DISSERTAÇÃO - Na América, A Esperança - Os Imigrantes Sírios e Libaneses e Seus Descendentes Em Juiz de Fora, Minas Gerais (1890-1940)

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Na América, A Esperança - Os Imigrantes Sírios e Libaneses e Seus Descendentes Em Juiz de Fora, Minas Gerais (1890-1940)

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  • Juliana Gomes Dornelas

    NA AMRICA, A ESPERANA: OS IMIGRANTES SRIOS E LIBANESES E SEUS DESCENDENTES EM JUIZ DE FORA, MINAS GERAIS (1890-1940)

    Dissertao de mestrado

    Juiz de Fora 2008

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

    NA AMRICA, A ESPERANA: OS IMIGRANTES SRIOS E LIBANESES E SEUS DESCENDENTES EM JUIZ DE FORA, MINAS GERAIS (1890-1940)

    Juliana Gomes Dornelas

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Histria por Juliana Gomes Dornelas

    Orientador: Prof. Dr. Alexandre Mansur Barata.

    Juiz de Fora 2008

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    Juliana Gomes Dornelas Na Amrica, a Esperana: os imigrantes srios e libaneses e seus descendentes em Juiz de Fora, Minas Gerais (1890-1940)

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal de Juiz de Fora como requisito para a obteno do ttulo de Mestre e aprovada, em 06 de junho de 2008 por:

    Prof. Dr. Alexandre Mansur Barata (orientador) Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

    Profa. Dra. Snia Cristina da Fonseca Machado Lino Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

    Prof. Dr. Srgio Tadeu de Niemeyer Lamaro Universidade da Califrnia Davis-EUA

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    AGRADECIMENTOS

    Ao longo deste trabalho foram muitos os que colaboraram de forma direta e at mesmo indireta, para sua realizao. No s instituies com os seus documentos e seus funcionrios, como tambm pessoas prximas e distantes. Para elaborarmos uma dissertao, precisamos de fontes que nos permitam uma anlise aprofundada sobre determinado assunto, para que depois seja possvel escrever sobre o tema pesquisado. No conseguiria redigir esta dissertao sem a ajuda daquelas que armazenam estes documentos: as instituies de pesquisa. Devo, ento, agradecer a todas instituies que me acolheram e aos seus funcionrios, que atenciosamente me atenderam e apresentaram as fontes que faziam parte do meu objeto de estudo. Dessa forma, sou grata ao Arquivo da Prefeitura Municipal de Juiz de Fora e ao Centro de Memria da Biblioteca Municipal Murilo Mendes, juntamente com seus funcionrios. Agradeo tambm ao Arquivo Histrico da Universidade Federal de Juiz de Fora, dirigido por Galba di Mambro; ao senhor Ernesto Giudice Filho, que permitiu o acesso aos documentos escolares dos alunos do Colgio Granbery, alocados no Arquivo Histrico e Museu Granbery; a senhora Maria do Carmo Schweigert, do Colgio Academia (Cristo Redentor); ao senhor Luiz Carlos Lawall e ao Padre Antnio Cornlio Vianna, que abriram as fontes de casamentos da Igreja Catedral para minha pesquisa; a senhora Conceio, funcionria da Escola Estadual Delfim Moreira, que me indicou as listas de matrculas de alunos; a senhora Elaine da Associao Comercial de Juiz de Fora, que foi muito positiva em atender a minha necessidade; e ao Senhor Wilson Coury Jabour Jr. e a seu pai Wilson Coury Jabour, que me indicaram as pessoas a quem eu devia entrevistar e me disponibilizaram com o maior zelo e empenho o arquivo pessoal do senhor Felippe Coury Jabour, que respectivamente av e pai dos citados acima. Tambm, de fulcral importncia agradecermos a algumas pessoas que nos ajudaram a tornar esta dissertao mais viva, mais interessante, ao conceder-nos entrevistas sobre suas trajetrias. Sem a boa vontade e a colaborao destas, seria impossvel nos aprofundarmos no tema por ns estudado. So elas: Wilson Coury Jabour, Mtanos Miana, Marie Hallack, Amlia Arbache Arbex, Georges Sabbagh, Snia Sabbagh, Wadya Arbex, Jos Miguel Kassis, Rachel Kassis, Maria Hallack, Nicolas Youssef Nakhle, Emma Jabour, Luiz Abraho Sefair e Mounira Haddad Rahme.

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    Devo meus sinceros agradecimentos ao meu orientador, Alexandre Mansur Barata, que me acompanhou desde o incio deste trabalho at o momento da defesa, e no poupou esforos para me ajudar. Fez muitas correes e me concedeu uma srie de dicas, que s me fizeram crescer como pessoa e como profissional. Sem esta figura importante no seria

    possvel a finalizao de nossa dissertao. Mas no foram s os professores que estavam por perto que contriburam para a realizao deste trabalho. Devo agradecer ao Professor Srgio Tadeu de Niemeyer Lamaro, que novamente me ajudou a melhorar o meu texto, indicando leituras novas e questes recentes sobre o assunto. Agradeo tambm queles que aceitaram de imediato ao convite de fazerem parte de minha banca de qualificao e de defesa: ao Prof. Dr. Marco Antnio Cabral dos Santos, ao Prof. Dr. Srgio Tadeu de Niemeyer Lamaro e a Profa. Dra. Snia Cristina da Fonseca Machado Lino. Meus companheiros de mestrado tambm tm sua parcela de colaborao na definio e redao desta dissertao. Gostaria de agradecer em especial a uma amiga, Mara, que foi para mim como uma co-orientadora, porque me acompanhou em todos os momentos de dvida, lendo o que eu havia escrito e coletando fontes importantes para meu tema de estudo, que encontrava quando estava realizando seu trabalho de pesquisa. Da mesma forma, agradeo ao meu amigo Cleyton, que colaborou com esta dissertao ao tambm fotografar documentos que se tornaram fundamentais para nossa redao. Por fim, mas no menos importantes, esto os amigos que participaram da minha vida antes, durante e espero que depois deste mestrado, e que involuntariamente me ajudaram, ao me fazer esquecer um pouco das responsabilidades, aliviando as tenses comuns de aconteceram neste perodo de nossas vidas. O meu muito obrigado ao Juliano, Yara, Raphaela, Iverson e Ana Paula. Minha famlia foi outro ponto de apoio e de colaborao nesta pesquisa, auxiliando-me em minhas viagens de madrugada, para chegar a tempo de assistir as aulas do mestrado, j que no trabalhava em Juiz de Fora e sim em Manhuau, minha cidade natal. A meus pais, os meus agradecimentos por me auxiliarem e por ficarem acordados comigo em muitas madrugadas para me levar a rodoviria; aos meus irmos, agradeo por compreenderem que eu precisava de me apossar do computador para redigir meu trabalho. Ao meu namorado Cristiano, que um grande companheiro, por entender minhas viagens constantes, minha falta de tempo e por me acompanhar em todos os momentos difceis com os quais me deparava, meu muito obrigada. Sem sua ajuda no seria possvel chegar at aqui.

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    Por fim, e corro o risco de ter esquecido de algum, agradeo aos imigrantes srios e libaneses, que mesmo sem saber, possibilitaram a existncia deste trabalho, atravs da preservao de sua histria, suas tradies, suas culturas. Pelas biografias e livros escritos por descendentes e pelo emprstimo de suas trajetrias de vida para a redao deste trabalho. Se no fossem por vocs, hoje esta dissertao no seria realidade. A todos vocs, meus sinceros agradecimentos.

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    A meus pais Salvador e Maria Aparecida e ao meu namorado Cristiano,

    com gratido e amor.

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    Tinham acabado de desembarcar. Sentem-se tolhidos, perdidos, acuados em meio a estridncia de sons, onde se confundem vozes, risos, gargalhadas, gritos, chamamentos, xingaes, choros de alegria, murmrios de decepo, perguntas em espanhol, em italiano, em alemo, em francs, em ingls. Se questionam, e em rabe, no haver?

    (Salim Miguel Nur na escurido)

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    RESUMO

    A dissertao analisa a chegada e a insero de imigrantes srios e libaneses na cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais, entre os anos de 1890 e 1940. Procurou-se identificar os mecanismos de adaptao desses imigrantes sociedade juizforana, as trocas culturais vivenciadas no decorrer do perodo, bem como, os obstculos e conflitos enfrentados. Para tanto, atentou-se para diferentes instncias da vida cotidiana desse grupo tnico: a formao educacional; a constituio de matrimnios; a mobilidade social e as atividades econmicas e profissionais exercidas. Para dar conta dos objetivos propostos, um conjunto diversificado de fontes foi utilizado: entrevistas orais, livros de matrculas das escolas (Colgio Granbery, Academia de Comrcio, Escola Estadual Delfim Moreira); registros de casamentos realizados na Igreja Catedral Metropolitana de Juiz de Fora; processos criminais; inventrios; documentos da Associao Comercial de Juiz de Fora e imprensa. O fio condutor da pesquisa a percepo de que a insero de srios e libaneses na cidade de Juiz de Fora foi marcada por trocas culturais que no implicaram numa assimilao total com a conseqente perda da cultura pr-imigratria. Mas, ao contrrio, verificou-se um processo de mo-dupla, no qual as trocas culturais acabaram por modificar parcialmente tanto a populao local quanto os imigrantes que se estabeleceram na cidade.

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    ABSTRACT

    The dissertation analyzes the syrian and lebanese immigrantsarrival in Juiz de Fora City, Minas Gerais, among 1980 and 1940. It was tried to identify these immigrants adaptation mechanism in the Juiz de Foras society, the cutural exchanges in this period and the obstacles and conflits faced. Therefore, it was considered different everyday life aspects of these ethnic group: the educational background, the marriages, the social mobility and the professional and economic activities practiced. To reach the proposed objectives, a different group of sources was used: oral interviews, school registration books (Granbery School, Academia de Comrcio, Escola Estadual Delfim Moreira); marriges registrations made in the Catedral Metropolitana de Juiz de Fora Church; criminal cases; inventories; Associao Comercial de Juiz de Foras documents and the press. The main point of the research is the perception that the syrian and lebaneses adaptation in Juiz de Fora was marked by cultural exchanges that didnt result in a total comprehension and, as a result, waste of pre-immigration culture. But, on the other hand, it was verified a double-hand process, in which cultural exchanges modified parcially the local population and the immigrants that were adaptaded in the city.

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    SUMRIO LISTA DE TABELAS ........................................................................................................ 12

    LISTA DE ILUSTRAES .............................................................................................. 12 LISTA DE GRFICOS ...................................................................................................... 13 LISTA DE QUADROS ...................................................................................................... 13 INTRODUO................................................................................................................... 14 1. EMIGRAR PARA VIVER MELHOR. ........................................................................ 27 1.1 A imigrao para o Brasil: uma breve abordagem........................................................ 27 1.2 A imigrao sria e libanesa e sua singularidade........................................................... 34 1.3 O processo imigratrio no Estado de Minas Gerais...................................................... 43 1.4 Os srios e os libaneses na cidade de Juiz de Fora........................................................ 52

    2. VIVENDO E CONVIVENDO 68 2.1 O Mundo da Escola: da sada de casa ao contato com as crianas locais..................... 70 2.1.2 Colgio Americano Granbery.............................................................................. 73 2.1.2 Academia de Comrcio........................................................................................ 82 2.1.3 Grupo Escolar Delfim Moreira............................................................................. 91 2.2 Casamentos realizados na Igreja Catedral Metropolitana de Juiz de Fora.................... 97

    3. A SOCIALIZAO PELO TRABALHO ..................................................................... 107 3.1 O trabalho de mascate: incio de vida de muitos imigrantes srios e libaneses............. 108 3.2 A alteridade e seus conflitos: das reclamaes escritas a crimes de leso corporal...... 114 3.2.1 Mercadores ambulantes: problema para o comrcio local................................... 115 3.2.2 Leses corporais e ofensas pessoais: outra forma de expresso dos conflitos..... 121 3.3 Fracassos escondidos, mitos criados............................................................................. 131

    CONSIDERAES FINAIS................................................................................................. 147 FONTES E BIBLIOGRAFIA ............................................................................................... 152 ANEXOS................................................................................................................................ 162 Anexo 1 Modelo de questionrio das entrevistas.......................................................... 162 Anexo 2 Modelo de Cesso de Direitos........................................................................ 163

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    LISTA DE TABELAS

    1. Desembarques de imigrantes, por qinqnio, Brasil, 1890-1940.................................... 31 2. Imigrao por nacionalidade, Brasil, 1884-1933 .............................................................. 33 3. Recenseamento populacional, permetro urbano, Juiz de Fora, 1893 ............................... 55 4. Sobrenomes srios ou libaneses encontrados nos livros de matrculas do Colgio

    Granbery, Juiz de Fora, 1890-1940 ................................................................................. 74 5. Total de alunos de origem sria ou libanesa matriculados no Colgio Granbery, Juiz de

    Fora, 1890-1940 ................................................................................................... 75 6. Endereos dos alunos de origem sria ou libanesa matriculados no Colgio Granbery,

    Juiz de Fora, 1890-1940 .................................................................................................. 79 7. Sobrenomes srios ou libaneses encontrados nos livros de matrculas do Colgio

    Academia de Comrcio, Juiz de Fora, 1890-1940 .......................................................... 83 8. Total de alunos de origem sria ou libanesa matriculados no Colgio Academia de

    Comrcio, Juiz de Fora, 1890-1940 ................................................................................ 84 9. Sobrenomes srios ou libaneses encontrados nos livros de matrculas do Grupo Escolar

    Delfim Moreira, Juiz de Fora, 1939-1940 94 10. Endereos dos alunos de origem sria ou libanesa matriculados no Grupo Escolar

    Delfim Moreira, Juiz de Fora, 1939-1940 ....................................................................... 95 11. Casamentos realizados com pessoas de outra ascendncia, Juiz de Fora 1890-1940 ..... 99 12. Padrinhos dos casamentos entre pessoas de origem sria ou libanesa, Juiz de Fora,

    1890-1940 ....................................................................................................................... 101 13. Casamentos entre brasileiros com padrinhos de origem sria ou libanesa, Juiz de Fora,

    1890-1940 ........................................................................................................... 101 14. Motivos dos conflitos que envolveram srios, libaneses ou seus descendentes, Juiz de

    Fora, 1890-1940 .............................................................................................................. 126 15. Instrumentos e golpes empregados nos conflitos de leso corporal, Juiz de Fora, 1890-

    1940 ................................................................................................................................. 129 16. Vtimas e rus nos processos de Calnia e Injria, Juiz de Fora, 1890-1940 ................. 130

    LISTA DE ILUSTRAES

    1. Mapa do Lbano ................................................................................................................ 58 2. Mapa da Sria .................................................................................................................... 59 3. Propaganda do estabelecimento Casa Libaneza, Juiz de Fora, 1912 ............................. 138 4. Propaganda do estabelecimento Casa Sria, Juiz de Fora, 1912 .................................... 138

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    LISTA DE GRFICOS

    1. Movimento Imigratrio de turco-rabes, Brasil, 1908-1913 ............................................ 41 2. Entradas e sadas de imigrantes srios e libaneses, Brasil, 1935-1939 .............................. 42 3. Movimento Imigratrio, Minas Gerais, 1896-1926 .......................................................... 46 4. Cursos freqentados por alunos de origem sria ou libanesa matriculados no Colgio

    Granbery, Juiz de Fora, 1890 a 1940 .............................................................................. 76 5. Naturalidade dos alunos de origem sria ou libanesa matriculados no Colgio Granbery,

    Juiz de Fora, 1890 a 1940 ............................................................................................... 78 6. Cursos freqentados por alunos de origem sria ou libanesa matriculados no Colgio

    Academia de Comrcio, Juiz de Fora, 1890 1940 .................................................. 85 7. Naturalidade dos alunos de origem sria ou libanesa matriculados no Colgio

    Academia de Comrcio, Juiz de Fora, 1890-1940 .......................................................... 86 8. Naturalidade paterna dos alunos de origem sria ou libanesa matriculados no Grupo

    Escolar Delfim Moreira, Juiz de Fora, 1939-1940 .......................................................... 93 9. Profisso paterna dos alunos de origem sria ou libanesa matriculados no Grupo

    Escolar Delfim Moreira, Juiz de Fora, 1939-1940 .......................................................... 95 10. Casamentos entre pessoas de origem sria ou libanesa, Juiz de Fora, 1890-1940 .......... 98 11. Vtimas e Rus nos Processos crime de Leso corporal, Juiz de Fora, 1890 a 1940 ...... 122 12. Conflitos entre pessoas de origem sria ou libanesa e outras nacionalidades, Juiz de

    Fora, 1890-1940 .............................................................................................................. 124

    LISTA DE QUADROS

    1. Relao de Entrevistados ........................................................................................ 23 2. Estabelecimentos Comerciais e Fabris de srios ou libaneses, Juiz de Fora, 1912 .......... 136 3. Estabelecimentos Comerciais e Fabris de srios ou libaneses, Juiz de Fora, 1915 .......... 139

    4. 4. Estabelecimentos Comerciais e Fabris de srios ou libaneses, Juiz de Fora, 1916 .......... 140 5. Estabelecimentos Fabris de srios ou libaneses, Juiz de Fora, 1928 ................................ 141

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    INTRODUO

    Fato social total, verdade; falar de imigrao falar da sociedade como um todo, falar dela em sua dimenso diacrnica, ou seja, numa perspectiva histrica (...) e tambm em sua extenso sincrnica, ou seja, do ponto de vista das estruturas presentes da sociedade e de seu funcionamento. 1

    A chegada de grupos imigrantes em um novo pas permeada de mudanas, tanto para aqueles que se instalam, quanto para aqueles que j moram no lugar, e que tm que aprender a conviver com pessoas diferentes. um contato acompanhado de conflitos e de preconceitos, mas tambm de formao de laos de amizades e de respeito mtuo. No decorrer deste relacionamento as trocas culturais vo acontecendo, de forma a incrementar e modificar parcialmente as tradies locais e a dos imigrantes.

    Essa dissertao tem por objetivo geral analisar a chegada e insero de imigrantes srios e libaneses na cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais, entre os anos de 1890 e 1940. O processo imigratrio deste grupo para o Brasil trouxe em seu bojo uma caracterstica peculiar: a sua independncia. Os emigrados partiam de sua terra de origem, muitas vezes por deciso familiar, que pagavam suas despesas de viagem. No foi o tipo de imigrao incentivada pelo estado brasileiro e/ou subsidiada por ele.

    Os imigrantes srios e libaneses comearam a chegar ao Brasil no fim do sculo XIX e incio do XX, fixando-se nos principais centros urbanos do pas. Se grande parte concentrou-se em So Paulo, outros acabaram por se espalhar por quase todo o territrio brasileiro: Amazonas, Acre, Par , Mato Grosso, Rio de Janeiro e Minas Gerais, dentre outros. Para alguns historiadores, esta disperso acentuada possui estreita ligao com a atividade econmica desenvolvida pelos primeiros imigrantes srios e libaneses, ou seja, a mascateao. 2

    1 SAYAD, Abdelmalek. A imigrao ou os paradoxos da alteridade. So Paulo: Editora da USP, 1998. p. 16.

    2 TRUZZI, Oswaldo Mrio Serra. Cultura e imigrao rabes: influncia na sociedade brasileira. In: Relaes

    entre Brasil e o mundo Srios e libaneses: construo e perspectiva., 06, 2000. Anais do Seminrio Internacional... Braslia: Fundao Alexandre Gusmo, 2001. Parte VII, p. 01-73.

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    Escolhemos Juiz de Fora como espao privilegiado de anlise em funo da presena marcante deste grupo tnico na cidade. Se at o presente momento no existem dados quantitativos que permitam saber o tamanho dessa comunidade em Juiz de Fora, o que nos permitiria fazer uma comparao com outras regies, a existncia, por exemplo, de duas instituies consolidadas, como o Clube Srio e Libans e a Igreja Melquita Catlica de So Jorge, um bom indicador da importncia e da insero da colnia no seio da sociedade juizforana.

    Por sua vez, adotou-se como recorte cronolgico o perodo entre os anos de 1890 e 1940. O primeiro registro oficial encontrado da presena desse grupo tnico em Juiz de Fora foi o Censo realizado em 1893 que identificou a presena de 27 rabes no permetro da cidade que contava ento com 10.200 habitantes. 3 A historiografia local tambm considera que foi na ltima dcada do sculo XIX que os primeiros imigrantes libaneses chegaram a Juiz de Fora.4 Fixamos o ponto final de nosso trabalho na primeira metade do sculo XX. Isto se justifica pela constatao de um processo de queda substancial da entrada de srios e libaneses no Brasil ocorrido na dcada de 1930. No perodo getulista a questo da etnicidade se fez presente e o estrangeiro passou a ser visto como perigo para a ordem social. 5 A partir deste momento estabeleceram-se polticas de maior controle da imigrao, como podemos perceber na Constituio de 1934. A partir desta data a corrente imigratria vinda de cada pas no poderia exceder anualmente a dois por cento sobre o total do nmero de imigrantes de cada etnia j residente no Brasil, vedando a possibilidade destes se concentrarem em determinados pontos do territrio, devendo lei regular a seleo, localizao e assimilao do aliengena. 6 Todas estas restries trouxeram consigo a diminuio do fluxo imigratrio

    3 Boletim de Estatstica do municpio de Juiz de Fora referente ao ano de 1928. Juiz de Fora, 1928. Arquivo da

    Prefeitura Municipal de Juiz de Fora. Fundo Cmara Municipal, Repblica Velha. Srie 164. Caixa 120.

    4 Na historiografia local temos dois trabalhos: ALMEIDA, Ludmilla Savry. Srios e libaneses: redes familiares e

    negcios, In: BORGES, Clia Maia. (org.). Solidariedades e conflitos: histrias de vida e trajetria de grupos em Juiz de Fora. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2000; BASTOS, Wilson de Lima. Os srios em Juiz de Fora. Juiz de Fora : Edies Paraibuna, 1988.

    5 SOUZA, Rogrio Luiz de. Uma raa mista, uma sociedade homognea: o projeto tnico do catolicismo em

    Santa Catarina. In: Fronteiras: Revista Catarinense de Histria. Florianpolis: UFSC, v. 7, p. 73-88, 1999. Disponvel em: http://www.cfh.ufsc.br/~larc/arquivos/raca_mista_rogerio.PDF

    6 CONSTITUIO DA REPBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL DE 16 DE JULHO DE 1934.

    Disponvel em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao34.htm. Capturado em: 16/08/2006.

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    nesta dcada, o que foi agravado com a ecloso da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), que acabou por dificultar (mas no cessar) a entrada de imigrantes. 7

    O fenmeno imigratrio para o Brasil estabeleceu-se em dois momentos diferentes e com objetivos dspares. 8 A primeira fase imigratria ocorreu a partir de 1808 com a vinda da famlia real portuguesa para o Rio de Janeiro, e tinha por objetivo a ocupao de parte do territrio brasileiro. Por iniciativa da Coroa Portuguesa, estabeleceram-se no Brasil imigrantes brancos, catlicos e agricultores que vieram para trabalhar em colnias agrcolas. A primeira tentativa oficial de formao de uma colnia aconteceu em Nova Friburgo, em 1818.9 Houve outras tambm como a de So Leopoldo (Rio Grande do Sul em 1825) e a de Leopoldina (na Bahia).10

    Com o fim do trfico de africanos para o Brasil em 1850, houve a necessidade de se conseguir mais mo-de-obra para as lavouras de caf a fim de substituir o trabalho escravo que com o tempo se tornaria escasso. Uma das alternativas foi o incentivo imigrao europia. Mas a entrada macia desses imigrantes s aconteceu a partir da dcada de 1880, quando as despesas de viagem passaram a ser subvencionadas pelo Estado. Grande parte desses imigrantes foram conduzidos, sobretudo para as lavouras de caf do Sudeste (So Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais) ou para as colnias no Paran, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. 11

    Entretanto o campo no foi o nico lugar visado pelos imigrantes, j que muitos acabaram por se instalar nas cidades. Ainda que se recorresse ao estrangeiro para substituir a mo-de-obra escrava no campo, a imigrao urbana tambm aconteceu. Alguns imigrantes que vinham em busca de uma vida melhor e com o desejo de acumular dinheiro se dirigiram para as cidades, ocupando principalmente postos no comrcio, nos transportes, obras pblicas e no servio domstico. 12 Esse foi o caso dos imigrantes srios e libaneses, que se dedicaram em sua maioria s atividades urbanas, principalmente, aquelas ligadas ao comrcio.

    Essa pesquisa sobre a imigrao sria e libanesa ganha relevncia ao constatarmos que a maioria dos trabalhos sobre a histria da imigrao no Brasil concentra-se no estudo

    7 Roberto Khatlab destaca que este conflito levou a uma nova interrupo do fluxo imigratrio, que j havia

    diminudo quando da ocorrncia da Primeira Guerra Mundial. In: KHATLAB, Roberto. Brasil-Lbano: amizade que desafia a distncia. EDUSC, 1999. p. 43.

    8OLIVEIRA, Lcia Lippi. O Brasil dos imigrantes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2002. 2 edio. p. 13-16. 9 DIGUES JNIOR, Manuel. Etnias e culturas no Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exrcito, 1980. p.

    121. 10

    COSTA, Emlia Viotti da. Da monarquia Repblica: momentos decisivos. So Paulo: Grijalbo, 1977. p. 164-166.

    11 Idem, p. 167, 211, 212.

    12 MENEZES, Len Medeiros de. Os indesejveis: desclassificados da modernidade. Protesto, crime e expulso na Capital Federal (1890-1930). Rio de Janeiro: UERJ, 1997. p. 64-66.

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    daqueles grupos tnicos que vieram para c de forma mais expressiva: italianos, portugueses, espanhis e alemes. No caso dos povos do Oriente Mdio, assim como os judeus13, japoneses, coreanos, o nmero de trabalhos reduzido. 14 Em grande parte dos estudos, eles aparecem superficialmente citados, abordando-se, sobretudo a questo do sucesso econmico. 15

    A produo historiogrfica mais numerosa sobre a imigrao de srios e libaneses concentra-se no estudo do caso paulista. Destacamos os trabalhos de Oswaldo Mrio Serra Truzzi16, Andr Gattaz 17 e Samira Adel Osman. 18 Mas houve tambm trabalhos sobre o assunto para outras regies do pas, mesmo que em pequena proporo, 19 como os textos de Srgio Tadeu de Niemeyer Lamaro. 20

    Os estudos desenvolvidos por Truzzi fazem um balano da imigrao sria e libanesa para So Paulo, abordando a sada destes grupos da terra de origem at a instalao e realizao profissional no novo pas. Para ele fundamental compreender como era a vida destes grupos anteriormente ao processo imigratrio para perceber a dimenso social do fenmeno. Destaca ainda a ascenso social vivenciada por estes grupos e busca apontar o porqu de tal fenmeno, elencando pontos para justificar o crescimento profissional de mascates a doutores. O socilogo tambm desenvolveu estudos comparativos sobre a imigrao de srios e libaneses para o Brasil e para os Estados Unidos.21 Embora

    13 Segundo Librandi, os judeus tm feito parte dos esquecidos na histria juizforana. ROCHA, Marlia Librandi. Judeus na Manchester Mineira. In: LOCUS - Revista de Histria. Juiz de Fora, v. 08, n.02, p. 107-119, 2002.

    14 LESSER, Jeffrey. A negociao da identidade nacional: imigrantes, minorias e a luta pela etnicidade no Brasil. So Paulo: Editora da UNESP, 2001.

    15 OSMAN, Samira Adel. Caminhos da imigrao rabe em So Paulo: Histria Oral de vida familiar. Dissertao de Mestrado apresentada Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo. So Paulo: USP, 1998. vol. 01e 02. p. 440.

    16 O autor produziu vrios trabalhos, dentre eles: TRUZZI, Oswaldo Mrio Serra. Patrcios: Srios e libaneses em So Paulo; De mascates a doutores: srios e libaneses em So Paulo; O lugar certo na poca certa: rabes no Brasil e nos Estados Unidos um enfoque comparativo; Cultura e imigrao rabes: influncia na sociedade brasileira; Etnias em convvio: o bairro do Bom Retiro em So Paulo,

    17 GATTAZ, Andr. Do Lbano ao Brasil: histria oral de imigrantes. So Paulo: Gandalf, 2005.

    18 OSMAN, op. cit.

    19 Como os de: NUNES, Heliane Prudente. A imigrao rabe em Gois (1880-1970). Tese de Doutoramento pela Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas do Departamento de Histria da USP, abril de 1996. 271 p. So Paulo: USP, 1996; OLIVEIRA, Marco Aurlio Machado de. O mais importante era a raa: srios e libaneses na poltica em Campo Grande. Tese de Doutoramento pela Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas do Departamento de Histria da USP. So Paulo: USP, 2001; FRANCISCO, Jlio Csar Bittencourt. Srios e libaneses no Rio de Janeiro: memrias coletivas & escolhas individuais. Dissertao de mestrado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UFRJ, 2005.

    20 LAMARO, Srgio Tadeu de Niemeyer. Identidade tnica e representao poltica: descendentes de srios e libaneses no Parlamento brasileiro, 1945-1998. In: OLIVEIRA, Marco Aurlio Machado de (org.). Guerras e imigraes. Campo Grande: Editora da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, 2004.

    21 Oswaldo Mrio Serra Truzzi Doutor em Cincias Sociais e possui um nmero expressivo de trabalhos sobre imigrao dos srios e libanesess para So Paulo, entre artigos e livros.

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    enriquecedora, a anlise de Truzzi sobre a ascenso social desses imigrantes, de mascates a doutores, vem sendo questionada pela historiografia recente, cada vez mais preocupada com obstculos e fracassos enfrentados pelos imigrantes no decorrer da sua insero no Brasil.

    Andr Gattaz, em seu livro Do Lbano ao Brasil: histria oral de imigrantes, ressalta que o desconhecimento da histria do Oriente Prximo produz confuses quanto ao trato com o imigrante srio e libans, usando termos que no se referem a estes na realidade. Realmente o autor realiza um aprofundado estudo da histria do Lbano (o que o faz envolver tambm a Sria, por ter sido o Lbano parte da chamada Grande Sria durante muito tempo) perpassando os conflitos, perodos imigratrios, questes econmicas, relaes internacionais, desenvolvimento social, dentre outros. O autor critica Oswaldo Truzzi por sempre enfatizar a ascenso social que estes imigrantes e seus descendentes teriam obtido no Brasil. Gattaz demonstra que muitos deles vieram ao pas, mas no conseguiram chegar industriais ficando apenas como pequenos comerciantes ou funcionrios de seus parentes. A chegada ao setor industrial teria sido ainda mais difcil para aqueles que se instalaram no ps-1950. O autor, utilizando-se de fontes primrias (arquivos do Brasil e do exterior), fontes orais e vasta bibliografia secundria, realizou um trabalho importante para compreenso da histria do Oriente Mdio e para percepo das vrias correntes imigratrias de libaneses para o Brasil, suas caractersticas e objetivos diferentes. 22

    Samira Osman, em sua dissertao de Mestrado intitulada Caminhos da imigrao rabe em So Paulo: histria oral de vida familiar, atenta-se para as diferenas religiosas existentes dentro deste grupo. A partir da utilizao de entrevistas realizadas com base na metodologia da Histria Oral, centra seu estudo nas geraes familiares (neste caso a primeira e a segunda geraes). Destaca que para as primeiras geraes a rigidez e o fechamento dentro da colnia foi presente, mas com o passar do tempo comea-se a adaptao sociedade, mas sem perder as tradies. Questiona tambm algumas concluses encontradas em outros estudos, tais como: a idia do enriquecimento fcil associado ascenso social; a extrema glorificao da figura do mascate, presente no s em biografias e memrias de descendentes, mas tambm em trabalhos acadmicos. 23

    22 Andr Gattaz defendeu sua tese de doutorado intitulada Histria oral da imigrao libanesa no Brasil: 1880 2000, na Universidade de So Paulo, sob orientao do Professor Doutor Jos Carlos Sebe Bom Meihy, na rea de Histria Social.

    23 Samira Adel Osman, defendeu sua dissertao de Mestrado intitulada Caminhos da imigrao srios e libaneses em So Paulo: histria oral de vida familiar, na Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias

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    Srgio Tadeu de Niemeyer Lamaro trabalha com a presena dos srios e libaneses na poltica brasileira em seu texto Identidade tnica e representao poltica: descendentes de srios e libaneses no Parlamento Brasileiro, 1945-1998. Ao participar da elaborao do Dicionrio Histrico-Biogrfico Brasileiro, projeto da Fundao Getlio Vargas, o autor constatou, dentre as 4.400 biografias de membros da elite poltica brasileira, um nmero significativo de descendentes de srios e libaneses, presentes em quase todas as unidades da federao, instituindo o segundo maior grupo representado no Congresso Nacional, no perodo de 1946 at 1999, abaixo apenas dos descendentes de italianos. A partir de ento passou a estudar mais profundamente o tema, buscando compreender quais foram os motivos para tal participao poltica. Uma das respostas encontradas pelo autor seria o fato de que por estes mascatearem, inserindo-se em vrios locais do pas, houve o estmulo de emergncia de lideranas locais.

    No caso especfico da imigrao para Juiz de Fora so relevantes os de Wilson de Lima Bastos24 e de Ludmilla Savry Almeida. 25 Bastos, em sua obra sobre os srios na regio, tem como fonte principal os relatos orais obtidos atravs de entrevistas realizadas pelo autor com alguns desses imigrantes. Aps uma anlise do material recolhido, o autor destaca que a primeira gerao no envolveu-se tanto com a sociedade juizforana, tendo os casamentos sido realizados principalmente entre patrcios. Situao que muda com a segunda gerao, quando os matrimnios exgenos comearam a tornar-se mais comuns. Ao final do livro, Bastos elabora uma listagem com os nomes dos entrevistados no que se refere questo dos casamentos realizados (endgenos e exgenos) e aos cursos freqentados pelas trs geraes de srios e libaneses que fizeram parte de sua pesquisa. Esta obra nos permite conhecer alguns destes emigrantes e suas histrias, tornando-se claro que a inteno do autor seria a de registrar as memrias de uma imigrao que at ento no havia sido trabalhada.

    J Ludmila Almeida em captulo intitulado Srios e libaneses: redes familiares e de negcios do livro Solidariedades e Conflitos, inova por ressaltar os conflitos que permearam as relaes entre esses imigrantes e a populao local. A autora faz um panorama geral da imigrao dos srios e libaneses desde a terra de origem at sua chegada e instalao em Juiz de Fora, abordando onde moravam, em que trabalhavam, os divertimentos, os casamentos, a religio.

    Humanas da USP, sob orientao do Professor Doutor Jos Carlos Sebe Bom Meihy, na rea de Histria Social.

    24 BASTOS , Wilson de Lima. Os srios em Juiz de Fora. Edies Paraibuna, 1988.

    25 ALMEIDA, Ludmilla Savry. Srios e Libaneses: redes familiares e negcios, In: BORGES, Clia Maia. Solidariedades e conflitos: histrias de vida e trajetria de grupos em Juiz de Fora. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2000.

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    A partir dos trabalhos citados, algumas questes apresentam-se ainda em aberto. So elas: Quais razes motivaram a vinda desses imigrantes para o Brasil? Por que alguns deles se estabeleceram em Juiz de Fora? Como estes eram vistos pelos locais? Quais os obstculos encontrados? Como se deu a formao educacional desses imigrantes e seus descendentes? Estes imigrantes conseguiram ascender socialmente nesta cidade? Houve fracassos?

    Para dar conta dos questionamentos apresentados e, portanto, dos objetivos gerais da dissertao, um conjunto diversificado de fontes foi utilizado: entrevistas orais, relatos autobiogrficos, livros de matrculas das escolas (Colgio Granbery, Academia de Comrcio, Escola Estadual Delfim Moreira); registros de casamentos realizados na Igreja Catedral Metropolitana de Juiz de Fora; processos criminais; inventrios; documentos da Associao Comercial de Juiz de Fora e imprensa.

    Buscamos as atas de reunies da Associao Comercial de Juiz de Fora a fim de sabermos se srios ou libaneses participavam deste meio, o que nos indicaria a dedicao ao comrcio e uma proximidade com os locais. Conjugadas com os inventrios do Primeiro Ofcio (onde constava os bens de uma famlia e os integrantes desta), trouxe a possibilidade de tentar traar as trajetrias de vida de algumas famlias srias ou libanesas, e buscar saber sobre alguns alunos depois de anos de formados.

    Nos Livros de Matrcula das escolas buscamos perceber quais alunos nestas estudavam, se srios ou libaneses e seus descendentes estariam presentes nestes recintos. Nos Registros de Casamentos, procuramos compreender se estes imigrantes casavam-se somente dentro do prprio grupo. Os processos crimes vieram nos ajudar no que concerne aos conflitos estabelecidos entre srios, libaneses e locais. E a imprensa colaborou de forma direta na percepo da opinio popular sobre os mascates srios ou libaneses.

    O uso tanto de entrevistas quanto de relatos autobiogrficos impe enfrentarmos a discusso acerca das relaes entre memria e histria. Memria e Histria so diferentes sim, no que concerne tcnica utilizada para recuperar o passado e transmiti-lo. Entretanto se aproximam quando atentamos para a inexistncia de uma histria absoluta, que estaria espera de ser descoberta. Nem o historiador, nem nossas lembranas podero chegar ao que realmente aconteceu. Ambos selecionam os fatos, os organizam e os transformam em narrativas ordenadas a fim de que nos faam sentido. 26 David Lowenthal ao estudar esta

    26 LOWENTHAL, David. Como conhecemos o passado. In: Projeto Histria: revista do Programa de Estudos Ps-graduados em Histria do Departamento de Histria da PUC-SP. So Paulo: EDUC, 1998. p. 143.

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    questo destaca que (...) assim como a recordao jamais corresponde rigorosamente aos acontecimentos originais, nenhum relato histrico corresponde rigorosamente a eles (...). 27

    Se a memria seleciona acontecimentos esquecendo alguns e salientando outros (o que torna-se necessrio para restabelecer a ordem no caos dos nossos pensamentos), assim tambm acontece com a histria. Ela depende do olhar e da voz de outras pessoas que no estavam quando o fato ocorreu e que analisam posteriormente, com os ps fincados no

    presente, os documentos que foram deixados. 28 Nossas esperanas e temores, especializaes e intenes moldam continuamente o passado histrico assim como moldam nossas lembranas. 29

    Segundo ngela de Castro Gomes, as autobiografias so prprias do mundo moderno e individualista. O indivduo est construindo a partir da escrita de si seu lugar na sociedade, sua identidade, buscando organizar cronologicamente sua histria de vida. 30 Assim se algum se pe a escrever uma autobiografia, porque tem em mente fixar um sentido em sua vida e dela operar uma sntese. Sntese que envolve omisses, seleo de acontecimentos a serem relatados e desequilbrios entre os relatos (...). 31

    Neste contexto a verdade passa a ter outro sentido que no o factual e empirista, antes sim o plural, de acordo com a diversidade dos registros pessoais. Nesse sentido, o trabalho de crtica exigido por essa documentao no maior ou menor do que o necessrio com qualquer outra, mas precisa levar em conta suas propriedades, para que o exerccio de anlise seja produtivo. 32

    A memria e a histria esto ligadas ao passado e podem ser trabalhadas juntas, sendo igualmente valorizadas. So vises do que j se passou, adquiridas de forma diferenciada e que se complementam. Recortam e organizam fatos, a partir do presente, dando vida a algo anterior e que no ser resgatado inteiramente por nenhuma das duas verses.

    Buscamos tambm na realizao de entrevistas baseadas na metodologia da Histria Oral perceber a viso dos prprios imigrantes e seus descendentes sobre todo o processo de insero em uma nova cultura, tentando ultrapassar os limites de outros tipos de fontes fortemente marcados por um olhar externo ao mundo dos que emigraram. Segundo Samira

    27 Idem, p. 112.

    28 Idem, p. 95, 113.

    29 Idem , p. 113.

    30 GOMES, ngela de Castro. Escrita de si, escrita da histria: a ttulo de prlogo. In: GOMES, ngela de Castro (org.). Escrita de si, escrita da histria. Rio de Janeiro: FGV, 2004. p. 11.

    31 ALBERTI, Verena. Literatura e autobiografia: a questo do sujeito na narrativa. Revista Estudos Histricos. Rio de Janeiro, vol. 4, n. 07, 1991, p. 66-81.

    32 GOMES, op. cit. p. 15.

  • 22

    Osman: No se deve esperar que a Histria Oral venha a preencher as lacunas historiogrficas ou que as observaes do depoente seja a verdadeira histria, ou mais ainda, que venha a substituir de vez o documento escrito. No essa a inteno da Histria Oral.... 33

    As representaes que uma pessoa faz, ou mesmo uma gerao inteira tem de si e de sua poca, devem ser consideradas fatos que refletem a realidade e no construes sem

    sentido. Consideramos ento, que os relatos orais, as biografias, os relatos de vida, embora sendo baseados em um indivduo, concentram as caractersticas de um grupo, mostrando o que prprio a este. 34 Fazer histria oral significa, portanto, produzir conhecimentos histricos, cientficos, e no simplesmente fazer um relato ordenado da vida e da experincia dos outros. 35

    A relao dos entrevistados foi definida a partir de uma conversa inicial com o senhor Wilson Coury Jabour Jr. e com a senhora Mounira Haddad Rahme. Entramos em contato com todas as pessoas da lista que elaboramos, buscando saber se interessaria a estas a concesso de um relato. Destes contatos iniciais chegamos aos quatorze nomes que constam na tabela abaixo. Estes esto dispostos na ordem em que realizamos as entrevistas. Duas delas foram feitas com casais.

    33 OSMAN, op.cit. p. 17.

    34 ALBERTI, Verena. Ouvir Contar: textos em Histria Oral. Rio de Janeiro: Editora Fundao Getlio Vargas, 2004. p. 15.

    35 LOZANO, Jorge Eduardo Alves. Prtica e estilos de pesquisa na histria oral contempornea. In: FERREIRA, Marieta de Moraes & AMADO, Janana (coordenadoras). Usos & abusos da Histria Oral. 5 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002. p. 17.

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    QUADRO 1 Relao de Entrevistados 36

    Realizamos entrevistas curtas com estes depoentes, com questionrios direcionados para nosso tema de estudo, que tiveram durao mxima de duas horas. Fizemos um questionrio 37 onde destacamos as questes que nos interessava saber dos depoentes. No entanto, no eram perguntas diretas e objetivas, antes sim, gerais, que permitiam ao entrevistado contar com suas palavras como foi sua infncia, a deciso de emigrar, sua integrao ou de sua famlia em Juiz de Fora. Ao receber uma cpia da entrevista transcrita, os

    36 Estamos considerando a primeira gerao como aquela que imigrou para o Brasil, e a segunda gerao os filhos desta, a terceira os netos daquela, e assim sucessivamente.

    37 Ver no ANEXO 1 o modelo do questionrio utilizado como base para as entrevistas.

    N Nome Ascendncia Data de

    nascimento Idade Atual

    Local de nascimento

    Data de chegada

    Gerao

    1 Wilson Coury Jabour Libanesa 24/07/1931

    76 Juiz de Fora --

    2

    2 Mtanos Miana Libanesa 17/05/1934

    74 Ras Baalbek 1950

    1

    3 Marie Hallack Sria 21/10/1936

    71 Yabroud 1957

    1

    4 Amlia Arbache Cury Sria 17/05/1937

    71 Yabroud 1948

    1

    5 Georges Sabbagh Libanesa 03/03/1926

    82 Deir El Kamar

    1949 1

    6 Snia Sabbagh Libanesa 26/11/1935

    72 Jbail 1957

    1

    7 Wadya Arbex Sria 01/11/1914

    93 Yabroud 1937

    1

    8 Jos Miguel Kassis Sria 15/08/1930

    77 Yabroud 1953

    1

    9 Rachel Kassis Sria 13/08/1934

    73 Chcara --

    2

    10 Maria Hallack Sria 14/06/1916

    91 Yabroud 1931

    1

    11 Nicolas Youssef Nakhle

    Sria 12/07/1937 70

    Maalula 1958 1

    12 Emma Jabour Libanesa 26/05/1933

    75 Juiz de Fora --

    2

    13 Luiz Abraho Sefair Libanesa 10/07/1940

    67 Juiz de Fora --

    2

    14 Mounira Haddad Rahme

    Sria 13/10/1937 70

    Yabroud 1954 1

  • 24

    depoentes assinaram a carta de cesso de direitos, que concede ao pesquisador a permisso de usar o relato em seu trabalho. 38

    Muitos de nossos entrevistados emigraram tardiamente com relao ao nosso perodo de estudo. No entanto, consideramos que seus depoimentos, ao abordarem no s experincias pessoais, mas tambm uma memria familiar da imigrao, foram importantes e nos auxiliaram na difcil tarefa de compor algumas trajetrias de vida desses imigrantes e seus descendentes.

    O fio condutor da pesquisa a percepo de que a insero de srios e libaneses na cidade de Juiz de Fora foi marcada por trocas culturais que no implicaram numa assimilao total com a conseqente perda da cultura pr-imigratria. Verificou-se um processo de mo-dupla, no qual as trocas culturais acabaram por modificar parcialmente tanto a populao local quanto os imigrantes que se estabeleceram na cidade.

    Ao trabalhar com a hiptese de que ao emigrarem, os srios e libaneses tiveram que interagir com a cultura do local que escolheram para se estabelecerem, e que, portanto esta interao no teria sido unvoca, utilizo-me dos conceitos de aculturao e assimilao apontados por Jeffrey Lesser. Este autor trabalha com estes conceitos para o que ele designa como grupos no-europeus, no caso, chineses, japoneses, srios e libaneses. Lesser destaca que estes imigrantes, por serem considerados amarelos, e no pretos ou brancos, colocaram mais uma questo no debate sobre a identidade brasileira, no que diz respeito a sua cor. Houve dvidas se estes amarelos poderiam interferir no embranquecimento nacional. Para Lesser houve uma barganha cultural, um fluxo de influncias entre estes no-europeus e os brasileiros, que muitas vezes no reconhecida por nenhum dos dois grupos. Dessa forma, Lesser destaca que: A assimilao (na qual a cultura pr-imigratria da pessoa desaparece por completo) foi um fenmeno raro, enquanto a aculturao (a modificao de uma cultura em resultado de outra) foi comum. 39 Fundamento-me nestes conceitos quando me refiro s questes culturais, buscando demonstrar que estes indivduos, no perderam sua cultura original, mas tambm no a deixaram intacta, influenciando e recebendo influncias do local onde se instalaram, partindo da idia de que no Brasil o que vigorou foi um multiculturalismo, resultado da barganha entre nacionais e imigrantes, como aponta Lesser. 40

    38 As entrevistas realizadas, suas transcries, as Cesses de Direitos entregues a cada entrevistado encontram-se disponveis para pesquisa no Arquivo da Universidade Federal de Juiz de Fora, gravadas em um CD-ROM, no formato PDF. Ver tambm no ANEXO 2 o modelo da Cesso de Direitos utilizado.

    39 LESSER, Op.cit. p.22

    40 Idem, p. 19.

  • 25

    A partir destas reflexes pensamos cultura como uma forma simblica de expressar a realidade, que faz sentido no s para uma pessoa, mas para um grupo em particular. Como define Geertz, cultura : (...) composta de estruturas psicolgicas por meio das quais os indivduos ou grupos de indivduos guiam seu comportamento (...) consiste no que quer que seja que algum tem que saber ou acreditar a fim de agir de uma forma aceita pelos seus membros.41

    Para no incorrermos em concluses simplistas ou mecnicas, nos amparamos

    tambm no estudo do antroplogo noruegus Fredrik Barth. Segundo o autor dentro de um mesmo grupo tnico pode haver variaes de adaptao ao meio, alguns mostrando mais caractersticas prprias ao grupo e outros menos. 42 Ou seja, dependendo do lugar onde est instalado a pessoa e da sua viso de mundo, que ser construda sua identidade (mais prxima da cultura do local ou no). 43 O autor trabalha com o conceito de identidade contrastiva, que implica: (..) a afirmao do ns diante dos outros. Quando uma pessoa ou um grupo se afirmam como tais, o fazem como meio de diferenciao em relao a alguma pessoa ou grupo com que se defrontam. 44

    Isto nos leva a refletir que cada imigrante e cada descendente de srios e libaneses adaptou-se de forma diferenciada realidade juizforana, sentiu-se menos ou mais bem recebido, mudou suas tradies onde achava possvel e onde no cabia aos padres locais. Predominava a diversidade cultural em vez de culturas fechadas e nicas. H mudana das tradies, mas no assimilao total, que para Barth s ocorre com indivduos isolados e imaturos sociedade em que foi recebido. 45 Pretendemos analisar os imigrantes srios e libaneses e seus descendentes dentro deste quadro de adaptao aos costumes de Juiz de Fora, respeitando as diferenas de opinies de cada um, e compreendendo porque isto ocorre.

    Partindo destes pressupostos, no primeiro captulo analisaremos como foi a entrada de imigrantes no pas, quais foram os fatores de expulso da terra de origem e de atrao das Amricas, chegando tambm aos debates acerca da imigrao travados pelas elites do sculo XIX que procuravam estabelecer qual seria o imigrante desejvel e que no trouxesse perigo nao. Seguiremos fazendo um panorama sucinto sobre o Oriente Mdio e quais os motivos

    41GEERTZ, CLIFFORD. A interpretao das culturas. RJ: LTC Editora, 1989. p. 08. 42

    BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variaes antropolgicas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000. p.54

    43 Idem, p. 30

    44 BARTH, Fredrik. Ethnic Groups and boundaries: the social organization of culture difference. (org.). Boston: Little Brown & Co. 1969. Apud: OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Identidade, Etnia e Estrutura Social. So Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1976. p. 05

    45 BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variaes antropolgicas. op. cit. p. 47.

  • 26

    surgidos nesta regio que impulsionaram a emigrao. Logo depois, trabalharemos com a imigrao para Minas Gerais e por fim nos ateremos nos srios e libaneses em Juiz de Fora.

    No captulo dois, trabalharemos com o estabelecimento dos imigrantes srios e libaneses em Juiz de Fora, analisando a interao destes com os locais, no que diz respeito formao escolar e aos matrimnios.

    No terceiro captulo, analisaremos a insero destes imigrantes atravs das atividades profissionais e econmicas exercidas. Quais eram essas atividades? Quais os obstculos encontrados? Qual foi a reao dos setores j estabelecidos? Quais os mecanismos de ascenso social? Discutiremos tambm o mito do mascate empreendedor.

    Por fim cabe uma importante observao. Quanto terminologia usada para se referir ao grupo de imigrantes estudado, optei por referi-los como srios e libaneses, a despeito dos problemas decorrentes dessa identificao. Afinal, no perodo estudado, Lbano e Sria no eram estados independentes. O que s aconteceria em 1943 e 1946 respectivamente. Essa opo justifica-se, sobretudo, pelo fato de que a maioria dos imigrantes desse grupo tnico que se estabeleceu em Juiz de Fora eram procedentes de cidades ou vilas que se situam nos atuais Lbano e Sria. Estamos conscientes de que ao utilizar a identificao srios e libaneses acabamos tambm por encobrir outras identidades, tais como: regionais 46, religiosas 47, dentre outras. Consideramos a terminologia rabe generalizadora, j que ao utiliz-la iramos inserir dentre de um mesmo rtulo vrios povos que teriam suas particularidades minimizadas.

    46 ALMEIDA, op. cit. p.194.

    47 TRUZZI, Oswaldo Mrio Serra. Patrcios: Srios e Libaneses em So Paulo. So Paulo: Hucitec, 1997. p. 92.

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    CAPTULO 01 EMIGRAR PARA VIVER MELHOR

    O relato acima descrito nos oferece em boa medida a possibilidade de refletir sobre as motivaes que impulsionaram o movimento imigratrio, particularmente aquele que

    significou a vinda de milhares de srios e libaneses para o Brasil no final do sculo XIX e primeiras dcadas do sculo XX. Buscava-se uma vida melhor, mesmo que para isso os imigrantes tivessem que cruzar o oceano Atlntico e chegar a um local com hbitos e cultura to diferentes da que cultivava em sua terra natal. Dessa forma, neste captulo analisaremos o processo imigratrio a partir de trs escalas de observao. Concentrar-nos-emos em um primeiro momento no movimento imigratrio para o Brasil, trabalhando com as tentativas feitas durante o sculo XIX e incio do sculo XX a fim de povoar o pas e de se conseguir mo-de-obra principalmente para lavouras de caf. Logo depois centrar-nos-emos na imigrao 48 dos srios e dos libaneses para o Brasil como um todo. Por fim, examinaremos os imigrantes desta etnia em Minas Gerais e em especial em Juiz de Fora, local que escolhemos como centro de estudo sobre a chegada, a instalao e a adaptao deste grupo.

    1.1 A imigrao para o Brasil: uma breve abordagem

    Antes de qualquer coisa, quando tratamos de processos imigratrios estamos diretamente lidando com aquele que o agente de todo este processo: o emigrante.

    48 Os termos imigrao e emigrao distinguem-se pela posio do observador e do narrador, no entanto referem-se a um movimento nico, o que s vezes leva a uma confuso, usando-se imigrao para tudo. Dessa forma utilizarei emigrao exclusivamente para o movimento de sada do pas de origem, e imigrao para quando for tratar do processo imigratrio. In: GATTAZ, Andr. Do Lbano ao Brasil: histria oral de imigrantes. So Paulo: Gandalf, 2005. Disponvel em: http://www.gandalf.com.br/editora/gattaz.htm. p. 23.

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    Passar por esse movimento de deixar seu lugar de origem, seu pas natal e se lanar a um local ainda desconhecido no tarefa das mais simples, na medida em que envolve uma srie de dificuldades com relao a uma nova lngua que precisar ser aprendida, com uma nova cultura a ser trabalhada e com novas pessoas com as quais para sobreviver haver necessidade de estabelecer relaes que s vezes no sero muito pacficas.

    O fenmeno imigratrio contribui para dissimular a si mesmo sua prpria verdade. 49 Isto porque o emigrante sai de sua terra com o objetivo de estabelecer-se em outro local provisoriamente, em busca de uma vida melhor, que ele muitas vezes no conseguiria se continuasse estabelecido em sua cidade natal. Porm, na maioria dos casos, o que acontece a permanncia deste na sociedade que escolheu para trabalhar, uma permanncia que no decidida a princpio, e que faz parte de uma dupla contradio: (...) no se sabe mais se se trata de um estado provisrio que se gosta de prolongar indefinidamente ou, ao contrrio, se se trata de um estado mais duradouro, mas que se gosta de viver com um intenso sentimento de provisoriedade. 50 O emigrante essencialmente uma fora de trabalho provisria e s aceita viver em terra estrangeira com a condio de que isto seja passageiro. Entretanto o tempo se encarrega de fazer com que sua estada fora de seu pas seja permanente para muitos, embora sempre ocorra a sensao de que se voltar para casa em breve. 51

    Se o fato de deixar seu pas de origem algo complexo e s vezes sem volta, quais motivos levaram e levam ainda muitas pessoas a emigrarem? Por que deixar sua famlia para trabalhar e viver to longe de casa, em uma sociedade com valores dspares dos seus? Uma das explicaes para estas questes reside nos fatores de expulso de sua terra e de atrao do novo local escolhido para viver. Seria esta conjuno de fatores de expulso e de atrao que levariam as pessoas a emigrarem. Como destaca Herbert Klein:

    Para comear, deve-se dizer que a maioria dos migrantes no desejam abandonar suas casas, nem suas comunidades. (...) A migrao, portanto, no comea at que as pessoas descobrem que no conseguiro sobreviver com seus meios tradicionais em suas comunidades de origem. Na grande maioria dos casos, no logram permanecer no local porque no tem como alimentar-se nem a si prprias, nem a seus filhos. Num menor nmero de casos, d-se a migrao ou porque as pessoas so perseguidas por sua nacionalidade (...) ou seu credo religioso minoritrio. 52

    49 SAYAD, Abdelmalek. A imigrao ou os paradoxos da alteridade. So Paulo: Editora da USP, 1998. p. 45.

    50 SAYAD, loc. cit.

    51 Ibidem, p. 54 e 57.

    52 KLEIN, Herbert S. Migrao Internacional na Histria das Amricas. In: FAUSTO, Boris (org.). Fazer a

    Amrica. 2ed. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 2000. p. 13.

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    Ento, se em seu pas o emigrante vive um momento de dificuldade extrema, ele tende a deix-lo a fim de melhorar sua situao. De forma especfica, se analisarmos os processos imigratrios da virada do sculo XIX para o sculo XX para o Brasil, podemos elencar, grosso modo, dois fatores de expulso que atingiram parcelas considerveis da populao europia, isto, porque o maior grupo de imigrantes que chegou ao territrio brasileiro era majoritariamente de europeus. Refiro-me ao crescimento demogrfico e a afirmao das formas de produo capitalista. A Inglaterra e a Frana em meados do sculo XVIII passaram a viver um momento de transio demogrfica marcado por baixas taxas de mortalidade, mantendo-se altos ndices de natalidade. Essa situao se espalhou por todo continente europeu no final do sculo XIX. Junto a isto temos o incio do processo de expanso do capitalismo que levou ao aumento da produtividade e a mecanizao da agricultura europia, o que significou uma menor necessidade de mo-de-obra, em um momento em que havia muitos trabalhadores que foram expulsos dos campos devido aos novos mtodos de arrendamento, cultivo e produo do solo, com a finalidade de utilizao deste em unidades mais economicamente viveis (podemos incluir tambm neste os cercamentos ou enclosures). Processos que resultaram na Europa na formao de uma enorme massa de camponeses sem trabalho, passando fome, e com um nmero de filhos muito grande. 53

    Por sua vez, o continente americano (principalmente Estados Unidos, Argentina e Brasil), encontrava-se em situao oposta ao da Europa, contendo em si fatores de atrao. Em vez de pouca terra e muita mo-de-obra, aquele possua muita terra e poucos trabalhadores qualificados. A demanda por trabalhadores especializados era maior no continente americano e os salrios tendiam a ser mais altos do que na Europa. Alm disto, havia a possibilidade de conseguir-se um pedao de terra. Diante da situao de misria vivida pelos camponeses europeus, as Amricas tornaram-se fonte de atrao onde seria possvel melhorar de vida. E assim conjugando fatores de expulso e de atrao, a emigrao tornou-se realidade para a Europa assim como a imigrao veio a ser algo comum para as Amricas. 54

    Alm destas variveis de expulso e atrao, de ordem mais geral, temos tambm uma terceira. Trata-se da cadeia migratria. 55 Ela est ligada a um quadro organizador privado que faz com que se decida em grupo quem ir deixar sua terra a fim de complementar a renda da famlia extensa. Essa cadeia migratria: (...) impulsiona os

    53 Idem, p. 14-15.

    54 KLEIN, Herbert S. Migrao Internacional na Histria das Amricas. In: FAUSTO, Boris (org.). Fazer a Amrica. p. 16.

    55 Este termo foi retirado do livro de ngelo Trento, Os italianos no Brasil.

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    habitantes de um determinado local a seguir, justamente um processo em cadeia, queles que os precederam em uma regio (uma cidade, um bairro). Atravs deste processo aquele que deixa sua terra de origem pode encontrar apoio por parte daqueles que j esto instalados no novo lugar escolhido para trabalhar, aprendendo com estes a lngua local, conseguindo trabalho e moradia por um tempo, at que seja possvel fixar-se. Alm disto, pode haver tambm o auxlio financeiro para a compra das passagens. Tudo isto faz com que o emigrante sinta certa proteo e consiga deixar o pas com mais segurana, o que ajudou a aumentar o nmero daqueles que se lanaram ao processo imigratrio, que neste caso no foi subsidiado pelo governo, antes sim pela prpria famlia. 56

    Junto a estes fatores que estimularam o movimento imigratrio para as Amricas no

    sculo XIX e incio do XX, houve outro que o facilitou: o desenvolvimento dos meios de transportes e comunicao. Ao longo do sculo XIX houve a substituio do barco vela pelo navio a vapor, a instalao do primeiro cabo telegrfico transatlntico e a concluso do primeiro conjunto de ligaes ferrovirias, tornando mais rpidos e mais baratos os contatos entre Europa e Amrica. Diante destas circunstncias apresentadas, o ritmo imigratrio para este continente aumentou no final do sculo XIX e atingiu seu auge nas duas primeiras dcadas do sculo XX, apresentando um nmero de 31 milhes de imigrantes que entraram em territrio americano, entre os anos de 1881 a 1915. 57

    O Brasil foi o terceiro pas que recebeu mais estrangeiros, sendo antecedido pelos Estados Unidos e Argentina, que ocupam o primeiro e segundo lugares respectivamente. 58 Entre 1890 e 1940 chegaram ao territrio brasileiro cerca de 3.834.060 imigrantes, como podemos ver na tabela abaixo. 59 O fluxo imigratrio foi maior de 1870 at a Primeira Guerra Mundial, perodo no qual houve imigraes subsidiadas pelo governo brasileiro. Durante o conflito (1914 -1918) foi visvel um declnio nos desembarques. 60 Nos anos de 1920, o nmero de entradas no pas voltou a crescer. Na dcada de 1930, e especialmente prximo Segunda Guerra Mundial, presenciou-se uma nova queda substancial da entrada de estrangeiros que se manteve durante todo o conflito. 61

    56 TRENTO, ngelo. Os italianos no Brasil. So Paulo: Prmio, 2000. p. 24.

    57 Idem, p. 23 e 25.

    58 MENEZES, Len Medeiros de. Movimentos e polticas migratrias em perspectiva histrica: um balano do sculo XX. p. 126. In: CASTRO, Mary Garcia. (coord.). Migraes Internacionais: Contribuies para Polticas. Braslia: CNPD, 2001. p. 123-136. Disponvel em: www.cnpd.gov.br/public/obras/migracoes_frm.htm.

    59 IBGE. Brasil: 500 anos de povoamento. Rio de Janeiro: 2000. Disponvel em: http://www.ibge.gov.br/brasil500/index2.html. Capturado em: 03/09/2007.

    60 Idem. Durante a Primeira Guerra Mundial houve o desembarque de cerca de 190 mil imigrantes no Brasil. J durante a Segunda Guerra Mundial chegaram apenas 59.869 estrangeiros.

    61 Idem.

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    TABELA 1 Desembarques de imigrantes, por qinqnio, Brasil, 1890-1940

    Fonte: Brasil: 500 anos de povoamento. Rio de Janeiro : IBGE, 2000. Apndice: Estatsticas de 500 anos de povoamento.

    Essa baixa no volume imigratrio para o Brasil, verificada, sobretudo nos perodos de guerras, estava fortemente relacionada s dificuldades de locomoo durante os conflitos e tambm a adoo de polticas restritivas contra aqueles considerados nocivos sociedade: como os anarquistas que passaram a ser perseguidos a partir de 1917, e os comunistas. Em 1934, uma medida de restrio foi adotada ao estabelecer uma cota de 2% para a entrada de estrangeiros, sendo calculada a partir do nmero total dos imigrantes de cada nacionalidade j fixados no pas. Isto ocorreu pelo medo de compl estrangeiro e de desagregao nacional (a partir da fixao de um grande nmero de imigrantes de uma s nacionalidade em um s local), suprimindo-se at mesmo a lngua estrangeira para crianas menores de dez anos. Em 1938, essas limitaes receberam mais mudanas. Proibiu-se o ensino de lnguas estrangeiras para menores de 14 anos com o objetivo de destruir quistos estrangeiros, que pudessem afrontar a soberania nacional. 62

    O fluxo imigratrio em direo ao Brasil verificado, sobretudo, a partir da segunda metade do sculo XIX, provocou debates acerca de quais imigrantes seriam ideais para entrar no territrio nacional. A partir de 1877, quando houve a criao do curso de Antropologia Fsica no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, comeou haver estudos mais sistematizados

    62 MENEZES, Op. cit. p. 128 -130.

    Anos de chegada

    Total de desembarques

    1890 1894 600.735 1895 1899 597.592 1900 1904 249.042 1905 1909 373.365 1910 1914 667.788 1915 1919 147.675 1920 1924 373.125 1925 1929 473.521 1930 1934 213.677 1935 - 1939 119.091 1940 18.449 Total 3.834.060

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    quanto a desigualdades das raas, afirmando a superioridade branca e a inferioridade negra. 63 Os asiticos, por exemplo, no eram bem vindos. Entretanto no se preocupou em selecionar dentre os brancos quais grupos seriam mais aptos.

    No perodo republicano, a questo racial, que j vinha sendo debatida anteriormente, tornou-se preocupao principal, juntamente com o tema da assimilao. Passou haver uma ligao das realizaes econmicas, polticas e culturais de um pas ao estgio de civilizao do seu povo. Dessa forma, era comum na poca o fato de vincular o atraso brasileiro a ausncia de uma base tnica estvel e a um nmero grande de negros que eram considerados inferiores. 64 Partiu-se do pressuposto de que a cultura era biologicamente determinada, estando os europeus no topo (brancos e consequentemente civilizados), e negros e ndios se revezavam na base, como atrasados. 65 Considerando estas questes, o branqueamento da populao brasileira a partir do cruzamento de mestios com brancos seria visto como fundamental para o progresso do pas, pois acreditava-se que em trs geraes os brasileiros iriam ser em sua maioria brancos e avanados. E o imigrante fazia parte desta construo racial, com a funo de clarear a pele do futuro povo nacional. 66

    Todavia, no perodo republicano no houve aceitao de qualquer grupo branco (como no Imprio), pois passou-se a no considerar somente a cor como pr-requisito para a entrada no Brasil. Dentre aqueles considerados brancos e europeus havia os mais desejveis, analisando-se alm da pigmentao da pele, tambm a etnia, a lngua, a nacionalidade, a religio e a capacidade de assimilao de cada povo. 67 Os critrios de classificao para aceitao ou rejeio do imigrante passava por trs questes: primeiro, observava-se o grau de proximidade com os brancos; segundo, o estgio de civilizao do povo imigrado, como a importncia do pas de origem, a disciplina no trabalho, a higiene em casa e a obedincia s leis; e por fim, a propenso destes a se deixarem assimilar pelo meio brasileiro. 68 Os grupos que fugissem a estas regras no eram bem aceitos. Exemplo disto eram os imigrantes alemes, que embora fossem de pele branca e europeus, passaram a ser considerados uma ameaa

    63 SEYFERTH, Giralda. Constuindo a nao: hierarquias raciais e o papel do racismo na poltica de imigrao e colonizao. p. 48. In: MAIO, Marco Chor (org.). Raa, cincia e sociedade. Rio de Janeiro: Editora da Fiocruz/CCBB, 1996. p. 41-58.

    64 DE LUCA, Tnia Regina. A revista do Brasil: um diagnstico para a (N)ao. So Paulo: Fundao da Editora da UNESP, 1999. p. 159.

    65 Idem, p. 43.

    66 Idem p. 49 e 51.

    67 RAMOS, Jair de Souza. Dos males que vm com o sangue: as representaes raciais e a categoria do imigrante indesejvel nas concepes sobre imigrao na dcada de 20. p. 61. In: MAIO, Marco Chor (org.). Raa, cincia e sociedade. Rio de Janeiro: Editora da Fiocruz/CCBB, 1996. p. 59-82.

    68 Idem p. 74-75.

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    nacionalidade por no se integrarem facilmente e se enquistarem. 69 O ideal seria que fossemos uma nao latina e branca, preferindo-se espanhis, portugueses e italianos, que eram brancos, assimilveis e prximos culturalmente da religio e lngua brasileiras. Se alguns grupos brancos no eram aceitos, muito menos o eram os amarelos. Eles carregavam consigo o estigma da no assimilao, devido a sua cor de pele e sua cultura dspare da brasileira.

    Seguindo as normas deste debate racial, percebemos, a partir dos dados da tabela abaixo, que os grupos imigrantes que mais chegaram ao pas entre 1884 e 1933 foram os italianos, portugueses, espanhis, alemes, japoneses, srios e turcos, respectivamente.

    TABELA 2 Imigrao por nacionalidade, Brasil, 1884-1933

    Nacionalidade Perodos decenais de 1884-1893 a 1924-1933 1884-1893 1894-1903 1904-1913 1914-1923 1924-1933

    Total por nacionalidade

    Italianos 510533 537784 196521 86320 70177 1.401.335 Portugueses 170621 155542 384672 201252 233650 1.145.737 Espanhis 113116 102142 224672 94779 52405 587.114 Alemes 22778 6698 33859 29339 61723 154.397 Japoneses

    - - 11868 20398 110191 142.457 Srios e turcos 96 7124 45803 20400 20400 93.823 Outros 66524 42820 109222 51493 164586 434.645

    Fonte: Brasil: 500 anos de povoamento. Rio de Janeiro : IBGE, 2000. Apndice: Estatsticas de 500 anos de povoamento.

    Essas teorias raciais em voga nas primeiras dcadas do sculo XX tiveram influncia at o Estado Novo (1937-1945). A poltica imigratria republicana foi influenciada pelo ideal de nao configurada pela assimilao, escolhendo at mesmo dentre os grupos de pele branca aqueles mais aptos a tornar o Brasil um pas embranquecido, mas que tambm se inserissem melhor ao meio brasileiro no se enquistando e nem trazendo problemas para a formao nacional. 70 J os trabalhadores brasileiros eram excludos dos projetos coloniais por serem em sua maioria negros e mestios, considerados inferiores pela elite. 71 Geralmente estes

    69 SEYFERTH, op.cit. p. 51.

    70 SEYFERTH, Giralda. Imigrao e nacionalismo: o discurso da excluso e a poltica imigratria no Brasil. p. 149. In: CASTRO, Mary Garcia. (coord.). Migraes Internacionais: Contribuies para Polticas. Braslia: CNPD, 2001. p. 137-150. Disponvel em: www.cnpd.gov.br/public/obras/migracoes_frm.htm.

    71 Idem. p. 148.

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    nacionais que eram mo-de-obra provisria, serviam para o trabalho pesado e menos remunerado de desmatamento, desbravamento de terras e formao de lavouras novas. As

    elites da poca trouxeram o imigrante em massa, mas no abriram perspectivas melhores para o trabalhador nacional por causa do estigma de inferioridade e indolncia que carregavam consigo. 72

    1.2 A imigrao sria e libanesa e sua singularidade

    Na regio conhecida como Oriente Prximo encontramos os povos que so nosso objeto de estudo: os srios e libaneses. Um tero da populao dos atuais Sria e Lbano viviam nos vales dos cursos dgua, e outra parte situava-se entre as montanhas, que so bem munidas por chuvas.73 Durante grande parte de sua histria foram dominados, pelos turcos otomanos, e posteriormente pela Frana. A independncia definitiva s ocorreu em 1946 e 1943, respectivamente.

    Os imigrantes srios e libaneses formaram um grupo com caractersticas peculiares, dentre as quais, podemos citar a emigrao de forma no subsidiada e o no enquadramento dentro do perfil de estrangeiro desejvel. Com relao ao primeiro ponto levantado, no caso dos srios e libaneses a iniciativa de deixar sua terra natal era uma deciso tomada em famlia e no dependia do financiamento de algum pas que estivesse precisando de trabalhadores de outras regies. Essa singularidade tambm pode estar ligada ao fato de no se encaixarem no perfil desejado pela elite brasileira, que preferia os brancos, europeus e de cultura prxima a nacional. 74 Os srios e libaneses eram de tradio muito dspare da brasileira, o que levava a elite da poca a pensar que eles dificilmente se integrariam nossa sociedade. 75

    Mas por que povos to distantes de nossa cultura decidiram emigrar para local com tradies to diferentes da sua? Quais motivos os impulsionaram a virem para as Amricas e especialmente para o Brasil? Como j destacamos acima com base nas reflexes de Herbert

    72 BEIGUELMAN, Paula. A crise do escravismo e a grande imigrao. 4 ed. So Paulo: Editora Brasiliense, 1987. p. 40-43.

    73 LINHARES, Maria Yeda. Oriente Mdio e o mundo dos srios e libaneses. So Paulo: Brasiliense, 2004. Coleo Tudo Histria. p. 16

    74 Os brancos e europeus eram mais prximos da cultura da elite brasileira, pois nacionalmente falando, o Brasil era mais negro do que branco, e esta populao era pouco ou quase nada prxima da cultura europia.

    75 LESSER, Jeffrey. A negociao da identidade nacional: imigrantes, minorias e a luta pela etnicidade no Brasil: So Paulo: Editora UNESP, 2001. passim.

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    Klein, para que um povo deixe seu pas necessrio que ele reconhea que no h mais possibilidades de sobreviver e de cuidar da famlia no local onde moram. Seria uma conjuno de fatores de expulso de sua terra natal e de atrao de um outro lugar escolhido para se viver, que iria possibilitar a emigrao. 76 Apontamos isto para o caso europeu no sculo XIX, mas encontramos tambm a presena desses indicadores para a imigrao sria e libanesa ocorrida, sobretudo, no final do sculo XIX e incio do sculo XX.

    Os motivos que levaram milhes de srios e libaneses a deixarem suas cidades e buscarem uma vida melhor em uma outra regio foram vrios e tm relao com a prpria histria e formao de seus pases. As dominaes sofridas por estes povos, pelos turcos otomanos e posteriormente pelos franceses podem ser apontadas como primeiro fator de expulso. O imprio Otomano conseguiu dominar territrios com tradies polticas e religiosas dspares, mantendo muitos destes sob controle durante quatrocentos anos ou mais. 77 Durante este perodo a administrao turca para se manter no poder fomentava discrdias entre as diversas etnias, entre muulmanos e cristos (era a poltica de dividir para reinar), alm de cobrar altos impostos. 78

    No entanto, o perodo de esplendor e paz do Imprio Otomano no durou muito, mesmo tendo este a seu favor um domnio quadricentenrio. J nos sculos XVII e XVIII, teve de enfrentar o Imprio Austro-Hngaro e o Imprio Russo (que faziam fronteira com o territrio que dominava), alm das intervenes sucessivas da Frana, Inglaterra e outros pases na regio. Estes pases incentivavam os movimentos nacionalistas que comearam a

    ocorrer por parte das minorias srias, libanesas, iraquianas contra o domnio otomano. No final do sculo XIX, este nacionalismo se apresentou em duas vertentes: a primeira, que surge do renascimento promovido pelos cristos libaneses, organizando-se em Beirute uma sociedade com teor antiotomano, que reunia cristos, muulmanos e drusos, com as exigncias de que o rabe fosse a lngua oficial e que houvesse autonomia para o Lbano e a Sria; e a segunda vertente, surgiu no Egito, com carter pan-islmico, mas sem a presena de cristos. Pouco a pouco, o Imprio dos turcos otomanos foi enfraquecendo-se, embora houvesse a tentativa de se modernizar, levando ao poder uma juventude denominada de Jovens Turcos (em 1908) que defendiam a abolio da poligamia, a emancipao da mulher, a laicizao do Estado, e a centralizao do poder, o que levou a formao de um nacionalismo turco (pan-islamismo). 79

    76 KLEIN, Op. cit. p. 13-15.

    77 HOURANI, Albert. Uma histria dos povos rabes. So Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 225

    78 TRUZZI, Oswaldo Mrio Serra. Patrcios: Srios e Libaneses em So Paulo. So Paulo: Hucitec, 1997. p. 22-23.

    79 LINHARES, Op.cit. p. 28, 30, 31,39.

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    Entretanto, mesmo com estes ideais, os Jovens Turcos no conseguiram aumentar o prestgio otomano, pois ao tentar centralizar o imprio, impor a lngua e cultura turcas a todos os povos e suprimir liberdades polticas recm-conquistadas, marginalizou muitos intelectuais que os apoiaram na subida ao poder, achando que eles trariam uma maior autonomia dos pases rabes. Essa atitude de centralizao e de um nacionalismo pan-islmico dos Jovens Turcos trouxe movimentos de contestao dentro do prprio territrio arbico, com a formao de sociedades secretas, as quais os otomanos no conseguiram controlar. Isto levou a uma instabilidade interna do imprio. 80

    No momento em que estes povos acharam que se tornariam autnomos, com o fim da Primeira Guerra Mundial, quando o grupo ao qual o Imprio Otomano apoiou perdeu a guerra (a ustria-Hungria e a Alemanha), veio o perodo da dominao europia, que j estava se inserindo nestes territrios antes mesmo da queda dos turcos, pois estas regies eram alvo de seus desejos. 81 Interessavam Gr-Bretanha as rotas de acesso ndia, que se encontravam em terras asiticas e Frana interessava guardar Jerusalm, modernizar o Egito, alm de outros planos. Em abril/maio de 1916, estes dois pases, assinaram um acordo secreto, intitulado Sykes-Picot, que definia que a parte rabe do Imprio Otomano seria dividida entre eles, e caberia ao primeiro a Mesopotmia e a Palestina, e ao segundo, a Sria e o Lbano. No ps-guerra, foi assim definida a diviso, e pelo estatuto jurdico estabelecido pela Sociedade das Naes, caberia aos mandatrios preparar estes pases para a independncia. Esta foi marcada por um perodo conturbado, principalmente na Sria, onde o movimento nacionalista era forte, mas aos poucos os franceses foram tornando-se mais flexveis. Em 1936, foi reconhecida uma independncia fictcia da Sria e do Lbano, pois ainda permitia aos exrcitos franceses e ingleses permanecerem na regio, e somente em 1943 conquistam a independncia definitiva, tendo as tropas francesas se retirado da Sria apenas em 1946. 82 Devido a estes perodos de longas dominaes, muitos srios e libaneses decidiram deixar suas cidades de origem, emigrando, fugindo muitas vezes do servio militar obrigatrio imposto pelo imprio turco 83 e buscando a liberdade.

    Seguido a esta falta de autonomia, esto tambm outros problemas que a populao sofreu ao longo de todo o sculo XIX. Economicamente podemos destacar a questo da

    80 HITTI, Philip K. The Near East in History. New York, 1961. Apud. Site da Histria Islmica. Disponvel em: http://www.geocities.com/ibnkhaldoun_2000/index.html. Capturado em: 04/09/07.

    81 LINHARES, Op.cit. 13.

    82 Idem, p. 43-68.

    83 NUNES, Heliane Prudente. A imigrao rabe em Gois (1880-1970). Tese de Doutoramento pela Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas do Departamento de Histria da USP, abril de 1996. 271 p. So Paulo: USP, 1996. p. 107.

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    melhoria dos transportes martimos e terrestres que facilitou a chegada de bens manufaturados europeus ao Oriente Mdio, levando falncia um nmero grande de artesos locais que no conseguiram competir com o preo dos bens importados. As manufaturas txteis de carter domstico no resistiram ao capitalismo nascente. Socialmente, temos um aumento populacional, obtido devido queda da mortalidade e das epidemias (por causa da presena de mdicos europeus) que exigiu um maior desenvolvimento da agricultura, fazendo com que as plantaes de subsistncia perdessem espao. Ademais com aumento do ncleo familiar e com os solos semi-desrticos houve a dificuldade de alimentar a famlia extensa (pai, me, filhos, tios, avs, dentre outros) com um nico pedao de terra. Tudo isso contribuiu para a deciso de deixarem seu pas, j que neste a economia e as terras estavam cada vez mais limitadas. 84 Junto a isto temos a disputa entre as faces religiosas diferentes, entre cristos (que se esfacelavam em maronitas, ortodoxos, melquitas) e muulmanos, fomentadas pelos turcos, franceses e ingleses, que para melhor dominar apoiavam um ou outro grupo, causando hostilidades entre eles. 85

    O ncleo familiar foi outro fator que impulsionou a busca de um novo lugar para trabalhar e conseguir dinheiro. Devido a dificuldade de subsistncia de todos dentro da mesma propriedade, emigrar tornou-se uma vlvula de escape. 86 A notcia do sucesso dos primeiros que partiram de casa rumo um novo local atravs do envio de cartas e dinheiro aos parentes e a iluso da riqueza fcil, s fez engrossar o caldo daqueles que deixavam sua terra natal. 87 Alm do fator econmico que visvel, a necessidade de acumular dinheiro para melhorar a vida da famlia que ficou, havia tambm uma questo cultural, de manuteno do status, que est inserido na noo de igual ou melhor. A partir do momento em que os primeiros que emigraram passaram a enviar dinheiro para os familiares, permitiu a estes comprar terras e construir casas adquirindo prestgio junto aos locais. As outras famlias no poderiam deixar sua honra ser abalada e acabaram encaminhando algum parente para que tambm pudessem adquirir bens e no ficar atrs das outras pessoas da aldeia. A imigrao para as Amricas era uma forma de acumular peclio em propores inimaginveis para os padres locais. 88 Mussa Chacur, srio, da cidade de Homs, chegou ao Brasil em 1920, ento com 22 anos, e instalou-se

    84 TRUZZI, Oswaldo Mrio Serra. Srios e libaneses e seus descendentes na sociedade paulista. In: FAUSTO, Boris (org.). Fazer a Amrica. 2ed. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 2000. p. 316.

    85 NUNES, Op. cit. p. 105.

    86 OSMAN, Samira Adel. Caminhos da imigrao rabe em So Paulo: Histria Oral de vida familiar. Dissertao de Mestrado apresentada Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo. So Paulo: USP, 1998. vol. 01e 02.

    87 TRUZZI, Oswaldo Mrio Serra. Srios e libaneses e seus descendentes na sociedade paulista. Op. cit. p. 317.

    88 TRUZZI, Oswaldo Mrio Serra. Patrcios: Srios e Libaneses em So Paulo. Op. cit. p. 27-28.

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    em So Paulo. 89 O depoimento que ele concedeu a pesquisadora Betty Loeb Greiber nos oferece aportes para percepo da dimenso da importncia que o dinheiro enviado da Amrica tinha para as famlias srias e libanesas:

    Bom, o pessoal vinha para c e, se conseguisse, economizava 5 mil-ris por dia; vamos supor que mandasse uma mdia de 100 mil-ris por ms. 120 mil-ris valiam aqui, naquele tempo, 10 libras esterlinas, o que era muito dinheiro na Sria. Se mandassem 10 libras, faziam proviso para todo o ano: de trigo , de burgoul (trigo grosso), de arroz, de manteiga, de azeite, de verduras desidratadas para guardar para o tempo do inverno. Dava para uma famlia de cinco pessoas comear o ano. Depois, para o que precisassem todo o dia, eles trabalhavam. Tinha muitas famlias, no Lbano e na Sria, que s esperavam o dinheiro da Amrica. 90

    Como apontamos acima foram vrios os fatores de expulso. Mas quais motivos atraram estes emigrantes para terras brasileiras? Podemos elencar trs causas que destacam o Brasil como pas de atrao destes srios e libaneses. Como primeiro ponto, temos a questo do sistema de cotas da legislao norte-americana, feita j no comeo do sculo XX, que imps uma porcentagem para entrada de imigrantes de uma nacionalidade de acordo com o nmero dos j estabelecidos no local, trazendo tambm uma restrio aos asiticos, o que no Brasil s foi ocorrer em 1934. No podendo entrar nos Estados Unidos, os srios e libaneses continuavam viagem at o Brasil ou para outro lugar neste continente. Em segundo lugar, est a questo da imagem do pas na Europa e no Oriente. Na Europa, o Brasil carregava o estigma de um local tropical, infestado de doenas e de animais perigosos, entretanto, no Oriente, havia a idia de Amrica como pas de oportunidades e riquezas, englobando neste rtulo, Estados Unidos, Brasil e Argentina. Os agentes de viagem contriburam para a propagao desta imagem, pois muitas vezes diziam aos emigrantes que tudo era a mesma coisa, que no havia diferenas entre os trs pases, tudo era Amrica. E um ltimo fator de atrao foi a liberdade de culto, pois em seu pas de origem estes tinham muitos conflitos religiosos e no Brasil poderiam professar sua religio em paz e sem desavenas. 91 A conjuno de fatores de expulso da terra de origem e de atrao das Amricas fez com que estes srios e libaneses decidissem partir. Mas como vieram? Como organizou-se este processo? A resposta para estes questionamentos reside em grande parte na relao familiar. Entre os srios e libaneses o sentimento nacional no era to forte (j que sofriam muitas dominaes), entretanto havia uma grande identidade religiosa e regional, sustentadas pelos

    89 CHACUR, Mussa. Apud. GREIBER, Betty Loeb. Memrias da imigrao: libaneses e srios em So Paulo. So Paulo: Discurso Editorial, 1998. p. 24-28.

    90 Idem. p. 23.

    91 GATTAZ,Op. cit. p. 84-87.

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    laos da famlia ampliada, 92 que se compunha pela unio de trs geraes (avs, pais e filhos), formando uma rede de compromisso com um grande nmero de pessoas do mesmo sangue. 93 A condio de emigrantes s veio ampliar este sentimento, pois aqueles que partiam depositavam nos parentes uma carga emotiva muito forte, sendo eles ponto de apoio e de ligao com a terra de origem, num momento em que esto em um novo lugar passando pelas dificuldades da adaptao. 94 Toda essa cumplicidade nos faz caracterizar os imigrantes srios e libaneses como indivduos comprometidos por laos de parentesco. A emigrao era uma deciso tomada em famlia a fim de melhorar a situao desta na aldeia, sendo esta mesma que pagava as passagens e os primeiros custos da viagem. 95

    Aqueles que tomaram um navio em busca de um local que oferecesse empregos mais rendosos, eram em sua maioria cristos (maronitas, melquitas ou ortodoxos) homens e solteiros. 96 Os cristos emigraram mais no perodo da dominao turca, at o fim da Primeira Guerra, por causa do predomnio da religio muulmana. Mas quando a Frana comeou a controlar a regio, privilegiou-se o cristianismo, fazendo com que um nmero grande de muulmanos deixasse seus pases de origem. 97 O fato de emigrarem mais homens e solteiros, sem serem acompanhados de suas famlias, sinal do carter temporrio da imigrao. A idia de retorno um desejo, mas de voltar rico, prspero, muitas vezes viajando somente para visitar os parentes, exibindo a estes o seu xito. 98 Entretanto, a partir da Primeira Guerra Mundial, as notcias das dificuldades econmicas trazidas por esta a sua terra natal, houve uma mudana no carter da imigrao para permanente, regressando somente para rever os familiares, se casar ou trazer a famlia, porque no Brasil viveriam melhor. 99 No continente

    americano os Estados Unidos, o Brasil e a Argentina foram os que mais receberam imigrantes srios e libaneses, respectivamente. 100 No Brasil, entre 1884 e 1939, chegaram cerca de 98.962

    92 TRUZZI, Oswaldo Mrio Serra. De mascates a doutores: srios e libaneses em So Paulo. So Paulo: Editora Sumar, 1991. p. 14.

    93 NUNES, op. cit, p. 82.

    94 FAUSTO, Boris. Imigrao: cortes e continuidades. p. 14-61. In: NOVAIS, Fernando (coord.) & SCHWARCZ, Lilia Moritz, (org.). Histria da Vida Privada no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 1998, vol. 04. p. 34.

    95 TRUZZI, Oswaldo Mrio Serra. Patrcios: Srios e Libaneses em So Paulo. Op. cit. p. 29.

    96 LAMARO, Srgio Tadeu de Niemeyer. Identidade tnica e representao poltica: descendentes de srios e libaneses no Parlamento Brasileiro, 1945-1998. No prelo. p. 05.

    97 GATTAZ, Op. cit. p. 39.

    98 FAUSTO, Op. cit. p. 19.

    99 TRUZZI, Oswaldo Mrio Serra. Patrcios: Srios e Libaneses em So Paulo. Op. cit. p.30.

    100 TRUZZI, Oswaldo Mrio Serra. Cultura e Imigrao Srios e libaneses: influncia na Sociedade Brasileira. In: Relaes entre Brasil e o Mundo rabe: construo e perspectiva. Braslia: Fundao Alexandre Gusmo,

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    srios e libaneses, estando este grupo em sexto lugar entre os que mais desembarcaram no pas, sendo antecedidos pelos italianos, portugueses, espanhis, japoneses e alemes. 101

    A vinda para as Amricas tinha duas etapas. Primeiro deslocavam-se at um porto do Mediterrneo (podendo ser Alexandria no Egito, Gnova na Itlia, ou Marselha na Frana) e a pegavam um outro navio para a Amrica. No Brasil desembarcavam em vrias cidades porturias. Os portos que mais receberam turco-rabes entre os anos de 1908 e 1912, foram os de Santos, com 13.078 entradas e o do Rio de Janeiro, com 10.978, perfazendo um total de 24.056 imigrantes. 102 Ao observarmos os dados do Grfico 1, percebemos que os portos de todo pas receberam, entre 1908 e 1912, cerca de 26.065 estrangeiros da etnia por ns estudada. Ou seja, isto comprova o que apontado pela historiografia do assunto que indica que os srios e libaneses chegavam principalmente a estas duas cidades porturias destacadas acima, pois tirando a quantidade de estrangeiros de