonstrado prejuízos, a empresa incorporada poderia compensar, “abater” de seus lucros os

déficits da empresa incorporada, e com isso, evitar o respectivo pagamento tributário.

Referido dispositivo foi, primeiramente alterado em 1979, e finalmente, revogado pelo

decreto-lei 1870/81. Os verdadeiros motivos ensejadores da revogação do dispositivo em

comento não se mostram objeto de preocupação. Mas imaginem por um instante que as

recorrentes incorporações entre empresas lucrativas e deficitárias, em intensidade excessiva,

estivessem abalando a confiança do mercado acionário brasileiro, o que conseqüentemente,

acarretava um menor investimento externo na economia. Diante disso, os interesses estatais

132 Quanto ao tema, o STF já se pronunciou de forma contrária à incidência de IPVA sobre navios e aeronaves (RE’s 134.509 e 255.11 (DJ 13.09.2002). 133 Sobre o tema, já debatemos em OLIVEIRA, 2007.

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de preservação de um crescimento macroeconômico capaz de propiciar um aumento da

empregabilidade se mostravam ameaçados.

Para a concretização de sua política econômica e social, o Estado visou, justamente,

coibir a conseqüência econômica de incorporações e abatimentos de lucros/prejuízos entre

empresas lucrativas e não lucrativas, conseqüência essa comumente lograda quando da

realização de um negócio jurídico específico: a incorporação da empresa deficitária pela

economicamente sustentável. Ora, se este é o negócio jurídico típico, bastaria então o Estado

revogar o dispositivo aludido e tributar os lucros totais, não considerando a compensação

então permitida. Com isso, as empresas se sentiriam desestimuladas a praticar incorporações

de forma excessiva, e a normalidade do mercado estaria restaurada.

Não obstante, já sabemos que por meio do negócio jurídico indireto134 (elisão fiscal), o

particular realiza um ato jurídico com fins atípicos, alcançando dessa forma, conseqüências

comumente atingidas por ato mais oneroso. E com base nessas idéias que as empresas

começaram a alterar a forma de incorporação.

Muito embora a legislação não permitisse a compensação dos lucros da empresa

incorporadora face os prejuízos da empresa incorporada, não havia qualquer disposição

referente à situação contrária. Com base nisso, primeiramente, os sócios da empresa lucrativa

adquiriam a empresa marcada pelos prejuízos fiscais. Logo após, as empresas deficitárias

incorporavam as lucrativas, evitando, assim, o pagamento da exação tributária.

Posteriormente, a empresa incorporadora alterava seu objeto social, endereço, enfim, adquiria

toda a faceta da empresa incorporada.

Observem como, na prática, o resultado final foi o mesmo: não houve o pagamento da

tributação devida, e mais importante, os particulares persistiram em realizar a incorporação de

empresas lucrativas e deficitárias.

Poder-se-ia debater acerca do impacto que a prática elisiva aqui considerada

impulsiona junto à isonomia e livre concorrência (outras empresas na mesma situação, ou

mesmo concorrentes, terão maior encargo fiscal, e por isso, maior custo operacional, afetando

134 Godoi (2007, p. 277 e ss) trabalha o tema de forma aprofundada. Mas na concepção do autor, não se trata de um mero negócio indireto, cabendo mesmo a interpretação de que a “incorporação às avessas” é, de fato, uma simulação. Não ignoramos esse dado, e, caso partíssemos para uma visão hermenêutica contemporânea que compartilhamos com Godoi, nossa conclusão não seria diferente. Entretanto, deve-se ter claro o fato de que se pretende analisar a elisão fiscal na perspectiva da tipicidade estrita e formalista da doutrina majoritária. Eis a razão pela qual desenvolveremos o tema compreendendo a situação fática como um genuíno exemplo de elisão fiscal por meio do negócio indireto. Neste mesmo estudo, Godoi apresenta ainda a divisão de posicionamentos dentro do Conselho de Contribuintes e as diversas decisões acerca do tema, tanto a favor da visão formalista utilizada no texto principal, quanto alinhadas ao seu próprio entendimento.

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seus preços de mercado), ou mesmo quanto à arrecadação. São todas questões ligadas aos

direitos fundamentais de primeira e segunda geração.

Contudo, neste tópico mais interessa o fato de que o Estado, na tentativa de atuar de

forma presente no domínio econômico, e com isso, efetivar o constitucionalismo social,

pretendia, por meio da tributação, evitar uma prática empresarial que contaminava o

planejamento estatal. Ocorre que, ao fazer uso da mencionada atividade elisiva, a empresa em

questão acabou por tornar ineficaz a medida de concretização da política econômica ou social

que o Estado se prestou a realizar. Com isso, a elisão fiscal, encampada no formalismo

tipificante ora em debate, tornou absolutamente inócua a extrafiscalidade e a intervenção do

Estado na economia, frustrando a concretização de mais um direito fundamental

constitucional.

E que não venham argumentar que caberia ao Estado prever também esta

possibilidade para proibi-la, e assim, atingir seus objetivos. Afinal, ainda que se busque uma

previsão de todo e qualquer negócio jurídico que venha a causar os mesmos resultados

econômicos, nunca o legislador conseguirá barrar a mutabilidade das relações econômicas,

sociais, mercadológicas, etc. Nunca se conseguirá engessar a realidade através de uma

previsão normativa prévia capaz de abranger todas as hipóteses e situações por meio das quais

os contribuintes podem vir a realizar a elisão fiscal.

Daí a conclusão de que também os direitos sociais de segunda dimensão/geração,

identificados na isonomia substancial e intervenção do Estado no domínio econômico, restam

obstaculizados pela utilização da interpretação formalista e exauriente das normas positivadas.

5.3.3 A “discricionariedade” positivista

Já tem o leitor por certo que o objetivo que guia o presente trabalho reside na

verificação da plausibilidade da concepção tipificante, baseada na descrição e esgotamento da

realidade em textos escritos que encampa o posicionamento da doutrina dominante no Direito

Tributário. Esta é, sem dúvida alguma, a principal base teórica que ensejou a teoria

positivista. Sua adoção implica, a princípio, um repúdio, justamente, a qualquer elemento de

discricionariedade por parte do intérprete. Aliás, este é um de seus principais motes: não

permitir que a ingerência de elementos externos à pureza das intenções legislativas desvirtua a

preservação do conteúdo determinado previamente à aplicação da norma.

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Não restam dúvidas que quaisquer argumentações que possam ser apresentadas em

prol de uma liberdade discricionária junto ao Direito Tributário soará como arbítrio aos

ouvidos de nossos doutrinadores – suas defesas à argumentação liberal antevistas deixam isso

suficientemente claro. Qual a razão então de relacionar “discricionariedade” e “positivismo”?

Muito embora se constate a pouca importância que elementos discricionários detêm

junto ao Direito Tributário pátrio – as argumentações aqui realizadas têm um cunho muito

mais de evitar possíveis críticas a um esquecimento que, de fato, seria imperdoável – não se

pode olvidar que, também o positivismo, apresenta uma corrente que, apesar de privilegiar a

positivação normativa, abre também espaço para um decisionismo discricionário.

Já verificado que o normativismo kelseniano – que pode ser situado junto ao

constitucionalismo social – compreende a norma como uma moldura na qual possível a

inserção de vários quadros. Caso o conteúdo interpretativo fosse compatível com a moldura,

seria o mesmo aceitável, e a escolha de qual moldura/interpretação a ser aplicada no caso

concreto, caberia unicamente à determinação discricionária do magistrado (KELSEN, 1998,

p. 389 e ss.).

Da mesma forma, Dworkin, em observação à realidade americana, faz uma

aglutinação das teorias positivistas em uma corrente única por ele denominada

“convencionalismo”. Como o próprio nome indica, os adeptos de tal corrente preferem

restringir a análise jurídica às “convenções” (leis e precedentes), ou seja, às determinações de

conteúdos jurídicos realizadas previamente às decisões judiciais. Nesses casos, restaria

garantida a segurança jurídica que embasa o positivismo. Entretanto, quando ausente uma

definição precisa acerca de determinado Direito – pressuposto necessário para uma pretensa

“segurança” –, restaria constatada uma lacuna jurídica, e caberia ao juiz “criar” um conteúdo

normativo a reger o caso analisado. Afinal, não se pode deixar de resolver uma lide, deixá-la

sem qualquer decisão unicamente pelo fato de não haver certeza e consenso acerca do Direito.

Este espaço “discricionário” é que poderia ser utilizado, de forma abusiva pelo

Executivo em uma ação estratégica e envolto no contexto social. Afinal, se a ausência de

qualquer atividade interpretativa almejava a proteção cerrada aos direitos dos contribuintes, a

discricionariedade poderia dar azo a excesso de exação por parte do Executivo.

Ultrapassada esta primeira apresentação, Dworkin secciona o convencionalismo em

duas correntes. Os adeptos do convencionalismo estrito seriam aqueles juristas que, envoltos

em uma mesma concepção tipificante do princípio “U” forte de Günther (2004), afirmam que,

ausente uma unanimidade universal acerca do conteúdo jurídico em questão, já estaria

verificada a lacuna jurídica. A segurança jurídica a que se propõe o convencionalismo se

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dissiparia se qualquer pessoa interpretasse a norma de maneira diversa, pois nesses casos, já

não se teria a previsibilidade absoluta de obrigações.

Nesses casos, chega-se a uma crítica fácil, afinal, nunca se terá unanimidade

interpretativa acerca de qualquer Direito. Dessa forma, a quase totalidade dos casos

apresentados aos tribunais será caracterizada pelas ditas “lacunas”, e a conseqüente criação

jurídica por parte do Judiciário. Ora, situações como estas configuram a própria negação do

convencionalismo dworkiniano, pois qualquer pretensão de segurança sucumbiria frente a

recorrente inovação jurídica realizada pelo Judiciário. Não à toa, Dworkin classifica tal

proposta como “comicamente frágil” (DWORKIN, 2003, p. 153).

Noutra senda, um convencionalismo moderado é composto por aqueles que

compreendem que, mesmo ausente um consenso universal acerca de um conteúdo

interpretativo, o magistrado pode aplicar a interpretação que lhe pareça correta, ainda que

polêmica, não havendo, assim, qualquer lacuna jurídica. Não é difícil a relação entre a idéia

ora esboçada e a escolha livre entre as interpretações possíveis dentro da “moldura da norma”

tal qual ventilado no normativismo de Kelsen. Também aqui, o espaço para uma

discricionariedade capaz de desnaturar a estrutura jurídica.

Desde já é importante ressaltar: críticas em comum não significam paridade de

pensamento. Muito embora os tributaristas brasileiros tentem rechaçar qualquer margem de

discricionariedade pelo receio de macular sua festejada previsibilidade obrigacional, nossa

crítica caminha por outros trilhos – mesmo porque já verificado que a tipicidade cerrada

trabalhada por esses autores não alcançam dita segurança tributária.

A grande questão que envolve a escolha discricionária de interpretações, seja por parte

dos magistrados, seja pelo Executivo quando da realização de lançamentos, reside na perda da

feição democrática que deve permear o ordenamento.

Não fosse suficiente o risco de perda de integridade dentro do sistema jurídico –

coerência interna entre as diversas decisões – o decisionismo interpretativo, a determinação

do conteúdo normativo imposto verticalmente sem qualquer participação efetiva das partes na

construção de seus significados faz cair por terra qualquer pretensão de uma estrutura

democrática que embala os debates contemporâneos. Com ele, destina-se a uma elite

magistrada a determinação de escolhas e valores para os casos concretos, como se capazes de

representar uma comunidade homogênea e concordante com suas visões hermenêuticas e

suprimindo qualquer argumentação discursiva dos envolvidos. Ora, caso se afirme a

construção de um conteúdo normativo condizente com os anseios da própria população sobre

a qual incidirá o Direito, não se pode pretender sua participação como sendo secundária.

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Quais características e qualidade habilitam nossos magistrados a determinar, a seu bel prazer,

e de forma individual, as normas regentes de toda a comunidade?

Daí que se afirma: uma atuação hermenêutica que se diga preocupada com a

estruturação democrática necessária ao momento atual do constitucionalismo deve pressupor

a participação irrestrita de todos os envolvidos na elaboração da materialidade normativa.

Neste esteio, permeado pela presença argumentativa de seus participantes, o magistrado deve

se pautar pela busca à resposta/decisão correta ( e, por isso, não discricionária!) que deverá

resolver o caso concreto posto e, assim, garantir a melhor justiça a ser aplicada.

Defensor da possibilidade da consecução de uma resposta correta às decisões

administrativas e jurisdicionais, Cruz (2007), apoiado na análise do pensamento de Hart e

Dworkin, aponta algumas objeções contrárias ao fornecimento de uma conclusão desta

natureza aos casos concretos com que se deparam os magistrados, todas elas com pretensões

de arrefecer os golpes deferidos à atuação discricionária dos julgadores.

Poder-se-ia argumentar, primeiramente, a impossibilidade de se estabelecer de forma

apriorística todas as interpretações possíveis de uma norma legal, justamente em decorrência

da já comentada indeterminação substantiva dos vocábulos normativos. Diante desta “falha

lingüística”, outra posição não restaria ao hermeneuta além de decidir, dentre aquelas

interpretações possíveis, a que mais lhe agrada.

Conforme lembra Cruz (2007, p. 242), a ausência de uma isomorfia, de um casamento

indissociável entre os termos lingüísticos e seus significados, não pode sustentar um óbice à

busca das ações humanas, dentre as quais, a aplicação justa do Direito. Caso assim se

procedesse, restaria ao intérprete nada além de um absoluto utilitarismo, em que a “regra

hermenêutica” seria a imposição da melhor relação “custo-benefício” auferida em cada

situação enfrentada.

Ademais, ainda que se possa falar em uma indeterminabilidade dos termos

lingüísticos, apenas se pode fazê-lo quando se imagina tais termos “em abstrato”. Ver-se-á

mais adiante que, uma vez analisado o caso concreto, é possível sim determinar (ainda que

provisoriamente!) qual o conteúdo dos termos lingüísticos, e consequentemente, normativos,

que regem determinada lide (AMORIM, 2006, p.34).

Noutro lado, uma segunda crítica reside no argumento de que o Direito não é capaz de

aferir se uma resposta/decisão é efetivamente “a correta”, sendo este um recalque dos anseios

matematizantes da racionalidade moderna.

Ora, aqui se deve estar atento ao fato de que uma objeção de tal natureza procura

espeques na idéia de que não se pode determinar o que é “certo” ou “errado”, “melhor” ou

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“pior”. Não obstante, a mera tentativa de se defender referida construção teórica já é se

pautar, ainda que implicitamente, na busca por uma “melhor” teoria interpretativa. Reparem

como essa contradição performativa, a argumentação contrária à pragmática já desconstrói os

fundamentos da crítica em debate.

Suprir os anseios de uma resposta correta relativa ao caso concreto é assegurar aos

cidadãos que os julgadores estão comprometidos em buscar a melhor adequação de justiça e

Direito em relação àquela situação, estando, para isso, desprendidos de suas preferências

pessoais e discricionárias, e imbuídos na tarefa de construção participativa do Direito

aplicado. Referida resposta pode ser modificada no futuro? Obviamente que sim, mas isso não

representa uma abertura a quaisquer decisões ou respostas jurisdicionais. Afinal, a própria

concepção de uma resposta correta pressupõe a consciência de sua provisoriedade, de sua

precariedade e constante possibilidade de revisão, desde que diante de novos elementos que

assegurem uma nova e melhor decisão. Caso contrário, sim, poder-se-ia afirmar a prisão

epistemológica à racionalidade cartesiana e seu projeto de determinar uma solução

inquestionável e invariavelmente adequada a um problema.

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CAPÍTULO VI – O SURGIMENTO DOS DIREITOS DIFUSOS E O DIREITO

TRIBUTÁRIO

Neste ponto, um leitor mais habituado pode estar um tanto espantado. No desenrolar

do trabalho, foram desenvolvidos os paradigmas liberal e social, juntamente com seus

respectivos direitos fundamentais característicos. Não estaria então no momento de se

proceder um estudo dos direitos difusos em comunhão com o delineamento do Estado

Democrático de Direito?

Não exatamente. De fato, temos a ciência de que, comumente, nas análises

paradigmáticas das distintas etapas constitucionais pós-revolucionárias, há uma identificação

entre os direitos de primeira geração junto ao paradigma constitucional liberal; direitos de

segunda geração comungados com o desenvolvimento do Estado social, e finalmente, o

Estado Democrático de Direito caracterizado pelos direitos difusos. Não obstante, nossa

compreensão acerca dos direitos fundamentais próprios de um Estado Democrático se mostra

um tanto distinta do mero reconhecimento dos direitos difusos nesta terceira onda geracional,

abarcando tanto uma feição de condição de possibilidade discursiva, quanto de resultado

provisório do debate realizado pelos cidadãos. Justamente em razão disso, um discurso acerca

do atual paradigma constitucional será postergado para algumas páginas adiante.

Ademais, caso fossem apresentadas, desde já, as nuances Estado Democrático de

Direito, correr-se-ia o risco de confundir duas críticas que devem, para fins de melhor

entendimento, permanecer estrategicamente separadas: a efetividade dos direitos

fundamentais frente a hermenêutica clássica; e a superação de seus pressupostos filosóficos.

Isso porque, conforme se verá mais à frente, a própria concepção de um Estado democrático

demanda o vencimento das barreiras hermenêuticas da modernidade.

De todo modo, não se poderia deixar de reconhecer a relevância que o surgimento dos

direitos difusos representou ao leque de direitos fundamentais que têm sido reconhecidos e

reconstruídos na história constitucional. Além do mais, muito embora não possam ser

identificados como únicos representadores do Estado Democrático, os direitos difusos

compõem, sem sombra de dúvida, a terceira geração de direitos fundamentais, e emergiram

simultaneamente com a formação do Estado Democrático. Esse é motivo suficiente para

prosseguirmos em nosso estudo, que visa apresentar como a hermenêutica positivista não

consegue lograr satisfação quanto a concretização dos direitos fundamentais delineados ao

longo do tempo.

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Ainda que sob o risco de pecar pela redundância, é importante mais uma vez frisar. A

verificação dos direitos difusos de forma apartada dos demais se dá unicamente para fins de

labor didático. Tem-se por ciente e certa a indivisibilidade dos direitos fundamentais como a

impossibilidade de se seccionar este que se mostra como um bloco coeso e inseparável (Cf.

cap. III). Todavia, para realizar o destaque dos variados instrumentos tributários surgidos ao

longo da evolução constitucional, a facilidade de apresentação justifica um estudo

segmentado tal qual o desenvolvido. Eventuais censuras acerca desta opção representarão não

o desconhecimento por nossa parte da indivisibilidade aludida, mas sim uma parca

compreensão dos propósitos que nos guiam.

Após todo o desgaste histórico de lutas para a consolidação dos direitos sociais na

esfera fundamental da humanidade, a II Guerra Mundial com suas conseqüências – dentre as

quais os processos descolonizações das nações africanas e reconhecimento de uma

interdependência internacional – modificou a estrutura de direitos até então consagrados.

A sociedade internacional passou a perceber que fazemos todos parte de um mesmo

planeta. Coexistimos e compartilhamos um frágil habitat onde a ação de um único indivíduo

pode repercutir mundialmente, colocando-nos em uma posição de inter-relacionamento

constante que denota nossa precariedade.

Não por acaso, neste mesmo momento verifica-se a expansão do Direito Internacional.

Os limites geográficos dos países deixaram de representar uma efetiva fronteira de sua

influência, bem como deixaram de significar uma soberania absoluta frente poderes de outros

Estados. Essas constatações são conseqüências diretas da consciência humana da

interpenetração dos impactos das decisões tomadas nos diversos cantos do globo.

Em que pese quais direitos efetivamente decorreram da percepção do cenário global

pós II Guerra, não se pode apontar um consenso entre os diversos autores, cada qual

apontando um rol próprio de novas garantias constitucionais (SAMPAIO, 2004, p. 293-297).

Não obstante, é esse caráter de fragmentariedade, de difusão e internacionalização que

caracteriza o novo paradigma de direitos fundamentais135 .

Para que se possa aceitar uma concepção de transposição de fronteiras em termos de

reconhecimento de direitos comuns, utiliza-se como suporte a idéia de solidariedade.

Sampaio, ao mencionar Falk e o tema em análise:

135 “A atribuição da titularidade de direitos fundamentais ao próprio Estado e à nação (direitos à autodeterminação, paz e desenvolvimento) tem suscitado sérias dúvidas no que concerne à própria qualificação de grande parte destas reivindicações como autênticos direitos fundamentais” (SARLET, 2003 p. 54). Quanto a esta objeção à caracterização de “direitos fundamentais” aos direitos difusos, conferir a completa elenco de críticas em SAMPAIO: 2004p. 302-307

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solidariedade que se funda, para ele, numa “geogovernança humana”, uma espécie de democracia transnacional que propicie a todas as pessoas em todos os lugares o atendimento de seus interesses essenciais, como membros grupos ou humanidade inteira para viver uma digna e respeitada vida... Ou como depõe, uma geração de direitos que exige para a satisfação uma resposta co-ordenada de escala mundial às ameaças aos direitos humanos advindas da interdependência global de todos os povos e nações” (SAMPAIO, 2004, p. 297) (grifos nossos)

Ambientada nessa percepção de diretos pertencentes à humanidade, e em decorrência

dos horrores perpetrados na II Guerra, surge em 1948 a Declaração Universal dos Direitos

Humanos, que em seu artigo primeiro reconhece a tríade da Revolução Francesa “liberdade,

igualdade e fraternidade”.

Reparem como essa pequena menção no texto da Declaração de 1948 já dá azo para

perceber o caráter de indivisibilidade e releitura dos direitos fundamentais. Analogamente, os

três elementos dos paradigmas constitucionais: a liberdade do individualismo burguês; a

igualdade dos regimes sociais; e finalmente, a solidariedade que fundamenta a noção de

direitos de terceira dimensão. Todos eles reconstruídos em atenção aos novos contextos

constitucionais, e tratados conjuntamente, sem qualquer caráter de exclusão.

Retornando à análise deste novo paradigma, é justamente a idéia de fraternidade ou

solidariedade que mais marca e caracteriza essa nova gama de direitos fundamentais. A

relação de proximidade e interdependência que embasa a solidariedade desses direitos resulta

na imediata modificação de sua titularidade, sendo classificada – como o próprio nome sugere

– como difusa, fluida e repartida entre todos os indivíduos.

Para Sarlet, “a nota distintiva destes direitos de terceira dimensão reside basicamente

na sua titularidade coletiva, muitas vezes indefinível e indeterminável, o que se revela, a título

de exemplo, especialmente no direito ao meio ambiente e qualidade de vida” (SARLET, 2003

p. 54). Baracho Júnior, por sua vez afirma que “direitos difusos são necessidades comuns a

uma pluralidade de indivíduos e que somente podem ser satisfeitos numa perspectiva

comunitária” (BARACHO JUNIOR, 1999 p. 249). E não apenas a doutrina.

Também na esteira do reconhecimento dos direitos difusos, já em 1972, foi elaborada

a Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, primeiro

documento internacional a prescrever direitos pertencentes apenas à humanidade de forma

ampla, incapazes de serem apropriados individualmente. E de fato, há direitos que são

impossíveis de serem destacados à esfera do indivíduo, ou mesmo de pequenas coletividades

locais. Como se apropriar da cultura, ou ainda, como delimitar quais indivíduos aproveitam a

preservação de um patrimônio histórico?

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É por isso que, de forma arguta, disserta Lúcia Valle Figueiredo que

a indivisibilidade é a primeira característica do direito difuso [...] Capelleti, em frase feliz pergunta: de quem é o ar que respiro? A resposta nem se faz necessária. De quem pode ser o patrimônio ecológico, o meio ambiente hígido, os bens que forma o patrimônio cultural de uma nação, as paisagens notáveis, as reservas ecológicas? A resposta já, instintivamente, deve ser apenas uma: de todos e de cada um, de cada um e de todos. (grifos nossos) (FIGUEIREDO, 1989, p. 15)

Dentre os direitos comumente citados como pertencentes a essa terceira geração,

possível citar o direito à paz, ao meio ambiente, desenvolvimento dos povos, patrimônio

histórico cultural, direto das minorias, comunicação e qualidade de vida136. Não diminuindo

ou deixando de reconhecer a definitiva importância material de todos esses direitos/garantias

para o bem desenvolvimento de uma unidade global humana, há quem aponte preeminência

aos direitos ambientais.

Bobbio, ao abordar o tema, assevera que

ao lado dos direitos sociais, que foram chamados de direitos de segunda geração, emergiram hoje os chamados direitos de terceira geração, que constituem uma categoria, para dizer a verdade, excessivamente heterogênea e vaga, o que nos impede de compreender do que efetivamente se trata. O mais importante deles é o reivindicado pelos movimentos ecológicos: o direito de viver num ambiente não poluído (BOBBIO, 1992 p. 06) (grifos nossos)

Compartilhamos da opinião do renomado autor. Sem desacreditar os demais direitos

difusos, a questão ambiental tem se mostrado como o grande desafio da humanidade para hoje

e para as próximas décadas. Por isso mesmo, tomaremos os mesmos como espécie dentro do

gênero “direitos difusos” para a demonstração do papel tributário em sua concretização.

Não se pode olvidar ou desconsiderar que a ação humana e suas conseqüências

degradatórias acompanham o homem em toda sua evolução – tanto o é que Juraci Magalhães

aponta indícios de legislações protecionistas do meio ambiente desde a Antiguidade

(MAGALHAES, 1998, p. 02). Entretanto, não se consegue encontrar, na atualidade, qualquer

autor que negue a exponencial atenção que tem sido direcionada à questão ambiental e

ecológica.

De fato, crises ambientais como o aquecimento global; escassez energética;

mortandade de espécies animais; chuvas ácidas; lixos químicos; a iminente escassez de água

136 Dentre os autores, conferir: FERREIRA FILHO, 1999 p. 58-63; LAFER, 1988 p. 140 e ss.

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potável; ou mesmo eventuais estratégias para reversão ou paralisação desses problemas, vêm

freqüentando de forma recorrente os meios de informação137.

Durante a evolução das nações hoje desenvolvidas, o crescimento econômico se

apoiou na constante exploração de recursos naturais, por vezes, não renováveis. Como

prosseguir na evolução das sociedades modernas sem a contínua deteriorização das condições

ambientais se mostra o verdadeiro desafio às presentes e futuras gerações.

Atento ao contexto em que inserida a Europa, o Presidente da Comunidade Européia

(2007) José Manoel Barroso, já afirmou considerar a questão energética – intimamente ligada

à preservação ambiental – como sendo “a nova revolução industrial”.138

Em virtude dessa crescente preocupação, ganha força a argumentação em prol de um

desenvolvimento sustentável, ou seja, a coordenação, a conciliação entre a satisfação das

necessidades da população e desenvolvimento social e a preservação das matrizes ecológicas

de vida.

A importância pela busca de um desenvolvimento consciente com as particularidades

ambientais ganhou maior expressão quando da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio

Ambiente e Desenvolvimento (a ECO 92), em cuja Declaração do Rio, se estabeleceu o

princípio do desenvolvimento sustentável como meta a guiar todos os países: “Princípio 4:

para alcançar o desenvolvimento sustentável, a proteção ambiental constituirá parte integrante

do processo de desenvolvimento e não pode ser considerada isoladamente deste”.

Observando também atitudes pragmáticas, Milaré:

As preocupações com a produção sustentável não têm sido meramente emocionais ou estéreis. Entre muitas iniciativas tomadas em referência ao tema, deve-se mencionar a normatização internacional elaborada e proposta pela ISO - International Organization for Standardization, compendiada na série iso 14.000. Essa organização internacional, sediada em Genebra, vem atuando dentro dos seus fins societários específico, desde 1947. Nos últimos anos, ela editou normas para assegurar a qualidade dos produtos industriais, a série isso 9.000. As normas da série iso 14.000 visam resguardar, sob o aspecto da qualidade ambiental, não apenas os produtos como também os processos produtivos (MILARÉ, 2004, p.60-61).

Justamente em razão de todo esse desenvolvimento, se reconheceu aos direitos

ambientais a categoria de direito fundamental. É interessante notar, porém, que há duas

fundamentações no sentido de uma proteção dos direitos ambientais.

137 Conferir, a título de exemplo, TEXEIRA JUNIOR, 2006, p.30-32. 138 Estado de Minas pág. 20 caderno “ciência” data 11 de janeiro de 2007

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Há argumentações que seguem a idéia de que o Direito é responsável por regrar as

condutas humanas em virtude de o próprio meio ambiente ser detentor de direitos. Assim, o

ambiente é protegido em benefício dele próprio, como um fim em si mesmo. É, nos termos de

Dixon e McCorquodale (2003, p. 466) uma “environmentally-centred concern”, ou seja, a

centralização do meio ambiente como foco de atenção ao Direito139.

Noutro ponto, a corrente que defende a preservação das condições ambientais não em

razão do ambiente em si, mas sim para preservar o meio adequado para a sobrevivência e

bem-estar da comunidade humana. Está é uma abordagem mais antropológica dos direitos

ambientais. A humanidade o protege para seu próprio privilégio, e não do meio ambiente

propriamente dito.

Em que pese o debate que busca locar em qual corrente reside a fundamentação dos

direitos ambientais, sua importância não deixa de estar clara. E da mesma forma seu caráter

“difuso” que o enquadra na terceira dimensão de direitos fundamentais.

Conforme tratado no início deste tópico, a explosão do Direito Internacional está

relacionada com a percepção por parte da comunidade internacional da interação existente

entre os diversos países e suas decisões aparentemente isoladas. Tendo a informação como

certa, não há como deixar de relacioná-la com a proteção ao meio ambiente, que, de imediato,

acaba por demonstrar um caráter internacional e difuso.

É nesse sentido que Mello (2004, p. 1342) afirma que a proteção do meio ambiente

deve, obrigatoriamente, ser internacional, sob pena de total ineficácia. Afinal, por ser o meio

ambiente um corpo único e complexo, não se pode separar os impactos ambientais em

fronteiras imaginárias tais quais as dos Estados nacionais. Por isso mesmo, é comum a

utilização do jargão: “o meio ambiente não conhece fronteiras”.

... a ação isolada de um ou de alguns países em defesa do patrimônio ambiental – que, afinal, pertence à humanidade, de hoje e de amanhã – pouco resultado produzirá na contenção de problemas de alcance transfronteiriço, como a poluição atmosférica, a contaminação dos ecossistemas aquáticos, a degradação do solo e da vegetação, a extinção de espécies animais e vegetais [...] a verdade é que somente uma ação conjunta, solidária e harmônica entre os diversos países seria capaz de mudar esse quadro (MILARE, 2004, p. 944)

139 “...the law could be conceived in terms of an environmentally-centred concern, so that the environment would be preserved for its own sake and not only to maintain human life and human interests. In Sierra Club v. Morton 405 US 727 (1972), before the Supreme Court of the United States, Douglas J said elonquently: ‘the voice of the inanimate object, therefore, should not be stilled. That does not mean that the judiciary takes over the managerial functions from the federal agency. It merely means that before these priceless bits of America (such as a valley, an alpine meadow, a river or a lake) are forever lost or are so transformed as to be reduced to the eventual rubble of our urban environment, the voice of the existing beneficiaries of these environmental wonders should be heard’ ”. (DIXON; MCCORQUODALE, 2003, p. 466)

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A impossibilidade de contenção dos impactos decorrentes das ações contrárias ao

ecossistema, de forma ampla, é responsável por caracterizar a solidariedade e

fragmentariedade que identifica os direitos difusos. Mas não apenas.

A construção do pensamento ambientalista passa pela concepção de que os frutos da

Terra não nos pertencem de forma absoluta. Somo meros “comodatários” dos bens

ambientais, nós o utilizamos, mas com a responsabilidade de resguardá-los para as futuras

gerações. É outra argumentação que busca na solidariedade, o fundamento para a proteção

ecológica:

a espécie humana detém o ambiente natural do nosso planeta em conjunto com todos os membros de nossa espécie: gerações passadas, a geração presente, e as futuras gerações. Como membros da geração presente, nós detemos a terra em confiança das futuras gerações. Ao mesmo tempo, nós somos autorizados a utilizar e nos beneficiarmos da mesma (tradução nossa)140 (DIXON; MCCORQUODALE, 2003, p. 463).

Seguindo essa esteira, a Declaração de Estocolmo de 1972 é hoje considerada o marco

inicial da defesa internacional dos direitos fundamentais ambientais141. Declara a mesma,

como primeiro princípio, que

O homem tem direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao gozo de condições de vida adequados num meio ambiente de tal qualidade que lhe permita levar uma vida digna e gozar do bem estar, e tem a solene obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente para as gerações presentes e futuras.

A partir daí outros vários documentos foram elaborados, todos eles preservando

mentalidade esboçada nas linhas acima. Para mencionar alguns, a Convenção sobre o

Comércio Internacional das Espécies da Flora e da Fauna Selvagens em Perigo de Extinção

(1973); Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (1982); o controverso

Protocolo de Kyoto (1997), e também a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio

Ambiente e Desenvolvimento (RIO 92), que culminou na elaboração da Agenda 21, Rio de

Janeiro, em 1992.

140 No original: “... the human species hold the natural environment of our planet in common with all members of our species: past generations, the present generation, and the future generations. As members of the present generation, we hold the earth in trust of the future generations. At the same time, we are beneficiaries entitled to use and benefit from it” 141 Mello (2004, p.1346 e ss.) nos relata, porém, uma série de tratados e Acordos internacionais que, anteriores à Declaração de Estocolmo, já previam alguns direitos relativos ao meio ambiente. Nesse sentido, a Convenção de Genebra sobre alto-mar de 1958, a Convenção de 1954 em Londres, destinada à prevenção da poluição decorrente de vazamento de petróleo, dentre outros.

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212

Também no ordenamento interno vemos expressões desses novos direitos

fundamentais. A própria Constituição Federal já expõe todas as características dos direitos

ambientais de terceira dimensão. De forma sucinta, ela reúne informações acerca da

fragmentariedade da titularidade, e a obrigação estatal, bem como da sociedade, em defendê-

los.

Determina assim o artigo 225 da CF/88: “Todos têm direito ao meio ambiente

ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de

vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-los e preservá-los para

as presentes e futuras gerações”.

Não fosse suficiente, o mesmo texto constitucional, em seu artigo 170, VI tem a

proteção do meio ambiente como princípio de sua ordem econômica. Para Milaré (2004,

p.305), esse dispositivo constitucional torna ilegítima qualquer forma de iniciativa privada

que seja contrária à proteção ambiental. Este é ponto a se destacar, pois demonstra a ciência

do constituinte da aludida relação sustentável a ser alcançada entre proteção ambiental e

desenvolvimento econômico.

Mas a análise constitucional não se exaure na mera disposição expressa ao meio

ambiente.

Na concepção de Renata Ferreira e Celso Fiorillo (FERREIRA; FIORILLO, 2005,

p.13), o direito a um ambiente saudável e protegido é mesmo decorrência de direito a um

“mínimo existencial constitucional” já relacionado com a efetivação da igualdade no

paradigma social. Para os autores, o plexo mínimo de direitos necessários ao ser humano, que

antes abrangia apenas condições materiais e prestações sociais positivas, passa a encampar,

também, o direito a um meio ambiente sadio, até mesmo pela sua intensa relação com a

proteção à dignidade da pessoa humana protegida no art. 1º, III da CF/88.

Não se pode olvidar que as adequadas condições ambientais são essenciais para o

alcance, não apenas de condições satisfatórias de vida, mas para a própria sobrevivência da

espécie humana. Por isso mesmo, Milaré (2004, p. 137) identifica na garantia do direito à vida

(art. 5, caput, CF/88), a própria manifestação da proteção ambiental.

Também a nível infra-constitucional temos o delineamento da preocupação com o

patrimônio natural. Já em 1981 a lei federal 6.938 estabeleceu a “Política Nacional do Meio

Ambiente”, que caracterizou o meio ambiente como “patrimônio coletivo ou comunitário” –

leia-se difuso.

E a necessidade de regulamentação dos impactos ambientais das ações humanas

seguiu adiante, podendo ser mencionada a lei 7347/85 (dispõe a ação civil pública como

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instrumento de proteção ao meio ambiente), lei 9.605/98 (lei de crimes ambientais), lei

9433/00 (institui a Política Nacional de Recursos Hídricos), dentre outras.

Não se pode negar o surgimento desse novo plexo de direitos fundamentais. A

compreensão da interdependência humana fez reconhecer garantias que não podem ser

apropriadas como de titularidade exclusiva. Para o interesse deste trabalho, os direitos difusos,

e em destaque os direitos ambientais, seguem a mesma esteira dos demais que os precederam.

Por comporem e reforçarem o conjunto fundamental do constitucionalismo, eles também

funcionam como um “locus hermenêutico”, um conteúdo conformador que subsidia a

construção dos institutos jurídicos, inclusive, tributários.

6.1 Tributação e o meio ambiente: uma realidade constitucional

Em que pese o amplo leque de direitos que consagram a terceira geração de direitos,

os direitos ambientais foram apontados como detentores de maior destaque. Por óbvio,

momento algum se pretende reduzir a importância de direitos tais como o patrimônio

histórico-cultural, ou ainda o direito à comunicação sem fronteiras. Ocorre, porém, que, para

fins de didaticidade, bem como uma melhor caracterização da matéria tributária face os

direitos fundamentais em um sucinto espaço de texto, o destacamento de uma espécie dentro

do gênero “direitos difusos” se mostra aconselhável. Entretanto, todas as considerações aqui

desenvolvidas acerca da tributação ambiental podem ser transportadas, mutatis mutandi, aos

demais direitos difusos já apontados no trabalho.

Dadas as características históricas do direito tributário, é natural a tendência a pensar o

sistema fiscal relacionado unicamente àqueles bens constitucionais aos quais o mesmo era

apontado como expressamente atrelado: liberdade; segurança e patrimônio.

Com efeito, todos esses bens jurídicos são invariavelmente trabalhados quando em

debate a atuação fiscal do Estado. Entretanto não formam os mesmos um rol taxativo de

direitos ligados à tributação. Também os direitos ambientais, tanto em voga, podem ser

percebidos como objeto e mesmo finalidade da atuação tributária em nosso Estado Fiscal –

ainda que, à primeira vista, possa causar estranheza a interligação entre proteção do meio

ambiente e a exação tributária.

Neste tocante, importante atentar para o seguinte. Deve-se ter por certa a compreensão

de serem os direitos de terceira geração, em especial os direitos ambientais ora tratados, um

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elemento adicional na composição do plexo de direitos fundamentais que compõem o

ordenamento jurídico-constitucional. Certa ainda a percepção de que tais direitos compõem o

conjunto delineador da faceta do Estado, bem como o conjunto de princípios e diretrizes que

direcionam sua atuação frente à sociedade e seus interesses.

Ora, se nas bases do Estado Fiscal está a pressuposição de que a tributação cumpre a

finalidade precípua – mas não única – de efetivar as finalidade estatais, não restam dúvidas

acerca da necessidade de a tributação prestar atenção para a necessidade de um meio ambiente

sadio e sustentável tal qual prega a Constituição.

Não fosse bastante, não se pode deixar de lembrar a própria base teórica que encampa

esse trabalho.

Já apresentada a supremacia da Constituição, bem como o papel de “locus

hermenêutico” que exercem os direitos fundamentais. Diante disso, não há que se

desvencilhar da assertiva de que todo o sistema tributário deve sim, ter seu conteúdo

construído de forma a, não apenas se adequar, mas mesmo concretizar os direitos

fundamentais que o informam, dentre os quais os direitos de terceira dimensão, de cujo

gênero é espécie o direito ambiental.

Já mencionado como a freqüente contribuição humana para degradação ambiental tem

motivado os teóricos do direito a pesquisar formas de reversão deste nefasto quadro. Neste

cenário, desponta a importância crescente do tributo, do qual é exigido maior protagonismo

no combate pelo ambiente sadio. É esse o papel que Ferraz (2003, p. 167) garante aos

denominados “green taxes”.

Também na doutrina brasileira identifica-se uma crescente produção de artigos, obras

e legislações coadunando o sistema fiscal à necessária proteção ambiental.

Para Fernando Scaff e Lise Tupiassu (2005, p. 105), a Constituição atual não deixa

margem para escapes. Em virtude da obrigatoriedade de Ordem Econômica se atentar aos

impactos ambientais (art. 170, VI da CF/88), os autores argumentam a vinculação da

tributação como instrumento de consecução dessas mesmas finalidades.

No mesmo sentido Lopes (2005, p. 47), que destaca a importância que o

desenvolvimento sustentável acarreta no planejamento dos objetivos fiscais do Estado,

principalmente a nível preventivo.

Mas não apenas no aspecto de prevenção de novas lesões à seara ambiental se pode

detectar a atuação do Estado, e consequentemente, da tributação. Tão factível quanto ao

obstamento de novos comportamentos poluentes ou devastadores, a reversão de estados

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ecológicos delicados também se apresenta possível através da atividade tributária. Nesse

sentido é que argumenta Moro:

As medidas fiscais materializam sua intervenção ambiental desenvolvendo, bem uma função preventiva, nesta perspectiva, tratam de se antecipar à produção do prejuízo, incentivando comportamentos condizentes com o meio ambiente, ou dissuadindo os contrários; bem uma função de restauração do meio, em cuja perspectiva, o tributo contribui com a preservação do meio ambiente através do financiamento de atividades de restauração, redistribuindo os custos que ocasionam tais medidas entre os sujeitos contaminadores (tradução nossa)142 (MORO, 1999, p. 83)

Instrumentos não faltam, e assim se verá.

Santana (2004 p. 17) relembra que quando da elaboração da Agenda 21, em 1992,

houve o estabelecimento de um plano de ação para alcance do desenvolvimento sustentável.

Em meio às possibilidade de atuação do Estado, estavam:

a) tributos ambientais: impostos, taxas, contribuições de melhoria e contribuições de

intervenção no domínio econômico;

b) autorizações negociáveis de exploração;

c) subsídios;

d) depósitos-retorno ou imposto restituível – instrumento utilizado em países tais

como Bélgica em que parte do preço da mercadoria é devolvida ao consumidor quando este

retorna com embalagens ou produtos descartáveis.

Da mesma forma, a OCDE (Organização de Cooperação e de Desenvolvimento

Econômicos), lembrada por Oliveira (1999, p.13) contatou que “os tributos ambientais

(écotaxes), desde que adequadamente concebidos e postos em prática, podem ter um (sic) real

eficácia em matéria de proteção do meio ambiente”.

E a viabilidade da atuação fiscal junto à preservação natural não reside apenas na

esfera doutrinária ou especulativa. Segundo a OCDE, o imposto sobre emissões de enxofre na

Suécia possibilitou a redução de 6.000 toneladas de emissão do gás, quanto na Dinamarca, a

tributação conseguiu elevar a reciclagem de tímidos 32% para significativos 61% dos

materiais destinados ao lixo (OLIVEIRA, 1999, p. 72 e ss).

142 No original: “Las medidas fiscales materializan su intervención ambiental desarrollando, bien uma función preventiva, desde esta perspectiva, aquéllas tratan de anteponerse a la produción del perjuicio, incentivando comportamientos acordes con el medio o disuadiendo de los contrários; bien una función de restauración del medio, desde esta perspectiva, el tributo contribuye a la preservación del medio atraves de la financiación de actividades de restauración, redistribuyendo los costes que ocasionan dichas medidas entre los sujetos contaminadores”

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Também no Direito Brasileiro, há medidas que comprovam a possibilidade e

contemporaneidade da utilização do sistema tributário para o alcance dos direitos ambientais.

Segundo ditames da lei 9.393/96, são excluídas da base de cálculo do ITR áreas de

floresta nativa e outras classificadas como de interesse ambiental.

Já com fulcro na lei estadual carioca 2273/94, no estado do Rio de Janeiro, há prazos

especiais para pagamento de ICMS para indústrias ou agroindústrias que utilizam tecnologias

ligadas à proteção ambiental. São todos exemplos de como a tributação pode se ligar ao

direito ambiental.

Da mesma forma, o IPTU progressivo é instrumento mencionado pelo art. 182 § 4º, II

da CF/88 e pela lei 10.257/01 (Estatuto das Cidades) para fins de “garantia do direito a

cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento

ambiental...” ( art. 2º lei 10.257/01)(grifos nossos).

Merecem destaque também as taxas, outra espécie tributária que contribui para a

realização dos anseios constitucionais ambientais, o que parece não estar ainda

suficientemente claro em toda a doutrina.

Assim, ainda há autores que, como Freire (2000, p. 64), compreendem que a atuação

das taxas de polícia ligadas à proteção do meio ambiente têm toda sua eficácia esgotada em

uma abstenção dos particulares, uma postura por parte dos mesmos em não realizar atividades

potencialmente poluidoras.

Ocorre que, nos termos expressos pelo art. 77 do CTN, ensejam a cobrança de taxas

“...o exercício regular do poder de polícia, ou a utilização, efetiva ou potencial de serviço

público específico e divisível, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição”.

Ora, seguindo esse raciocínio, também o exercício do poder de polícia pelo ente

público pode ensejar uma obrigação positiva do particular capaz de auxiliar no trato da

proteção ambiental: o pagamento de taxas relacionadas e direcionadas à atividade humana

predatória do meio ambiente.

Essas “taxas ecológicas” possibilitam uma maior atuação do poder de polícia

fiscalizatório das atividades pertinentes e potencialmente prejudiciais ao ecossistema

ambiental. Nesse sentido, a taxa de controle e fiscalização ambiental (lei 10.165/00) que

apresenta seu fato gerador “o exercício regular do poder de polícia conferido ao IBAMA para

controle e fiscalização das atividades potencialmente poluidoras e utilizadoras de recursos

naturais”.

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Ou ainda, a taxa anual incidente sobre mineração (lei 7.886/89) cuja receita é

destinada ao Departamento Nacional de Produção Mineral143. A título de demonstração da

expressividade das receitas advindas das ditas “taxas ecológicas”, a Procuradora Federal

Cristina Esteves informa que em decorrência da taxa anual mencionada, foi arrecadado no

exercício financeiro de 2005 o significativo montante de R$39.232.451,46144 (ESTEVES,

2006, p. 3185)!

Dentre o gênero tributário, porém, é o ICMS ecológico que maior atenção tem

recebido das obras com as quais nos deparamos (OLIVEIRA,1999; FERREIRA, FIORILLO,

2005).

Utilizado pioneiramente pelo estado do Paraná, em 1991, e adotado posteriormente

por outros estados, tais como São Paulo (1993), Minas Gerais (1995), Rondônia (1996),

Amapá (1996), Rio Grande do Sul (1998), dentre outros, o ICMS ecológico tem por objetivo

predominante o crescimento no número de áreas de conservação ambiental em Municípios.

Cumprindo – ainda que involuntariamente e em desconhecimento – a receita do

BUND (Federação para o Meio Ambiente e Proteção da Natureza da Alemanha) para

reformas tributárias ecológicas (KURZ, 1998, p.20), o ICMS ecológico pode ser destacado

por não implicar em qualquer incremento ou criação de impostos, não configurando assim,

maior oneração tributária. É a demonstração de que não apenas em aspectos arrecadatórios se

baseia o sistema fiscal ambiental.

Segundo consta no art. 158, IV da CF/88, pertencem aos Municípios 25% do produto

da arrecadação pelos estados a título de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços

presente no art. 155, II do texto constitucional. Referido montante de participação municipal

do produto arrecadado deverá ser creditado nos termos a serem estabelecidos em lei estadual

regulamentadora do dispositivo em comento.

A iniciativa paranaense em criar o ICMS ecológico se deu a partir dessa possibilidade

regulatória, condicionando a participação dos municípios na renda decorrente do ICMS à

adoção de políticas ambientais.

É de se notar que o Estado do Paraná percebeu um aumento de 142,8% de unidades de

conservação em seu território como resultado da implementação desta técnica tributária

relativa ao ICMS (SANTANA, 2004,p. 25).

143 Necessário mencionar existência de controvérsia acerca da sua natureza de taxa ou preço público dessa exação (Cf. ESTEVES,2006). 144 Seguindo cotação datada de 31/12/2005, o valor em questão representaria US$ 16.837.961,98

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Tivemos o cuidado de reservar esse tópico para espancar eventuais dúvidas acerca da

possibilidade de utilização do sistema tributário para a realização dos objetivos

constitucionais ambientais. Vejam, agora, quais características marcam essa nova faceta do

sistema fiscal brasileiro.

6.1.1 Os princípios ambientais-tributários

Assim como nas relações entre o sistema tributário e os demais direitos fundamentais

é possível identificar determinados princípios que lhes são próprios, também a fiscalidade

ambiental deve atenção a algumas diretrizes informadoras do direito ambiental.

Entretanto, delimitar com precisão quais os princípios que figuram nesse rol é tarefa

que deve considerar os diversos posicionamentos existentes. Seguindo o entendimento de

Antunes (2000, p. 25), se destacam: princípio do direito humano fundamental; princípio

democrático; princípio da prudência; princípio do equilíbrio; princípio do limite e o princípio

do poluidor-pagador.

Em que pese a importância de todos e cada um dos princípios mencionados, pode-se

identificar dois que, mais facilmente, conseguem informar a tributação ecológica: o “princípio

da prevenção” e o “princípio do poluidor-pagador”.

6.1.1.1 Princípio da prevenção

Grande parte das atividades perpetradas pelo Homem e com resultados prejudiciais ao

meio ambiente apresenta caráter de irreversibilidade, ou de difícil reparação. A extinção de

uma floresta nativa, ainda que replantada, não conterá as idênticas particularidades naturais. A

alteração de um ecossistema biológico pela desertificação dos solos e florestas

freqüentemente não permite o retorno da cadeia biológica que agrupava as variadas espécies

que ali habitavam e compunham o delicado entrelaçamento de seu ecossistema. A utilização

indiscriminada de recursos não renováveis também suscita menção.

Em razão dessas considerações, cabe ao Estado prevenir as conseqüências advindas

das condutas indesejadas e prejudiciais ao meio ambiente que compomos. Ao Poder Público é

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dada a tarefa de se antecipar a eventuais posturas atentatórias dos particulares, e atuar de

forma a inibir ou impedir a execução dessas atividades.

Nesses casos, o foco orientador das condutas não reside nas ações danosas, mas sim

anteriores ao dano propriamente dito, ou seja, nos comportamentos em que haja justo receio

de comprometimento ambiental.

Nixon e McCorquodale (2003, p. 469) lecionam que, no cenário internacional, é

possível identificar diferentes versões do princípio da prevenção. Uma primeira versão,

denominada “action-guided”, exige a ação imediata em face de qualquer conduta que esteja,

potencialmente, causando danos ambientais. É corrente não muito utilizada em nosso

ordenamento interno, sendo mais vislumbrada em acordos internacionais especificamente

relacionados à vida marinha.

Noutra trilha, o princípio da prevenção pode ser compreendido em sua versão

“deliberation-guiding”. Nesses casos, o princípio é compreendido como a impossibilidade de

a incerteza acerca da consumação ou não de danos ambientais servir de escusa para não se

tomar qualquer atitude combativa. É a postura mais freqüente nos demais acordos

internacionais, e também em nosso ordenamento interno. Se há uma ameaça de um

considerável dano ambiental, não podem o Estado e coletividade aguardarem conclusões

científicas para que passem a considerar aqueles dados. Algo próximo ao chamado “princípio

da precaução” trabalhado pela doutrina.

Essa idéia, que foi incorporada no sistema jurídico brasileiro pela internalização da

Conferência Mundial sobre o Clima (dec. legislativo 1/94), também é aplaudida por Milaré

(2004, p.145): “a ausência de certeza científica absoluta não deve servir de pretexto para

procrastinar a adoção de medidas efetivas visando a evitar a degradação do meio ambiente.

Vale dizer, a incerteza científica milita em favor do ambiente”.

Na mesma moeda, se cabe ao Estado confrontar e regulamentar condutas que

presumivelmente irão gerar impactos prejudiciais, também deve o Estado estimular e tornar os

particulares a aderirem condutas alternativas e de maior compatibilidade com os objetivos

constitucionais ambientais.

É como alertam Ferreira e Fiorillo:

restou caracterizado pelo art. 225 da Carta Magna o dever tanto do Estado como da sociedade civil não só de defender como de preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado, dentro de uma concepção jurídica de que não basta tão somente defender os bens ambientais de lesão eventualmente ocorrida, mas é preciso sobretudo preservar a vida de ameaça que possa ocasionalmente surgir (FERREIRA; FIORILLO, 2005, p. 15)

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Em foco a efetivação desses ideais, pode-se contar, tanto com a possibilidade de

extrafiscalidade, quanto da utilização dos produtos arrecadados pelo erário. Tratar-se-á

melhor do assunto adiante.

Certo é, porém, que o aspecto preventivo vem galgando espaço a olhos vistos. Não à

toa, há autores que identificam, na postura antecipadora dos danos ecológicos, o cerne das

normas que regulamentam o direito ambiental (VIEIRA, 2006, p. 3012).

6.1.1.2 Princípio do poluidor-pagador

Instituído pela OCDE já em 1972, o princípio poluidor-pagador foi adotado também

pela Declaração do Rio em seu princípio nº 16, cuja redação traz uma clara definição do

mesmo:

as autoridades nacionais devem procurar assegurar a internalização dos custos ambientais e o uso de instrumentos econômicos, levando em conta o critério de que quem contamina deve, em princípio, arcar com os custos da contaminação, levando-se em conta o interesse público e sem distorcer o comércio e os investimentos internacionais

Juntamente com os produtos de mercado – externalidade natural do processo

produtivo – quando desse processo, são lançadas também conseqüências negativas –

poluentes – à sociedade. Afirma-se serem externalidades em razão de seu compartilhamento

com toda a sociedade, que, apesar de não auferir qualquer benefício dos produtos positivos

gerados, sofre todas as conseqüências decorrentes dos desgastes ambientais ocasionadas pela

produção de tais produtos. Daí a necessidade de internalização desses efeitos negativos dos

processos industriais de modo que sejam incorporados ao próprio custo de produção e

compensados com os lucros derivados dessas atividades.

A primeira implicação que vem à mente, quando mencionado o princípio em tela,

remete invariavelmente à sua utilização para fins de incidência e gradação de multas e outras

de sanções ambientais.

Com efeito, o princípio “poluidor-pagador” é calcado principalmente em um viés

retributivo, afinal se consubstancia na internalização dos ônus relacionados com a atividade

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produtiva. E, de fato, esse custeio pode ser facilmente percebido como imposição de multas

sancionatórias pela degradação já realizada pelo mesmo.

Seria exemplo uma lei que viesse a exigir a instalação de filtros ou equipamentos

ecologicamente positivos, sob pena de multa pecuniária. Nesses casos, o receio da atuação

coercitiva e punitiva do Estado (multa) forçará o potencial poluidor a adotar práticas e

condutas de preservação.

Ora, poderia então o leitor questionar: como é possível importar esse conceito ao

Direito Tributário, se o mesmo tem como base teórica a impossibilidade expressa de o tributo

ter a sanção como fato justificador de sua incidência (art. 3 CTN)?

Com propriedade, não pode o Direito Tributário se valer de sancionar fatos ilícitos

com vistas à instituição de tributos, cuja tarefa é destinada às multas, detentoras de um regime

legislativo distinto da tributação. É entendimento já pacífico no cenário jurídico-tributário.

Entretanto, é de se destacar que não apenas na atividade sancionatória se consegue

identificar a importância principiológica do direcionamento dos ônus ambientais a seu

responsável.

Ocorre que além das regras de sanção que o Poder Público possui, já visto que, por

meio da extrafiscalidade, pode o Estado impelir o contribuinte a adotar certas condutas

capazes de otimizar a efetivação de seus objetivos.

Imaginem, assim, uma tributação menos onerosa apenas àquelas empresas que

instalem os devidos filtros e equipamentos ambientais. O contribuinte que não adotar essas

medidas acabará vendo incidir, sobre seu patrimônio, ônus fiscal superior ao de seus

concorrentes. E não se trata de qualquer incidência sancionatória, e sim, de estímulo positivo

aos contribuintes.

A partir daí duas serão as hipóteses conseqüentes. Pode a empresa responsável arcar

com os valores relativos à preservação ambiental, aumentando seus gastos e não repassando

aos seus consumidores, o que implicará queda em seu lucro final (hipótese menos provável).

Ou então, irá o respectivo agente poluidor repassar aos seus clientes esse custo ambiental

adicional agregado ao valor final de seus produtos.

Esse segundo ponto é tido como principal para Roberto Ferraz no que tange ao reflexo

do princípio poluidor-pagador à população de forma geral. Para o autor,

se os custos da degradação ambiental não forem refletidos nos preços, as decisões econômicas nunca serão ecologicamente corretas. A função das ‘green taxes’ é justamente essa: [...] trazer para o custo de cada bem ou mercadoria o custo que seu consumo representa em termos ambientais (FERRAZ, 2003, p.167-168)

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De todo modo, haverá uma orientação dos custos ambientais decorrentes do produto

ou serviço àqueles que insistem em consumí-los ou praticá-los.

O que importa diferenciar, porém, é que, se no trato das condutas ilícitas o princípio

antedito de expressa na forma de incidência de multas, haverá situações em que condutas

lícitas hão de ser gravosamente oneradas através da tributação com espeques neste mesmo

princípio ambiental. Daí se afirmar serem duas as funções distintas das multas e

extrafiscalidade no seio ambiental.

Caracteriza-se, assim, um princípio cujas bases residem na mesma idéia de

solidariedade que compõe o fundamento dos direitos difusos.

A solidariedade que embasa a tributação conformada pelo princípio poluidor-pagador

leva em conta um sentido de eqüidade na busca de uma distribuição dos custos de reparação e

prevenção de danos ambientais àqueles que mais contribuem para a ocorrência desses danos

que a todos afetam. Caso a realização de uma atividade tenha intrinsecamente a produção de

prejuízos ambientais a toda a sociedade, nada mais justo que a oneração mais expressiva seja

direcionada ao respectivo agente poluidor.

Nesses casos, não se trata de uma punição propriamente dita. Mas sim do justo custeio

de atividades públicas beneficiadoras do meio ambiente por parte daqueles que mais o violam.

Ao Estado é dado atuar no intuito de melhorar as condições ambientais para a adequada

fruição das comunidades, incluindo a adoção de políticas preventivas e mesmos de reversão

de eventuais quadros negativos catalisados pelo agente poluidor. Assim, deve o último ser o

principal contribuinte a arcar com os respectivos gastos.

Por isso mesmo Moro (1999, p. 79) afirma que o princípio poluidor-pagador é uma

compatibilização da tributação ambiental à idéia de justiça tributária.

A realização de atividades econômicas que degradam o meio ambiente, ainda quando sejam lícitas, supõem um prejuízo à sociedade dos mandamentos constitucionais. Neste sentido, aqueles que prejudicam a sociedade quando aos mandamentos constitucionais, forçando-a a empregar um acréscimo de recursos para manter as condições adequadas de vida, devem contribuir em maior medida que aqueles que não prejudicam desta maneira a sociedade ou que a beneficiem com suas atitudes, sempre dentro dos limites principiológicos de justiça tributária. (tradução nossa)145 (MORO,1999, p. 79)

145 No original: “La realización de actividades economicas que degraden el medio, aun cuando sean lícitas, suponen un alejamineto de la sociedad de los madatos constitucionales. En este sentido, aquellos que alejen a la sociedad de nos mandatos constitucionales, forzándola al empleo de un plus de recursos para mantener las condiciones adecuadas de vida, deben contribuir en mayor medida que aquellos que no perjudiquen de dicha manera a la sociedad o que la beneficien con su actitud, siempre dentro de lo márgenes de los principios de justicia tributaria”

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Imaginem assim, a exploração do transporte aéreo. É de conhecimento geral quão

agressiva ao meio ambiente se mostra o funcionamento de aeronaves em geral. Diante desse

fato, manda a justiça tributária, fundamentada no princípio poluidor-pagador, onerar essas

atividades de forma mais expressiva para que o Estado tenha capacidade financeira para

adotar medidas ambientais que compensem a poluição causada pelas empresas aéreas.

Da mesma forma, mas em sentido oposto, uma indústria que adote todas as medidas

possíveis para mitigação ou mesmo anulação dos impactos ambientais de sua atividade não

pode, pelo princípio em tela, e mesmo pelo princípio básico de justiça, ser tributada da mesma

forma que sua concorrente poluente. E são vários os argumentos que direcionam para essa

conclusão.

Primeiramente, ela já internalizou os custos dos danos causados pela sua atividade,

implementando políticas de redução de poluentes com a instalação de filtros e outros

equipamentos específicos – e freqüentemente, de elevado custo. Conseqüentemente, essa

mesma empresa irá produzir menores prejuízos ambientais, gerando assim, menor atuação

pública no sentido de compensação dos danos ocasionados. Repassando à sociedade menos

ônus ambientais, manda o Direito seja a mesma menos tributada.

Por derradeiro, é de notar que o custo do produto final da empresa responsável com as

conseqüências ambientais de sua atividade será mais elevado do que sua concorrente que não

instalou os equipamentos destinados a atenuar a emissão de poluentes ou lixos tóxicos. Ora,

não se pode punir comercialmente um contribuinte por adotar condutas mais condizentes e

compatíveis com os comandos constitucionais. Antes pelo contrário, deve-se é incentivar os

particulares a atuar de acordo com as determinações do texto constitucional, dentro do qual

está a proteção ao meio ambiente, inclusive na seção referente à Ordem Econômica e

Financeira (art. 170, VI da CF/88). Caso não haja uma tributação diferenciada entre esses dois

contribuintes, estaria o Estado a beneficiar o poluente, já que seus preços finais serão mais

agressivos do que aqueles relativos à indústria consciente. Imperam o bom senso, a isonomia

substancial e a defesa da livre concorrência.

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224

6.2 Concretização dos direitos difusos ambientais via tributação

Neste ponto, as conclusões acerca da concretização dos direitos fundamentais via

sistema tributário já se mostram um tanto adiantadas ao leitor. Não apenas em razão do fato

de tais argumentações já terem sido lançadas no texto durante a análise da tributação

ambiental, mas também em virtude de os instrumentos fiscais à disposição dos direitos

difusos já terem sido desenvolvidos em outros momentos desta pesquisa.

6.2.1 A extrafiscalidade

Assim como apontado quando da intervenção do Estado no domínio econômico em

razão dos direitos sociais, também no que tange ao meio ambiente, a extrafiscalidade vem se

apresentando como o principal mecanismo de um sistema fiscal atento às preocupações

ambientais. É por meio da condução dos comportamentos particulares via tributação que o

Estado, ainda que indiretamente, consegue incentivar a produção e comercialização de

produtos condizentes com o desenvolvimento sustentável do ambiente, estimular a

implementação de políticas e equipamentos ambientais em fábricas e indústrias, desincentivar

práticas que acarretem danos ambientais passíveis de prevenção e inibir ou tornar mais

oneroso o consumo de bens e produtos ligados à degradação do meio ambiente, além de

outras medidas.

Tudo isso pode ser logrado através de benefícios fiscais – imunidades, isenções,

prazos especiais, etc. – ou mesmo, uma maior oneração de atividades e produtos.

A intenção é mesmo clara. O desânimo que se quer inflingir no potencial contribuinte-

poluidor decorre da maximizada carga fiscal a que estará sujeito. Tenta-se convencê-lo a

adotar práticas ecologicamente interessantes em razão da diminuta tributação incidente. É o

caso do exemplo aeronáutico mencionado supra.

É como leciona Moro

O efeito de tal articulação tributária, como parece lógico, é de desanimar a realização dessas atividades (poluentes) já que a obrigação de pagar esse aumento de carga fiscal obstaculiza sua realização. Por sua vez, produz um efeito positivo: incentiva a inovação tecnológica, já que a pressão tributária exercida orienta os

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comportamentos a não degradar (tradução nossa)146 (MORO,1999, p. 89) (acréscimo e grifos nossos)

Se tomado por base, mais uma vez, o transporte aéreo, poder-se-ia conceber uma

tributação privilegiada àquelas empresas que adotam medidas atenuadoras da emissão de

poluentes, tais como filtros ou outras instalações. Em contrapartida, as empresas que

persistirem em não adotar essas práticas, não observarão qualquer redução em sua carga

tributária.

As conseqüências deste cenário já foram aclaradas: internalização dos custos; repasse

dos mesmos ao consumidor; diminuição da receita da empresa. É um ciclo que leva o

contribuinte a considerar como melhor opção atuar em concordância com o meio ambiente.

Essa possibilidade conformadora do Estado, atraindo comportamentos desejados e

repelindo os indesejados, faz da extrafiscalidade o instrumento de tributação ambiental mais

apontado pelos autores que se ocupam do tema.

Auxilia essa preferência a perspectiva preventiva que a extrafiscalidade denota. Ao

alterar os comportamentos dos contribuintes de forma a adequá-los aos anseios ambientais, o

Estado evita condutas prejudiciais e permite a maior adoção de práticas benéficas ao meio

ecológico, prevenindo, assim, danos que poderiam ocorrer caso permanecesse inerte o poder

Público. No exemplo das fábricas incentivadas a instalar filtros anti-poluentes, o Estado, por

meio da extrafiscalidade, conseguiu prevenir o lançamento de dejetos que iriam agravar a

poluição atmosférica.

Nesse sentido se expressa Heron de Santana:

...a regulação indireta, que visa influenciar a atividade econômica na direção do desenvolvimento sustentável [...] apresenta significativas vantagens em relação à regulação direta, primeiro pelo seu caráter preventivo, constituindo-se em alternativa às políticas repressivas de comando e controle, que, em regra, exige um dano já manifestado e na maioria das vezes de difícil reparação, e segundo pelo caráter não-coativo de sua intervenção, o que facilita a adesão dos destinatários ao comando normativo (SANTANA, 2004, p. 11)

Várias das condutas já mencionadas no presente trabalho se relacionam com a

extrafiscalidade ambiental. A concessão de prazo especial para pagamento de ICMS àquelas

indústrias e agroindústrias que adotarem tecnologias condizentes com a proteção do meio

ambiente; a instituição de impostos consistentes em parcela do preço de produto descartável

146 No original: “el efecto de dicha articulación tributaria, como parece lógico, es de desanimar la realización de dichas actividades ya que la obligación de pagar ese plus de carga fiscal obstaculiza su realización. A su vez, produce un efecto positivo: incentiva la inovación tecnológica, ya que la presión tributaria ejercida orienta los comportamientos a la no degradación.”

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cujo pagamento pelo contribuinte é recuperado quando do retorno do produto; a adoção do

ICMS ecológico, estimulando os Municípios a criarem mais áreas de proteção ambiental;

redução do valor do IPI para veículos automotores movidos a álcool-combustível, catalisando,

assim, sua comercialização, enfim, são inúmeras as possibilidades em que a tributação pode

potencializar as condutas ecologicamente corretas e de menor potencial poluidor.

Uma vez identificado o êxito da extrafiscalidade junto ao princípio da prevenção, não

se pode restringir seu alcance a um único princípio ambiental. Por intermédio dessa técnica

tributária – extrafiscalidade –, também o princípio poluidor-pagador tem seu conteúdo

respeitado.

Isso porque a modificação do valor final da exação a ser cobrada do contribuinte

deverá ser proporcional às condutas favoráveis ou contrárias ao meio ambiente. Dessa forma,

aqueles que preferirem arcar com os gastos excessivos, estarão internalizando os custos das

externalidades negativas decorrentes de suas atividades.

Mais uma vez socorre o exemplo das empresas aéreas. A empresa que pretendeu

persistir no comportamento lesivo à preservação da qualidade atmosférica terá um custo

maior a ser incorporado em sua contabilidade de produção. Com isso, restará direcionada a

responsabilidade pecuniária àquele contribuinte que deu azo aos prejuízos ambientais.

6.2.2 Arrecadação

Em que pese o maior destaque atribuído à extrafiscalidade ambiental, não se pode

relegar ao esquecimento a fiscalidade – ou seja, a capacidade arrecadatória – que os tributos

ambientais também denotam.

A extrafiscalidade, muito embora eficiente, não esgota todas as exigências ambientais

que se apresentam na atualidade, devendo o Estado também atuar direta e positivamente na

realidade.

Por vezes, uma atividade lícita e até mesmo necessária para a sociedade (lembrem o

exemplo dos transportes aéreos) será altamente agressiva à saúde ambiental. Nessas situações,

não basta a atividade preventiva intentada pela extrafiscalidade. Por mais que essa venha a

lograr uma redução dos danos ambientais, não conseguirá anular todos seus efeitos.

Nesses casos, cabe ao Estado atuar positivamente na tentativa de restaurar o

ambiente degradado, ou mesmo para prevenir outros danos através de políticas públicas

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adequadas. Ocorre que, para sua atuação, são necessários recursos, recursos esses que, em um

modelo Fiscal, são advindos dos tributos.

Já delineada no capítulo precedente a impossibilidade de uma absoluta secção entre

essas duas facetas da tributação – fiscalidade e extrafiscalidade. No entanto, percebe-se uma

maior dimensão de uma dessas finalidades observando os motivos ensejadores de sua

instituição, ou mesmo as características que configuram a espécie tributária utilizada.

Sempre que se depara com a possibilidade de trabalhar a tributação como forma de

garantir maior robustez na capacidade monetária estatal para a consagração de fins

determinados – nesse caso, fins ambientais – esbarra-se no seguinte empecilho: nos termos do

art. 167, IV CF/88, resta inválida toda vinculação de receita advinda de impostos, salvo as

exceções constitucionais.

Diante disso, não seria possível argumentar que a arrecadação em si irá propiciar uma

maior efetivação daquele bem ou interesse jurídico-social específico, já que, uma vez

direcionado o produto da arrecadação aos cofres públicos, poderá o Executivo alocá-lo da

forma que bem entender, observadas as disposições pertinentes.

E, de fato, os impostos se mostram o meio menos eficiente de fiscalidade ambiental

quando em análise a certeza de destinação de suas verbas para fins ecológicos. Cientes disso,

afirmam Renata Ferreira e Celso Fiorillo que “os impostos têm maior resistência para atingir

as finalidades de proteção ambiental em razão da não vinculação da receita” (FERREIRA,

FIORILLO, 2005, p. 56).

Neste ponto, mister relembrar o já argumentado quanto à destinação de recursos para

efetivação dos direitos sociais.

Em primeiro lugar, já demonstrou-se a importância em se trabalhar a tributação em

consonância com o Direito Orçamentário, ou seja, com a alocação dos recursos decorrentes da

atividade fiscal. Não há como realizar um estudo genuinamente completo ignorando a ligação

sistêmica que o Direito carrega entre suas “sub-áreas”. Além do mais, se a preocupação

ambiental deve conformar o sistema tributário em razão de seu caráter de fundamentalidade,

por que deveria sê-lo diferente com a destinação dos recursos?

São os mesmos pressupostos constitucionais, são os mesmos objetivos e direitos

fundamentais direcionando, tanto a tributação, quanto o orçamento.

É de se considerar ainda um pressuposto lógico. Quanto mais verbas, quanto mais

recursos financeiros o Estado obtiver, maior possibilidade haverá de destinação dos mesmos

aos objetivos ora visados. Não se argumenta aqui um maniqueísmo fiscalista, ou mesmo uma

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concepção de tributação a qualquer custo, embasada pelo frágil fundamento de que será

revestido ao “bem comum”.

O que se pretende destacar é que, desde que amparado pelas exigências legais e

constitucionais, a tributação é legítima, e seu não cumprimento pode dificultar a realização

dos direitos fundamentais como um todo, já que diminui a amplitude de ação do Estado por

retirar sua capacidade monetária de atuação positiva.

José Marques Domingues (OLIVEIRA, 1999, p. 25) apresenta exemplificação de

como a tributação de impostos, aliada ao direito orçamentário, pode dar concretude aos

direitos ambientais. Leciona o autor que nos EUA há o denominado “Superfund”. Esse

“super- fundo” consiste em vultoso fundo de verbas públicas decorrente de receitas

provenientes do imposto de renda, imposto sobre petróleo e derivados e imposto sobre

produtos químicos e derivados. A destinação desse fundo é exclusivamente voltada para o

combate à poluição.

Não fosse bastante o argumento, é de se considerar que se por um lado, há figuras

tributárias que não comportam vinculação de suas receitas, tais como os impostos, há, em

oposição, espécies de tributos que obrigatoriamente devem ter suas receitas atreladas àquela

causa ensejadora. É o caso das taxas e contribuições.

O pagamento de taxas pelos contribuintes é devido em razão da utilização real ou

potencial de serviços públicos, ou ainda, em decorrência do poder de polícia do Estado (art.

77 CTN). Tanto o valor a ser pago a título de taxas, quanto a destinação do respectivo valor

devem sempre observar o motivo que possibilitou a incidência das mesmas. Nesse sentido,

uma taxa de controle e fiscalização ambiental que tem como fato gerador o poder de polícia

atribuído ao IBAMA terá sua verba destinada à manutenção daquela atividade fiscalizatória.

E não há que se falar em escassez arrecadatória das taxas ambientais. Mencionado

anteriormente o valor arrecadado a título de taxa anual para atividades de mineração: R$

39.232.451,46147 apenas no exercício de 2005.

Nesses casos, pode-se sim afirmar que o pagamento do tributo da forma devida irá

possibilitar diretamente atividades do Estado ligadas à preservação do meio ambiente, sem o

risco de ver tais verbas orçamentárias destinadas a outros fins – tais como pagamento de

subsídios de servidores. Há a certeza da aplicação do fruto daquele tributo em sua causa

ensejadora, podendo as taxas serem caracterizadas como um instrumento tributário à

consecução de um fim mais concreto que os demais.

147 Seguindo cotação datada de 31/12/2005, o valor em questão representaria US$ 16.837.961,98

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Noutro lado, há as contribuições sociais e contribuições de intervenção no domínio

econômico, espécies tributárias que se caracterizam por terem, desde sua criação, a

arrecadação destinada à finalidade pública certa e determinada. O montante financeiro

arrecadado a título de contribuições sociais e CIDE’s deverá ser aplicado diretamente em

atividades relacionadas com o setor tributado. Por isso mesmo Sacha Calmon categoriza essas

espécies tributárias como sendo impostos “afetados a finalidades específicas” (COELHO,

2004, p. 77). Leciona Godoi em trabalho que questiona os pressupostos das contribuições que

a leitura dogmática da Constituição não deixa margem a dúvidas: enquanto os impostos se destinam a financiar genericamente as despesas públicas, sem que o legislador possa vincular sua arrecadação a órgão, fundo ou despesa (vide art. 167, IV da CF), nas contribuições sociais e nas cides o legislador necessariamente determina a vinculação de sua arrecadação a uma específica finalidade(GODOI, 2007c p.81)

Assim sendo, uma eventual CIDE cobrada das empresas de transporte aéreo poderá

será aplicada em um fundo de incentivo à pesquisa a motores propulsores de aeronaves menos

poluentes. Não há que se falar em outra destinação a esses recursos a nível de teoria

constitucional. Seu objeto monetário arrecadado ser direcionado para a atividade especificada,

impondo assim, uma direta relação entre a arrecadação da tributação e a efetivação do direito

constitucional ambiental.

Não obstante, para Godoi (2007c p. 83 e ss.) estamos, na atualidade, presenciando um

desfacelamento dos caracteres tradicionais das contribuições.

Inicialmente, para o autor, se é dado à legislação pré-determinar o destino reservado à

arrecadação das contribuições, a prática jurisprudencial tem admitido que essa finalidade não

seja diretamente relacionada com o fato gerador (RE 396.266 DJ 27/02/2004). Essa é crítica

que não abala nossa exposição. Afinal, ainda que se dê tal liberdade ao legislador, desde que

este vincule a receita proveniente a finalidades ambientais, sua arrecadação continuará sendo

aplicada às finalidades previstas na lei.

Noutro ponto, Godoi questiona a aplicabilidade da “vinculação de receitas” em um

exame acurado da realidade. Atento aos diversos regimes de contingenciamento das receitas

provenientes das contribuições, argumentando a aceitação por parte do STF do

desvencilhamento da relação, supostamente direta, entre contribuições e destino de receitas

(ADI 2925 DJ 04/03/2005).

Pensamos o tema sob outro foco de análise, interpretando que, por mais que

efetivamente haja o contingenciamento de receitas decorrentes das contribuições, o Supremo

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já proferiu entendimento no sentido de impossibilidade de utilização daquele numerário em

objetivos outros que não o determinado na legislação que enseja a contribuição. Com efeito,

se destinação diversa daquela prevista legalmente ocorre, não entende o STF que haja a

inconstitucionalidade da exação, pois o fato gerador restou consumado. Não obstante, trata-se

de uma distorção da atividade tributária cuja responsabilidade pode ser perquirida em outras

searas, podendo, mesmo culminar em condenação por má gestão de recursos (ÁVILA, 2006,

p. 268).

Ou seja, ainda que não haja o efetivo gasto do respectivo valor no ano subseqüente, o

mesmo restará “reservado” para essas finalidades, ainda que para um posterior atendimento

(RE 158208 DJ 24/08/2001)148.

Possível afirmar, assim, que em todos esses casos, as condutas dos contribuintes que

resultem no não pagamento de um tributo, originariamente legítimo, acaba por se apresentar

atividade obstadora da ação do Estado na concretização dos objetivos constitucionais

ambientais.

6.3 A terceira dimensão de direitos e a interpretação positivista-

descritiva dos textos

A esta altura, o leitor já deve estar convencido da insuficiência dos resquícios do

neopositivismo vienense em nossa prática tributária. A argumentação já firmada nos capítulos

antecedentes revelou, de forma cabal, o quão míope a tentativa de se engessar,

ontologicamente, conteúdos jurídicos em termos vocabulares escolhidos pelo legislador. Se

assim foi constatado quando da análise do sistema fiscal frente os direitos de primeira e

segunda geração (didaticamente separados face sua indivisibilidade – cf. cap. III), o mesmo

148 Nesse sentido, é elucidativo o voto do Ministro Maurício Correa quando da decisão do RE mencionado. Após constatar a constitucionalidade da exação, ainda que houvesse o contingenciamento, o Ministro argumenta que “não se trata de receita pertencente à União Federal apenas porque ficou depositada no Tesouro Nacional. Tanto assim é que ficou assegurado ao Instituto do Açúcar e do Álcool o exercício de todas as atribuições relacionadas com a intervenção da União no domínio econômico, na área da indústria canavieira do país, assim como o apoio ao setor, em todos os seus segmentos, na forma da legislação, restando claro na citada disposição que ‘o exercício, pelo instituto do Açúcar e do Álcool, das atribuições referidas far-se-á de acordo com a programação elaborada pela mesma autarquia e submetida, pelo Ministro da Indústria e do Comércio à aprovação no Conselho Monetário Nacional, e uma vez aprovada, a programação elaborada pelo IAA, ficam assegurados os recursos necessários a sua execução’. Portanto, embora a receita proveniente da arrecadação das contribuições seja recolhida ao Tesouro Nacional, essa está vinculada aos fins da autarquia.” (p. 1148-1149)

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se dá face os direitos difusos-ambientais. Afinal, os próprios mecanismos de efetivação desses

direitos se identificam com aqueles estudados anteriormente.

No que tange à arrecadação fiscal decorrente de tributos, mais especificamente, de

contribuições destinadas a causas ecológicas, a elisão fiscal, cujos espeques se voltam às

premissas da tipicidade estrita tributária e em um silogismo formalístico já se mostrou

obstáculo suficiente para os contribuintes evitarem o pagamento de tributos devidos, e,

conseqüentemente, desfalcar as propostas da tributação ambiental.

Da mesma forma, em que pese a expressividade que a extrafiscalidade denota, tanto

preventivamente, quanto em relação com o princípio “poluidor-pagador”, impossível atuar na

condução das atuações particulares sem a dispensa dos métodos hermenêuticos a que se

prende nossa doutrina. É fato também já demonstrado quando em análise a extrafiscalidade

social!

Para que seja factível o êxito a partir desse pressuposto metodológico, necessário seria

uma realidade tributária-ambiental de lenta mutabilidade e altíssima precisão conceitual. Caso

contrário, cair-se-ia mais uma vez na ampla existência de “brechas legais” a partir das quais

os agentes poluidores conseguirão contornar o Estado. É a mesma situação esboçada em

referência à intervenção do Estado no domínio econômico.

Mas, será que o cenário ambiental apresenta uma configuração de tal precisão?

Obviamente que não. Esperamos já restar clara a idéia de impossibilidade de uma

representação absolutamente fidedigna da realidade por meio da linguagem escrita. Além do

mais, as tecnologias ambientais, os conhecimentos adquiridos acerca das atividades ligadas ao

meio ambiente modificam constantemente, tornando impossível a previsão textual de quais

atividades devem ser reputadas indesejadas pela sociedade.

É o que argumenta José Domingues Oliveira, único autor verificado que trabalha o

assunto ciente dessas dificuldades. Para ele, os tipos tributários referentes ao direito

ambiental, graças à indeterminação conceitual que permeia o tema, devem ser os mais

“abertos” possíveis, flexibilizando, assim, a legalidade estrita que geralmente acompanha a

doutrina pátria.

E o autor faz seus comentários, ciente da realidade que compõe a tributação ambiental.

A lei 10.165/00 cita o fato gerador da taxa de fiscalização: “o exercício regular do poder de

polícia conferido ao IBAMA para controle e fiscalização das atividades potencialmente

poluidoras e utilizadoras de recursos naturais”. É daí que se pergunta:

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Em que consiste concretamente ‘sadia qualidade de vida’? ou atividade ‘potencialmente’ poluidora? O que se entende por ‘degradação’ e ‘significativa’ do meio ambiente? Somente o avanço da ciência responde a essas indagações. O que era coerente ou indispensável ontem é hoje degradador ou absolutamente dispensável. A velocidade com que os fatos ambientais ocorrem e a rapidez com que a evolução tecnológica permite detectar fontes poluidoras e alterações qualitativas e quantitativas na tecnologia de produção são incompatíveis com a rigidez de uma tipicidade ‘fechada’ (OLIVEIRA, 1999, p.106)

E a dinamicidade que compreende a tributação ambiental – não apenas essa, mas toda

a realidade com a qual se depara o Direito – é notada também no exterior. Segue abaixo

trecho do relatório da IFA (International Fiscal Association) que questiona justamente a

legalidade fetichista ainda hoje cultuada:

Outra questão é a difícil aplicação do princípio (nenhuma tributação sem representação) no caso dos tributos ambientais [...] para ser válida, a legislação instituidora do tributo deve conter todos os respectivos elementos essenciais, isto é, os contribuintes, a base de cálculo e a forma de cômputo do tributo. Considerando a finalidade específica do tributo ambiental, esse princípio, geralmente acatado é muito difícil de ser aplicado integralmente (IFA apud OLIVEIRA, 1999, p. 79)

E de fato assim deve seguir o questionamento acerca da tributação. Como

efetivamente definir exaustivamente no texto normativo quais as atividades poderão receber o

incentivo fiscal respectivo? Ou ainda, como delimitar quais atividade serão tributadas pela

taxa de fiscalização que abrange as “atividade potencialmente poluidoras” tal qual definido na

lei 10.165/00?

Se firmado o apego a esses pressupostos, haverá a inutilidade da tributação ambiental.

Conseguir-se-á tornar ineficaz um dos instrumentos que o Estado tem em favor da alteração

das condutas humanas ligadas à relação homem-ambiente.

A todo o momento estamos reconstruindo a substância, a materialidade dos sistemas

jurídicos, frutos de contextos, lutas, interpretações, modificações valorativas, argumentações,

experiências, doutrinas, jurisprudências, enfim, todo o complexo conjunto de fatores que

determinam a evolução conteudística dos direitos dos homens.

É como ressalta a lucidez de Sacha Calmon: “o Direito, portanto, é datado

historicamente e geograficamente situado”149 (COELHO, 2004, p. 03). E de fato o é. O direito

149 É importante frisar que a argumentação por um Direito situado histórica e geograficamente não implica uma contradição com a adoção do procedimentalismo habermasiano, de berço alemão, como marco teórico. Isso porque a assertiva supra utilizada caminha pela fundamentação da ausência de um Direito atemporal, prévio aos contextos históricos e evolutivos. Não significa, porém, que não se pode se encontrar uma universalização de teorias surgidas em terras outras que não a brasileira. Até mesmo porque, as próprias conotações de local/universal sofrem uma revisão que não pode ser ignorada: “os conceitos de local e universal não podem

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que nos rege no momento da elaboração desses pensamentos, na escrita dessas palavras,

sofrerá reconstruções e modificações até o momento do leitor pairar os olhos sobre essas

páginas.

Durante a exposição desenvolvida neste trabalho, tentou-se destacar como nenhum dos

objetivos constitucionais-fundamentais surgidos ao longo da evolução constitucional a que

deve atenção o sistema tributário alcançam êxito através de uma metodologia interpretativa

calcada em uma descrição da realidade no texto normativo. Sejam direitos de primeira,

segunda ou terceira geração, a adoção de uma hermenêutica fechada em precisões conceituais

falha plenamente em consagrar seus objetivos cosntitucionais-tributários.

O esforço empreendido se viu justificado pela certeza de que, uma vez solidificada a

compreensão de que não se consegue atingir os objetivos que os direitos fundamentais pautam

ao sistema tributário, não se pode mais sustentar a utilização de métodos interpretativos

calcados nesses pressupostos.

Mas ainda não terminamos nossos argumentos.

Não apenas como inconveniente e infrutífero no que tange o atendimento dos

objetivos fundamentais da Constituição podemos reputar a interpretação descritiva das

normas tributárias. Também questionável hermeneuticamente! É o que veremos a seguir.

6.4 Direitos de outras dimensões?

Antes de adentrar no debate hermenêutico das bases filosóficas da interpretação

cerrada própria à tipicidade tributária, não se poderia deixar de realizar este pequeno adendo.

A evolução do Direito Tributário percorreu as três ondas geracionais de direitos

apontados pela grande maioria dos constitucionalistas. Entretanto, não se pode ignorar o

acréscimo de autores que afirmam a existência de dimensões outras de direitos que ainda não

foram trabalhadas nessa pesquisa. Se assim o for, deve-se também coadunar o sistema

tributário a esses direitos fundamentais.

Segundo Ingo Sarlet (2003 p.55), é mérito do constitucionalista Paulo Bonavides a

preconização na discussão jurídica pátria dos direitos de quarta geração. Para este, “são

mais serem tratados como questões distintas, o que de certo seria algo afeto ao paradigma da consciência. Desse modo, o “universalismo” da teoria da Constituição dos “habermasianos” – em especial Marcelo Cattoni – absolutamente não considera as peculiaridades culturais e históricas do Brasil” (CRUZ, 2007, p.21)

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direitos de quarta geração o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao

pluralismo” (BONAVIDES, 2003, p. 571).

O próprio Sarlet se apresenta favorável à concepção de reconhecimento dos direitos

decorrentes da globalização como uma nova dimensão, ressalvando, porém, aguardar uma

consagração em âmbito internacional e no ordenamento interno para sua completa admissão.

Na mesma trilha, Walber Agra (2007, p. 122), identificador de direitos de quarta e quinta

dimensões.

É mais completa a obra de Sampaio (2004 p. 298-302) que, demonstrando as várias

colocações de autores nacionais e estrangeiros, acaba por comprovar a falta de consenso e

unidade no que consistem eventuais direitos de quarta geração. Direito a uma vida saudável

com a natureza; desenvolvimento sustentável; alargamento das fronteiras democráticas;

comunicação relacionada à mídia de massa; direitos virtuais; direito das mulheres; direitos

sexuais; reprodutivos, enfim, o leque de possibilidades ofertadas pelos autores chega a

arrefecer e dissipar alguma força argumentativa que a existência de uma quarta geração de

direitos poderia oferecer.

Em nossa concepção, não há espaço para um reconhecimento de uma nova gama de

direitos fundamentais. Caso se parta de uma perspectiva dialética de constante reconstrução

do conteúdo material desses direitos, facilmente conclui-se que todos os direitos apresentados

se encaixam em alguma das classificações lançadas por Vasak e aqui trabalhada.

Nesse sentido, como argumentar serem os direitos das mulheres de quarta geração?

Não estariam as mesmas abarcadas na terminologia “direitos dos homens”? Não seria essa

proposta uma aporia teórica calcada em uma interpretação por demais restritiva dos diretos já

conquistados? Ou mesmo o direito à mídia de massa. Não seria o mesmo uma simples

contextualização do direito à informação e à liberdade de expressão constantes no rol de

direitos individuais desde o século XVIII?

Se a nós não apresenta consistência a tentativa de reconhecimento de uma quarta

geração de direitos, quanto o mais o será uma quinta, cujo conteúdo se apresenta ainda mais

fluido.

Ainda segundo Sampaio, para Tehrariane consistiriam tais direitos naqueles relativos

ao “cuidado, compaixão e amor por todas formas de vida, reconhecendo-se que a segurança

humana não pode ser plenamente realizada se não começarmos a ver o indivíduo como parte

do cosmos e carente de sentimentos de amor e cuidado” (SAMPAIO, 2004p. 302) !!! Peculiar

o entendimento do autor. Não obstante, difícil concebermos a argumentação antedita

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suficiente para a identificação de certos direitos como exemplares do pensamento de

Tehrariane.

Já no entender de Marzouki, configuram os direitos em comento aqueles

oriundos de respostas à dominação biofísica que impõe uma visão única do predicado “animal” do homem, conduzindo os “clássicos” direitos econômicos, culturais e sociais a todas as formas físicas e plásticas, de modo a impedir a tirania do estereótipo de beleza e medidas que acaba por conduzir a formas de preconceitos com raças ou padrões reputados inferiores ou fisicamente imperfeitos.(SAMPAIO, 2004, p.302)

Conforme se apreende do exposto, não há qualquer consistência na secção e

classificação de um conjunto próprio de direitos compondo uma “geração”/“dimensão”

apartada.

Mister reforçar o alerta de que não se pretende desconsiderar quaisquer direitos

identificados como posteriores à terceira dimensão. Entretanto, não é possível visualizar

características que imponham uma classificação própria. Assim como mencionado com os

“direitos das mulheres”, no nosso entender já presentes em uma interpretação contextualizada

dos “direitos do homem”, também a proteção face qualquer discriminação a que pretende se

referir Marzouki já se encontra resguardada nos consolidados direitos da igualdade e

dignidade da pessoa humana.

Com efeito, a evolução e constante agregação de novos direitos à esfera do indivíduo e

da coletividade se apresentam recorrentes. No entanto, é perfeitamente possível trabalhar com

todos aqueles já reconhecidos fazendo uso da tradicional classificação de Vasak.

Consequentemente, a (re)construção do conteúdo constitucional do Direito Tributário tem sua

análise satisfeita com seu relacionamento com as três dimensões de direito esboçadas.

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CAPÍTULO VII – A INTERPRETAÇÃO TRIBUTÁRIA FRENTE A

HERMENÊUTICA COM TEMPORÂNEA: A DESCONSTRUÇÃO E A

IMPOSSIBILIDADE DOS PRESSUPOSTOS INTERPRETATIVOS POSITIVISTAS.

Os paradigmas liberal e social produziram formas de interpretação condizentes com o

mundo da vida da época. Contudo, seus pressupostos de cunho positivistas mostraram-se

ineficazes para a efetivação dos direitos fundamentais. Ainda que na convicção de que a

incapacidade de concretização dos direitos fundamentais seja motivo suficiente para a

improcedência dos métodos interpretativos de bases positivas, tentar-se-á desfalcar todas as

possibilidades de sustentação desta forma interpretativa (ou não-interpretativa) que ainda

habita o sistema tributário.

Com isso, ficará clara a idéia de que não se está a argumentar que a utilização das

idéias descritivas e o anseio da segurança jurídica material sejam pouco interessantes. Essas

são buscas, em realidade, impossíveis de serem concretizadas! Nessa toada, posicionamentos

em favor desta anacrônica visão pelo receio de descumprimento do legalismo tributário, muito

embora denotem uma obediência e boa fé dos intérpretes, são tarefas tão ilusórias quanto o

esforço de Peter Pan em aprisionar a própria sombra!

Assim, mister voltar os olhos para os pressupostos filosóficos em que se pautam os

teóricos favoráveis à prática subsuntiva no Direito Tributário. Deve-se, para concluir o

presente trabalho, analisar se suas bases hermenêuticas encontram respaldo na filosofia

contemporânea. Com vistas a essa tarefa, proceder-se-á tal qual no capítulo segundo. Serão

lançadas as bases dos pensamentos desenvolvidos de forma a deixar claro nosso

posicionamento. Entretanto, a poupar o corpo textual, remete-se o leitor a um aprofundamento

paralelo aqui evitado.

A construção do pensamento positivista ao longo do processo evolutivo que o Direito

trilhou se deu de forma concatenada com seu entorno epistemológico, havendo, assim, uma

coerência se seus pressupostos com os das demais ciências que, à época, modificavam a

forma de produção do conhecimento. A negação à submissão de uma autoridade eclesiástica

adiantada por Galileu, bem como o princípio da causalidade trabalhado por Newton junto às

ciências exatas foram reproduzidos, à sua própria maneira, na seara jurídica. Assim, o

racionalismo de Descartes conseguiu transferir, também ao Direito, a “purificação” de

influências religiosas, bem como o infalibilismo e neutralidade do método. E neste contexto, o

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princípio da causalidade newtoniano adquiriu, no seio jurídico, a feição de “princípio da

imputação” já verificado em Kelsen.

Ora, se a construção da hermenêutica moderna se apresentou envolvida e

impulsionada por reviravoltas também em outras áreas científicas, de outra forma não poderia

ocorrer com seu questionamento e desconstrução.

A evolução das ciências durante o século XX foi marcada, justamente, pela

verificação da falácia dos pressupostos de certeza e previsibilidade. A teoria da evolução

darwiniana rejeitou uma suposta linearidade progressiva para abraçar a visão de que a

evolução das espécies naturais também é permeada por diversas possibilidades, algumas bem

sucedidas, outras nem tanto, mas definitivamente, caracterizada por progressos e retrocessos,

como se a própria natureza soubesse das variações que ela mesma pode acarretar.

Na mesma trilha, a absolutização e fixação de conceitos na modernidade (p.e. tempo e

espaço) sofre outro duro golpe quando Einstein coloca à prova dogmas científicos, realizando

tarefa próxima ao questionamento galileano às verdades papais de outrora. Einstein percebe

que

...para se fixar a simultaneidade de acontecimentos distantes no espaço seria necessário conhecer-se a velocidade. Para se conhecer a velocidade era preciso conhecer-se a simultaneidade dos eventos; logo, a simultaneidade de eventos especialmente distantes só poderia ser definida arbitrariamente. Com isso, a velocidade permitiu relativizar o espaço (dobra espacial) e o tempo. Diante disso, as leis da física contemporânea abandonaram a condição de serem universais. Ao contrário, elas passaram a assentar-se em mediações localizadas no tempo e no espaço. Einstein demonstrou que tais conceitos eram relativos, vez que eram dependentes da velocidade, posto que a velocidade da luz poderia fazer com que os conceitos arbitrários de unidade de tempo se relativizassem. O espaço também poderia ter padrões de medida alterados em função da velocidade, abrindo o conceito para o estudo atual da dobra espacial (CRUZ, 2004, p. 139)

Se nem mesmo tempo e espaço são medidas absolutamente “confiáveis”, também a

neutralidade cartesiana é descartada com o “princípio da incerteza” desenvolvido por

Heisenberg e Böhr. Referida idéia, ilustrada de forma didática no documentário “Quem somos

nós?” (2005) desenvolveu-se quando, em uma experiência para se determinar a espaço e local

de um feixe de elétrons, os cientistas verificaram que, quando não havia qualquer instrumento

de observação da trajetória dos mesmos, eles se comportavam de uma determinada maneira.

Entretanto, quando pretendiam fixar seu deslocamento, o próprio feixe de luz necessário para

“enxergar” os elétrons influenciava em sua trajetória. Isso significa que, mesmo na física, cuja

exatidão pretendia-se tributária à postura observacional de seus estudiosos, não se pode

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separar eventos de cientistas, o que faz ir para o espaço os resultados apriorísticos aos objetos

investigados!

Não por outra razão, Barbosa (2006) inova ao trabalhar o Direito Internacional em

consonância com a Teoria do Caos. Afinal, a precisão das leis científicas da modernidade

cede lugar à noção de entropia, consubstanciada na idéia de desordem e imprevisibilidade do

sistema em razão do comportamento de seus próprios elementos, e também pela inserção de

outros, a ele alheios. Assim da “certeza”, passa-se à “probabilidade”!

A própria racionalidade individual e autônoma que seria capaz de propiciar todo o

aparato solipsista para a compreensão do mundo sofreu revisões de seus conceitos. Freud, em

seu estudo acerca do processo cognitivo, vai além da consciência até então tida por auto-

suficiente, e possibilita a abertura também para os instintos e inconsciência (CRUZ, 2004, p.

141-143).

Enfim, não se quer aqui realizar uma verticalização da pesquisa em áreas da física,

química ou mesmo psicanálise. De todo modo, importa destacar o fato de que toda a

estruturação dos postulados cartesianos na formação de uma ciência neutra, previsível e

matematizada é revisitada nas mais diversas searas do conhecimento! E de forma diversa não

poderia se dar em relação à produção e evolução hermenêutica. Assim como o nascimento,

também a revisão da racionalidade moderna – que antes culminara no positivismo jurídico –

se deu em consonância e ambientada em todo esse paradigma científico em formação,

impulsionada também pelas reviravoltas hermenêutica e social150, vivenciadas no mesmo

período. E em seu viés hermenêutico é que agora se irá adentrar.

7.1 A reviravolta lingüístico-pragmática de Wittgenstein.

No início desta obra, foi apresentada a construção de um pensamento calcado

fortemente nas bases epistemológicas da Grécia Antiga, cujas premissas encontravam raízes

em pressupostos tanto platônicos quanto aristotélicos. A concepção de um fetiche legalista,

com espeques na crença de um exaurimento das possibilidades factuais da realidade, acaba

por perpassar uma idéia de descrição dos eventos empíricos em uma perfeição semântica-

gramatical.

150 Sobre o tema, verificar a obra de CRUZ, 2004, p. 135 e ss..

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Nesses termos, o culto ao texto legal deságua na admissão de uma possibilidade

descritiva de situações ideais próximas ao mundo das Idéias de Platão – p.e. “deve obrigação

tributária todos aqueles proprietários de bem imóvel urbano”. Lado outro, as diversas

situações ocorridas no “mundo fenomênico” seriam, assim, um reflexo imperfeito dessa

realidade idealizada – João ser, no “mundo real”, proprietário de um imóvel situado na rua

“X”, de valor “Y”.

Em composição à idéia exposta, para se apostar em uma possibilidade de descrição da

realidade, é necessário admitir que as palavras estão, inexoravelmente, associadas a um

conteúdo representativo específico. Noutros termos, é como se cada palavra já carregasse

consigo uma essência antes mesmo de ser utilizada pelo sujeito. Significa que, quando da

menção a “bem imóvel”, o significado dessa expressão já estava delimitado antes mesmo de o

legislador expressá-la em sua hipótese normativa. Afinal, cada signo já conteria referência

própria a um objeto da realidade, uma isomorfia entre signo e significado. Essa é a feição

ontológica e essencialista derivada de Aristóteles151 e seu antecessor.

Essa mesma forma de pensar, influenciada pela busca de uma certeza cartesiana,

relegou à linguagem o papel de designação da realidade empírica – mais uma vez, Platão. Esta

era a forma de trabalho do Círculo de Viena, que elevou ao máximo a saga por uma

matematização lingüística já relacionada com a noção de tipicidade e segurança jurídica

tratados na doutrina brasileira.

Dentre aqueles pensadores, foi apresentado Wittgenstein, que em um primeiro

momento, se filiou à linguagem matematizada argumentada por Frege, Carnap e outros

autores. Entretanto, a evolução do pensamento de Wittgenstein se mostrou tão irreverente

quanto sua própria vida152. Nesse sentido, muito embora o autor tenha aproximado da corrente

positivista vienense, ele foi, também, seu principal algoz.

Ainda que a crítica de Wittgenstein tenha sido paulatinamente construída ao longo do

tempo153, ganhou corpo e ares concludentes com a publicação póstuma da obra “Investigações

151 Oliveira, em sua obra, foi capaz de sintetizar, em poucas palavras, a junção dessas influências platônicas e aristotélicas que perseguem nossos autores tributaristas: “já que a linguagem não passa de um reflexo, de uma cópia do mundo, o decisivo é a estrutura ontológica do mundo que a linguagem deve anunciar. A essência da linguagem depende,assim, em última análise, da estrutura ontológica do real. Existe um mundo que nos é dado independentemente da linguagem, mas que a linguagem tem a função de exprimir” (OLIVEIRA, 1996, p. 121) 152 A obra de Christiane Chauviré (1989), muito embora se preocupe em apresentar na bases filosóficas e a evolução do pensamento de Wittgenstein, é também fonte de informação biográfica do autor, demonstrando os conflitos e reviravoltas que marcaram sua história acadêmica e pessoal. 153 É interessante anotar que, apesar dos autores mencionarem quase exclusivamente as duas principais obras de Wittgenstein – “Tratactus” e “Investigações filosóficas” – como se as mudança de posição por parte do autor tenha se dado de forma brusca, Hintikka apresenta diversas passagens que denotam que os questionamentos acerca da viabilidade da infalibilidade semântica da linguagem adotada outrora ocorreram de forma progressiva

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filosóficas”, momento em que deferiu seus principais golpes às bases de sustentação da teoria

defendida pelo Círculo de Viena, e atingiu toda a construção epistemológica da filosofia da

consciência.

Primeiramente, Wittgenstein anotou o quão falacioso era o entendimento de uma

linguagem com função unicamente denotativa de um conteúdo previamente determinado.

Após reparar nas diversas formas com que os homens fazem uso da linguagem, o autor passou

a contestar a idéia reducionista de que essa serviria unicamente como instrumento de

transmissão de conteúdos acabados.

Convicto dessa nova posição, ele apontou uma séria de outras funções ignoradas ou

negligenciadas pela filosofia anterior:

Há um número incontável de espécies: incontáveis espécies de aplicação àquilo que chamamos ‘símbolos’, ‘palavras’, ‘proposições’. E esta multiplicidade não é nada de fixo, dado de uma vez por todas; mas antes novos tipos de linguagem, novos jogos de linguagem [...] imagina a multiplicidade dos jogos de linguagem nestes exemplos e em outros: Dar ordens e agir de acordo com elas – descrever um objeto a partir do seu aspecto ou das duas medidas – construir um objeto a partir de sua descrição (desenho) – relatar um acontecimento – fazer conjecturas sobre o acontecimento – formar e examinar uma hipótese... (WITTGENSTEIN, 2002, p. 189-190).

Mas se estamos expostos às variadas formas de utilização lingüística, nossa destreza

em nos comunicarmos sem o risco de confusão das suas diversas funções se mostra a chave

para a compreensão de toda a filosofia da linguagem.

Wittgenstein notou que, graças aos conhecimentos advindos da própria experiência,

somos capazes de identificar qual o papel que a linguagem está desempenhando em cada

contexto pragmático distinto (DELACAMPAGNE, 1997, p. 64). Esse foco à relação

conteúdo/pragmática é justamente o que marcou sua linha de pensamento. Assim, detemos a

habilidade de perceber que, em um determinado conjunto de elemento que compõem uma

realidade contextual própria, a linguagem é posta de maneira especificamente diversa.

Com isso, Wittgenstein caminhava para a afirmativa de que a linguagem não se mostra

como um mero instrumento de representação do “mundo em si” captado pela racionalidade

humana tal qual imaginado. Ao bem da verdade, a linguagem serve, a partir do autor, como no tempo. “A crise filosófica de Wittgenstein em outubro de 1929 foi, na verdade, a culminação de um longo processo que então chegou ao seu término... um estágio anterior da indagação de Wittgenstein é ilustrado por Philosophical remarks, III, seção 32. Ali, Wittgenstein levanta novamente a questão fundamental: ‘qual é a ligação entre os signos e o mundo?’ ele não fornece nenhuma resposta precisa e simplesmente diz: ‘talvez devamos dizer ‘o uso dos signos’ [...] significativamente, apenas o uso da linguagem é mencionado aqui, e não jogos de linguagem [...] a mudança radical ocorre em The brown book. Um dos germes das idéias posteriores de Wittgenstein acerca dos jogos de linguagem é sua observação de que eles desempenham um papel fundamental no aprendizado da linguagem” (HINTIKKA; HINTIKKA, 1994, p. 217; 255-256).

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uma forma de acesso à própria realidade, meio pelo qual se constrói o conhecimento e o

mundo ao qual temos contato. É uma reviravolta na relação mundo/linguagem.

Wittgenstein desce às pressuposições epistemológicas desta posição: que o conhecimento humano é algo não lingüístico, uma tese que, à primeira vista, parece ser, de modo geral, comum à tradição, até mesmo à filosofia da consciência da modernidade. É exatamente essa pressuposição da teoria lingüística do Tratactus que agora é posta em questão: não existe um mundo em si independente da linguagem, que deveria ser copiado por ela. Só temos o mundo na linguagem; nunca temos o mundo em si, imediatamente, sempre por meio da linguagem [...] a linguagem não é um puro instrumento de comunicação de um conhecimento do realizado, é, antes, condição de possibilidade para a própria constituição do conhecimento enquanto tal. (OLIVEIRA, 1996, p. 127-128) (grifos nossos).

Expliquemos melhor como se dão essas alterações.

Segundo o neopositivismo vienense, cabia ao filósofo buscar uma linguagem artificial

que lograsse a extinção de ambigüidades e incertezas decorrentes da utilização dos signos

ordinários (facilitação à segurança jurídica da tipicidade fiscal).

Entretanto, ao partir para o estudo observacional do papel da linguagem, Wittgenstein

percebeu o quão absurda a proposta antedita. O autor notou que não há como proceder a uma

estruturação relacional ontológica, exata e atemporal entre signo e significado tal qual

propunha o neopositivismo.

Analisando a utilização pragmática da linguagem – e essa é a verdadeira reviravolta de

postura quanto a relação linguagem-filosofia - ele percebeu que os conteúdos dos termos

lingüísticos não se encontram previamente engessados aos seus signos correspondentes. Se

impossível a estabilidade perene da relação conceitual, também cai por terra o objetivo de

utilização instrumental da linguagem como forma de transmissão exata do conhecimento a ser

comunicado.

... as comparações linguagem-mundo devem ocorrer no tempo. Isso torna a condição dos objetos do Tratactus extremamente ambígua. Pois, se esses objetos são atemporais, os complexos desses objetos são presumivelmente também atemporais, mas se assim for, será impossível comparar esses fatos atemporais com as proposições da nossa linguagem, que pertencem ao mundo físico (HINTIKKA, HINTIKKA, 1994, p.226)

Atento à importância das relações contextuais, o autor argumentou que apenas durante

a utilização pragmática de um termo lingüístico esse adquire seu verdadeiro conteúdo

provisório. De forma simplificada, apenas “falando” colabora-se com a edificação de

significado dos termos falados. Eis a razão de Wittgenstein firmar que “o sentido de uma

palavra é o seu uso na linguagem” (WITTGENSTEIN, 2002, p. 207).

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Exemplo claro é a construção de conteúdo das diversas gírias utilizadas pelos jovens e

adultos na modernidade. Expressões tais como “chapa”, ou “bombar” não mais têm como

conteúdo empírico uma referência a uma “extensão plana de metal utilizada pelas indústrias

ou siderurgias”, ou mesmo relação com artefatos explosivos utilizados em conflitos armados.

Em um diálogo atual, é possível também identificar, no uso desses vocábulos, a intenção do

sujeito de fala se referir a uma pessoa querida, ou mesmo a uma festa ou evento que reunirá

muitas pessoas. São conteúdos que, muito embora não tenham sido “originariamente”

estabelecidos aos termos respectivos, hoje são aceitos e compreendidos com naturalidade.

Toda essa construção de novos significados se deu não em virtude de uma

determinação prévia do espelhamento termo/realidade, mas sim em decorrência da própria

utilização (e aceitação) por parte dos interlocutores!

Caso se queira um exemplo jurídico, pode-se imaginar o signo “livro” expressado em

nosso texto constitucional para fins de imunidade tributária (art. 150, VI, “d” da CF/88). Não

é insensata a afirmativa de que, quando da redação do texto da Constituição, havia um

conteúdo correspondente à palavra “livro” decorrente de sua própria utilização pragmática

que compunha a realidade lingüística do momento. Tratava-se, p.e., de uma compilação de

folhas destinadas à transmissão de informações diversas.

Suponha, porém, que com a evolução tecnológica, as pessoas passaram a perceber que

a função antes atribuída aos “livros” – transmissão de conhecimento didático ou cultural –

também poderia ser atingida através de um aparato eletrônico que contivesse todo o conteúdo

presente em um “livro” tradicionalmente impresso e consubstanciado na compilação de

páginas tal qual aludido. Ora, diante da “semelhança”, ou “familiaridade” que os objetos

denotavam quanto a sua função educativa, também esse novo aparato eletrônico – p.e., o CD-

ROM – passou a ser apontado com a mesma expressão lingüística: “livro”.

Mais uma vez, a utilização pragmática da palavra foi responsável pela alteração de seu

conteúdo conceitual, podendo significar, ainda, uma eventual modificação no conteúdo

jurídico – imunidade tributária – do dispositivo que o utiliza.

As palavras ao serem usadas cercam-se por uma atmosfera, adquirindo uma fisionomia própria que as circunscreve. Tudo se passa como se as palavras fossem como o nome Schubert, impossível de ser separado da música do compositor. Por isso a melhor maneira de perceber uma expressão com uma significação determinada é imaginá-la como se estivesse sendo apresentada num palco, como se fosse uma citação. Somente assim se captura essa atmosfera em que ela se move o espaço representativo que, se não determina precisamente o conceito, faz parte de seu movimento. É dentro dele que [...] damos vida às determinações conceituais sem que, contudo, elas se confundam com esses seus meios de apresentação (GIANNOTTI, 1995, p. 167-168)

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Daí o termo “reviravolta linguístico-pragmática”. É abandonada a convicção de uma

linguagem instrumental de conteúdos pré-determinados ao uso. Seus conteúdos conceituais

são agora adquiridos apenas por meio da própria utilização pragmática, de seu uso prático nas

diversas situações de fala.

Com isso, é atirada ao espaço a segurança jurídica positivista decorrente da

possibilidade de engessamento dos conteúdos normativos previstos no texto legal. Afinal, os

mesmos termos utilizados pelo legislador poderão vir a adquirir novos significados em

decorrência, justamente, das diversas utilizações lingüísticas tributárias à dinamicidade do

mundo humano.

Se os elementos contextuais são históricos, mutáveis no tempo, também a utilização

da linguagem o será – mais uma vez, as gírias. Dessa forma, como conceber a determinação

atemporal de um conteúdo a um termo lingüístico154? Este é o lado metafísico do

neopostivismo que Wittgenstein denunciou155!

É por isso mesmo que Misabel Derzi, ao tentar determinar qual o conteúdo tributário

advindo da previsão de imunidade às instituições sociais, se questiona: “mas o que é uma

instituição? E uma instituição de assistência social? (In: BALEEIRO, 1998, p.320).

Da mesma forma, a recente decisão do Superior Tribunal de Justiça acerca da

legitimidade do recolhimento de contribuições sociais do SESC e SENAC pelas empresas

prestadoras de serviço. Muito embora a expressão “empresa” fosse antes facilmente entendida

como “empresa comercial”, o STJ percebeu que a práxis jurídico-tributária possibilitava a

154 Giannotti anota passagem interessante em que Wittgenstein nos exemplifica com uma ilustração que bem representa as várias possibilidades de assunção de conteúdo: “quando Wittgenstein compara o conteúdo proposicional a uma fotografia de um boxeador, numa determinada posição de luta, pretende frisar que seu sentido varia conforme se alteram as maneiras de uso da figura. Quando ela mostra como um aprendiz deve comportar-se numa determinada situação, funciona como norma. E conforme esse uso, certas partes e certos aspectos da figura se tornam mais relevantes em relação aos outros: tal posição de pernas indica maior capacidade de movimentação, tal posição de punho, melhor guarda, e assim por diante. Ao retratar, porém, um fato memorável, tudo se concentra na imagem como um todo, na sua capacidade de evocar o evento. Isto obviamente não acontece quando a fotografia é colocada nas paredes do quarto de uma jovem fã. O uso altera a pregnância das partes, ou melhor, determina o modo de sua análise, de sorte que é nele que a articulação se repõe e se mostra.” (GIANNOTTI, 1995, p.77) 155 Antes mesmo da elaboração da obra “Investigações”, Wittgenstein já percebia a relação signo/realidade tal qual afirmamos. Em “The Brown Book”, meditava o autor: “Tendemos a nos esquecer de que apenas o uso específico de uma palavra lhe dá seu significado. Consideremos o nosso velho exemplo do uso de palavras. Alguém é enviado ao comerciante com um pedaço de papel onde estão escritas as palavras ‘cinco maçãs’. O uso das palavras na prática [itálicos de Wittgenstein] é o seu significado. Imagine-se que fosse comum que os objetos a nossa volta carregassem rótulos com palavras mediante as quais nossa fala se referisse aos objetos. Algumas dessas palavras seriam nomes próprios dos objetos, outras, nomes genéricos (como mesa, cadeira, etc.), outros ainda, nomes de cores, nomes de formas, etc. isso significa que uma etiqueta teria um significado para nós apenas na medida que fizéssemos dela um uso particular [grifos nossos], agora é fácil imaginar que seríamos afetados à mera vista de uma etiqueta em alguma coisa e que esqueceríamos que aquilo que a torna importante é seu uso.” (WITTGENSTEIN apud HINTIKKA; HINTIKKA, 1994 p. 258).

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compreensão de que ali estavam abrangidas as empresas que fazem comércio, seja de bens,

seja de serviços, daí a possibilidade de sua exação tributária (REsp. 895.878156, DJ

08/08/2007). Também neste exemplo, impossível estabelecer, de forma milimétrica e

antecipada, quais as abrangências de conteúdo a que o texto constitucional se refere!

Caso se venha argumentar por uma segurança jurídica consubstanciada na exigência

de elaboração normativa para a criação de um tributo, há fortes razões para que consideremos,

com seriedade, a proteção desta garantia tributária. Entretanto, a previsibilidade que

direciona(va) o princípio da tipicidade tributária se dá em busca por uma certeza material do

conteúdo obrigacional.

Sendo assim considerado, não se trata nem mesmo de uma escolha hermenêutica

que estamos sugerindo, mas sim de uma impossibilidade derivada de nossa estrutura

lingüística e humana. Afinal, por mais que o legislador se paute pelo projeto de delimitação

material das relações fiscais, conscientemente ou não, sua tarefa deixará margem para

interpretações distintas daquela pensada originariamente.

Mas, a ausência de uma estabilidade absoluta não significa, por outro lado, a utilização

absolutamente desordenada e arbitrária dos signos presentes no ato de fala.

Neste tocante, Wittgenstein identifica que os diversos contextos em que inseridos os

termos lingüísticos acabam por corresponder a jogos de linguagem distintos, com regras

próprias que devem ser seguidas por seus participantes. Nesses jogos de linguagem a

aceitação das regras por parte dos interlocutores também irá refletir sua própria importância

no jogo lingüístico – pode-se mesmo afirmar que a pragmática wittgensteiniana chega,

também, à construção das regras do jogo de linguagem (DELACAMPAGNE, 1997, p. 61 e

ss.).

O fato de as regras serem reconhecidas não significa, porém, que sua aplicação decorra de modo mecânico, uma vez comum [...] o jogo não é uma fatalidade natural, nem mesmo uma imposição de forças supra-individuais, coletivas, sociais anônimas, pois a comunidade em questão só surge no próprio ato de jogar por meio do reconhecimento de regras e aceitação de papéis que dirigem a ação global. (OLIVEIRA, 1996, p. 144)

156 CONTRIBUIÇÕES SESC/SENAC. EMPRESAS PRESTADORAS DE SERVIÇO. A Primeira Seção reiterou o seu entendimento e considerou legítimo o recolhimento das contribuições sociais do SESC e SENAC pelas empresas prestadoras de serviço. A Min. Relatora afirmou que modernamente o conceito de empresa comercial é amplo, devendo, pois, abarcar todas as empresas que fazem comércio, seja de bens, seja de serviços. Assim, a Seção negou provimento ao recurso. Precedentes citados: RESp 431.347-SC, DJ 25/11/2002; REsp 719.146-RS, DJ 2/5/2005; REsp 705.924-RJ, DJ 21/3/2005, e REsp 446.502-RS, DJ 11/4/2005. REsp 895.878-SP, Rel. Min. Eliana Calmon, julgado em 8/8/2007.

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O que se quer aqui destacar é que, diante das variadas possibilidades de utilização da

linguagem, em cada contexto, em cada realidade distinta, os interlocutores aceitam e

possibilitam o uso da linguagem de uma dada maneira. Assim, em cada entorno contextual

haverá um jogo de linguagem com regras próprias que irá conduzir a comunicação, sem,

porém, serem regras deterministas que culminem no mecanicismo de outrora157.

Mas, da mesma forma que apenas se consegue aprender as regras de um jogo de

xadrez movimentando as peças em uma tentativa de “lançar jogadas”, o mesmo ocorre com as

regras do jogo lingüístico. Nessa esteira, somente se logra acesso e sucesso em transitar

dentro do ambiente lingüístico, quando utilizada a pragmática para o aprendizado de tais

regras.

Sendo possível utilizar as palavras de diversas formas, e assim dar-lhes conteúdo,

deve-se fazê-lo dentro das regras do respectivo jogo de linguagem em que o diálogo está

inserido. Em uma simplificação didática, pode-se referir à coerência da utilização da

linguagem em relação ao ambiente e participantes da fala158.

O conceito de jogo da linguagem pretende acentuar que, nos diferentes contextos, seguem-se diferentes regras, podendo-se, a partir daí, determinar o sentido das expressões lingüísticas. Ora, se assim é, então a Semântica só atinge sua finalidade chegando à Pragmática, pois seu problema central, o sentido das palavras e frases, só pode ser resolvido pela explicitação dos contextos pragmáticos. Uma consideração lingüística que não atinge o contexto pragmático é, nesse sentido, essencialmente abstrata... (OLIVEIRA, 1996, p. 139)

Nessa trilha, é importante notar que, ainda que os termos lingüísticos tenham,

invariavelmente, algum âmbito de indeterminação, o que fulmina as pretensões

neopositivistas, não se pode afirmar a ausência de limites na atuação do sujeito. Dessa forma,

utilizam-se os signos, e dão-lhe significado, sempre em observância a uma relação de

157 A importante diferenciação entre as regras compreendidas pela técnica cartesiana e as regras do jogo de linguagem de Wittgenstein é apontada também por Chauviré: “a crítica do Bedeutungskörper pretendia dissipar a ilusão de um ‘corpo de regras’ (Regelskörper) que supostamente determinaria de maneira mágica a significação das expressões. Ora, a seu ver a regra não era uma ‘fórmula mágica que nos mantém sob seu encanto’, a ponto de nos fazer aplicá-la mecanicamente em cada caso, passivamente subsumidos à sua força. Considerava necessário repelir imperativamente essa idéia de injunção, que não corresponderia a nada de real. A ‘solução’ wittgeensteiniana consistiu em constatar que a regra (ou a significação) de um lado, e o uso (ou os casos de aplicação), de outro, estão em conexão interna (sendo impossível pensar em um sem o outro...” (CHAUVIRÉ, 1989, p.95-96). 158 Com sua estruturação teórica do pragmatismo lingüístico culminando nos jogos de linguagem, Wittgenstein consegue fechar o cerco à relação até então estática entre signo e significado: “partindo do jogo de linguagem, não se pode mais defender a identificação da significação com a coisa: ela consiste na função de reconhecimento dos objetos correspondentes a partir da percepção de seu nome no curso de uma atividade determinada. Dito de outro modo, o uso é uma dimensão irredutível: o importante não é mais se perguntar sobre a significação, mas sobre o uso”. (AUROUX,1998, p.273)

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familiaridade159, de “semelhanças e parentescos” (OLIVEIRA, 1996, p. 131). A utilização

arbitrária dos termos lingüísticos é tentativa inválida de desconsiderar as regras do jogo de

linguagem.

Nessa trilha, é perspicaz a crítica que Godoi e Rolim (2006, p. 59 e ss.) deferem ao

desrespeito ao “núcleo significativo mínimo” por parte dos legisladores tributários. Sem

desconhecer a construção dos conteúdos lingüísticos derivados de sua pragmática conceitual,

os autores apontam tentativas esdrúxulas de se utilizar expressões em desrespeito às regras do

jogo de linguagem em que estão inseridas.

Nesse sentido, o art. 38 da lei 4506/64, que tecia a obrigatoriedade de pagamento de

imposto de renda em situações fáticas que não demonstravam quaisquer formas de acréscimo

patrimonial. Ainda que não concordemos com a delimitação essencialista e ontológica dos

termos normativos tributários, também não se pode argumentar, na atualidade, que a práxis

jurídica possibilite que o termo “renda” tenha por conteúdo algo distinto de aquisição, a que

título for, de algum ganho patrimonial. Com acerto, também este foi o entendimento do

Supremo Tribunal Federal (RE 117.787 DJ 23/04/1993).

Da mesma forma, não se pode pretender examinar e atuar com todos os signos e sinais

como se detentores da mesma dimensão de indeterminabilidade. Cada expressão lingüística,

em observância aos contextos e regras do jogo lingüístico, permite uma maior “flexibilidade

de uso”, incorrendo, assim, em uma maior ou menor possibilidade de construção de

significado: “Sem elasticidade, os conceitos não se aplicam. Obviamente, a elasticidade dos

conceitos matemáticos não é a mesma que aquela inerente aos conceitos psicológicos”

(GIANNOTTI, 1995, p. 170)

Nessa baila, legislação tributária que determine o pagamento de tributo quando da

ocorrência de transmissão de bem imóvel acima de R$100.000,00, utiliza-se de termos

lingüísticos com menor dimensão de alteração pragmática de conteúdo do que uma segunda

norma que tenha como fato gerador “a transmissão de bem imóvel de valor representativo de

capacidade contributiva”.

Com essas novas construções epistemológicas, a reviravolta lingüístico-pragmática

retira a credibilidade das bases do pensamento positivista de boa parte dos tributaristas atuais.

159 “A frase é retirada de seu uso cotidiano, pensada segundo um esquema que é exterior a ela, conservando, todavia, sua matriz significativa prévia. É como se jogássemos damas com as figuras do jogo de xadrez e imaginássemos que o primeiro jogo ainda conservasse o espírito deste último [...] cada conceito, ou melhor, cada sistema de conceitos se envolve, pois, numa atmosfera própria de indefinição, que, ao contrário do que se costuma imaginar, não perturba seu conteúdo duro de sentido, mas pertence ao próprio coração de sua significabilidade como meio de apresentá-lo” (GIANNOTTI, 1995, p. 44-45; 170).

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Não há que se falar em determinação e exaurimento das hipóteses factuais por meio da

descrição de comportamentos em sede normativa. A tentativa de relacionamento prévio entre

os signos e suas significações, não apenas pode ser tida por falaciosa, como também

metafísica, pautando suas premissas em uma dualidade platônica impossível de ser atingida.

Com isso, também o mito da exatidão, da certeza e da possibilidade de “conceitos

fechados” garantirem a segurança jurídica de previsibilidade absoluta de direitos e obrigações

materiais perde força. Conseqüentemente, a própria forma liberal de pensar o Direito

Tributário, abandonando essas premissas já derrubadas deve ser reconsiderada.

Não fosse suficiente a derrocada da pretensão de estabilização determinista dos

conteúdos conceituais, a pragmática de Wittgenstein acabou por minar um segundo ponto que

caracteriza a filosofia da consciência.

Já trabalhado que o enaltecimento da racionalidade humana atingiu em Kant seu ápice.

Nos ensinamentos do filósofo prussiano, o homem tinha acesso ao mundo por meio de sua

razão solipsista. O indivíduo não precisava de uma interação com os demais para deter o

conhecimento, pois este era derivado da forma como os objetos da realidade se amoldavam às

“fôrmas” da racionalidade e suas intuições puras. Assim, “Kant concebe uma razão atemporal

capaz de unificar em si o intelecto e a intuição. Isso porque os elementos do mundo

fenomênico somente poderiam ser apreendidos por meio da intuição humana, especialmente

por meio de juízos sintéticos a priori” (CRUZ, 2006, p. 29).

Ocorre que, com Wittgenstein, é constatado que o acesso à realidade não pode ser

atingido pela razão kantiana, mas apenas por meio da linguagem. Deixa de haver um mundo

em si, para existir um mundo “na” e “pela” linguagem. Em harmonia com esses

ensinamentos, já se conclui que a linguagem constrói seu significado por meio da pragmática,

sempre atenta às regras do jogo de fala presente à situação respectiva.

Ocorre que essa é tarefa que a filosofia da consciência não consegue satisfazer. “As

pessoas são reduzidas a mônadas isoladas, com consciências individuais à quais só o

indivíduo tem acesso. Como é possível a linguagem como fenômeno social? Que sentido tem

descrever fenômenos psíquicos individuais se os outros não têm acesso a essa dimensão?”

(OLIVEIRA, 1996, p. 134).

Eis outra incompatibilidade entre a teoria esboçada pelo segundo Wittgenstein e a

permanência dos pressupostos da reta-razão. A percepção da realidade envolta unicamente na

esfera do individualismo se choca com o caráter eminentemente público que permeia a

linguagem.

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O reconhecimento da multiplicidade dos usos possíveis da linguagem exclui então toda redução a um modelo único, e supõe reconsiderar a problemática clássica [...] sua argumentação contra a possibilidade de uma linguagem privada visa precisamente mostrar o caráter fundamental do jogo de linguagem (público) que permite a representação dos estados mentais (AUROUX, 1998, p.275-276)

Com efeito, não há que se falar em uma apropriação individual das regras da

linguagem e uma conseqüente atividade comunicacional independente da ação de outros

sujeitos. A própria estruturação do jogo lingüístico depende do ambiente em que se situa para

adquirir seu status característico. Conclusão imediata é a impossibilidade de construção de

conhecimento de forma isolada, como se o intérprete estivesse ilhado de seu entorno

contextual.

Com isso, mais um pilar da filosofia da consciência despenca. O intérprete não

consegue atingir o significado dos termos normativos isolado em um quarto fechado com a

suposição de que sua razão atinge toda a capacidade de compreensão da realidade. Não há

interpretação ou conhecimento pelo solipsismo, porque, simplesmente, não há conteúdo

normativo na lei em si. Proclama-se o abandono da relação sujeito-objeto (intérprete-norma)

em reconhecimento da interação sujeito-sujeito (STRECK, 2003, p.92 e ss.).

O conteúdo das expressões, das normas, da Constituição, enfim, todo o conhecimento

que se quer ter acesso pressupõe a interação intersubjetiva dos diversos interlocutores com

quem compartilhamos nossa situação de fala.

7.2 A interpretação como processo construtivo e a impossibilidade da

neutralidade científica: a fusão de horizontes interpretativa.

A busca pela univocidade interpretativa dos textos legais que comandou a

hermenêutica clássica – pressuposto já derrubado pela filosofia da linguagem de Wittgenstein

– não se edificou de forma independente ao seu contexto histórico, como se relegasse apenas

à lingüística o cartesianismo metafísico.

Durante a modernidade, todas as áreas do conhecimento que almejassem o título de

cientificidade deveriam demonstrar instrumentos capazes de submeter seu objeto de pesquisa

à neutralidade e rigor matemático-científico. Era o ponto em que as ciências humanas se

sentiam fora da formação do conhecimento responsável, já que seu foco de análise, por si só,

apresentava variáveis que impediam o sucesso consagrado na química, física e matemática.

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Eis o mérito de Descartes, que conseguiu “popularizar” a necessidade do método, mesmo para

as “ciências do espírito”, inclusive o Direito, para a obtenção da “certeza científica”.

Restou apresentado no início deste trabalho que, para isso, Descartes entendia

imprescindível purificar a ciência de toda e qualquer influência externa que pudesse macular o

procedimento de pesquisa. Neste momento, o intérprete/pesquisador deveria cumprir seu

papel de mero observador da natureza para, assim, reproduzir o conhecimento que nela havia

detectado. Este aparato epistemológico cartesiano, hoje abatido pelas críticas vistas a seguir,

encontrava toda a coerência quando pensado em conjunto com os demais elementos que

compuseram a formação da filosofia da consciência: o racionalismo capaz de alcançar, por si

só as respostas científicas; o antropocentrismo que acarretou a super-valorização da

individualidade humana, etc.

Conforme já se sabe, essa perspectiva científica, ao ser propalada ao Direito, culminou

no método subsuntivo de aplicação da norma. Destinaram ao jurista a tarefa de fazer incidir o

conteúdo previamente determinado no texto legal à situação fática. Caso contrário, caso

pudesse o mesmo “interferir” no conteúdo jurídico com sua subjetividade, restaria

desrespeitada a vontade original do legislador, e não se conseguiria repetir de forma exata a

incidência normativa identificada na lei, acabando, assim, com a certeza matemática

norteadora dos sistemas científicos – divisão clássica dos poderes.

Além do mais, segundo o entendimento dos pensadores da modernidade, apenas

cumprindo de forma rigorosa os ditames legais seria possível garantir a todos a mesma

aplicação do conteúdo legal, obedecendo, assim, a igualdade absoluta entre os cidadãos,

princípio primeiro do Iluminismo. Mais uma vez, a necessidade de reprodução exata do

Direito original, sem a subjetividade interpretativa que poderia desvirtuar a pureza do método.

Eis mais alguns pontos caracterizadores da filosofia da consciência que se buscará

refutar, agora, em virtude do giro hermenêutico proporcionado por Hans-Georg Gadamer.

Uma questão prévia que se deve deixar clara é a absoluta adesão de Gadamer à

filosofia da linguagem trabalhada por Wittgenstein. As idéias ora expostas – primeiro a

reviravolta lingüístico-pragmática, e agora o giro hermenêutico – não se mostram conflitantes,

antes complementares, fato que faz esses dois pensamentos unirem forças e censuras no

combate ao positivismo metodológico. Esse elemento agregador, que reforça nossos

argumentos, foi reconhecido expressamente por Gadamer, que lhe reserva um capítulo

próprio:

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Percebemos agora que todo esse processo é um processo de linguagem [...] a linguagem não é somente um dentre muitos dotes atribuídos ao homem que está no mundo, mas serve de base absoluta para que os homens tenham mundo, nela se representa mundo. Para o homem, o mundo está aí como mundo numa forma como não está para qualquer outro ser vivo que esteja no mundo. Mas este estar-aí do mundo é constituído pela linguagem (GADAMER, 1997 p.497; 571).

Não obstante a teoria gadameriana apenas fosse se formar na segunda metade do

século XX, seu pensamento é fruto de uma evolução filosófica perpetrada por diversos

autores ao longo do tempo. Em sua obra, Gadamer desenvolve com minúcias a evolução do

tema que resolvera se ocupar, e reconhece o mérito – e direciona críticas – aos pensadores que

fez uso para formar o delineamento de sua contribuição filosófica.

Já no início do século XIX, Schleiermacher, conhecido como o “pai da hermenêutica”

(PEREIRA, 2001, p. 13), deu ares de autonomia a essa área de estudo, além de buscar o

entendimento de como se dá o conhecimento de forma ampla.

Schleiermacher tem o mérito de contextualizar o significado do individual perante o

todo, lançando o objeto de compreensão a um estudo mais sistêmico e abrangente. Para ele,

somente se alcança o entendimento do significado de uma frase diante do conjunto completo

da obra em que esta inserida, mas da mesma forma, apenas se vislumbra o significado do

todo, compreendendo cada frase individual.

Não obstante o raciocínio circular desenvolvido, Shleiermacher se empenhou na

identificação de standards, regras objetivas capazes de cercar todo o ato de compreensão

(CRUZ, 2007, p. 37). Justamente em razão dessa ausência de superação de formas

objetivantes do entendimento, é correta a constatação de que a ação hermenêutica

permaneceu, mesmo após sua autonomia, francamente presa à metodologia da filosofia

moderna160.

A tarefa então iniciada ganhou desenvolvimento posterior com os estudos de Wilhelm

Dilthey. Este, identificando uma separação entre ciências do espírito (humanas e sociais) e

ciências naturais (exatas), tentou situar a atividade compreensiva dentro de seu papel

histórico, e proclamar a independência dos métodos de compreensão das ciências do espírito.

160 “A auto-reflexão lógica das ciências do espírito, que acompanha o seu efetivo desenvolvimento no século XIX, está completamente dominada pelo modelo das ciências da natureza [...] Já a partir do contexto da Lógica de Mill percebe-se que não se trata de reconhecer uma lógica própria das ciências do espírito, mas de demonstrar, ao contrário, que também nesse âmbito o método indutivo, que está à base de toda a ciência experimental, tem validade única. Mill toma pé numa tradição inglesa, cuja formulação mais efetiva foi dada por Hume na introdução de sua obra Treatise. Mesmo na ciência moral estaria em questão reconhecer uniformidade, regularidade e legalidade, que tornariam previsíveis os fenômenos e processos individuais [...] mas o que representa o verdadeiro problema que as ciências filosóficas colocam no pensamento é que não se consegue compreende corretamente a natureza das ciências do espírito, usando o padrão de conhecimento progressivo da legalidade (Gesetzmässigkeit).” (GADAMER, 1997, p. 37-38)

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Dilthey já tinha a noção de que não se pode pretender a história sem considerar que o

próprio sujeito faz parte da própria história, e por isso, imerso em seu objeto de análise161.

Todavia, sua empreitada de cortar o cordão da exatidão das áreas humanas e sociais foi

prejudicada pelas amarras inconscientes que o prendiam às ciências naturais:

Mesmo assim, Dilthey se deixou influenciar profundamente pelo modelo das ciências da natureza, embora quisesse justificar justamente a independência metodológica das ciências do espírito [...] para Dilthey o conhecimento científico implica em dissolução dos vínculos vitais, a conquista de uma distância em relação à própria história, pois somente isso possibilita considera-la como objeto (GADAMER, 1997, p. 41)

Dentre os autores aludidos por Gadamer, é sem dúvida Heidegger quem lhe exerceu

maior influência. Autor da obra “Ser e Tempo” (2006), Heidegger percebe que o ser, presente

na linguagem, não pode ser compreendido de forma a menosprezar seu aparato histórico

anterior.

Sua crítica face a filosofia da consciência se pautava por essa centrar todo o foco de

análise apenas no sujeito, independentemente de sua relação com o mundo. Ocorre, porém,

que a questão da temporalidade, negligenciada pela modernidade, é crucial para se

compreender como o sujeito é capaz de compreender o ente que se revela perante si.

No entendimento do filósofo, não se consegue apreender o significado do objeto (p.e.,

ente/legislação) que se quer interpretar tal como ele é plenamente. Em realidade, o sujeito

deve buscar aquilo que está oculto no ente, que por sua vez, irá se desvelar frente seu

observador. Isso implica reconhecer que o objeto a ser interpretado apresenta inúmeras facetas

que irão sendo reveladas ao ser (intérprete) – ilustração próxima ao quadro de Magritte (“Le

fils de l'homme”) em que o pintor retrata, como de costume em suas obras, uma maçã

sobreposta à face do homem, indicando que sempre se deve perquirir aquilo que é oculto no

próprio objeto de pesquisa.

Cruz, em felicidade didática exemplifica que

Podemos designar o fruto da macieira em diversas línguas: maçã, apple, manzana, pomme, etc. Mas, a designação desse ente ainda não a desvelou pois ele pode ter múltiplos significados (modos de existência) a partir de contextos diferentes.

161 Segundo recorda Gadamer, “... em oposição à dúvida cartesiana, e à certeza do conhecimento matemático da natureza fundado sobre aquela, Vico afirmara o primado epistemológico do mundo da história feito pelo homem; Dilthey irá repetir o mesmo argumento: ‘A primeira condição de possibilidade da ciência da história consiste em que eu mesmo sou um ser histórico, e que aquele que investiga a história é o mesmo que a faz’. O que torna possível o conhecimento histórico é a homogeneidade de sujeito e objeto [...] dava razão à escola histórica em que não existe um sujeito geral, mas somente indivíduos históricos. A idealidade do significado não pode ser atribuída a um sujeito transcendental, mas surge da realidade histórica da vida” (GADAMER, 1997, p. 300; 302)

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Assim, a Big Apple representa a cidade de New York. Pode também representar o amor enamorado (a maçã do amor), o objeto do pecado da história bíblica de Adão e Eva ou, até mesmo, significar a traição do presente da bruxa à Branca de Neve [...] assim, podemos perceber o que se oculta na maçã: primeiro, por detrás da associação entre a promessa da sensação gustativa de se saboreá-la, se esconde tanto a perspectiva de se conhecer as delícias do comércio e da vida cultural de New York quanto os devaneios do sexo e do amor... (CRUZ, 2007, p. 39)

Mas o encontro e descoberta do significado do ente apenas se dá por meio da

linguagem, compreendida não como instrumento, mas elemento que marca a cognoscência do

próprio sujeito, e perenemente conectada ao mundo em que se situa. Ora, se assim o é, pode-

se concluir que o ser apenas é “ser no mundo”. Noutros termos, o sujeito apenas se constitui

porque ligado à sua relação com o mundo e suas tradições, experiências e subjetividade. Por

isso mesmo, impossível a tarefa de compreensão do ente sem se passar pela consideração do

próprio ser!

O ser-no-mundo na linguagem não é simplesmente um ser dentro do mundo, ao modo de uma consciência que se apropria do mundo em sua própria interioridade. O Dasein é falante, não porque ele seria um interior separado do exterior, mas porque compreendendo-se enquanto ser-no-mundo, ele já é exterior. (AUROUX, 1998, p. 257).

O que Heidegger tenta transmitir é sua constatação de que o ser apenas é capaz de

compreensão porque está situado no mundo. Sua carga histórica, que precede o ato

hermenêutico em si, é o que possibilita o entendimento. Com isso, ele oferece uma concepção

até então refutada pela filosofia da modernidade: as características e particularidades do

ser são parte indissociável do procedimento cognoscitivo162.

Justamente por isso, não há como se proceder a um sistema mecanicista do

conhecimento, afinal, cada sujeito é marcado de forma diversa pelas relações sociais a que é

exposto, o que acarreta a diversidade do desvelamento do ente.

Com essas bases teóricas, Gadamer parte para a investida de pesquisar o fenômeno da

compreensão e sua relação com os métodos apriorísticos da ciência. O próprio autor esclarece

a tomada de empréstimo dos ensinamentos de Heidegger e por onde caminhará a partir daí:

162 Oliveira leciona que “aqui reaparece a pluridimensionalidade da linguagem: por um lado compete à linguagem revelar o ente em sua verdade e exprimí-la na palavra. No entanto, o que se revela nunca é só um ente: no dizer o ente transcendemos o ente na direção do ser o sentido-fundamento que possibilita a revelação dos entes. Então, é por meio da palavra que o homem, ser histórico vem ao ser. Heidegger chama esse evento de relação hermenêutica entre o homem e o ser. A consideração dessa problemática significa, em Heidegger, o pôr o alicerce para a construção de um novo paradigma: a ontologia hermenêutica é um retorno ao evento do desvelamento que é também, ao mesmo tempo, ocultamente (essa é a aporia originária do ser enquanto evento de desvelamento) (Entbergen) e ocultamento (Verbergen) entanto temporalização do ser (OLIVEIRA, 1996, p. 213)

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Somente Heidegger desenvolveu em toda a sua radicalidade: só fazemos história na medida em que nós mesmos somos ‘históricos’; significa que a historicidade da pré-sença humana em toda a sua mobilidade do relembrar e do esquecer é a condição de possibilidade de atualização do passado em geral [...] (mas) Heidegger só se interessa pela problemática da hermenêutica histórica e da crítica histórica com a finalidade ontológica de se desenvolver, a partir dela, a estrutura prévia da compreensão. Nós, ao contrário, uma vez tendo liberado a ciência das inibições ontológicas do conceito de objetividade, buscamos compreender como a hermenêutica pôde fazer jus à historicidade da compreensão. (GADAMER, 1997, p. 350; 354) (acréscimos nossos)

Gadamer argumenta, em sintonia com Heidegger, que não se pode pretender o sujeito

como se este estivesse solto no espaço, alheio e imune aos acontecimentos, experiências e

tradições que compõem sua situação histórica. Em realidade, sempre que se procede alguma

empreitada interpretativa, o intérprete o faz permeado por preconceitos e pré-compreensões.

Isso porque somos todos herdeiros de uma tradição histórica social e familiar que nos

é passada como um diálogo entre passado e presente, o que, desde já, nos situa geográfica e

historicamente no mundo. Nossa rede de conhecimentos, experiências e subjetividades

prévias ao processo do conhecer forma nosso “horizonte hermenêutico”, que conforme

leciona Heidegger, é pressuposto para o processo de conhecimento e compreensão da

realidade.

Em uma busca inicial pela compreensão das artes, o autor detecta a impossibilidade de

se adentrar no conteúdo e sentimento passados por uma obra de arte sem a utilização das

expressões individuais como meio de acesso a um quadro ou escultura. Há um

compartilhamento de mundos, o do intérprete e o da arte, que, em conjunto, irão formar a

compreensão pessoal do primeiro. Essa exemplificação inicial servirá, para Gadamer, como

analogia para expandir sua teoria para todos os campos do conhecimento. Assim como se

procede com as artes, também a história, os textos, as normas, romances, etc.

Com esses dados, Gadamer percebeu que a história não está aí para a pertença e

observação neutra dos homens, mas, em realidade, estes pertencem à história, pois é ela que

nos compõe e nos fornece o substrato para a formação do “eu-hermenêutico”. Por isso

mesmo, a carga subjetiva interpretativa abandona a pecha de desvirtuadora da pureza

metódica, e toma agora a posição de condição de possibilidade, pressuposto inarredável para

a compreensão do objeto posto. Isso é o que faz Pereira (2001, p. 32) afirmar que “a

compreensão humana possui uma temporalidade intrínseca. Ou seja, não existe possibilidade

de compreensão que se dê fora da História, fora da influência temporal.”. Gadamer chama

essa relação imbricada entre ser e história de “princípio da história efeitual” (GADAMER,

1997, p. 397 e ss.).

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Dessa forma, para que, ao elaborar este trabalho pudéssemos compreender a

perspectiva liberal da tributação, tivemos experiências próprias que possibilitaram apreender o

conteúdo tributário que se desenvolvia no século XVIII. Assim, já tivemos que pagar tributos

e sentimos a diminuição patrimonial imediata que deles decorre. Tivemos oportunidade,

também, de participar de debates acerca da ingerência patrimonial e sede fiscal que, para

algumas pessoas, caracterizam o Estado brasileiro. Da mesma forma, já nos sentimos

pesarosos com a possibilidade de termos sobre nós a incidência de uma obrigação tributária

sem qualquer lastro de legitimidade, o que nos colocou, também na busca por uma segurança

jurídica...

Toda essa carga subjetiva não serviu de mácula para a pureza do método racionalista

de estudo histórico, mas se mostrou imprescindível para que compreendêssemos todo o

contexto histórico-tributário que habitava a cabeça dos juristas no século XVIII, ainda que

para uma posterior crítica.

Nessa trilha, Gadamer inverte a polaridade que antes dominava a filosofia cartesiana.

As tradições e pré-compreensões que, para Descartes, poderiam acarretar a deformação do

processo científico e cognitivo, passam a ser elementos essenciais para que o sujeito consiga

empreender qualquer atividade intelectiva.

Da mesma forma, a pomba imagina voar com mais liberdade no vácuo porque não contaria mais com a resistência do ar, esquecendo-se que tal resistência é condição de possibilidade de seu vôo, no vácuo (que seria a condição ideal de vôo, sem resistência, sem atrito) a pomba não voaria: assim também os interesses são condições de possibilidade da experiência, ao mesmo tempo que lhe impõem um limite (DUTRA apud CRUZ, 2007, p. 52).

Todavia, não se trata aqui de uma imposição arbitrária das subjetividades individuais

em detrimento do próprio objeto interpretado. Obviamente, Gadamer não propõe um

determinismo ou uma imposição desarrazoada da situação hermenêutica do intérprete, caso

contrário, não se daria a interpretação de um texto, mas sim a produção de conteúdos

absolutamente novos, incoerentes com o objeto analisado.

Aquele que quer compreender não pode se entrar de antemão ao arbítrio de suas próprias opiniões prévias, ignorando a opinião do texto da maneira mais obstinada e conseqüente possível – até que este acabe por não poder ser ignorado e derrube a suposta compreensão. Em princípio, quem quer compreender um texto deve estar disposto a deixar que este lhe diga alguma coisa. Por isso, uma consciência formada hermeneuticamente deve, desde o princípio, mostrar-se receptiva à alteridade do texto. Mas essa neutralidade não pressupõe nem uma ‘neutralidade’ com relação à coisa, nem tampouco um anulamento de si mesma; implica antes uma destacada

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apropriação das opiniões prévias e preconceitos pessoais. (GADAMER, 1997, p. 358).

Se o sujeito chega ao ato interpretativo já carregado de uma vivência particular,

também o texto tem, em si, uma série de informações e possibilidade de conteúdo que estão à

disposição para interagir junto àquele que lhe busca. Até mesmo o aspecto temporal lhe é

presente. Uma legislação escrita há 200 anos não pode ser interpretada da mesma forma que

outra elaborada na contemporaneidade. Assim como o reconhecimento de uma situação

histórica do sujeito é primordial para a compreensão, da mesma forma, a abertura ao

horizonte hermenêutico que o texto tem a apresentar e que irá se relacionar com o intérprete.

Algo como um diálogo entre dois interlocutores com tradições, opiniões e experiências

distintas e aptos a compartilharem suas visões acerca de um tema.

Não à toa, o próprio autor trabalha, em sua obra, uma dialética de pergunta e resposta

entre ser e ente, ente o jurista e a norma (GADAMER,1997, p. 474 e ss.).

A compreensão seria, então, uma fusão desses horizontes, o do intérprete e do objeto,

o primeiro modificando a “posição original” do segundo e o segundo modificando o primeiro.

Gadamer consegue, enfim, abandonar a relação unidirecional da construção do conhecimento,

e teoriza o círculo hermenêutico, que aglutina intérprete e objeto em uma mesma dimensão

participativa da compreensão.

Ganhar um horizonte quer dizer sempre aprender a ver para além do que está próximo e muito próximo, não para abstrair dele, mas precisamente para ver além do que está próximo, em um todo mais amplo e com critérios mais justos [...] compreender é sempre o processo de fusão desses horizontes presumivelmente dados por si mesmos (GADAMER, 1997, p.403; 404).

Em complemento, a oportunidade de compreensão a que se submete o sujeito

incrementa ainda mais seu horizonte hermenêutico, sua visão e pré-compreensão acerca do

objeto. Dessa forma, em uma nova atividade interpretativa, aquele já estará modificado, não

empreendendo um mesmo conteúdo de compreensão, mas sim brindado com um refinamento

maior.

Em verdade, ainda que não importe qualquer prejuízo ao conceito, trata-se mais propriamente de uma espiral hermenêutica, já que o movimento de compreensão formado por dita relação vai, ao longo do processo, estabelecendo patamares mais corretos de interpretação, que, por sua vez, lançarão novas luzes sobre os preconceitos e assim seguidamente rumo a um entendimento mais adequado. Caso fosse literalmente circular, o intérprete sairia do movimento da mesma forma que entrou, ou seja, com os mesmos preconceitos originais. Não poderia ter, por isso,

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nenhum juízo sobre suas validades, nem conquistar qualquer ganho em qualidade. (PEREIRA, 2001, p. 35) (grifos nossos)

Conseqüência direta, Gadamer não mais admite a separação metodológica entre

compreensão, interpretação e aplicação. A própria estrutura do conhecimento por que

caminha o autor o leva a argumentar que compreender, interpretar e aplicar compõem um

mesmo complexo momento cognoscitivo, e não etapas estanques tal qual propunha o

positivismo (GADAMER, 1997, p. 406 e ss.). Dessa forma, apenas se alcança, melhor, apenas

se constrói o sentido de um texto normativo se diante de um caso concreto de aplicação

normativa. Noutros termos, não há Direito sem contexto!

Por isso mesmo, não há como aceitar a pressuposição kelseniana, abraçada pelo nosso

ordenamento, de controle de constitucionalidade “abstrato” designado pelo constitucionalismo

positivista, pois simplesmente, não há conteúdo em textos abstratos, mas apenas em razão de

uma historicidade do sujeito e de seu objeto de interpretação.

Ao ler este trecho da pesquisa, o leitor, desde já, tenta antecipar qual o conjunto da

obra, e projeta para o futuro o significado que irá construir de sua leitura. Isso apenas ocorre

porque as expectativas e interesses do leitor o impulsionam a buscar o conteúdo que dialoga

com seu horizonte hermenêutico. Talvez a base histórica que o compõe tenha um substrato

filosófico coincidente com as teorias aqui expostas e assim, a ansiedade pela constatação de

uma conclusão jurídica concordante já o leve a compreender o texto. Pode também, devido a

pressupostos distintos, estar projetando, simultaneamente à leitura, uma conclusão que não lhe

procede, instigando, assim, uma futura crítica.

De todo modo, o contato inicial do texto já começa a modificar sua compreensão

acerca do conteúdo interpretado. Todavia, a concepção originalmente estabelecida pela fusão

imediata dos horizontes texto/intérprete não pode prevalecer de forma definitiva, estando

sempre atenta à evolução e revisão que o texto irá proporcionando ao longo da leitura.

A compreensão do que está posto no texto consiste precisamente na elaboração desse projeto prévio, que, obviamente, tem que ir sendo constantemente revisado com base no que se dá conforme se avança na penetração do sentido [...] a compreensão só alcança sua verdadeira possibilidade quando as opiniões prévias com as quais inicia não forem arbitrárias. (GADAMER, 1997, p.356)

Ora, mas se aceita a compreensão de um texto como a fusão de horizontes entre

intérprete e objeto, e admitida também que cada sujeito possui um horizonte hermenêutico

próprio derivado de suas tradições, interesses, conhecimentos, enfim, sua subjetividade, se

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está a afirmar que em cada processo de conhecimento, o resultado será distinto, ainda que se

referentes ao mesmo texto? Significa então que uma mesma legislação tributária pode

culminar em resultados interpretativos diversos? É absolutamente isso que Gadamer

afirma!

A grande contribuição gadameriana para nossa pesquisa consiste justamente na

conclusão de que ainda que queiramos não há que se falar em uma repetibilidade de

conteúdos normativos advindos de diversas interpretações de um mesmo texto legal. Muito

menos, uma recuperação exata do sentido do texto que seu autor pretendeu. Eis a razão para a

qual Greco, ao proceder estudo acerca do planejamento tributário, constatar que

Alguém poderá se espantar dizendo que, sendo assim, o Direito seria influenciado pela ideologia e que a interpretação teria um ingrediente ideológico. Óbvio que sim! Lembrando palavras já ditas, o juiz não julga a partir da Lua; o juiz é um homem comum, sensível à sua realidade [...] um conjunto de valores pode ser organizado de diferentes maneiras conforme a pessoa os conceba. Uns podem colocar em primeiro lugar a solidariedade, em segundo a segurança, em terceiro a liberdade, e em quarto a propriedade. [...] outra pessoa pode tomar os mesmos quatro valores e organizá-los diferentemente (GRECO, 2004, p.385)

Toda e qualquer atividade hermenêutica é, em realidade, não uma apreensão de

conteúdo definitivo a ser meramente captada pelo observador, mas sim uma verdadeira

construção de conteúdo derivado da fusão de horizontes do texto e intérprete. Por isso

mesmo, um texto nunca será lido tal qual escrito originariamente. Eis, também, a razão da

inadmissão das fundamentações jurídicas em busca de uma “vontade da lei” ou “do

legislador”:

O sentido de um texto supera seu autor não ocasionalmente, mas sempre. Por isso, a compreensão nunca é um comportamento meramente reprodutivo, mas também produtivo [...] é o que na experiência hermenêutica havíamos caracterizado como o momento da história efeitual. Toda atualização na compreensão pode compreender-se como uma possibilidade histórica daquilo que é compreendido. A própria finitude histórica de nossa existência implica estarmos conscientes de que, depois de nós, haverá outras pessoas que compreenderão de modo cada vez diferente. Mas em nossa experiência hermenêutica não há dúvida de que a obra continua sendo a mesma, sujo significado continua se determinando. (GADAMER, 1997, p. 392; 487). (grifos nossos)

É, definitivamente, o fim da “era das certezas”!

E não apenas na seara do conhecimento jurídico. Não obstante se tenha restringido à

análise de textos normativos, a teoria gadameriana tenta demonstrar que, não importa em qual

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âmbito científico163, nunca se poderá pressupor a utilização de métodos apriorísticos como

garantia de alcance de repetibilidade e previsibilidade dos resultados. Sempre iremos interferir

na condução das experiências, não importa em qual área, inclusive nas ciências da natureza164.

Este é dado não das áreas sociais, ou mesmo do Direito, especificamente, mas sim da

própria finitude e existência humana! Toda a compreensão passa, inexoravelmente, pela

junção de um horizonte prévio e um novo que nos é apresentado. Mesmo o momento de

escolha do objeto a ser investigado, ou o enfoque da pesquisa a ser perpetrada passa pela

influência subjetiva prévia. O desafio da descoberta acerca de um tema que alguém possa ter

comentado; ou a continuação de um trabalho realizado por uma pessoa próxima, ou ainda

qualquer outro elemento externo. São todas manifestações da presença de nossa tradição

hermenêutica quando do início da investigação científica.

Daí que uma eventual justificativa afirmada por servidores públicos do Fisco, por

exemplo, no sentido de que preferem se filiar à postura neutra, literal e estrita contida

expressa e indubitavelmente no texto da lei em razão de receios de posteriores procedimentos

administrativos e disciplinares – que poderiam argüir porque se distanciaram da prática de

“atividades vinculadas” – não se sustenta. Ora, se já constatada a impossibilidade de se

atrelar de forma definitiva, atemporal e unânime um conteúdo a algum termo lingüístico, a

prática declarada pelo servidor em questão não terá qualquer êxito. Afinal, por mais que

163 “Gadamer maintains that the structure of prejudice he describes obtains not only for historical and textual interpretation but for the natural and social sciences as well. Forms of scientifical knowledge themselves constitute tradition; they develop certain norms and methods, rely on certain criteria of verification and falsification and make certain assumptions about their own development. To this extent all understanding or observation of an object domain involves a pre-judgment in terms of a particular interpretive ‘paradigm’ or set of prejudices. Hence, not only are our interpretations of history or texts rooted in our situation and tradition, even those ‘methodologically based’ judgments of meaning that we take to be most objective are prejudiced in particular ways. It follows that there can be no observation of ‘facts’ or confirmation of theoretical hypotheses that is neutral or objective in the sense for which positivism searches sense there is no observation or confirmation that is not conditioned by a tradition” (WARNKE, 1987, p. 108). ( tradução nossa: “Gadamer sustenta que a estrutura de preconceitos que ele descreve se impõem não apenas pra interpretações históricas ou textuais, mas para as ciências naturais e sociais também. Formas de conhecimento científico por si só constituem tradição. Elas desenvolvem certas normas e métodos, dependem de certos critérios de verificação e falsificação e fazem certas suposições sobre seu próprio desenvolvimento. Toda a compreensão ou observação de um objeto envolve pré-julgamentos de um paradigma interpretativo particular ou uma série de preconceitos. Doravante, não apenas nossas interpretações da história ou de textos estão ligadas a nossa situação ou tradição, mesmo aqueles julgamentos “metodologicamente baseados” com intuito de sermos objetivos são influenciados de uma forma particular. Isso significa que não há observação de fatos ou conformação de hipóteses teóricas neutras ou objetivas no sentido que o positivismo pretende, pois não há observação ou confirmação que não seja influenciada pela tradição”. 164 O filme “Quem somos nós” (2005) deixa claro como o pesquisador influencia de forma determinante nos resultados das pesquisas na física, ciência que, a princípio, é caracterizada pro sua exatidão e precisão. Neste filme/documentário, é demonstrada uma experiência realizada com uma carga de elétrons que, sem a presença do observador durante o procedimento, atinge um resultado determinado. Entretanto, quando os cientistas se posicionam para examinar a mesma experiência, a mera presença do observador já alterava o resultado final do mesmo evento. Nem mesmo nas ciências tidas por exatas pode-se colocar o homem como mero espectador. Sua própria presença sempre acarretará alguma modificação nas conclusões experimentadas.

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imagine estar seguindo o conteúdo legal, ele o estará fazendo “a seus olhos”, ou seja, estará

seguindo o conteúdo que ele imagina. Não obstante, um magistrado ou superior hierárquico

poderá compreender os termos normativos de maneira diversa e assim, concluir que referido

servidor incorreu em excesso de exação ou mesmo fugiu de suas obrigações vinculadas.

Justamente por isso, o que se quer aqui enfatizar é que o repúdio à hermenêutica descritiva e

positivista não é uma questão de melhor escolha, mas a verificação de algo ilusório!

Mas se a tradição subjetiva do intérprete influencia sobremaneira o resultado de sua

atividade interpretativa, não se está a afirmar a mercê às opiniões individuais e ideológicas

dos julgadores.

De fato, não há mais que se falar em métodos jurídicos previamente determinados

capazes de garantir a certeza científica de outrora. Nossa condição humana sempre nos

colocará de maneira diversa perante o objeto, o que consequentemente, comprometerá a

neutralidade interpretativa buscada pelo positivismo. Entretanto, o horizonte hermenêutico

gadameriano, muito embora seja um ponto de partida, não se mostra uma determinação da

chegada ao conteúdo proveniente da experiência hermenêutica.

Caso assim o fosse, um magistrado com intensa experiência junto à atividade

partidária socialista anterior à sua atividade pública, sempre decidiria de forma a desestruturar

as grandes corporações empresariais, pois sua tradição subjetiva iria impulsionar a construção

de um conteúdo normativo impregnado de seus ideais, vislumbrando unicamente a

observância cega à capacidade contributiva.

Isso sim seria a dilapidação da estrutura jurisdicional e a adoção de um relativismo

capaz de desestabilizar por completo uma sociedade democrática.

Daí o questionamento que o leitor pode dirigir acerca da validade do conteúdo

atingido pelo sujeito165. Como identificar os preconceitos que nos auxiliam a ter acesso ao

objeto interpretado, e aqueles que tentam determinar de forma autoritária as decisões nos

processos judiciais?

Afinal, pode-se argumentar, sem receios, que há tradições que foram impostas e

mantidas, não por representarem a forma de vida dos sujeitos, mas sim em razão da força e

coação em um intuito de manutenção de status quo. Basta pensar na posição que as mulheres,

165 A questão da verificação da correção ou validade dos enunciados foi despertada, em realidade, por Apel: “Sem dúvida, Heidegger e seus seguidores prestaram uma contribuição inegável ao problema da constituição do sentido, mas se equivocaram com respeito ao problema da verdade e da validade. Portanto, se queremos uma hermenêutica crítica, que incorpore a pergunta pela validade e verdade, não podemos seguir exclusivamente o caminho heideggeriano e gadameriano...” (APEL apud CRUZ, 2007, p. 86).

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por anos, ocuparam dentro da hierarquizada estrutura social brasileira. Há nesse caso, não

uma mera condição de possibilidade, mas sim uma imposição ideológica coercitiva.

Habermas, filósofo que reconhece com louvor o salto proporcionado por Gadamer,

não deixa de apontar esta espinhosa questão (WARNKE, 1987, p. 108 e ss.). As tradições

hermenêuticas não podem servir como uma restrição interpretativa, mas sim possibilitar uma

eventual emancipação do horizonte histórico original. Sobre a tradição histórica da Escola de

Frankfurt, Habermas tem a forte preocupação com a possibilidade de deturpação dos

discursos em virtude da colonização do agir comunicativo em razão do poder burocrático ou

financeiro.

Realizando uma auto-reflexão acerca dos princípios ideológicos, devemos ser capazes

de identificá-los, e trabalharmos nossa interpretação de forma a, sem abrir mão de nossa

tradição, realizarmos um autoquestionamento, e tentar superar os vícios que a mesma pode

acarretar. Com isso, podemos ser capazes de, ao final, construir um conteúdo até mesmo

contrário às nossas pré-compreensões originais, pois procedemos uma apropriação crítica de

nossas tradições hermenêuticas (HABERMAS, 2003, p. 201 e ss.). No exemplo do

magistrado supra, estamos a propor a conscientização da presença de sua carga ideológica,

para impedir que a mesma tome os rumos do julgamento final e silencie os demais

argumentos e vozes presentes na construção do conteúdo normativo.

Gadamer, em resposta ao questionamento, persistiu nos ensinamentos de sua obra.

Não com a pretensão de negar as linhas gerais dos argumentos habermasianos, mas afirmando

que, desde o início, sua teoria se preocupara com a distinção entre preconceitos maliciosos e

produtivos no âmbito cognoscitivo. A leitura habermasiana teria sido, em sua opinião,

extremamente reducionista, compreendendo o círculo hermenêutico apenas quanto as

tradições explícitas, mas ignorando que, também o oculto fora considerado:

A partir de sua perspectiva, Habermas ilegitimamente restringe o alcance da hermenêutica, compreendendo como verdade “expressada”, afirmações que agentes fazem explicitamente ou valores que eles sustentam. Hermenêutica, porém lida com preconceitos e limites não meramente articulados em posições individuais ou sociais, mas com suposições e expectativas que essas posições incluem. Por exemplo, os interesses da hermenêutica se estendem além da apreciação de conteúdos explícitos dessas afirmações – que mulheres são mais apropriadas para tarefas domésticas – e assim por diante – para o complexo de visões implícitas sobre a distribuição apropriada de poder que as assertivas circundam (tradução nossa) 166 (WARNKE, 1987, p.113).

166 No original: “From his perspective, Habermas illegitimately restricts the range of hermeneutic understanding to ‘expressed’ truth, to claims agents explicitly make or values they uphold. Hermeneutics, however, deals with prejudices and hence not simply with the positions an individual or society can articulate but with the assumptions and expectations those positions include. For example, hermeneutic interests extends beyond an

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Dessa forma, segundo afirma Gadamer, a identificação e distinção dos interesses

espúrios se dariam no próprio procedimento de compreensão permeado pela linguagem. A

partir do instante em que se inicia o contato junto ao ente, o sujeito, pela antecipação do

todo167, persistirá, ininterruptamente, avaliando suas pré-compreensões a fim de verificar a

legitimidade das mesmas perante a construção de um conteúdo final.

Em busca à obra gadameriana, é possível, de fato, encontrar passagens em que o autor

defende um necessário refinamento das pretensões determinantes das tradições prévias:

Toda interpretação correta tem que proteger-se da arbitrariedade de intuições repentinas e da estreiteza dos hábitos de pensar imperceptíveis, e voltar seu olhar para ‘as coisas elas mesmas’ [...] enquanto tais, os preconceitos e opiniões prévias que ocupam a consciência do intérprete não se encontram à sua livre disposição. O intérprete não está em condições de distinguir por si mesmo e de antemão os preconceitos produtivos, que tornam possível a compreensão, daqueles outros que a obstaculizam e que levam a mal-entendidos. Essa distinção deve acontecer, antes, na própria compreensão, e é por isso que a hermenêutica precisa perguntar pelo modo como isso se dá, o que implica elevar ao primeiro plano aquilo que na hermenêutica tradicional ficava à margem: a distância temporal e seu significado para a compreensão. (GADAMER, 1997, p.355; 391)

Há autores, porém, que não se dão por satisfeitos com a argumentação de Gadamer,

afirmando que o mesmo peca por não perceber que apenas a força argumentativa propiciada

por procedimentos seria capaz de permitir a depuração das fundamentações apresentadas, e,

com isso, possibilitar a verificação de legitimidade e validade das interpretações realizadas

pelos sujeitos (CRUZ, 2007. p. 89 e ss.).

appreciation of the explicit content of those claims – that women are best-suited to domestic tasks – and so on – to the complex of implicit views about the appropriate distribution of power and so on that the claims encompass” 167 “... para fugir da afirmação de que sua teoria daria azo a uma submissão cega à força da autoridade e da tradição, que não seria capaz de distinguir preconceitos legítimos e preconceitos ilegítimos, nem seria competente para ultrapassar condições de comunicação ideologicamente perturbadas, passa igualmente a ressaltar as propriedades críticas presentes na própria Hermenêutica, as quais podem ser representadas pelas idéias de antecipação do todo, distância temporal, diálogo, situação de aplicação e retórica [...] a antecipação do todo, ínsita ao processo de compreensão, exerceria para o autor uma tarefa constante de pôr à prova as pré-compreensões do intérprete [...] outro ponto importante para a correção dos preconceitos seria a distância temporal [...] Há uma verdadeira ação positiva no distanciar-se do tempo, eis que o momento futuro, pelo choque com o aprendizado capitaneado pelo passado histórico, está apto a iluminar os juízos verdadeiros [...] Essa assertiva só cobra sentido na estrutura do diálogo e da relação entre pergunta e resposta, também já mencionados, mas que, nesse contexto, passam a assumir nitidamente sua função crítica [...] outro aspecto importante para reduzir a possibilidade de mal-entendido é a conseqüência advinda da mencionada inserção da aplicação na mecânica interna da compreensão. Ora, para GADAMER, a compreensão não ocorre em abstrato, sem suspensão, mas se refere, sempre, à situação hermenêutica de um sujeito [...] GADAMER também fez menção expressa a um domínio explícito em que a Hermenêutica se encontra com a Retórica: a de que não há conclusões que se imponham por si mesmas, mas que são pontos de chegada atingidos pelo diálogo esclarecedor.” (PEREIRA, 2001, p. 63-67)

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De todo modo, o debate quanto ao mérito da percepção originária acerca do tema não

é o cerne desta pesquisa. O que importa destacar é a concordância de ambos pensadores, ao

final, na inexorável presença das pré-compreensões no âmbito interpretativo, bem como a

necessidade da constante auto-reflexão acerca da validade na condução da construção do

conhecimento interpretado.

O giro hermenêutico auxilia, assim, a encerrar de vez os pressupostos positivistas e

descritivos de aplicação do texto. Ao ter contato com uma norma legal, não há como

apreender seu conteúdo jurídico em toda sua plenitude, ou mesmo, a totalidade da mensagem

que pretende, o legislador, ou a lei, transmitir. Apenas se logra acesso à norma “para o

intérprete”, marcada pelo horizonte hermenêutico que, em conjunto com o texto, construirá

um conteúdo interpretativo.

Por isso mesmo, a impossibilidade da certeza cartesiana na apropriação dos textos

normativos, ou mesmo de qualquer outro objeto. Sempre estaremos permeados por nossa

situação histórica, aliás, dela necessitamos para termos acesso justamente aos objetos os quais

queremos aproximação.

Se Descartes popularizou a certeza de um método prévio como forma de garantir a

pureza do conhecimento e a certeza dos resultados, Gadamer vem desconstruir suas

pretensões, e mostrar a impossibilidade de uma certeza cartesiana em qualquer seara. “Trata-

se de uma relação intransponível que o Iluminismo, na sua ingenuidade metódica, não pôde

perceber: como se fosse possível vendarmos os olhos para aquilo que forma nossa herança

cultural, como se nos fosse dado pular a própria sombra”. (PEREIRA, 2001, p. 33).

Paradoxalmente, a própria ânsia positivista de criar uma metodologia capaz de

proporcionar a neutralidade científica e certeza matematizada dos resultados jurídicos já é, por

si só, um reflexo das pré-compreensões que marcavam o horizonte hermenêutico de seus

filósofos. A necessidade de rejeição de autoritarismos anteriores (Igreja e monarquia) na

construção de um conhecimento científico é, em realidade, a presença da tradição histórica na

elaboração de uma teoria neutralizadora das próprias tradições168. Uma verdadeira contradição

performativa!

168 Nesse sentido, Gadamer nos informa que a pré-compreensão do período das Luzes é o “preconceito contra o preconceito” (GADAMER, 1997, p. 360 e ss.).

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7.3 A nova hermenêutica e a interpretação econômica

Após o exposto, comprovou-se ultrapassada a viabilidade pragmática (efetivação dos

direitos fundamentais) e filosófica (falibilidade dos pressupostos positivistas) das teorias

hermenêuticas descritivas do Direito. Diante deste quadro, uma postura que possivelmente

poderia ser adotada por parte do leitor seria a seguinte: ora, uma vez demonstrada toda a

falibilidade da pretensão descritiva e formalista da tipicidade estrita que marca o positivismo

tributário, não resta outra saída senão a filiação à alternativa hermenêutica já apresentada: a

interpretação econômica. Afinal, tal qual a postura adotada no presente trabalho, esta técnica

interpretativa é também combativa do formalismo jurídico que habita o Direito Tributário.

Conforme desenvolvido alguns tópicos atrás, a chamada interpretação econômica,

inicialmente detectada junto ao advento do Estado social alemão, consiste na mudança de

foco interpretativo para fins de exação tributária. Tomando por secundária a forma ou

“roupagem” jurídica que os atos dos particulares assumem, a interpretação com fins

econômicos busca justamente as conseqüências e resultados econômicos advindos dos atos e

negócios jurídicos. E, a partir desta verificação, que deixa para trás a tipicidade estrita

tributária, faz incidir a oneração fiscal em razão dos impactos financeiros percebidos.

Todavia, tornou-se claro que duas severas críticas provenientes dos tributaristas

contemporâneos pretendem fulminar a adoção desta técnica hermenêutica.

Um primeiro ponto seria a verificação do caráter autoritário da interpretação

econômica. Assim, Prates (1992) sugere que a busca pelos aspectos econômicos nas

legislações tributárias corresponderia a um poder atribuído à Administração Pública capaz de

ensejar os abusos estatais verificados outrora. Para constatar tal afirmativa, bastaria observar o

fato de que sua utilização ganhou espaço justamente em regimes autoritários, como o nazismo

alemão e o fascismo italiano (COELHO, 2005, p. 238 e ss.).

Esta é argumentação cuja fragilidade nem de perto chega a estereotipar a interpretação

econômica como instrumento de regimes não democráticos. Ora, não há que se dar um

apanágio arbitrário a uma técnica interpretativa utilizada pelos homens com tal objetivo em

um dado momento da história. Em analogia conveniente pelo nosso objeto de trabalho, é algo

próximo ao que Wittgenstein ensinou com os vocábulos: não há conteúdo ontológico também

nas propostas hermenêuticas. É a pragmática, o homem, senhor de suas condutas que fará uso

dos instrumentos que lhe são postos para alcançar resultados e conteúdos de responsabilidade

de suas ações.

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Caso contrário, poder-se-ia destinar a mesma crítica ao formalismo descritivo que

tanto agrada esses mesmos autores. Afinal, foi com base no normativismo kelseniano que a

Corte Alemã conseguiu justificar muitos dos atos cometidos pelo regime do Führer durante o

III Reich. Ambas são técnicas interpretativas que, em si mesmas, não foram criadas com

intuitos totalitários, muito embora tenham sido utilizadas com esses fins.

Diferentemente do que afirmam alguns autores brasileiros, essas idéias surgidas na primeira década do século XX por si mesmas não constituem indício de totalitarismo, ainda que tenham sido posteriormente apropriadas pelo governo nazista alemão (que aliás se apropriou ou colonizou inúmeros outros institutos e idéias jurídicas preexistentes). (GODOI,2007, p. 258),

Noutro plano, há aqueles que temem um desfacelamento da segurança jurídica

enclausurada na observância estrita e gramatical dos termos utilizados exaustivamente pela

lei. É o velho retorno à tipicidade tributária dos modernos. Nesse sentido é que Machado

afirma que a adoção da prática interpretativa em tese configuraria “negar o Direito, afetando a

segurança que o mesmo empresta às relações humanas na sociedade.” (MACHADO, 2005, p.

124).

Ora, quanto a isso a argumentação prévia já apresentou todas as falhas incontornáveis.

Não mais possível tentar calcar a segurança jurídica em um estabelecimento dos conteúdos

legais por meio de uma descrição exauriente dos termos normativos. Não apenas é

insatisfatório constitucionalmente, como também indispõe de bases hermenêuticas fortes o

bastante. Basta voltar os olhos para os giros lingüístico e hermenêutico também trabalhados

neste capítulo páginas acima.

Pois bem, diante da inconsistência das críticas destinadas à interpretação econômica

proferidas pelos nossos tributaristas, poderíamos então afirmá-la o centro das soluções

interpretativas fiscais? A resposta é igualmente negativa.

A interpretação econômica, muito embora seja titular do mérito de tentar despachar a

unicidade interpretativa calcada em formalismos textuais presente nos textos legais, acaba por

cair no mesmo mal em que a técnica subsuntiva vem a falhar.

Assim como o positivismo antes criticado, a proposta ora em comento visa determinar,

de antemão, um único critério conteudístico de verificação como ordem interpretativa. Ao

declarar a única relevância dos resultados financeiros numericamente emanados dos dados

fáticos, este método de análise determina a resposta da construção interpretativa antes mesmo

de iniciada. Sob esta perspectiva, o resultado hermenêutico da interação sujeito/ente restaria

tão viciado por um sistema de antecipação de conteúdo, quanto a análise cartesiana!

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Mister observar a impossibilidade de se erigir um único dado material para a

verificação da correção hermenêutica, afinal conforme se verá adiante, a legitimidade das

normas jurídicas perpassam por muitas outras searas que não a econômica! Caso contrário,

poderíamos meramente chamar nossos contadores e suas calculadoras, uma vez serem eles os

capazes de afirmar, numericamente, quais os impactos econômicos decorrentes dos fatos

jurídicos. Eles sim, seriam os únicos capacitados para proceder a uma hermenêutica tributária.

Mas este não é o único problema que impede a adoção da interpretação econômica.

Neste ponto da pesquisa, o leitor já é capaz de perceber que o fechamento das diversas

ciências em sistemas herméticos nada mais é que uma remanescência da postura científica

autosuficiente da filosofia da consciência. Com efeito, o isolamento em barreiras analíticas da

ciência apenas corrobora a expectativa de um conhecimento apartado e isolado, em

dissonância à realidade complexa em que desembocam todos esses sistemas. É o que

Luhmann (1990, p. 45) denomina de sistemas “black box”.

Nessa toada, a neutralidade do Direito, distanciado dos demais elementos políticos,

sociais, econômicos, etc., há muito enfrenta argumentações que desafiam, de forma

instransponível, a pureza dos métodos jurídicos.

Conforme leciona Luhman (1990)169, o sistema jurídico se mostra inevitavelmente

aberto cognitivamente aos demais sistemas existentes na sociedade, mantendo também uma

relação recíproca. Considerando que nenhum sistema consegue se firmar isolado de seu

ambiente, o Direito é “irritado” pela esfera econômica (bem como pela política, social, etc.),

recebendo desta as informações, questionamentos e pretensões de soluções aos problemas

econômicos que se ligam ao mundo jurídico. Nesse sentido, não há que se afirmar uma

atividade interpretativa tributária desconsiderando os impactos que as decisões causarão, tanto

no âmbito dos particulares, quanto na macroeconomia quando, p.e., do julgamento da

inconstitucionalidade de um tributo cobrado há vários anos.

169 É importante destacar o fato de que nossas reservas quanto ao pensamento de Kelsen e demais autores não se perde por uma aceitação acrítica do pensamento luhmanniano acerca da teoria dos sistemas. Temos ciência das diferenças de sua visão quando em comparação com a postura habermasiana que, muito embora também aceite a idéia de irritabilidade dos diversos sub-sistemas sociais, admite pontos ausentes à teoria de Luhmann, tal qual a abertura ao mundo da vida. “Entretanto, devemos deixar claro que Habermas rejeita parcialmente a concepção luhmaniana de sistemas, eis que, além de incluir os indivíduos nos mesmos, suporta a idéia de existir uma linguagem comum que subjaz aos pontos limites de diferenciação dos códigos especiais que é já e sempre requerida para se tratar com problemas sociais. Isso, por si só impede a manutenção da visão de sistemas autopoieticamente fechados, eis que se mantém abertos permanentemente para esta linguagem que é fornecida pelo mundo da vida” (CRUZ, 2007, p. 369). Não obstante, pensamos que a verticalização desnecessária em pontos hermenêuticos por demais específicos contribuirá não para o enriquecimento da obra, mas sim para o desinteresse do leitor tributário.

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Todavia, ainda que se perceba de forma clara um diálogo entre os sistemas presentes

na sociedade em razão da abertura cognitiva antedita, tais sistemas mantêm uma clausura, um

fechamento operacional necessário para sua própria caracterização. Isso implica dizer que o

Direito, apesar de receber influências externas, detém uma auto-referenciação quando da

identificação de seus problemas bem como da estruturação de seu funcionamento. Assim, o

próprio sistema do Direito é que determina o que é lícito ou ilícito, em uma postura auto-

reprodutiva e conservando o código deontológico próprio que auxilia na delimitação de sua

identidade170.

A partir do momento em que algum sistema perde sua autopoiese, sua auto-

organização, ele se desnatura, tornando-se então submisso às dominações externas que, a

partir de então, passam a comandar o próprio funcionamento daquele. Uma eventual

intromissão excessiva dentro da esfera interna do sistema o corrompe, restando, assim,

desestruturado e sem a condução de suas operações pelo seu próprio código.

Com esta razão que Luhmann leciona que “sem a diferença em relação ao seu entorno,

nem sequer existiria a auto-referência, pois a diferença é a premissa para a função das

operações auto-referenciais. Neste sentido, a manutenção do limite (boundary maintance)

significa a manutenção do sistema.” (tradução nossa)171 (LUHMANN, 1990, p. 50-51).

E este é o caminho final para a interpretação econômica. Sua prática culmina em uma

determinação do que seja Direito, não em razão da linguagem jurídica que lhe é própria, mas

sim em razão de argumentos unicamente econômicos que passam a prevalecer sobre o código

binário jurídico. É o mesmo equívoco encontrado na utilização da ponderação de valores, que

realiza a intromissão excessiva do arsenal do sistema político sobre o sistema do Direito,

porém agora a subjugação do Direito se dá por meio de dados da economia! Não à toa, Cruz,

em sala de aula, argumenta que

Tanto a abertura que os subsistemas sociais devem ao mundo da vida quanto sua irritação pelo contato com elementos de outros subsistemas não devem conduzir à desnaturação de cada um deles. Assim, o Direito, como um subsistema social, deve simultaneamente, apreender os valores e a ideologia que permeiam o sistema político, mas não pode ceder à lógica utilitarista da técnica da ponderação de

170 Bem da verdade, Luhman, conforme leciona Chamon Junior, compreende que um sistema apenas adquire identidade quando é capaz de se distinguir dos demais: “E enquanto sistemas auto-referenciais esta característica ‘referencial’ deve ser entendida em termos de ‘descrição’, i.e., como uma descrição capaz de ser levada adiante em um dado contexto frente a outras possibilidades. É desta forma que o sistema constrói a si mesmo: se distinguindo dos demais, enfim, descrevendo a si mesmo como algo diferenciado do ambiente” (CHAMON JUNIOR, 2005, p. 83). 171 No original: “Sin la diferencia respecto al entorno ni siquiera existiría la autorreferencia, pues la diferencia es la premisa para la función de las operaciones autorreferenciales. En este sentido, el mantenimiento del limite (boundary maintenance) significa el mantenimiento del sistema”.

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valores como método válido de interpretação de normas jurídicas. Da mesma forma, deve compreender a racionalidade instrumental dos dados e conceitos econômicos, mas não pode se amoldar também ao utilitarismo e discricionariedade da busca de resultados pela chamada interpretação econômica. Tanto em um caso quanto em outro, a conseqüência será a desnaturação do Direito e de sua pretensão emancipatória, eis que cede, ao agir estratégico e ao agir instrumental, inerentes à “ponderação de valores” e à “interpretação econômica”, que passam a prevalecer sobre os mecanismos de estabilização das pretensões sociais.

É por isso que, em companhia de Greco (2004, p. 151 e ss.), afirma-se nem a

interpretação descritiva da filosofia da consciência, nem a interpretação econômica. A

atividade hermenêutica implica em considerar fundamentos de segurança jurídica, impactos

econômicos, capacidade contributiva, efeitos indiretos dos tributos, enfim, o mais amplo

espectro de fundamentos argumentativos. Limitar as possibilidades discursivas e visões

construtivas do debate, elegendo um único elemento material é desestruturar a legitimidade

das normas democráticas.

Ora, mas se desconsiderada também a viabilidade da interpretação econômica como

método eficazmente utilizado para fins da nossa proposta hermenêutica tributária, estaríamos

então abandonados à carência de teorias hermenêuticas capazes de suprir nossa necessidade

interpretativa?

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CAPÍTULO VIII – O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E U M

PROCEDIMENTALISMO SUGERIDO

A análise hermenêutica realizada páginas atrás encontrou seu desfecho combatendo os

pressupostos filosóficos do positivismo. Com a evolução do pensamento epistêmico ao longo

do século XX, foi visto cair por terra a pretensão de uma racionalidade solipsista captar, com

a neutralidade cartesiana, o conteúdo normativo ontológico dos dispositivos legais.

É compreensível a busca por uma certeza matematizada do conhecimento científico, e

também jurídico. Por certo, temos todos a constante tendência de buscar a firmeza de bases

sólidas e científicas para amenizar as incertezas contingenciais da vida humana. Nossa própria

tradição histórica nos lançou a uma empreitada desta natureza.

Não obstante, compreendido, com Wittgenstein e Gadamer, a impossibilidade de se

lograr o engessamento do Direito em leis escritas, ou mesmo, a repetição absolutamente

equânime dos mesmos conteúdos legais ao longo do tempo ou espaço, indiferente ao

intérprete. Com isso, impossível também prever, com a exatidão imaginada pelos pensadores

modernos, as obrigações tributárias determinadas em legislações positivadas e descritivas por

intermédio do Poder Legislativo (tipicidade estrita).

Neste ponto, o leitor tributarista pode estar um tanto confuso. Estaremos então fadados

a uma insegurança jurídica propiciadora dos arbítrios que outrora ocorreram em razão da

ausência de dispositivos democráticos? Estaríamos aqui afirmando a inocuidade dos

instrumentos legislativos no que tange à construção legítima de um Estado regulado pelo

Direito? Obviamente não! Bem poder-se-ia afirmar justamente o contrário. A crítica

habermasiana a que aderimos no início deste trabalho e direcionada à ponderação de valores

de Alexy é, justamente, o reconhecimento do papel que a atividade legislativa detém em um

Estado democraticamente estruturado.

Durante todo o empreendimento pela censura às formas interpretativas da filosofia da

consciência, restou destacado que a segurança jurídica que se tem por inatingível é aquela

ligada à fixação dos conteúdos materiais presentes nas normas legais (exaurimento jurídico

pela tipicidade tributária). Entretanto, caso modificada a forma como pensamos o Direito,

bem como a relação Estado/cidadão, torna-se possível vislumbrar um novo paradigma que

permite tocar, com maior propriedade, a faceta democrática que deve embasar o Estado

contemporâneo. Não se encerrará este trabalho sem o esforço por sua comprovação.

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Este é o ponto em que o debate hermenêutico converge para uma segunda questão

ainda suspensa nesta pesquisa. Sob o auspício de realizar uma análise segmentada,

primeiramente da relação entre a hermenêutica descritiva e os direitos fundamentais, para em

seguida avaliar a viabilidade filosófica daquela, optou-se por postergar o delineamento do

atual Estado Democrático de Direito, momento contemporâneo do constitucionalismo.

Já restou identificado o paradigma liberal, cuja prevalência do indivíduo face o Estado

– resultado de um repúdio ao absolutismo precedente – culminou na dominação e colonização

da sociedade pelo jogo dos economicamente fortalecidos. A inércia estatal, muito embora

tenha se fundamentado na preservação da liberdade individual, contribuiu para o próprio

cerceamento dos princípios liberais em razão da ausência dos pressupostos fáticos necessários

para o gozo dos mesmos.

Noutro ponto, o constitucionalismo social, diante do fracasso de seu antecessor,

primou pela forte presença estatal na vida social e econômica. Foi possível constatar um giro

de 180º em um refluxo das mazelas que o liberalismo propiciara. Dessa forma, o interesse

estatal ganhou nova feição, prevalecendo de forma marcante sobre os interesses privados –

nesse sentido, o pensamento hegeliano é bastante exemplificativo: caberia ao particular

qualquer sacrifício, mesmo de sua vida(!), para a satisfação do interesse público. Partindo

para um papel prestacional, o Estado assume obrigações de efetivação da justiça social, o que

lhe garantiu prioridade em todas as searas, dentre elas o Direito e a Economia.

Mas, também o Estado social não se livrou de riscos de uma desestruturação

democrática. A sobreposição dos valores e interesses estatais em detrimento das escolhas

privadas pode acarretar uma quebra na autonomia individual que, muito embora não deva

retornar ao propósito burguês, não pode ser olvidada sob pena de se desmantelar a própria

atuação democrática da sociedade. Não fosse bastante, mesmo as práticas sociais

assistencialistas, fundadas em um discurso efetivamente convincente, correm um risco de,

contrariamente ao seu objetivo, contribuir para uma retirada de seus beneficiados do debate

democrático. São problemáticas que inabilitam o Estado social de se manter vivo em uma

proposta de democracia.

Também os direitos fundamentais identificados nestes dois paradigmas

constitucionais, em conjunto com a terceira geração/dimensão de direitos consubstanciada nos

direitos difusos reconhecidos, pecam de forma grave. Em todas essas oportunidades, os

direitos fundamentais se mostraram como uma declaração de conteúdo ontológico, como se

descobertos prontos e acabados, cuja materialização de uma nova matéria representasse o

núcleo do Estado Constitucional daquele momento em diante. Ver-se-á, porém, que os

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direitos fundamentais, em um Estado efetivamente democrático, detêm diferente acepção.

Além do mais, a concepção, então vigente, de segmentação no gozo dos direitos reconhecidos

em cada momento de forma distinta cai por terra. Afinal, conforme já ressaltado, a

indivisibilidade dos direitos fundamentais demonstra o quão impossível a fruição apartada de

direitos de uma geração sem a necessária garantia daqueles de geração diversa. Nessa toada,

como exercer direitos políticos sem a garantia de uma igualdade material no acesso à

educação? São todas temáticas que já foram tratadas (Cf. Cap. III).

Mas o que toda essa questão acerca da caracterização do Estado Democrático de

Direito e seus direitos fundamentais tem a ver com o debate hermenêutico que iniciou este

capítulo? Em realidade, tudo! Os moldes em que culminaram a formação e estruturação dos

Estados constitucionais anteriores são tributários, justamente, à forma como até então se

percebia e identificava o conteúdo jurídico e suas formas interpretativas. Assim, pode-se

afirmar, sem receios, que a teoria hermenêutica que envolve um dado momento constitucional

é capaz de influenciar, de forma marcante, tanto a construção dos princípios basilares do

Estado e sua relação com a sociedade, como também a própria visão acerca de seus

respectivos direitos fundamentais.

Em razão disso, para realizar um delineamento do Estado Democrático de Direito,

optamos por enveredar pela análise de uma nova hermenêutica jurídica. E com esse propósito

que aqui são lançadas as idéias de Jürgen Habermas, cujo projeto de uma teoria discursiva do

Direito é capaz de propiciar a construção e interpretação do sistema jurídico em consonância

com os giros lingüístico e hermenêutico que inabilitam o positivismo e a própria filosofia do

sujeito. Conforme se perceberá, o procedimentalismo discursivo culmina em uma revisão de

todos os elementos debatidos nos paradigmas anteriores, desde a relação entre Estado e

sociedade, passando à legitimidade dos conteúdos jurídicos, e chegando a uma nova

determinação do que sejam os direitos fundamentais democráticos. É, sem sobra de dúvida, a

estruturação de um novo “molde” de Estado – agora sim, Democrático de Direito – por meio

de uma proposta hermenêutica procedimentalista.

Um ponto, porém, cumpre ser ressaltado já no princípio desta empreitada. Todas as

argumentações que serão desenvolvidas no presente tópico podem ser transmutadas às mais

diversas disciplinas do Direito, não sendo exclusividade do sistema fiscal a necessária

adequação ao novo constitucionalismo procedimentalista. Se por um lado foi constatada, nos

paradigmas anteriores, a luta para a declaração de independência e autonomia dos diversos

ramos jurídicos – cujo ápice pode ser verificado na exaltação da codificação – a hermenêutica

do Estado Democrático de Direito caminha por outra trilha.

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Não há que se falar em formas interpretativas exclusivas desta ou aquela área do

Direito, como se cada qual fosse marcada por peculiaridades próprias decorrentes dos bens

jurídicos que visa proteger. Mesmo porque não há, nem mesmo, a possibilidade de se

argumentar uma autonomia científica tal qual pretendido anteriormente. O sistema jurídico se

despede de sua ilustração como vasos estanques, e se reestrutura na forma de um grande bloco

dialógico entre suas disciplinas.

Este é argumento que reforça ainda mais o combate à manutenção da hermenêutica

clássica junto ao Direito Tributário. Assim, não há que se falar em um debate fiscal apartado

do Direito Constitucional, sob o fundamento dogmático de que o primeiro trata, com

exclusividade, de bens jurídicos imprescindíveis ao indivíduo. Objetivar o Direito Tributário

por meio de um raciocínio de tipicidade estrita em razão de sua “proteção à propriedade” é

ignorar o fato de que todos os ramos do Direito protegem a propriedade, liberdade, relações

entre particulares, etc – basta a lembrança da desapropriação no Direito Administrativo, ou

mesmo os direitos reais no Direito Civil. Por isso mesmo, visões inquestionáveis relativas a

cada disciplina jurídica perdem por completo qualquer sustentabilidade ante a complexidade e

amplitude dentro de um Estado Democrático. Por esta razão, as conclusões alcançadas no

debate que se segue não devem ser restringir a qualquer disciplina jurídica, mas sim, serem

compreendidas no bojo de todo o sistema jurídico. Que siga, então, o estudo do

constitucionalismo Democrático de Direito.

Habermas, cuja extensa pesquisa se corporifica em um sem número de obras,

acompanhou pessoalmente o desenvolvimento e derrocada do III Reich alemão, período em

que o formalismo jurídico e a reta razão acatados por Kelsen foram utilizados como forma de

legitimar, juridicamente, decisões de uma guerra marcada por campos de concentração,

genocídio e outras barbáries.

Diante disso, o autor percebeu que o desenvolvimento isolado de uma racionalidade

técnica autônoma, e a conseqüente validação do Direito esgotada na formalização pontuada,

não alcançava qualquer projeto de justiça, pois firmada unicamente no tecnicismo jurídico

desconectado das considerações morais e ético-políticas172. Habermas deixa claro que não se

172 “De outro lado, é possível afirmar que Habermas identificava o neopositivismo como manifestação da chamada razão instrumental que tanto atormentara os frankfurtianos. Uma razão que teria desumanizado a ciência por meio da imposição de um saber único, baseada no método matemático de descrição da natureza como algo dotado de causalidade, fundada na repetibilidade dos eventos naturais, mecânico, que esperava apenas a intervenção do intelecto humano para ser descrito por meio de leis universais e imutáveis. Para esse raciocínio, o conhecimento técnico estaria, de um lado, imunizando-se de qualquer controle democrático e, de outro lado, transformando as decisões de fundo ético, pragmático e moral, em questões subordinadas/dependentes apenas do conhecimento de especialistas. O primeiro problema de identifica com a época da teoria. A questão da tecnologia

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pode eclipsar de forma absoluta as pretensões de construção de um Direito correto apenas

tendo por base a estabilização de expectativas. A segurança jurídica, não obstante seja um

princípio que permeia o cenário democrático – momento algum se pode olvidar –, trata-se de

apenas mais um elemento que compõe tal sistema.

Para preencher a função socialmente integradora da ordem jurídica e da pretensão de legitimidade do direito, os juízos emitidos têm que satisfazer simultaneamente às condições da aceitabilidade racional e da decisão consistente [...] o problema da racionalidade da jurisprudência consiste, pois, em saber como a aplicação de um direito contingente pode ser feita internamente e fundamentada racionalmente no plano externo, a fim de garantir simultaneamente a segurança jurídica e a correção. (HABERMAS, 2003, p. 246-247)

Ciente deste desafio, e consciente da insuficiência do solipsismo moderno ante as

complexidades e incertezas que obstaculizam determinações conclusivas anteriores a fatos

concretos, Habermas (2003, p. 19 e ss.) abandona a filosofia do sujeito – cuja razão prática

determinava condutas materiais a serem obedecidas – sem, porém, se despedir da

racionalidade, agora, de feição comunicativa e situada dentro do medium lingüístico. Por meio

da discursividade, da abertura à visão e contribuição alheia, todos os sujeitos de fala buscam

um entendimento não impositivo, um acordo racional intersubjetivo consubstanciado em

normas jurídicas aptas a reger os diversos projetos de vida que se submetem ao direito173. Eis

o grande salto dado pela adoção deste novo modelo de racionalidade: a negativa da

perspectiva kantiana de um sujeito singular auto-suficiente e onisciente alcançar acesso ao

conhecimento determinado e anterior ao intérprete, para uma racionalidade construtiva e

intersubjetiva em que o debate entre os atores livres é o substrato de formação dos

conteúdos jurídicos.

Não se trata mais da identificação de conteúdos prévios ditados por sujeitos

individuais (paradigma liberal), ou mesmo um macro sujeito superdimensionado (paradigma

nuclear ter sido desenvolvida sem qualquer acesso crítico da sociedade, fechada em gabinetes de cientistas militares, teria alterado significativamente a importância da razão instrumental, eis que a sobrevivência da raça humana estaria em jogo: um poder técnico insensibilizado pela racionalidade das formas de vida ético-culturais de uma dada sociedade, moldada por interesses objetivos irrefletidos e não devidamente depurados pelos valores democráticos, poderia agora, apagar da face da terra (sic) a humanidade” (CRUZ, 2006, p. 63-64) (grifos nossos). 173 Cruz deixa claro que Habermas não abandona completamente a razão prática, apenas deixa de considera-la auto-suficiente na busca de uma racionalidade. “Neste sentido, não há que se falar em uma substituição da razão prática pela razão comunicativa, eis que, para Habermas, a razão comunicativa não se coloca na antiga função clássica da razão prática, isso é, como fonte de produção de normas sociais, mas apenas como condição de possibilidade e validade para pretensões de validade em torno de tais normas. E, por outro lado, a razão prática não desaparece. No entanto, suas pretensões ficam muito mais modestas, vez que não opera mais como suporte direto para a legitimação do Direito e para a Moral, mas tão-somente como fio condutor para a construção e reconstrução dos discursos de racionalização e legitimação do poder” (CRUZ, 2007, p. 157-158).

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social), ambos momentos constitucionais em que a autonomia dos particulares se curvou

frente às condições fáticas (liberal), ou o sufocamento por uma vontade supra-individual

(social). Com a atuação cidadã simultânea na destinação e formação da vontade política,

Habermas revê a segmentação das autonomias pública/privada e reorganiza a idéia de

autolegislação com a participação efetiva dos indivíduos na construção do conteúdo

normativo sem o encapsulamento do saber jurídico, que antes possibilitava uma dominação

política silenciosa.

Com o reconhecimento de uma eqüiprimordialidade entre as esferas pública e

privada, são esquecidas todas as velhas idéias antes ventiladas de submissão de um ator social

em benefício de outro. Conseqüentemente, também a oposição entre Estado e sociedade sofre

uma determinante desconstrução. E com isso, teorias como a elisão tributária fundamentada

na prevalência absoluta da autonomia da vontade individual em detrimento dos interesses do

Estado, ou ainda a concepção administrativista de mera submissão dos interesses dos

indivíduos aos interesses públicos, deixam de merecer crédito. Afinal, particular e Estado,

agora de mãos dadas, detêm não apenas a mesma importância, mas também (por que não

dizer?) os mesmos anseios174! Afinal a construção da vontade estatal passa pela atuação

participativa dos particulares envoltos em suas vontades, fazendo com que o diálogo entre

Estado e sociedade se torne intenso.

Quer-se tributar em busca de uma melhora social (p.e. CPMF175)? Pois bem

coloquemos as razões desta tributação em debate e vejamos se os objetivos lançados serão

atingidos por meio do instrumento proposto. Caso positivo, uma vez percebida a concordância

na argumentação desenvolvida em prol desta escolha política, também os particulares tomam

parte da decisão de uma tributação com vistas a uma otimização na prestação de serviços

públicos na área da saúde. A partir daí, não apenas o interesse público se volta à efetivação

desta tributação e sua correta aplicação no destino determinado (caso se trate de tributo

vinculado, obviamente), mas também os particulares, que debateram e elegeram esta, a

melhor escolha para a construção de um Estado Democrático por todos e para todos.

Obviamente, é possível que o Estado prefira manter à parte a participação popular na

formulação do Direito aplicada à comunidade. Por vezes, o debate acerca da tributação 174 É importante anotar que momento algum se pretende afirmar qualquer pretensão fantasiosa de que Fisco e contribuinte sempre estarão com uma visão romantizada em busca de um entendimento comum a todo o momento. É ingênua a pressuposição de que Habermas, ou mesmo nós, não tenha ciência de que, muitas das vezes, Estado e particular irão atuar de forma a buscar seus próprios interesses por meio do agir estratégico. Não obstante, a busca por um entendimento comum se mostra pressupostos para a própria integração social! Acerca das nuances e problemáticas envolvendo o agir comunicativo e agir estratégico, ver-se-á mais adiante. 175 Aqui se faz referência ao debate ocorrido ao longo do ano de 2007 acerca da prorrogação da contribuição incidente sobre movimentação financeira, que, ao final, não ocorreu.

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seguirá, inversamente ao imaginado, o agir estratégico e ignorará por completo o debate

argumentativo que ora se faz alusão. É, sem dúvida, um constante risco. Mas, deve-se sempre

ter por certo que, com a construção jurídica determinada verticalmente (de cima para baixo)

viria, em conjunto, o risco de uma perda de legitimidade e de comprometimento da população

com as normas elaboradas sem sua atuação discursiva.

Enfim, aqui se fala de uma democracia genuína, em que os participantes e afetados

pelo Direito detêm a possibilidade de participar do debate acerca das normas que lhes irão

incidir.

Uma ordem jurídica é legítima na medida em que assegura a autonomia privada e a autonomia cidadã de seus membros, pois ambas são co-originárias; ao mesmo tempo, porém, ela deve sua legitimidade a formas de comunicação nas quais essa autonomia pode manifestar-se e comprovar-se. A chave da visão procedimental do direito consiste nisso. Uma vez que a garantia da autonomia privada através do direito formal se revelou insuficiente e dado que a regulação social através do direito, ao invés de reconstituir a autonomia privada, se transformou numa ameaça para ela, só resta como saída tematizar o nexo existente entre formas de comunicação que, ao emergirem, garantem a autonomia pública e a privada (HABERMAS, 2003b, p. 147)

Nessa trilha, o sistema jurídico deixa de determinar de antemão quais aspectos

materiais deverão ser marcados como fundamentais, para instituir mecanismos e

procedimentos de participação comunicativa e inclusiva na elaboração do Direito.

Apoiado nos ensinamentos de Freud e Kohlberg, Habermas identifica a sociedade

atual como dotada de uma moralidade pós-convencional176. Noutros termos, uma sociedade

que, mesmo possuidora de valores próprios, detém a capacidade de visualizar, avaliar e

questionar as regras, posicionamentos e tradições vigentes para a construção de um conteúdo

condizente com as fundamentações a serem apresentadas e aceitas pelos interlocutores.

Assim, é possível que os próprios cidadãos participativos colaborem no debate e

construção de um conteúdo normativo atento e relacionado (mas não submisso – basta

lembrar o embate Gadamer vs. Habermas) aos valores, tradições, percepções e visões da

176 “Na etapa pré-convencional da sociedade, a comunidade ainda não possui valores próprios, vez que as tradições/costumes ainda não se consolidaram [...] a fase convencional corresponde ao momento em que os valores éticos, religiosos, sociais políticos e econômicos já estão estabelecidos, firmando um status quo social [...] na etapa pós-convencional, os indivíduos, mesmo detentores de uma herança cultural, conseguem identificar os valores que formam sua identidade e passam a ter juízos de valor crítico sobre os mesmos, por meio do reconhecimento de direitos individuais e de princípios universais. Numa metáfora, poder-se-ia dizer que na moralidade pré-convencional o indivíduo está aprendendo as regras do jogo. Na etapa convencional, ele está apto a joga-lo. Finalmente, na fase pós-convencional ele se torna capaz de criticar tais regras” (CRUZ, 2006, p. 135-136).

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sociedade. É banida a estrutura puramente coercitiva e impositiva que Weber177 identificava

no Direito, sem qualquer preocupação com a legitimidade de conteúdo, em benefício de um

sistema jurídico cuja base de validade está ligada à abertura a

diferentes posições metódicas (participante versus observador), a diferentes finalidade teóricas (explicação hermenêutica do sentido e análise conceitual versus descrição e explicação empírica), a diferentes perspectivas de papéis (o do juiz, do político, do legislador, do cliente e do cidadão) e a variados enfoques pragmáticos da pesquisa (hermenêuticos, críticos, analíticos, etc.) (HABERMAS, 2003, p. 23).

Segundo seu pensamento, uma ética discursiva/comunicacional, não apenas passaria a

situar a racionalidade no tempo/espaço, como daria abertura aos demais elementos externos à

reta-razão, sempre na esteira de uma postura cognoscitiva plurilateral. Daí o consenso

habermasiano em busca de um entendimento capaz de realizar a integração social

(MOREIRA, 2002, p. 111 e ss).

Uma vez pautado no mérito do melhor argumento, bem como na sinceridade178 de os

participantes se abrirem a fundamentações alheias pela sua força argumentativa, deságüa-se

em um consenso na perspectiva de uma não coercitividade na aceitação de posicionamentos

instituídos, e na construção jurídica de um entendimento intersubjetivo com bases na

fundamentação vencedora. Observe que aqui não se trata de uma abdicação de todo o caráter

sancionatório ou coativo do sistema do Direito. Após elaborado o conteúdo legítimo de uma

norma legal, esta se reveste de todo o aparato institucional que lhe é próprio, restando ao

indivíduo a obediência aos seus preceitos sob pena de sanções estabelecidas.

Todavia, em razão das diferenças de interesses, que não abandonam seus

interlocutores no debate argumentativo, por vezes, não será atingido pelos participantes um

consenso propriamente dito179. Nessa trilha, é factível imaginar que, em busca de uma solução

para o fim da “guerra fiscal”, os Estados não cheguem a uma decisão unânime acerca da

177 “Segundo Weber, o Estado de direito obtém sua legitimação, em última instância, não da forma democrática da formação política da vontade, mas somente de premissas do exercício da dominação política conforme ao direito – a saber, da estrutura abstrata das regras e leis, da autonomia da jurisdição, bem como da vinculação jurídica e da construção ‘racional’ da administração” (HABERMAS, 2003, p. 102). 178 Mais uma vez, é importante evitar um eventual equívoco em pensar Habermas como uma fantasia desprendida da realidade. A sinceridade habermasiana não significa uma pressuposição de que todos os envolvidos sempre estarão comprometidos a dizer unicamente a verdade em prol de um agir comunicativo. Desde já vale lembrar, o agir estratégico é não apenas lembrado, mas espera-se que ele esteja presente! A sinceridade que ora se faz alusão significa um comprometimento dos participantes em possibilitar argumentações alheias e estarem abertos às mesmas. Pressuposto este que, uma vez ausente, impossibilita qualquer forma de comunicação! Sobre o tema, ver-se-á mais adiante. 179 Diante dessas verificações é que se pode constatar que eventual crítica de que os habermasianos “fantasiam” uma realidade inexistente de modo algum procede! Ver-se-á que o pensamento de Habermas, não se embasa ou mesmo conclui uma sociedade metafísica onde todos os envolvidos participem rousseauneanamente em prol unicamente de um justo debate democrático, mas sim em atenção às contingências reais do mundo que nos cerca.

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tributação inter-estadual. Afinal, nenhum deles admite perder receitas ou mecanismos de

incentivo a empresas e indústrias de suas regiões. Nesses casos, o princípio majoritário de

decisões se apresenta como um instrumento que não foge à tentativa de integração social. Não

obstante, ele deve vir acompanhado de dois outros elementos para não desnaturar a

democraticidade que busca Habermas: a “temporariedade”, consistente na possibilidade,

sempre presente, de serem revistas, pelos participantes, as decisões provisórias acerca do

tema; e “reciprocidade”, que implica a aceitação de que, os atuais vencedores devem se

também se submeter às mesmas regras, caso aja uma modificação do Direito determinado por

uma eventual reavaliação dos conteúdos precariamente firmados.

Não obstante, possibilitar um referido acordo racional necessita de certas “condições

ideais de fala” que devem estar presentes em qualquer âmbito discursivo para que este seja

permeado pela racionalidade, e não pela mera colonização do poder comunicativo sob o

manto do poder administrativo, hierárquico e financeiro.

O discurso pressupõe uma ‘situação ideal de fala’ que, sinteticamente, exige como pré-requisitos contrafactuais imanentes à própria linguagem: a simetria de posições e a igualdade na oportunidade de fala; a idéia subjacente de ego e alter ego (como pressuposto da diferença e do pluralismo); o médium lingüístico [supondo uma dimensão sintática (gramaticalmente adequada à compreensão), uma dimensão semântica (o entendimento das expressões) e uma dimensão pragmática[...]; ilimitação de tempo para se obter o acordo; e a sinceridade, ou seja, a crença naquilo que se fala e o intuito de levar o outro a uma decisão racionalmente motivada e a ausência de coação interna ou externa na execução do discurso. (CRUZ, 2006, p. 88)

Com isso, Habermas centra seu foco de pesquisa na garantia dessas condições

procedimentais que possibilitam um debate racional voltado para a busca de uma

regulamentação jurídica ampla e democrática. O direito escapa à mera obediência a um

procedimento formal, para buscar a aceitação dos cidadãos/destinatários da norma. O próprio

conceito de legitimidade jurídica cunhado pelo autor passa a abraçar tal abertura discursiva

em prol dos fundamentos de validade do Direito, ou seja, a aceitação não imposta dos

argumentos validativos do mesmo, sempre dispostos a uma reavaliação diante de novas

idéias, posições ou fundamentações. É de se perceber que sua legitimidade foge da

observância de conteúdos determinados aprioristicamente para se voltar à garantia de

procedimentos possibilitadores da participação discursiva dos afetados pela norma.

Trazendo todo este aparato teórico à proposta de construção democrática do direito,

Habermas consegue importar o “princípio do discurso”, que estabelece a validade normativa

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pelo assentimento dos participantes, ao processo deliberativo-político, e assim, elaborar um

“princípio da democracia”180.

Em poucos termos, suas idéias podem ser esboçadas na máxima de que não é mais a

forma que legitima o direito, mas sim as razões de seu conteúdo anuídas pelos

envolvidos em um procedimento discursivo: “O direito não consegue seu sentido normativo

pleno per se através de sua forma, ou através de um conteúdo moral dado a priori, mas

através de um procedimento que instaura o direito, gerando legitimidade.” (HABERMAS,

2003, p. 172.).

Em sua acepção, a formação dos conteúdos normativos passa pela garantia de

instrumentos procedimentais que permitem a participação irrestrita e não-coercitiva de todos

os cidadãos no debate político. Neste procedimento deliberativo, a causa final que irá

legitimar o conteúdo das normas será o consentimento voluntário decorrente da força

argumentativa das fundamentações apresentadas pelos participantes na busca do

entendimento.

A partir daí, a norma legal, fruto deste procedimento, não estará gravada com a

imposição desmotivada de outrora, mas sim de uma carga democrática que lhe dará

legitimidade para condicionar os comportamentos sociais. Mais uma vez se ressalta como a

crítica ao positivismo não significa um repúdio à legislação!

Mas em que sentido a legitimidade surge da legalidade? À medida que a legalidade é, ao mesmo tempo, criação e reflexo da produção discursiva da opinião e da vontade dos membros de uma dada comunidade jurídica [...] Com o processo legislativo cercado por cuidados e prescrições em seus procedimentos, temos um fundamento legítimo que aponta para uma base de validade do Direito estatuído. Isto porque com a positivação do direito não temos a emanação de um poder arbitrário ou autoritário, ao invés, trata-se da manifestação de uma vontade legítima portadora de um poder que, em última instancia, emana do povo (MOREIRA, 2002, p. 161; 125).

Habermas constata que as teorias antes utilizadas para fundamentar o Direito se

desvirtuavam justamente de sua base de legitimidade por pecar de um mesmo mal: elas

180 “A idéia da autolegislação de cidadãos não pode, pois, ser deduzida da autolegislação moral de pessoas singulares. A autonomia tem que ser entendida de modo mais geral e neutro. Por isso introduzi um princípio do discurso, que é indiferente em relação à moral e ao direito. Esse princípio deve assumir – pela via da institucionalização jurídica – a figura de um princípio da democracia, o qual passa a conferir força legitimadora ao processo de normatização. A idéia básica é a seguinte: o princípio da democracia resulta da interligação que existe entre o princípio do discurso e a forma jurídica.” (HABERMAS, 2003, p. 158). Neste ponto, Habermas aproveita para demonstrar sua desvinculação com o discurso kantiano de vinculação do Direito à moral. Para ele, o debate jurídico é deontologicamente neutro, ou seja, não está determinado pelos conteúdos morais anteriores ao sistema jurídico, podendo assumir quaisquer formas, desde que embasadas pela fundamentação argumentativa das razões de validade da norma.

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retiravam da esfera do debate público o questionamento dos pressupostos de validade

normativa.

E de fato, o assim o era. O jusnaturalismo e jusracionalismo embasavam a fonte do

direito vigente em uma norma suprapositivada transcendental que, por ser anterior à

existência humana e intrínseca à sua natureza, não permitia avaliações de conteúdo. Isso se

torna claro nos pensadores contratualistas, que percebiam a força jurídica no pacto fundador

do Estado, portanto, externo e impermeável ao exercício da política (HABERMAS, 2003, p.

123 e ss.).

Da mesma forma, o positivismo, que pautava a expectativa de estabilização de

comportamentos por meio de um procedimento legislativo que, após concluído, tinha seu

conteúdo normativo sacralizado. Obstava, assim, o resgate de suas fundamentações, a não ser

por meio de outro instrumento legislativo formal181. Ou ainda, o viés schmittiano, que lançava

como dogmas as escolhas e decisões políticas do Füher corporificadas em instrumentos

normativos expedidos pelo Executivo.

Ora, se em busca da democraticidade esboçada na efetiva participação por meio do

poder comunicacional, e diante da transposição da legitimidade do Direito a uma

possibilidade de constante verificação dos fundamentos de validade das normas, Habermas

tenta justamente evitar o cerceamento discursivo antes presente nas teorias jurídicas modernas

e pré-modernas. Isso porque, seguindo suas premissas, tais restrições desmotivadas – seja em

termos de banimento de conteúdos, seja limitando os instrumentos procedimentais – são

capazes de desvirtuar o caráter democrático do Direito respectivo, e até mesmo o próprio

Estado Democrático de Direito. E tal não é de se estranhar, afinal, uma democracia de bases

sólidas pressupõe, justamente, a superação das visões não participativas que antes habitavam

o seio jurídico, e cujo conteúdo definido por uma minoria dominante apenas eram acessados

pela sociedade quando de sua aplicação.

Por isso mesmo, em despedida à neutralidade jurídica, ele identifica a presença de

argumentos morais (não-vinculantes, daí seu discurso deontologicamente neutro em

superação a Kant182), ético-políticos (autocompreensão da comunidade de vida compartilhada,

181 “De um lado, a garantia estatal da normatização do direito oferece um equivalente funcional para a estabilização de expectativas através de uma autoridade sagrada. Enquanto as instituições apoiadas em imagens de mundo fixam as convicções que comandam o comportamento através de limitações à comunicação, o direito moderno permite substituir convicções através de sanções, na medida em que libera os motivos que acompanham a obediência a regras, porém, impõe respeito. Em ambos os casos, evita-se uma desestabilização provocada por dissenso fundamentado, na medida em que os destinatários não podem questionar a validade das normas a serem seguidas.” (HABERMAS, 2003, p. 59) (grifos nossos). 182 “Entrementes, exatamente porque se trata de um princípio deontologicamente neutro é que se recusa a subordinação do Direito positivo ao Direito natural e, assim, há uma recusa da relação de complementaridade

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com suas tradições, valores, etc.) e pragmáticos (ponderação e escolha de meios para atingir

fins já estabelecidos)183. A possibilidade de se levantar argumentos de todas essas gêneses

demonstra o salto da liberdade discursiva que encampa sua teoria.

Assim também se sucede com a interação entre os sistemas jurídicos e não-jurídicos.

Tal qual verificado quando da negação da interpretação econômica páginas atrás, a postura

seccionada dos diversos sistemas que compõem o mundo da vida os fazem perder a

sensibilidade para o complexo de problemas que aflige os demais. Dessa forma, os sistemas

fechados se tornam incapazes de resolver os anseios da sociedade emaranhada no ambiente de

todos os sistemas simultaneamente.

Mesmo apresentando algumas nuances diferenciadoras do pensamento luhmaniano184,

Habermas deixa clara a possibilidade de irritação da linguagem jurídica pelo diálogo com os

sistemas político, econômico, social, médico-científico, etc., desde que não haja a

sobreposição já atacada no capítulo anterior.

São questões e fundamentos que, ao longo do processo, serão filtrados e depurados

pelos mecanismos que o direito instrumentaliza.

Tal qual a necessidade de um amplo espaço para a problematização de conteúdos

morais, éticos, pragmáticos, e mesmo oriundos de outras esferas ou sistemas sociais,

entre as esferas da Moral e do Direito como a traçada nas Tanners Lectures [...] ao distanciar-se da normatividade de um mandamento moral, a razão comunicativa vai poder estabelecer-se a partir de um princípio do discurso neutro do ponto de vista de uma validade deontológica, ou seja o princípio do discurso é deontologicamente neutro. Essa neutralidade deontológica vai ser o fio condutor que permitirá a Habermas estabelecer uma Filosofia do Direito distinta da kantiana, visto que a relação entre Direito e Moral se dá de modo co-originário [...] mas em que medida as normas jurídicas e as normas morais não co-originárias? Quando uma não é legisladora para a outra. E isso quer dizer que não se pode buscar o fundamento de uma apelando para a normatividade da outra.” (MOREIRA, 2002, p. 138; 141; 148). 183 De forma resumida, Habermas explica que “em primeiro lugar, as deliberações servem para a ponderação e o discernimento de fins coletivos, bem como para a construção e a escolha de estratégias de ação apropriadas à obtenção desses fins; em segundo lugar, o horizonte de orientações axiológicas, no qual se colocam essas tarefas de escolha e de realização de fins, pode ser introduzido no processo de formação racional da vontade pelo caminho de um auto-entendimento que se apropria de tradições. Em discursos pragmáticos, nós examinamos se as estratégias de ação são adequadas a um fim, pressupondo que nós sabemos o que queremos. Em discursos ético-políticos, nós nos certificamos de uma configuração de valores sob o pressuposto de que nós ainda não sabemos o que queremos realmente.” (HABERMAS,2003, p. 202) 184 “Entretanto, devemos deixar claro que Habermas rejeita parcialmente a concepção luhmaniana de sistemas, eis que, além de incluir os indivíduos nos mesmos, suporta a idéia de existir uma linguagem comum que subjaz aos pontos limites de diferenciação dos códigos especiais que é já e sempre requerida para se tratar com problemas sociais. Isso, por si só impede a manutenção da visão de sistemas autopoieticamente fechados, eis que se mantém abertos permanentemente para esta linguagem que é fornecida pelo mundo da vida. Isso permite, por exemplo, que, de um lado, o Direito possa ainda garantir sua linguagem própria de lidar com as expectativas de comportamento, respondendo a todas com um sim ou com um não e, de outro lado, incorpore aos processos institucionalizados de formação de vontade e opinião de contribuições oriundas dos contextos informais de comunicação encontrados nesse mundo da vida.” (CRUZ, 2007, p.369)

.

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Habermas se concentra também na amplitude procedimental no que tange às oportunidades

de fala dentro dos debates argumentativos.

Nessa trilha, para que se perceba a concretização da faceta democrática, deve haver

um processo de institucionalização desta produção observando dois pontos.

O primeiro é a ampla liberdade comunicativa, em simetria de posições entre os

participantes, não coercitividade, bem como demais condições ideais de fala. Isso significa,

no âmbito da discursividade, a irrestrição argumentativa dos membros na formulação das

normas jurídicas a serem institucionalizadas. Quanto a isso, já tratado.

A segunda questão a ser observada encontra-se ligada à correição procedimental, que

deve dar ares de institucionalização às vontades democraticamente formuladas.

Mister atentar que, uma vez legitimar-se a norma legal em seus fundamentos racional-

argumentativos, a possibilidade de correção de eventuais injustiças presentes naquelas se

mostra inevitável, sob pena de sacralização do Direito, ainda que de origem discursiva.

Ademais, argumentos, aqui considerados como razões resgatadas por meio do discurso,

nunca podem ser cogentes, impositivos, e assim, não indicam um ponto final ao consenso

momentâneo. Caso contrário, Habermas estaria a negar suas próprias bases!

A aceitação da falibilidade das verdades provisórias culmina, justamente, no resgate

argumentativo das fundamentações racionais da norma. Estando a legitimidade do Direito

vinculada a tais razões, as pretensões de validade normativa apenas se sustentam enquanto

seus argumentos forem convincentes, argumentos esses que podem ser questionados a

qualquer momento. Qualquer problematização envolvendo o convencimento que antes

possibilitou a construção do Direito suspende sua aceitação para se (re)verificar em que pé se

encontra o entendimento acerca do mesmo. Dessa forma, Habermas reconhece que a

legitimidade deve carregar consigo a constante possibilidade de revogabilidade, ou de

reconstrução do entendimento acerca da materialidade jurídica presente nas normas

positivadas.

Em exemplificação, poder-se-ia tomar, mais uma vez, a situação da imunidade

tributária em benefício de livros e periódicos prevista no art. 150, VI, “d” da CF/88.

A força deste dispositivo reside, segundo a teoria em comento, no entendimento

intersubjetivamente buscado pelas partes envolvidas e convencidas das razões que

fundamentam o conteúdo constitucional. Em um procedimento jurisdicional em que se esteja

debatendo a imunidade tributária dos livros eletrônicos, tem-se a possibilidade de resgatar as

razões validativas da norma.

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Nesse caso, é plausível imaginar que, após a problematização e o embate discursivo

entre os participantes, haja a percepção de que a disseminação da cultura e educação é um dos

objetivos que a sociedade visa alcançar, além de ser um pressuposto para a participação ampla

e consciente no debate deliberativo. Dessa forma, sendo essas as razões que fundamentam a

própria norma, seu conteúdo também deve abarcar a imunidade dos livros eletrônicos, que

demonstram as mesmas características dos livros impressos quanto às razões ora aludidas. Daí

a reconstrução ou a reformulação do entendimento – e conseqüentemente, da substância

jurídica – acerca do dispositivo constitucional. Reparem como o texto positivado deixa de ser

ponto de chegada, para ser ponto de partida e objeto de debate!

Eis uma possibilidade de construção do conteúdo jurídico condizente, tanto com os

giros lingüístico e hermenêutico, quanto à constante observância da vontade popular,

verdadeira fonte do poder instituído.

8.1 Falácias procedimentalistas?

Em que pese toda a robusta força teórica que as presentes idéias denotam, não se pode

ignorar a não unanimidade das mesmas como uma resposta alternativa à hermenêutica

positivista já tida por caquética.

Nesse sentido, poder-se-ia argumentar, em combate à teoria habermasiana, sua

possibilidade de aplicação apenas em países que já avançaram pelo Estado social, tal qual a

Alemanha, berço do filósofo em destaque. Entretanto, em países em desenvolvimento, com

números de desigualdade tão expressivos como o Brasil, pretensões tais como simetria de

posições, médium lingüístico ou consciência discursiva são elementos formais que não

encontram correspondentes fáticos. Afinal, como afirmar a autonomia comunicacional

daqueles que não detêm as condições mínimas de subsistência? Para esses autores, o Estado

social é uma etapa ainda não vivenciada pelo Brasil, daí a impossibilidade de se trabalhar uma

superação de seus ideais prestacionais. (STRECK, 2004, p.174 e ss.).

Deve-se compreender, porém, que Habermas não trata de condições a serem atingidas

no Brasil, Angola, Dinamarca, Suécia, Alemanha ou qualquer lugar que o seja. Seu estudo

aborda, em realidade, condições necessárias a toda e qualquer comunicação humana, não

importa as peculiaridades do país ou se seus índices de desenvolvimento social.

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Ademais, somente por meio da possibilidade de participação dessas pessoas

aparentemente fora do discurso, será possível revirar o status quo social e democrático para

atingir as melhoras a que seus críticos fazem reverência! Caso contrário, perpetrando o Estado

em uma oferta não planejada de serviços assistenciais, nunca se trará à baila a posição e

vontade dos próprios afetados ou “beneficiados” pelos programas sociais estatais,

permanecendo à margem de uma dominação silenciosa por parte dos detentores de poder

(CRUZ, 2006, p.173 e ss).

Além do mais, o raciocínio que encampa o entendimento de que o Brasil não detém os

índices e elementos sociais necessários para a construção de uma estrutura democrática e

participativa de toda a população deságua em uma solução comunitarista um tanto

problemática e já vista no início desta pesquisa: considerando a prevalência do Legislativo

quando do Estado Liberal, do Executivo quando do Social, no Estado Democrático de Direito,

caberia ao Poder Judiciário fugir das amarras do formalismo jurídico e atuar de forma

presente na sociedade para garantir a justiça social e efetivar os direitos cidadãos!

Neste caminho, já apresentada a teoria da ponderação de valores como uma superação

do positivismo descritivo aqui tanto combatido. Sua robustez teórica, quando em confronto

com a concepção de tipicidade que inunda nossa doutrina é infinitamente superior, não à toa,

Ávila (2006, p.93 e ss.) se mostra fiel seguidor de seus ensinamentos.

Esta corrente hermenêutica, desenvolvida por Alexy, repudiou a utopia positivista e

adotou uma postura principiológica, colocando essas espécies normativas em conjunto com as

regras escritas dentro do ordenamento jurídico.

Juntamente a isso, percebeu a importância do aspecto dialógico no processo de decisão

judicial, e portanto, de construção do Direito. Nessa tarefa, ele identificou certas regras

básicas185 que, juntamente com a racionalidade argumentativa, dariam às pessoas a liberdade

de argumentação para demonstrar suas razões e sua opinião acerca do tema em debate. Esse

185 “A validade do primeiro grupo de regras é uma condição prévia da possibilidade de toda comunicação lingüística que dá origem a qualquer questão sobre a verdade ou a correção: (1.5) Nenhum orador pode se contradizer. (1.6) Todo orador apenas pode afirmar aquilo em que crê. (1.7) Todo orador que aplique um predicado F a um objeto tem de estar preparado para aplicar F a todo

objeto que seja semelhante a ‘a’ em todos os aspectos importantes. (1.8) Diferentes oradores podem não usar a mesma expressão com diferentes significados.” (ALEXY, 2001,

p. 187) Não obstante, Alexy percebia que não bastavam as regras básicas. Necessária ainda a observância da regra de racionalidade, que implicava que ao pronunciar seus posicionamentos, o orador deveria justificar racionalmente para que outros participantes pudessem contestar suas justificativas: “todo orador tem de dar razões para o que afirma quando lhe pedem para fazê-lo, a menos que possa citar razões que justifiquem uma recusa em dar uma justificação. Esta regra pode ser chamada de ‘regra geral de justificação’” (ALEXY, 2001. p.190).

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espaço argumentativo seria, para Alexy, a forma de controlar o subjetivismo potencialmente

arbitrário do julgador.

Entretanto, Alexy se apóia em pontos um tanto criticáveis.

Uma primeira questão a se anotar é a frágil distinção entre princípios e regras em que

o autor insiste em se apoiar. Muito embora o reconhecimento principiológico seja, de fato,

uma superação necessária ao cenário formalista em que se encontravam as nações européias,

trabalhar distintamente princípios e regras, e conservar a essas últimas o mesmo tratamento

cerceador à atividade hermenêutica é “dar um passo” além do fracasso positivista, sem,

porém, “levar consigo o resto do corpo”.

Ora, uma vez identificada a falácia dos pressupostos interpretativos que sugerem uma

“aplicação cerrada” dos textos legais, ou mesmo, um maior conteúdo jurídico “inserido” na

norma jurídica, não há que se falar em regras escritas detentoras de menor exigência

interpretativa do que os princípios, como se os últimos fossem “mais abstratos” ou “abertos”.

Espera-se já restar suficientemente claro: toda e qualquer atividade humana irá deflagrar uma

necessária interação hermenêutica entre objeto e intérprete. Daí se concluir pela, sempre

imprescindível, construção interpretativa em que deve se adentrar o jurista em todo e qualquer

caso. Essa é a lição que Gadamer lecionou e que foi vista no capítulo anterior!

Cruz (2007, p. 269 e ss.), ciente do giro hermenêutico que ora se alude, inova com sua

doutrina e dispensa por completo as distinções existentes entre princípios e regras jurídicas.

Compreendendo ambas as espécies em uma única e indissociável classificação de “normas

jurídicas”, o autor demonstra como os princípios e as regras escritas dependem, igualmente,

da atividade interpretativa que Alexy privava às últimas.

Ademais, Alexy parece admitir, durante a lide jurisdicional, qualquer espécie de

argumentação, seja de ordem jurídica, seja de ordem política – fundamentações utilizadas no

momento de elaboração da norma, e, portanto, representativos das escolhas pragmáticas

políticas de um corpo legislativo eleito para tanto. Nesse sentido, ignora Alexy a distinção

realizada por Günther (2004) e Habermas acerca dos discursos de fundamentação (escolhas

políticas) e de aplicação (fundamentação principiológica presente no momento

jurisdicional)186.

186 “Em discursos de aplicação não se trata da validade e sim da relação adequada da norma à situação...certamente, os passos complexos de uma interpretação construtiva não se deixam normatizar processualmente; porém eles subjazem ao controle da racionalidade processual de um discurso de aplicação institucionalizado juridicamente. Em todo caso, a jurisdição constitucional que parte do caso concreto está limitada à aplicação de normas (constitucionais) pressupostas como válidas; por isso a distinção entre discursos de aplicação de normas e discursos de fundamentação de normas oferece, mesmo assim, um critério lógico argumentativo de delimitação de tarefas legitimadoras da justiça e da legislação” (HABERMAS, 2003 p. 270;

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Não fosse suficiente, o resultado derivado do debate jurisdicional recheado de

argumentos típicos do momento de elaboração normativa, e aplicado a um caso concreto,

poderiam ser estendidos aos demais. Com isso, o julgador passa a ingerir na esfera destinada

ao Poder Legislativo, mitigando a separação dos poderes necessária para o Estado

democrático.

Além do mais, quando em análise um aparente conflito de princípios constitucionais

(e apesar de tentar diferenciar princípios – caráter deontológico – e valores – axiológico187)

Alexy acaba por adotar uma postura axiológica mesmo em relação aos princípios jurídicos

(HABERMAS, 2003 p. 314 e ss.).

Isso porque o autor concebe a aplicação dos mesmos tanto quanto possível, desde

que observadas suas regras para a ponderação de valores alexyana: adequação dos meios

escolhidos pela norma aos objetivos colimados; necessidade de escolha da medida menos

onerosa; e ponderação em sentido estrito, consistente na própria noção de otimização

principiológica, o custo/benefício entre a prevalência de um princípio ou outro (ALEXY,

1997, p.112): “do conceito de princípio resulta que na ponderação não se trata de uma questão

de tudo ou nada, mas sim uma tarefa de otimização” (tradução nossa)188 (ALEXY, 1997,

p.166).

Reparem como Alexy, em sua construção teórica, cai na desnaturação do sistema

jurídico pelo político, permitindo que uma análise tipicamente reservada pra os debates

legislativos e deliberativos invada o âmbito do sistema jurisdicional que, a princípio, não

detém tal legitimação democrática. É nesse sentido que se afirma, categoricamente, a

impossibilidade de se direcionar, unilateralmente aos magistrados, a titularidade reconstrutiva

dos direitos responsáveis por reger a coletividade, conseqüência direta do pensamento

323-324). Souza Cruz nos brinda com exemplo interessante acerca do debate entre a distinção necessária entre esses dois momentos da construção do Direito. “um exemplo vem, pois, a calhar: de uma forma geral, ninguém é contra o princípio da igualdade ou contra ações de inclusão social para pessoas mais carentes. Pergunte a qualquer um (sic) verá! Contudo, a questão ganha nova coloração quando a mesma é posta em um discurso de aplicação, tal como quando se está diante de um caso no qual um representante de alguma minoria pretere alguém (com nome, CPF, carteira de identidade, etc) no ingresso de um curso de ensino superior a coisa muda de figura. Ou seja, a argumentação que envolverá a legitimidade da decisão no discurso de justificação é distinta daquela que se emprega em um discurso de aplicação” (CRUZ, 2007 p. 193) É de se notar, porém, que Habermas dá um passo adiante à proposta de Günther, pois a relaciona com a perspectiva dworkiana de distinção entre argumentos de princípio e argumentos de política (CRUZ, 2007, p. 223). 187 “El modelo de los principios y el modelo de los valores han demonstrado ser esencialmetne iguales por lo que respecta a su estructura, com la diferencia de que el uno debe ser ubicado en el ámbito deontológico (el âmbito del deber ser) y el outro em el ámbito axiológico ( el âmbito de lo bueno)” (ALEXY,1997, p. 147) . 188 No original: “...del concepto de principio resulta que en la ponderación no se trata de uma cuestión de todo o-todo-o-nada, sino uma tarea de optimización.”

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valorativo alexyano. É a própria coletividade quem deve fazê-lo. Esta é a própria base do

pensamento do Estado Democrático de Direito!

Importante se atentar para o alerta realizado por Cruz:

Ao vislumbrar uma divisão discursiva dos poderes, nosso autor se afasta tanto das visões clássicas de Montesquieu e Locke quanto do normativismo kelseniano, que procura indiferenciar a forma de produção normativa. Assim, impõe limites à Jurisdição, cônscio de que qualquer poder, que se julga absoluto, tiraniza absolutamente. E a ‘liberdade’ que os magistrados ganham pela ponderação de valores se dá pela subtração da liberdade/autonomia de cada um de nós. (CRUZ, 2006, p. 240) (grifos nossos).

No que tange tais tentativas críticas de se desacreditar o procedimentalismo por meio

da ausência de condições materiais e sociais propiciadoras da consciência e consistência

discursiva e participativa, fazem escola as palavras de Bonavides:

Àqueles, portanto, que levantam e repetem o velho refrão de que não se acha o País aparelhado para a democracia [...] deve-se responder como respondeu Lord Russel, o reformista do liberalismo inglês à pervicácia dos seus opositores: ‘ quando ouço falar que um povo não está bastantemente preparado para a democracia, pergunto se haverá algum homem bastantemente preparado para ser déspota’ (BONAVIDES, 1996, p. 21)

Guardadas as proporções, o mesmo questionamento pode ser aferido aqui. Será que

nossos magistrados nasceram com a qualificação necessária para deter o poder de efetivação

dos direitos impondo a toda a sociedade suas escolhas e valores em uma ingerência direta às

opções políticas realizadas pelo corpo de parlamentares democraticamente eleito?

Recentemente, Alexy tentou se desvencilhar das censuras dirigidas ao seu método

ponderativo em dois artigos, traduzidos e compilados no livro “Constitucionalismo

discursivo” (2007). Em sua defesa, Alexy (2007, p. 112 e ss.) relembra uma lide decidida pela

Suprema Corte Alemã em que a revista “Titanic” referira-se a um oficial da reserva como

“aleijado” em um claro conflito principiológico entre “liberdade de expressão” e

“personalidade”. Considerando que a Corte confirmou o resultado do julgamento em primeira

instância por meio da utilização de seu método, compreendendo a ofensa como “grave” – o

que permitiria a indenização pleiteada – Alexy argumenta que não houve uma imposição

subjetiva das vontades e valores dos magistrados. Afinal, duas vezes se alcançou a mesma

conclusão fundamentada acerca do caso concreto, o que demonstraria suas bases de

racionalidade. Juntamente a isso, a elaboração de uma fórmula hermenêutica para a

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verificação dos “pesos” de cada princípio dentro de um caso concreto seria suficiente para

corroborar a mesma racionalidade apontada.

Ora, a mera verificação de confirmação de resultados não implica em uma definitiva

aferição de racionalidade dos métodos empregados (Ferraz, 2007, p.149). Além do mais, isso

não exime a ponderação de valores utilizada de sua principal crítica: a valoração axiológica de

princípios constitucionais colidentes e sua aplicação em virtude dos “pesos” que cada qual

apresenta no caso concreto. Pensar a jurisdição de tal forma é pressupor uma homogeneização

de valores e interesses em uma sociedade que, em realidade, se mostra multifacetária e

composta de inúmeros projetos de vida boa. Tanto o é que, na mesma lide, o aludido oficial

fora também referido pela revista como “nascido-assassino”, o que no entendimento da Corte

Alemã não poderia ser considerado uma intervenção grave o suficiente para acarretar uma

indenização. Pois bem, como questiona Ferraz (2007, p. 149) “quem pode dizer, com

segurança, que ‘nascido-assassino’ é uma intervenção leve e ‘aleijado’ é uma intervenção

grave ou gravíssima?”.

Ademais, ao elaborar sua “fórmula-peso”189 como resposta às decisões jurisdicionais,

Alexy se situa, sem perceber, na filosofia da consciência e na pré-determinação metodológica

há muito banida pelo giro hermenêutico gadameriano. Em um aparente retrocesso

hermenêutico, Alexy (2007, p. 149) chega a descrever matematicamente como se daria

referida equação principiológica190:

I i x G i

G i, j = ------------ I j x G j

Ora, já visto e concluído que a transposição de uma lógica metódica e matemática à

construção de um juízo normativo é tão absurda quanto a tentativa de se aplicar as leis da

física às lides jurisdicionais. A revisão das precisões cartesianas dos métodos pretensamente

garantidores da racionalidade moderna sucumbiu frente a hermenêutica que Gadamer

demonstrou inexistir previamente ao caso concreto. Vale sempre lembrar que o Direito se

189 “Uma relação forma o núcleo da ponderação, a qual, quando se trata de direitos fundamentais como direitos de defesa, pode ser descrita como relação ‘entre a gravidade da intervenção e o peso dos fundamentos que a justificam’. Uma primeira visão na qualidade dessa relação permite uma fórmula quanto-tanto, que se encontra com freqüência, que pode ser designada como ‘lei de ponderação’, e, que abrange igualmente defesa como proteção, formulada como se segue: quanto mais alto é o frau de não cumprimento ou prejuízo de um princípio, tanto maior deve ser a importância do cumprimento do outro” (ALEXY, 2007, p. 82-83). 190 Pela fórmula alexyana, Gi,j representaria o peso concreto do princípio Pi relativamente ao princípio Pj; Ii e Ij representam, respectivamente, a intensidade de intervenção dos princípios “i” e “j”, e Gi e Gj, respectivamente, o peso abstrato dos princípios “i” e “j”. (Cf. ALEXY, 2007, p. 137-148).

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mostra como um produto da construção incessante e participativa dos envolvidos e afetados

pelas normas, e não uma valoração de medidas e pesos dos princípios por parte de uma elite

magistrada apoiada em fórmulas de exatidão jurídica.

Em continuidade, não procedem, no mesmo esteio, as críticas que, ligadas à

argumentação comunitarista, vêem as condições ideais de fala próximas ao idealismo

platônico transcendental, e por isso, metafísicas.

Cruz, aproveitando os ensinamentos apelianos, demonstra, de forma cabal, como

qualquer tentativa de argumentação passa pela necessária pressuposição da existência das

ditas condições ideais de fala. Mesmo quando se tenta argumentar contrariamente à presença

das mesmas no âmbito argumentativo, pois nenhuma forma de comunicação genuína

consegue sucesso sem tais garantias procedimentais. Daí podermos utilizar a menos

problemática denominação “condições contrafactuais de fala”.

Observe: o cético afirma que a ‘situaçao ideal de fala’ (ou U) não existe. Ora, quem o faz, buscando com isso provar a outrem que diz a verdade, de certo admite que o ouvinte, em condições de igualdade para consigo mesmo, possa contestá-lo. E tal afirmativa pressupõe um médium lingüístico que permite a comunicação ente eles. de certo, está implícita no seu raciocínio a sinceridade na veracidade da assertiva que faz e que se dispõe a sustentar. E, absolutamente não pretende convencer o outro por qualquer forma de coação, senão pela força do melhor argumento. Por conseguinte, sem perceber, o cético cai em contradição performativa e dá azo à fundamentação justamente daquilo que pretendia contestar [...] pois o cético não percebe que ‘diz algo fazendo exatamente o contrário’. (CRUZ, 2007, p. 107-108)

Seguindo nesta esteira, não detém sustentabilidade a censura no sentido de que

Habermas se esquece das contingências mundanas quando pressupõe uma participação

ingênua dos indivíduos nos processos discursivos, quando que, em realidade, todos o fazem,

imbuídos unicamente de seus interesses pessoais, o que viria a implicar destruição à

“sinceridade”, elemento presente nas condições ideais (ou contrafactuais) de fala.

Inicialmente, cumpre anotar que é igualmente ingênua a concepção de que todas as

pessoas fazem uso ininterrupto do agir orientado por vantagens próprias. Caso assim o fosse,

a própria estruturação social que hoje se conhece se apresentaria um projeto inalcançável – o

agir comunicativo pelo entendimento é elemento de integração social –, devendo todos

retornarem ao Estado hobbesiano com a única função de proteger o homem de seus iguais.

Além do mais, Habermas não ignora o fato de que, muitas das vezes, os participantes

não se inserem no debate em busca de um entendimento não coercitivo, mas sim no rastro de

satisfações próprias em virtude do poder financeiro ou administrativo. Nesses casos, os

agentes dispensam o agir comunicativo, e fazem uso do agir estratégico, manipulando as

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regras do direito em virtude de suas pretensões. Quando assim ocorre, p.e., no processo

político deliberativo, não se parte para um consenso não coercitivo, mas para uma

“negociação”, um pacto de compensação de interesses.

Não obstante, para o agente fazer uso de seu agir estratégico, ele acaba por depender

da existência do próprio agir comunicativo e das regras do debate. Afinal, ele precisa crer que

o outro participante envolvido está suficientemente em busca de um entendimento ao ponto de

aceitar as argumentações daquele, ainda que dirigidas a fins pessoais. Neste momento, o

“sujeito estratégico” acaba por depender da “sinceridade” habermasiana, vista aqui não como

a ingenuidade ou crença de que todos estão a falar a absoluta verdade, mas sim que os

envolvidos estão aptos à receptividade e à procura de um entendimento comum.

...sempre que a orientação pelo sucesso e a orientação pelo entendimento chegam a formar uma alternativa completa aos olhos dos sujeitos agentes, a regulamentação intersubjetivamente obrigatória de interações estratégicas precisa fazer jus a duas condições contraditórias, as quais não podem ser preenchidas simultaneamente na ótica dos atores. Tais regras representam, de um lado, delimitações factuais que modificam de tal forma o leque de dados, que o ator, no enfoque de alguém que age estrategicamente, sente-se obrigado a adaptar objetivamente seu comportamento à linha desejada; de outro lado, elas precisam desenvolver, ao mesmo tempo, uma força social integradora, na medida em que elas impõe obrigações aos destinatários, o que só é possível, segundo nosso pressuposto, na base de pretensões normativas reconhecidas intersubjetivamente (HABERMAS, 2003, p. 47) (grifos nossos)

Ademais, não se está a propor um debate ausente de qualquer contexto

jurisdicionalizado. Antes pelo contrário! Os embates argumentativos que irão determinar os

caminhos que o Direito deve perquirir serão envoltos em procedimentos judiciais e

administrativos em que as partes terão oportunidade de fala para expor suas razões. Nesses

termos, para um controle de argumentações estratégicas (que invariavelmente estarão

presentes no discurso jurídico!) todos essas questões serão depuradas ao longo do processo.

Nessa trilha, em um procedimento de cunho fiscal, a fundamentação perpetrada pelo

Fisco geralmente virá em busca de uma visão estrategicamente voltada para o

constitucionalismo social e a necessidade de angariação de tributos para se promover a

“justiça social” e a “prestação de serviços públicos” a toda a sociedade.

Noutro ponto, a defesa realizada pelo contribuinte esbarrará, provavelmente, na idéia

de que a tributação excessiva impede a livre condução da iniciativa privada, e a literalidade

das descrições tipificantes deve ser obedecida sob pena de que a insegurança jurídica se abata

no cenário social e, com isso, seja instaurada a balburdia no Direito. Argumentos, obviamente

ligados ao paradigma liberal de proteção à propriedade privada.

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Ora, mas como então saber quais dessas razões devem ser efetivamente consideradas

como parte de um agir comunicativo que irá culminar na decisão correta habermasiana?

Caberá ao processo administrativo e judicial observar e depurar a argumentação estratégica

das partes, e diante dos demais dados fáticos do caso concreto, realizar a depuração, a

filtragem dos fundamentos apresentados, e assim, buscar a resposta correta para a questão em

análise. Não serão desconsiderados os argumentos estratégicos embasados por interesses

individuais no seio da argumentação jurisdicional. Pelo contrário, sua presença é até mesmo

esperada! Ocorre, porém, que os processos administrativos e judiciais devem apresentar

mecanismos de identificação e depuração/filtragem dos mesmos. Caso contrário, os

oposicionistas a Habermas deteriam razão em sua crítica relativa à ingenuidade conceitual do

agir comunicativo na esfera jurídica.

Exemplo elucidativo acerca da procedimentalização na seara fiscal se apresenta na

análise do chamado “lançamento por arbitramento” constante no art. 148 do CTN, onde se lê

que

Quando o cálculo do tributo tenha por base, ou tome em consideração, o valor ou o preço de bens, direitos, serviços ou atos jurídicos, a autoridade lançadora, mediante processo regular, arbitrará aquele valor ou preço, sempre que sejam omissos ou não mereçam fé as declarações ou os esclarecimentos prestados, ou os documentos expedidos pelo sujeito passivo ou pelo terceiro legalmente obrigado, ressalvada, em caso de contestação, avaliação contraditória, administrativa ou judicial (grifos nossos)

Nas hipóteses previstas no lançamento por arbitramento é possível a verificação de

uma séria de elementos ligados ao procedimentalismo aludido. Inicialmente, é superada a

visão de preponderância de qualquer das esferas, pública ou privada. As declarações

particulares não gozam, aqui, de qualquer supremacia frente aos interesses públicos. Tanto o é

que, uma vez entendida a insuficiência ou inidoneidade das mesmas, o Fisco poderá

desconsiderá-las e arbitrar a base de cálculo correspondente. Tampouco se cai na

discricionariedade executiva pensada por Schmitt, em que o chefe de Estado poderia lançar

diretrizes com força de lei e assim conformar os comportamentos estatais justificando-se no

interesse público.

Sempre que se deparar com uma situação desta natureza, o arbitramento realizado pelo

Fisco deverá ser permeado por um processo no qual devem ser garantidos a participação e

contraditório, dando a ambas as partes a possibilidade argumentativa e exposição de suas

razões. E quanto às fundamentações lançadas pelas partes, terão seus argumentos depurados

justamente pelo procedimento. Mais uma vez se destaca. Todo o conteúdo jurídico é

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permeado pela procedimentalização e interpretação construtiva do Direito aplicado ao caso

concreto.

8.2 Os direitos fundamentais e o sistema tributário

O leitor atento já deve ter notado o quanto a teoria procedimentalista ora adotada

enfoca a participação efetiva e ativa de todos os membros da sociedade na construção de um

conteúdo justo e democrático do Direito que irá reger dada comunidade social. Não se fala,

momento algum em conteúdos pré-estatais fundamentais, ou mesmo direitos fundamentais

cujo conteúdo, já determinado, deve reger todo o desenvolvimento do Estado e sociedade. A

feição democrática é colocada em destaque para, justamente, dar aos afetados pelas normas, a

possibilidade de argumentar quais os conteúdos de direitos são efetivamente fundamentais

para os mesmos. É oportunidade que os paradigmas liberal e social não concederam aos

administrados.

Ora, se assim o é, uma primeira acepção acerca do que sejam direitos fundamentais

neste novo paradigma já se torna clara: são direitos fundamentais aqueles necessários para a

garantia de participação efetiva nos debates e argumentações jurídico-políticas. Noutros

termos, são direitos que, como condição de possibilidade, fornecem ao cidadão os elementos

exigidos para estar presente e atuante nas esferas públicas discursivas e, uma vez inserido na

arena argumentativa, possa, juntamente com os demais membros da sociedade, construir de

forma irrestrita e não coercitiva, o conteúdo dos direitos que entende adequado.

Mas como então identificar quais seriam tais direitos/postulados? Habermas faz sua

sugestão:

(1) Direitos fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do direito à maior medida possível de iguais liberdades subjetivas de ação. [...] (2) Direito fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do status de um membro numa associação voluntária de parceiros do direito; (3) Direito fundamentais que resultam imediatamente da possibilidade de postulação judicial de direitos e da configuração positivamente autônoma da proteção jurídica individual. [...] (4) Direitos fundamentais à participação, em igualdade de chances, em processos de formação de opinião e da vontade, nos quais os civis exercitam sua autonomia política e através dos quais eles criam direito legítimo. [...] (5) Direitos fundamentais a condições de vida garantidas social, técnica e ecologicamente (HABERMAS, 2003, p.159-160)

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Mister destacar como os direitos fundamentais, neste momento, denotam um caráter

muito mais instrumental, do que material, remetendo o cidadão não apenas à ampla

possibilidade de postulação de seus direitos, mas também à garantia de liberdade e condições

fáticas de empreender em um debate que culminará na tomada de rédeas da estruturação do

Estado, da sociedade e das relações privadas. Afinal, este é efetivamente, seu papel:

instrumentalizar e possibilitar que os indivíduos assumam a cidadania ativa e participativa na

construção dos conteúdos normativos. Assim sendo, a liberdade, não é mais compreendida em

sua acepção liberal-burguesa, mas sim em uma perspectiva de amplitude de participação na

arena pública, a isonomia, abandona o status de finalidade do Estado social, e adquire o

caráter de meio, consubstanciada na igualdade de posições e oportunidades de se expor a

argumentação pretendida, e assim por diante.

Essa releitura discursiva retira de tais direitos sua dimensão substantiva clássica. A liberdade, por exemplo, resumir-se-á à perspectiva do indivíduo de participar na implementação dos discursos sociais de fundamentação e aplicação das normas jurídicas. A dignidade da pessoa humana passa a ser compreendida pelo fato de todos poderem participar em simétricas condições no discurso com todos os demais interessados. Dessa forma, enquanto os direitos fundamentais atuam como condição para o discurso, não se sustentam sobre valores substantivos. Ao contrário, são entendidos como regras de comunicação (CRUZ, 2006, p. 168)

Também aqui o Direito Tributário adquire função inclusiva no cenário democrático,

muitas das vezes, diga-se de passagem, fazendo uso dos mecanismos vislumbrados quando do

estudo do sistema tributário no paradigma social. Nada mais compreensível. Afinal, não se

afirma qualquer negativa ou repúdio aos direitos constitucionais anteriores, sejam eles liberais

sociais ou difusos. A temática da reconstrução, e não negação de direitos é bem vinda também

(e principalmente) no Estado Democrático de Direito. Entretanto, a maior ênfase apontada às

ferramentas tributárias ligadas ao constitucionalismo social se justifica quando em análise o

déficit de experimentação brasileira de um genuíno Estado social prestacional de serviços

públicos inclusivos.

Dentro deste espectro, pode ser facilmente destacada a observância à capacidade

contributiva como elemento de inserção democrática no debate comunicativo. Obviamente

que, para se manter em atenção à perspectiva de direito fundamental ora verificada, não se

pode retroagir à visão míope de capacidade contributiva smithiana, consubstanciada na

generalidade e universalidade na contribuição dos encargos estatais, como se a igualdade se

resumisse na isonomia formal. Nem tampouco se está a argumentar em uma mera

homogeneização de exações referentes a condições objetivas relativas a cada classe social,

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função que uma tributação progressiva mal versada poderia resultar em um

constitucionalismo social.

São valiosos os ensinamentos lembrados quando do deslinde focado na capacidade

econômica dos contribuintes. As teorias defendidas por vários dos autores contemporâneos ali

mencionados representam um conteúdo isonômico tributário consoante com os direitos

fundamentais possibilitadores do discurso.

Inserido neste seleto grupo, Marco Aurélio Greco, (2004, p. 292 e ss), em um salto de

refinamento, garante ainda maior eficácia ao princípio desenvolvido quando do

constitucionalismo social. Segundo o autor, a capacidade contributiva não é mera derivação

da isonomia constitucional, mas verdadeiro desdobramento da solidariedade social. Para

Greco, após a CF/88, o princípio da capacidade contributiva passou a ostentar papel

conformador da tributação, ditando positivamente como a mesma deverá ocorrer em nosso

sistema jurídico.

Quando do constitucionalismo social (e mesmo liberal!) já se argumentava a eficácia

negativa do princípio em tela, o que implica a impossibilidade de exação nas situações em que

ausente força econômica. Esse é um posicionamento mais ligado a uma limitação do poder de

tributar do Estado, impondo-lhe barreiras para evitá-lo atingir o patrimônio daqueles inaptos

para tal. Quanto a isso pouca polêmica reside na atualidade.

Entretanto, a análise de Greco não se restringe a essa delimitação cerceadora do

Estado. Ciente de se tratar a capacidade contributiva verdadeiro princípio constitucional – e

não mera limitação ao Estado – o autor identifica sua incidência não apenas negativamente,

mas também positivamente. Ou seja, não apenas o Estado não poderá alcançar fatos e

situações não denotadores de capacidade econômica, mas sempre que houver possibilidade de

o Estado atingir demonstrações de força financeira, deverá fazê-lo. Isso porque, sendo um

princípio constitucional, a capacidade contributiva remete diretrizes à atuação negativa, mas

também positiva do Estado, exigindo deste último, sua efetivação.

Interessante notar que o autor já parte de uma outra perspectiva da situação Fisco X

contribuinte quando em comparação com o pensamento do tradicional constitucionalismo

social. Condizente com os pressupostos que embasam seu pensamento, Greco abandona a

idéia oposicionista entre Estado e cidadão, o que lhe permite ver na eficácia positiva da

capacidade contributiva uma forma de efetivação de direitos fundamentais. Para ele, a

tributação “deixa de ser vista da perspectiva do confronto entre contribuinte e Fisco [...] para

ser vista como instrumento de viabilização da solidariedade no custeio do próprio Estado”

(GRECO, 2004, p. 284).

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Ora, a construção argumentativa realizada por Greco passa pela observação daquilo

que já comentamos supra. Não se pode interpretar o Direito Tributário tendo a Constituição

Federal apenas como uma referência distante, ou pior, tendo-a como parâmetro apenas

quando conveniente para o contribuinte. Os ditames constitucionais, em virtude de sua

supremacia interpretativa, forçam o jurista a conformar todos os institutos tributários ao plexo

de determinações e garantias que pairam sob o sistema constitucional! (vide cap. III)

Por certo, sua teoria não pode ser interpretada como defesa a uma cobrança

maniqueísta de valores pecuniários. Mesmo porque, em uma concepção de

eqüiprimordialidade entre os interesses públicos e privados, não há qualquer embasamento

para se afirmar maniqueísmos!

O que Greco se utiliza para sua construção teórica são fundamentos que em todo o

momento foram lembrados nas páginas desta obra: a necessidade de se interpretar todo o

Direito Tributário em conformidade com o conteúdo constitucional e de direitos

fundamentais, em contrário à doutrina dominante, cuja memória seletiva se recorda da

supremacia constitucional unicamente para tratar de cerceamento à exação fiscal (Cf. cap. III)

Em continuidade, a ilação realizada por Derzi talvez se mostre ainda mais antenada ao

paradigma do Estado Democrático.

Foi visto quando do constitucionalismo social, a segmentação da capacidade

contributiva em suas vertentes “absoluta” e relativa”. Atenta à distinção entre a demonstração

de saúde financeira e contributiva no momento da elaboração normativa e escolha dos fatos e

situações a serem tributados (absoluta), e a identificação de real aptidão do contribuinte no

caso concreto (relativa), Derzi possibilita uma reconstrução do teor contributivo condizente

com os direitos fundamentais aqui expostos.

Muito fácil seria, sob os auspícios da capacidade contributiva absoluta, determinar

critérios objetivos de aferição patrimonial, e com isso, presumir o montante tributário a ser

exigido de determinado indivíduo. É a completa homogeneização do conteúdo jurídico-

tributário de isonomia!

Noutro lado, a capacidade contributiva subjetiva ou relativa se mostra ligada à

aptidão real do contribuinte, capacidade essa que apenas poderá ser aferida no momento da

análise do caso concreto. É a observação das peculiaridades individuais para que haja uma

compatibilização entre a exação e a realidade do contribuinte.

Nessa baila, importante perceber, que para uma análise subjetiva da capacidade

contributiva, não basta a simples mensuração do reflexo patrimonial meramente presuntivo,

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como por exemplo, o montante financeiro recebido mensalmente em decorrência da força

laboral191.

A correta aplicação do ditame constitucional culmina na observância da subjetividade

como um todo, o que implica na também consideração de gastos com saúde, educação,

moradia, número de indivíduos dependentes, dentre outros elementos. A análise das

particularidades individuais a que se presta a efetivação da igualdade constitucional não pode

se ater a uma superficial abordagem restrita a uma primeira impressão ou a um único dado a

ser considerado. Toda a subjetividade do cidadão deve ser objeto de ponderação para que se

chegue ao objetivo final, que é a incidência tributária condizente com sua realidade financeira

efetiva, e não apenas presumida192.

Faz escola o ensinamento de Aliomar Baleeiro: “salta aos olhos que, por exemplo,

alguns milhares de cruzeiros anuais bastam a um jovem solteiro, não satisfazendo, entretanto,

ao chefe de família prolífica, sobrecarregado por dívida e moléstia prolongada de um filho”

(BALEEIRO,1998, p. 748).

É nesse sentido também que se procura diferenciar com maior rigor terminológico a

capacidade contributiva e a capacidade econômica. Francesco Moschetti, mencionado por

Godoi (1999, p. 195) entende ser a capacidade econômica a totalidade da força financeira que

o contribuinte reflete em razão de fatos presuntivos ou significativos de riqueza (p.e. renda

auferida, imóveis, automóveis de luxo, etc).

Munido dessa informação, segundo Moschetti, pode-se chegar à efetiva capacidade

contributiva. Basta, a partir daí, considerar a situação pessoal do contribuinte, tal como

considerado por Baleeiro supra, a fim de se concluir se há, de fato, fração da riqueza do

contribuinte com aptidão para ser objeto de exação fiscal.

191 É de se notar que nem todos os autores compartilham conosco essa visão acerca da subjetividade da capacidade contributiva. Assim sendo, em sentido contrário ao expressado no texto, Roque Carrazza: “a capacidade contributiva à qual alude a Constituição e que o legislador ordinário deverá levar em conta, ao criar os impostos, é objetiva, ou seja, refere-se às manifestações objetivas de riqueza do contribuinte (ter imóvel luxuoso, possuir automóvel do ano, ser proprietário de jóias ou obras de arte valiosas, etc.) Assim, atenderá ao princípio em exame, a lei que, ao criar o imposto, colocar em sua hipótese de incidência fatos deste tipo que Becker denomina ‘fatos signos presuntivos de riqueza’. Pouco importa, no caso se algum contribuinte, que praticar o fato imponível do imposto, não tiver condições subjetivas de suportar a carga tributária.” (CARRAZZA, 2004, p. 80). 192 Também o Superior Tribunal de Justiça se apresenta atento à necessidade de se verificar a capacidade contributiva em seu aspecto subjetivo. Assim, em análise de agravo regimental em recurso especial acerca da incidência de COFINS em entidade de assistência social, a Corte argumentou que “Realmente, não representando a alíquota, em si, encarada isoladamente, índice aritmético de qualquer matiz abusivo, afastada fica a análise da capacidade contributiva objetiva ou segundo a lei em tese. De seu turno, não coligindo a parte contribuinte (até pela impropriedade da via eleita, para tal fim) elementos concretos sobre sua realidade de maior ou menor fortuna material cotidiana, igualmente não se constata desrespeito à capacidade contributiva subjetiva, precisamente o outro matiz do ora enfocado dogma, que o considera com referência aos dados estruturais peculiares ao contribuinte.” (AgRg 12720 - DJ 06.08.2007) (grifos nossos).

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É por isso que se pode afirmar que há possibilidade de existência de capacidade

econômica sem haver concomitantemente capacidade contributiva. Acaso se imagine um

indivíduo agraciado com alto salário, mas também, gravado com sérios gastos familiares de

saúde, não se pode afirmar que o mesmo detém aptidão para repartição dos gastos estatais

apenas pelo fato de auferir alta renda.

Da mesma forma, pode-se considerar a insuficiência da análise da simples posição de

sujeito passivo tributário de uma obrigação tributária de alto valor para constatar a alta

capacidade contributiva do indivíduo. Preocupado com esse potencial desvirtuador dos

objetivos principiológicos, Sainz de Bujanda diferencia a capacidade tributária passiva e a

capacidade contributiva. Em consideração ao autor, segue Leão:

A primeira noção diz respeito à situação de sujeito passivo da relação jurídica tributária, o que não é suficiente para garantir que o sujeito tenha aptidão econômica para responder pelo gravame tributário. Já a segunda noção diz respeito à idoneidade do sujeito de concorrer aos encargos públicos e não a mera aptidão a ser sujeito passivo de um tributo (LEAO, 1999, p. 32)

Nessa baila, as idéias aqui desenvolvidas possibilitam o caminhar para uma análise

subjetiva das peculiaridades de cada contribuinte, não se atendo à verificação de seu

patrimônio, ou mesmo se este figura como responsável tributário. O debate discursivo e o

estudo interpretativo do caso concreto é elemento que de imediato se coaduna com o

procedimentalismo habermasiano. Afinal é esta a lição que o sistema tributário deve abraçar:

a necessidade de verificação dos conteúdos jurídicos em cada caso concreto, uma vez a

construção da materialidade ser reflexo dos elementos e interpretações inevitáveis e

diferenciadas em cada situação distinta.

É importante ter em mente, juntamente com Marcelo Cattoni que

se partimos de uma concepção procedimentalista do Direito, em que qualquer proposição jurídica é fruto de interpretação, sobre o pano de fundo de visões paradigmáticas concorrentes, não se pode predefinir o ‘conteúdo’ ou a ‘extensão total’ de um dispositivo normativo, que ganha sentido a cada novo caso concreto (OLIVEIRA, 2002, 112)

Para isso, todos os mecanismo ligados à efetivação isonômica já verificados podem –

e devem – ser utilizados: proporcionalidade, progressividade, seletividade, e inclusive, a não

tributação do mínimo existencial. Todos os elementos que possam auxiliar na possibilidade de

melhoria de condições fáticas capazes de realizar a inclusão do contribuinte no cenário de

cidadania são abarcados pelos direitos fundamentais do Estado Democrático.

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Quanto ao último, Cruz, ligando o mínimo existencial aos direitos fundamentais na

visão habermasiana, afirma que

Nesses termos, podemos vislumbrar a noção de mínimo existencial já dentro da argumentação moral, eis que aqui prevalece a perspectiva de reciprocidade de modo a se garantir a todos as condições materiais para que possam participar dos discursos de formação da vontade política na sociedade (CRUZ, 2007, p. 373)

Exemplificativamente, pode ser lembrada a tributação consubstanciada no imposto de

renda incidente sobre pessoa física. Inicialmente, seu caráter de imposto direto já auxilia a

coadunar os encargos decorrentes da exação fiscal às forças econômicas do contribuinte –

sobre o tema, conferir cap. IV. Entretanto, para se verificar uma isonomia material, deve-se

fazer uso da progressividade tributária, instrumento que desde o constitucionalismo social já

auxilia a maximizar o substancialidade do princípio da igualdade. Assim o sendo, a legislação

brasileira pode ser apontada como exemplo, uma vez prever a existência de três alíquotas

distintas aos contribuintes em decorrência de seus proventos financeiros193. Com esses

elementos, já resta caracterizado o respeito aos ditames da capacidade contributiva absoluta

delineada quando do constitucionalismo social. Mas será suficiente para a observância da

subjetividade dos casos concreto e construção da isonomia com vistas a um Estado

Democrático?

Assim o sendo, é observada a não tributação da parcela mínima necessária para a

satisfação de condições mínimas de educação, cultura, alimentação, saúde, etc.,

imprescindíveis para a inclusão dos contribuintes na esfera pública discursiva? E quanto a

eventual diminuição da base de cálculo em razão de dispêndios suportados em virtude das

particularidades de cada contribuinte? Da mesma forma, um estudo pormenorizado das

origens das receitas: são provenientes de ganhos de capital, tais como aluguéis, ou são

decorrentes da força laboral do contribuinte? Seria conveniente homogeneizar a exação

tributária de dois indivíduos em razão de seus proventos sem considerar que apenas um deles

aufere renda em razão de seu trabalho?

E quanto à tributação indireta? Há uma escolha dos bens as serem tributados em

consonância com o princípio da seletividade? Os materiais escolares – e não apenas os livros

– estão livres de exações fiscais no intuito de facilitar o acesso de todos os brasileiros aos

meios de educação? Ou sua carga de impostos e contribuições se equipara aos bens de luxo?

193 No exemplo pátrio, há previsão de isenção de imposto de renda àqueles que auferem quantia mensal inferior a R$1.313,69; alíquota de 15% àqueles com rendimentos compreendidos entre R$1.313,69 e R$2.625,12; e por derradeiro, alíquota de 27,5% àqueles com renda mensal superior a R$2.625,12.

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São temáticas que, muito embora sejam inauguradas no constitucionalismo social, não podem

ser esquecidas no presente.

Enfim, todos estes são instrumentos que, empenhados em conjunto, são capazes de

realizar a efetivação dos direitos fundamentais (postulados) de inclusão discursiva a que se faz

alusão.

Mas aqui deve ser feita importante ressalva.

Quando do desenvolvimento do conteúdo jurídico da igualdade na seara do Direito

Tributário referente ao Estado social (Cf. Cap. V), foi comentada teoria seguida por autores

como Murphy e Nagel (2005), para quem a efetivação da isonomia transcende a mera

observância da capacidade contributiva e passa pela prestação positiva de serviços públicos

(educação, saúde, moradia, etc) e mesmo a transferência direta de recursos aos contribuintes

deficitários194.

Por óbvio, a postura assistencialista estatal em busca da concretização de direitos e

garantais sociais mínimas não apenas se mostra necessária (principalmente em países de

desenvolvimento tardio como o Brasil), mas é mesmo louvável! Com efeito, ainda não

atingimos um nível de inclusão social e participativa para compreendermos, em plenitude, a

inserção de todos os brasileiros na esfera de cidadania ativa e em condições de debater com

consciência e qualidade a construção de seus direitos.

Nessa toada, a prestação de uma educação satisfatória, a conscientização cultural e

política por meio de ações públicas, programas de incentivo e proteção à saúde, e mesmo as

transferências diretas de recursos (p.e. o chamado “bolsa-escola” do governo federal) detêm

importante papel na elaboração de uma estrutura democrática. Mas deve-se estar sempre

atento ao objetivo precípuo da atuação do Estado na efetivação da igualdade: concretizar as

condições necessárias para a participação discursiva de todos os cidadãos na formação da

vontade política e social.

Caso o Estado se deixe envolver e adote o paternalismo assistencialista como

finalidade, o resultado colhido será a própria retirada do cidadão-cliente da arena pública, ao

mesmo tempo em que seu passivismo restará controlado em atenção aos ditames do dizer

romano: “pão e circo”.

194 Nas palavras dos autores: “Nós mesmos preferimos aquelas concepções de justiça segundo as quais a sociedade deve ter o objetivo de proporcionar a todos os seus membros pelo menos um nível mínimo de bem estar e de acesso às oportunidades. Essa doutrina exige que se considerem cuidadosamente dois tipos de progressividade no sistema tributário. Em primeiro lugar, a progressividade de uma substancial renda mínima universal, que resulta num imposto de renda negativo (transferência de dinheiro) para as faixas de baixa renda. Em segundo lugar, a progressividade das alíquotas marginais” (MURPHY; NAGEL, 2005, p. 191).

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Nestes casos, sob a proteção de uma superficial atenção à justiça e igualdade social, o

Estado acaba por cercear a liberdade comunicativa e a autonomia democrático-participativa

dos indivíduos. Daí se afirmar a necessária temporalidade dos programas assistenciais

prestados no Estado Democrático de Direito, afinal, “a posição passiva em face da coisa

pública faz súditos e não cidadãos” (BONAVIDES, 1996, p. 21).

Atento a essas nuances e desafios da estrutura estatal contemporânea, Giddens trilha

pelo mesmo pensamento. Tanto o é que, em sua concepção “auxílios-desemprego, por

exemplo, deveriam acarretar a obrigação de procurar trabalho ativamente, e cabe aos

governos assegurar que os sistemas de bem-estar social não desencorajem a procura ativa”

(GIDDENS, 2001, p. 75)

Mas não somente a capacidade contributiva pode auxiliar na garantia de amplitude e

liberdade comunicativa. Também a extrafiscalidade se apresenta como importante

mecanismo à consecução dos objetivos democráticos ora delineados pelos direitos

fundamentais. Uma exemplificação clara já foi recorrentemente trabalhada. A previsão de

imunidade a livros, jornais e periódicos constante no art. 150, VI, “d” da CF/88 é a

incorporação do incentivo à produção e disseminação de conhecimento, cultura e instrução à

população. Obviamente que, para a otimização das condições discursivas, deve-se interpretar,

não apenas este, mas todos os dispositivos constitucionais e tributários em consonância com a

virada hermenêutica proposta por Gadamer. Caso contrário, já constatado o quão desvirtuados

os fundamentos de uma extrafiscalidade inclusiva diante de livros eletrônicos, p.ex.

Da mesma forma, a percepção de existência de minorias étnicas, sexuais, e de gênero,

debilitadas pelas chances ofertadas pela própria sociedade contribuiu para o delineamento das

chamadas ações afirmativas. Compreendidas como uma atuação do Estado, em conjunto ou

não com particulares, com vistas a incentivar a inclusão e inserção destas mesmas minorias no

cenário político, social, econômico, educacional, etc., as ações afirmativas configuram mais

uma possibilidade de maximizar a irrestrição participativa na seara dos direitos fundamentais.

A fixação de alíquotas, ou mesmo a previsão de benefícios fiscais em atenção a tais

programas inclusivos se mostra, no cenário de um Estado Democrático, como elemento de

otimização do discurso dessas pessoas, a princípio, secundarizadas nos debates jurídicos.

Nessa toada, as imunidades ou isenções de instituições educacionais que incentivem a

instrução e participação de pessoas portadoras de deficiência física, por exemplo, servirá de

contribuição para que essa parcela da sociedade consiga uma melhor inserção e qualificação

para realizar o embate discursivo a que se propõe a estrutura democrática.

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No mesmo sentido, também a proteção das culturas locais e suas tradições, em

respeito à pluralidade discursiva e à possibilidade de exposição de toda a ordem de

argumentos para serem debatidos pela sociedade pode ser maximizada pela atuação tributária.

Em proximidade com o texto constitucional atual, basta debruçar sobre a interpretação do art.

150, VI “b” onde se lê a proibição de instituição de impostos incidentes sobre “templos de

qualquer culto”. Como interpretar tal mandamento à luz de uma hermenêutica inclusiva?

A concessão de imunidades em benefício às diversas Igrejas e religiões mais populares

não deixa lastro para dúvidas. Mas e quanto a terreiro de umbanda, ou mesmo outras práticas

religiosas de menor aceitação? Não deveriam igualmente aproveitar a disposição

constitucional antedita? Afinal, os direitos fundamentais compreendidos como condição de

possibilidade implicam em, justamente, dar a máxima liberdade de apresentar, fundamentar e

desenvolver argumentos e práticas que o cidadão julgue pertinente e parte de sua carga

cultural, ética e religiosa.

Enfim, esboçamos apenas exemplos de como o Direito Tributário pode se prestar à

efetivação deste Estado Democrático que todos tanto clamam. Contudo, esta é unicamente

uma primeira faceta dos direitos fundamentais neste momento constitucional.

Caso se tenha compreendido que na esfera de um Estado Democrático de Direito a

amplitude argumentativa possibilita aos destinatários da norma construir e reconstruir

incessantemente os conteúdos jurídicos que irão reger as relações sociais, uma segunda

acepção de direitos fundamentais se mostra ululante.

Uma vez garantidos os direitos fundamentais (postulado) como condição de

participação no embate democrático, todos os cidadãos terão, justamente, a oportunidade de

construir o conteúdo provisório (pois passível de revisão) dos direitos fundamentais, agora

vistos como conseqüência ou resultado do debate comunicativo.

Não se trata de uma pré-determinação de direitos fundamentais por decisões pré-

estatais, mas sim a transferência aos destinatários para a definição de que direitos sejam estes!

Caso compreendam que o conteúdo fundamental a ser observado culmine na construção de

isonomia e capacidade contributiva consubstanciadas no desenvolvimento igualitário das

diversas regiões nacionais, assim o será! Da mesma forma ocorre com a definição de qual

conteúdo de direitos ambientais e de liberdades a serem incorporadas ao núcleo fundamental

de direitos. Daí a possibilidade de importação de todos os direitos fundamentais elaborados

nas três dimensões distintas, bem como seus reflexos tributários.

Todavia, uma vez a revisão discursiva implique uma renovação deste conteúdo

isonômico ou ambiental como direito fundamental, seus resultados, frutos de um discurso

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amplo e democrático, serão agregados ao ordenamento jurídico, modificando, assim, a visão

inicial adotada. E assim por diante.

Eis a razão de não se poder determinar e fixar, de antemão, o conteúdo que os direitos

apresentarão dentro da esfera de direitos fundamentais. Afinal, a substancialidade dos

mesmos, nesta segunda visão, é a própria conseqüência do discurso travado entre os

cidadãos, e proporcionado pela existência e garantia dos direitos fundamentais/postulados.

É como leciona Cruz:

de uma lado, os direitos fundamentais, como condição do procedimento discursivo, são pressupostos da comunicação, e, portanto, despidos de conteúdo substantivo. Contudo, de outro lado, os direitos fundamentais, entendidos como conseqüências/produtos do procedimento discursivo, certamente estão repletos de substância (CRUZ, 2006, p. 172).

Em paridade de pensamento, afirma Galuppo:

Se, agora, quisermos apresentar uma definição dos Direitos Fundamentais, esbarramos então em um problema. Exatamente porque eles são construídos historicamente, um conceito simplesmente conotativo absoluto de Direitos Fundamentais é impossível, já que eles são irredutíveis a uma única realidade (GALUPPO, 2003, p.236)

Em que pese o desenvolvimento do Direito Tributário em consonância com os direitos

fundamentais, preferimos deixar, por derradeiro, o ponto que mais foi debatido ao longo do

trabalho, e também que maior temor causa aos tributaristas. No início deste capítulo foi

exposto que não se olvidaria da segurança jurídica, mas apenas a reformularíamos em

concordância com as evoluções hermenêuticas apresentadas páginas atrás com Wittgenstein e

Gadamer.

Com feito, discorremos essas páginas acerca do procedimentalismo habermasiano

justamente no intuito de demonstrar a viabilidade (e necessidade) de tal segurança. Não a

versão positivista, envolvida com a estabilização e certeza de conteúdos jurídicos materiais e

identificados previamente pelo intérprete. Isso já demonstrado impossível.

Mas sendo a legitimidade do Direito ligada à aceitação ampla e racional das razões

normativas, bem como à constante possibilidade de resgate do debate argumentativo, é

possível identificar a segurança jurídica na garantia de procedimentos que asseguram ao

interessado rever, criticar e reavaliar o conteúdo jurídico por meio do debate de seus

fundamentos de validade em um processo cercado pela amplitude discursiva, e assim, atingir

o direito material em questão. Aliás, foi visto que os próprios direitos fundamentais devem ser

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lidos dessa forma: carentes de conteúdos materiais determinados, e garantidores de

possibilidades participativas para a construção democrática do direito.

É como o próprio autor esclarece:

A segurança jurídica, apoiada no conhecimento de expectativas de comportamento inequivocamente condicionadas, representa, ela mesmo, um princípio que pode ser contraposto, in casu, a outros princípios. Em troca, a postulada teoria do direito possibilita unicamente decisões corretas, que garantem a segurança jurídica num outro nível. Os direitos processuais garantem a cada sujeito de direito a pretensão a um processo eqüitativo, ou seja, uma clarificação discursiva das respectivas questões de direito e de fato; deste modo, os atingidos poder ter a segurança de que, no processo, serão decisivos para a sentença judicial argumentos relevantes e não arbitrários. (HABERMAS, 2003, p.280-281). (grifos nossos)

A angústia do intérprete tributário apenas se esvairá quando atentar ao fato de que a

era das certezas materiais já se foi, melhor, nunca existiu. O combate às pretensões da postura

hermenêutica moderna de uma matematização dos conteúdos jurídicos apreendidos pela

técnica e pela razão individual não é uma luta em favor de um método de melhor aplicação. E

sim a um método que consiga efetiva aplicação!

A opção por trabalhar os pressupostos hermenêuticos – ainda acompanhados pelo

risco de uma abordagem talvez por demais breve – nos serviu justamente para tentar alertar

àqueles que ainda defendem a necessidade de uma previsão exata das obrigações tributárias

por meio da descrição minuciosa das condições de aplicação subsuntiva, da ilusão metafísica

em que se encontram.

A segurança jurídica é sim possível, mas em outros moldes. Devemos lutar para que

nosso sistema do Direito seja capaz de garantir procedimentos que dêem a garantia de

participação efetiva no debate pela construção dos conteúdos jurídicos, bem como seu resgate

interpretativo via jurisdição. Este é o desafio que nos é posto. Encerrar com as recorrentes

repetições interpretativas derivadas de autores renomados ou mesmo tribunais, no intuito

recuperar as fundamentações que embasam as posições hermenêuticas de cada participante do

cenário jurídico democrático.

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CAPÍTULO IX – CONCLUSÃO

Vencidos os tópicos antecedentes, a conclusão do trabalho sem mostra, em realidade,

um tanto quanto redundante. A visão, ainda predominante, de um conteúdo jurídico exaurido

em termos normativos não mais se sustenta. Bem da verdade, nunca se sustentou.

Sua miopia interpretativa, calcada em um formalismo exacerbado prefere se fechar em

fundamentações de bases platônicas e aristotélicas, e desviar os olhos dos objetivos e

características delineadas no sistema tributário nos diversos momentos dos direitos

fundamentais. Nem mesmo os direitos liberais, presentes na justificação de uma tipicidade

descritiva e positivada conseguem ser alcançados. Quiçá os demais! Segurança jurídica,

capacidade contributiva, intervenção econômica, direitos difusos, igualdade material,

condições discursivas, não importa qual deles seja colocado em pauta, todos restam obtados

pela persistência das premissas positivistas não amadurecidas.

Não fosse suficiente, nem mesmo suas fundamentações e bases filosóficas encontram

guarida na atualidade. Há tempos, a evolução hermenêutica tem demonstrado que a crença em

uma ontologização, um engessamento dos conteúdos normativos, e em um intérprete

atemporal capaz de captar de forma neutra o Direito com a exatidão prevista pelo legislador

não passam de ilusão! O giro lingüístico de Wittgenstein e o giro hermenêutico de Gadamer

apontam falhas ainda mais contundentes à subsunção idolatrada pelo princípio da tipicidade e

seu fetichismo legal. Sua adoção não implica uma simples discussão acerca de qual a melhor

corrente ou teoria interpretativa, mas sim a comprovação de ser essa uma prática inatingível!

Eis que, em um Estado Democrático de Direito, cujo primado pela participação efetiva

de seus membros na condução e construção dos conteúdos jurídicos marca como

característica distintiva, o procedimentalismo habermasiano se apresenta como opção mais

adequada.

Em consonância com a filosofia da linguagem wittgensteiniana e a fusão de horizontes

gadameriana, Habermas propõe uma “virada de foco”. Caso se queira, realmente, um

conteúdo democrático das normas jurídicas e tributárias, deve-se esquecer o mito da fixação

dos direitos materiais. Permeado por instrumentos procedimentais, deve-se colocar em debate

constante todas as normas jurídicas, permitindo, assim, a incessante reconstrução de seus

conteúdos, sempre que suas fundamentações argumentativas já não se mostrarem

convincentes.

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De posse destes ensinamentos, tentamos demonstrar, exemplificativamente, maneiras

de o Direito Tributário se inserir em um contexto democrático e ser capaz de alcançar todos

os seus pressupostos. Por meio de uma participação inclusiva de todos os afetados pelas

normas jurídicas, em conjunto com a constante reconstrução substantiva das mesmas, é

possível lograr, não somente uma hermenêutica factível, mas também os direitos

fundamentais delineados no Estado Democrático de Direito e seus reflexos tributários.

Por óbvio, não se trata de menosprezo da “garantia legal” que tanto seduz os

tributaristas, espera-se que se tenha claro! Mas sim de colocar a legislação como ponto de

partida para uma análise interpretativa e construtiva muito mais rica (e também mais

complexa). Os anseios para uma sociedade democrática implicam a vontade de simplificação

do Direito ceder espaço para uma possibilidade de participação e de democratização dos

conteúdos jurídicos, e também tributários.

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