Dissertacao Lisa Souza Peter Brook Marat-sade

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    UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM TEATRO

    MESTRADO EM TEATRO

    LISA SOUZA BRITO

    O TEATRO DE PETER BROOK NO CINEMA DE MARAT/SADE:

    UM ESTUDO DE ASPECTOS DA VISO TEATRAL DE BROOK EM SUAOBRA CINEMATOGRFICA MARAT/SADE

    FLORIANPOLIS

    2012

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    LISA SOUZA BRITO

    O TEATRO DE PETER BROOK NO CINEMA DE MARAT/SADE:

    UM ESTUDO DE ASPECTOS DA VISO TEATRAL DE BROOK EM SUA

    OBRA CINEMATOGRFICA MARAT/SADE

    Dissertao apresentado como requisito para obteno do grau de Mestrado em Teatro, Cursode Mestrado em Teatro, Linha de Pesquisa:Linguagens cnicas, corpo e subjetividade.

    Orientador: Prof. Jos Ronaldo Faleiro

    FLORIANPOLIS

    2012

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    Ficha catalogrfica elaborada pela biblioteca Central da UDESC

    B862 t Brito Lisa SouzaO teatro de Peter Brook no cinema de Marat/Sade : um estudo de aspectos da viso

    teatral de Brook em sua obra cinematogrfica MARAT/SADE / Lisa Souza Brito. 2012.

    111 p. : il. 30 cm

    Bibliografia: p. 103 - 108

    Orientador: Jos Ronaldo Faleiro

    Dissertao (mestrado)Universidade do Estado de Santa Catarina, Centro de Artes,

    Mestrado em Teatro, Florianpolis, 2012.

    1. Teatro 2. Cinema. 3. Brook, Peter. 4. Marat, Jean-Paul. 5. Marques de Sade.

    6.Espao vazio. 7. Teatralidade no cinema. I.Faleiro, Jos Ronaldo (orientador). II.

    Universidade do Estado de Santa Catarina. Mestrado em Teatro. IV.Ttulo.

    CDD: 792.015

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    LISA SOUZA BRITO

    O TEATRO DE PETER BROOK NO CINEMA DE MARAT/SADE:

    UM ESTUDO DE ASPECTOS DA VISO TEATRAL DE BROOK EM SUAOBRA CINEMATOGRFICA MARAT/SADE

    Esta dissertao foi julgada aprovada para a obteno do ttulo de mestre, na

    linha de pesquisa: Linguagens Cnicas, Corpo e Subjetividade, pelo curso de

    mestrado em teatro, da Universidade do Estado de Santa Catarina em 30 de

    Maio de 2012.

    Prof. Stenphan Arnulf Baumgrtel, Dr.

    Coordenador do Mestrado

    Apresentada Comisso Examinadora, integrada pelos professores:

    Prof. Jos Ronaldo Faleiro, Dr.Orientador

    Prof. Luciano Pires Maia, Dr.Membro

    Profa Vera Regina Martins Collao, Dra.Membro

    Profa. Sandra Meyer Nunes Dra.

    Suplente

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    AGRADECIMENTO

    Agradeo primeiramente ao meu orientador, Professor Doutor Jos

    Ronaldo Faleiro, por ter aceitado embarcar nesta pesquisa comigo.Agradeo aos membros da banca: Professor Doutor Luciano Maia, que

    h muito tempo acompanha minha carreira e, mais uma vez, para minha

    imensa felicidade, est ao meu lado; Professora Vera Collao por quem tenho

    profunda admirao e carinho; Professora Doutora Sandra Meyer, por ter

    aceitado analisar o meu trabalho.

    Agradeo a Morgana Martins por todo carinho, considerao e por estar

    sempre ao meu lado, me apoiando e incentivando.Agradeo aos meus pais, Maria Cristina Brito e Iremar Brito, que sempre

    me apoiaram e me auxiliaram em todos os momentos da minha vida.

    Agradeo Capes, que apoiou a pesquisa e a tornou vivel.

    Agradeo a todos os amigos queridos que torceram por mim nesta etapa

    da minha vida, em especial a Cludia Mussi, que me ajudou na retirada das

    imagens do filme de Peter Brook.

    Agradeo a Sandra Maria de Lima Siggelkow e Emlia Leite pela

    orientao e apoio durante o processo de construo desta pesquisa.

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    RESUMO

    O presente trabalho tem como objetivo analisar aspectos da busca de PeterBrook no campo teatral. O espetculo estudado para a compreenso do tema

    A perseguio e o assassinato de Jean-Paul Marat, representados pelo GrupoTeatral do Hospcio de Charenton, sob a direo do Senhor de Sade, cujoroteiro se inspira no texto dramatrgico de autoria de Peter Weiss. Estapesquisa busca ainda discutir o conceito de teatralidade presente no filme deBrook, tendo como ponto inicial a questo do olhar, a partir de autores comoJosette Fral, Patrice Pavis, Matteo Bonfitto, e procurando estabelecer umdilogo com facetas das ideias teatrais do prprio Brook. O estudo dalinguagem cinematogrfica do diretor ingls procura assim considerar ateatralidade do filme fazendo uma analogia com questes do pensamento deAntonin Artaud, que dizem respeito ao teatro como um duplo da vida, em seuTeatro da Crueldade, e com as ideias de Bertolt Brecht em seu Teatro pico,que considera o mundo passvel de transformao.

    Palavras-Chave: Peter Brook, Marat/Sade, espao vazio, teatralidade no

    cinema.

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    ABSTRACT

    This present work has the goal of studying Peter Brook's search in the theaterfield. The play analised for a better understanding of this subject is ThePersecution and Assassination of Jean-Paul Marat as performed by the Inmatesof the Asylum of Charenton under the direction of the Marquis de Sade, whichscript is based on Peter Weiss dramaturgy. This work also seeks to discuss theconcept of the theatricality presented in Brook's film and has, as a starting point,the matter of viewing, from authors such as Josette Fral, Patrice Pavis, MatteoBonfitto, meaning to stabilish a dialogue with the aspects of Brook's owntheatrical ideas. The study of the english director's cinematic language tries toconsider the theatricality of the film, creating an analogy with the matters ofAntonin Artaud's thoughts on theater being a double of life, in Theater ofCruelty, along with Bertolt Brecht's ideas in Epic Theater, which considers the

    world as liable of transformations.

    Keywords: Peter Brook, Marat/Sade, empty space, theatricality in cinema.

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    RSUM

    Ce travail a pour but danalyser certains aspects de la qute de Peter Brookdans le domaine de lart thtral. Le spectacle choisi pour essayer de

    comprendre le thme est La Perscution et lassassinat de Jean-Paul Marat,presents par la troupe de lhospice de Charenton, sous la mise en scne duSieur de Sade, dont le canevas sinspire du texte dramaturgique de PeterWeiss. Cette recherche a aussi lintention de discuter la notion de thtralitprsente dans le film de Brook, tenant compte de la question du regard, partirdauteurs tels que Josette Fral, Patrice Pavis, Matteo Bonfitto, tout enessayant dtablir un dialogue avec quelques facettes de la pense thtrale deBrook lui-mme. Ltude du langage cinmatographique du metteur en scneBritanique veut encore saisir la thtralit du film par le biais dune analogieavec quelques questions poses par la pense dAntonin Artaud dans sonThtre de la cruaut, en ce qui concerne le thtre comme un double de lavie, et avec les ides de Bertolt Brecht dans son Thtre pique, lesquellesconsidrent le monde passible dune transformation.

    Mots-clefs: Peter Brook, Marat/Sade, espace vide, thtralit au cinma.

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    TABELA DE IMAGENS

    N ndice das legendas e suas fontes PginaImagem 1 Ator Adrian Lester como Hamlet 18

    Imagem 2 Antonin Artaud de Monge Massieuno filme de Carl Dreyer

    30

    Imagem 3 Uma Flauta mgica I 46

    Imagem 4 Uma Flauta mgica II 47

    Imagem 5 Marat/Sade: comeo da pea 52

    Imagem 6 Marat/Sade: pblico 53

    Imagem 7 Marat/Sade: espao da encenao 65

    Imagem 8 Marat/Sade: coro de bufes 70

    Imagem 9 Marat/Sade: destruio do cenrio 71

    Imagem 10 Marat/Sade: coro de bufes e cartaz 85

    Imagem 11 Marat/Sade: assassinato de Marat 95

    Imagem 12 Marat/Sade: Charlotte Corday 96

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    SUMRIO

    INTRODUO ________________________________________________ 12

    1 CAPTULO I - PETER BROOK EM CENA: ASPECTOS DO TEATRO PARA

    PETER BROOK _______________________________________________ 17

    1.1 APRESENTAO: UM APERTO DE MOEM PETER BROOK ____ 17

    1.2 PRODUO DE IMAGENS E OCUPAO DO ESPAO _________ 23

    1.2.1 Criao de formas na encenao ___________________________ 25

    1.3 JOGO E ESPAO VAZIO __________________________________ 26

    1.4 O RELACIONAMENTO ENTRE OS ATORES __________________ 31

    1.5 MISTRIO E MOMENTO PRESENTE: O INVISVEL _____________ 33

    1.6 O ATOR PARA BROOK: A IMAGINAO E A BUSCA ___________ 37

    1.7 ASPECTOS DOS CENRIOS NAS MONTAGENS DIRIGIDAS POR

    PETER BROOK _______________________________________________ 40

    1.8 A MSICA NOS ESPETCULOS DE PETER BROOK ____________ 43

    2 CAPTULO II MARAT/SADE DE PETER BROOK UMA LEITURA DA

    TEATRALIDADE NO CINEMA COM INFLUNCIA(S) DE BRECHT E

    ARTAUD ____________________________________________________ 49

    2.1 A TEATRALIDADE CINEMATOGRFICA EM MARAT/SADE DE PETER

    BROOK ______________________________________________________ 49

    2.2 PETER WEISS E O TEXTO DE MARAT/SADE: A TENSO

    FICO/REALIDADE ___________________________________________ 60

    2.2.1 Jean-Paul Marat e o Marqus de Sade: contexto histrico _______ 73

    2.2.2 Jogo de Duplo no Texto de Peter Weiss ______________________ 78

    2.3 PETER BROOK NO FILME MARAT/SADE: UM DILOGO COM ARTAUD

    E BRECHT ___________________________________________________ 79

    2.3.1 Aspectos do Teatro da Crueldade de Antonin Artaud __________ 80

    2.3.2 Aspectos do Teatro pico de Brecht ________________________ 81

    2.3.3 Peter Brook: Marat/Sade, o pico e a Crueldade ______________ 86

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    CONSIDERAES FINAIS______________________________________ 98

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS_______________________________ 103

    BIBLIOGRAFIAS CONSULTADAS _______________________________ 105

    MATERIAL AUDIO-VISUAL ____________________________________ 107

    ANEXO: FICHA TCNICA DO ESPETCULO MARAT/SADE E O DVD DOESPETCULO

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    INTRODUO

    A motivao para desenvolver este trabalho nasceu da minha prtica nouniverso do teatro. Nasci em contato com o mundo da arte: meus pais

    trabalhavam com teatro e nossa casa era local constante de ensaios.

    Morvamos em uma casa com quintal grande, e era ali que meu pai pregava

    um grande tecido preto, criando um fundo em que a encenao, ou ensaio

    desta, aconteceria. Tnhamos um quarto que era considerado o quarto de

    brincar, mas quando meus pais estavam em processo de ensaio, este era

    reservado para a confeco do cenrio e adereos e era comum acordar com

    eles nessa ao. Eu e meu irmo, Andr, adorvamos estar com eles nesse

    momento e tnhamos prazer em aprender a fazer objetos de cena. Acredito que

    ao vermos nossos pais construindo cenrios encarvamos tudo como uma

    grande brincadeira, pois antes de qualquer coisa era divertido.

    Desde cedo fiz cursos e realizei estudo sobre as artes cnicas. Com o

    passar do tempo comecei a buscar maior formalizao dos meus estudos

    relativos ao teatro. Entrei para o curso de teatro da UNIRIO, onde o contato

    com tericos e com a prtica me fez conhecer distintas concepes sobre a

    arte dramtica, entre as quais a de Peter Brook o que me levou a ficar

    profundamente instigada por seu universo.

    Alm de suas peas teatrais, observava em suas obras tericas, como

    tambm em suas ideias e filmes, a forte presena da teatralidade. A

    teatralidade que era concebida como um duplo da vida. Assim, diante desse

    universo magicamente atraente, resolvi enveredar meus estudos pela

    teatralidade de Peter Brook presente em seus filmes. Dada a complexidade

    desse objetivo inicial, pois sua produo cinematogrfica significativa,

    dediquei-me com maior rigor ao estudo da sua produo em Marat/Sade, a

    meu ver, plena de teatralidade.

    O poder das imagens do diretor ingls em Marat/Sade faz com que

    sua obra cinematogrfica tenha sido revista e analisada por diversos

    estudiosos do teatro da contemporaneidade. Patrice Pavis, Matteo Bonfitto,

    Olivier-Ren Veillon e demais pesquisadores reconhecem a existncia de uma

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    linguagem em Marat/Sade que destaca sua relao profunda com a arte

    teatral, isto , a sua teatralidade.

    Nesse sentido, este trabalho pretende observar aspectos da natureza

    desse teatro instaurado pelo cinema, investigando caractersticas da linguagem

    do filme que podem ser identificadas como instauradoras da teatralidade. O

    pensamento de Brook extremamente abrangente e revela uma prtica. Alm

    disso, por no ser exatamente um terico, um cientista da arte do teatro, mas

    um artista que pensa o teatro, Brook expe ideias que apresentam dificuldade

    para serem objetivadas, compreendidas ou at mesmo definidas

    conceitualmente, como solicita o discurso acadmico.

    Assim, este trabalho no pretende esgotar essa temtica, tendo em vista

    que a teatralidade contm uma temtica complexa e identific-la na obra de

    Brook acompanha a natureza da sua complexidade. Alm disso, a teatralidade

    se modifica como afirma Josette Fral, com a histria do sujeito observador,

    que limitado ao seu tempo. Diante do exposto, esta pesquisa pretende

    apontar questes relacionadas a presena da teatralidade no filme Marat/Sade

    tendo, porm, conscincia dos limites da sua abrangncia, no apenas pela

    complexidade do conceito, como tambm pela prpria complexidade da

    linguagem do espetculo/filme de Peter Brook.

    A abrangncia do que Brook afirma e a prpria complexidade da arte

    teatral remete o trabalho ao reconhecimento dos seus limites. Dessa forma,

    foram eleitos alguns pontos de vista do pensamento teatral de Brook que so

    ressaltados e analisados com maior ateno, ainda que com suas limitaes,

    para avaliar o teatro e seu dilogo com o cinema na linguagem hbrida de

    Marat/Sade.

    No sentido da decodificao do universo do pensamento teatral deBrook, o trabalho pretende investigar no primeiro captulo algumas noes que

    se constituem como uma presena relevante no seu teatro, como, por exemplo,

    a sua concepo de espao vazio, de imaginao, de dilogo entre ator e

    espectador. Com isso desejo fazer uma anlise a respeito da relao desses

    signos na linguagem do filme Marat/Sade, realizado pelo diretor na dcada de

    60 do sculo XX, e buscar inicialmente uma possvel leitura, ainda que limitada,

    do teatro para Brook, tendo como apoio a noo de teatralidade formalizadapelos tericos estudados.

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    Em seguida, a pesquisa analisa o texto de Marat/Sade, de Peter Weiss,

    detendo-se com mais rigor na presena daqueles fatores que, na perspectiva

    de Brook, traam a contemporaneidade da obra. Em continuao o trabalho

    analisa a presena de Brecht e Artaud no filme de Brook, os quais, segundo

    Odette Aslan, em seu livro O ator no sculo XX (1994), constituem as duas

    grandes tendncias do teatro no sculo XX. Busca-se ento evidenciar o

    carter pico ou de crueldade identificados no filme de Brook, no mbito

    desses dois artistas do teatro, cujo pensamento torna possvel a leitura da

    presena da teatralidade no cinema de Brook.

    Nesse sentido, ao buscar qual seria o evento comum teatralidade e ao

    cinema, observa-se a importncia do olhar do espectador seja no teatro, seja

    no cinema. No filme de Brook, a cmera busca assumir as possibilidades de

    olhar que o espectador possui no teatro, observando o filme do ponto de vista

    racional ou crtico como prescreve o Teatro pico de Brecht , enquanto

    simultaneamente levado a se inserir totalmente na perspectiva de Artaud ,

    em um universo em que a peste lentamente se estrutura e toma conta de tudo

    como uma epidemia. Esse mundo que se descortina nos olhos do espectador

    por meio da lente da cmera expe contradies existentes, mergulhando-o

    completamente no universo criado ou propondo uma reflexo sobre ele. O

    carter pico ou da crueldade do filme de Brook ser assim analisado,

    evidenciando a natureza desse carter na sua teatralidade.

    O trabalho pretende, assim, sugerir um olhar que se replica sobre o olhar

    da cmera e que pode observar um pouco da origem do invisvel proposto por

    Brook no seu teatro. Por esse ngulo encontra a sua relevncia em descobrir

    ou identificar aspectos do mistrio da presena do teatro na arte

    cinematogrfica de Marat/Sade, estruturada por Peter Brook em umalinguagem hbrida que se origina na integrao entre o teatro e o cinema.

    Com a proposta de esclarecer o pensamento de Brook na imagem e no

    som, e utilizando o universo conceitual discutido no primeiro captulo, no

    segundo capitulo o trabalho envereda dessa maneira por aspectos da pea

    Marat/Sade (1966)1, em sua verso cinematogrfica. Trata-se ento de

    1Direo de Peter Brook, roteiro de Mitchell, baseado em pea teatral de Peter Weiss, origem

    Inglaterra, tempo de durao de 119 minutos, msica de Richard Peaslee, fotografia de David

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    identificar na montagem relaes entre o filme e as propostas teatrais de Brook

    relacionadas viso do espectador num universo mediado pela cmera. Os

    estudos se voltam, pois, particularmente para sua concepo de vazio, de

    imaginao e de dilogo verdadeiro.

    Tal estudo tambm diz respeito ao texto dramtico de Peter Weiss, a

    partir do qual Brook faz com que os atores desempenhem seu trabalho na

    construo do espao da cena. Uma vez concebido como um espao vazio, ele

    est pronto para revelar as frices entre a linguagem teatral e a

    cinematogrfica. Seguindo este pensamento, o segundo captulo pretende

    ainda analisar o conceito de teatralidade presente no filme, inspirado em

    tericos e estudiosos do teatro, envereda igualmente pela teatralidade pica ou

    da crueldade concebida no pensamento de Bertolt Brecht e Antonin Artaud.

    Partindo do pensamento de que o olhar da cmera determina o espao

    em que a encenao realizada, o segundo captulo busca tambm

    estabelecer um paralelo entre esse olhar da cmera, o olhar do espectador e o

    espao vazio cunhado por Brook. Esse espao concebido, na perspectiva de

    Brecht, como um mundo pleno de contradies e passvel de modificao. E,

    simultaneamente, apresentado como um mundo devorado por uma epidemia,

    cujas contradies o conduzem a um processo de destruio ou escatologia,

    que, pela destruio, prenuncia, segundo Mircea Eliade, o surgimento de uma

    nova era.

    Assim, no espao ficcional do manicmio, onde se desenvolve a fbula

    de Peter Weiss que representa aspectos do contexto revolucionrio francs,

    observamos o teatro sobre o teatro, ou o teatro dentro do teatro. Peter Brook

    expe e enfatiza essa realidade construindo um espetculo cinematogrfico

    que se funda na fuso do olhar da cmera com o do espectador, despertandonele a imaginao.

    Nesse universo em que a realidade se constri a partir da proposta de

    criao de um espao vazio, que cede lugar imaginao e ao dilogo

    verdadeiro entre ator e espectador, este trabalho busca discriminar aspectos da

    Watkin, direo de arte de Ted Marshall, edio de Tom Priestley, produo de Michael Birkette distribuidora United Artists.

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    teatralidade concebida por Peter Brook na construo da linguagem hbrida do

    filme Marat/Sade.

    O tema profundo e complexo e esta pesquisa tem conscincia de que

    o assunto no se esgota, mas sua inteno no essa. Este trabalho pretende

    apenas levantar algumas questes que podem ser pertinentes e relevantes aos

    estudos do teatro questes que partem da presena e discriminao da

    teatralidade, com seus segredos e mistrios em suas possveis manifestaes

    na contemporaneidade, como a que ocorre no filme Marat/Sade, de Peter

    Brook.

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    CAPTULO I: PETER BROOK EM CENA: ASPECTOS DO TEATRO PARA

    PETER BROOK

    1.1 APRESENTAO: UM APERTO DE MO EM PETER BROOK

    Peter Brook nasceu no dia 21 de maro de 1925 em Londres e iniciou

    seus estudos em cinema na Oxford Universityem 1942. Desde a universidade,

    quando fez o curso de cinema, despertou seu interesse pelo teatro, tendo

    investigado posteriormente o pensamento de artistas e tericos dessa arte

    como Bertolt Brecht e Antonin Artaud. A presena da influncia desses

    encenadores est refletida em diferentes trabalhos de Brook, como na

    montagem cinematogrfica de A perseguio e o assassinato de Jean-Paul

    Marat representados pelo Grupo Teatral do Hospcio de Charenton, sob a

    direo do Senhor de Sade (The persecution and assassination of Jean-Paul

    Marat as performed by the inmates of the asylum at Charenton under the

    direction of the Marquis of Sade),com texto dramatrgico de Peter Weiss2,que

    ser estudadano prximo captulo.

    Brook viveu muito tempo em Londres, onde nasceu, comeou sua

    carreira, e se afirmou como diretor de teatro e pera. Montou diferentes

    obras de William Shakespeare (como Trabalhos de amor perdidosem 1946,

    Romeu e Julieta em 1947, Hamlet em 1955), La Bohme de Giacomo

    Puccini em 1948, criaes coletivas como Teatro da crueldade, e

    Marat/Sade3, de Peter Weiss, em 1964. Alm dessas, tambm realizou

    muitas outras obras que se destacam nas artes cnicas da

    contemporaneidade. Em 1966, aps dois anos em cartaz, Peter Brooktransps para o cinema a pea Marat/Sade.

    Brook realizou diferentes tipos de pesquisas e exploraes prticas no

    campo teatral, entre as quais se destaca a busca de eliminar ao mximo a

    2 Peter Weiss. Die Verfolgung und Ermordung Jean Paul Marats dargestellt durch dieSchauspielgruppe des Hospizes zu Charenton unter Anleitung des Herrn de Sade . Frankfurt amMain: Suhrkamp, 1964. Edio brasileira: Perseguio e Assassinato de Jean Paul Marat;Representados pelo Grupo Teatral do Hospcio de Charenton, sob a direo do Senhor deSade. Drama em dois atos. Traduo de Joo Marschner. So Paulo: Grijalbo, 1968. 3

    A partir deste momento nesta dissertao a obra intituladaA perseguio e o assassinato deJean Paul Marat representados pelo Grupo Teatral do Hospcio de Charenton, sob a direo doSenhor de Sade ser referenciada como Marat/Sade.

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    distncia entre oator e o pblico, tendo em vista a existncia de um verdadeiro

    dilogo entre ambos. Em suas peas, de modo geral, os atores em algum

    momento interagem mais claramente com a plateia, ao se dirigirem a ela e

    falam abertamente. Por exemplo, na pea The Tragedy of Hamlet, que veio ao

    Brasil em 2008,o personagem Hamlet, representado pelo ator Adrian Lester,

    em momento de grande angstia expressa suas dvidas existncias, olha nos

    olhos do pblico, busca efetivamente um interlocutor silencioso, porm ativo

    com quem compartilhar sua apreenso. Esse contato pode ser visto na foto

    abaixo:

    Imagem 1: O ator, Adrian Lester como Hamlet 4

    Larissa Elias, Doutora em teatro pela Universidade Federal do Estado do

    Rio de Janeiro (UNIRIO) e professora adjunta do curso de Artes Cnicas da

    Escola de Belas-Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em

    sua dissertao de Mestrado O Vazio de Peter Brook: ausncia e plenitude,

    defendida em 2004, ressalta a busca do artista por uma maior aproximao do

    espetculo por meio do dilogo com o pblico. Tal pensamento se desenvolve

    a partir das montagens shakesperianas realizadas ao longo de sua carreira.

    Refletindo sobre o trabalho de Brook desde o tempo em que estava na Royal

    Shakespeare Companyat os dias de hoje, Elias afirma:

    4Foto retirada do sitewww.1morefilmblog.comacesso 18 mar. de 2012.

    http://www.1morefilmblog.com/http://www.1morefilmblog.com/
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    So suas reflexes sobre a necessidade de um espaoaberto, desobstrudo, prtico, portanto, mais livre para acriao, que proporcionasse uma relao mais direta doator com a plateia, cuja origem parece estar em suasmontagens dos textos de Shakespeare (Elias, 2004: 22).

    A relao com a plateia , pois, fundamental ao teatro para Brook, j que

    por seu intermdio que o pblico pode viver em conjunto uma experincia

    comum, a partir do surgimento de uma reao a um aspecto da realidade,

    evocada pelo ator. Ele mesmo esclareceu a experincia chamando-a de

    impresso coletiva: O aspecto da realidade que o ator est evocando deve

    despertar uma reao na mesma rea em cada espectador, fazendo com que,

    por um momento, o pblico viva uma impresso coletiva (Brook, 1999: 70).Ao se mudar para Paris em 1970, Brook comeou uma nova fase em

    sua carreira. Seus experimentos o levaram naquele momento aos carpet

    shows. O processo teve a origem no espao cedido pelo governo parisiense

    para os ensaios do CICTCentre International de Crations Thtrales5, que

    era um grupo de investigao teatral criado por Brook com o intuito de

    pesquisar teatro com atores de diferentes culturas. O lugar cedido, em que

    Brook trabalhou, foi uma das grandes salas de tapearia da Manufatura dos

    Gobelinos, muito antiga, impregnada de histria e energia, impulsionando

    Brook a novas experimentaes6. Ele j havia ensaiado naquele local antes,

    como Elias relembra:

    1968 o ano em que se inicia claramente sua [de Brook]formulao cnica. Neste ano, Jean-Louis Barrault, quecoordenava o festival Thtre des Nations, convidou PeterBrook para dirigir A tempestade de Shakespeare. [...]

    depois das pesquisas iniciadas com o Teatro dacrueldade, em 1964, sugeriu a formao de um grupoexperimental de atores internacionais, para trabalhardurante dois meses. O lugar encontrado para os ensaios

    5Centro Internacional de Criaes Teatrais.6 O lugar pertenceu a uma famlia de tintureiros (Les Gobelin). Era conhecido tambm como

    Manufacture des Gobelins, ou somente por fbrica real, pois serviu corte de Louis XIV. Nosculo XV o primeiro dono havia descoberto uma espcie de corante carmesim e, por isso,fundou a fbrica. Atualmente tem o nome de Mobilier National. uma espcie de depsito damoblia da Coroa e tambm da moblia do funcionalismo pblico parisiense. Um curso de

    formao ministrado na instituio. Depois de formados, muitos estudantes continuamtrabalhando no local, onde aprendem a conservar e a consertar peas raras. Nos dias quecorrem, o prdio pertence ao Ministrio da Cultura francs.

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    era uma sala destinada exposio de tapearias noMobilier National [...] (Elias, 2008: 01)

    No entanto, foi apenas em 1970 que Brook permaneceu no local por

    mais tempo. Teve a ideia de delimitar o espao para trabalhar e resolveu usarum tapete para isso. Assim, a encenao ocorria em cima do tapete. Mas foi na

    sua viagem frica que o processo se deu com maior clareza.

    Em sua dissertao intitulada A perspectiva orgnica da ao vocal no

    trabalho de Stanislavski, Grotowski e Brook, defendida na Escola de Belas

    Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 2011, referindo-se

    aos carpet shows, Cristiano Gonalves comenta a sua importncia para o

    desenvolvimento e envolvimento do trabalho dos atores com textos deShakespeare. Na viso de Brook, esses trabalhos apresentam uma grande

    compresso de tempo e espao, responsvel por uma intensificao de

    energia, que estabeleceria um estreito vnculo com o espectador:

    Carpet Show: um tapete colocado sobre o cho quelimitava e definia a relao: dentro do tapete teatro efora do tapete pblico. Foi atravs desse tipo deexperimento que Brook testou as bases tcnicas do teatro

    shakespeariano e do trabalho do ator: quando o ator pisano tapete o simples olhar do pblico exige que ele tenhauma outra relao com sua presena, e que estabelea,de imediato, uma inteno clara e direcionada. Brookdescobriu tambm que para estudar Shakespeare amelhor forma era improvis-lo sobre o tapete. No teatrodo dramaturgo ingls, existe uma compresso do tempo edo espaona fbula, os eventos que ocorreram em umintervalo de anos e em pases diferentes podem ocorrerem minutos dentro do mesmo tapete. Essa compressogera uma intensificao da energia que estabelece umvnculo com o espectador (Gonalves, 2011: 101/102).

    Aps esse perodo, em 1974, j morando em Paris, ocupou oThtre

    des Bouffes du Nord, situado no 37 bis, boulevard de La Chapelle, 75010.

    Acompanhou a reforma do teatro e quis que ele mantivesse a aparncia de

    inacabado, como se estivesse em runas, pois acreditava que isso, de certa

    forma, ajudava o trabalho que seria realizado. O espetculo que marca a

    inaugurao Timo de Atenas, de Shakespeare. A estreia aconteceu no

    mesmo ano da ocupao, em 1974. Brook nunca escondeu sua profunda

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    admirao por Shakespeare. Em sua carreira como diretor de teatro, no

    incio dos anos 60 do sculo XX, se tornou um dos diretores da Royal

    Shakespeare Company, e com isso foi responsvel por algumas montagens

    que, de certa maneira, quebravam padres j preestabelecidos dos

    espetculos mais tradicionais da companhia. Ao longo de sua vida no teatro

    montou cerca de 15 espetculos de Shakespeare, incluindo montagens e

    remontagens.

    Para a montagem da pea Timo de Atenas, o fato de delimitar o espao

    destinado encenao que ocorreu nas experincias vividas no processo

    com o carpet show e o fato de realizar naquele perodo uma profunda

    investigao sobre a improvisao. De fato, a pea no foi explorada de uma

    forma tradicional, e sim por meio de improvisaes que tinham uma relao

    direta com a busca, a ocupao e a manipulao do espao. Essa montagem,

    que teve estreia no teatro de Paris, tambm no se enquadrou nos padres

    clssicos de concepo do texto, mas em uma perspectiva de teatro

    experimental realizado por Peter Brook.

    Matteo Bonfitto, professor Doutor pela Universidade Estadual de

    Campinas UNICAMP , em seu livro A cintica do invisvel,expe sobre a

    tcnica de carpet showde Brook, chamando-a de no-interpretao,devido

    ao cancelamento entre as fronteiras que separariam o ator e o personagem:

    Em direta conexo com as prticas experimentadasdurante as viagens do CIRT, os atores de Brookexploraram uma qualidade de no - interpretao. [...] Omodo como exploraram as palavras e o universo deShakespeare, o modo como as suas aes erammaterializadas, transmitiram qualidades de incorporao

    (embodiment) atravs das quais fronteiras entre o ator e opersonagem parecem ter sido canceladas. [...] Aqualidade de presena e de relao experenciada (sic)nos carpet shows parece ter funcionado como umacomponente significativa do trabalho do ator em Timo deAtenas(Bonfitto, 2009: 96-97)7.

    7Com a ida de Peter Brook e sua trupe Paris em 1968, comeou uma primeira variante doCIRT Centre International de Recherches Thtrales (Centro Internacional de PesquisasTeatrais). Brook fundou o CICT (Centre International de Crations Thtrales) em 1973 e seinstalou com esse grupo no Thtre des Bouffes du Nord, em 1974. A partir da essa

    denominao est presente, por exemplo, no anncio dos espetculos e nos livros-programapublicados pela companhia.

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    Brook usa o recurso de improvisao no seu processo de concepo de

    um espetculo. A sua concepo de improvisao na cena teatral implica na

    aquisio pelo ator de uma tcnica precisa e difcil para a construo de um

    dilogo ntimo com o receptor. Esse dilogo assim instaurado a partir de uma

    perspectiva de preparao do ator para que possa estar disponvel a

    desenvolver um verdadeiro encontro com a plateia. Sobre esse assunto este

    assunto Brook afirma que:

    Aprendemos que a improvisao uma tcnicaexcepcionalmente difcil e precisa, muito diversa da ideia

    generalizada de um happening espontneo. Improvisarrequer dos atores amplo domnio de todos os aspectos doteatro. Requer treinamento especfico, grandegenerosidade e tambm senso de humor. A improvisaogenuna, que leva ao verdadeiro encontro com a plateia,ocorre apenas quando os espectadores sentem que soamados e respeitados pelos atores (Brook, 1995: 156).

    Estabeleceuma relao profunda com a prtica da improvisao feita

    em diferentes contextos de pesquisa, sempre valorizando o trabalho na

    relao dos atores com o todo presente no momento do espetculo. Dessa

    forma a interpretao se constitui em um meio de estruturar um

    relacionamento diferente na prpria vida do artista, que no conta com nada

    preestabelecido, nada preparado de antemo, como reconhece em seu livro

    O ponto de mudana:

    O meio de aprender um relacionamento diferente fazer

    uma longa srie de improvisaes longe de plateiashabituadas ao teatro, no meio da vida, sem nadapreparado de antemo, como um dilogo real que podecomear em qualquer lugar e partir em qualquer direo.Neste sentido, improvisao significa que os atoreschegam diante de uma plateia preparados paraestabelecer um dilogo, no para dar uma demonstrao.Tecnicamente, estabelecer um dilogo teatral significainventar temas e situaes para aquela plateia especfica,de modo a permitir que ela influencie o desenvolvimentoda histria durante o espetculo (Brook, 1995: 153).

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    A partir dessa afirmao possvel perceber que o ator de Brook

    desenvolve um estreito vnculo com o espectador, sendo este consequncia da

    clareza dos papis no espao (dentro do tapete teatro, fora pblico) e da

    intensificao da energia advinda da compresso do tempo e do espao.

    1.2 PRODUO DE IMAGENS E OCUPAO DO ESPAO

    Como j foi observado anteriormente, Peter Brook diretor de teatro e

    de cinema. Concebe uma estreita relao entre as duas artes pela importncia

    que atribui imagem, por possibilitar o nascimento de um mundo paralelo e

    sedutor. Esclarece tal relao em um trecho de seu livro Fios do tempo:

    Quando comeava uma produo, eu no tinha qualquerideia intelectual; apenas seguia um desejo instintivo deproduzir imagens que se moviam. A moldura do proscnioera como uma tela de cinema estereoscpica na qualluzes, msica e efeitos eram todos to importantes quantoa interpretao, pois meu nico desejo era, como em umamgica, fazer aparecer um mundo paralelo e mais sedutor

    (Brook, 2000: 61).

    Esse mundo paralelo e sedutor almejado por Brook composto por

    imagens, cuja fora tem o poder de devorar, engolir e preencher o indivduo,

    impedindo-o de pensar, sentir ou imaginar qualquer outra coisa, alm daquilo

    com que elas o sensibilizam visualmente. Isso acontece no momento em que a

    impresso da imagem causada, como afirma em seu livro O ponto de

    mudana:

    No cinema como no teatro o espectador costuma ser maisou menos passivo, estando situado numa posioreceptora de impulsos e sugestes. No cinema, esse fato fundamental, j que o poder da imagem to grandeque engolfa o indivduo. preciso refletir sobre aquilo quese v apenas antes ou depois da impresso ter sidocausada, mas jamais simultaneamente. Enquanto aimagem a permanece com toda a sua fora, no instantepreciso em que est sendo percebida, impossvelpensar, sentir ou imaginar qualquer outra coisa (Brook,1995: 250-251).

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    Esse poder sensorial da imagem estabelecido por Brook tambm

    extremamente valorizado por Artaud ao comentar o que seria para ele a

    verdadeira linguagem do teatro. Silvia Fernandes e Jacob Guinsburg no

    prefcio do livro Linguagem e vida (Artaud, 1995: 15) reconhecem que dirigir

    teatro, segundo Artaud, significa extrair de um texto as imagens que ele

    sugere, e citampara justificar-lhe o pensamento o seu escrito A evoluo do

    cenrio, publicado em Linguagem e vida:

    O que perdemos do lado estritamente mstico, podemosreconquist-lo do lado intelectual. Mas cumpre, para isso,

    reaprender a ser mstico, ao menos de uma certamaneira; e dedicando-nos a um texto, esquecendo a nsmesmos, esquecendo o teatro, esperar e fixar as imagensque nascero em ns nuas, naturais, excessivas e ir at oextremo destas imagens (Artaud, 1995: 27).

    Valorizando o poder da imagem de agir sobre o espectador, Brook

    estaria tambm realando aquilo que constitui para Artaud a encenao:

    Teatro encenao, muito mais do que a pea escrita e falada (Artaud, 1993:

    31) ou a prpria linguagem do teatro, que segundo Artaud se diferencia dalinguagem verbal:

    Mais urgente me parece determinar em que consiste essalinguagem fsica, essa linguagem material e slida atravsda qual o teatro pode se distinguir da palavra. Ela consisteem tudo o que ocupa a cena, em tudo aquilo que pode semanifestar e exprimir materialmente numa cena (Artaud,1993: 31).

    Mais adiante, em sua potica da crueldade, O teatro e seu duplo, Artaud

    esclarece a natureza dessa linguagem no espao: No se trata de suprimir o

    discurso articulado, mas de dar s palavras mais ou menos a importncia que

    elas tm nos sonhos (Artaud, 1993: 90). Essa linguagem qual Artaud se

    refere se caracteriza no apenas pela presena do discurso articulado, mas

    pelas suas inmeras possibilidades de utilizao de outros meios e objetivao

    no espao:

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    Alm disso, os gestos simblicos, as mscaras, asatitudes, os movimentos particulares ou de conjunto, cujasinmeras significaes constituem uma parte importanteda linguagem concreta do teatro, gestos evocadores,atitudes emotivas ou arbitrrias, marcao desvairada de

    ritmos e sons se duplicaro, sero multiplicados por umaespcie de gestos e atitudes reflexos, constitudos peloacmulo de todos os gestos impulsivos, de todas asatitudes falhas, de todos os lapsos do esprito e da lnguaatravs dos quais se manifesta aquilo que se poderiachamar de impotncias da palavra, e existe nisso umaprodigiosa riqueza de expresso, qual no deixaremosde recorrer ocasionalmente (Artaud, 1993: 91).

    Dessa maneira, valorizando a imagem, Brook encontrar nos meios de

    ocupao do espao proposto por Artaud os meios de construo de imagens.Tais fatores estruturam uma linguagem comum ao cinema pela busca das

    imagens, e ao teatro, na perspectiva de Artaud, a estrutura de uma linguagem

    de signos no espao.

    1.2.1 Criao de formas e imagens na encenao

    A encenao preconizada por Artaud estruturada como umalinguagem em signos, como observa em seu primeiro manifesto do Teatro da

    Crueldade ao descrever a linguagem em cena:

    No que diz respeito aos objetos comuns ou mesmo aocorpo humano, elevados dignidade de signos, evidente que se pode buscar inspirao nos caractereshieroglficos, no apenas para anotar esses signos deuma maneira legvel e que permita sua reproduo

    conforme a vontade, mas tambm para compor em cenasmbolos precisos e legveis diretamente (Artaud, 1993:90).

    Tais signos estruturadores da encenao so construtores de imagens e

    parecem ser uma presena fundamental concepo do teatro ou do cinema

    de Brook. Inspirado na potncia da imagem, busca a sua construo atravs da

    articulao de signos originados na pesquisa atravs de formas. Brook

    investiga essa linguagem, como afirma em seu livro A porta aberta: Oprocesso de dar forma sempre um compromisso que temos que aceitar,

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    dizendo ao mesmo tempo: provisria, tem que ser renovadatrata-se de uma

    dinmica que nunca ter fim (Brook, 1999: 45). A imagem em Brook se

    estrutura como pesquisa de formas que se relacionam no espao. As formas

    atuam como um conjunto de signos que ganham sentidos e unidade na sua

    encenao.

    1.3 JOGO E ESPAO VAZIO

    Nos diversos livros que publicou, Brook expe ideias que so

    fundamentais para a compreenso e para a construo da arte teatral na sua

    prtica e na sua vida. Em O teatro e seu espao, o encenador sugere que,

    embora representar exija muito trabalho, quando se experimenta o trabalho

    como uma brincadeira ele deixa de ter a conotao de trabalho. Brook conclui

    seu pensamento afirmandoque A play is play (Brook, 1970: 151), e com isso,

    faz um jogo de palavras,relacionando o teatro ao jogo, a uma brincadeira.

    Para Brook, na perspectiva do jogo, o teatro tem suas regras,

    possibilidade de improvisao dentro de parmetros estabelecidos; ocorre no

    presente; imprevisvel e jamais ser repetido:

    [...] acho que o esporte fornece as imagens mais precisase as melhores metforas para a performance teatral. Sobcerto aspecto, numa corrida ou num jogo de futebol, noh liberdade alguma. Existem regras, o jogo calculadosegundo rgidos parmetros, como no teatro, onde cadaator aprende seu papel e respeita-o at a ltima palavra.Mas este contexto determinante no o impede deimprovisar quando chega a hora. Dada a largada, ocorredor vale-se de todos os meios ao seu dispor. Iniciadoo espetculo, o ator entra na estrutura da mise-en-scne:fica tambm completamente envolvido, improvisa dentrodos parmetros estabelecidos e, como o corredor, cai noimprevisvel. Assim, tudo permanece em aberto e para opblico o evento ocorre naquele preciso instante: nemantes nem depois. Vistas das nuvens todas as partidas defutebol parecem iguais, mas nenhuma delas poderjamais ser repetida em todos os seus detalhes (Brook,1995: 25).

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    Brook finaliza afirmando o pensamento, de que a preparao rigorosa

    para o jogo no impede o inesperado que o caracteriza. Nesse sentido,

    possvel relacionar o jogo citado por Brook com a dinmica de construo de

    formas. Esta adquire sentidos na medida em que se estrutura como signos na

    linguagem da cena e possui um ciclo vital, isto , um movimento constante,

    algo que traz em si uma pulsao de vida. A questo do ciclo vital das formas

    ser investigada posteriormente neste trabalho.

    As formas criadas acontecem no espao. Na perspectiva de Brook, a

    regra fundamental para que se estruture o jogo do teatro a presena daquilo

    que ele denomina como espao vazio:

    Para que alguma coisa relevante ocorra, preciso criarum espao vazio. O espao vazio permite que surja umfenmeno novo, porque tudo que diz respeito aocontedo, significado, expresso, linguagem e msica spode existir se a experincia for nova e original. Masnenhuma experincia nova e original possvel se nohouver um espao puro, virgem, pronto para receb-la(Brook, 1999: 04).

    O espao vazio pode ser visto na objetividade da cena ou na

    subjetividade do ator ou do espectador. Um dos aspectos inerentes ao deste

    termo a ausncia de cenrio e a forte presena do imaginrio, o que

    possibilita ao espectador a liberdade de ateno e criao de processos

    mentais, como comenta Larissa Elias:

    [...] o espao vazio o preenchimento pelo livre jogo daimaginao, pois ao se deparar com um palco vazio, oespectador tomado por um impulso que cria umaimagem. Se houver, porm, um nico elemento que ilustrea realidade, como um barco de verdade; ou a tentativa dereproduzir uma ilha com rvores etc., o jogo quebrado, eo que se v algo colado realidade, e no alguma coisaque se confronte com ela (Elias, 2004: 105).

    A ausncia de cenrio , na concepo de Brook, um comeopara a

    atividade da imaginao. Esse espao deve ser preenchido com muita

    conscincia e cuidado pois Brook considera o vazio como um signo

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    O artista ressalta a necessidade do espao vazio para que seja

    reavivado o seu valor a cada momento. A presena deste enfatiza que se

    nos limitarmos a colocar duas pessoas lado a lado num espao vazio, a

    ateno dos espectadores se estender aos menores detalhes (Brook,

    1999: 22), estabelecendo um dilogo ntimo com o espectador.

    A figura do contador de histria se torna ento, para Brook, uma

    maneira de alcanar o pblico, levando o ator a estar em constante exerccio

    da presena do outro. O corpo do ator se torna um meio, um instrumento. Essa

    estreita relao um dos objetivos de Brook, que deseja o estabelecimento de

    um dilogo profundo e verdadeiro com o pblico. No entanto, manter o contato

    com o seu interior e com a plateia no seria um paradoxo para o ator, porque

    ao atuar como contador de histrias, o ator aumenta a potencialidade de sua

    ateno.Isso faz com que sepossa dividi-la consigo mesmo e com o pblico

    aumentando o seu contato, seu dilogo com a plateia. Gonalves comenta a

    relao entre a ateno e o ato de contar histrias, referindo-se ao momento

    em que Brook iniciou sua investigao sobre este tema:

    Esse paradoxo foi a chave que conduziu Brook a enxergar

    na figura do contador de histrias, referencial para otrabalho de seus atores. Na viso Brook, o jogo dosatores na cena deve incluir o pblico de forma que osouvidos, a voz e o gesto do ator estejam abertos sensao da presena do pblico. Na perspectiva dotrabalho do ator, os contadores de histrias ampliam aatuao do ator de forma a incluir o pblico comoelemento imprescindvel para a eficcia da cena(Gonalves, 2011: 102).

    Dessa maneira, Brook valoriza o ato de contar histrias pela noo dapresena como um dado fundamental ao trabalho do ator no seu

    relacionamento com o outro e com o pblico, superando o paradoxo.

    Ao relacionar o espao vazio com a arte cinematogrfica, que tem como

    foco fundamental a imagem contextualizada, Brook percebe a dificuldade da

    aplicao deste termo. Devido natureza realista da fotografia, o ator est

    sempre num contexto e nunca fora dele, isto , nunca com uma cenografia

    abstrata, num espao vazio. Brook reconhece apenas A paixo de Joana dArc

    de Carl Dreyer, filme que conta no elenco com a participao de Antonin

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    Artaud, como um exemplo certeiro da utilizao do espao vazio (Brook, 1999:

    22).

    A obra A paixo de Joana dArc (1927 - 1928) foi o primeiro filme

    realizado na Frana por Carl Dreyer antes de Vampiro em 1932. O roteiro

    escrito em conjunto com Dreyer e Joseph Delteil, se fundamenta no epsdio

    do proecesso de Joana dArc e na viso de personagem em grandes planos

    e em close up. Isso acontece no apenas com o personagem de Joana mas

    tambm com os papis secundrios como do Monge Massieu representado

    por Artaud, que revela suas lembranas da filmagem com Dreyer:

    Sei que eu guardei do meu trabalho com Dreyer

    lembranas inesquecveis. Encontrei um homem que mefez crer na justia, na beleza e no interesse humano dasua concepo. E fossem quais fossem as minhas ideiassobre o cinema, sobre a poesia, sobre a vida, por umavez percebi que j no me prendia a uma esttica, a umaopinio preconcebida, mas a uma obra (Fau, 2006: 148 -Traduo minha)8.

    Imagem 2: Antonin Artaud de Monge Massieu no filme de Carl Dreyer9.

    8Je sais que jai gard de mon travail avec Dreyer des souvenirs inoubliables. Jai eu affaire

    un homme qui est parvenu me faire croire la justesse, la beaut et lintrt humain desa conception. Et quelles quaient pu tre ms ides sur le cinma, sur la posie, sur la vie,pour une fois je me suis rendu compte que je navais plus affaire une esthtique, un parti

    pris, mais une uvre(Fau, 2006: 148).9(Fau, 2006:148).

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    A abstrao do cenrio com influncia expressionista funcionava no

    filme como um espao vazio pelo seu poder sugestivo de fazer agir a

    imaginao do espectador. A propsito desse assunto, Brook afirma que no

    teatro pode-se imaginar um ator com roupas normais e com gorro branco de

    esquiador representando o papa (Brook, 1999: 23). Em seguida, Brook

    conclui a impossibilidade dessa ao no cinema:

    No cinema isso seria impossivel. Precisaramos de umaexplicao plausvel, como por exemplo, de que ahistria se passa num manicmio, onde o paciente degorro branco tem alucinaes sobre a igreja, pois docontrrio a imagem no teria sentido (Brook, 1999: 23).

    O filme dirigido por Brook, Marat/Sade, cuja a ao ocorre em um

    manicmio, os personagens se caracterizam metonimicamente, seus figurinos

    funcionam como o tal gorro branco. Sendo assim Brook em Marat/Sade,

    aproxima o filme do teatro, buscando a teatralidade que produzida pelo

    cinema, o qual sua maneira, leva o espectador a preencher com a

    imaginao o espao vazio. Tal espao se refere no apenas ao cenrio, mas

    ao enredo, ao ambiente, s personagens enfim, a tudo que constri a

    encenao do fragmentado texto de Peter Weiss e que chega ao espectador

    pelo olhar da cmera.

    Embora Brook utilize a palavra vazio, e possa se considerar que

    nenhum espao ao ser observado por uma pessoa seja plenamente vazio de

    significado, Brook se refere a um espao vazio que seria um lugar com infinitas

    possibilidades de significao: um espao virtual, pronto para ganhar outro

    nivel de significado que no est no concreto mas no imaginrio do sujeito que

    o observa. Novamente possivel perceber que grande parte da pesquisa que

    Brook expe sobre o teatro marcada pela relao entre o ator e o espectador.

    1.4 O RELACIONAMENTO ENTRE OS ATORES

    A busca pelo dilogo com o pblico por meio do imaginrio se

    estabelece como um jogo entre os atores que possibilita o exerccio da

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    imaginao. As improvisaes so um meio de exercitar o jogo. A constante

    necessidade de exercitar essa tcnica se relaciona como uma espcie de

    musculatura que precisa ser trabalhada cotidianamente para no ser perdida.

    Nesse sentido Brook tem um pensamento semelhante ao de Artaud, que

    reconhece o ator como um atleta do corao, cuja musculatura afetiva

    precisa ser exercitada:

    preciso admitir no ator uma espcie de musculaturaafetiva que corresponde a localizaes fsicas dossentimentos. O ator como um verdadeiro atleta fsico,mas com a ressalva surpreendente de que ao organismodo atleta corresponde um organismo afetivo anlogo, eque paralelo ao outro, que como o duplo do outroembora no aja no mesmo plano. O ator como um atletado corao (Artaud,1993: 129).

    Dessa forma, a imaginao, para Brook, como o afeto para Artaud,

    seriam muscularmente exercitveis pelo ator. Brook reconhece a importncia

    da imaginao no vazio do teatro e, paradoxalmente, observa que quanto

    menos se oferece imaginao, mais feliz ela fica, porque como um msculo

    que gosta de se exercitar em jogos (Brook, 1999: 23). Assim, o maior jogo da

    imaginao obter do pblico a cumplicidade da ao teatral, para que ele

    aceite que uma garrafa se torne a torre de pisa ou um foguete a caminho da

    lua. A imaginao, feliz, jogar esta espcie de jogo, desde que o ator no

    esteja em parte alguma (Brook, 1999: 23). Nesse jogo estabelecido pela

    imaginao no espao vazio tudo pode mudar rapidamente a partir da

    instaurao do verdadeiro relacionamento entre os atores e a plateia. O jogo se

    estabelece pelo preenchimento das lacunas oferecidas pelos signos enquanto

    objeto ou espao vazio que se estruturam como uma linguagem no espao.

    A possibilidade de atribuir aos signos outros significados s possvel

    com a existncia do vazio, que deve estar presente nos atores. Brook afirma

    que os atores devem descobrir relaes autnticas, nicas, relaes

    independentes e singulares entre si. Nesse sentido o encenador ressalta que

    interessante comear o ensaio no clima mais ntimo possvel para no dissipar

    a energia(Brook, 1999: 28). Refere-se, ento, necessidade de concentrao

    para se descobrir, criar e recriar essas relaes, sem dissip-las. Brook

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    acredita que desta maneira, o ensaio ser mais proveitoso para a realizao do

    trabalho.

    Segundo Artaud, os signos devem ser construdos no espao, como

    uma espcie de poesia. Estes tm algo de singular e dialogam entre si. No

    entanto, Artaud sugere que estes signos tenham uma dupla natureza (Artaud,

    1999: 39). O jogo de signos que estruturam a cena, como sugere Artaud, pode

    ser relacionado ao que Brook discute sobre o nascer como assumir uma forma,

    e toda a forma supe nascimento e morte. O trabalho no teatro, segundo

    Brook, a busca da forma adequada. Essa busca consiste no investimento

    ldico de energia em busca da forma que preencher o espao vazio. Desse

    modo a materializao de energia constante de nascimento, morte e

    renascimento de forma o processo de enformar um compromisso que implica

    em aceitar o carter provisrio da forma que precisa ser renovada. O

    nascimento que assumir uma forma, na ndia tem o nome de sphota, e,

    segundo Brook, sphota expressa o que est manifesto e o que no est.

    Existem energias informes e em determinado momento h uma exploso que

    corresponde sphota. a forma que corresponde encarnao dessa

    energia.

    1.5 MISTRIO E MOMENTO PRESENTE: O INVISVEL

    O trabalho com a arte teatral, que ao mesmo tempo subjetiva e complexa,

    existe alguma caracterstica que o profissional usa como certa premissa, e que

    deve ser considerado fundamental ao desenvolvimento do trabalho. No caso de

    Brook, que um encenador com um trabalho slido, ao conceber uma obra,existe algo que considera essencial para que seja possivel a realizao desta.

    Para ele, a essncia do teatro reside num mistrio chamado momento

    presente (Brook, 1999: 68). um momento surpreendente, que traz em um

    tomo de tempo(Brook, 1999: 69)um universo inteiro contido em sua infinita

    pequenez e que, ao seu ver, libera no presente o potencial coletivo de

    pensamentos, imagens, sentimentos, mitos, enfim todo um potencial oculto e

    denso. Tal liberao proporcionada pelo teatro faz dele prprio uma atividadepotencialmente perigosa (Brook, 1999: 69).

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    Importa o momento que o teatro capaz de proporcionar: O aspecto da

    realidade que o ator est evocando deve despertar uma reao na mesma rea

    em cada espectador, fazer com que, por um momento, o pblico viva uma

    impresso coletiva (Brook, 1999: 70).

    Com o foco na realidade do momento presente, Brook observa, por um

    lado, que nele se abstrairia a noo de tempo. Por outro lado, considera que

    cada momento estaria relacionado ao anterior e ao seguinte numa corrente

    incessante e infinita: Assim, em todo espetculo teatral, deparamo -nos com

    uma lei inevitvel: o espetculo um fluxo que tem uma curva ascendente e

    descendente (Brook, 1999: 70).

    Para o encenador, a aceitao do mistrio fundamental. Por isso o

    homem deve manter o sentimento de assombro sem o qual a vida perde o

    sentido. Afirma, porm, que o ofcio do teatro no pode ser misterioso, h

    sempre um degrau a mais para ser escalado, alando um passo na direo de

    seu objetivo. Os degraus da escada encontram-se, segundo ele, nos detalhes

    que so percebidos com maior intensidade no espao vazio (Brook, 1999: 64).

    Brook expe o pensamento de que o mistrio que cerca o teatro a

    busca de uma significao para torn-lo significativo para os outros (1999: 49).

    Ento, essa busca teria como objetivo criar uma identificao, ou envolvimento,

    para quem o faz e para quem o assiste, fazendo com que o mistrio no seja

    uma questo a ser desvendada e sim algo com um movimento constante de

    significao e significados. O intuito gerar formas e signific-las. Segundo o

    encenador, tal proceder traria o invisvel tona. E, como a criao do mistrio

    tem relao estreita com o invisvel, afirma que o invisvel no precisa ser

    manifestado:

    O problema que o invisvel no precisa se tornar visvel.Embora no tenha que se manifestar, o invisvel podesurgir em qualquer lugar, em qualquer tempo, por meio dequalquer um, desde que as condies sejam propcias(Brook, 1999: 50).

    Quando Brook afirma que fundamental haver condies propcias

    para que o invisvel se manifeste, refere-se a todos os aspectos que

    menciona anteriormente para que o teatro acontea como, por exemplo, a

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    instaurao do espao vazio junto relao de cumplicidade estabelecida

    entre o espectador e os atores. No entanto, destaca que o estado do ator

    deve ser de receptividade, e que este teria relao direta com o sagrado e

    com a sphota. Ao afirmar que seriam essas as condies propcias que

    possibilitariam a presena do invisvel, e ao relacion-las com o ator,

    percebe-se a necessidade de ter esse elenco preparado na perspectiva de

    Brook, e em perfeita sintonia, sendo fundamental que todos possuam a

    conscincia do momento presente (Brook, 1999: 50). Esse momento est

    relacionado ao fato do ator atingir um estado de conscincia presente, sem

    divagar, e, assim, alcanar um estado de ateno, prestes a ser preenchido

    pela criao. Como o prprio Sotigui Kouyat, ator africano que trabalhou

    durante anos com Brook, comenta em entrevista a Larissa Elias: [...] estar

    presente no que acontece e isso muito importante para as pessoas, estar

    presente na cena, no espao, no com um conceito, com a presena (Elias,

    2004: 164), considerada como o ato de conseguir vivenciar o que est

    acontecendo no momento. No entanto, para os ocidentais, pelo movimento

    dispersivo geral e natural da nossa cultura, deve-se exercitar esse estado,

    pois por vezes estamos distantes de alcanar tal objetivo: a permanncia no

    momento presente, o exerccio da presena.

    Ao levar em considerao as condies para que o invisvel acontea

    estas que no seriam iguais sempre se tornam uma varivel que deve

    ser de certa forma controlada pelos atores. Eles devem procurar estar em

    contato com o seu estado interior, o qual segundo Brook, deve ser de

    receptividade. Identificar a diferena entre o que propcio e o que no o ,

    se torna uma tarefa complexa e delicada. Por isso, a intuio se mostra na

    arte um fator fundamental para o desenvolvimento de qualquer trabalhoartstico, o diretor procura deixar claro em sua prtica o significado e a fora

    do invisvel almejado pela encenao, o qual pode aparecer at nos objetos

    mais simples:

    E atravs de formas totalmente inesperadas, o invisvelpode se manifestar. O invisvel pode aparecer nos objetosmais simples como numa garrafa de plstico que pode ser

    impregnada dele e se transformar magicamente em

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    qualquer outra referncia de vida, como um beb ou umgnio da lmpada (Brook, 1999: 38).

    O comeo do trabalho seria o momento de se libertar de tudo que seja

    resposta imediata, pois tudo que aparece neste momento no deve sercolocado no trabalho, as criaes que surgem de imediato so as mais

    superficiais e bvias. A respeito dessa afirmao o terico alemo e crtico de

    teatro e cinema C. Bernd Sucher observa: Para nos libertarmos delas [as

    criaes imediatas] temos de nos esvaziar. Temos de nos libertar de tudo o

    que arrastamos conosco. Temos de nos despejar como se desfaz uma mala

    (Sucher, 1999: 326). Por isso referindo-se ao espetculo LHomme qui10

    (1993), reflete sobre a intuio, que vive no espao vazio, como um fatordecisivo para o teatro e para a criao:

    Mas no poderia dizer que o nosso ponto de partida oteatro Bouffes du Nord, embora tenha feito muitosdesenhos e esboos muito diferentes, consciente de queteria que desfazer a mala. Trabalharamos durante trsanos neste projecto e interrompmo-lo por duas vezes.Trabalhamos com muitos, muitos atores e com o Dr.Sacks. A intuio conduz-nos, vive no espao vazio. Aintuio disse-nos: no pode ser assim (Sucher, 1999:326/327).

    Ainda expe o significado lingustico da palavra intuioem ingls e

    em francs e a explicita como algo desprovido de forma: formless. Refora

    com veemncia a importncia da intuio mesmo antes de comear o

    trabalho, sendo radical no sentido de abandono do trabalho caso esta no

    exista:

    Quando falo de intuio, refiro-me quilo que, em ingls,se chama the formless haunch. Haunch significa intuio.Em francs diz-se que se trata de um prsentiment, umpressentimento. Ainda no uma ideia, algo desprovidode forma, formless. Esteprsentiment fundamental para

    10Traduo: O homem que. O trabalho foi realizado em 1993 e escrito por Peter Brook,Carrire e Oliver Sacks. O ltimo um neuropsiclogo que tem diversos livros publicados

    sobre seus casos clnicos em uma linguagem simples, que mesmo o leitor no sendo darea de neurologia ou psicologia, se torna possvel de realizar a leitura (Sucher, 1999: 316).

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    mim. Quando ele no surge, est-se perdido. Quando setem que dirigir uma companhia, precisa-se destepressentimento. Quando se comea um trabalho teatral,tem que se ter este prsentiment, seno no vale a penacomear, pois este sentimento indica o sentido do

    trabalho, o caminho (Sucher, 1999: 329).

    A intuio no teatro constitui para Brook algo to importante que

    participa de escolha ou seleo do texto. A intuio uma percepo e

    nunca uma ideia. uma matria viva, sem forma, uma pr-imagem, como

    afirma Georges Banu, terico francs de origem romena, professor da

    Universidade da Sorbonne Nouvelle Paris 3 , em seu artigo Peter Brook

    et la coexistence des contraires:

    Assim que decide trabalhar com uma obra, Brook parte deuma percepo e jamais de uma ideia, de uma matriaviva sem forma cujo contornos no se podem designar.O seu texto no mais do que uma pr-imagem.Portanto, o caminho a seguir ir da intuio sem forma procura de uma forma. Adotando esse trajeto, Brookpretende seguir o mesmo itinerrio do autor, que parte deuma pr-imagem, mas inspiradono real, para chegar expresso concentrada que o texto (Banu, 1985: 49 -traduo minha)11.

    O resultado final do processo contm essa intuio transfigurada em

    uma forma concreta, sendo o ator o responsvel por excuta-la. No entanto,

    essa pr-imagem est contida no espetculo, como um embrio que cresce e

    se transforma na imagem final.

    1.6 O ATOR PARA BROOK: A IMAGINAO E A BUSCA

    Segundo Peter Brook o ator dispe de dois mtodos para tocar o

    espectador em seu prprio mundo. O primeiro deles consiste na busca da

    11Lorsqul opte pour une ouvre, Brook part part dune perception et jamais dune ide, dunematire vivante sans forme dont on ne peut dsigner les contours. Il na du texte quune pr -image. Le chemin suivre sera donc de lintuition sans forme la recherche dune forme. En

    adoptant ce trajet, Brook veut pouser le mme itinraire que lauteur, lui aussi parti dune pr-image, mais inspir par le rel, pour arriver cette expression concentre qui est le texte(Banu, 1985: 49).

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    beleza: a seu ver, grande parte do teatro oriental baseia-se nesse princpio e

    mantm uma forte relao com o sagrado. Para fascinar a imaginao

    procura-se extrair o mximo de beleza de cada elemento. como se por

    meio da pureza de detalhes se tentasse atingir o sagrado (Brook, 1999: 28).

    O segundo mtodo para o ator tocar o mundo interno do espectador a

    sua capacidade de criar vnculos entre a imaginao e o pblico, a sua

    capacidade de transformar um objeto banal num objeto mgico. No apenas o

    espao vazio se transforma com a imaginao, mas tambm o objeto pode ser

    transformado pelo poder da imaginao do ator de criar um vnculo entre ele e

    o pblico. Brook chama esse objeto de objeto vazio, do qual se torna pleno de

    sentido e significados:

    Uma grande atriz pode fazer-nos acreditar que umahorrenda garrafa de plstico, que ela carrega nos braosde um jeito especial, uma linda criana. [...] Estaalquimia s possvel se o objeto for to neutro e comumque possa refletir a imagem que o ator lhe atribui.Poderamos cham-lo de objeto vazio(Brook, 1999: 38).

    O ator, para Brook, deve se manter em uma relao constante com o

    todo. Para isso necessrio que tambm esteja vazio. E, para exemplificar o

    significado de um ator vazio, Elias afirma:

    Um ator verdadeiramente criativo sempre um espaovazio. um ator que se arrisca a abandonar as formasencontradas e fixadas, do primeiro ao ltimo ensaio, oudurante a temporada: que capaz de abrir mo de umgesto, de uma marca, de uma fala, de uma conquista erecomear. O ator vazio um ator aberto s novas

    descobertas, s novas formas, um ator capaz de ser notempo, um ator que entende que uma repetio pode sersempre diferente, se ele estiver disposto a se recolocar(Elias, 2004: 145).

    Um dos poucos atores que acompanharam Brook em diversos

    momentos de sua carreira, participando de suas montagens, foi Sotigui. Na

    entrevista a Elias, o ator comenta essa necessidade do ator estar vazio no

    teatro de Peter Brook:

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    Mas um ator, no vazio, o ator que entra no espao vazio,o ator no t vazio, no o vento, o ator, que no estvazio, o ator em si, no com pensamentos, um ator quechega com a cabea cheia de coisas, um peso, pra mim um peso que entra em cena, no um ator que chega

    vazio, esse o meu entendimento desse pensamento, oator deve entrar vazio no espao vazio para preench-lo,mas voc no vem j pesado com vrios pensamentos,com seus maneirismos... eu posso te dar uma resposta,quando eu dizia que um vazio no jamais vazio.Naquele momento, ele quis que o ator sedesembaraasse de tudo, de todos os parasitas, servazio, sem pensamentos psicolgicos, ter um corpo leve,vazio pra ele isso, ele pede sempre aos atores fazervazio. o ator vazio, desembaraado de tudo, numespao vazio, sem estar decorado, isso a grosso modo

    (sic) (Elias, 2004: 163).

    Brook acredita que o ator consegue fazer com que uma expresso

    ntima cresa e preencha o espao amplo sem perder a relao de

    intimidade com o espectador. O ator deve ser ao mesmo tempo personagem

    e contador de histrias. Enquanto os atores interpretam uma relao ntima

    entre si, esto falando diretamente aos espectadores. O encenador estudado

    parece se deter com ateno na busca do relacionamento entre os atores.

    Sugere que os atores devem descobrir relaes diferentes e nicas com o

    todo. Assim, o ator obrigado a lutar para manter uma trplice relao:

    consigo prprio, com outros atores e com a plateia. Esta a dificuldade da

    arte do teatro: exigir ao mesmo tempo um vnculo do ator com o seu interior,

    com os parceiros de cena e com o pblico. A diferena entre a vida diria e o

    teatro se d por meio da intensificao de energia que ocorre em cena pela

    compresso do tempo e do espao. O que prende a ateno so as tenses

    subjacentes causadas pela interao entre um ator e o todo que est em

    volta dele. Exercitar essa capacidade de interao corresponde ao exerccio

    de instaurao do vazio e do aprofundamento do dilogo do ator consigo

    mesmo e com o outro, que pode ser o ator com quem ele se relaciona em

    cena ou o pblico do espetculo.

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    1.7 ASPECTOS DOS CENRIOS NAS MONTAGENS DIRIGIDAS

    POR PETER BROOK

    Larissa Elias, em seu artigo Otapete na potica de Peter Brook: suporte

    material do conceito de espao vazio, afirma quea ideia de espao vazio surge

    em Brook a partir de 1962 e vai repercutir diretamente na sua concepo

    cenogrfica at chegar funcionalidade do tapete em 1972:

    A partir da montagem de Rei Lear, em 1962, osespetculos de Peter Brook passam a ser atravessadospela noo de espao vazio, e, desde 1972, quandoBrook faz sua primeira turn frica, com seu grupo

    internacional, o tapete passa a ser a forma material maisevidente do conceito de espao vazioempty space, quese torna um conceito fundante do teatro brookiano. 1968 o ano em que se inicia claramente sua formulao cnica(Elias, 2008: 01).

    Os cenrios dos espetculos ento dirigidos por Brook eram

    desenvolvidos paulatinamente. Ele buscava um cenrio totalmente livre, sem

    muitos objetos, que possibilitasse grande interao e movimentao dos

    atores. Os cenrios deviam ajudar na construo do trabalho, evitando entrar

    em discordncia no somente com a montagem em si, mas tambm com

    aquilo em que acreditava no tocante questo do espao e sobre a qual

    discutia. Ao observar seus trabalhos de 1962 a 1972, nos quais j constava a

    noo de espao vazio perodo que antecede sua viagem frica e ainda

    no ocupava o Thtre Bouffes du Nord, em Paris seus cenrios tinham

    perspectivas distintas das montagens realizadas aps as experincias com os

    carpet shows. Contudo, havia ainda grande semelhana de pensamentorelativamente aos dois momentos.

    No primeiro, mesmo j com incio na pesquisa sobre o espao vazio, os

    espetculos eram preenchidos com mais cenrios, adereos e detalhes. No

    entanto, no segundo, investigando a fundo a questo do espao vazio,

    exacerbou seus limites, e seus cenrios passaram a ter menos objetos e

    adereos do que os anteriores. Ento, a partir de 1972, quando fez sua

    primeira turn na frica, objetivamente na Arglia, realizou trabalhos cujo ofoco era a explorao do espao e improvisaes realizadas em cima de

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    tapetes. Esse espao delimitava a rea da encenao. Comentando a fora do

    tapete para as improvisaes, Elias observa que O tapete no cenrio, mas

    o prprio espao teatral, vazio, pois sobre o tapete no h nada. Esse o

    ponto de partida das improvisaes (2004: 127). importante lembrar que a

    improvisao sempre esteve presente na pesquisa de Brook com o CICT. Sua

    investigao sobre o espao vazio constitua a base de seus trabalhos, como

    Elias complementa:

    Brook estava convencido de que uma pea de carterimprovisacional devia ser levada aonde as pessoasvivem, pois apresent-la em qualquer lugar era submet-la ao vazio deste lugar, isto , ao fator inesperado que

    este novo lugar poderia proporcionar (2004: 35).

    Em ambos os momentos de 1962 a 1972 e a partir de 1972 Brook

    buscou uma proximidade maior com o pblico para que este se concentrasse

    ao mximo, pudesse perceber os detalhes e, com a imaginao, preenchesse

    todos os espaos vazios. Sobre a importncia do tapete do empty spaceElias

    assim discorre em seu artigo:

    O tapete, na potica de Brook, formaliza um conceito deruptura, empty space, que quebra com uma conceituaodo teatro como arte definida pela cenografia. [...] umelemento estrutural, de repetio j definido no teatro dePeter Brook, onde a imagem teatral se faz nodesaparecimento do prprio teatro ou na sobrevivnciados seus vestgios (Elias, 2008: 03).

    Brook tambm estudado no mbito da cenografia, pois seu trabalho

    sobre o espao tem ligao direta com a construo da cenografia ou com amaneira de pens-la. O fato de ocupar um teatro que, por opo, quis que

    detivesse a aparncia de uma constante reforma, ou melhor, de runa, fez com

    que suas possibilidades de manipulao e adaptao ao espao se

    ampliassem e mantivessem para cada espetculo uma forma de

    aproveitamento diferente. Sobre o tema, Nelson Jos Urssi, mestre pela USP

    (Universidade de So Paulo), afirma em sua dissertao A linguagem

    cenogrficaque o cenrio deixa de ser visto como construo fsica, passandoa ser concebido como um espao do ator:

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    Como em seu Thtre Bouffes du Nord, o espaoarquitetnico deixa de ser construo fsica tornando-se oespao do ator, da ao. Peter Brook afirma que ocengrafo tem papel fundamental em criar o teatrocontemporneo e define a cenografia como um dilogocompleto de um espetculo ao vivo teatro ouperformance ou mediado com a tecnologia pelcula,vdeo ou o computador (Urssi, 2006: 67).

    Reivindicando sua concepo de espao vazio, Brook passa a no se

    utilizar de grandes cenrios. No entanto, possvel perceber a utilizao de

    vrios objetos para a composio do espao em suas peas. Todos os

    objetos em cena so manipulados pelos atores, nada se encontra em cenaapenas por uma opo esttica. Elias comenta o fato se referindo

    montagem do espetculo Marat/Sade, chamando a ateno para o aspecto

    de conveno que se estabelece a partir do jogo com o imaginrio criado

    pelo objeto:

    J nesta montagem est colocada a questo daeficincia do espao vazio. Se ele no for suficiente,

    pode-se lanar mo de objetos, que sejamindispensveis. Tratam-se (sic) de objetos vazios termo que aparecer mais tarde , ou seja, objetos comos quais se estabelece o jogo da conveno. Esse jogose estabelece no somente por meio desses objetosvazios, mas tambm atravs de sons, e do corpo dosatores (Elias, 2004: 102).

    O estabelecimento desse jogo de convenes ser fundamental para

    o preenchimento do vazio pela imaginao. de ressaltar no apenas a

    disposio do cenrio, ou do prprio objeto a ser utilizado, como tambm

    fundamental a maneira de os atores se relacionarem com essas convenes.

    Assim, o ator de Brook assume a responsabilidade pelo que ser feito, e

    poder ampliar ou reduzir o vnculo com o espectador, dependendo de sua

    possibilidade de concentrao.

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    1.8 A MSICA NOS ESPETCULOS DE PETER BROOK

    A msica um elemento capital na construo de um espetculo, em

    sua opinio. O profissional que produz a msica para a montagem deve estar

    integrado ao grupo e compor o repertrio do espetculo medida que o

    trabalho se desenvolve. No deve existir distncia entre o trabalho sonoro e

    o de cena, pois um est dentro do outro: so uma coisa s. Brook dedica

    grande ateno ao som e msica e afirma que a energia da msica tem

    que ser a mesma do espetculo (Brook, 1999: 26).

    Em artigo publicado pela Associao Brasileira de Artes Cnicas

    (ABRACE), intitulado Peter Brook e o CIRT: os anos de ruptura, Matteo Bonfitto

    comenta a montagem de Orghast, realizada em 1971 pelo grupo dirigido por

    Brook. Trata-se de um trabalho experimental inspiradono mito de Prometeu, o

    semideus que roubou o fogo pertencente to s aos deuses e o trouxe do

    Olimpo para os homens e por isso foi punido. Escrito por Peter Brook e Ted

    Hughes, o texto contm partes em uma lngua inventada, que revelava o

    interesse por experimentar diferentes possibilidades de som para a cena e no

    somente uma busca pela msica em si, mas por distintos recursos sonoros,

    como aqueles advindos de uma possvel lngua inexistente. Bonfitto relaciona a

    busca pela explorao da msica e do mito de Prometeu, comparando algo

    que teriam em comum, isto , o fato de que o mito e a msica teriam a

    possibilidade de comunicar, antes de haver o entendimento intelectual:

    Tal correlao entre msica e mito funcionou durante oprocesso criativo de Orghast como uma metforapragmtica; ela se tornou um objetivo que os atores

    deveriam buscar praticamente atravs de diferentesatividades. Esse objetivo foi enfatizado, por sua vez, poroutra caracterstica comum entre msica e mito,percebida por ambos, Levi-Strauss e Brook: mito e msicaso linguagens que podem comunicar antes doentendimento intelectual. (Bonfitto, 2008: 03; 04).

    A msica predominante em diferentes contextos sociais, tanto no

    Oriente quanto no Ocidente, e apresenta fundamental importncia nos rituais. A

    respeito do valor da msica relacionada aos rituais, assim se manifesta

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    Morgana Martins, Mestre e compositora de repertrio sonoro para teatro, em

    sua dissertao intitulada O som ouvido, visto e sentido:

    A msica est presente em representaes sagradas, emrituais; a msica adorada, vivida, sentida. A msicase permite transitar por entre espaos, frestas, tomarconta de todo um ambiente e, ainda assim, atravessa aquem se coloca diante dela. o membro virtuoso doquarteto que compe o elemento sonoro som, silncio,msica e rudoque permeiam e predominam no mundosonoro baseado entre barulho e silncio. (Martins, 2011:29)

    Sendo estas as quatro formas de se classificar o elemento sonoro (som,

    silncio, msica e rudo), a montagem Orghast de Brook oferece ateno a

    todas. Construda a partir de improvisaes, a pea foi desenvolvida por

    completo em cima do espao da encenao, o tapete. Os atores foram

    instigados a explorar o som no espao de um modo que no remetesse fala

    propriamente dita; os sons surgiram de acordo com o avano do trabalho. No

    entanto, existiu uma espcie de direo para onde deveriam convergir a

    explorao sonora. Sobre a forma como se utilizava a voz dos atores e sobre o

    tipo de sons que pretendia Brook com esse recurso, expe Gonalves:

    A utilizao por Brook da lngua inventada Orghast, exigiaque o espectador escutasse a obra com o mesmo tipo deateno com que se escuta msica. No Ir, os exerccioscriados para se aproximar desse novo universo textualseguiam a mesma linha de trabalho desenvolvida emParis, baseados no estudo de elementos como: o silncio,o som, a slaba e a palavra.Os sons do idioma Orghast - sua cadncia, tom e textura -emitidos ao ar livre nas montanhas iranianas, tinha umcarter viril e austero. O grupo de atores produzia umapolifonia de sons e palavras que sublinhava suascaractersticas internacionais. As palavras de Orghastpossuam sons duros como o or, gr, e tr, e o suave sh etambm as cinco vogais que se misturavam e fundiamnuma mesma frase para transportar o ouvinte para osmundos oriental, africano, semtico, grego e persa(Gonalves, 2011: 97).

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    Pelo seu poder de comunicao, que antecede a compreenso fornecida

    pela razo, os experimentos com msica sempre estiveram presentes no

    trabalho de Brook, que tambm realizou montagens de peras, como Carmen,

    que aconteceu em 1981. Durante o processo foram utilizados trs elencos

    distintos para a realizao do trabalho, e a base para preparar o elenco foi

    composta por improvisaes e jogos de ao e reao, realizados sempre em

    crculo. O diretor acreditava na importncia de o grupo estar integrado. Por

    isso, os msicos e o elenco de atores e cantores vivenciaram o mesmo

    aquecimento e a mesma preparao durante todo o processo. No artigo

    Journal de rptitions de la Tragedie de Carmen, encontrado em Les voies de

    la cration thtrale (Os caminhos da criao teatral),Michel Rostain, um dos

    atores que participou da montagem da pera Carmen dirigida por Brook,

    descreveu alguns ensaios. Suas anotaes ajudam a entender um pouco da

    dinmica realizada com o grupo para a montagem. Observou ele que o

    processo se iniciava com uma necessidade de Brook romper com a maneira

    como os integrantes imaginavam a atuao numa pera. Para ele, era

    fundamental uma nova perspectiva, uma nova forma de olhar para aquela obra,

    sem que fosse cristalizada em um formato antigo, em uma ideia de pera que a

    seu ver j estava ultrapassada.

    O relato de Rostain ajuda a compreender, e de certa forma, a vivenciar

    aquele momento por meio do dirio do ator que faz tambm o leitor entender

    questes fundamentais para o processo. Seu relato parte do primeiro ensaio do

    grupo, no dia primeiro de setembro de 1981. J nesse dia Brook reuniu todos

    membros da equipe que participariam da dinmica desenvolvida. Presentes no

    processo desde o primeiro encontro da montagem, os msicos tambm

    participaram de forma prtica dessa parte do processo. O trabalho deaquecimento foi conduzido por Maurice (outro ator do grupo) e foi

    implementada feita uma dinmica de ritmo, corpo e voz. O trabalho sempre

    se iniciava com um crculo, o que de maneira geral parece permanecer em

    todos os trabalhos de Brook. No interior dessa disposio circular, eram feitos

    alguns jogos com o objetivo de desenvolver o grupo para o trabalho que seria

    realizado no segunda parte do ensaio. Brook enfatizou no primeiro ensaio a

    necessidade de se alcanar a essncia do personagem, e, sempre conformeRostain, Brook disse que alguns diretores se pautaram na tradio, e que

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    Carmen um smbolo de algum que quebra com essa tradio, ao levar seu

    amante para dentro do grupo cigano. O diretor reforou a preciso de romper

    com estticas e pensamentos j enraizados sobre a pera ao pedir que os

    atores modificassem o que estava cristalizado na pera para eles, e para

    entrarem em contato com o eu rural de cada um (Rostain, 1985: 191).

    A direo de peras na vida de Brook parece permanecer at os

    tempos atuais como, por exemplo, quando montouUma flauta mgica (Une

    flte enchante, 2010), adaptado da pera de Mozart por ele, Franck

    Krawczyk e Marie-Hlne Estienne. A pera veio para o Brasil em 2011 e se

    apresentou em algumas capitais: So Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte

    e Porto Alegre. Tive a oportunidade de v-la duas vezes em Porto Alegre.

    O cenrio da montagem era basicamente composto por varas de bambu

    com a altura em torno de quatro metros aproximadamente. Essas varas

    repousavam em uma base de ferro, em torno de 10cm, e isso ampliava as

    possibilidades do objeto, pois tal base permitia que as varas ficassem em p,

    como podemos ver na foto abaixo que mostra um momento em que os bambus

    construam ou representavam uma floresta inteira:

    Imagem 3: Uma Flauta Mgica12

    12Foto retirada do sitewww.satisfeitayolanda.com.bracesso 18 mar. 2012.

    http://www.satisfeitayolanda.com.br/http://www.satisfeitayolanda.com.br/
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    Era possvel ento perceber nos atores uma habilidade para a

    manipulao do objeto que, aliada imaginao do pblico, fazia com que os

    espectadores pudessem ver e entender o que lhes era proposto. Os

    movimentos eram claros, limpos e precisos, e assim o espectador era

    facilmente conduzido pelos atores. Os bambus manipulados podiam mudar de

    significado de uma cena para outra. Em uma cena, por exemplo,

    representavam um buraco na terra, em outra uma grande floresta, ou em outra

    eram a ira da Rainha da noite. Na foto abaixo se pode ver com maior clareza

    os atores manipulando os bambus e criando formas com eles, a Princesa e

    Papagueno cavando um buraco e passando debaixo da terra. Os bambus

    representam a terra sobre eles e em frente a eles:

    Imagem 4: Uma Flauta Mgica II13.

    Nessa montagem, Brook optou por apenas um msico, ao invs de

    uma orquestra. Ele se localizava na lateral direita do palco e era responsvel

    por todas as msicas do espetculo. No entanto, o elenco inteiro se

    alternava de uma apresentao para outra e o msico tambm alternava

    com outro msico. Pude ver o espetculo com dois elencos diferentes, que

    se relacionavam com o pblico de uma forma intensa. Brook montou um

    13Foto retirada do sitewww.jb.com.bracesso 18 mar. 2012.

    http://www.jb.com.br/http://www.jb.com.br/http://www.jb.com.br/
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    espetculo com a durao de quatro horas, mas trouxe para o Brasil uma

    verso reduzida de apenas uma hora e meia. Contudo, teve que adaptar a

    sua prpria montagem, no entanto, era possvel acompanhar toda a histria,

    sem que isto atrapalhasse a compreenso do enredo. Mesmo em uma

    montagem de uma pera ele rompe padres e mantm sua coerncia de

    pensamento, entre o que pe em prtica e o que acredita ser o teatro. Nessa

    obra, pertinente a proposta de transformar espaos e objetos vazios em

    espaos e objetos repletos de significados. Por meio dessa prtica se

    estabelece a cumplicidade entre espao e objeto vazio junto imaginao

    criada na relao entre os atores e o pblico, existente no teatro de Brook.

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    CAPTULO II: MARAT/SADE DE PETER BROOK UMA LEITURA DA

    TEATRALIDADE NO CINEMA COM INFLUNCIA(S) DE BRECHT E

    ARTAUD

    necessrio que tudo acontea numa grande claridade[...] que tudo seja contrrio imagem de uma noite. Estapea uma celebrao criao no teatro.14

    2.1 A TEATRALIDADE CINEMATOGRFICA EM MARAT/SADE DE

    PETER BROOK

    Anatol Rosenfeld, terico de teatro, observa no seu livro Teatro moderno

    (1985), quanto teatral o texto Marat/Sade de Peter Weiss. A montagem j

    traria em si uma consistente proposta de encenao, to minuciosamente

    elaborada que ele a associa a uma atitude barroca:

    A msica, a cenografia e a pantomima fazem parteintegral da obra. Trata-se de teatro teatral, teatrodesenfreado no sentido mais genuno. Ocorre a

    lembrana do teatro barroco. Mas precisamente por isso apea se filia a vigorosas tendncias contemporneas dacena brechtiana e claudeliana, principalmente aoantiilusionismo de um teatro que, na sua acentuao doelemento teatral, no visa verossimilhana realista(Rosenfeld, 1985: 235).

    Portanto, como afirma o terico, a teatralidade est presente de maneira

    vigorosa no texto de Weiss. Assim, essa caracterstica ajuda a reforar a

    presena do elemento teatral na encenao de Marat/Sadede Peter Brook. Aesse propsito, o terico francs Patrice Pavis ressalta em sua obra AAnlise

    dos espetculos que os recursos flmicos fortalecem a sua presena:

    Todos esses procedimentos flmicos escala dos planos,cortes, defasagens inscrevem o proflmico teatral (ou oque resta dele) em um discurso de forte identidadeflmica, que no d nunca a impresso de teatro filmado.

    14Peter Brook em entrevista com Denis Bablet, junho de 1972 (Rostain, 1985).

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    [...] Nesse Marat-Sade, todos os procedimentos flmicosesto a servio da teatralidade (2003: 104).

    perceptvel a preocupao de Brook na transposio da pea para a

    linguagem do cinema. No entanto, sabemos que se trata de teatro, inclusivequando nos deixamos conduzir pelos acontecimentos, pois eles so sempre

    interrompidos, fragmentados e logo um instrumento toca, ou um grito ecoa, ou

    at mesmo o pblico