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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS CLÁSSICAS Ritmo e Sonoridade na Poesia Grega Antiga: Uma tradução comentada de 23 poemas Carlos Leonardo Bonturim Antunes Orientador: Prof. Dr. André Malta Campos Dissertação apresentada ao Programa de Letras Clássicas do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Mestre em Letras. São Paulo 2009

Dissertação Leonardo

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Dissertação Leonardo

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS CLSSICAS

    Ritmo e Sonoridade na Poesia Grega Antiga:

    Uma traduo comentada de 23 poemas

    Carlos Leonardo Bonturim Antunes

    Orientador: Prof. Dr. Andr Malta Campos

    Dissertao apresentada ao Programa de

    Letras Clssicas do Departamento de

    Letras Clssicas e Vernculas da

    Faculdade de Filosofia,

    Letras e Cincias Humanas da

    Universidade de So Paulo, para a

    obteno do ttulo de Mestre em Letras.

    So Paulo

    2009

  • 2

    Resumo

    Este trabalho consiste de uma traduo comentada de vinte e trs poemas gregos

    dos perodos Clssico e Arcaico. Essa traduo foi realizada buscando recriar o ritmo e

    a sonoridade dos textos originais, mas sem se afastar demasiadamente do plano do

    sentido, de modo que no uma recriao livre. O trabalho introduzido por um breve

    estudo a respeito do ritmo e da sonoridade, tanto na literatura grega quanto em termos

    gerais.

    Abstract

    This work is comprised of a translation, followed up by a commentary, of

    twenty-three greek poems from the Classical and Archaic periods. The translation was

    carried out with a view to recreate the rhythm and sound of the original texts, without,

    however, allowing it to stray too far from the meaning, lest it would become a free

    recreation. The main work is introduced by a brief study regarding rhythm and sound,

    both in greek literature and in general terms.

    Palavras-Chave: literatura, lrica, grega, traduo, potica.

  • 3

    Agradecimentos

    Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES),

    pelo auxlio concedido.

    Ao Professor Doutor Andr Malta Campos, por trs anos de guiamento, apoio e

    sabedoria.

    Ao Professor Doutor Joo Angelo Oliva Neto e ao Professor Doutor Flvio

    Ribeiro de Oliveira pelos comentrios e pelas correes propostas.

    minha famlia, por tudo que sou.

  • 4

    Sumrio

    Resumo..............................................................................................................................2

    Agradecimentos.................................................................................................................3

    Parte I

    I Apresentao....................................................................................................6

    II Sonoridade....................................................................................................12

    III Ritmo...........................................................................................................21

    IV Mtodo de Traduo...................................................................................28

    Parte II

    Dstico Elegaco...................................................................................................34

    Tirteu Fr. 12......................................................................................................38

    Arquloco Fr. 3.................................................................................................44

    Arquloco Fr. 4.................................................................................................47

    Arquloco Fr. 5.................................................................................................50

    Mimnermo Fr. 1...............................................................................................53

    Mimnermo Fr. 2...............................................................................................56

    Mimnermo Fr. 5...............................................................................................59

    Mimnermo Fr. 12.............................................................................................62

    Mimnermo Fr. 14.............................................................................................65

    Slon Fr. 5........................................................................................................68

    Slon Fr. 9 .......................................................................................................70

    Slon Fr. 16......................................................................................................73

    Slon Fr. 24......................................................................................................75

    Tegnis Teogndea 271-8.................................................................................77

    Tetrmetro Trocaico............................................................................................79

    Arquloco Fr. 114..............................................................................................81

    Arquloco Fr. 122..............................................................................................84

    Trmetro Jmbico.................................................................................................86

    Semnides Fr. 1................................................................................................88

    Estrofe Sfica.......................................................................................................92

    Safo Ode a Afrodite..........................................................................................95

  • 5

    Safo Fr. 31.......................................................................................................100

    Dmetro Jnico com Anclase...........................................................................103

    Anacreonte Fr. 356.........................................................................................105

    Anacreonte Fr. 395.........................................................................................108

    Glicnio e Ferecrcio.........................................................................................111

    Anacreonte Fr. 358.........................................................................................113

    Oitava Ode Ptica de Pndaro............................................................................116

    Pndaro Ode Ptica VIII..................................................................................121

    Bibliografia........................................................................................................133

  • 6

    I Apresentao

    Este trabalho tem como objetivo estudar alguns aspectos rtmicos e sonoros da

    poesia grega antiga, bem como a possibilidade de recri-los ou compens-los em uma

    traduo potica e comentada.

    Como corpus para este estudo, foram escolhidos vinte e trs poemas de nove

    diferentes poetas mlicos, elegacos e jmbicos dos perodos Arcaico e Clssico, aqui

    agrupados livremente sob a alcunha de Lrica Grega.1

    A escolha desses textos se deu, sobretudo, de acordo com uma afinidade pessoal

    com os poemas. Parece seguro dizer que mais fcil e proveitoso traduzir um texto com

    o qual nos identificamos e temos certa afinidade, por conta de termos ouvido alguma

    mensagem em seu todo, do que um texto que no nos diz nada.

    Isso , no entanto, uma lmina de dois gumes, uma vez que se corre o risco de

    ignorar outras possibilidades do texto em prol de salientar aqueles elementos que

    acreditamos reforar a mensagem encontrada. No final das contas, porm, parece

    melhor obter sucesso em traduzir uma ou duas possibilidades de sentido do texto,

    fundamentadas pela recriao de elementos formais que as embasam, do que criar um

    1 O termo Lrica Grega costuma gerar grandes discusses e muita discordncia com respeito ao que

    pertenceria e ao que no pertenceria em seu gnero. Como explica Gentili (1951: 42), Na cultura grega,

    o termo 'lrica' designava, no sentido tcnico, a poesia cantada com o acompanhamento musical da lra

    (lra) ou de outro instrumento de corda anlogo (mgadis, ktharis, brbitos, phrminx). Essa associao

    confirmada pelo cnone alexandrino de poetas lricos, que abarcava apenas a lrica mondica e a lrica

    coral, excluindo a poesia jmbica e a elegaca, que era acompanhada pelo aulos. Ainda que, em

    comparao com a terminologia clssica, no seja correta a tendncia de agrupar sob a denominao de

    'lrica' grega a poesia elegaca e a jmbica, ela no , contudo, imprpria sob o perfil do contedo por sua

    relao com a audincia. Para a crtica moderna, porm, nas palavras de West (1993: vii), 'Poesia lrica

    grega' um termo convencional e abrangente que cobre, mais ou menos, toda a poesia grega secular at

    350 a.C., com exceo da pica, da poesia didtica, e outros versos compostos em hexmetro, e do drama.

    No pode ser considerada um nico gnero. Ela comumente dividida entre poesia mlica, elegaca e

    jmbica. Este trabalho no tem a inteno de discutir o assunto ou sugerir um uso diferente do termo.

    Usa-se, to-somente, a terminologia Lrica Grega pela facilidade de catalogar toda a poesia grega clssica

    e arcaica exceo da pica, da poesia didtica e do drama, tal qual ressalvado por West.

  • 7

    todo desconexo, que tenta ser muitas coisas sem conseguir ser nada com grande efeito.

    Une, ento, o til ao agradvel aquele tradutor que traduz algo que lhe caro.

    Em geral, contudo, gostamos de muitos autores, e quando sentamos para limitar

    o escopo da seleo de poemas, tivemos preferncia por aqueles mais conhecidos e

    procurados. Isso se deu simplesmente pelo interesse em aplicar um mtodo de traduo

    pouco utilizado na academia queles poemas com que j temos alguma familiaridade,

    de modo que o leitor mais erudito possa comparar com facilidade os resultados aqui

    obtidos com os de outros tradutores. Fora isso, de acordo com o segundo objetivo deste

    trabalho, o de servir de introduo a leigos, pareceu mais profcuo apresentar ao leitor

    os poetas da Lrica Grega mais comumente citados e estudados.

    Resumindo, ento, o objeto deste trabalho se limita a uma quantidade humilde

    de poemas e ritmos, no havendo, de maneira alguma, a inteno de esgotar o assunto

    ou de apresentar solues definitivas aos problemas que aborda. Pelo contrrio, espera-

    se apenas aclarar um pouco a questo e traz-la para um plano de discusso mais ativo

    na academia.

    Quanto organizao das partes, neste primeiro bloco do trabalho, tratada de

    modo geral a maneira pela qual se estrutura e justifica o projeto, bem como a

    metodologia adotada e alguns elementos importantes acerca da sonoridade e do ritmo,

    os quais formam um embasamento terico constantemente retomado na etapa seguinte.

    A segunda parte do trabalho, sendo o momento principal do todo, estrutura-se,

    primeiramente, de acordo com uma diviso mtrica. Os poemas foram agrupados em

    sees, de modo a formarem blocos de mesmo padro rtmico. Essas sees so

    organizadas a fim de apresentarem os poetas em uma ordenao tradicional. Abrindo

    cada uma dessas partes, h um breve estudo a respeito do metro e do ritmo empregado

    nos poemas originais, bem como uma explicao de como eles foram trazidos para

    nossa lngua na traduo.

    Na seqncia, logo aps o texto original, encontra-se a traduo em Portugus

    realizada para este trabalho. No texto traduzido de cada poema, podem-se ver marcadas

  • 8

    em negrito as slabas tnicas ou subtnicas2 que correspondem cadncia do ritmo que

    se tentou recriar em Portugus. Essas marcaes tm como finalidade auxiliar o leitor a

    perceber o ritmo adotado e a realizar uma leitura de acordo com o andamento que se

    buscou criar.

    O terceiro e ltimo item da apresentao individual de cada poema o

    comentrio a respeito do poema original e de como se deu sua traduo. Ali, aps uma

    breve introduo a respeito do poema, destacam-se os elementos poticos do texto

    grego e a maneira pela qual eles foram, ou no, recriados ou compensados na traduo.

    Entre outras caractersticas, deu-se importncia sonoridade, ao ritmo e ordenao das

    palavras ao longo do texto e dentro dos versos, bem como a relao que se cria entre

    estes elementos e o sentido do poema.

    Por vezes, h tambm notas a respeito de alguma dificuldade encontrada durante

    o processo de traduo, assim como as conseqncias geradas por essa dificuldade e que

    podem, de uma forma ou de outra, ter sido positivas ou negativas, tendo em vista o

    resultado final do trabalho.

    Ademais, quando necessrio, fez-se algum esclarecimento acerca de um

    vocbulo ou outro que acabou tendo uma traduo um pouco mais distante da que se

    consideraria literal.

    Esse molde para o projeto foi escolhido tendo em vista duas finalidades distintas

    e bem-estabelecidas: servir de introduo poesia grega a leigos e apontar algumas

    caractersticas do texto s quais nem sempre se atm os especialistas.

    A primeira dessas finalidades diz respeito traduo, que se espera, pela

    tentativa de recuperar um pouco da vivacidade do texto original, ser mais aprazvel e

    convidativa a um leitor que no tenha conhecimento de lngua grega o bastante para ler

    os originais de forma prazerosa.

    2 (...) de intensidade mdia, ou seja, entre as tnicas e as tonas (...) Sacconi (1998: 18).

  • 9

    H, com efeito, uma sria dificuldade em ler a poesia da Grcia Antiga. Em

    primeiro lugar, essa dificuldade se manifesta na distncia temporal que nos separa da

    realidade do povo que comps esses poemas. Para os gregos antigos, a poesia no era

    apreendida apenas como uma manifestao artstica e apreciada, desta forma, to-

    somente pela qualidade meldica e estilstica de seu contedo. Ela era, de fato, um

    elemento intrnseco vida cotidiana, permeando a maioria das atividades dos homens e

    delas sendo parte indissocivel, moldando-se, sempre, circunstncia em que era

    performada.3

    A dificuldade de ler esses poemas, contudo, no se limita apenas a esse

    problema contextual. A maior parte deles foi composta oralmente e idealizada para ser

    ouvida, e no lida.

    preciso, tambm, citar a ausncia de uma transcrio para o acompanhamento

    musical que era comum para a maioria desses poemas, uma vez que mesmo aqueles que

    no eram mais cantados, como a elegia, ainda assim possuam um complemento vindo

    da msica.4 Outros, alm disso, tambm eram acompanhados de certa coreografia,

    praticada por um grupo de danarinos.5

    3 A poesia grega foi um fenmeno profundamente diferente da poesia moderna no contedo, na forma e

    no modo de comunicao. Tinha um carter essencialmente pragmtico, no sentido de uma estreita

    correlao com a realidade social e poltica, e com concreta ao do individual na coletividade. Gentili

    (1951: 5).

    Homero revela-nos ainda outra raiz muito importante do canto, que, no devemos, contudo, considerar

    como nica: o canto que acompanha o trabalho. Quando deusas, como Calipso e Circe, cantam sentadas

    ao tear, agem como mulheres mortais, e, no escudo de Aquiles, um menino acompanha o trabalho da

    vindima com o canto de Lino. Os antigos conheciam cantos para quase todas as actividades desde a de

    tirar gua at de cozer o po. Um pequeno fragmento, uma canozinha lsbica para a moagem (Carm.

    pop. n 30 D), cuja antiguidade testemunhada pela meno de Ptaco, d-nos uma ideia de muitos cantos

    desaparecidos. Lesky (1995: 133).

    4 Havia tambm um msico chamado Sacadas de Argos, compositor de melodias e de dsticos elegacos

    postos em msica; pois, na origem, os msicos que se dedicavam ao aulos cantavam dsticos elegacos

    postos em msica, como o atesta o regulamento das Panatenias relativo ao concurso musical. Plutarque

    (1900: 24-5).

    5 A dana como linguagem do corpo a arte de mover o corpo humano em relao ao espao (imagem)

    e ao tempo (ritmo). Tinha, no mundo antigo, uma funo ritual, ldica e esttica: ritual, porque no havia

    uma cerimnia religiosa que no contemplasse uma execuo de orquestra; ldica, pelo prazer de quem a

  • 10

    Dessa forma, deve-se lembrar que ler a poesia grega uma tarefa feita ainda

    mais rdua por conta de tratar-se de um corpus permeado por canes cuja parte musical

    nos omissa.

    Essas canes pertenciam a diferentes subgneros, agrupados comumente sob a

    alcunha de lrica e que tinham seu prprio padro mtrico, contedo, ocasio de

    performance, tom e acompanhamento musical. Alguns eram acompanhados pela lira,

    outros pelo aulos, e havia aqueles que eram apenas recitados ou cantados de forma

    montona e sem acompanhamento.6

    No decorrer dos sculos, contudo, praticamente todas as notaes musicais

    existentes, as quais j no eram to numerosas, foram perdidas. As que chegaram a ns

    esto em fragmentos de difcil decodificao: entre outros problemas, o sistema usado

    na poca no dava conta de registrar notaes que consideramos fundamentais, como

    medidas de tempo, o que se pode explicar, provavelmente, pelo estabelecimento de

    ritmos e de acompanhamentos padres, os quais seriam de conhecimento popular, mas

    que foram aos poucos sendo mudados ou esquecidos pelo povo.7

    Assim, da mesma maneira como no se pode apreciar totalmente uma cano

    moderna se lhe tirarmos a melodia, certamente h inmeros elementos desses poemas

    que eram salientados e embelezados pela msica que os acompanhava, qual ns no

    temos acesso.

    Um ltimo resqucio dessa msica, no entanto, faz-se presente nos prprios

    poemas, na forma de sua sonoridade e cadncia rtmica.8 Por esse motivo, estudar e

    executava e de quem a observava; esttica, pela forma que o corpo humano animado a cada vez assumia

    em relao ao que estava sendo narrado, sem se considerar o outro aspecto, do exerccio de ginstica, que

    conferia ao corpo sade, beleza e harmonia. Gentili & Lomiento (2003: 77).

    6 Burstein, Pomeroy, Donlan, Roberts (1999: 116).

    7 Mulroy (1995: 9).

    8 (...) os poetas lricos e dramticos da poca clssica compunham a msica ao mesmo tempo que as

    palavras, e o cuidado extremo que eles conferiam forma mtrica prova que o ritmo do canto estava

    intimamente ligado ao ritmo do metro. Weil (1902: 139).

  • 11

    traduzir a poesia lrica grega levando em considerao esses elementos parece ter uma

    grande importncia, a fim de auxiliar os leitores a experimentarem ritmos no usuais em

    nossa lngua e se aproximarem dessa melodia fugaz.9

    Por fim, na tarefa de produzir uma traduo que mimetizasse de alguma forma

    essa poesia, foi preciso identificar quais os elementos poticos de cada texto e a maneira

    pela qual eles influenciam, acentuam ou transmutam o sentido imediato de cada

    passagem. Espera-se que o pouco de luz que se pde lanar nessas caractersticas sirva

    de aparato de pesquisa a estudiosos que busquem se aprofundar mais no sentido desses

    poemas.

    9 O ritmo provavelmente o nico trao de uma lngua estrangeira que ns nunca poderemos aprender a

    ouvir puramente. O ritmo e seu significado se encontram nas profundezas de ns mesmos. Eles so

    absorvidos nos hbitos do corpo e nos usos da voz junto de nossos aprendizados mais bsicos de ns

    mesmos e do mundo. O ritmo forma a sensibilidade, torna-se parte da personalidade; e o senso de ritmo

    de um indivduo modelado de uma vez por todas em sua lngua materna. Matthews (1966: 70).

  • 12

    II Sonoridade

    A grande literatura, dizia Pound, simplesmente linguagem carregada de

    sentido, no mais alto grau possvel.10 O autor afirmava ainda que, para atingir esse grau

    mximo de significao, um escritor recorre ao ritmo e ao som, a Melopia, criao de

    imagens simblicas, a Fanopia, e ao uso inusitado e ldico de palavras no s pelo seu

    significado imediato e primeiro, mas tambm pelas suas possveis interpretaes

    baseadas nos mais diversos usos que pode receber, a Logopia.11

    Pound cunhou essas trs denominaes a partir dos radicais gregos de poj, a

    palavra falada, de mloj, o canto, de fanw, fazer(-se) aparecer e de

    lgoj, que pode tanto indicar, entre outras coisas, o discurso, quanto a faculdade

    de raciocinar ou a prpria razo. Logo, por Melopia, pode-se entender a palavra

    cantada; por Fanopia, a palavra imagtica; e por Logopia, a palavra

    racionalizada.

    Um belssimo exemplo de Melopia, citado por Staiger12

    como modelar por seu

    ritmo e plasticidade, mas que tambm mpar em termos de sonoridade, o verso 149

    do Canto I da Ilada:

    dein d klagg gnet' rguroio bioo13

    Tambm se pode buscar em Homero um exemplo clssico de Fanopia, os

    versos 469-73 do Canto II da Ilada:

    te muiwn dinwn qnea poll

    10

    Pound (1976: 35).

    11 Pound (1976: 37-8).

    12 Staiger (1997: 97).

    13 No original, notvel a seqncia de sons de // em dein e klagg e a repetio do encontro

    voclico das palavras rguroio e bioo, alm da homofonia em /e/, presente na maioria das

    palavras do verso. Na traduo de Haroldo de Campos (2001: 33), Horrssono clangor irrompe do arco

    argnteo, h uma homofonia em /o/ que perpassa, com vivacidade, todas os vocbulos. As duas palavras

    encadeadas e iniciadas por [ar] no final do verso recriam, por sua vez, o som aberto de // do original.

  • 13

    a te kat staqmn poimnon lskousin

    rV n earin te te glgoj ggea deei,

    tssoi pi Tressi krh komwntej 'Acaio

    n pedJ stanto diarrasai mematej.14

    Por fim, um exemplo admirvel de Logopia pode ser visto no fragmento 6 de

    Arquloco, no qual o poeta propositalmente mistura o vocabulrio comumente destinado

    a relaes amistosas com o universo da guerra:15

    xenia dusmensin lugr carizmenoi16

    Essas trs funes poticas constituem, segundo Pound, as ferramentas bsicas

    de um poeta, no mbito das quais se encerram todos os artifcios e efeitos passveis de

    serem empregados e criados em um poema. por meio, pois, da incidncia simultnea

    dessas trs funes poticas que a grande poesia criada.

    Neste trabalho, vai-se privilegiar a Melopia como critrio mais freqente a ser

    examinado e recriado, ou compensado, na traduo aqui realizada. As outras funes

    poticas sero tambm trabalhadas, mas de forma secundria.

    Sendo, pois, a Melopia o principal foco de ateno deste trabalho, vejamos, de

    maneira extremamente sucinta, alguns elementos de estilstica referentes sonoridade,

    os quais foram, recorrentemente, identificados e, quando possvel, recriados ou

    compensados na traduo feita. Longe de se ter a inteno de produzir um manual

    minimamente satisfatrio neste assunto, tem-se aqui apenas o intuito de listar estes

    14

    Na traduo de Carlos Alberto Nunes (2001: 91):

    Do mesmo modo que enxames de moscas, de nmero infindo,

    pelos currais dos pastores volteiam, sem pausa nenhuma,

    na primavera, no tempo em que os jarros de leite transbordam:

    tantos guerreiros Aquivos, de coma flutuante, se viam

    pela plancie dos teucros, sedentos de a todos vencerem.

    15 O objecto visado pela conscincia atravs das palavras permanece o mesmo em ambas as linguagens.

    (...) O que muda no o objecto, mas o sujeito, a sua estrutura de recepo, o tipo de conscincia que

    apercebe o discurso. Cohen (1987: 155).

    16 Agraciando o inimigo com lgubres presentes de hospitalidade, numa traduo literal.

  • 14

    elementos para referncia rpida ao leitor no familiarizado, ou cuja memria por

    ventura vacile.

    Assonncia: repetio do mesmo som voclico em diferentes slabas, geralmente

    tnicas. Exemplos:

    Mosa tode to mleoj

    (Fragmento 728 de Timocreo)

    Dmhtroj gnj ka Krhj

    tn pangurin sbwn.

    (Fragmento 322 de Arquloco)

    e moi gnoito parqnoj kal te ka treina.

    (Fragmento 119 de Hipnax)

    Aliterao: repetio do mesmo som consonantal, geralmente no incio de palavras.

    Exemplos:

    Prokle Persedaj t' k Dij rcmenoi

    pnwmen, pazwmen: tw di nuktj oid

    (Fragmento Elegaco 27 de on de Quios)

    pukinj pmfigaj pimenoi

    (Fragmento 312 de bico)

    ptrw' mn ntqeon Melmpoda

    (Fragmento 228 de Estescoro)

    Homofonia: termo comumente empregado para identificar (...) a assonncia mais

    fugidia, que apenas se pode chamar de homofonia, e que no entanto permite uma grande

    eficcia potica.17 Exemplo:

    17

    Candido (2006: 64).

  • 15

    msJ mati nkta ginomnan

    (Fragmento 271 de Estescoro)

    n edetw sper Lsbioj Prlij.

    (Fragmento 41 de Semnides)

    Anfora: repetio de uma mesma palavra ou grupo de palavras no incio de versos ou

    frases em seqncia. Exemplos:

    ode tJ Knaklw

    ode tJ Nursla.

    (Fragmento 173 de lcman)

    qlw lgein 'Atredaj,

    qlw d Kdmon dein

    (Texto 23 das Anacrenticas)

    Poliptoto: repetio de um mesmo nome em casos diferentes, ou de um mesmo verbo

    com terminaes diferentes. Exemplos:

    Kleobolou mn gwg' rw

    KleobolJ d' pimanomai,

    Kleobolon d dioskw.

    (Fragmento 359 de Anacreonte)

    nn d Lefiloj mn rcei, Lewflou d' pikraten,

    LewflJ d pnta ketai, Lefilon d' koue.

    (Fragmento 115 de Arquloco)

    Paronomsia: uso de palavras de som ou grafia semelhante, mas com sentidos

    diferentes. Exemplos:

    t d drkwn dkhse molen kra bebrotwmnoj kron

    (Fragmento 219 de Estescoro)

  • 16

    ka sma Ggew ka megstru stlhn

    ka mnma Twtoj, Mutlidi plmudoj

    (Fragmento 42 de Hipnax)

    Ao longo deste trabalho, portanto, ser comum encontrar menes freqentes ao

    aspecto sonoro de uma palavra ou de um verso, bem como a maneira com que a

    sonoridade desses fonemas, em conjunto, altera ou refora o sentido de um ou mais

    vocbulos. Por conta disso, aqui se encontra um breve resumo a esse respeito, com o

    intuito de servir de referncia rpida e tambm de fundamentao bsica para as

    recorrentes visitas a esse assunto.

    Antes de mais nada, h uma distino muito importante que se deve fazer, como

    ressalva Antonio Candido (2006: 50), com relao Teoria de Grammont de que h

    uma correspondncia entre a sonoridade das palavras e o sentimento por elas expresso.

    Essa distino diz respeito ao fato de que um mesmo som pode servir para evocar

    sentimentos opostos, como o caso das vogais agudas que, segundo o autor, podem

    servir tanto para exprimir dor e desespero quanto alegria (2006: 56).

    Essa discrepncia, aparentemente ilgica, se explica pelo fato de que os sons

    podem ter seus valores alterados pelo contraste com outros sons, alm da cadncia e do

    volume do fraseado em que se inserem. Como afirma Antonio Candido, (...) o efeito

    total freqentemente devido combinao de efeitos parciais, cujo acmulo e

    combinao definem o rumo geral da expressividade, sempre sob a orientao da

    idia.18

    Desse modo, bastante subjetivo e varivel o valor que se pode dar a um som

    isolado, uma vez que sua natureza, quando em meio a outros sons, extremamente

    voltil e instvel. Isso especialmente verdadeiro em relao s vogais, que podem

    transmitir idias no s variadas, como muitas vezes opostas.19

    18

    Candido (2006: 57).

    19 Antonio Candido (2006: 54) cita, entre outros, os seguintes exemplos de sons voclicos semelhantes

    inspirando sentimentos opostos:

    Tout mafflige et me nuit, et conspire me nuire. (Racine)

  • 17

    Por esse motivo, sero deixados de lado aqui os sons voclicos, os quais, ao que

    nos parece, merecem um estudo mais aprofundado,20

    dando-se preferncia a

    exemplificar os efeitos das consoantes, cuja influncia nas palavras em um verso mais

    estvel e passvel de ser fundamentada.

    As consoantes podem ser divididas, segundo Sacconi (1998: 19), de acordo com

    quatro critrios distintos, dos quais trs so de grande interesse para o presente estudo.

    O ltimo desses critrios, o do ponto de articulao dos fonemas, de interesse

    secundrio, sendo mais til como fator distintivo entre os membros de um mesmo

    grupo de modo de articulao.

    i) Quanto ao papel das cavidades bucal e nasal:

    Os nicos sons consonantais em Grego antigo que recebem nasalizao so os

    fonemas /m/ e /n/ quando precedem vogais, tal qual no exemplo a seguir (Fragmento 16

    de Safo):

    ..]me nn21 'Anaktor[aj ]nmnai-

    s' o] pareosaj

    A caracterstica principal dos sons nasais a de expandir o volume dos sons.

    Dir-se-ia que lhes conferem uma forma mais arredondada, se se permitir uma abstrao

    um tanto quanto paradoxal, porm eloqente. Podem ser encontrados com facilidade em

    versos de teor amoroso ou ertico, talvez por estarem inconscientemente associados ao

    som proveniente de um fraco gemido. De outra forma, tambm podem enfatizar o tom

    lnguido de um verso.

    Il est doux dcouter les soupirs, les bruit frais. (Hredia)

    20 A Introduo Estilstica (1989: 29-33) de Nilce SantAnna Martins possui um estudo um pouco mais

    pormenorizado do assunto.

    21 Apesar de, neste caso, no haver uma vogal depois do ltimo n em nn, este era provavelmente lido

    em seqncia com a vogal da prxima palavra. Em casos separados, porm, o som deste ltimo n no

    seria nasalizado.

  • 18

    Por exceo, todos os demais sons do Grego so relegados a um mesmo grupo,

    quando se toma esse fator de distino como elemento classificatrio, de modo que a

    no-nasalizao no tem por si s um carter especfico.

    ii) Quanto ao papel das cordas vocais:

    As consoantes podem ser surdas ou sonoras com relao ausncia ou

    presena de vibrao nas cordas vocais por fechamento da glote durante sua pronncia.

    Os sons consonantais sonoros do Grego antigo so: /b/, /d/, /m/, /n/, /g/, /l/, /z/

    (encontrado em geral como o [zd] proveniente de z). Os demais fonemas (/t/, /th/, /k/,

    /kh/, /p/, /ph/, /r/ e /s/) so todos surdos.

    Em geral, as consoantes surdas se prestam a uma sonoridade mais sbria, ao

    passo que as sonoras conferem maior vivacidade passagem em que se encontram,

    como se pode perceber nos exemplos abaixo (ambos do texto 28 das Anacrenticas):

    Fsij krata taroij

    lousi csm' dontwn

    iii) Quanto ao modo de articulao:

    Dividem-se, pelo modo de articulao, os sons consonantais, primeiramente,

    entre oclusivos e constritivos.

    So considerados oclusivos os fonemas cuja pronncia envolve um fechamento

    completo do fluxo de ar seguido de uma liberao repentina e marcante. Dentre eles, os

    de carter mais explosivo so as bilabiais /p/ e /b/, seguidas pelas velares /k/, /kh/ e /g/,

    e, por fim, pelas linguodentais /t/, /th/ e /d/.

    De maneira mais ou menos marcante, de acordo com a graduao apresentada

    acima, esses sons, quando aliterados, fazem com que o ritmo de um verso se torne mais

    pausado, por vezes agregando uma solenidade maior ao texto, mas tambm servindo

  • 19

    para, entre outros fins, acentuar o efeito de clera ou de escrnio de uma passagem,

    como se pode notar nos exemplos abaixo:

    ti d t]traton e tij r-

    q qej] elke Dkaj tlan[ta,

    Deinomnej k' gera[r]omen un.22

    (Quarto Epincio de Baqulides)

    Kh a me proslqe fluara ok qlonta:

    o qlont me proslqe Kh a fluara.23

    (Fragmento 10 de Timocreo)

    De outro lado e tendo efeito geralmente oposto, encontram-se as consoantes

    constritivas, cuja pronncia se baseia na limitao da passagem do ar entre diferentes

    pontos do aparelho fonolgico. No Grego antigo, elas se restringem a /r/, /l/, /s/ e /z/.

    Grosso modo, as consoantes constritivas tm o efeito de suavizar o verso,

    harmonizando-se com as vogais em uma tonalidade difana, como no exemplo abaixo:

    calssomen d tj qumobrw laj24

    (Fragmento 70 de Alceu)

    interessante notar ainda a possibilidade, passvel de ser vista no exemplo

    apresentado acima, de oclusivas como /kh/ e /th/ se amenizarem, de modo a seu valor

    aspirado sobressair-se a seu fator oclusivo.

    22

    Uma quarta vez estaramos honrando

    O filho de Deinomenes se algum deus

    Estivesse segurando a balana da Justia.

    23 Banalidades da Cia vieram a mim contra minha vontade;

    Contra minha vontade vieram a mim banalidades da Cia.

    24 Relaxemos da disputa que consome o corao.

  • 20

    A lquida /r/, no entanto, quando sucede ou antecede diretamente uma consoante

    oclusiva, tem em geral o efeito de intensificar o peso da consoante do outro tipo, por

    conta de seu carter vibrante, como no caso abaixo:

    porfur t' 'Afrodth

    (Fragmento 357 de Anacreonte)

  • 21

    III Ritmo

    A primeira e mais notvel distino que se estabelece, do ponto de vista mtrico,

    entre o Grego antigo e as lnguas romnicas atuais diz respeito ao uso de um mtodo

    quantitativo de anlise das slabas poticas. Em vez do modelo com que estamos

    familiarizados e no qual se diferenciam as slabas poticas de um texto levando em

    considerao seu grau de tonicidade, o Grego tinha como critrio, para diferenciar as

    slabas poticas de um verso entre si, o tempo que se levava para pronunci-las, que

    podia ser maior ou menor.

    Essa caracterstica da metrificao grega, naturalmente, reflete uma

    particularidade da prpria lngua helnica antiga, uma vez que nela no havia uma

    distino entre slabas tnicas e tonas, e sim entre slabas longas e breves.

    Faz parte do campo de estudo da Prosdia a anlise da quantidade de slabas em

    um perodo, onde a durao quantitativa de uma slaba breve se indica por um tempo ou

    mora, e a de uma longa por dois tempos ou morae.25

    Estima-se, contudo, que a durao

    de uma slaba longa, comparada a de uma slaba breve, estivesse na proporo de 5:3.26

    De forma simplificada, uma slaba ser, geralmente, longa quando possuir uma

    vogal longa27

    ou um ditongo, ou quando houver duas consoantes em seqncia entre seu

    final e o comeo da prxima slaba. H inmeras excees e casos parte que devem

    ser estudados separadamente, mas, sabendo-se essas regras gerais, possvel escandir

    versos em grego antigo sem muita dificuldade.

    Em uma escanso ou em uma estruturao rtmica, emprega-se o smbolo

    para identificar e representar as slabas longas, e o smbolo , para as breves. H,

    ainda, um terceiro tipo importante de posio comumente assinalado na metrificao

    grega, o qual se denomina anceps e se simboliza com um . Sua funo a de indicar

    25

    Gentili (1951: 5).

    26 West (1987: 6).

    27 As vogais h e w so longas por natureza.

  • 22

    que uma determinada posio do verso pode ser ocupada tanto por uma slaba longa

    quanto por uma slaba breve.

    Desta forma, sabendo diferenciar as slabas longas das breves e como assinal-

    las, podemos escandir o verso de Tirteu abaixo:

    ot' / n / mnh / sa / mhn / ot' / n / l / gwi / n / dra / ti / qe / hn

    Assim como aconteceu, acima, slaba gwi de ser lida como breve por

    necessidades mtricas, tambm pode ocorrer de uma slaba breve ser lida como longa no

    verso pela mesma razo.28

    Em nossa lngua, mesmo que se considerem vlidas para metrificao as slabas

    subtnicas de uma palavra, elas muitas vezes no tero o efeito desejado dentro de um

    verso, por serem, isoladamente, menos acentuadas do que as slabas tnicas por

    natureza. Em grego, contudo, por conta do uso do sistema quantitativo descrito acima,

    uma mesma palavra podia ter mais de uma slaba longa, como visto no exemplo

    escandido, no havendo grandes distines entre as slabas de mesmo tipo dentro de um

    verso ou mesmo dentro de uma nica palavra. O resultado, como se pode esperar, que

    havia uma facilidade maior de empregar padres mtricos complexos, facilidade essa

    que era expandida ainda mais pela possibilidade de ocorrncia de dois fenmenos,

    denominados respectivamente contrao e resoluo.

    O primeiro pode ocorrer quando h, no esquema mtrico, duas posies breves

    antes de uma longa. Trocam-se, ento, essas posies por uma longa. A resoluo, por

    sua vez, consiste na substituio de uma posio longa por duas breves, sendo que a

    condio bsica para sua ocorrncia a de que essa posio longa no seja a ltima de

    seu tipo no perodo.29

    Tendo em mente que o metro do verso apresentado acima fixo e

    28

    Ver West (1987) e Gentili (1951) para as ocasies em que esse fenmeno pode ocorrer.

    29 West (1987: 6).

  • 23

    que permite contrao em todos os ps,30

    podemos voltar agora a seu exemplo de

    escanso e identificar, com o smbolo , as slabas longas que foram originadas a

    parte da contrao de duas slabas breves subseqentes e contraveis, chamadas bceps:

    ot' / n / mnh / sa / mhn / ot' / n / l / gwi / n / dra / ti / qe / hn

    Tem-se, portanto, como unidade mnima, em metrificao grega, a mora, ou a

    durao temporal de um fonema. Derivando disso, a prxima unidade com que se

    trabalha, numa sucesso de grandezas, seriam as slabas, que se constituem e se

    diferenciam, entre longas e breves, de acordo com sua durao temporal. Em seguida,

    entrando mais a fundo no territrio do ritmo, tem-se o p, que nada mais do que uma

    combinao padro de slabas longas e breves.

    Versos inteiros, ou mesmo poemas, podem ser constitudos simplesmente pela

    justaposio de palavras cujas slabas poticas, em sucesso, criam uma torrente

    ininterrupta de um determinado p. O resultado disso, como se pode imaginar no

    entanto, seria um ritmo por demais marcado e montono. Por isso, quando lidando com

    um tipo nico de p, algumas licenas, precisam ser tomadas, a fim de variar mesmo o

    mais rgido dos metros, para que a beleza e a magia do ritmo no se transformem em

    uma repetio mecnica e fria.

    Talvez se possa supor que tenha sido da padronizao das licenas tomadas, ou

    no, quando empregando metros criados com um ou outro p que tenha surgido o

    metron, o qual, geralmente, se constitui de um ou dois ps justapostos, com ou sem

    alguma variao interna que possibilite uma distino pontual no andamento do verso.

    Desta forma, um p trocaico, que se cria pela seqncia de uma slaba longa e de

    uma breve, ter o seguinte metron:

    30

    exceo do ltimo, cuja segunda e ltima posio na verdade um anceps, como se ver na seo

    mtrica dedicada ao Dstico Elegaco, e do terceiro p quando a cesura no se encontra logo depois de sua

    slaba longa inicial.

  • 24

    Em alguns casos, como aparece no hexmetro dactlico, o metron equivale

    prpria extenso do p, de modo que esse verso se caracteriza, simplesmente, pela

    justaposio de seis dctilos. Essa aparente simplicidade, no entanto, logo descartada

    quando se tem em mente a possibilidade de contrao das slabas breves do dctilos, a

    existncia de uma ou mais cesuras no verso em posies diferentes, alm de outras

    peculiaridades que sero analisadas um pouco mais detalhadamente no captulo que diz

    respeito a esse metro. Algumas caractersticas, por outro lado, podem ser vistas aqui,

    por conta de serem mais gerais e dizerem respeito a toda sorte de metros.

    Em primeiro lugar, cabe aqui um comentrio a respeito da natureza geral do

    ritmo criado pela mtrica particular de um poema. H, primordialmente, dois tipos

    bsicos de ritmo em poesia, os quais podem se misturar e variar para criar composies

    mais complexas: o ritmo ascendente (jambo, anapesto, etc) e o ritmo descendente

    (troqueu, dctilo, etc).

    Como se pode talvez j antecipar, o ritmo ascendente tem uma facilidade maior

    para criar uma atmosfera mais vvida e para indicar alegria, ao passo que o ritmo

    descendente se associa com maior facilidade a temas de maior sobriedade e

    melancolia. Os poemas cujo contedo se harmoniza diretamente com o ritmo vo, em

    geral, direto ao cerne do sentimento que exprimem e buscam potencializ-lo ao

    mximo. Vejamos alguns exemplos:

    Salve, lindo pendo da esperana,

    Salve, smbolo augusto da paz!

    (Olavo Bilac, Hino Bandeira)

    Alvorada l no morro, que beleza.

    Ningum chora, no h tristeza.

    Ningum sente dissabor.

    (Cartola, Alvorada)

    Quanto mais desejo ver-vos,

  • 25

    Menos vos vejo, Senhora.

    (Cames, Ana quisestes que fosses)

    Tyger! Tyger! burning bright

    In the forests of the night

    (William Blake, The Tyger)

    Por outro lado, quando o ritmo adotado em um poema contrrio ao sentimento

    expresso nele, resulta-se um estranhamento que pode indicar, reforar ou prenunciar a

    dualidade ou ambigidade do tema enunciado. Exemplos:

    um contentamento descontente.

    (Cames, Soneto 11)

    Cavaleiro das armas escuras,

    Onde vais pelas trevas impuras

    Com a espada sanguenta na mo?

    (lvares de Azevedo, Meu Sonho)

    Belo belo minha bela

    Tenho tudo que no quero

    (Manuel Bandeira, Belo Belo)

    Quando passas, to bonita

    Nessa rua banhada de sol

    Minha alma segue aflita

    E eu me esqueo at do futebol.

    (Tom Jobim, Falando de Amor)

    Em segundo lugar, interessante fazer um breve esclarecimento a respeito da

    natureza da cesura. Esse artifcio nada mais do que uma conveno, estabelecida com

    fins rtmicos, de fazer com que certa posio num verso coincida com o final de uma

    palavra, de modo a criar uma pausa no andamento do texto e a dividir o verso em

    hemistquios. A observao de Emil Staiger a respeito da cesura no hexmetro dactlico

  • 26

    parece ser muito esclarecedora de sua importncia rtmica: Como uma pequena barra a

    cesura parece suster o verso, para que uma torrente ininterrupta de dctilos no o leve

    consigo.31

    Alm da cesura, uma ltima caracterstica que deve ser assinalada a

    semelhana entre um fenmeno da metrificao em lngua portuguesa que pode ser

    notado, com alguma variao, tambm em Grego. Quando contamos as slabas poticas

    de um verso, geralmente, ignoram-se todas as slabas tonas que seguem aps a ltima

    slaba tnica. Na metrificao grega, as posies breves aps a ltima posio longa no

    precisam, na maioria dos metros, ser preenchidas. Disso, decorre um verso ser

    cataltico, quando tem slabas a menos do que o esperado, ou acataltico, quando todas

    suas posies so devidamente ocupadas. H, ainda, a ocorrncia de versos

    hipercatalticos, ou seja, com uma ou mais slabas poticas do que o esperado.

    Por fim, segue uma relao dos smbolos empregados, neste trabalho, para a

    marcao mtrica e rtmica:

    Slaba longa

    Slaba breve

    Slaba geralmente longa

    Slaba geralmente breve

    Anceps

    Base elia

    Bceps contravel

    Bceps contrado

    Longa Resolvvel

    Longa Resolvida

    Jambo

    Troqueu

    Periambo

    Espondeu

    31

    Staiger (1997: 96).

  • 27

    Dctilo

    Anapesto

    Ocorrncia de cesura

    Geralmente h cesura

    Maior/menor probabilidade de cesura /

    Fim de perodo

    Fim de estrofe

  • 28

    IV Mtodo de Traduo

    O sistema proposto por Pound e mencionado no tpico anterior plenamente

    capaz de auxiliar-nos a delimitar o mbito de nossa traduo potica e um mtodo com

    que nos guiarmos e que estabelea os elementos aos quais o trabalho de traduo

    atentar.32

    Aplicando-o a nosso intento, nada mais certo seria do que dizer que o

    objetivo da traduo que se far o de criar uma experincia comparvel33 ao

    original, na qual estejam presentes as trs funes poticas assinaladas por Pound na

    medida em que apaream no texto a ser traduzido sob a forma da musicalidade, do

    contedo imagtico e do sentido.

    A perfeio terica desse sistema, no entanto, inviabiliza seu uso sem que se

    faam algumas consideraes mais aprofundadas, partindo do princpio pragmtico de

    que quase nunca ser possvel traduzir todos os elementos poticos de um texto. Em

    primeiro lugar, portanto, preciso definir o que o objeto da traduo, para escolher

    quais de suas caractersticas so fundamentais na sustentao de sua existncia e de seu

    status enquanto poesia.

    Seria demasiadamente ambicioso e at mesmo tolo acreditar que se poderia

    resgatar inclume a inteno original do poeta e, a partir da, basear o foco do trabalho

    de traduo. J bastante difcil adivinhar alm de ser um esforo mais do mbito do

    vaticnio do que da teoria literria a inteno dos poetas mais prximos de ns tanto

    no aspecto temporal quanto espacial. Quem dir daqueles que viveram h quase trs mil

    anos atrs em uma realidade completamente adversa nossa?

    32

    Decidir traduzir um poema , no incio, uma questo de perceber ao qu o tradutor espera ser fiel.

    Matthews (1966: 67).

    Traduzir significa sempre cortar algumas das conseqncias que o termo original implicava. Nesse

    sentido, ao traduzir no se diz nunca a mesma coisa. A interpretao que precede cada traduo deve

    estabelecer quantas e quais das possveis conseqncias ilativas que o termo sugere podemos cortar. Sem

    nunca estarmos completamente seguros de que no perdemos uma reverberao ultravioleta, uma aluso

    infravermelha. Eco (2007: 107).

    33 No uma representao, em qualquer sentido formal, mas uma experincia comparvel. Fitts (1966:

    34).

  • 29

    De uma forma ou de outra, no entanto, preciso definir o que aquilo que se ir

    traduzir, a fim de criar um caminho para faz-lo. Devemos, ento, ater-nos aos

    elementos que nos so perceptveis, como aqueles pertencentes s trs esferas tratadas

    anteriormente, e imagem sensvel que o conjunto desses elementos cria e suscita em

    nossas psiques ao lermos o poema.

    A traduo um ato de interpretao e a interpretao feita por meio de uma

    traduo potica deve ser um ato de poesia.34

    Na impossibilidade mencionada

    anteriormente de verificar o que se passava na mente do poeta no momento de

    composio da obra, resta-nos estudar aquilo que povoa nossas mentes ao ler seu

    trabalho. Dentre todas as imagens possveis criadas pelo poema, h sempre uma central

    e primeira, que se estabelece pela unio imediata do plano do sentido com o plano da

    musicalidade, e partir da qual as demais impresses se originam.

    Nessa imagem primeira, que se confunde muitas vezes com a interpretao dita

    mais superficial ou banal, que esse trabalho tentar focar-se, na esperana de que, ao

    aproximar-se da imagem central do poema e ao recriar seus elementos poticos

    principais,35

    no elimine muitos dos caminhos existentes no original para as demais.

    Uma vez definido o que o objeto de nossa preocupao, passemos agora para a

    maneira pela qual se tratou esse objeto na tarefa de resgatar algo de sua essncia durante

    o processo de traduo.

    Em primeiro lugar, quando havia a necessidade de escolher entre manter um

    efeito potico e fazer uma correspondncia um pouco mais acertada na traduo, foi

    prefervel empregar vocbulos menos literais e tentar salvar a poeticidade do texto.

    Como exemplo disso, vejamos esse verso do Fragmento 1 de Mimnermo e sua

    traduo, tal qual aparece neste trabalho:

    34

    Ele precisa ser tanto um poeta quanto um intrprete. De forma mais direta, sua interpretao precisa

    ser um ato de poesia. Fitts (1966: 34).

    35 O tradutor precisa inventor efeitos formais em sua prpria lingua que dem uma impresso semelhante

    quela produzida pelos efeitos do original. Isso trabalhar por analogia. Matthews (1966: 67).

  • 30

    ll' cqrj mn paisn, tmastoj d gunaixn

    odioso aos jovens e infame aos olhos das moas.

    O texto original possua uma bela assonncia entre paisn e gunaixn,

    criando uma rima interna ao final de cada hemistquio do verso. Na impossibilidade de

    criar um efeito mais parecido, tentou-se compens-lo com assonncias em // e //,

    traduzindo gunaixn, que literalmente seria s moas, pela metonmia aos olhos

    das moas.

    No caso acima, trabalhou-se, em parte, por recriao, pela similaridade entre a

    natureza dos dois efeitos, e, em parte tambm, por compensao, visto que os efeitos

    tm, certamente, uma discrepncia entre si, no havendo uma correspondncia mais

    acurada. Neste trabalho, essas foram as duas formas principais de reproduzir a

    poeticidade do texto original no texto traduzido. Elas variam livremente, de acordo com

    a necessidade encontrada em cada caso especfico.

    Em segundo lugar e como mencionado anteriormente, nos momentos em que foi

    preciso escolher entre traduzir um efeito ou outro, foi dada prioridade a traduzir os

    efeitos poticos do texto que contribuam mais ativamente para, de alguma forma,

    modificar ou acentuar as possibilidades de significncia do poema.36

    Um exemplo disso pode ser visto na maneira pela qual se traduziu o primeiro

    verso do Fragmento 5 de Arquloco:

    spdi mn Sawn tij glletai, n par qmnJ,

    Com meu escudo um saio se ufana, o qual junto moita,

    36

    No h eufonia ou cacofonia em si, a no ser em funo do contedo semntico. Mais precisamente, a

    harmonia s experimentada sob os auspcios da expressividade, e a expressividade ajustada ao

    sentido. Dufrenne (1969: 77).

  • 31

    No caso apresentado acima, o vocbulo spdi encontrava-se em posio de

    destaque no incio do verso inicial do poema. As nicas maneiras de traduzir esse efeito

    envolveriam quebrar a lgica de apresentao do poema, fazendo com que o eu-lrico se

    reportasse ao escudo na segunda pessoa do singular, por exemplo. Isso adulteraria o

    formato escolhido pelo poeta para expor as idias do poema e, certamente, representaria

    uma quebra muito grande com a forma do poema original. Por conta disso, foi

    necessrio deixar de lado esse efeito potico e no recri-lo.

    Uma outra caracterstica a que se atentou foi a de buscar ao mximo respeitar a

    integridade dos versos, especialmente quando se tratar de casos em que essa integridade

    relevante ao sentido. Ou seja, sempre que possvel e relevante, tentou-se traduzir as

    palavras sem mud-las de um verso para o outro.

    Como exemplo disso, vejamos o seguinte verso do Fragmento 1 de Mimnermo e

    sua respectiva traduo:

    tj d boj, t d terpnn ter crusj 'Afrodthj;

    Que existncia e prazeres, na ausncia da urea Afrodite?

    No caso em questo, o verso hexamtrico possua uma unidade coesa e perfeita

    no texto grego, formando um todo por si s. Quebr-lo em mais ou menos de um verso,

    seria, certamente, um rompimento severo na relao da traduo com o objeto

    traduzido. Ademais, seria perdida a beleza do hexmetro perfeitamente concebido e

    autnomo, tal qual figura no original.

    Da mesma forma, a traduo foi feita em um padro mtrico que se assemelhe

    em algo com o do original, seja pela extenso ou pela cadncia. Essas so normas auto-

    impostas para evitar que o trabalho fuja do mbito da traduo para aquele da recriao

    livre.37

    37

    O mtodo de verso-a-verso e a base mtrica original ajudam tambm a impedir a traduo de vagar

    rumo variao livre, a qual deve ser feita por deliberao prpria e no por deslize. Aqui onde comeo

    e onde devo agora terminar. Lattimore (1966: 56).

  • 32

    Retomando o exemplo anterior, podemos observar abaixo a tentativa de criar o

    ritmo do hexmetro, fazendo uma correspondncia entre as slabas longas do Grego e as

    tnicas do Portugus:

    tj / d / b / oj, / t / d / terp / nn / ter / cru / sj / 'A / fro / d / thj;

    Que / e / xis / tn / cia e / pra / ze / res, / na au / sn / cia / da / u / rea A / fro / di / te?

    Aps a cesura, o segundo hemistquio um tanto quanto diferente, pela opo de

    no empregar espondeus na traduo. O padro empregado para esses hexmetros o

    mesmo que Carlos Alberto Nunes utilizou em suas tradues da Ilada e da Odissia.

    A possibilidade de correspondncia entre as slabas longas de lnguas clssicas,

    como o Latim e o Grego, e as slabas tnicas de lnguas modernas, como o Portugus e

    o Ingls, no de modo algum uma inovao. Com efeito, o prprio fato de serem

    empregados os mesmos, ou semelhantes, termos para designar e nomear os diferentes

    tipos de ps e metros nesses dois modos diferentes de apreenso do ritmo certamente j

    nos serve de evidncia de que eles possuem alguma similaridade entre si. Essa

    semelhana se d no campo rtmico, uma vez que cada sistema, independente da forma

    empregada para marcar a cadncia da fala, produz um ritmo baseado na repetio

    regular de sua caracterstica marcante e distintiva.38

    A partir disso, a possibilidade ou impossibilidade de recriar um ritmo de outra

    lngua, alheio ao cnone de ritmos provados possveis ao longo dos sculos em nossa

    lngua, depende to-somente de haver palavras que possam ser combinadas de modo a

    38

    A noo de repetio regular central para nosso entendimento de ritmo. Qualquer fenmeno que

    exiba periodicidade pode ser chamado de rtmico, independentemente de qualquer evidncia dessa

    periodicidade ser acessvel nossa percepo. Hasty (1997: 4).

  • 33

    mimetizar a nova cadncia por meio das caractersticas distintivas de ritmo existentes na

    lngua de chegada.39

    No caso da traduo, no entanto, h muitas vezes uma dificuldade extra

    dependendo do grau de compromisso que o tradutor tenha estabelecido a priori com a

    forma e o contedo do texto original. Assim, por mais que haja palavras em Portugus

    que, justapostas em uma frase, produzam um ritmo mais complicado, esse ritmo talvez

    se mostre impossvel de ser alcanado durante um trabalho de traduo que no queira

    entrar no mbito da recriao livre.

    Neste trabalho, houve alguns casos que se enquadram no cenrio descrito acima.

    Mesmo assim, buscou-se um padro mtrico mais ou menos parecido, seja pela

    extenso puramente dita, com um nmero semelhante de slabas poticas, ou pela

    cadncia dos versos, buscando recriar quando possvel o padro pelo qual se repetiam as

    slabas marcantes do texto original. Esse ltimo caso onde se enquadra o mtodo

    empregado para criar um padro mtrico com que traduzir a poesia de Pndaro, tal qual

    se descreve no captulo que lhe diz respeito.

    Por fim, foi prefervel, de forma geral, traduzir eptetos e outros termos

    compostos do Grego por perfrases, para evitar que se causasse um estranhamento no

    leitor ao ver um nmero muito grande de termos cunhados a partir do Grego. Em alguns

    casos, no entanto, quando parecia interessante ao ritmo ou sonoridade, por exemplo,

    foram empregados eptetos compostos, como dedirrsea, para designar a Aurora.

    39

    Toda lngua tem suas prprias formas, existentes e possveis: aquelas que os poetas j encontraram e

    usaram, e aquelas ainda a serem descobertas. As formas vm dos sons, ritmos, significados, e de todas as

    relaes que os poetas conseguem descobrir entre essas e trazer para a existncia perceptvel. o trabalho

    dos poetas encontrar as combinaes, e isso signifca invent-las. Matthews (1966: 68).

  • 34

    Dstico Elegaco

    Segundo West, Por elegia, denota-se uma tradio potica, em metro elegaco,

    na qual o poeta discursa por meio de sua prpria pessoa, geralmente dirigido a um

    interlocutor especfico e no contexto de uma ocasio particular de interao.40 A elegia

    se prestava, em geral, a uma meditao do poeta a respeito de um determinado assunto,

    o qual era de interesse do pblico por fazer parte das questes caras ao pensamento da

    poca. Para esse fim, o ritmo dactlico empregado era extremamente eficaz, criando um

    andamento sereno e quase marcial.41

    De acordo com Dihle, no entanto, o termo elegia no de origem grega, sendo

    que, at o perodo clssico, palavras que lhe eram etimologicamente relacionadas ainda

    pertenciam ao vocabulrio do lamento fnebre, legoj. Por conta disso, imagina-se

    que, talvez, a elegia tenha tido como ocasio de performance e objeto de composio

    inicial o lamento fnebre. Essa teoria se mostra possvel pela existncia de um

    fragmento como o de nmero 13 de Arquloco, em que o poeta lamenta a morte de

    homens em um naufrgio.42

    Quanto sua estrutura formal, o dstico elegaco constitudo pela seqncia de

    um verso composto em hexmetro dactlico e outro verso criado a partir de dois

    hemistquios deste mesmo metro justapostos, os quais muitas vezes so chamados, sem

    grande preciso, de pentmetro apenas por convenincia e praticidade.

    O hexmetro dactlico, como o prprio nome indica, estrutura-se por meio de

    seis ps de dctilos, podendo haver contrao nos cinco primeiros ps, cujo ltimo

    necessariamente cataltico, ou seja, termina incompleto, com um troqueu ou com um

    espondeu.

    O hexmetro o metro com o qual se compuseram os poemas da pica grega.

    Por conta disso, os poemas mais antigos que tambm o empregam, seja em sua

    40

    Traduzido de West (1974: 2).

    41 Os ritmos do gnero constante, dctilos e anapestos, do ao ouvido e ao esprito um sentimento de um

    equilbrio particularmente agradvel: neles, o andamento era regular e harmonioso. Croiset (1890: 2 ).

    42 Dihle (1994: 33).

  • 35

    totalidade ou parcialmente, maneira do dstico elegaco, acabam por emprestar as

    frmulas da pica em sua composio. Esse fato facilmente observvel, por exemplo,

    em alguns poemas de Arquloco e Tirteu.

    Abaixo, podem-se examinar as duas estruturas mais comuns do hexmetro

    dactlico grego:

    Como um exemplo ilustrativo dessa estrutura mtrica, vejamos a seguir a

    escanso de um verso inicial de um poema de Slon (Fr. 9):

    k / ne / f / lhj / p / le / tai ci / / noj / m / noj / / d / ca / l / zhj,

    H sempre uma cesura necessria no hexmetro dactlico grego, a qual se

    estabelece aps a primeira slaba do terceiro p, como no exemplo acima, ou aps a

    segunda, como mais comum, na proporo 4:3.43

    Optou-se por traduzir esse primeiro

    verso do dstico elegaco na forma de um hexmetro dactlico sem cesura mandatria,

    como o empregado, tambm em lngua portuguesa, por Carlos Alberto Nunes em suas

    tradues da Ilada e da Odissia. Em alguns casos, poder estar presente a cesura, mas

    preferiu-se optar por uma maior flexibilidade, no adotando a cesura obrigatria. Pelo

    mesmo motivo, o ltimo verso dos hexmetros, na traduo, nem sempre ser cataltico.

    Deixando, por enquanto, o hexmetro de lado, observemos agora a estrutura

    padro de seu pentmetro:

    43

    West (1987: 19).

  • 36

    Como se pode ver, o primeiro hemistquio do pentmetro do dstico elegaco

    possui uma estrutura idntica do hexmetro. Contudo, o segundo hemistquio tem uma

    conformao mais rgida, no permitindo a contrao de nenhum bceps.

    Continuando no verso seguinte do mesmo poema de Slon, vejamos a escanso

    de um pentmetro, onde se podem perceber, nos dois primeiros ps, exemplos de

    contrao:

    bron / t / d' k / lam / prj gg / ne / tai / s / te / ro / pj:

    Como dito anteriormente, os hexmetros do dstico elegaco sero traduzidos por

    hexmetros dactlicos em nossa lngua, ou seja, versos de dezesseis slabas com acentos

    na primeira, quarta, stima, dcima, dcima terceira e dcima sexta slaba, sem cesura

    obrigatria. Para a traduo dos pentmetros, sero usados dois hemistquios de

    hexmetro do mesmo tipo, os quais tero, necessariamente, uma cesura. Como

    resultado, ser criado um verso de quatorze slabas com acentos na primeira, quarta,

    stima, oitava, dcima primeira e dcima quarta slaba. A seguir, para exemplificar, h a

    traduo desse dstico inicial do poema de Slon:

    1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16

    Par / te / das / nu /vens / o / vi / o / da / ne / ve e / da / chu /va / de / pe / dras.

    1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14

    Bra / me o / tro / vo / de um / lam / pe jo ir / ra / di / an / te / sur / gi / do.

    Pode-se ver a cesura cortando o segundo verso no final do vocbulo lampejo,

    de modo que o segundo hemistquio de tal verso foi, necessariamente, iniciado por uma

    vogal acentuada. Dessa forma, criou-se uma cesura induzida pela utilizao da sinalefa

    entre lampejo e irradiante. A leitura dessa passagem deveria se dar, mais ou menos,

    da seguinte maneira: Brame o trovo de um lampej-irradiante surgido, sem uma pausa

    maior do que a normal entre lampejo e irradiante. Assim, ainda que a cesura no se

    localize no final da palavra escrita, ela se estabelece no fim da imagem sonora do

    vocbulo final do primeiro hemistquio.

  • 37

    Na traduo dos pentmetros do dstico elegaco, sero utilizadas apenas cesuras

    naturais, aquelas em que o vocbulo que corta o verso oxtono, ou cesuras induzidas,

    como a do exemplo anterior, sendo os dois tipos de cesura comumente aceitos em nossa

    lngua.44

    44

    No alexandrino clssico, por exemplo, deve o primeiro hemistquio terminar em slaba forte, e o

    segundo hemistquio at a 12 do verso conter o mesmo nmero de slabas que o primeiro. Logo, se vier

    no centro vocbulo paroxtono finalizado em vogal em face de vogal inicial de palavra imediata, a cesura

    cortar tal vocbulo, deixando de uma parte a slaba acentuada, e de outra a restante inacentuada, ligando-

    se esta a vocbulo do segundo hemistquio. Ali (2006: 43).

  • 38

    Tirteu Fr. 12

    ot' n mnhsamhn ot' n lgwi ndra tiqehn

    ote podn retj ote palaimosnhj,

    od' e Kuklpwn mn coi mgeqj te bhn te,

    nikih d qwn Qrhkion Borhn,

    5 od' e Tiqwnoo fun caristeroj eh,

    ploutoh d Mdew ka Kinrew mlion,

    od' e Tantaldew Plopoj basileteroj eh,

    glssan d' 'Adrstou meilicghrun coi,

    od' e psan coi dxan pln qoridoj lkj

    10 o gr nr gaqj gnetai n polmwi

    e m tetlah mn rn fnon amatenta,

    ka dhwn rgoit' ggqen stmenoj.

    d' ret, td' eqlon n nqrpoisin riston

    kllistn te frein gnetai ndr nwi.

    15 xunn d' sqln toto plh te pant te dmwi,

    stij nr diabj n promcoisi mnhi

    nwlemwj, ascrj d fugj p pgcu lqhtai,

    yucn ka qumn tlmona parqmenoj,

    qarsnhi d' pesin tn plhson ndra parestj

    20 otoj nr gaqj gnetai n polmwi.

    aya d dusmenwn ndrn treye flaggaj

    trhceaj spoudi d' sceqe kma mchj,

    atj d' n promcoisi pesn flon lese qumn,

    stu te ka laoj ka patr' eklesaj,

    25 poll di strnoio ka spdoj mfalosshj

    ka di qrhkoj prsqen lhlmenoj.

    tn d' lofrontai mn mj noi d grontej,

    rgalwi d pqwi psa kkhde plij,

    ka tmboj ka padej n nqrpoij rshmoi

    30 ka padwn padej ka gnoj xopsw

    od pote kloj sqln pllutai od' nom' ato,

    ll' p gj per n gnetai qnatoj,

    ntin' risteonta mnont te marnmenn te

    gj pri ka padwn qoroj Arhj lshi.

    35 e d fghi mn kra tanhlegoj qantoio,

  • 39

    niksaj d' acmj glan ecoj lhi,

    pntej min timsin, mj noi d palaio,

    poll d terpn paqn rcetai ej 'Adhn,

    ghrskwn d' stosi metaprpei, od tij atn

    40 blptein ot' adoj ote dkhj qlei,

    pntej d' n qkoisin mj noi o te kat' atn

    ekous' k crhj o te palaiteroi.

    tathj nn tij nr retj ej kron ksqai

    peirsqw qumi m meqiej polmou.

    No lembraria, neem verso, um homem jamais eu poria

    Pelo valor de seus ps, ou de sua luta atravs,

    Nem se ciclpicas fossem a sua grandeza e fora,

    Nem se correndo ele at Breas, o trcio, vencesse,

    5 Nem se ele mais do que Ttono fosse na forma aprazvel,

    Nem se ele fosse bem mais rico que Midas, Ciniras,

    Nem se ele fosse mais rgio do que o Tantlida Plops,

    Nem se tivesse uma voz, mais que de Adrasto, melflua,

    Nem se afamado por tudo exceo de rompente vigor,

    10 Pois nenhum homem se faz de algum valor numa guerra

    Se no puder suportar a viso da matana sangrenta

    E no puder lacerar, firme e de perto, o inimigo.

    Tal a excelncia e tal o prmio, entre jovens, melhor,

    E um mais belo no h, para um jovem ganhar.

    15 E bem comum para todos e para a nao e o povo

    Sempre que firme mantm-se entre os primeiros um homem

    Sem cessar nunca, de todo esquecido da fuga execrvel,

    Pondo o nimo audaz e sua alma ao risco

    E encorajando o homem ao lado com suas palavras;

    20 Esse o heri que se faz de algum valor numa guerra.

    Sbito fora fuga de homens hostis a falange

    Bruta, e com zelo contm ele a onda da luta.

    Entre os primeiros tombado, perdeu ele a vida querida,

    Mas dando glria nao e a seu povo e ao pai.

    25 Muita vez pelo escudo seu, umbilicado, e peito

  • 40

    E da couraa atravs foi perfurado de frente.

    Jovens e velhos lamentam-no ambos de forma semelha

    E se aflige a nao toda coa perda sentida.

    E sua tumba e seus filhos, insignes entre os homens,

    30 E as geraes a seguir, vindas dos filhos dos filhos;

    Nunca iro perecer sua fama viril e seu nome,

    E ele se torna imortal, inda que embaixo da terra,

    Ele que, ao se fazer excelente enquanto lutava,

    Pela terra e os filhos seus, morto por Ares furioso.

    35 E, se ele escapa o fado da morte que espreita de longe,

    Toma da sua lana ento glria ilustre ao vencer,

    Todos o honram, de forma semelha, os jovens e os velhos.

    Muito agrado ele tem antes de ir-se ao Hades.

    Velho, distingue-se entre os concidados e ningum

    40 Quer em sua honra o ferir, nem cometer-lhe injustia.

    Todos lhe cedem lugar, igualmente, os jovens e aqueles

    De sua idade e tambm os que lhe so ancios.

    Dessa virtude agora chegar ao extremo um homem

    Tente, em seu peito jamais renunciando guerra.

    O fragmento 12 de Tirteu se apresenta como uma elegia a respeito da virtude da

    guerra. Nele, o eu-lrico discursa acerca da natureza do homem que, a seu ver,

    valoroso num contexto de combate.

    O poema pode ser dividido em trs partes que, alis, tm uma estrutura to bem

    definida que poderiam ser lidos como textos independentes. A primeira dessas divises

    marca o poema de seu incio at o final do nono verso. Em seguida, pode-se desenhar

    uma linha, que separa a segunda parte da final, entre o vigsimo e o vigsimo primeiro

    verso. Essas partes tm, alm de uma estrutura prpria, tambm um tema especfico

    tratado em cada uma delas, a saber: i) as caractersticas que no tm valor numa guerra;

    ii) as caractersticas e aes que fazem um homem ter valor numa guerra; iii) aquilo que

    advm a um homem de valor numa guerra e sua estirpe ao trmino do confronto,

    esteja ele vivo ou morto. Depois de discorrer a respeito desses temas e de afirmar o

  • 41

    modelo ideal de um homem valoroso, alm dos benefcios de que ele goza, o poeta

    termina a elegia com uma exortao para que se tente alcanar essa virtude, no

    renunciando guerra.

    Nos primeiros versos do poema, o poeta comea a delinear o perfil do homem

    que, a seu ver, merece ser lembrado e cantado em verso. A priori, ele se limita a afirmar

    a imagem de seu ideal herico pela eliminao sucessiva de caractersticas que no lhe

    parecem importantes para um homem valoroso na guerra. Durante oito versos, ele se

    ocupa dessa longa tarefa. A fim de manter uma estrutura a que os ouvintes/leitores

    pudessem se ater e, assim, evitar que o grande volume de propriedades elencadas

    lentamente quebrasse qualquer estruturao lgica e a prpria capacidade de

    argumentao do poema, Tirteu fez com que, dos primeiros dez versos do poema, sete

    fossem principados pela negao o. Dessa forma, a extensa anfora criada entre os

    hexmetros garante uma unidade ao que, de outro modo, seriam apenas caractersticas

    diversas e soltas ao longo dos dsticos. Na traduo, recriou-se esse efeito pela repetio

    da negao nem.

    No dcimo e no vigsimo verso do poema, ocorre um espelhamento quase

    completo das palavras que compem essas passagens. Esse recurso no s enfatiza a

    idia que se est tentando defender, mas tambm cria uma estrutura anelar nesse trecho

    do poema. De fato, h uma unidade muito bem estabelecida que pode ser destacada do

    restante do texto e observada por si s. O dcimo verso, dessa forma, introduz a

    assero a respeito do homem que o eu-lrico considera de valor na guerra e que vai ser

    trabalhada em detalhes at o vigsimo verso, no qual ela retomada e reafirmada,

    fechando assim a estrutura anelar. Na traduo, tentou-se, por esse motivo, manter uma

    simetria entre o dcimo e o vigsimo verso do poema, ainda que no seja to intensa

    quanto a do poema original.

    Quanto aos efeitos sutis do poema, no segundo verso, pode-se observar uma

    rima interna ao final de cada um dos hemistquios do verso, com os vocbulos retj

    e palaimosnhj. Esse efeito foi recriado na traduo de maneira semelhante, com

    uma rima entre ps e atravs.

  • 42

    Outro efeito digno de nota a repetio da oclusiva /k/, tanto em sua forma

    normal quanto aspirada, no verso de nmero vinte e dois, como se pode verificar nas

    palavras trhceaj, sceqe, kma e mchj. Em Portugus, na traduo,

    procurou-se compensar esse efeito com uma seqncia das linguodentais /t/ e /d/ nos

    vocbulos bruta, contm, onda, da e luta, sendo que o primeiro e o ltimo

    desses vocbulos, em posio de destaque no incio e no final do verso, ainda criam

    uma rima entre si.

    No trigsimo verso do poema, h um efeito, conservado de certa forma na

    traduo, cuja beleza merece ser destacada. Trata-se do poliptoto resultante da repetio

    de padej em duas declinaes diferentes (padwn padej). , sem dvida alguma,

    um dos momentos mais altos do poema e tem uma fora expressiva e retrica digna de

    distino. No texto em Portugus, a palavra foi repetida sem variao (dos filhos dos

    filhos), pois pareceu ser a forma que teria um efeito mais intenso em nossa lngua.

    Por fim, pela proximidade do texto com a tradio pica, pode-se observar uma

    forte presena de vocbulos relevantes em posio de destaque no incio ou no fim de

    verso. Os mais importantes dentre eles so: polmwi (mantido na em destaque

    traduo) no final do dcimo verso, amatenta (mantido em destaque na traduo)

    no final do dcimo primeiro verso, stmenoj no final do dcimo segundo verso,

    riston no final do dcimo terceiro verso, kllistn no incio e nwi no final

    do dcimo quarto verso, yucn no incio do dcimo oitavo verso, polmwi

    (mantido em destaque na traduo) no final do vigsimo verso, flaggaj (mantido

    na em destaque traduo) no final do vigsimo primeiro verso, mchj (mantido em

    destaque na traduo) no final do vigsimo segundo verso, atj no incio e qumn

    no final do vigsimo terceiro verso, stu no incio e eklesaj no final do

    vigsimo quarto verso, ato no final do trigsimo primeiro verso, qnatoj no

    final do trigsimo segundo verso, gj no incio do trigsimo quarto verso,

    qantoio no final do trigsimo quinto verso, niksaj (mantido em destaque na

    traduo) no incio do trigsimo sexto verso, pntej (mantido em destaque na

    traduo) no incio do trigsimo stimo verso, 'Adhn (mantido em destaque na

    traduo) no final do trigsimo oitavo verso, ghrskwn (mantido em destaque na

    traduo) no incio e atn no final do trigsimo nono verso, pntej (mantido em

  • 43

    destaque na traduo) no incio e atn no final do quadragsimo primeiro verso e,

    finalmente, polmou (mantido em destaque na traduo) no final do ltimo verso do

    poema.

  • 44

    Arquloco Fr. 3

    otoi pll' p txa tanssetai, od qameia

    sfendnai, et' n d mlon Arhj sungV

    n pedJ xifwn d polstonon ssetai rgon

    tathj gr kenoi dmonj esi mchj

    5 desptai Ebohj dourikluto.

    No se vero muitos arcos retesos, tampouco abundantes

    Fundas, quando Ares reunir a rdua tarefa da guerra

    Sobre a plancie, mas sim o trabalho aflitivo da espada.

    Esta a luta em que so habilidosos aqueles

    5 Lordes da Eubia, que fazem sua fama no punho da lana.

    O fragmento 3 de Arquloco nos apresenta cinco versos escritos na forma de

    dsticos elegacos. O fato de o ltimo dstico encontrar-se incompleto uma boa

    indicao de que, provavelmente, haveria uma continuao a esses versos. Da mesma

    forma, como ocorre tantas vezes com fragmentos, no h como sabermos com certeza

    se no haveria, inclusive, outros versos precedendo os que sobreviveram at ns.

    O tema do fragmento marcial, e seu teor, aparentemente solene. Sem sabermos

    a exata ocasio de performance e sem termos o restante do poema, a opo mais segura

    a de ater-se ao sentido mais evidente e entender a passagem como um poema

    louvando a virtude guerreira dos senhores da Eubia, cujo valor como prmacoi,

    guerreiros que lutam frente e engajados em combate corpo-a-corpo, enaltecido no

    fragmento.

    No primeiro verso do poema, o aspecto mais expressivo parece ser a aliterao

    em /t/ (otoi, txa, tanssetai e qameia), a qual foi recriada na traduo

    (muitos, retesos, tampouco e abuntantes). H ainda uma assonncia em /o/

    (otoi, pll'' e txa) compensada em Portugus por uma assonncia em [o]

    (no e vero).

  • 45

    Ainda no primeiro verso, h uma valorizao, no poema original, da negao

    otoi no incio do verso e do adjetivo qameia no final, ambos ocupando, portanto,

    posies de destaque. Na traduo, os vocbulos que os traduzem (no e

    abundantes) foram mantidos tambm em posio de destaque.

    A seguir, o verbo sungV, no segundo verso, preferiu-se traduzir por reunir,

    uma vez que ambos compartilham a idia de juntar exrcitos. Traduziu-se mlon por

    rdua tarefa da guerra, levando em conta seu duplo sentido de trabalho penoso e,

    por conseguinte, de guerra.

    O terceiro verso do fragmento , sem dvida, o ponto mximo do poema, no

    qual a musicalidade excepcional e o ritmo fluido da passagem, aps a vrgula

    apresentada na edio, se casam com uma imagem de inegvel fora, do trabalho

    aflitivo da espada, enaltecendo ao mximo o valor do mtodo de combate do

    prmacoj. Ao contrrio do ritmo truncado do primeiro verso e da sonoridade variada

    do segundo, o terceiro verso traz um ritmo fluido e uma sonoridade marcada por sons

    intercalados em /o/ (polstonon e rgon) e /e/ (n, pedJ, xifwn, d,

    ssetai, e rgon). No campo rtmico, o andamento ininterrupto se d pela ausncia

    de contrao no bceps de cada dctilo e pela cesura perfeita em ambas as posies mais

    usuais para cesuras do hexmetro, como se pode observar, abaixo, na escanso do verso:

    n / pe / d / J / xi / f / wn d po / ls / to / non / s / se / tai / r / gon

    Na traduo, tentou-se compensar o efeito sonoro com assonncias alternadas

    em /i/ (sim e aflitivo) e /a/ (a, mas, trabalho, da, e espada). Quanto ao

    ritmo, o andamento do metro escolhido em Portugus , por natureza, fluido devido

    no utilizao de espondeus. Mesmo assim, tomou-se cuidado para no empregar

    vrgulas em excesso ou encontros voclicos resultantes em hiatos, a fim de manter uma

    maior fluidez rtmica.

    Inicia-se, no quarto verso, um jogo de assonncias em //, com tathj

    principiando o verso e mchj finalizando-o, ambos os vocbulos em posio de

  • 46

    destaque dentro do verso. Em seguida, no quinto verso, encontra-se um eco dessas

    palavras em Ebohj, cuja vogal de som // se parece na ltima slaba antes da pausa

    causada pela cesura. Esse efeito no pde ser reproduzido na traduo.

    Por fim, no ltimo e incompleto verso do original, traduziu-se dourikluto

    pela perfrase que fazem sua fama no punho da lana, que completa o verso e, ao

    mesmo tempo, por ter sido expandida com uma imagem, espera-se que adicione um

    pouco mais de vigor traduo, uma vez que a perfrase famosos pela lana, por si s,

    seria pobre em comparao fora que tem o vocbulo composto do original.

  • 47

    Arquloco Fr. 4

    ll' ge sn kqwni qoj di slmata nhj

    fota ka kolwn pmat' felke kdwn,

    grei d' onon ruqrn p trugj od gr mej

    nhfmen n fulak tde dunhsmeqa.

    Vai de caneco atravs das fileiras da clere nau!

    Vai e, dos cavos tonis, torna a arrancar-lhes as tampas!

    Caa o rbido vinho at mesmo na borra, pois ns

    No poderemos ficar sbrios nesta viglia!

    Os dois dsticos elegacos que compem o fragmento 4 de Arquloco, apesar de

    no formarem um poema completo, muito bem poderiam faz-lo. Como relembra

    Corra (1998: 102) em sua extensiva anlise do fragmento, a publicao do Papiro

    Oxirrinco 854, apesar de ter discernveis em si apenas algumas palavras dispersas, serve

    como testemunho de que o poema ao qual esses quatro versos pertenciam possua pelo

    menos outros quatro. A autora sugere, ainda, que esses versos que temos completos,

    juntamente com o ltimo dos versos presentes no papiro, pudessem criar uma anttese

    em relao aos demais que se perderam por completo. Assim, ficaria reforada a

    situao irnica de soldados envolvidos em beberragem em vez de se concentrarem em

    proteger seu navio durante a viglia, possivelmente em territrio inimigo. Finalmente,

    Corra tambm aponta que h um contraste entre epicismos, como slmata nhj

    (clere nau), e um vocabulrio especfico e indito pica, como kqwni

    (caneco).

    Partindo para uma leitura pormenorizada, podemos observar, logo de incio, que

    o primeiro verso do original grego apresenta um jogo de sonoridade com as vogais de

    qoj e nhj. A relao sonora entre essas palavras, cujas vogais se posicionam de

    forma contrria, intensifica-se tambm pelo fato de nhj ser o vocbulo com que o

    verso se conclui e qoj ser a primeira palavra a aparecer no segundo hemistquio,

    como se pode observar na escanso apresentada abaixo:

  • 48

    ll' / / ge / sn / k / qw / ni qo / j / di / / sl / ma / ta / nh / j

    As duas palavras, ademais, so separadas e tambm antecedidas por uma

    seqncia de sons de /a/ (ll' ge e di slmata). Na traduo, tentou-se recriar

    o jogo na assonncia em // como slaba mais forte em duas palavras com tnicas em

    posies diferentes (atravs e clere), tem torno das quais tambm h uma forte

    presena do som de /a/ (vai, das fileiras da e nau).

    No verso seguinte, aproveitou-se a dificuldade de traduzir fota seno por

    uma perfrase, para criar uma anfora entre os dois primeiros versos, que de certa forma

    compensa tambm a assonncia do ditongo de fota e kolwn. Tentou-se ainda

    reproduzir a seqncia das oclusivas /k/ e /t/ do original (fota ka kolwn e

    pmat' felke kdwn) na traduo (cavos tonis, torna a arrancar-lhes as

    tampas).

    Foi prefervel traduzir kdwn por dos .... tonis, em vez de das ... jarras,

    que seria a traduo mais literal, por adequar-se melhor ao metro e cadncia das

    aliteraes buscadas, alm de tambm recuperar a sonoridade de atravs e clere do

    primeiro verso.

    Este segundo verso foi um tanto qaunto difcil de traduzir, por conta da cesura

    empregada no esquema mtrico. Uma primeira tentativa de traduzi-lo mostrou-se um

    pouco confusa, como pode ser verificado na escanso apresentada a seguir:

    1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14

    Vai / e / re / tor / na, e ar / ran / ca as tam / pas / dos / ca / vos / to / nis!

    A soluo encontrada nesse momento anterior era indiscutivelmente pior do que

    a que figura na verso atual, uma vez que forava uma cesura extremamente difcil de

    ser percebida e muito pouco natural. O resultado final desse verso, contudo, apresenta

  • 49

    uma cadncia muito mais limpa e mantm em torna a arrancar a idia de freqncia

    expressa pelo verbo foitw:

    1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14

    Vai / e, / dos / ca / vos / to/ nis, tor / na a ar / ran / car / -lhes / as / tam / pas!

    A seguir, no terceiro verso, manteve-se uma longa seqncia de sons de /o/ (o

    rbido vinho, mesmo e pois) semelhana do texto original (onon ruqrn p

    trugj).

    Finalmente, colocou-se sbrios, como primeira palavra aps a cesura do

    quarto verso, numa posio de destaque em seu interior, para criar um eco com ns no

    final do terceiro verso, numa tentativa de compensar o jogo de assonncias criado no

    original por nhfmen n e fulak tde, o qual no se pde recriar.

  • 50

    Arquloco Fr. 5

    spdi mn Sawn tij glletai, n par qmnJ,

    ntoj mmhton, kllipon ok qlwn

    atn d' xeswsa. t moi mlei spj kenh;

    rrtw xatij ktsomai o kakw.

    Com meu escudo um saio se ufana, o qual junto moita,

    Arma impecvel, larguei, inda que contra a vontade.

    Mas me salvei! Por que iria importar-me em razo de um escudo?

    Que ele se v! Depois eu compro outro em nada pior.

    O fragmento 5 de Arquloco trata, de forma jocosa, de um tema marcial caro

    pica: o dos despojos de guerra. No poema, o eu-lrico relata como, a fim de fugir,

    abandonou junto a uma moita seu escudo e como esse foi tomado por um guerreiro

    inimigo que se vangloriou de tal feito. O descaso em relao a um armamento era

    certamente algo que, no mnimo, deveria causar certo estranhamento platia de sua

    poca, podendo certamente induzi-la ao riso.

    Esse choque potencialmente cmico se dava, mormente, por dois motivos. Em

    primeiro lugar, devido ao fato do escudo de um soldado fazer parte do equipamento que

    lhe conferia o status de guerreiro. Como exemplo, pode-se lembrar a importncia das

    armas na Ilada, em que h uma luta pelo cadver de Ptroclo e pelas armas de Aquiles

    que ele portava, a qual ocupa toda a extenso do canto XVII, ou mesmo no relato do

    combate das Termpilas nas Histrias de Herdoto, em que o escritor afirma ter havido

    uma grande luta em torno do cadver de Lenidas (7.225), para proteger seu

    equipamento dos inimigos que desejavam pilh-lo.

    Por outro lado, o escudo era ainda mais importante por ser uma pea usada para

    defender o homem ao lado na falange, como se pode observar no fragmento de Tirteu

    presente neste trabalho. Por conta disso, era vergonhoso abandonar seu escudo, para,

    livre de seu peso, bater em retirada.

  • 51

    Como visto, o escudo o tema central do fragmento e sua importncia pode ser

    notada pelo fato dele ser o vocbulo que abre o poema. Infelizmente, no foi possvel

    manter, na traduo, a palavra escudo na posio inicial. A nica maneira de faz-lo

    seria grafando-a como scudo, ignorando o e inicial a fim de adaptar o vocbulo

    estrutura mtrica do poema. Mesmo com esse artifcio, ainda seria muito difcil criar um

    verso coerente e eufnico, de modo que foi foroso aceitar a impossibilidade de alocar o

    termo na posio inicial de destaque.

    As palavras spdi e ntoj, localizadas, respectivamente no comeo do

    primeiro e do segundo verso, entram numa relao de oposio com atn,

    posicionado no incio do verso seguinte. Refora-se, dessa forma no poema original, o

    peso e a importncia do armamento e a maneira pela qual o eu-lrico contrapunha o

    valor de sua prpria existncia a qualquer valor que o objeto tivesse. A seguir, a palavra

    que inicia o ltimo verso, rrtw, tambm o ponto mximo dessa oposio, por

    culminar na ordem desferida pelo eu-lrico em relao ao escudo, que se v!, de modo

    a afirmar a superioridade do homem sobre a ferramenta, da carne sobre o metal, da mo

    que brande a arma sobre a arma propriamente dita, qual no h funo nem razo de

    ser sem a presena do homem.

    Essa estrutura, na traduo, perdeu um pouco de sua fora, como visto

    anteriormente, por conta do vocbulo escudo no figurar na posio inicial do

    primeiro verso e, por conseguinte, do prprio poema.

    interessante notar, no poema original, a fora sonora do segundo verso,

    marcado pela presena recorrente dos sons /o/ ou // em todas as palavras que o

    compem. Na traduo, esse efeito sonoro, que acentua a solenidade inicial com que o

    escudo apresentado, foi compensado por rimas internas em ei, nas palavras

    larguei e salvei, retomando tambm a sonoridade do mesmo ditongo presente no

    original nas palavras mlei e kenh do terceiro verso.

    Por fim, um ltimo fator interessante que pode ser notado a ausncia de

    caracterizao do rival do eu-lrico que lhe rouba o escudo. Ao contrrio da pica, onde

    era praxe elencar diversas qualidades nobres do adversrio do heri, alm de seus feitos