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35 A distribuição da agua aos exércitos em marcha e em operações Pelo DR. JOÃO MUNIZ B. DE ARAGÃO Pensamos dever merecer um certo estudo, por parte dos que se interessam de assumptos de hygiene militar, a questão que encima estas linhas. De accordo com os ensinamentos correntes, o abas- tecimento d'agua, a uma força em marcha, é matéria que deve merecer grande cuidado, porque está hoje ge- ralmente estabelecido entre os especialistas, que a agita é p tíetor mais commum dc um certo numero de molés- tias infectuosas, principalmente da febre typhoide. babemos ainda, e isso nos é ensinado pelo profes- sor Arnould que, a apreciação das qualidades sanitárias de uma agua destinada a alimentar o homem é um pro- blema extremamente complexo; e estas qualidades de- pendem, em definitivo, do que a agua contem. O professor Afranio Peixoto, em seu livro «Elementos de Hygiene», nos diz: Qualquer que seja a aeção intima da agua na economia, ella é o meio indispensável á nossa vida e a prova não precisa ser outra, além da obser- vação grosseira e constante: resiste-se mais facilmente á ausência de alimentos, do que á sede. Feitas estas considerações para justificarmos a nossa iniciativa, trazendo ao estudo dos competentes o assum- pto, passamos a salientar os perigos a que fica exposto um exercito que se alimenta de uma agua, cuja compo- sição chimica e pureza são desconhecidas. A distribuição d'agua a uma força em marcha está subordinada aos seguintes cuidados: 1°. Saber se a sua quantidade é sufficiente para abastecer toda a força; 2°. Conhecer as condições geológicas do local onde se vae effectuar a captação; 3°. Conhecer as condições topographicas, as condi- ções de saúde dos habitantes das circumvizinhahças; 4". Conhecer o estado de pureza do liquido quanto a germens infectuosos (exame bacteriológico) e sua com- posição chimica (exame chimico). (Lemoine.) Referindo-se á depuração da agua, diz o Dr. Afra- nio Peixoto: (obra citada) «As águas meteoricas, ou

distribuição da agua aos exércitos em marcha e em operações · japonez (modelo n. 3). Compõe-se o filtro: de um grande funil de panno, armado em um circulo de ferro e munido

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A distribuição da agua aos exércitos em marcha e em operações

Pelo DR. J O Ã O MUNIZ B. D E A R A G Ã O

Pensamos dever merecer um certo estudo, por parte dos que se interessam de assumptos de hygiene mi l i tar , a questão que encima estas l inhas.

De accordo com os ensinamentos correntes, o abas­tecimento d'agua, a uma força em marcha, é matéria que deve merecer grande cuidado, porque está ho je ge­ralmente estabelecido entre os especialistas, que a agita é p tíetor mais commum dc um certo numero de molés­tias infectuosas, principalmente da febre typhoide.

babemos ainda, e isso nos é ensinado pelo profes­s o r A r n o u l d que, a apreciação das qualidades sanitárias de u m a agua destinada a a l imentar o homem é u m pro­blema extremamente complexo ; e estas qualidades de­pendem, em def ini t ivo, do que a agua contem.

O professor Afranio Peixoto, em seu l i v r o «Elementos de Hygiene», nos d iz : Qualquer que seja a aeção int ima da agua na economia, e l la é o meio indispensável á nossa vida e a prova não precisa ser outra, além da obser­vação grosseira e constante: resiste-se mais facilmente á ausência de alimentos, do que á sede.

Feitas estas considerações para justif icarmos a nossa in ic ia t iva , trazendo ao estudo dos competentes o assum-pto, passamos a salientar os perigos a que fica exposto um exerc i to que se a l imenta de uma agua, cuja compo­sição chimica e pureza são desconhecidas.

A distribuição d'agua a uma força em marcha está subordinada aos seguintes cuidados:

1°. Saber se a sua quantidade é sufficiente para abastecer toda a força ;

2°. Conhecer as condições geológicas do local onde se vae effectuar a captação ;

3° . Conhecer as condições topographicas, as condi­ções de saúde dos habitantes das circumvizinhahças;

4". Conhecer o estado de pureza do liquido quanto a germens infectuosos (exame bacteriológico) e sua com­posição chimica (exame chimico) . (Lemoine.)

Referindo-se á depuração da agua, d iz o D r . Afra ­nio P e i x o t o : (obra c i tada) «As águas meteoricas, ou

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subterrâneas, lavando as camadas superficiaes do solo, e escorrendo para as declividades, deveriam augmentar sempre as impurezas pelas novas contribuições a junta-das; recebendo o contingente das águas de lavagem e de esgoto das populações r ibeir inhas, a t t ing i r iam f i n a l ­mente a máxima contaminação. Felizmente isso não se dá, porque outros recursos naturaes intervém em sen­t ido contrar io : é o que se chama auto-depuração ou de­puração expontânea das águas. Estes factor-es são de ordem diversa, physicos, chimicos e biológicos.

A concurrencia v i t a l dos germens, que se n u t r e m da matéria orgânica e se contrar iam em suas funcções especificas; o movimento das águas que fac i l i ta o are-jamentoi e a oxydação da matéria orgânica ; a luz, agente hactericida por excel lencia ; a precipitação dos corpos suspensos no l iquido por substancias chimicas adequadas (as águas calcareas e ferruginosas que produzem depó­sitos pesados); f inalmente, novas contribuições de águas mais limpas de outros cursos ou do lençol subterrâneo, operando a diluição, são condições todas que intervém para a auto-depuração. O facto é comesinho, e attestado por toda a parte.

Para citar u m exemplo, basta lembrar o caso do Sena, em Paris, contaminado pelos esgotos a ponto de não p e r m i t t i r mais a subsistência de peixes e crustá­ceos ; a 10 ki lometros da cidade, j á ' readquir iu as con­dições pr imit ivas anteriores á grande contaminação, que u m processo de arte não lhe poderia conceder tão ra­pidamente.

Nem sempre, porém, é possível confiar ou contar com essa depuração natural: dahi os processos a r t i f i -ciaes de depuração, que corrigem ou saneiam a agua impura ou suspeita.»

Ora, como acabamos de ver, apesar de todos os ele­mentos apontados pelo i l lustre professor, como factores da auto-depuração de uma agua, nem sempre é possível confiar ou contar com essa depuração natura l , e, como quem está em marcha, deve ter cuidado e não conf iar nessa auto-depuração, que pôde falhar , faz-se mister que comecemos a nos preparar desde a caserna nestes as-sumptos, nos educando e os que nos cercam, af im de podermos agir nas occasiões necessárias.

Durante a guerra russo-japoneza, embora o problema do abastecimento de agua pura aos soldados japonezes

37 estivesse muito s implif icado, com o habi to que têm os nipões de beberem a agua tanto f r ia como quente, a ma­téria não deixou de ter importância. E ' verdade que, não se importando o soldado de beber a agua quente, a matér ia está s impl i f icada com a sua esteril isação pelo calor.

Mas , a nós assim j á não succede; portanto, precisa­mos cuidar desde j á do problema.

Cumpre nos lembrarmos, no entretanto, que o ja-ponez educou, na paz, os seus soldados neste ponto, de maneira que o cuidado com a agua, mesmo no tempo normal , é extremo. Os médicos pregavam na paz os perigos da ingestão da agua polluida e a necessidade de só beberem agua fervida . Os officiaes repet iam os ensi­namentos e davam o exemplo.

M a t i g n o n , d i z : D u r a n t e as marchas v i muitas ve­zes os officiaes, quando faziam paradas, encherem d'agua de u n i poço o seu cant i l de aluminio, procurarem um pouco de lenha ascenderem e collocarem o c a n t i l em cima, que ferv ia em alguns minutos , resfriada apenas um pouco, elles j á a bebiam. O exemplo partindo de c ima é natural­mente seguido pelo soldado disciplinado, respeitador dos seus chefes e inte l l igente . Assim, os officiaes velam,, sempre, para que os seus homens não consumam senão agua fervida, quer nas marmitas, quer nos cantis.

O exame d'agua, sob o ponto de v i s t a cl i imico, era sempre feito nos acantonamentos; para esse f i m , o en-fermeiro-chefe, de cada regimento, t inha uma pequena ca ixa com reactivos. tubos de ensaio, etc.

Desde que não iiodemos contar sempre com uma agua pura para dar aos nossos soldados e attendendo que precisamos nos prevenir para as surprezas de mo-mentOj perguntamos: qual será o melhor meio a ado-ptarmos para a depuração de uma agua, que não possa ser bebida sem prévio tratamento e quando não houver o u t r a para a substituir ?

Poderemos nos serv i r do filtro de campanha, de Chmmberland (verdadeiro autoclave de 36 centímetros de a l t u r a sobre 31 de diâmetro, que t e m 21 velas, pesa õO kilos, e pôde ser transportado por dois homens ou por um muar) ?

Poderemos nos servir do filtro d-e campanha de lier-kefeld (modelos juntos) ?

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Neste, a vela f i l t r a n t e está encerrada em u m cyl in-dro metal l icp que termina , na ponta infer ior , por um systema engenhoso de válvulas moveis, que permit te as­p i r a r a agua, f i l t r a i - a pelo tubo g e impel l i l -a para a parte superior do c y l i n d r o que encerra a vela f i l t rante . O novo modelo di f fere apenas, como §e vê na figura, pela disposição da bomba que é rotat iva, bomba de vinco, montada sobre uma tripeça.

O apparelho é conduzido em uma cesta de vime de 0,50 X 1,20 X 0,40. Fornece 45 litros d'agua por hora, é regulamentar no exercito allemão, no austríaco, no russo, no inglez.

Estes f i l t ros demonstraram as suas vantagens quan­do usados nos hospitaes mil i tares e casernas; prestaram relevantes serviços, sustando bruscamente epidemias re­beldes verdadeiras endemias; reduziram, á metade, a freqüência da febre typhoide no exercito. Mas a sua desmontagem semanalmente, para a l impeza, vis i ta , e tc , sem o que, ficam logo imprestáveis e podem se tornar

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perigosos, a sua pouca resistência, nos impedem de acon­selharmos a sua indicação para um serviço tão impor­tante, com o dos exércitos em campanha.

Poderemos nos servir dos processos physicosl Neste grupo está, em primeiro logar, a simples ebu­

lição, como emprega o exercito japonez, mas, para estes o processo pôde ser adoptado, pois como já vimos, bebem os nipões indifferentemente a agua fria ou quente, o que não acontece comnosco.

Em segundo, a distilaçã/), e em terceiro, a esterili-sação sobre pressão.

Seria o ideal o ultimo processo se elle não offere-cesse alguns inconvenientes. Uma commissão, composta de um medico e de um official de engenharia, nomeada pelo ministro da guerra francez para estudai' a esterili-sação da agua sob pressão, notou faltas nas installações dos apparelhos, e certas lacunas na organisação do ser­viço. Accrescc a isto, que a qualidade de frescura da agua deixou muito a desejar.

Poderemos aconselhar os processos baseados no em­prego do ozona?

A delicadeza dos apparelhos compromettem o seu emprego em campanha.

Poderemos aconselhar o uso dos raios ultra-violetas para a depuração da agua em campanha?

Julgamos (pie não. O funccionamento dos appare­lhos de ambos os processos exige uma fonte electrica.. com a qual não podemos contar em marcha, attendendo á delicadeza dos apparelhos geradores delia e á dos próprios apparelhos,

Poderemos aconselhar os processos chimicos? Da leitura que temos sobre o assumpto e das expe­

riências feitas por outras nações, somos levados a acei­tar para purificar as águas suspeitas a serem fornecidas a urna força em marcha, 03 processos chimicos, desde que elles não alterem as suas qualidades organolepticas e que não deixem nem gosto especial, nem cheiro.

A presente guerra nos fornece um bello exemplo, do qual nos dá noticia o Dr. H. Doizy, deputado e pre­sidente da Commissão de Hygiene Publica de França.

Condições especialissimas provocadas por causas im­previstas e originárias das situações creadas pela natu­reza da guerra actual fizeram Irromper, em certa zona do território francez, centro de importante acção dos ex-

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ercitos belligerantes, uma série de endemias typhisan-tes, attr ibuidas á agua.

E m presença desta situação, foram prescriptas me­didas para assegurarem a depuração das águas, e se organisou u m serviço de águas, sob a direcçao de uni homem part icularmente bem escolhido para a circums-tancia de momento ; o tenente-coronel Colmet-Daage, cujos serviços anteriores, como engenheiro do serviço das águas da cidade de Paris, t i n h a m chamado a attenção da autoridade m u l t a r , e sob a direcçao, em cada exerci to , de officiaes de engenharia, escolhidos entre aquelles que se haviam occupado j á com as questões de abasteci­mento d'aguu.

As águas são examinadas nos laboratórios mil i tares e são depuradas, mais ou menos bem, porque, ás vezes, é preciso agir com presteza; os processos empregados são apropriados sempre ao paladar dos soldados que, se acharem a agua tratada c o m um gosto desagradável, não deixarão dc beber águas não autorisadas, apesar das prescripções da Instrucção de 24 de junho de 1915.

Como se vê, merece attenção a nossa in ic ia t iva .

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Propomos, como capaz de satisfazer á depuração de uma agua para ser distribuída a uma força em marcha, o apparellio de l3hitzi, j á experimentado pelo exercito japonez (modelo n. 3).

Compõe-se o f i l t r o : de um grande f u n i l de panno, armado em um circulo de ferro e munido de tres appen-dices, dois lateraes e um na parte inferior . Tem a altura de um metro te a base de 70 cc. O c irculo de ferro é art iculado no meio para fac i l i tar o transporte e tem argolas para suspensão.

O apparelho é ao mesmo tempo um pur i f i cador chi-mico e mecânico ; para esse f i m são empregadas duas substancias guardadas em frascos separados.

O frasco n. 1 contem: silicato de potássio, perman-ganato de potássio, ácido tannico.

O frasco n. 2 contem: alumen. Os frascos são munidos do rolhas que servem de

medidas, de maneira que quando se quizer p u r i f i c a r 20 l i tros d'agua, deve-se empregar do frasco n . 1 uma quan­tidade igual á capacidade da ro lha e metade desta do conteúdo do 2 o .

O f i l t r o tem ainda uma camada de c a r v ã o ; para o fazer funccionar, age-se da seguinte fôrma: enche-se o funi l , que j á tem uma camada de carvão, de agua, dissolve-se ao mesmo tempo uma das medidas de cada frasco de pó em meio l i t r o d'agua; a solução toma uma côr n i a r r o n claro, e tem o gosto e cheiro de ácido clilo-r h y d r i c o . Lança-se a mistura , então, no f i l t r o e espe­ra-se 25 minutos, para que o effeito bactericida se produza, podendo-se então servir a agua, para o que basta abrir os orifícios dos appendices.

Se quizermos obter m u i t a agua f i l t rada, basta pre­pararmos, em toneis, misturas do liquido com os agen­tes chimicos, acima referidos, e com ellas i r enchendo o f i l t r o á proporção que fôr elle se esvasiando. Segundo a opinião do medico chefe do serviço da V Divisão do exerci to japonez, na guerra russo-japoneza, este appa­relho, tendo abertos os tres appendices, pôde fornecer 200 l i t r o s d'agua depurada por hora.

Os resultados das experiências bacteriológicas fei­tas com este apparelho são os mais satisfatórios. Cul­turas de bacil lo de Eberth, do cholera, da desynteria, m o r r e r a m em cerca de cinco minutos, pela acção da m i s t u r a chimica acima mencionada.

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O apparelho é m u i t o portátil, occupa pouco espaço, é leve, de fácil mane jo e pouco dispendioso.

Concluindo as nossas observações a respeito de tão importante assumpto, temos a d izer :

1°. Que precisamos encarai' o problema do abaste­cimento d'agua a uma força em marcha, muito seria­mente ;

a) porque t e m sido o tributo pago pelos exércitos em guerra, ás moléstias infectuosas, adquiridas pela i n ­gestão de águas polluidas, como aconteceu na presente guerra , entre as tropas que se batem no Leste e Nor te da F r a n ç a ;

b) porque, no estado actual dos conhecimentos mé­dicos, nenhum scientista poderá emprestar o seu assenta­mento a um abastecer de agua para beber, a qualquer collectividade, pr incipalmente , a um exercito em opera­ções, sem prévio exame e filtração da mesma.

2". Que precisados estudar e fazer experiências so­bre o melhor processo a ser adoptado para a depuração de uma agua para ser bebida, sem que altere as suas qualidades organolepticas, o seu cheiro e o seu sabor.

3°. Que necessitamos escolher quaes os processos para o exame rápido da agua, que autorise, com segu­rança, aconselharmos o seu uso com ou sem tratamento.

4». Que estes estudos e estas experiências só po­dem ser feitos em tempo de paz, n a calma da vida dos laboratórios e das casernas, numa união de vistas coni-nnmi , sem pretenções, visando apenas o bem da colle­ct ividade.

São estas as notas que offerecemos ao critério, á boa vontade, e á dedicação dos competentes e estudiosos, que queiram tomar a si a resolução de tão importante matér ia .