Dissertação - Pós-Positivismo e RI

Embed Size (px)

Citation preview

PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO PROGRAMA SAN TIAGO DANTAS DE PS-GRADUAO EM RELAES INTERNACIONAIS

MARIANA DE OLIVEIRA BARROS

Ps-positivismo em Relaes Internacionais: contribuies em torno da problemtica da identidade

So Paulo 2006

PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO PROGRAMA SAN TIAGO DANTAS DE PS-GRADUAO EM RELAES INTERNACIONAIS

MARIANA DE OLIVEIRA BARROS

Dissertao apresentada Banca Examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, como exigncia parcial para obteno do ttulo de Mestre em Relaes Internacionais, sob orientao da Profa. Doutora Flvia de Campos Mello.

So Paulo 2006

MARIANA DE OLIVEIRA BARROS

Ps-positivismo em Relaes Internacionais: contribuies em torno da problemtica da identidade

Dissertao apresentada Banca Examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, como exigncia parcial para obteno do ttulo de Mestre em Relaes Internacionais, sob orientao da Profa. Doutora Flvia de Campos Mello.

Data de Aprovao: ___/___/_____ Banca Examinadora:

____________________________ Profa. Dra. Flvia de C. Mello (orientador) PUC-SP ____________________________ Prof. Dr. Nizar Messari IRI/PUC-Rio ____________________________ Prof. Dr. Reginaldo Mattar Nasser PUC-SP

AGRADECIMENTOS

Ao programa San Tiago Dantas de Ps-Graduao em Relaes Internacionais. minha orientadora, Flvia de Campos Mello. A minha famlia. Aos amigos. Lu.

Eventually I suffered what some colleagues regarded as a severe professional disorder, the symptoms of which involve believing that the study of international relations can gain more from studying Foucault than NATO. The subject is in need of reinvention, but this first requires the reinvention of its teachers.Ken Booth, Human wrongs and international relations, p. 109

RESUMO

Nesta dissertao discutiremos as contribuies do pensamento pspositivista para as Relaes Internacionais. Veremos que o final dos anos 1980 representou uma poca de mudanas na agenda dos pesquisadores das relaes internacionais, no s como resposta a mudanas na ordem internacional - como o fim da Guerra Fria e a acelerao do processo de globalizao - mas tambm pela influncia das viradas sociolgica e lingstica na produo de conhecimento da rea. Veremos tambm que os autores ps-positivistas buscaram pela interdisciplinaridade, incorporar ao estudo das relaes internacionais

questionamentos metodolgicos, ontolgicos e epistemolgicas que vinham ganhando relevncia nas demais reas das cincias humanas. Trabalharemos mais especificamente nessa dissertao a problemtica da identidade, pois entendemos que a discusso desse tema engloba os principais aspectos do debate entre positivistas e ps-positivistas da rea.

Palavras-chave: Teoria de Relaes Internacionais, Ps-positivismo, Identidade

ABSTRACT

The purpose of this dissertation is to discuss the constributions of post positivism to International Relations Theory. We will see that the end of the 1980s represents a challenge to the International Relations Theory agenda, not only because of the developments in world order - the end of the Cold War and the increase in the globalization process - but also because of the influence of the sociological and linguistic turns in the area. Post-positivist authors used interdisciplinary tools to incorporate ontologycal, methodologycal and

epistemologycal discussions coming from the Human Sciences, to International Relations. Our focus is on the discussion of the identity question for we believe it englobes the most important aspects of the positivist x post-positivist debate in the International Relations field.

Key-words: International Relations Theory, Post-positivism, Identity

SUMRIO

INTRODUO CAPITULO 1: A DISCIPLINA DE RELAES INTERANCIONAIS E A CRISE DA MODERNIDADE Desenvolvimento da disciplina Metodologia e epistemologia em Relaes Internacionais Modernidade CAPITULO 2: O POS-POSITIVISMO EM RELAES INTERNACIONAIS Virada sociolgica Virada Lingstica A-historicismo das Teorias Tradicionais de Relaes Internacionais Desconstruo do Discurso sobre Poltica Internacional Dialtica da diviso CAPTULO 3: A QUESTO DA IDENTIDADE A questo da identidade e a disciplina de Relaes Internacionais Pensando articulaes alternativas CONCLUSO BIBLIOGRAFIA

9

18 31 41

44 46 53 55 59

63 89 103 108

INTRODUO

Discutiremos nessa dissertao as contribuies do ps-positivismo para as Relaes Internacionais1, pois acreditamos que as abordagens ps-positivistas, ainda que marginalizadas pelos tericos tradicionais de Relaes Internacionais, so de grande importncia para nosso entendimento das relaes internacionais contemporneas. O final da Guerra Fria foi momento de mudana no pensamento das Relaes Internacionais, no s porque a ordem internacional mudava com o fim da bipolaridade e a acelerao do processo de globalizao, mas tambm porque alguns pensadores da rea comeam a trabalhar em suas pesquisas a crtica produo de conhecimento cientfico na modernidade. Robert Keohane, em seu discurso na International Studies Association (ISA) no ano de 1988, quando presidia a instituio e depois, no texto oriundo desse discurso International Institutions: Two Approaches (Keohane, 1988), discute as mudanas que vinham ocorrendo na agenda de pesquisas da rea e divide as contribuies tericas2 em Relaes Internacionais ps-dcada de 1980 em duas vertentes; os racionalistas e os reflexivistas. Para Keohane, racionalistas so as abordagens tradicionais da rea, dentre elas o neo-realismo e o neoliberalismo, cuja concepo de racionalidade corresponde a characterizing behavior that can be adjudged objectively to be optimally adapted to the situation;1

Usaremos o termo Relaes Internacionais em caixa alta sempre que nos referirmos disciplina ou s teorias de Relaes Internacionais.2

Falar das contribuies ps-positivistas como contribuies tericas problemtico, uma vez que essas abordagens, na maioria das vezes so crticas idia de teoria. No obstante, utilizaremos o termo teoria em alguns momentos dessa dissertao j que a excluso do termo no consenso entre os ps-positivistas, como por exemplo, nas abordagens ps-positivistas da Teoria Crtica e das teorias feministas.

9

enquanto os reflexivistas so assim chamados pelo autor, pois all of them emphasize the importance of human reflection for the nature of institutions and ultimately for the character of world politics (Keohane, op. cit:: 284). Acreditamos, portanto, que com as mudanas que acontecem na ordem internacional psdcada de 1980, vm tona lacunas das teorias tradicionais de Relaes Internacionais, despertando nos estudiosos da rea vontade de refletir de forma mais abrangente, e isso inclui o questionamento das fundaes bsicas do pensamento na disciplina, inclui repensar como se deu o nosso entendimento da poltica mundial. No obstante, Keohane tem uma interpretao dos reflexivistas segundo a qual essas abordagens em Relaes Internacionais have neither the coherence nor the self-confidence of the rationalists (Keohane, op. cit.: 283). Para Keohane, os reflexivistas precisariam desenvolver linhas de pesquisa mais objetivas e cientficas para poderem figurar com relevncia na rea. Nesse sentido, chamar as abordagens crticas em Relaes Internacionais pelo termo reflexivistas cunhado por Keohane tem para ns um teor pejorativo3. Como nos aponta James Der Derian, um dos principais representantes das abordagens crticas:V-se nas crticas (de Keohane) uma insinuao implcita: se algum quiser encontrar um programa de pesquisa genuno melhor seguir a rota iluminada da reflexo racionalista do que a floresta incivilizada da reflexo posestruturalista (Keohane, 1988). V-se, alm disso, o poder metafrico das escolhas dos termos feitas por Keohane, que insinuam um tipo de passividade genrica no campo reflexivista. Diria-se que o pensador reflexivista, por definio, prefere ou tem poucas escolhas no ser refletir sobre os trabalhos e aes dos outros no lugar de engajar-se no trabalho mais produtivo da verificao emprica de hipteses. (Der Derian, 1990:295)43 4

Ver Smith, 1996:12

Within the criticism lies an implicit implication: if one is to find a genuine research program it is better to take the enlightened road of rationalist reflection than the benighted wood of

10

Optamos, ento, para nos referirmos a essas novas abordagens pela nomeao utilizada por Yosef Lapid em seu texto de 1989, The Third Debate: on the prospect of international theory in a post-positivist era, onde o autor aponta seguindo caracterizao tradicional do desenvolvimento das teorias da rea em termos de grandes debates - para o surgimento de um novo debate terico em Relaes Internacionais, entre positivistas e ps-positivistas (sendo os primeiros representantes das teorias tradicionais e os ltimos, da dissidncia). Queremos destacar, entretanto, que a escolha pelo termo ps-positivismo no foi fcil, devido ao grau de complexidade e diferena das perspectivas analticas que esto representadas por esse termo. Decidimos ento pelo mnimo de rotulao possvel das idias aqui abordadas, sobretudo em sinal de respeito vontade dos prprios autores. Sabemos das diversas classificaes encontradas nos livros de Relaes Internacionais que tratam o assunto, a saber, construtivismo, Teoria Crtica, teorias feministas, ps-modernismo/ps-estruturalismo, ps-colonialismo dentre outras, mas buscaremos nessa dissertao falar principalmente de trabalhos relevantes dentro dessas abordagens, entendendo fazer parte do ps-positivismo todas as idias que criticam a limitao epistemolgica das teorias tradicionais de Relaes Internacionais, e que de alguma forma foram influenciadas pelas viradas lingstica e sociolgica. Usando para todo o pensamento ps-positivista argumento de Chris Brown quando o autor fala sobre os ps-modernos:Escrever sobre este trabalho implica problemas reais. No porque ele difcil per si ; ele difcil, extraordinariamente matizado e, assim, difcil de resumir,poststructuralist reflexivity (Keohane, 1988).There is, moreover, a metaphoric power in Keohanes choice of terms which insinuates a kind of generic passivity in the reflexivist camp. It would seem that the reflectivist, by definition, prefer or has little choice but to reflect others thoughts and actions rather than to engage in the more productive work of empirically testing hypotheses. (Der Derian, 1990:295)

11

mas esse no ainda o maior problema. Mais fundamental o fato de que esse tipo de trabalho est tentando trazer para a superfcie traos de discurso que normalmente permanecem submersos; ele , dessa forma, particularmente resistente s sentenas que se iniciam Ps-estruturalismo (ou intertextualidade ou qualquer outra) ..., pois completar essas sentenas subverter o projeto. Um trao caracterstico desse tipo de escrita que ela envolve desfamiliarizao uma tentativa de fazer do familiar no familiar e vice versa e esse trao anulado mais que explicado pela narrativa que esclarece e familiariza. (Brown, 1994:223)5

Dentro da organizao da dissertao, o primeiro capitulo ser dedicado discusso da produo de conhecimento na disciplina de Relaes Internacionais, desde suas institucionalizao como rea de conhecimento autnoma, no Psprimeira Guerra Mundial at os dias de hoje. Abordaremos, num primeiro momento, o desenvolvimento da disciplina de Relaes Internacionais em seu contexto histrico, procurando mostrar a origem do pensamento que formou as principias correntes tericas da rea. Nesse mesmo tpico, falaremos de como o final da Guerra Fria momento determinante de mudanas no sistema internacional e tambm na forma como os tericos de Relaes Internacionais entendiam a poltica internacional. Analisaremos tambm os principais efeitos e conseqncias do processo de globalizao para as teorias de Relaes Internacionais. Discutiremos, em seguida, as caractersticas da produo de

conhecimento da rea, com destaque para o racionalismo como fundamentao terica e o positivismo como metodologia. Veremos os preceitos bsicos doWriting about this work poses real problems. It is not so much that it is difficult per se; it is difficult, extraordinarily nuanced and thus hard to summarize, but this is not the most basic problem. More fundamental is the fact that this kind of work is attempting to bring to the surface features of discourse which normally are allowed to remain submerged; it is, therefore, peculiarly resistant to sentences which begin Post-structuralism (or intertextuality or whatever) is to complete such sentences is to subvert the project. A characteristic feature of this kind of writing is that it involves defamiliarisation an attempt to turn familiar into the unfamiliar and vice versa and this feature is annulled rather than explicated by a narrative that clarifies and familiarizes. (Brown, 1994:223)5

12

racionalismo e as implicaes decorrentes da importante influncia que essa viso exerceu na produo do conhecimento da disciplina. Falaremos das vantagens do racionalismo sobre o empirismo para a compreenso das cincias humanas, e sero analisados em seguida os limites que o racionalismo impe a compreenses alternativas da realidade, ao questionarmos a prpria idia de razo como algo universal. Em seguida, apresentaremos uma discusso do mtodo positivista. Tido como eficiente mtodo de produo do conhecimento cientifico na modernidade o positivismo tem por principal caracterstica a idia de que possvel aplicar ao estudo da sociedade e da poltica o mesmo mtodo utilizado para explicar as regularidades da natureza. No estudo das relaes internacionais, o positivismo teve sua influencia manifestada principalmente na teoria realista, que entendia a poltica internacional como um campo de estudos passvel de observao objetiva. Sendo o realismo a teoria dominante na disciplina, procuraremos analisar como o positivismo acabou por determinar no s a forma como deveramos estudar as relaes internacionais, mas tambm o que deveria ser estudado, circunscrevendo o que seria entendido como realidade na poltica internacional. Finalmente, analisaremos as caractersticas da produo do

conhecimento em Relaes Internacionais, dentro do seu contexto histrico, que entendemos ser a Modernidade. Falaremos da influncia do Iluminismo na produo de conhecimento Ocidental na Idade Moderna e analisaremos a conseqncias do pensamento iluminista na disciplina de Relaes Internacionais. No segundo captulo, discutiremos as principais criticas e contribuies das abordagens ps-positivistas para a disciplina de Relaes Internacionais. 13

Lembrando que os autores ps-positivistas buscaram na interdisciplinaridade atravs de instrumental de outras reas das cincias humanas - as principais fontes para a crtica produo de conhecimento em Relaes Internacionais, falaremos desde a critica que se faz tendncia reificao6 de conceitos e ao carter a-historico das teorias tradicionais de Relaes Internacionais at como as abordagens ps-positivistas oferecem formulaes alternativas para nossa compreenso da ordem mundial. O ps-positivismo tem como caracterstica fundamental a crtica utilizao de um nico mtodo nas anlises de um objeto de estudo complexo como as relaes internacionais e destaca a idia de construo social para o entendimento do comportamento dos atores no campo da poltica internacional. Discutiremos a influncia das viradas sociolgica e lingstica na produo de conhecimento das cincias humanas na disciplina de Relaes Internacionais, e falaremos da retomada de um pensamento mais meta-terico pelos pensadores da rea. Analisaremos ento as prticas polticas que compem os discursos das teorias tradicionais de Relaes Internacionais, sobretudo o discurso da idia de Estado-nao, passando, finalmente para a discusso sobre tica e

responsabilidade na poltica internacional. No Terceiro captulo queremos mostrar como a questo da identidade vem sendo discutida pelos tericos das Relaes Internacionais. Num primeiro

6

Reification: (It) is the apprehension of the products of human activitiy as if they were something else than human products such as facts of nature, results of cosmic laws, or manifestations of divine will. Reification implies that man is capable of forgetting his own authorship of the human world, and further, that the dialetic between man, the producer, and his products is lost to consciuosness. The reified world is experienced by man as a strange facticity, an opus alienum over which he has no control rather than as the opus proprium of his own productive activity. (Berger & Luckmann, The Social Construction of Reality, pp. 89, apud, Wendt, 1992: 410)

14

momento veremos a importncia que a questo da identidade ganha nas anlises de Relaes Internacionais a partir do final da dcada de 1980 com a introduo do pensamento ps-positivista nos estudos da rea. Discutiremos a forma como o estudo da identidade comeou no campo a partir do pensamento de Alexander Wendt, quando esse questiona o pressuposto realista de que todos os Estados tm sempre o mesmo interesse quando da prtica de suas aes no sistema internacional ao destacar a importncia das identidades dos Estados na formao dos interesses destes. (Wendt, 1992). Em seguida, veremos as crticas que surgiram ao trabalho de Wendt, pois ainda que inovador, Wendt acusado de se manter atrelado epistemologia realista da teoria de Relaes Internacionais, o que no o permite analisar as prticas polticas envolvidas na questo da identidade.Trabalharemos a idia de identidade a partir de um entendimento do conceito como construo relacional dicotmica identidade/diferena, procurando analisar os contextos e as prticas polticas que esto por detrs dos discursos de identidade. Traremos, por exemplo, as idias de David Campbell sobre a utilizao da poltica externa americana para a manuteno e reafirmao da identidade americana ocidental perante os desafios da globalizao. Sero discutidas em seguida as contribuies das teorias feministas para o campo das Relaes Internacionais, pois foram elas as primeiras a falarem dos usos polticos das identidades, tendo por objeto de anlise os usos das identidades de gnero pelos tericos tradicionais de Relaes Internacionais na criao de uma disciplina que, segundo elas, se construiu a partir de uma epistemologia machista - gendered knowledge - no deixando espao para que 15

alternativas mais femininas pudessem ser pensadas na construo da ordem internacional. As feministas vo falar da utilizao da imagem do masculino ligada sempre ao espao publico versus a imagem do feminino, sempre preterida ao espao privado, e pensaro sobre as conseqncias dessa diviso genrica do trabalho para nosso entendimento do funcionamento do mundo. A discusso das contribuies das teorias feministas para a disciplina de Relaes Internacionais tambm nos ajudar a pensar a questo da identidade como um dos exemplos das prticas de disciplinarizao do ser humano moderno, tanto com relao a seu corpo, quanto s imagens (e auto-imagens) identitrias que foram se construindo, e tambm com relao determinao das possibilidades de produo de conhecimento na rea das cincias humanas. Essa idia ser abordada tambm atravs do pensamento de Campbell, quando este tratou em um artigo a disciplinarizao da produo do conhecimento em Relaes Internacionais a partir da desconstruo da identidade que os tericos tradicionais impuseram aos ps-positivistas, ao que para Campbell claramente uma prtica poltica de relegar os dissidentes marginalizao. Discutiremos em seguida que alm da idia de identidade ser utilizada politicamente para o alcance de privilgios dos criadores dos discursos identitrios, veremos como as identidades so impostas s pessoas, numa espcie de troca, onde elas ganham a certeza de pertencerem a algo (uma nao, por exemplo) em detrimento do direito liberdade de construrem suas identidades conforme suas prprias vontades. Partimos ento para um segundo momento nesse captulo onde discutiremos a questo da identidade como tema que nos permite repensar a tica 16

nas relaes internacionais, sendo nossa primeira questo o porqu de termos de nos contentar com o sucesso de determinadas identidades nacionais particulares em detrimento de outras. Quais so as prticas de incluso e excluso das relaes internacionais que podem ser encontradas na questo da identidade? A partir principalmente de idias de autores ligados s abordagens pscolonialistas olharemos para a incapacidade do Ocidente e dos tericos das Relaes Internacionais de lidarem com o diferente e discutiremos a idia de prticas de colonizao para explicar as formas historicamente utilizadas pelos ocidentais para eliminarem a angustia do encontro com o diferente quando do contato com outras culturas. Olharemos finalmente para o que h de mais recente nas anlises de Relaes Internacionais sobre articulaes alternativas do pensamento poltico que buscam a incluso da tica no pensamento sobre as relaes internacionais. Falaremos do conceito hoje muito utilizado pelos ps-positivistas de alteridade, e de suas idias sobre as construes do eu e do outro nas relaes internacionais, chegando finalmente discusso sobre a argumentao que parece reunir mais adeptos da dissidncia quando da busca por solues diferentes: dilogo e negociaes constantes dentro de ns e com o outro, sem uma idia logocntrica ou teleolgica de soluo mxima ou universalista.

17

CAPITULO 1: O PS-POSITIVISMO EM RELAES INTERNACIONAIS

For true dissidence today is perhaps simply what it has always been: thought. (Julia Kristeva apud Ashley & Walker, 1990:259)

DESENVOLVIMENTO DA DISCIPLINA DE RELAES INTERNACIONAIS

A disciplina de Relaes Internacionais institucionalizada no Ps-Primeira Guerra Mundial num esforo conjunto de pensadores e governos Norte-americano e Ingls para criar um ambiente onde pudessem ser pensadas solues para os conflitos internacionais sem a necessidade de se recorrer to logo s armas. A Primeira Guerra Mundial assustou o mundo pela proporo grandiosa de sua violncia. Assolados pela prpria capacidade de destruio, os homens do psguerra precisavam pensar em uma possibilidade diferente de interao entre os pases. Os conceitos at ento vigentes como ferramenta de ordem no sistema internacional de raison dtat e equilbrio de poder so questionados e a idia de cooperao entre os pases ganha fora atravs do conceito de segurana coletiva. A disciplina de Relaes Internacionais surge, portanto como um ambiente onde se pudesse pensar a boa e justa convivncia entre os pases, idia que levada ao extremo enunciava prerrogativas de uma polis global. Os primeiros pensadores do funcionamento da ordem internacional falavam de propostas denotadamente normativas idealismo - vislumbrando uma forma de 18

convivncia entre os pases que deveria ser melhor do que a at ento apresentada. No obstante, a ecloso da Segunda Guerra Mundial frustra as expectativas daqueles que acreditavam na possibilidade de uma convivncia mais pacifica entre os Estados. A perfeio de carter e as boas intenes que sugeriam os americanos - personificados no discurso dos 14 Pontos de Woodrow Wilson - deverem ser os princpios a reger a relao entre os Estados, esbarram no rancor Alemo e num principio de perfeio ainda mais ideal, representado na figura de Adolf Hitler. A Segunda Guerra Mundial mostrou que s a crena num mundo ideal no o fazia perfeito para todos e que havia uma incomensurabilidade nos valores pregados por cada uma das naes tidas como mais importantes poca para a determinao da ordem internacional. Os tericos de Relaes Internacionais logo se lanaram numa empreitada de crtica ao normativismo dos primeiros pensadores da disciplina, acusando-os mesmo de por tanto idealismo, terem acreditado em um mundo que no existia, deixando de estar atentos ao que realmente estava acontecendo aos seus redores (Edward Carr, 1939). Estabeleceu-se ento na anlise da poltica internacional um discurso dominante segundo o qual era preciso analisar as relaes internacionais como elas realmente eram, deixando de lado as crenas idealistas e encarando a natureza do homem como ela realmente era: egosta, conflituosa e sempre buscando a defesa do interesse pessoal. Raciocnio que aplicado anlise das relaes internacionais, trazia de volta a razo de estado e defesa do interesse nacional como o motor maior da relao entre os Estados. 19

E s a anlise das relaes internacionais como elas realmente eram no bastava, era preciso fazer isso de forma cientfica, pois a cincia traria o rigor e o mtodo necessrios a uma rea que pretendia produzir conhecimento a fim de explicar a ordem internacional e proporcionar mecanismos de anlise que auxiliassem na preveno de conflitos como os vividos durante a primeira metade do sculo XX. Buscava-se encontrar nas relaes entre os Estados as mesmas regularidades que se via na natureza, para que assim teorias pudessem ser extradas da observao do comportamento dos Estados, proporcionando fundamentos para a previso de comportamentos futuros e maneiras de interveno nesses comportamentos. A necessidade de fazer da disciplina de Relaes Internacionais algo mais cientfico coadunava com o que acontecia nas outras reas que estudavam as chamadas cincias humanas e, acima de tudo, com o valor da modernidade que propunha a utilizao da razo instrumental como principal caminho para a emancipao humana. Assim se desenvolveu a produo do conhecimento na rea de Relaes Internacionais desde o realismo de Hans Morgenthau: uma cincia que analisava o comportamento dos Estados tendo como principal objeto de estudo o EstadoNao e como premissas bsicas a idia de que os Estados conviviam em um sistema anrquico e estariam defendendo de forma racional o interesse nacional, sendo este sempre definido em termos de poder. Entretanto, a segunda metade do sculo XX vai se destacar por diversos questionamentos no campo da produo de conhecimento. Ainda que a Segunda Guerra tenha servido de fator motivador do realismo na disciplina de Relaes Internacionais, ela vista pelas outras reas das cincias humanas como um 20

momento de desiluso com o pensamento racional instrumental, colocando em cheque a posio privilegiada que o conhecimento cientfico ganhou na sociedade moderna. As Relaes Internacionais, no entanto, s vo conhecer as mudanas que vinham ocorrendo nas outras reas das cincias humanas no perodo Ps-Guerra Fria. A ordem internacional da Guerra Fria caracterizada pela bipolaridade de duas grandes potncias competindo pela hegemonia ideolgica e equilibradas pela ameaa de destruio total que representou a bomba atmica, podia ser encaixada numa viso realista do sistema internacional. No obstante, o fim da Guerra Fria surpreende os analistas de Relaes Internacionais que no conseguiram prever um desmantelamento to pacifico da Unio Sovitica e menos ainda os conflitos nacionalistas que se seguiriam desestruturao da superpotncia oriental, dando margem ao surgimento de crticas s teorias tradicionais da rea. Consoante o historiador John Lewis Gaddis:() As principais abordagens tericas que modelaram a disciplina de Relaes Internacionais desde Morgenthau tm todas em comum, como um de seus principais objetivos, a antecipao do futuro. Tanto na cincia quanto na poltica, tanto pelos padres do pensamento de preveno ou dos modelos mais relaxados de previso, o papel da teoria sempre foi no somente falar do passado e explicar o presente, mas fornecer ao menos uma previso do que estaria por vir. A isso se segue, portanto, que uma maneira de conferir a validade das teorias ver se tiveram sucesso em suas empreitadas. (...) a teoria de relaes internacionais respondeu bem a importante tarefa que se props de prever o futuro da Guerra Fria?7

7

() the major theoretical approaches that have shaped the discipline of international relations since Morgenthau have all had in common, as one of their principal objectives, the anticipation of the future. Whether in science or politics, whether by the tough standards of prediction or the more relaxed ones of forecasting, the role of theory has always been not just to account for the past or to explain the present but to provide at least a preview of what is to come. It follows therefore, that one way to confirm the validity of theories is to see how successfully they perform each of the tasks expected of them. () how well did international relations theory carry out the important task it set for itself, which was forecasting the future of the Cold War? (Gaddis, 1992:10)

21

Sabendo que a resposta pergunta de Gaddis negativa, vemos que, no campo terico das relaes internacionais, o fim da Guerra Fria traz repercusses importantes, pois se o principal objetivo das teorias de relaes internacionais era observar o comportamento dos Estados no escopo de prever suas atitudes, a forma surpreendentemente pacfica como se deu o encerramento do conflito demonstrou a inabilidade das teorias de alcanarem satisfatoriamente seus objetivos. Outro fato que marcar as duas ultimas dcadas do sculo XX como um perodo de grande mudana na agenda de pesquisa dos analistas de Relaes Internacionais a acelerao do processo de globalizao. Desde os anos 1960 as atenes dos analistas de Relaes Internacionais j se dividiam entre o duelo ideolgico entre as superpotncias e o que vinha acontecendo na Europa e no Japo com a recuperao econmica dos dois paises e, sobretudo com a Europa ensaiando uma unificao no s econmica, mas poltica e social. O desenvolvimento de importantes inovaes tecnolgicas, somado a uma economia de livre mercado, afetar o dia a dia da populao mundial, que, principalmente a partir dos anos 1990 passa a ter as fronteiras de seus pases invadidas por questes sobre imigrao, refugiados, desigualdade, cultura de massa dentre outras. Consoante Barry Buzan e Richard Little8:8

Utilizaremos por diversas vezes idias do texto Why international relations has failed as an intellectual project and what to do about it de Barry Buzan e Richard Little (op. cit., 2001), pois encontramos neste texto importantes crticas produo de conhecimento na rea de Relaes Internacionais. Vale destacar, entretanto, que apesar de crticos s correntes dominantes, Buzan e Little, no so considerados representantes do ps-positivismo, mas sim, representantes da chamada Escola Inglesa de Relaes Internacionais. O debate sobre as contribuies da Escola Inglesa extenso, sendo mesmo que uns acreditam ser ela a precurssora do construtivismo

22

Durante os anos 1990, o termo globalizao serviu para explicar quase todas as preocupaes dos escritores de RI. A idia principal por detrs do conceito de globalizao que o sistema internacional tem que ser entendido no somente em termos da relao entre os Estados, mas tambm em termos de uma complexa rede de interaes que liga as pessoas. RI tem, portanto feito importantes progressos no sentido de entender como seu objeto de estudo a questo de como os seres humanos se organizam poltica, econmica, social e ecologicamente e como os diferentes aspectos dessa organizao afetam uns aos outros. (Buzan & Little, 2001:21)9

O colapso da Unio Sovitica foi um grande marco de mudana na ordem do sistema internacional, pois representou a substituio de uma longa era caracterizada pela rivalidade ideolgica por novas configuraes das relaes inter-estatais. O desmantelamento das antigas estruturas do sistema internacional ps a pique modelos geopolticos familiares, espalhando incerteza global acentuada pelas novas armas de destruio em massa assim como pelas novas formas de produo em massa. O mundo ideologicamente dividido do ps-guerra foi rapidamente substitudo por uma realidade de um mercado global na qual tempo e espao j no correspondem mais realidade do Ps-Segunda Guerra. (Knutsen, 1997:264). Questes como cultura, identidade, nacionalismo, tornam-se, portanto ordem do dia das anlises dos tericos da disciplina de Relaes Internacionais e a incorporao dessas novas questes vir junto com um movimento maior, de trazer os questionamentos que j vinham sendo feitos nas outras reas dasenquanto outras negam a sua existncia. No entanto, a discusso desse debate ultrapassaria as propostas desse trabalho.9

During the 1990s, the catch phrase globalization has come increasingly to define the preoccupations of IR writers. The scope of globalization means that the international system has to be understood not just in terms of the relations among states but also in terms of an entire network of interactions that bind people together. IR has thus been making steady progress towards taking as its subject the question of how humankind is organized politically, economically, socially, and ecologically and how the different aspects of its organization play into each other. (Buzan & Little, 2001:21). 23

cincias humanas para o campo das Relaes Internacionais. As teorias de Relaes Internacionais j no davam conta de explicar satisfatoriamente o cenrio mundial do Ps-Guerra Fria, e alguns pensadores de Relaes Internacionais partem ento para jornada mais interdisciplinar no escopo de fazer uma reviso das fundaes do pensamento da disciplina. Consoante Knutsen:O antigo e familiar mundo da Guerra Fria desfez-se, inesperadamente, durante os anos 1990, impulsionando os estudantes da poltica internacional a redirecionar sua ateno para novas questes e problemas. Conceitos familiares, atravs dos quais o mundo era observado e compreendido, perderam o sentido. questo o que ns deveramos estudar foi acrescentada a pergunta como ns deveramos estudar. (Knutsen, 1997:268)10

Para os autores que se dispuseram a criticar a produo de conhecimento na rea, era preciso trazer de volta as questes meta-teoricas11, e fazer maior uso de instrumentais desenvolvidos pelas outras reas das cincias humanas, como filosofia, antropologia, lingstica, psicologia, e sociologia para compreender um mundo que apesar de dividido entre Estados, tem suas decises tomadas por seres humanos. Nas palavras de Barry Buzan e Richard Little:O final da Guerra-Fria foi marcado por uma exploso de interesse nas questes sociolgicas de identidade e nas questes sobre a moralidade e legalidade dos direitos humanos. Assim, nas ltimas dcadas, tem crescido a conscincia de que o objeto de estudo das Relaes Internacionais um sistema internacional que no se resume somente a uma construo poltico-militar, mas que tambm uma construo econmica, sociolgica e histrica. (Buzan & Little, 2001:21)12

10

The old, familiar Cold-War world unraveled unexpectedly during the 1990s, forcing students of international politics to redirect their attention towards new questions and issues. Moreover, familiar concepts, through which the world was observed and understood, were corroded. To the question of what we should study was added a mounting uncertainty about how we should study. (Knutsen, 1997:268)11

Sobre o assunto ver tambm Lapid, 1989.

12

The ending of the Cold War saw an explosion of interest in sociological questions of identity and in moral and legal questions of human rights. Over the last few decades, consciousness has thus 24

Na elaborao dos seis princpios da Teoria Realista, Hans Morgenthau separou da dimenso da poltica internacional a dimenso moral, pois para ele, no mbito da poltica internacional a razo de estado deveria prevalecer sobre qualquer moral, dada a incomensurabilidade dos valores dos diferentes pases (Morgenthau, 2003). Boa parte das anlises dos crticos s vises tradicionais da poltica internacional que surgem no final do sculo XX vo questionar essa separao feita por Morgenthau e vo buscar retomar possibilidades de se pensar eticamente as relaes internacionais, atravs do questionamento das fundaes bsicas do pensamento na disciplina, revendo a ontologia, epistemologia e metodologia a partir das quais foram estabelecidas as principais teorias de Relaes Internacionais. O estudo da Poltica Internacional e as teorias derivadas desse estudo foram tambm geralmente vistos como um discurso separado dos demais campos que se preocupavam com o pensamento poltico e social devido virtude e distino do seu objeto de estudo a relao entre Estados soberanos e da natureza a-temporal das generalizaes por ele produzidas (Brown, 1994:213). As abordagens crticas surgem com a idia de derrubar as cercas que separavam a Teoria de Relaes Internacionais das demais reas das cincias humanas pelas mos dos pensadores ps-positivistas que Chris Brown chama de insurgentes (Brown, op. cit.: 214), e eles prprios, se denominam dissidentes (George & Campbell, 1990) . Esses pensadores trazem para as teorias de Relaesgrown that the object of the study of IR is an international system, which is not just a politicalmilitary construct, but also an economic, sociological, and historical one. (Buzan & Little, 2001:21)

25

Internacionais a discusso da crise do discurso da modernidade, que tem como uma de suas caractersticas mais importantes a crtica idia de cincia como correspondncia entre teoria, observao e realidade. Influenciados por Thomas Kuhn eles trabalham a dificuldade de se diferenciar a cincia da pseudocincia13, e trazem a discusso sobre o empobrecimento do mundo oriundo de uma excessiva dependncia na supostamente libertadora fora da racionalidade (Brown, 1999:216). Consoante Torbjorn Knutsen, o Fim da Guerra Fria simboliza no s o final de um conflito, mas o final de uma Era a Era Moderna -, que teve incio com as grandes navegaes e a idia iluminista de civilizao, consolidou-se com o domnio do mundo pelo pensamento ocidental e entra em colapso exatamente com o questionamento dos valores pregados pelo Ocidente (Knutsen,1997:269). Tal movimento afeta substancialmente a disciplina de Relaes Internacionais que foi construda a partir de parmetros ocidentais de produo de conhecimento e para, alm disso, segundo os pensadores mais crticos, foi formulada para pensar um mundo - o sistema de Estados - tambm criado pelo Ocidente mais especificamente a Europa - e que vem sendo questionado pela globalizao. Para Buzan e Little:Se este um retrato preciso, ento difcil escapar s concluses de que as prprias definies de Relaes Internacionais so crescentemente lanadas13

Kuhn desafia a autoridade da cincia e do mtodo cientfico ao sugerir que o conhecimento produzido pelas comunidades sociais segundo consensos sobre normas, tradies e regras de leitura e interpretao. Segundo Kuhn, os cientistas esto envolvidos em comunidades e seguem as regras e normas dessas comunidades, logo, suas investigaes e avaliaes estaro sempre influenciadas pelas comunidades e as exigncias destas, o que impossibilitaria a investigao neutra. nesse sentido tambm que Kuhn vai falar do aprisionamento do pensamento cientfico a determinados paradigmas e da dificuldade de romper com esses mesmos paradigmas (George & Campbell, 1990:275)

26

como algo alm de um conglomerado multidisciplinar. A disciplina de Relaes Internacionais tem o potencial e a alegvel obrigao de tornar-se um tipo de meta-disciplina, ligando juntamente, de forma sistemtica, os macro-sides das cincias sociais e da histria. Se as Relaes Internacionais tm um papel bvio na diviso do trabalho intelectual e acadmico, ele , precisamente, construir pontes e estabelecer um terreno comum nos caminhos que transcendem as fronteiras disciplinares. (Buzan & Little, 2001:22)14

A dissidncia em Relaes Internacionais prope uma critica razo Ocidental Moderna que, como nos falava Max Weber, foi o principal instrumento do desencantamento do mundo - sendo este processo entendido outrora como um progresso da Idade das Trevas para a Idade Moderna mas agora, utilizada ao extremo pela sociedade moderna e auxiliada pelo avano da cincia e da tecnologia, fez do homem apenas ferramenta. Nas palavras de Heidegger, ferramentas com o humano desaparecendo no processo (Heidegger, 1977 apud Brown, 1999:216). Nesse sentido, em diferentes tons, os dissidentes utilizaro a idia de perspectivismo de Nietzsche ...a fsica tambm apenas uma interpretao e arranjo do mundo...e no uma explicao do mundo (Nietzsche, 1971:26 apud Brown 1999:216) para sugerir uma soluo ao niilismo que toma conta do

homem mquina da modernidade. Esse perspectivismo, l em Nietzsche, tem como pano de fundo a crena na transvalorao, ou seja, o pensar alm do bem e do mal como nova forma de olhar a existncia humana.

14

If this is an accurate portrayal, then it is hard to escape the conclusion that IRs self definitions are increasingly casting it as something more than a multidisciplinary conglomerate. It has the potential, and arguably the obligation, to become a kind of meta-discipline, systematically linking together the macro-sides of the social sciences and history. If IR has an obvious role in the intellectual and academic division of labor, it is precisely to build bridges and establishes a common ground in ways that transcend disciplinary boundaries. (Buzan & Little, 2001:22)

27

Ao traar sua genealogia da moral Nietzsche desconstri alguns dos preceitos fundamentais da modernidade. Se no existe uma moral, mas sim a moral de cada indivduo, no existe a verdade, mas a verdade de cada indivduo, e vice e versa. Isto , Nietzsche substitui a busca da verdade do pensamento cientfico pela busca da verdade de cada um relativizando assim a idia de verdade. O filsofo proclama o fim da metafsica e substitui conceitos como racionalidade, moral e liberdade por noes de responsabilidade, conscincia e autonomia.Gradualmente foi se revelando para mim o que toda grande filosofia foi at o momento: a confisso pessoal de seu autor, uma espcie de memrias involuntrias e inadvertidas; e tambm se tornou claro que as intenes morais (ou imorais) de toda filosofia constituram sempre o germe a partir do qual cresceu a planta inteira. (Nietzsche, 1992:13)

Para Nietzsche no existe uma realidade dada, exgena ao individuo, mas uma constante interao entre indivduo e meio. No existe mais a possibilidade do conhecimento objetivo e da separao entre sujeito e objeto. Menos ainda a possibilidade de uma verdade esttica. O mundo um fluxo contnuo, ou um eterno retorno, no um mundo acabado, logo, no possvel imaginar um mundo unitrio e compreensvel. No existem fatos, apenas interpretaes. A partir disso, tiramos a impossibilidade da existncia de conceitos atemporais, descontextualizados. Nesse sentido, entendemos as questes de poder e liberdade em Nietzsche. Para o filsofo, se existe uma essncia no ser humano essa essncia a vontade de potncia, sendo que o poder um processo em que o homem pode exercer sua ao autonomamente, ser o agente de sua ao. Logo, poder no a capacidade

28

que um tem de impor sua vontade ao outro, mas um contnuo processo em que o homem se torna autor consciente de suas aes. Poder processo criativo. A liberdade , portanto a possibilidade do homem de exercer sua vontade de potncia, de ser criador. Segundo Nietzsche, os humanos so fundamentalmente motivados pelo desejo de experenciar a si prprios como autnomos. O telos de uma ao experenciar o eu como agente. A autonomia do eu para o filsofo o motivo universal e, portanto, o valor universal dos seres auto-reflexivos. Assim, Nietzsche entende o Estado como uma priso que quer fazer da vida humana o mnimo exerccio biolgico possvel. O filsofo percebe o Estado como querendo tornar impossvel a realizao das pulses humanas. Somando a priso corporal do Estado com a priso mental que seria o cristianismo, Nietzsche v o homem moderno como um ser que tem aprisionados corpo e alma. Da a idia de um super-homem, o homem autoconsciente capaz de se libertar e de tomar para si a autonomia de suas aes.Estado? Que isso? Pois seja! Abri bem os ouvidos, porque, agora, vou dizer-vos a minha palavra sobre a morte dos povos. Chama-se Estado o mais frio de todos os monstros frios. E, com toda frieza, tambm mente; e esta mentira sai rastejando da sua boca: eu, o Estado, sou o povo! (...) nasce gente demais; para os suprfluos, inventou-se o Estado! (Nietzsche, 2000:75)

Em sntese, Nietzsche critica a concepo cartesiana do sujeito do acontecimento: no existe mais um sujeito purificado de todas as contingncias da vida. O filsofo critica, portanto, a concepo da verdade, mostrando o papel da

29

linguagem na constituio do conhecimento ou das verdades, revelando o modo pelo qual os homens elaboram seus conceitos15. Nas abordagens dissidentes em Relaes Internacionais, essa

transvalorao ser encontrada na quebra das dicotomias oriundas da dialtica da diviso que foram utilizadas na construo do discurso das teorias tradicionais que criaram a cartografia moral (Shapiro & Campbell, 1999) do mundo como ns o entendemos, sobretudo, da dicotomia dentro e fora ou domstico e internacional (Walker, 1993). Enquanto neo-realistas e neoliberais entendem o poder material como a nica e mais importante fonte de influncia e autoridade na poltica global, os pspositivistas levam em conta em suas anlises tanto o poder material quanto o discursivo poder do conhecimento, das idias, da cultura, da ideologia, da linguagem isto , os ps-positivistas entendem o poder a partir de Nietzsche e Foucault, como um processo produtivo que se manifesta das mais diversas formas. As anlises so, portanto voltadas para a observao do poder das prticas sociais, isto , a capacidade de reproduzir os significados intersubjetivos que constituem estruturas sociais e atores, prticas essas que se manifestam nas Relaes Internacionais. O pensamento crtico apresentado nessa dissertao , portanto, no s uma critica metodologia utilizada pelas teorias tradicionais de Relaes Internacionais para explicar o cenrio internacional, mas tambm uma critica forma como o prprio cenrio internacional foi criado por essas teorias. Para tanto,

Ver: STINER, Larry (1982); WARREN, Mark (1985); THIELE, Leslie Paul (1990); NIETZSCHE, Friedrich (1992, 2000, 2003)

15

30

utilizaremos autores que, desde o final da dcada de 1980, vem trabalhando fora das correntes dominantes das Relaes Internacionais, introduzindo uma nova forma de se pensar a construo do cenrio internacional, autores esses que, como mencionado anteriormente, buscam atravs da interdisciplinaridade repensar as formulaes costumeiras das teorias da rea. Logo, a proposta desse capitulo discutir a maneira como se deu a produo de conhecimento na disciplina de Relaes Internacionais durante os primeiros 45 anos da institucionalizao da rea para ento podermos abrir espao para pensarmos possibilidades de novas formas ticas - de relao entre os seres humanos.

METODOLOGIA E EPISTEMOLOGIA EM RELAES INTERNACIONAIS

Racionalismo

As teorias tradicionais de Relaes Internacionais apresentam usualmente duas caractersticas fundamentais: so teorias racionalistas e so teorias fundamentadas no mtodo positivista. Da, alguns autores dizerem que o debate que se trava entre as correntes neo-realista e neoliberal correntes dominantes na rea - um debate interparadigmtico uma vez que as duas linhas tericas compartilham um mesmo paradigma: o positivismo16. Veremos nesse tpico como essas duas caractersticas influenciaram a produo de conhecimento na rea e quais as principias crticas que se fazem ao racionalismo e ao positivismo.

16

Sobre o assunto ver Reus-Smit, 1996; Mello, 1997.

31

O racionalismo pode ser entendido como uma viso sobre como o conhecimento cientifico deve ser produzido, originada principalmente a partir de Descartes e seu famoso penso, logo existo. Por longa data, a viso empirista (o conhecimento advm da observao emprica dos fenmenos) dominou a produo de conhecimento nas cincias, no entanto, percebeu-se que s a viso empirista no era capaz de fornecer respostas para o entendimento dos mecanismos presentes no mundo social, particularmente, porque no levava em conta os fatores no observveis que estavam por detrs dos fenmenos. Para os racionalistas, a razo a nica propriedade da mente humana capaz de trabalhar a relao entre as coisas observveis e os mecanismos causais - no observveis que esto em ao durante a ocorrncia de determinado evento. Diferentemente dos empiristas, os racionalistas argumentam que os sentidos nunca podem nos fornecer o entendimento do mecanismo que gera as percepes observveis, e revelam assim as lacunas do pensamento empirista: a garantia oferecida pelo empirismo muito restrita porque no considera as realidades no observveis to importantes na anlise dos acontecimentos do mundo social, como as estruturas sociais, por exemplo. Alm disso, o empirismo no permite falar em causas uma vez que a pesquisa limitada previso e no envolve explicaes (Smith, 1996:21). Assim, temos dois princpios gerais do racionalismo: a idia de que todo evento tem uma causa e a percepo de que a realidade nunca existe de per si, exigindo sempre a interpretao da razo. Consoante Katzenstein, Keohane e Krasner, os termos chaves do pensamento racional em Relaes Internacionais so: preferncia, informao, 32

estratgias, e conhecimento em comum. Segundo os autores, os racionalistas acreditam no pressuposto da razo instrumental como um meio de ligao fundamental entre o meio e o comportamento dos atores. O principal objetivo do projeto racionalista explicar as estratgias e as preferncias (Katzenstein et alii, 1999:38):As teorias racionalistas derivadas da economia, por exemplo, oferecem a seguinte heurstica: se voc tem um quebra-cabea, formule-o como um problema para atores racionais com interesses especificados no problematizados, competindo numa situao caracterizada por recursos escassos. (Katzenstein et alii, 1999:36)17

O racionalismo tornou-se uma das bases fundacionais das teorias de Relaes Internacionais. No obstante, assim como a viso empirista, o racionalismo problemtico quando aplicado como metodologia para explicar a realidade. So duas as principais crticas que se faz ao pensamento racional. A primeira revela conforme vimos em Nietzsche - que diferentemente do que diz o racionalismo, no existe uma nica idia de razo, isto , indivduos diferentes tm intuies diferentes sobre o mundo, ou ainda, culturas diferentes pensam o mundo de forma diferente. A segunda crtica, tambm usada contra o pensamento racionalista, com relao idia de que existe O mundo real a ser explicado. Para os empiristas esse mundo existia l fora, independentemente do sujeito que o observava; para os racionalistas, o mundo existe a partir da razo, mas eles entendem a razo como universal, ou seja, o mundo que existe igual para todos. A pergunta feita pelos crticos : como podemos saber o que existe nas outras mentes se aceitamos que as intuies podem ser diferentes? (Smith, 1996:23)17

Rationalist theories derived from economics, for instance, offer the following heuristic: if you have a puzzle, formulate it as a problem for rational actors with unproblematically specified interests, competing in a situation characterized by scarce resources (Katzenstein et alii, 1999:36)

33

Os pensadores ps-positivistas das Relaes Internacionais tero no racionalismo, portanto um dos principais objetos de sua crtica s teorias tradicionais de Relaes Internacionais. Para eles, o racionalismo funcionou como forma de imposio de uma viso ocidental do mundo, servindo como empecilho para que se pudesse observar os outros mundos que compem as relaes internacionais. Os ps-positivistas tendem, portanto a uma desconfiana perante modelos cientficos universais que explicam a poltica mundial. Oferecem uma metodologia baseada na interpretao histrica e textual; insistem na importncia da reflexo humana sobre a natureza das instituies e sobre o carter da poltica mundial e consideram as Relaes Internacionais como um conjunto de fenmenos socialmente construdos. A critica ao racionalismo bastante extensa e ser apresentada em diferentes momentos dessa dissertao. J falamos da idia de perspectivismo de Niezstche e sua influncia na mudana da agenda na disciplina de Relaes Internacionais a partir do final da dcada de 1980. Mas tambm veremos os problemas do racionalismo quando for apresentada a discusso sobre a crise da modernidade e na finalizao da dissertao, quando abordaremos a dificuldade da disciplina de Relaes Internacionais em lidar com o diferente.

Positivismo

O mtodo positivista surge na metade do sculo XIX a partir da inteno do filosofo Auguste Comte de desenvolver uma cincia da sociedade baseada nos mtodos das cincias naturais. Seu intuito maior era revelar as leis causais da 34

evoluo que explicavam o fenmeno a ser observado, no caso, a sociedade18. Para Comte, a cincia era o terceiro estgio do conhecimento, que progredia do conhecimento teolgico para o conhecimento metafsico e em seguida para o positivismo, pois para ele, as cincias eram organizadas hierarquicamente com a matemtica na base e a sociologia no topo, podendo ser unificadas pelo mtodo (Smith, 1996:14). O positivismo utilizado como mtodo pelos tericos da disciplina de Relaes Internacionais teve quatro principais pressupostos: 1. a crena na unidade da cincia; 2. a distino entre fatos e valores; 3. a crena na existncia de regularidades no mundo social; 4. e a crena na possibilidade da pesquisa real (Smith, 1996; Neufeld, 1995). A crena na unidade das cincias se refere idia de que as mesmas metodologias e epistemologias poderiam ser aplicadas a todas as reas de pesquisa. Isto , partindo de uma viso naturalista, mais radical para uns tericos e menos para outros, segundo a qual no existem diferenas fundamentais entre o mundo natural e o mundo social, acreditava-se na possibilidade de utilizao de nico mtodo para a produo de conhecimento em todas as reas. A unificao da cincia pelo mtodo sugeria a identificao de leis universais operantes na sociedade humana, assim como nas cincias naturais:Em Relaes Internacionais, um exemplo da verso mais radical a viso de que o sistema internacional essencialmente igual aos sistemas do mundo natural; a verso mais conservadora ilustrada pela pretenso de que os mtodos cientficos podem ser usados para entender as crenas dos tomadores

18

Comte, o precursor do positivismo, enfatiza a idia do homem como um ser social e prope o estudo cientfico da sociedade: assim como h uma fsica da Natureza, deve haver uma fsica do social, a sociologia, que deve estudar os fatos humanos usando procedimentos, mtodos e tcnicas empregados pelas cincias da Natureza. (CHAU, Marilena 1999:272)

35

de deciso mesmo isso no significando que essas crenas seguem (fortes) leis de comportamento. (Smith, 1996:16)19

O segundo pressuposto - a crena na distino entre fatos e valores corresponde idia de que possvel observar o mundo objetivamente sendo os fatos entendidos como teoricamente neutros, apesar da constatao de que as observaes so desde sempre, subjetivas. Tal pressuposto aparece tambm como a idia de neutralidade do conhecimento cientfico, segundo a qual o conhecimento produzido pela metodologia positivista um conhecimento no afetado por compromissos valorativos. Isto , os positivistas acreditam na

possibilidade de separao entre o factual e o normativo; o que leva caracterizao de teorias, na disciplina de Relaes Internacionais, como cientificas ou normativas, sendo as segundas sempre desvalorizadas na histria das Teorias de Relaes Internacionais (Neufeld, 1995:44). Esta idia percebida quando da identificao do idealismo como uma teoria normativa porque fala do mundo como ele deve ser versus a idia da teoria realista, de explicar o mundo como ele realmente . O terceiro pressuposto - a crena na existncia de regularidades no mundo social - permite uma anlise dedutiva-nomolgica para explicao das leis que regem esse mundo. No modelo de explicao dedutivo-nomolgico, explicar um fenmeno consiste em estabelecer uma concluso descrevendo tal fenmeno atravs de demonstraes de leis cientificas e de descries dos fatos empricos19

In IR an example of the strong version might be the view that the international system is essentially the same as the systems of the natural world; the weaken version is illustrated by the claim that scientific methods can be used to understand the beliefs of decision-makers even though this does not mean that these beliefs follow some (strong) laws of behavior. (Smith, 1996:16)

36

anteriormente conhecidos, ou, as condies iniciais da pesquisa. A conseqncia desse pressuposto a busca incessante dos cientistas pela observao das regularidades de um mundo que mais caracterizado pelas inconstncias.De acordo com este mtodo, o cientista inicia sua anlise a partir de um evento que requer explicao. Ela/ele desenvolve uma hiptese para explicar sua ocorrncia a qual se verdadeira pode ser utilizada para derivar uma lei geral. Essa hiptese ento testada contra as condies iniciais transformadas. Se as previses advindas da hiptese forem verdadeiras, a hiptese confirmada. (Neufeld, 1995:29) 20

O ltimo pressuposto - a possibilidade da pesquisa real reveladora das verdades do mundo, alcanada pelo conhecimento cientfico reflete a crena positivista na existncia de uma realidade l fora que independe da observao do cientista. Em conseqncia da crena na existncia de uma realidade l fora, se faz possvel a pesquisa e explicao de tal realidade. Neufeld define esse pressuposto como a idia da verdade como correspondncia segundo a qual o conhecimento positivo, diferentemente do teolgico ou metafsico, confivel porque corresponde diretamente ao reino observvel, emprico, sendo exatamente essa correspondncia a garantia da verdade do conhecimento cientfico (Neufeld, 1995:33). A utilizao do positivismo como mtodo predominante nas anlises tericas de Relaes Internacionais nasce da vontade da disciplina de Relaes Internacionais de se aproximar das cincias exatas - particularmente a fsica - na capacidade de produo de verdades sobre a poltica internacional, como vimos20

According to this method, the scientist starts with an event that requires explanation. S/he then develops a hypothesis to account for its occurrence which if true can be used to derive a general covering law. This hypothesis is then tested against changed initial conditions. If the predictions stemming from the hypothesis are true, the hypothesis is confirmed. (Neufeld, 1995:29)

37

na introduo desse captulo ao enunciarmos os princpios do pensamento realista de Morgenthau. No entanto, com o desenvolvimento da fsica quntica, os pressupostos da fsica mecnica so questionados, dentre eles o prprio pressuposto da existncia de uma realidade independente da observao humana. Para Smith:... certamente evidente que nas relaes internacionais o positivismo tendeu a um compromisso com a metodologia da cincia natural, modelada na viso da fsica do princpio do sculo XX, ou seja, uma fsica anterior ao desenvolvimento epistemolgico revolucionrio da mecnica quntica nos anos de 1920, que alterou fundamentalmente a idia vigente de que o mundo fsico pudesse ser observado com exatido. (Smith, 1996:17)21

Implicaes do Positivismo para a disciplina de Relaes Internacionais: Positivismo confundido com epistemologia

A principal critica dos ps-positivistas ao mtodo positivista que a forma como foi utilizado - particularmente pelos tericos das Relaes Internacionais para alm de determinar como devemos estudar as relaes internacionais, o positivismo determina o que pode e deve ser estudado em relaes internacionais porque determina - a partir de sua epistemologia - a ontologia das relaes internacionais; isto , o que existe ou o que deve ser entendido como a realidade do sistema internacional:Ao mesmo tempo, a influncia do positivismo na disciplina foi e continua sendo to grande, que o uso do mtodo j visto quase como senso comum. Mas mais importante ainda tem sido o papel do positivismo em determinar, em nome da cincia, o que deve ser entendido como objeto de pesquisa das relaes21

...it is certainly evident that in international relations positivism has tended to involve a commitment to a natural science methodology, fashioned on an early twentieth century view of physics, that is to say a physics before the epistemologically revolutionary development of quantum mechanics in the 1920s, which fundamentally altered the prevailing view of the physical world as one which could be accurately observed. (Smith, 1996:17)

38

internacionais. Sua epistemologia tem tido enormes conseqncias ontolgicas e isso tem afetado no apenas o estudo, mas tambm a prtica das relaes internacionais. No lugar do positivismo, a teoria internacional precisa desenvolver fortes teorias ps-positivistas baseadas na variedade epistemolgica porque muito mais que epistemologia est em jogo. (Smith, 1996:38) 22

Consoante Smith, o problema da teoria de Relaes Internacionais ter limitado a ontologia das relaes Internacionais epistemologia positivista que a epistemologia positivista advm da viso empirista de mundo. Isto , se a epistemologia composta somente por aquilo que pode ser observado empiricamente, e se isso tambm entendido como a realidade das relaes internacionais, a produo de conhecimento fica restrita ao que pode ser observado empiricamente limitando sobremaneira o pensamento na disciplina de Relaes Internacionais. Nas palavras de Smith:Eu no aceito a viso de que empirismo = positivismo = epistemologia + metodologia; antes, positivismo uma posio metodolgica amparada por uma epistemologia empirista que fundamenta nosso conhecimento do mundo na justificativa (bruta) da experincia e, desse modo, licencia a metodologia e a ontologia, pois elas so empiricamente fundamentadas. (Smith, 1996:17)23

No intuito de preencher os requisitos para fazer da disciplina de Relaes Internacionais uma cincia, os analistas de relaes internacionais aderiram a22

At the same time, positivisms dominance of the discipline has been, and continues to be so great that it has come to be seen as almost common sense. But more important still has been positivisms role in determining in the name of science, just what counts as the subject matter of international relations. Its epistemology has had enormous ontological effects, and these have affected not only the study but also the practice of international relations. In positivisms place, international theory needs to develop strong post-positivist theories based on a variety of epistemologies because much more than epistemology is at stake. (Smith, 1996:38)23

I do not accept the view that empiricism = positivism = epistemology + methodology; rather positivism is a methodological position reliant on an empiricist epistemology which grounds our knowledge of the world in justification by (ultimately brute) experience and thereby licensing methodology and ontology in so far as they are empirically warranted. (Smith, 1996:17)

39

uma epistemologia que se adequasse metodologia positivismo - e confirmasse, conseqentemente, a ontologia da poltica internacional. A forma de conhecer (mtodo) o que conhecemos (epistemologia) determinou os limites do que poderia ser conhecido, e esses limites ficaram muito reduzidos j que a metodologia adotada era baseada em uma epistemologia empirista que fundamenta nosso conhecimento do mundo somente na experimentao. Logo, um dos problemas para os ps-positivistas exatamente fazer a diferenciao entre epistemologia, ontologia e metodologia para podermos separar o positivismo do empirismo, abrindo espao para formulaes alternativas da epistemologia utilizada no pensamento sobre as relaes internacionais. Os ps-positivistas procuram mostrar que a epistemologia utilizada na produo de conhecimento na disciplina de Relaes Internacionais determina uma realidade, e uma realidade reduzida experimentao, mas no A realidade e menos ainda, o mundo como ele realmente :Em suma, a corrente dominante da teoria internacional, na verdade, nunca se deu o trabalho de examinar suas proposies positivistas, nem quais alternativas esto disponveis. A resposta de Keohane24 para as propostas alternativas ilustra esta pobreza de imaginao. (Smith, 1996:32). 25

24

Ao falar de Keohane, Steve Smith se refere ao j citado discurso de Keohane no ano de 1988 quando ele era Presidente da ISA. Como vimos anteriormente, nesse discurso, Keohane fala das abordagens alternativas que esto aparecendo nas anlises de Relaes Internacionais, mas pede que uma agenda de pesquisa mais positivista seja definida por essas abordagens para que elas ganhem credibilidade na rea.25

In short, mainstream international theory has never really bothered to examine its positivist assumptions, nor what alternatives are available. Keohanes response to one such move to develop an alternative illustrates this poverty of imagination. (Smith, 1996:32).

40

MODERNIDADE

A idia de positivismo sendo confundido com epistemologia nos leva a uma questo maior que discutida pelas cincias humanas em geral e passa a ser levada em conta pelos analistas das Relaes Internacionais a partir do pensamento ps-positivista. Para entendermos porque o mtodo positivista acabou por determinar a nossa concepo de realidade, mister abordar a idia de discurso da modernidade que argumentamos nessa dissertao estar passando por um momento de crise. Entendemos o discurso da modernidade como referncia a um perodo histrico subseqente Idade Medieval, cujo tema seria a passagem do controle dos sentidos da vida humana da mo de Deus ou da Igreja para a mo dos seres humanos, sendo o principal instrumento da humanidade para fazer essa passagem a razo instrumental. Na Idade Medieval era a idia de Deus a responsvel pela organizao do caos de incertezas que a vida humana ao dar um sentido teolgico para nossa existncia. Na Idade Moderna esse caos ser organizado pela idia de razo; ponto arquimediano26 do ser humano moderno que resulta como instrumento de controle da ansiedade cartesiana27 oriunda de uma vivencia sem sentido definido ou determinado.

26

Arquimedes, para tirar o globo terrestre de seu lugar e transport-lo para outra parte, no pedia nada mais que um ponto que fosse fixo e seguro. (Descartes,1975 apud Matos 1998). ()the notion, central to identitarian thinking from Rene Descartes to present, that should we prove unsuccessful in our search for the Archimedean point of indubitable knowledge which can serve the foundation for human reason, then rationality must give way to irrationality, and reliable knowledge to madness. () The peculiarly modern fear that the undermining of the viability of episteme must lead inexorably to irrationality and chaos is the result of the limiting of the modern conception of knowledge and rationality to episteme. (Neufeld, 1995: 44)27

41

No obstante, a idia de razo acaba sendo responsvel no s pela eliminao da ansiedade, mas tambm pela eliminao de toda idia que se contraponha a ela. Na tentativa de eliminar a angustia do eu, que descobre no ter controle sobre a prpria realidade na tentativa de venc-la, para afastar a angustia da experincia do mundo, no qual o sujeito se encontra no erro ou deriva, o pensamento cartesiano substitui a desordem do mundo pela ordem no pensamento (Matos, 1998). Nas palavras do prprio Descartes:Fecharei agora os olhos, tamparei meus ouvidos, desviar-me-ei de todos os meus sentidos, apagarei mesmo de meu pensamento todas as imagens de coisas corporais, ou, ao menos, uma vez que mal se pode faz-lo, reput-las-ei como vs e como falsas (...). Pensarei que o cu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e todas as coisas exteriores que vemos, so apenas iluses e enganos de que (o gnio maligno) se serve para surpreender minha credulidade. Considerar-me-ei a mim mesmo absolutamente desprovido de mos, de olhos, de carne, desprovido de quaisquer sentidos, mas dotado da falsa crena de ter todas essas coisas" (Descartes,1975 apud Matos, 1998)

A lgica do iluminismo e da cincia moderna , portanto, a de proporcionar ao ser humano mecanismos que possibilitem o conhecimento e controle do mundo que o cerca. A partir da observao emprica dos fatos, estabelecem-se teorias que se preocupam em mostrar os padres recorrentes na natureza para que o homem tome conhecimento destes e saiba agir no mundo. A idia inerente modernidade que vimos ser utilizada pelos tericos de Relaes Internacionais no escopo de tornar a disciplina mais cientifica - a de que existe uma verdade, uma realidade l fora, a qual deve ser buscada atravs do conhecimento cientfico; j que a descoberta dessa verdade que levaria o ser humano, de forma teleolgica, a alcanar sua emancipao.

42

Na Dialtica do Iluminismo, Max Horkheimer e Theodor Adorno apontam as conseqncias do procedimento cartesiano: o dualismo legitima a neutralizao do real. Seu procedimento tem como o grande fantasma da razo o de fora: objetivao, abstrao, categorizao, constituem a trama jogada sobre o mltiplo, para captur-lo. Infatigvel, engenhosa, rigorosa, movida por um princpio que dissimula a si mesma, a razo no deixa de conduzir integralmente esse de fora para ela mesma. A racionalidade do sujeito garante a do objeto, uma vez que este se converte em objeto interno do pensamento. (...) A exterioridade ilusria. E tudo "que no puder ser reduzido a nmeros torna-se iluso" (Descartes, 1975). Dessa maneira, as matemticas tornam-se as cincias-guia, com a espacialidade, o construtivismo, a transparncia, a pureza dos encadeamentos, o prestgio do nmero. Toda realidade, terica e prtica, se v subordinada grandeza abstrata o que permite ao sujeito estabelecer, na base de suas operaes, de clculo, o significado da realidade e julgar como "mera aparncia tudo o que no se resolve em nmeros e, em definitivo, no uno". (Matos, 1998)

43

CAPITULO 2: O PS-POSITIVISMO EM RELAES INTERNACIONAIS

Michel Foucault was calling for such a disruption when he noted that the purpose of critical analysis is to question, not deepen, existing structures of intelligibility. Intelligibility results from an aggressive practice. It does not make the world intelligible but rather excludes alternative worlds. We must, Foucault urged, make the intelligible appear against a background of emptiness, and deny its necessity. We must think that what exists is far from filling all possible spaces28. (Shapiro, 1999:59) If it werent for prisions, we would know that we are all already in prision. (Blanchot, 1986:66, apud Der Derian, 1990:304)

VIRADA SOCIOLGICA

As crticas ps-positivistas vo surgir, portanto, como questionamento do pensamento sobre a poltica internacional elaborado na disciplina sob influencia do discurso da modernidade. Os primeiros textos ps-positivistas em Relaes Internacionais apresentam importante influncia da sociologia, sendo uma de suas principais caractersticas trazer a idia de construo social para as teorias da rea. Num debate que se tornar relevante na rea em meados da dcada de 1990, Nicholas Onuf e Alexander Wendt discutem (no final da dcada de 1980) a28

Grifo meu.

44

problemtica agente/estrutura nas Relaes Internacionais, questionando o pressuposto realista de que os agentes Estados determinam a estrutura do sistema internacional, assim como o pressuposto neo-realista de Kenneth Waltz de que so as estruturas que determinam os agentes. Para Wendt e Onuf, autores que viro a ser conhecidos como construtivistas, agente e estrutura so coconstituidos, estabelecendo uma relao performtica onde um agente na constituio do outro (Wendt, 1987; Onuf, 1989). O debate agente estrutura aparece como uma significativa contribuio do ps-positivismo para a rea de Relaes Internacionais, pois nega a antecedncia ontolgica de qualquer das variveis, mostrando que o mundo social est em permanente construo pelos seus agentes. Tal debate de extrema importncia nessa dissertao, pois ser Wendt (Wendt, 1992), a partir da idia de co-constituio e de relao performtica, o primeiro autor a abordar a questo da identidade como construo nas Relaes Internacionais. A influncia da sociologia representa portanto momento de incorporao, na agenda de pesquisa de Relaes Internacionais, de questes anteriormente entendidas como de menor importncia por uma disciplina que sempre se caracterizou pelo estudo da alta poltica, a saber, questes que envolvem o estudo das sociedades e culturas que compem os Estados-nacionais. Como nos mostram Katzenstein, Keohane e Krasner, a virada sociolgica propunha, atravs de maior interdisciplinaridade, por fim aos espaos cartesianamente definidos e destinados s diferentes reas do conhecimento.A virada sociolgica deve suas origens aos campos do saber que esto para alm do estudo da Poltica Internacional. Filosofia, lingstica estrutural, teoria crtica, geografia, estudos de cincia e tecnologia, teoria poltica ps-moderna,

45

antropologia, estudos de mdia, crtica literria, entre outros; todos estiveram, a partir de diferentes linhas de pensamento, relacionados ao desencantamento com o projeto da modernidade no sculo XX. (Katzenstein et alii, 1999: 35)29

A virada sociolgica carrega em si a crtica ao nosso entendimento da realidade como se ela fora algo dado, que sempre existiu, uma realidade l fora a qual devemos observar, entender as regularidades e elaborar teorias sobre seu funcionamento. A premissa ps-positivista de que o mundo socialmente construdo permite o questionamento da ontologia que fundamenta as teorias tradicionais de Relaes Internacionais, sobretudo os pressupostos

fundamentados em crenas sobre as naturezas ou essncias das coisas, como o pressuposto realista de natureza anrquica do sistema internacional. Num texto hoje clebre na rea, por exemplo, Alexander Wendt mostra o sistema internacional como construo social, argumentando que os Estados no tm uma natureza intrinsecamente conflituosa, pois a definio de seus interesses depende da identidade da relao que se estabelece no momento de encontro entre os Estados, podendo o sistema internacional assumir at mesmo uma dinmica cooperativa. (Wendt, 1992).

VIRADA LINGUISTICA

This sociological turn was intellectually deeply indebted to fields of scholarship well beyond the confines of IPE. Philosophy, structural linguistics, critical theory, geography, science and technology studies, postmodern political theory, anthropology, media studies, and literary criticism, among others, all had, in different though related ways, grappled with the project of modernity gone awry in the twentieth century. (Katzenstein et alii, 1999: 35)

29

46

Juntamente com os textos que traro preocupaes sociolgicas para as Relaes Internacionais, a partir do final de 1980, surgem autores trabalhando questes da filosofia e da lingstica na disciplina num movimento que ficou conhecido como virada lingstica. A principal caracterstica dessa mudana a incluso do entendimento da linguagem no s como ferramenta de descrio da realidade a ser analisada, mas tambm como varivel a ser entendida como construtora, ela prpria, da realidade. A virada lingstica deve muito s idias do filosofo austraco Ludwig Wittgenstein (1889-1951), para quem a realidade no podia ser compreendida seno como resultado de uma complexa pratica social de construo da relao entre as coisas e seus significados sociais. Para o pensador, as coisas no existem a priori, mas sim se constituem medida que se relacionam entre si e a linguagem lhes imprime um significado. Logo, a linguagem e suas construes se tornam objeto de anlise fundamental para o entendimento da realidade social.A linguagem, portanto, j no descreve uma realidade essencial escondida; pois ela indissocivel da construo social da realidade. Neste contexto, o ponto de partida para uma investigao da realidade a relao entre as regras e as convenes de jogos de linguagem ou formas de vida especficos e dos significados scio-histrico e cultural desses. (George & Campbell, 1990:273)30

Friedrich Kratochwil juntamente com Nicholas Onuf esto entre os mais renomados autores ps-positivistas responsveis por trazer a virada lingstica para as anlises de Relaes Internacionais, pois discutem em seus trabalhos a importncia do ato de fala e das regras na construo da realidade da poltica30

Language thus no longer describes some essential hidden reality; it is inseparable from the necessarily social construction of that reality. In this context, the starting point for an investigation of reality is the relationship between the rules and conventions of specific language games or forms of life and their social-historical and cultural meaning. (George & Campbell, 1990:273)

47

internacional, tendo por principal objeto de anlise as regras que constituem o sistema internacional. Kratochwil fala que o mundo construdo pelos discursos que usamos para nos referirmos a ele, reforando a idia de que linguagem ao e de que a interpretao dos discursos fundamental na compreenso da construo da realidade internacional (Kratochwil, 1989). Nesse mesmo sentido, Nicholas Onuf nos chama ateno para como so os discursos que se sobrepem a outros discursos por relaes assimtricas de poder os que criam as regras que determinaro o comportamento dos atores num determinado sistema. Para Onuf, todas as relaes poderiam ser estudadas pela anlise das regras que as constituem (Onuf, 1989). Kratochwil e Onuf so autores da abordagem ps-positivista mais conservadora, o construtivismo. O construtivismo assim entendido, pois faz concesses aos mtodos tradicionais de produo do conhecimento, como por exemplo, na crena da existncia de uma realidade a priori para Kratochwil, a idia habermasiana de senso comum (Zehfuss, 2002:117) e para Onuf, a realidade material como limite para construes alternativas de realidade (Zehfuss, 2002:183). Ainda que a linguagem seja varivel fundamental, para esses autores, existem coisas alm do texto. J os mais radicais, principalmente os representantes das abordagens feministas e das abordagens ps-modernas ou ps-estruturalistas, questionam a existncia de qualquer realidade a priori, usando como premissa e em contraposio aos construtivistas a idia Derridariana de que no existe nada alm do texto. Esses autores so conhecidos como radicais por levar a virada lingstica a seu extremo, questionando a existncia de qualquer realidade que no seja construda por discursos e pela interpretao que fazemos 48

desses discursos. Se existe um objetivo prtico nessas abordagens mais radicais, que poderia nos remeter idia de desenvolvimento ou mesmo a uma idia de fundao priori das abordagens conservadoras, esse objetivo pode ser definido como a busca por momentos de aporia31 - a no fixao. As contribuies ps-modernas/ps-estruturalistas e as feministas

questionam qualquer viso logocntrica de desenvolvimento ou de conhecimento cumulativo, argumentando que a prpria idia de progresso assim como qualquer outro discurso de verdade - composta por uma prtica poltica que pretende privilegiar uma viso de mundo em detrimento de outras. Os mais radicais se dedicaro ento s anlises dos discursos que constroem a realidade da forma como a entendemos e anlise das prticas polticas que esto por detrs desses discursos. Muito influenciados pelo pensamento dos filsofos Michel Foucault, Jacques Derrida e Emmanuel Levinas, esses autores argumentam que a modernidade uma construo discursiva onde o conhecimento cientifico ganhou status de verdade e utilizado por aqueles que no querem perder os privilgios at agora conquistados para a preservao das hierarquias - posies de poder que constituem a realidade como a entendemos. destaque no pensamento de Foucault, por exemplo, sua preocupao com as especificidades das condies

O termo utilizado com freqncia por alguns descontrucionistas como Jacques Derrida e Paul de Man, que, de alguma forma, so responsveis pela sua imposio dentro da teoria literria psestruturalista. A aporia identificada pela leitura desconstrutiva do texto, que ter como fim mostrar que o sentido nele inscrito atingir invariavelmente o nvel da indeterminao ou da indecidibilidade. Uma aporia cria uma tenso lgico-retrica que impede que o sentido de um texto se possa fixar. Um texto, por definio, conter sempre aporias que serviro para mostrar que um texto pode querer dizer algo que escapa a uma qualquer leitura convencional.. (E-dicionrio de termos literrios, disponvel em: http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/A/aporia.htm

31

49

histricas em que o conhecimento foi produzido quando arqueologicamente o filsofo busca pelas prticas de hierarquizao de valores. Nas relaes internacionais os autores ps-positivistas das abordagens mais radicais criticam os discursos dominantes da rea, como a idia de sistema internacional anrquico e a viso de a-moralidade intrnseca natureza do sistema internacional.Para a concepo associada ao ps-estruturalismo, teoria tanto o objeto de anlise quanto a ferramenta para a anlise. A preocupao, embora no menos prtica nas suas implicaes, olhar como as abordagens analticas privilegiam certos entendimentos da poltica global e marginalizam ou excluem outros. So uma reorientao de anlise melhor ilustrada pela troca da questo Kantiana O que eu posso saber, para a questo Foucaultiana Como minhas questes tm sido produzidas (Shapiro, 1988: 14-15 apud George & Campbell, 1990:285)32

De maneira geral podemos, portanto, falar que as abordagens pspositivistas caracterizam-se pelo questionamento das premissas epistemolgicas, metodolgicas e ontolgicas das teorias tradicionais da disciplina de Relaes Internacionais. Epistemolgicas porque diferentemente dos positivistas que utilizam uma epistemologia restrita ao conhecimento emprico do mundo os pspositivistas questionam a existncia de uma realidade l fora a qual podemos observar empiricamente. Metodolgicas porque no acreditam na idia de unidade da cincia pelo mtodo j que para eles, o mundo social no apresenta as mesmas regularidades da natureza estando em permanente construo. Finalmente ontolgicas, porque o limite ontolgico de suas analises est muito32

For the conception associated with poststructuralist, theory is as much the object of analysis as the tool for analysis. The concern, although no less practical in its implications, is how analytic approaches privileged certain understandings of global politics and marginalize or exclude others. It is a reorientation of analysis best illustrated by the move from the Kantian question of What can I Know, to the Foucauldian question how have my questions been produced? (Shapiro, 1988: 1415 apud George & Campbell, 1990:285)

50

alm da realidade das teorias tradicionais, sendo mesmo que para os mais radicais esse limite no existe.Ps-modernistas insistem na inexistncia de fundamentao para o conhecimento. Visto que no existe nenhuma posio a partir da qual possamos estabelecer julgamentos cientficos ou ticos, a anlise ps-moderna restrita pratica de desmascarar as relaes de poder que esto ocultas em todos os pressupostos do conhecimento, incluindo seus prprios, e todas as outras formas de racionalidade comunicativa. (Katzenstein et alii, 1999:37)33

Da alguns autores diferenciarem o positivismo do ps-positivismo pela crena ou no nas fundaes do pensamento. Fundacionistas ou fundacionalistas (do ingls foundationists) so as abordagens tericas que partem do princpio da existncia de uma realidade a partir da qual as anlises possam se fundamentar e definir/distinguir o que verdadeiro e o que falso. So abordagens que acreditam na existncia da natureza ou essncia das coisas, como por exemplo, os realistas quando falam da natureza hobbesiana do homem, ou da natureza anrquica do sistema internacional.. Os anti-fundacionistas/anti-fundacionalistas no acreditam na possibilidade da distino entre a realidade l fora e a realidade construda por ns e negam qualquer possibilidade de fundamentao para o conhecimento, negando conseqentemente o logocentrismo e o conhecimento cumulativo. So por principio anti-essencialistas, no sentido em que acreditam que tudo construo social, inclusive nossas concepes de verdadeiro e falso:A distino fundacional/anti-fundacional refere-se aparentemente simples questo sobre se nossas crenas sobre o mundo podem ser testadas ou avaliadas33

Postmodernists insist that there is no firm foundation for any knowledge. Since there is no position from which to pass scientific or ethical judgments, postmodernist analysis is restricted to the task of unmasking the power relations that are concealed in all knowledge claims, including their own, and all forms of communicative rationality. (Katzenstein et alii, 1999:37)

51

a partir de qualquer procedimento objetivo ou neutro. (...) Uma posio fundacionista aquela que pensa que toda proposio de verdade (i.e. sobre algum evento do mundo) pode ser realmente julgada verdadeira ou falsa. Um antifundacionista pensa que proposies de verdade no podem ser julgadas pois no existem fundamentaes neutras; ao invs disso, cada teoria definir o que conta como fato e ento no existir posio neutra disponvel para determinar entre reivindicaes rivais. (Smith, 2001:227)34

Um problema que se apresenta em relao a essa distino que temos, por exemplo, a Teoria Critica35, que uma abordagem considerada ps-positivista, mas fundacionista/fundacionalista, pois crtica idia de razo instrumental como nica forma de conhecimento (os tericos dessa abordagem tm uma viso ampliada da razo instrumental, e destacam outras formas de conhecimento possvel alm do conhecimento racional), mas descendente do projeto iluminista de Kant, pois tem como um de seus pressupostos a crena na existncia de fundaes a partir das quais possvel julgar as reivindicaes do conhecimento. Robert Cox um dos principais autores ligados Teoria Crtica em Relaes Internacionais destaca a importncia do discurso e da linguagem quando este nos fala que toda teoria pratica, devendo ser entendida como feita para algo e para algum em determinado momento histrico (Cox, 1998), criticando, pois, o potencial totalizador de uma nica forma de racionalidade. No entanto a teoria critica compartilha de idias iluministas como a viso teleolgica de conhecimento

The foundational/anti-foundational distinction refers to the simple-sounding issue of whether our beliefs about the world can be tested or evaluated against any neutral or objective procedures. () A foundationalist position is one that thinks that all truth claims (i.e. about some feature of the world) can be judged true or false. An anti-foundationalist thinks that truth claims can not be judged since there are never neutral grounds for so doing; instead each theory will define what counts as the facts and so there will be no neutral position available to determine between rival claims. (Smith, 2001:227) Em geral, falamos em teoria critica com letras minsculas quando nos referimos a qualquer abordagem critica ao pensamento tradicional. Nesse caso, usam-se maisculas, pois nos referimos aqui especificamente abordagem ps-positivista influenciada pela Escola de Frankfurt.35

34

52

cumulativo, mesmo que no s o cientifico, que possibilitaria a emancipao humana. Habermas, o mais importante nome da Escola de Frankfurt na atualidade, articula, por exemplo, a teoria da ao comunicativa cujo objetivo o desenvolvimento de uma epistemologia baseada na noo de pragmtica universal ou discurso tico, onde o autor v o conhecimento emergir de uma teoria consensual sobre a verdade. (Smith, 1996: 27)36 A-HISTORICISMO INTERNACIONAIS DAS TEORIAS TRADICIONAIS DE RELAES

Uma critica relativa crena na existncia de fundamentaes para o pensamento que se faz aos positivistas da disciplina , portanto, utilizao de uma epistemologia fundacionista/fundacionalista cujos conceitos foram reificados, descontextualizados e a-historicizados e por conta dos quais no se pode hoje em dia pensar em solues ou interpretaes diferentes para o mundo da poltica internacional. Observamos, por exemplo, que o Estado um conceito que tem sua relao com a histria, pois foi definido em um determinado momento histrico, tendo passado por diversas mudanas. No entanto, nas teorias tradicionais, essas mudanas no foram incorporadas ao conceito, fazendo desse conceito uma idia permanente, a-histrica, que perpassa todo nosso entendimento da poltica internacional, como se sempre houvesse estado l. No obstante, as teorias

()development of what he terms a theory of communicative action (1984; 1987), in which he is concerned with developing an epistemology based on the notion of universal pragmatics or discourse ethics, whereby he sees knowledge emerging out of a consensus theory of truth. (Smith, 1996:27)

36

53

crticas apontam para os anacronismos que compem esse tipo de construo, pois a idia de Estado como a que deu origem ao conceito j no cabe mais ao espao-tempo que vivenciamos. Nas Palavras de David Campbell:(...) Jameson argumenta que mais seguro compreender o conceito de ps-moderno como tentativa de pensar o presente historicamente em uma poca que tem esquecido como pensar historicamente em primeiro lugar. Neste sentido, ps-modernismo pode referir-se a uma anlise interpretativa, uma atitude crtica que tenta, contrariamente s foras contemporneas, pensar o presente historicamente. (Campbell, 1998a:213)37

Buzan e Little, argumentam por exemplo que a produo de conhecimento na disciplina de Relaes Internacionais ficou presa pela camisa de fora de Vestflia (Westphalian Straitjacket), pois os conceitos criados em Vestflia quando da formao dos Estados-nacionais em 1648 se perpetuaram de forma a impossibilitar a observao de que o sistema de Estados ento criado se diferencia substancialmente do sistema de Estados como o entendemos agora:Assim, uma at