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Ditadura 1964 A Memória do Regime Militar 1

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Ditadura1964

A Memória do Regime Militar

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Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS

Reitor

Aloysio Bohnen, SJ

Vice-reitor

Marcelo Fernandes Aquino, SJ

Instituto Humanitas Unisinos – IHU

Diretor

Inácio Neutzling, SJ

Diretora adjunta

Hiliana Reis

Gerente administrativo

Jacinto Schneider

Cadernos IHU em formação

Ano 1 – Nº 4 – 2005ISSN 1807-7862

Editor

Prof. Dr. Inácio Neutzling – Unisinos

Conselho editorial

Profa. Esp. Àgueda Bichels – UnisinosProfa. Dra. Cleusa Maria Andreatta - Unisinos

Prof. MS Dárnis Corbellini – UnisinosProf. MS Gilberto Antônio Faggion – Unisinos

Prof. MS Laurício Neumann – UnisinosMS Rosa Maria Serra Bavaresco – Unisinos

Esp. Susana Rocca – UnisinosProfa. MS Vera Regina Schmitz – Unisinos

Responsável técnico

Laurício Neumann

Revisão

Mardilê Friedrich Fabre

Secretaria

Camila Padilha

Projeto gráfico e editoração eletrônica

Rafael Tarcísio Forneck

Impressão

Impressos Portão

Universidade do Vale do Rio dos SinosInstituto Humanitas Unisinos

Av. Unisinos, 950, 93022-000 São Leopoldo RS BrasilTel.: 51.5908223 – Fax: 51.5908467

www.unisinos.br/ihu

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Sumário

ApresentaçãoSolon Eduardo Annes Viola .................................................................................................. 4

Devemos passar o Brasil a limpoEntrevista com Luiz Werneck Vianna .................................................................................... 13

Em 1964, havia muitos grupos golpistasEntrevista com Marco Antônio Villa....................................................................................... 16

O golpe do ponto de vista dos militaresEntrevista com Celso Castro.................................................................................................. 21

A “segurança da cela” e o risco da liberdadeEntrevista com Vera Stringuini .............................................................................................. 23

O golpe dividiu a Igreja e a sociedadeEntrevista com José Oscar Beozzo ........................................................................................ 26

O Brasil no imaginário e nos porões da ditaduraEntrevista com Carlos Fico .................................................................................................... 32

O Pasquim: resistência crítica e humorEntrevista com José Luiz Braga............................................................................................. 35

Berlinda na lua cheia. João Carlos Haas e a guerrilha do AraguaiaEntrevista com Sônia Haas.................................................................................................... 39

Coincidências e diferenças nos modelos econômicos: governo militar, FHC e LulaEntrevista com Wilson Cano.................................................................................................. 44

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Os Cadernos IHU em formação são uma publicação do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, que reú-ne, num caderno, entrevistas e artigos sobre o mesmo tema, já divulgados no Boletim IHU On-Line.Deste modo, queremos facilitar a discussão na academia e fora dela, em torno de temas consideradosde fronteira, relacionados com a ética, trabalho, teologia pública, filosofia, política, economia, literatura,movimentos sociais, etc. que caracterizam o Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

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Apresentação

Rever 1964 para refazer a sociedade

A década de 1960 foi um período de intensasmudanças que colocaram um fim no, aparente-mente, organizado mundo do pós-guerra. As rebe-liões do final da década demonstravam que a eradourada do capitalismo revelava sinais de esgota-mento e o sonho do socialismo, construído atra-vés do Estado, perdia apoio e gerava desconfian-ça. A guerra fria deslocava-se, com armas e diplo-macia, das nações centrais do capitalismo para asregiões geopoliticamente conhecidas, no período,como Terceiro Mundo. Somente o petróleo bara-to permitia a manutenção do crescimento econô-mico que, sob o manto discursivo do desenvolvi-mento, não levava em consideração custos sociaise degradação ambiental.

Na América Latina, a década de 1960 come-çara dois anos antes quando um levante de jovenshumanistas foi capaz de colocar em movimento ocontinente, refazendo sua história. A RevoluçãoCubana alterou as regras do jogo clássico que ser-via de modelo às transformações políticas do con-tinente ao derrotar um ditador, que, como tantosoutros, colocara o Estado a serviço de um peque-no grupo de nacionalistas e de seus tão próximosaliados externos. O pequeno “crocodilo verde”precisaria desafiar a própria sorte e enfrentar cer-cos e invasões que quatro anos depois, em 1962,se transformaram em isolamento político e econô-mico, organizados pelos poderosos vizinhos doNorte, quando a revolução assumiu um discursosocialista e estabeleceu vínculo com a União So-viética. Desde então, a guerra fria aqueceria nãosó a América Central, mas todo o continente.

A partir de então, o maniqueísmo da doutri-na de segurança envolveria, em sombras densas,o futuro das jovens nações latino-americanas es-

pecialmente aquelas que, desde a metade do sé-culo, demonstravam alternativas de desenvolvi-mento autônomo, como, por exemplo, a Argenti-na, o México e o Brasil.

O que estava em jogo

Para essas nações, o que estava em jogo eraa possibilidade de garantir suas soberanias e de in-serir-se, de forma emancipada, na comunidadeinternacional das nações. O Brasil, desde a déca-da de 1930, priorizava um programa de industria-lização e urbanização, capaz de encontrar espaçosde inserção de um contingente considerável detrabalhadores urbanos amparados por uma legis-lação social que regulamentava as relações entrecapital e trabalho. A conjuntura internacional,com as duas guerras mundiais, seguidas das políti-cas de recuperação econômica e social, afrouxaraos laços da dominação externa, possibilitando umlongo período de desenvolvimento até entãodesconhecido.

A década de 1960 encontrou o País em umestado de quase euforia tanto econômica quantocultural. A idade de ouro do capitalismo reconsti-tuíra a economia européia e japonesa por meio deinvestimentos maciços, feitos pelo capital nor-te-americano. No Brasil, a industrialização, co-mandada por São Paulo, gerava uma política deabsorção de mão-de-obra, especialmente voltadapara a produção de automóveis, eletrodomésticose obras de infra-estrutura, as grandes vias da inte-gração nacional. A construção de Brasília deman-dava o deslocamento de recursos e trabalhadorespara o Planalto Central do país ao mesmo tempoque compunha um universo de empolgação pre-sentes na vida cultural, manifestos numa explosão

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de novidades, como o cinema novo, a bossa-nova, as campanhas de alfabetização com seusnovos métodos pedagógicos. De certa forma, oscamponeses e os trabalhadores brasileiros come-çavam a sair das obras literárias de denúncia dainjustiça social para atuarem como protagonistasde sua própria história em um universo político dedisputas democráticas limitadas aos padrões inter-nacionais da guerra fria.

Já em 1946, logo após a proclamação daconstituição, a bancada eleita pelo partido comu-nista (9 parlamentares) foi cassada, e o PC, coloca-do na clandestinidade. No início dos anos 1950 ogoverno nacionalista de Getúlio Vargas passou aser acusado de corrupção e de estar envolvido em“um mar de lama”. As disputas nacionais não erammais acerca do modelo agrário ou industrial de de-senvolvimento, mas sim a respeito de quem teriahegemonia sobre o modelo. O suicídio de Vargas,em agosto de 1954, adiou o golpe de Estado, pos-sibilitando uma década de embates políticos feitostanto nos espaços institucionais como em múltiplastentativas de tomada do poder no parlamento(logo após a morte de Getúlio) e por meio de inter-venções militares (por militares da Aeronáuticacontra o governo de Juscelino Kubitschek).

O governo Juscelino (1956-1960) redimen-sionou a vida brasileira. Internacionalista, abriu oPaís ao capital industrial internacional, implantan-do um parque automobilístico e de eletrodomésti-cos; nacionalista, não aceitou as sugestões macro-econômicas do FMI (o clássico receituário de con-trole da inflação e de contenção dos gastos públi-cos) enquanto investia recursos públicos em obrasque demandavam a ocupação de mão-de- obra(frentes de trabalho de combate à seca, estradasde dimensões nacionais e a construção de Brasí-lia) e negociava com os sindicatos e o movimentosocial.

A eleição de Juscelino1 com uma coligaçãode partidos criados por Vargas, “as duas naus dagovernabilidade”, destinadas a comandar a vida

política nacional: o Partido Social Democrático(PSD) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).Além da oposição militar, Juscelino defrontava-secom a oposição política centrada na União Demo-crática Nacional (UDN), que representava o latifún-dio e abrigava o pensamento conservador, derro-tado nas eleições presidenciais anteriores, da efê-mera democracia daquele período. A eleição deJânio Quadros, tendo como bandeira o combateà corrupção (o símbolo do candidato era uma vas-soura), em 1960, alteraria esse quadro. Político ha-bituado a trocar de sigla partidária a cada eleição,Jânio não era um udenista histórico2, sua eleição,com João Goulart como vice (candidato à vice doderrotado general Henrique Lott da coligaçãoPTB/PSD), radicalizaria a vida política nacional.

Segundo Villa (p. 17), “Havia sempre um pro-blema entre a direita e as urnas: ela perdia cons-tantemente as eleições [...] havia uma direita que,há muito tempo, lutava contra aquela democraciade massas que estava se constituindo no Brasil”.Jânio seria mais uma desilusão do pensamentoconservador. O combate à corrupção resumia-sea medidas moralistas como proibir corridas de ca-valo e imagens de mulheres em trajes de banho. Apolítica externa, aparentemente soberana, au-mentava o descontentamento, na medida em queJânio não só não aderiu ao Bloqueio a Cubacomo condecorou Che Guevara com a medalhado Cruzeiro do Sul, honraria da diplomacia brasi-leira, concedida a políticos de reconhecido méritopolítico.

Sua renúncia, numa madrugada de agosto,ampliou as divisões políticas da sociedade brasi-leira. Os setores conservadores das forças arma-das, da sociedade política e da sociedade civil mo-bilizaram-se para impedir a posse do vice-presi-dente. Os setores legalistas das forças armadas eos setores nacionalistas da sociedade política e dasociedade civil moveram-se para garantir sua pos-se. A mediação entre as diferentes correntes dopensamento político construiu uma solução híbri-

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1 No breve período democrático de meados do século passado, foram eleitos: em 1946, Eurico Gaspar Dutra, pela coligaçãoPSD-PTB, em 1950, Getúlio Vargas, pela coligação PTB-PSD, em 1955, Juscelino Kubitschek, pela coligação PSD-PTB e, em1960, Jânio Quadros, pela UDN.

2 Afonso Arinos senador pela UDN e, posteriormente, ministro nos governos militares diria: “Jânio é a UDN de porre”.

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da: João Goulart, herdeiro político de Vargas e la-tifundiário, assumiria a Presidência como chefe deestado, e o moderado Tancredo Neves assumiriao governo como primeiro-ministro num parla-mentarismo de ocasião. A crise fora outra vez con-tornada, mas a sociedade estava irreparavelmentedividida, e as diferentes correntes do pensamentopolítico moviam-se para definir quem conseguiriaa hegemonia do processo de desenvolvimento, asforças nacionais ou aquelas que, como a Federa-ção das Indústrias do Estado de São Paulo, defen-diam um modelo associado de desenvolvimento.

A escolha do futuro estava no passado

A posse de Goulart completava um ciclo dederrotas do pensamento conservador, que come-çara depois da deposição de Vargas, na décadade 1940, e chegara a seu ponto mais agudo, vi-ra-se impedida de tomar o poder quando o suici-do do Presidente, em 1954, provocou uma reaçãopopular que, ocupando as ruas das grandes cida-des, impediu a concretização do golpe. Novas ten-tativas golpistas foram dadas para impedir a possede Juscelino (1956) e Goulart (1961). A partir deentão, os embates políticos envolveriam a socie-dade civil, rompendo os limites do parlamento, doexecutivo e dos partidos. De um lado, o executivo,setores nacionalistas, partidos de centro-esquerda(VILLA, p.16) parte da mídia, setores da Igreja, ossindicatos, os estudantes e, até mesmo os campo-neses, moviam-se no sentido de ampliar as refor-mas (chamadas de reformas de base), indispensá-veis para a continuação do crescimento econômi-co que empolgava a nação, assumindo um prota-gonismo histórico. De outro lado, agiam gruposconservadores que englobavam políticos tradicio-nais, partidos conservadores, setores de classemédia, entre eles setores da Igreja que, inspiradospelo padre americano Patrick Peyton, que, comseu discurso anticomunista, organizou a Marchacom Deus pela Família, mobilizando mais de 500mil pessoas em todo o Brasil (BEOZZO, p. 26).Mas, as principais forças dessa corrente política es-tavam ligadas às instituições militares e a diferen-tes correntes golpistas, algumas delas ligadas à

embaixada americana (VILLA, p. 16) e todas, semexceção, influenciadas pela doutrina de seguran-ça nacional e pelos pressupostos estratégicos daguerra fria, segundo a qual “quem não é nossoamigo é amigo de nosso inimigo”.

Dividida, a sociedade brasileira movia-se naexpectativa de implementar o desenvolvimentoeconômico e realizar as reformas que a moderni-zação da segunda metade do século XX exigia. Deum lado, defendiam-se as reformas de base e a in-serção social das populações historicamente mar-ginalizadas a partir de um processo de desenvolvi-mento de base nacional, de outro lado, compre-endia-se que o desenvolvimento e as reformas so-ciais passariam pela associação com o capital in-ternacional mesmo em uma condição de depen-dência e atrelamento aos projetos internacionaisdo capitalismo. Nessa posição, encontravam-se oscapitalistas nacionais ligados a Federações empre-sariais, notadamente à FIESP e seus parceiros, osproprietários de terra.

Foi a construção de uma aliança desses seto-res com as facções golpistas das Forças Armadas ea política internacional norte-americana, respal-dada pela da guerra fria e a teoria da segurançanacional, que possibilitou a interrupção da breveexperiência democrática de meados do séculopassado. Embora Werneck Vianna (p.13) reco-nheça que “o golpe não era inevitável”, o projetode tomada do poder pelas forças armadas já esta-va sendo arquitetado há, pelo menos, uma déca-da. Mesmo que a intervenção militar pudesse tersido contornada, o que poderia ter ocorrido na lei-tura de VIANA se as lideranças que propunhammudanças entendessem que elas só poderiamocorrer, de fato, no interior das instituições, os se-tores golpistas já se movimentavam em nome dagarantia da ordem democrática ameaçada pelasprováveis inspirações golpistas existentes no inte-rior do próprio governo. (VILLA, p. 16).

O governo cai como um castelo de cartas

Quando as unidades militares golpistas se co-locaram em movimento, percebeu-se que o pro-palado “esquema militar” de Goulart era somente

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um esquema. Inexistentes ou sem comando, osmilitares constitucionalistas não opuseram resis-tência ao golpe. A população que, em agosto de1954 e em agosto de 1961, ocupara as ruas dasgrandes cidades para manifestar-se em defesa dademocracia, em 1964, embora estarrecida, per-maneceu como uma reservada observadora dasociedade política e das ações do Estado e de suasforças de segurança. Informados, ou não, da pre-sença de forças armadas americanas no litoral doBrasil o Presidente saiu de Brasília e o deputadoAuro de Moura Andrade apressou o golpe ao de-clarar, no Congresso Nacional, vago o cargo dePresidente da República, com Goulart ainda emterritório nacional. Terminava “um período degrande progresso econômico, político e culturalque o País viveu nos anos 1945 – 1964. No cam-po cultural, foi o grande momento do Brasil, tantona área do cinema, como da literatura, da arquite-tura, das artes plásticas [...] Havia um desenvolvi-mento político muito grande, em que estávamosconstruindo, nesses quase vinte anos, uma demo-cracia de massa” (VILLA, 17).

O Golpe de Estado rompeu os limites da de-mocracia, reorientando os rumos da economiabrasileira pela substituição do modelo de desen-volvimento de base nacional por um modelo dedesenvolvimento comandado pelo capital inter-nacional. O novo Estado de tipo militar tinhacomo orientação criar vínculos com o capital fi-nanceiro e às corporações multinacionais, garan-tindo a inserção do Brasil na esfera do capitalismointernacional hegemonizado pelos Estados Unidos.

O novo quadro político recolocava a questãoda democracia e dos direitos humanos em um ou-tro patamar, fazendo com que o paradoxo dos di-reitos humanos viesse a se expressar de forma ple-na. O golpe contra o governo constitucional foradado em nome da democracia e dos direitos hu-manos (nos moldes da política da guerra fria) e daDoutrina de Segurança Nacional dela decorrentee que via ameaças aos princípios da civilizaçãoocidental nas políticas do governo deposto.

O discurso dos militares, especialmente nosprimeiros meses após o golpe, projetava o retor-no, na maior brevidade possível, aos saudáveisprincípios do modelo de democracia formal, ouseja, desenhava-se como “um movimento contra,e não por alguma coisa. Era contra a subversão,contra a corrupção3. Você pode reprimi-las, masnão as destruirá. Era algo destinada a corrigir, nãoa construir algo novo, e isso não é revolução”. To-davia, para que a proclamada pacificação nacio-nal pudesse ser politicamente efetivada, seria ne-cessário rejeitar, (como discurso) a idéia da luta declasses, congregando a população por meio deuma consciência que exigia um pensamento úni-co sobre os princípios fundamentais da democracia.

O simples pensar diferente poderia ser consi-derado razão e causa de “subversão” ou “terroris-mo”. Assim, a DSN4 propunha a eliminação da di-ferença, e do pensamento de oposição ao mode-lo, de tal modo que se estabelecia um pensamentoúnico por meio do qual conceitos clássicos da vidapolítica, como o debate entre as diferentes corren-tes políticas, eram suprimidos e impostos pensa-mentos autoritários sob o domínio de um projetoúnico, incapaz de suportar críticas. Ao contrário,as oposições eram tratadas como subversão e si-lenciadas a ponto de a sociedade não ter conheci-mento de sua existência. Segundo HASS (p. 40),“pessoas como nós que vivíamos, em São Leopol-do, que tínhamos acesso limitado às informações[...] ficávamos isolados [...] Era um cenário emque se ignorava o que estava acontecendo ali naesquina. As pessoas poderiam estar morrendo,sendo torturadas na delegacia da cidade e nin-guém sabia de nada”.

As guerras no interior das forças armadas

No interior do poder, as disputas aconteciam,de tal modo que o autoritarismo militar brasileironão apresentou uma única posição, como se po-deria supor, e suas diferentes facções representa-

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3 GEISEL, 1981 apud GASPARI, 2002, p. 138.4 Sobre a Doutrina de Segurança Nacional veja-se, especialmente, Comblin (1980), Rouquié (1997), O’Donnel (1982), Borges

(2003) e Oliveira (1976).

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ram as divisões existentes nas forças armadas náosó no momento do golpe mas também ao longode todo o período militar5. Um exemplo claro des-sas diferenças está relacionado com a Escola Su-perior de Guerra (ESG)6 que, de formadora dequadros no primeiro período autoritário (a maiorparte dos militares que ocuparam postos antesdestinados a civis na burocracia do Estado haviamsido alunos da Escola) passou a representar umcomplicador político cuja influência foi, gradativa-mente, descartada ao longo do governo Geisel.

Aos debates internos correspondia o enqua-dramento da sociedade política, manietada emantida em funcionamento disciplinado com umbipartidarismo criado pelo Ato Institucional nº 2,que definia, desde o executivo, quem deveria fa-zer parte da situação (a Aliança Renovadora Na-cional – ARENA) e quem deveria compor a oposi-ção (o Movimento Democrático Nacional –MDB)7. Disciplinada a sociedade política, a socie-dade civil foi silenciada com diferentes políticasque envolveram entre outras ações: a) a censuraaos meios de comunicação; b) a vigilância sobreas manifestações artísticas e culturais, c) o con-trole dos diferentes tipos de movimentos sociais;D) o incentivo a um imaginário ufanista repre-sentado por campanhas publicitárias, elaboradaspor relações públicas (os marqueteiros de hoje),baseadas no “milagre econômico” e por “coinci-dências conjunturais como a conquista da Copado Mundo pelo Brasil” (FICO, p.33). Alias, a par-tir desse período, o futebol pode ser tratadocomo uma política de interesse público, sem dú-vida, uma política pública, capaz de alcançar êxi-tos consideráveis.

Êxitos somente comparáveis aos do cresci-mento econômico das décadas de 1960 e 1970.De 1967 em diante, contido o processo inflacio-nário do início da década, o País começou a

apresentar taxas de crescimento que, ao longo dedez anos, manteve uma média de 10 % ao ano.Para Cano (p. 20) “a taxa de emprego foi feno-menalmente alta, o PIB cresceu [...], a urbaniza-ção avançou sobremodo; ampliamos considera-velmente a classe média, modernizamos a agri-cultura e uma parte substancial do setor indus-trial”. O crescimento da economia respaldou-senos investimentos em infra-estrutura, feitos aindanos anos 1950, acrescidos de dois fatores inter-nacionais decisivos; o petróleo barato (2 dólareso barril) e financiamento externo abundante ecom juros baixos. Na política interna, o controledos sindicatos e a repressão às suas liderançaspossibilitou o enxugamento dos salários dos tra-balhadores, a transferência de renda para setoresde classe média (por meio de políticas específi-cas como financiamento para habitação), o quelevou ao crescimento das desigualdades sociais.O empobrecimento dos trabalhadores pode servisualizado no quadro abaixo que compara o va-lor do salário mínimo em pleno período daditadura:

Quadro 1 – O valor salário míinimo

O salário mínimo no período do “milagre econômico”

Valor do salário mínimo e percentual de trabalhadores queo recebiam entre 1969 e 1973

1969 1973

Assalariados ganhan-do salário mínimo

Na indústriaComércio/serviços

54,8%46,3%

48,4%45,3%

Horas necessárias de trabalho para a com-pra de 1 ração essencial por mês

100h 158h

Fonte: Ministério de Trabalho e DIEESE (KUCINSKI, 1982, p.41)

A cooptação da classe média (CANO, p.20)não foi completa. Do seu interior, saiu a maioriados jovens universitários que, a partir de 1966,

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5 Cada sucessão política representou uma conjuntura de conflitos tão intensos no interior das forças armadas que a historiografiaos denomina de “guerras mundiais”.

6 A ESG foi criada em 1949 sob influências norte-americana e francesa com a finalidade de treinar funcionários civis e militaresde alto nível para exercerem funções de direção e planejamento da segurança nacional. Dois dos presidentes do ciclo militar,Humberto de Alencar Castelo Branco e Ernesto Geisel, foram dirigentes da ESG. Outros dois, Emílio Garrastzu Médici e JoãoBatista Figueiredo, comandaram o SNI. Sobre a ESG veja-se: Borges (2003), Comblin (1980), Oliveira (1976) e Fausto (2004).

7 O jornalista Millôr Fernandes disse no Pasquim (veja-se o texto de José Luis Braga) “temos dois partidos, o partido do sim(situação) e o partido do sim senhor (oposição).

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começaram a se reorganizar no interior das uni-versidades ou em ações de resistência que leva-ram ao revigoramento das entidades estudantis,às denúncias contra prisões arbitrárias e a práti-ca cotidiana de tortura aos presos políticos, àsprimeiras manifestações públicas contra a dita-dura e aos enfrentamentos com os aparelhosrepressivos.

O ano de 1968 aguçou a cisão entre a socie-dade civil e o poder militar. De um lado, a socie-dade exigia o cumprimento das promessas de re-democratização feitas em 1964, de outro, o auto-ritarismo reafirmava que a subversão ainda nãoestava contida, mas espalhava-se como erva dani-nha. Para o poder militar, seria preciso endurecero jogo político, constituir os instrumentos legaispara ampliar o campo das ações repressivas. OAto Institucional nº 5 do dia 13 dezembro de1968, suprimiu o discurso da democracia e assu-miu, sem limites, a ditadura.

A ditadura sem disfarces e o movimentodas catacumbas

Iniciava, então, o período mais duro da dita-dura (VIANNA, p.13). A partir dele, praticamentenão restavam mais espaços de ação para a socie-dade civil. O movimento estudantil passava a tersuas manifestações reprimidas com crueldade, esuas lideranças perseguidas e presas. Nas prisões,as torturas aos dissidentes intensificavam-se e in-corporavam técnicas e ciência. Os torturadores re-cebiam cursos internacionais da Escola das Amé-ricas, controlada pela CIA e sediada no Panamá,os organismos internos de segurança criavam osDOI-CODI, unindo os serviços de espionagem dasforças armadas e da polícia política. A mídia, pormais leal ao sistema que pudesse ser, precisava re-servar uma sala para a censura e os censores, mes-mo a rede Globo tão leal ao sistema defronta-va-se, às vezes, com vetos e proibições. O despro-pósito era tamanho que alguns temas e determi-nados nomes eram simplesmente proibidos. Entreeles o nome do Arcebispo de Olinda e Recife,Dom Helder Câmara.

Os crimes cometidos contra a humanidade,nos porões da ditadura, já eram do conhecimentoda sociedade desde 1964, mas, especialmente apartir de 1966, repercutiram nas igrejas cristãs porcausa das prisões de religiosos e militantes católi-cos leigos, ligados à ação social, notadamente aJuventude Universitária Católica (JUC), a Juven-tude Operária Católica (JOC) e a Ação Popular(criada no início da década de 1960 como umpartido político de esquerda e que, a partir de1964, passou a atuar de forma não-legal) (BEOZZO,p. 26 e 27).

Afasta de mim esse cálice de vinho tintode sangue

Contidos, os movimentos de contestação es-tudantil do final dos anos 1960, para os pequenosgrupos organizados de oposição, restaram duasalternativas, passar a viver com a população ouprojetar um enfrentamento armado com o gover-no militar. Enfrentamento por si só desigual, masque acalentava a fantasia de reproduzir, na Améri-ca do Sul, a vitória militar de Cuba e os avançosconquistados pelos camponeses vietnamitas con-tra a maior máquina de guerra do planeta. Mas, seem Saigon, a guerrilha conseguira chegar ao po-der em 1973, a morte de Che Guevara na Bolívia,em 1967, demonstrara a dificuldade de criar um,dois, dez, mil Vietnãs. Morto o guerrilheiro, estetransformou-se em símbolo dos movimentos estu-dantis de 1968. Ao esconder seus restos mortais,os militares não esperavam rever o rosto do guer-rilheiro multiplicado em cartazes e camisetas espa-lhados pelas ruas ocupadas por uma juventude,que sonhava o impossível, das grandes cidades domundo como se fosse possível transportar a ‘cor-dilheira para o asfalto’.

Nos restritos espaços da sociedade civil deentão, as Igrejas cristãs abriram suas portas para arecuperação da dignidade humana. Os bispos doNordeste criticaram o desenvolvimentismo semjustiça social, os bispos do Centro-Oeste defende-ram a reforma agrária (BEOZZO, p. 27) e Dom Pau-lo Evaristo Arns, na Arquidiocese de São Paulo,criou a Comissão Pontifícia de Justiça e Paz de

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São Paulo (CJP/SP)8, reunindo professores univer-sitários, personalidades da sociedade brasileira,operários e estudantes, com o objetivo de defen-der e amparar os perseguidos políticos. “Eles sal-varam inúmeras vidas. Na medida do possível,não apenas denunciavam as torturas, davam tam-bém uma assistência de todo o tipo e de toda ahora [...] A Igreja Católica foi uma das poucas insti-tuições que ousou desafiar o regime” (STRINGUINI,p.24). Movida pela “opção preferencial pelos po-bres” e pelos princípios de Medellín, Puebla e daEncíclica Populorum Progressio a CJP/SP possuía,como prioridade absoluta, dar voz ao oprimido,ao injustiçado, ao que era perseguido.

Os anos de Chumbo haviam destruído os es-paços de participação, mas, no interior da sociedade,reatavam-se, lentamente, os laços de aproximação esolidariedade que fariam brotar, a partir da segundametade da década de 1970, um movimento socialrenovado e disposto a reconquistar as liberdadesperdidas e a refundar a democracia destruída.

Na primeira metade da década de 1970, a ba-lança começava a inclinar, de forma lenta e gradual,para o declínio da ditadura. O crescimento econômicoda década anterior servira para concentrar renda e aprometida política (fazer o bolo crescer para depois di-vidi-lo) de redistribuição de benefícios acabou esqueci-da. A reforma agrária permanecera enquadrada na le-gislação autoritária (o estatuto da terra), os benefíciosque as classes médias receberam começavam a sercorroídos pelo ressurgimento da inflação, e os empre-sários viam escassear os financiamentos com jurosbaixos, ao mesmo tempo que os seguidos choques in-ternacionais do petróleo aumentavam os preços doscombustíveis, dificultando as exportações e criando di-ficuldades na balança de pagamentos (CANO, p. 45).

Nessa conjuntura econômica, começaram a re-percutir, entre o empresariado brasileiro, as teorias eco-nômicas que atualizavam o pensamento liberal do sé-culo XVIII, defendendo o fim dos gastos públicos combenefícios sociais, portanto, o fim de Estado de bem-estar social, uma liberdade praticamente absoluta parao mercado, o que significava que o Estado deveria

abrir mão não só das suas atividades econômicas,como também de suas funções reguladoras.

No campo da política externa, a derrotaamericana no Vietnã deu um novo conteúdopara a questão dos direitos humanos que, grada-tivamente, saíam das mãos civilizadoras do Esta-do para serem assumidas, como bandeira de lu-tas, pelos novos movimentos sociais de todo omundo. Militantes pacifistas, ambientalistas, dosmovimentos negros, feministas, pelo direito à li-vre opção sexual, começavam a construir novasformas de manifestação.

No Brasil, respondendo às condições tipica-mente nacionais, os novos movimentos revela-vam as condições da nossa própria sociedade, lu-tando contra a carestia, em defesa da reformaagrária, pela moradia e também por direitos civise políticos, entre os quais lutas pelo fim da censurae a extinção da Lei de Segurança Nacional.

Ao mesmo tempo, alguns jornais da grandeimprensa e revistas semanais encontravam espa-ços para noticiar os crimes dos organismos de re-pressão. Na crise política em que se encontrava, opróprio governo precisava acertar contas internase restabelecer a hierarquia militar ameaçada pelaabsoluta autonomia dos DOI-CODI. Em São Pau-lo, notadamente na região do ABC paulista, sur-gia um novo sindicalismo hábil nas negociaçõessalariais, disposto a organizar e mobilizar os traba-lhadores em defesa não só de seus interesses ime-diatos, mas também de liberdades civis, entre elas,o direito fundamental de associativismo e de ma-nifestação livre de pensamento.

Nas regiões industrializadas do País, o MDBradicalizava seu discurso e fazia a maioria dos vo-tos para as eleições parlamentares, levando o go-verno a projetar reformas políticas que deveriammanter unido o partido situacionista e a multiface-tar o partido oposicionista. Mesmo nessa situação,que já desenhava os caminhos da abertura tutela-da pelos militares, os organismos de segurançacontinuavam suas ações clandestinas como o de-monstra o quadro a seguir.

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8 A partir da criação da CJP/SP surgiram entidades de direitos humanos em grande número de cidades brasileiras. Entre elas oMovimento de Justiça e Direitos Humanos de Porto Alegre, Comissões de Direitos Humanos ligados a Igrejas católicas e oMovimento Nacional de Direitos Humanos.

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Abrindo o sinal fechado

A tese da abertura política passava a ser umaaspiração nacional, “[...] os partidos políticos, oMDB, as instituições da sociedade civil, como Igre-ja, CNBB, SBPC, OAB... Os estudantes tiveram pa-pel importante” (VIANNA, p. 14). A sociedade sereorganizava intensamente. Além das propostaseminentemente políticas, como a luta pela Anistia,pelas eleições Diretas e pela Constituinte Sobera-na, ampliavam-se os espaços de participação debase com organizações, como, entre outros, osmúltiplos movimentos em defesa dos direitos hu-manos, o Movimento Contra a Carestia, o Movi-mento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, o Mo-vimento dos Sem Teto e, notadamente, o novosindicalismo que nascia no ABC paulista.

O regime militar, pressionado pelo movi-mento social e pela reorganização da sociedadepolítica, perdia espaço de comando e a crise políti-ca era agravada em razão do esgotamento do“milagre econômico”. O segundo choque do pe-tróleo, em 1982, fechara as torneiras das energiasfósseis de baixo custo, o sistema financeiro au-mentava os juros e continha os empréstimos inter-nacionais. Ao sentir que seus benefícios econômi-cos diminuíam, as elites afastaram-se do governo,começando a exigir a liberalização dos negócios eo afastamento do Estado da vida econômica. Apopulação empobrecida reivindicava direitos so-ciais e econômicos; as elites, liberdade de merca-do. Pressionado, o governo autoritário projetouuma abertura política segura e gradual, mas antesde tudo, lenta e sob tutela militar.

Além da pressão no interior das próprias for-ças armadas e da pressão originada dos movi-mentos sociais, o governo militar passava a ser in-ternacionalmente criticado, especialmente pelos

tradicionais aliados norte-americanos que, após aderrota no Vietnã, buscavam, a partir da eleiçãode Carter, recuperar as bandeiras dos direitos hu-manos e da democracia. Mesmo que restrita, a de-fesa dos direitos civis e políticos, a pressão vindada diplomacia americana (os governantes aliadosque não aceitassem a nova política dos direitoshumanos deveriam ser convidados a visitar osEstados Unidos e nele, os portos da armada ame-ricana) ampliava a crise política da ditadura, forta-lecendo as oposições.

As reivindicações da sociedade civil seriamconcedidas mas sob a proteção das mediações in-dispensáveis para a manutenção da ordem. Assimo País começou a viver uma nova conjuntura polí-tica na qual ressurgem a sociedade civil e a socie-dade política que passam a exercer maior influên-cia sobre o Estado. No interior do governo, as lutasinternas ampliam, cada vez mais, a fragilidade po-lítica da ditadura. Os organismos de repressão,que o governo procurava controlar e recolocarsob o comando da hierarquia militar, passam aatuar como grupos terroristas, preparando e reali-zando atentados contra entidades civis como aOAB e manifestações culturais oposicionistas comoo ato-show que comemorava o dia 1 de maio noRio-Centro, no Rio de Janeiro. O governo investi-ga tais ações, mas não pune os culpados. Nessaconjuntura, os movimentos sociais assumiramuma postura de protagonismo ao propor umanova pauta de interesses a serem mediados pelasociedade política e implementados, mesmo quede forma parcial, pelo Estado. O Brasil passava aviver uma nova conjuntura política, na qual o mo-vimento social colocava o governo militar na de-fensiva e a sociedade política, por meio dos novospartidos e do parlamento, reocupava seu lugar noprocesso de redemocratização. Constituía-se um

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Quadro 2 – Mortos e desaparecidos

Ano 1964 1965 1966 196 1968 196 1970 1971 1972 1973 1974

Total de mortos 19 3 2 3 12 19 30 50 58 59 62

Desaparecidos 2 1 0 0 0 1 5 16 18 28* 52

* Fonte: Compilação de dados feitas da obra de Nilmário Miranda em Dos Filhos Desse Solo. Mortos e Desaparecidos Durante a

Ditadura Militar. O número de desaparecidos de 1973 é impreciso. Os comandantes militares nunca reconheceram as datas dasexecuções praticadas no Araguaia. Assim, em vez de 28, podem ser 30 ou 32. Nesse caso, baixa o número de desaparecidos de 1974.

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novo momento histórico que pode ser sistematiza-da da seguinte forma:

a) À reivindicação de Anistia ampla, origina-da do movimento social, foi proposta peloEstado uma lei que excluía da anistia osacusados de crimes de sangue e beneficia-va também torturadores e agentes derepressão.

b) As grandes manifestações da sociedade ci-vil em defesa das eleições diretas forammediadas pela sociedade política, resul-tando na eleição indireta, em 1985, deuma chapa encabeçada pelo oposicionistamoderado Tancredo Neves, tendo comovice o presidente nacional do partido situ-acionista, José Sarney. O candidato daARENA, o partido leal ao governo, PauloMaluf, não contava com o apoio de partesconsideráveis do poder militar.

c) Ao movimento em defesa da ConstituinteSoberana contrapôs-se uma ConstituinteCongressual que veio a ser denominadade Constituinte Cidadã e que incorporouemendas populares referendadas por mi-lhares de assinaturas recolhidas em todo oPaís (1986).

d) A defesa do princípio da igualdade de di-reitos, notadamente, os sociais e econômi-cos, seguiu-se uma legislação que, gradati-vamente, retirou, e continua a extinguir,históricos direitos dos trabalhadores, am-pliando a concentração de renda e benefí-cios e, em decorrência, ampliando a exclu-são da maioria.

e) Ao desejo nacional de pacificação, se-guiu-se o crescimento da violência, agoranão mais como monopólio do Estado, mas

como prática cotidiana que coloca a socie-dade no estreito limite que separa a civili-zação da barbárie.

As heranças históricas da longa noite políticabrasileira estão marcadas na sociedade atual. OPaís ainda precisa recuperar seu passado e retra-çar os sonhos de justiça social e de paz. De qual-quer forma, “A liberdade tem riscos. Ela entra naconstrução, lenta, verdadeira, genuína da cultura,porque só podemos aspirar a uma condição de li-berdade que não seja na barbárie, se tivermosconstruído uma cultura, por isso há que construiruma cultura” (STRINGUINI, p. 23). Uma cultura departicipação que só pode ser construída, enfren-tando o medo, agora não mais o medo do autori-tarismo, mas o medo da desigualdade e da inexis-tência de direitos sociais básicos ainda não con-quistados, mesmo que já tenham passado duasdécadas de democracia formal.

Esse tempo não foi suficiente para alcançar-mos a democracia formal. “Não se resolveu nada,perderam-se 10 anos com um crescimento medío-cre, com inflação alta, com falta de empregos,com piora na distribuição de renda e com o agra-vamento dos problemas sociais latino-america-nos, principalmente problemas urbanos, como apobreza, habitação, saneamento, educação, saú-de” (CANO, p.46).

Essas são as grandes heranças da longa noiteautoritária. Heranças agravadas por uma décadade predomínio da economia regulada pelo merca-do. Conquistados, ao longo de duas décadas deluta contra a ditadura, os direitos civis e políticosesperam que os direitos sociais e econômicos ve-nham lhes fazer companhia para completar o pro-cesso de democracia. Esperam até quando?

MS Solon Eduardo Annes Viola

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Devemos passar o Brasil a limpo

Entrevista com Luiz Werneck Vianna

Luiz Jorge Werneck Vianna é doutor em So-ciologia pela Universidade de São Paulo (USP) eprofessor pesquisador no Instituto Universitário dePesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). WerneckVianna é autor de, entre outros, Corpo e Alma

da Magistratura Brasileira. Rio de Janeiro: Re-van, 1997; A Revolução Passiva: Iberismo e

Americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Re-van, 1997; A Judicialização da Política e das

Relações Sociais no Brasil. Rio de Janeiro:Revan, 1999. O professor também é presidente daAssociação Nacional de Pós-Graduação e Pesqui-sa em Ciências Sociais (ANPOCS), da qual o IHU éassociado; sócio da Associação Brasileira de Ciên-cia Política (ABCP); parecerista ad hoc da Capes,CNPq, Faperj e Fapesp; consultor permanente doCentro de Referência da História Republicana/Museu Nacional; e membro do Conselho de Re-dação de Dados da Revista de Ciências Sociais doIuperj.

IHU On-Line – Qual é a reflexão que deve-

ríamos fazer ao lembrar os 40 anos do golpe

militar?

Werneck Vianna – É um momento para passara limpo o Brasil, de reflexão sobre as causas dogolpe, o tipo de sociedade que foi criada ao longodo processo de modernização autoritária e procu-rar também, com base nessa apreensão da realida-de vivida, uma perspectiva nova para se projetar.

IHU On-Line – Havia outras alternativas ao

golpe militar de 1964?

Werneck Vianna – Os debates mais evidentes,aqui no eixo Rio-São Paulo, têm sido muito par-ciais, sem procurar pôr em evidência toda a com-

plexidade do momento que se viveu antes de1964. Não se quis e não se quer fazer uma autocrí-tica verdadeira a respeito de como o campo de-mocrático atuou no imediato pré-64. O golpe nãoera inevitável. Ele podia, perfeitamente, ter sidocontornado, caso os setores favoráveis às refor-mas e à mudança entendessem que elas só pode-riam concorrer, de fato, no terreno das institui-ções. Quando o caminho das reformas foi enten-dido como obstaculizado pelas instituições políti-cas da democracia, as circunstâncias do golpepara a deposição do governo legal começaram aamadurecer. Não é à toa que isso ocorre. Essa crí-tica provém de setores que, exatamente por nãoterem entendido o que ocorreu antes de 1964, re-cuperaram alguns erros da esquerda anterior e umcaminho do enfrentamento armado fora das insti-tuições políticas que não nos levou a lugar algum,nos levou ao aprofundamento do regime militar.Há uma ligação entre muitos dos que vêm se ma-nifestando agora sobre as circunstâncias do ime-diato pré-64 com o que ocorreu nos anos 1960 e1970, como, se o que tivesse acontecido antes, le-gitimasse o tipo de oposição militarista que exer-ceram durante o regime autoritário.

IHU On-Line – Qual o senhor consideraria o

período mais duro durante o regime?

Werneck Vianna – O AI-5, que sucedeu a umaação inteiramente desatinada de uma parte da es-querda. Isso pode explicar o percurso da ditaduramilitar.

IHU On-Line – Vendo o cenário político

atual, como os anos de ditadura influencia-

ram na forma de fazer política no Brasil?

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Werneck Vianna – O País vem se democrati-zando do ponto de vista político, sem dúvida ne-nhuma, mas isso não vem importando, conformese vê, em grandes mudanças sociais. Essa é agrande tragédia da democracia brasileira. Elatem sido incapaz, ao se afirmar, de dar conta dedois temas cruciais. O primeiro deles é o cresci-mento econômico, e o segundo é o da exclusãosocial. Havia uma grande esperança nesse gover-no atual de ele ser capaz de projetar o País nessasduas direções. Até agora, infelizmente, ele nãotem sido bem sucedido nisso. O que não quer di-zer, por outro lado, que se deva perder as espe-ranças de que ele pode encontrar, mais à frente,um caminho melhor.

IHU On-Line – Qual foi a influência da dita-

dura militar nas universidades?

Werneck Vianna – Do ponto de vista da culturae do pensamento político, os 20 anos de ditaduramilitar acarretaram um prejuízo que vai ser neces-sário mais de uma geração para recuperar. Umamemória inteira foi perdida, uma memória de re-sistência, uma memória cultural, de construção doPaís. Os indivíduos se tornaram mais isolados unsdos outros por força das interdições que existiamsobre a vida associativa, partidária. Quando a de-mocracia veio, o povo estava mais isolado do queem qualquer momento anterior. Desse ponto devista e do ponto de vista do pensamento, foi umdesastre. O mérito da política da ditadura militarfoi criar agências de fomento à pesquisa. Olhandoda perspectiva da universidade, porém, todas aspolíticas públicas de fomento da ciência foram de-senvolvidas à margem da universidade, que setornou um escolão, um lugar onde se dá aula.

IHU On-Line – A forma como estão estrutu-

radas as universidades, atualmente no Bra-

sil, teve influência do período militar?

Werneck Vianna – Tem havido mudanças signi-ficativas. É só ver quem são os reitores de hoje,comparando com quem eram há 10 anos. Háuma nova elite na reitoria brasileira. Esse tipo dejovens dirigentes da vida universitária tem feitomuito para recuperar a universidade brasileira.

Tudo isso vai demandar muito tempo, porque adestruição foi muito profunda. Mas isso não é mo-tivo para perder as esperanças.

IHU On-Line – Quais foram as principais re-

sistências, especialmente as principais ins-

tituições, que resistiram durante os anos de

governo militar?

Werneck Vianna – Houve, entre os partidospolíticos, o MDB, as instituições da sociedade ci-vil, como Igreja, CNBB, SBPC, OAB... Os estudan-tes tiveram um papel importante. A vida parla-mentar foi outro instrumento importante. A partirde meados dos anos 1970, o movimento sindicalfoi determinante, especialmente o movimentosindical de São Paulo, que foi muito influente naluta contra o regime militar. Não é à toa que osúltimos presidentes da República tenham vindode lá.

IHU On-Line – Como o senhor vê a influên-

cia do golpe e do início do governo militar

em 1964 e do que aconteceu depois nos ou-

tros países da América Latina?

Werneck Vianna – O Brasil abriu o caminho. OUruguai e o Chile são países muito mais ordena-dos que o Brasil. Sempre tiveram uma divisão emclasses mais nítida do que o Brasil. São países mu-ito mais organizados que o nosso, com identida-des partidárias que passam de geração em gera-ção. A ditadura brasileira foi mais branda que auruguaia e do que a chilena e a argentina. Umadas razões disso foi a natureza mais plástica dospolíticos brasileiros, exatamente porque eles nãosão vinculados a identidades sociais muito fortes.Não se pode compreender a resistência à ditadurasem a ação do MDB. Uma grande frente entre eli-tes liberais e elites esquerdistas e comunistas. OPartido Comunista Brasileiro teve uma funçãoque, desde o começo do golpe, procurou articularuma frente política em nome das liberdades de-mocráticas, enquanto no Chile, por exemplo, a es-querda tinha objetivos muito mais ambiciosos naluta contra a ditadura. Queria remover a ditadurae, ao mesmo tempo, conseguir um governo nacio-nal popular avançado. Isso não foi bom para o

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Chile, que até hoje não realizou completamentesua transição para a democracia. Ainda age comuma constituição outorgada, com o fantasma dePinochet.

IHU On-Line – O Brasil conseguiu essa tran-

sição definitivamente?

Werneck Vianna – Sem dúvida. Nosso proble-ma é que conseguimos a democracia política, masaté agora não sabemos o que fazer com ela para aresolução dos problemas vitais do País, que sãocrescimento e incorporação social.

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Em 1964, havia muitos grupos golpistas

Entrevista com Marco Antônio Villa

Marco Antônio Villa é mestre em Sociologia edoutor em História Social pela Universidade deSão Paulo (USP), com tese intitulada Canudos, o

povo da terra. Professor na Universidade Fede-ral de São Carlos (UFScar), ele é o autor da cole-ção Sociedade e História do Brasil, escritapara o Instituto Teotônio Vilela. Na obra, Villa dis-cute os mitos da história brasileira ao destronarheróis como Tiradentes, ao questionar a idéia deque a República realmente significou progresso aoPaís e ao classificar o ex-presidente João Goulartcomo incapacitado. Villa é autor de numerosos li-vros, entre os quais destacamos: Jango, um per-

fil (1945-1964). São Paulo: Globo, 2004; Ca-

nudos, o campo em chamas. São Paulo: Brasi-liense, 1993; Canudos, o povo da terra. SãoPaulo: Ática, 1995; Vida e morte no sertão.

História das secas no Nordeste nos séculos

XIX e XX. São Paulo: Ática, 2000; Caminhos da

História: da Independência aos nossos dias.São Paulo: Ática, 2003.

IHU On-Line – Qual é o significado de fazer

memória do golpe de 1964?

Marco Antônio Villa – O principal significado éa importância da democracia, porque, na conjun-tura de 1964, houve um desprezo de grande parteda elite política brasileira pelo valor e importânciada democracia. Para muitos, a democracia era umempecilho para o exercício do governo. Hoje,quarenta anos depois, podemos fazer uma refle-xão mais serena sobre os acontecimentos daquelemomento histórico do Brasil. É possível ver que agrande derrotada, naquela conjuntura, foi a de-mocracia e quão importante é termos um regimedemocrático, sabermos conviver com a diferençae com a pluralidade.

IHU On-Line – O senhor defende uma tese

polêmica na qual sustém que, se o golpe

não tivesse sido de direita, teria sido de es-

querda, confirma ainda esta hipótese?

Marco Antônio Villa – É uma questão espinho-sa, mas, naquela conjuntura de final de março de1964, havia uma corrida pelo golpe. Existiam vá-rios projetos golpistas. De um lado, o projeto gol-pista da direita que, por sinal, não era um, mas vá-rios. A direita civil que se articulava, vários gruposmilitares, alguns mais próximos, a embaixadaamericana, outros que se organizavam até semconhecimento maior por parte do governo ameri-cano. Do lado do centro-esquerda também. Porque eu digo centro-esquerda? Não é possível dizerque o Jango era de esquerda. É um exagero. Ha-via um golpismo por parte de Jango, um golpismomaterializado na idéia continuísta, ou seja, ele jo-gava no impasse político, que era o único meio deser candidato nas eleições de 1965, pois a Consti-tuição Brasileira de então proibia a reeleição. Sehouvesse um impasse político, ele ganharia comisso, porque ele poderia, graças a esse impasse,impor à força uma mudança da Constituição e sercandidato nas eleições de 1965. Portanto, ele jo-gava pelo golpe e buscava apoio militar. Para issofez uma longa caminhada pelos quartéis, naquelemomento histórico de março, aliado ao PartidoComunista. Por outro lado, havia, à esquerda doPartido Comunista do Jango, tendências queeram revolucionárias e jogavam também na der-rubada do regime democrático, por exemplo, oPartido Comunista do Brasil (PC do B) enviou, nodia 29 de março de 1964, o primeiro grupo deguerrilheiros para treinar na academia militar dePequim. Logo, saiu daqui ainda quando vigoravao regime democrático e regressou, quando o Bra-

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sil já estava na ditadura. Por outro lado, existiam,desde 1962, as Ligas Camponesas, parte das quaisjá tinham se encaminhado para a luta armada,tanto que foram encontrados no Brasil, neste ano,no governo João Goulart, oito campos de treina-mento guerrilheiro das Ligas Camponesas comapoio, inclusive, do governo cubano. Havia, tam-bém, entre os revolucionários, os brizolistas que seorganizavam nos famosos grupos dos onze que lu-tavam por uma transformação revolucionária noPaís. A democracia tinha, pois, inimigos de todosos lados entre os revolucionários, os golpistas decentro-esquerda e os golpistas de direita.

IHU On-Line – Que elementos pesaram mais

para a vitória da direita?

Marco Antônio Villa – O embate maior foi tra-vado entre o Jango e os grupos de direita. Jangoera presidente da República, tinha um dispositivomilitar até para dar o golpe, organizado por umgeneral gaúcho, Assis Brasil. Um dispositivo mili-tar que, por sinal, ninguém viu nos dias 31 demarço, 1º de abril e 2 de abril e, claro, os gruposdireitistas que, há muito tempo, tinham uma enor-me adversidade com as urnas. Havia sempre umproblema entre a direita e as urnas: ela perdiaconstantemente as eleições. A UDN, principal par-tido de direita, perdeu as eleições em 1945 e 1950e em 1955 e 1960. Ninguém pode dizer que aUDN venceu, porque Jânio Quadros foi um candi-dato muito mais dele próprio que da UDN. Haviauma direita que, há muito tempo, lutava contraaquela democracia de massas que estava se cons-truindo no Brasil. Ela se posicionou contra a possede Getúlio Vargas em 1951. Esta mesma direitanão quis a posse de Juscelino Kubitschek em1956; não quis a posse de João Goulart em agos-to de 1961, portanto havia uma direita que, siste-maticamente, jogava contra a democracia e que,diversas vezes, se manifestou no período de 1945a 1964.

IHU On-Line – Essa direita está hoje em di-

versos partidos, até no partido de governo?

Marco Antônio Villa – Hoje, 40 anos depois,mudou radicalmente o País. Nós não temos maisas forças armadas golpistas, não temos mais uma

esquerda que joga contra a democracia e não te-mos uma direita golpista no sentido da direita queexistia nos anos de 1945 a 1964. Graças a Deus,esta página da história do Brasil já foi virada e pa-rece que para sempre. Agora temos, evidente-mente, uma direita, porque, no regime democráti-co, deve-se conviver com as diferentes correntespolíticas. A direita está, fundamentalmente, noPartido da Frente Liberal (PFL), que é a oposiçãoao atual governo, está no Partido Progressistaque, é o do Paulo Maluf, que apóia o governo. Adireita brasileira, hoje, não é a direita de 1945 –1964, parte dela está na oposição, e outra parte,no governo.

IHU On-Line – Como a ditadura influenciou

o modo de fazer política no Brasil especial-

mente nos governos posteriores, uma vez

chegada a democracia?

Marco Antônio Villa – Os governos militares ar-rasaram o País. A ditadura acabou destruindo umperíodo de grande progresso econômico, político,cultural que o País viveu nos anos 1945 – 1964.No campo cultural, foi o grande momento do Bra-sil, no cinema, na literatura, na arquitetura, nas ar-tes plásticas. O País estava vivendo um grandemomento. Havia um desenvolvimento políticomuito grande, em que estávamos construindo,nestes quase 20 anos, uma democracia de massa.Houve um grande deslocamento populacional doNordeste para o Sudeste e um crescimento econô-mico quase que contínuo, especialmente no qüin-qüênio juscelinista. A ditadura conseguiu, em al-guns momentos, articular o crescimento econômi-co, mas tirou a liberdade política, ou seja, ela pre-servou o que havia anteriormente de impulso eco-nômico, mas jogou na lata do lixo a liberdade. De-pois, com a redemocratização, em 1985, nós joga-mos na lata do lixo o crescimento econômico e fi-camos só com a liberdade, quer dizer que o en-contro entre liberdade e crescimento político, queexistia nos anos 1945 e 1964, até hoje nós nãoconseguimos reencontrar.

IHU On-Line – Mas, o próprio processo de

modernização do País, não foi gerador de

miséria para as maiorias?

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Marco Antônio Villa – Claro, infelizmente essecrescimento acabou tento um violento processode concentração de renda, isso é verdade, que foiderivado da falta de liberdade, porque, se houves-se crescimento com liberdade, os atores políticospoderiam negociar uma redistribuição da renda.Como não havia liberdade, não havia espaço dereivindicação. Conseqüentemente, o produtodesse crescimento econômico acabou se concen-trando entre os mais ricos. Agora vale lembrar quea classe média acabou sendo favorecida pelo cres-cimento econômico. Houve uma grande modifi-cação das moradias de classe média com o BancoNacional de Habitação (BNH). Não podemos ne-gar também que o índice de desemprego era pró-ximo a zero. Cito meu exemplo pessoal. Mudeipara São Paulo, em 1972. Eu era um office boy,um mensageiro, como todo mundo na minha ida-de. Com 16 anos, fazia isso e progredi na épocaem termos de emprego: eu era promovido todosos anos. Havia procura de força de trabalho, oque nós não temos nos últimos 10 anos, especial-mente de seis, sete anos para cá. Existia, efetiva-mente, uma concentração de renda, mas muitagente melhorou de vida, e não só a burguesia, aclasse média acabou sendo favorecida com isso,basta ver a situação das empresas automotivas.Afinal quem comprava os carros populares era aclasse média fundamentalmente, e os fogões, e asgeladeiras... E não só a classe média, é bom lem-brar. Vou tomar a figura do presidente da Repúbli-ca, que migrou em 1952, chegou a Santos, emplena grande seca do Nordeste de 1951 e 1952.Foi morar em São Paulo e de São Paulo foi paraSão Bernardo. Ele é um filho do milagre econômi-co. O Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardoé produto da grande expansão, primeiro jusceli-nista, e depois da ditadura militar, quer dizer,aquela classe operária, que nasceu na época, éproduto da expansão econômica da ditadura mili-tar. E essa classe operária é a que vai iniciar o pro-cesso de destruição da ditadura com o chamadoNovo Sindicalismo, que nasce em 1986 – 1987.

IHU On-Line – O que terminou com o regi-

me? Quais foram os principais fatores que

ajudaram na abertura ?

Marco Antônio Villa – O regime se esgotou, por-que não era possível manter um regime fechado,uma ditadura, por tanto tempo como houve noBrasil. Existiu um esgotamento na sociedade e umesgotamento econômico também daquele mode-lo e inevitavelmente iria chegar o momento emque deveria haver uma transição. A grande ques-tão era como seria feita esta transição, porque aditadura militar, evidentemente, queria uma tran-sição sob controle e foi isso que o general ErnestoGeisel começou a fazer, desde quando tomouposse em março de 1974, ou seja, o que ele cha-mou de transição “lenta, segura e gradual”, isto é,fazer uma transição para um regime civil, mas sobo controle dos militares. Só que a nossa transição,ao contrário da de Portugal, com a queda do sala-zarismo, ao contrário da Espanha, com a quedado franquismo, foi uma transição longuíssima. Po-demos dizer que ela começou no governo Geisel esó terminou em 1985, com a eleição de TancredoNeves. Portanto, nós tivemos um longo período,quase uma década, deste processo de transição.Isso acabou criando um seríssimo problema parao período posterior, porque não foi feito um traba-lho de limpeza do autoritarismo, ao contrário doque foi feito em Portugal rapidamente a partir de25 de abril; ao contrário do que foi feito na Espa-nha de uma forma pactuada. No caso brasileiro,um processo muito lento. O que ocorreu foi que aredemocratização acabou trazendo, no seu inte-rior, muito do antigo regime militar, não só nospolíticos, pois muitos são herdeiros do regime mi-litar, como também na própria forma de fazer po-lítica e num processo de estruturação do estadodemocrático.

IHU On-Line – Como influenciou o golpe

brasileiro nos golpes militares nos restan-

tes países da América Latina?

Marco Antônio Villa – É bom lembrar que hou-ve golpes antes. Na década de 1960 mesmo, exis-tiram outros golpes que antecederam o do Brasil.Eu não considero inevitável a ditadura nos anos1960. Isso é naturalismo. É bom lembrar que, em1962, o Haya de la Torre deu um golpe no Peru enão tomou posse. Em 1962, houve eleições naArgentina e houve também uma intervenção mili-

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tar que voltou em 1966, com o Tenente GeneralOnganía. Portanto, o Brasil está no meio dessa si-tuação. Não é que a ditadura fosse inevitável. Émuito possível que houvesse uma saída democrá-tica para as crises brasileiras. Bastava os atores po-líticos e a elite terem encontrado uma saída, e mui-tos não quiseram. Evidentemente, pela sua impor-tância na América do Sul, um golpe militar noBrasil acabou tendo influência nos países vizi-nhos, mas cada país também tinha o seu movi-mento interno, as suas contradições internas. Nadécada 1960, a guerra fria estava muito intensa, ea América Latina estava sendo visada, especial-mente a partir do momento em que Cuba se de-clarou um estado socialista. Ao mesmo tempo, háa presença norte-americana na América do Sul,há também a presença da esquerda. Evidente-mente, os grupos subguerrilheiros na América doSul se formaram com a participação cubana.Vamos lembrar o caso da Venezuela, do DouglasBravo, vamos passar pelo Peru, pela Argentina,pela ação do Che Guevara na Bolívia, pelo apoiode Cuba aos grupos guerrilheiros no Brasil e,como eu disse anteriormente, inclusive antes de1964, o apoio às Ligas Camponesas, que foi umescândalo, em 1962. Logo, esta questão da inevi-tabilidade da ditadura, que alguns autores defen-dem, me parece um equívoco.

IHU On-Line – Mas, o senhor opina que o

País estava sendo mal governado?

Marco Antonio Villa – O que posso dizer é queo governo João Goulart foi um verdadeiro caos,que era incapaz, inconseqüente e quem está di-zendo não sou eu, é Leonel Brizola. Na época,Brizola dizia que Jango adorava ter poder, masnão gostava de governar, e lembremos que Leo-nel Brizola, apesar de ser cunhado de João Gou-lart, rompeu com ele em março de 1964. Bastaver os gabinetes parlamentaristas, a confusão queo Jango fez e como, a todo o momento, ele insi-nuava que daria um golpe de estado. A tentativaque ele ia fazer em 1964 já tinha sido ensaiadaduas vezes: em 1962, quando coagiu o CongressoNacional ao antecipar o plebiscito com o apoiomilitar, inclusive e, em outubro de 1963, quandoele decretou o estado de sítio. Ele criou condições

e deu o golpe de estado que acabou não ocorren-do por uma série de trapalhadas. Mas houve umatentativa de dar todos os poderes ao Presidente,mesmo contra resistências da direita e da esquer-da. Brizola foi contra o estado de sítio, o PCB foicontra, a UNE foi contra, o governador Arraes foicontra, porque todo mundo percebeu que elequeria dar um golpe de estado, ele queria realizarintervenção no então estado da Guanabara, quenão existe mais hoje, que é o Rio de Janeiro, e de-por o governador Carlos Lacerda, que era um di-reitista muito conhecido; queria fazer uma inter-venção em São Paulo e depor o governadorAdhemar de Barros, que era um direitista tambémmuito conhecido; queria realizar a intervenção emPernambuco e depor o governador Miguel Arraes,tanto é que ele se posicionou criticamente contraJoão Goulart naquela conjuntura. Portanto, nósnão tivemos uma unidade da esquerda em 1964.No comício do dia 13 de março, ficou bem claroisso. Uma coisa foi o projeto do Arraes, outra foi oprojeto do Brizola, outra, ainda, o do Jango. Issopara falar só sobre os oradores que se pronuncia-ram naquele comício.

IHU On-Line – Que instituições mais clara-

mente resistiram ao golpe?

Marco Antônio Villa – Na madrugada do dia 1ºde abril, quando o senador Auro de Moura Andra-de, presidente do Senado, considerou vaga a Pre-sidência, o que era um verdadeiro golpe, porque opresidente estava em território nacional, o País es-tava dividido. Basta ver que, no dia 2 de abril,ocorreu, no Rio de Janeiro, a chamada Marcha daVitória, e houve milhares de pessoas na rua, e nin-guém pode dizer que era a burguesia e a classemédia. Não é verdade. Havia muita gente dopovo lá. O País estava dividido, a inflação tinha su-bido, havia escassez de diversos gêneros alimentí-cios, a gasolina tinha subido... Foi um momentode muita tensão. O País estava dividido e pareciaingovernável. As instituições estavam divididas.Por exemplo, parte da Igreja Católica comungavacom o golpe, outra não. O cardeal de São Paulo,Dom Carmelo Vasconcelos, foi contra o golpe, evários religiosos se posicionaram contra o golpenaquele momento. Alguns partidos, como, por

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exemplo, o PSD, acabaram apoiando o golpe,porque elegeram o ditador Castelo Branco, emabril, inclusive com votos de Juscelino e UlissesGuimarães, como Presidente do Brasil. Castelodeveria só cumprir o mandato de João Goulart,que iria até janeiro de 1966. O quadro, então, erao seguinte: a UDN e os outros partidos da direitaestavam a favor do golpe; o PTB estava meio divi-dido, parte dele, por incrível que pareça, porquehavia uma ala fisiológica, apoiando o golpe. Deoutro lado, estavam, é claro, os estudantes que fo-ram atingidos, a sede da UNE, incendiada no Riode Janeiro, o presidente, que era o José Serra, foipara o exílio; os intelectuais perseguidos por causade uma série de formas de censura. Mas a piorcensura veio a partir de 13 de dezembro de 1968,quando começaram as perseguições intelectuais.Os intelectuais eram ameaçados. Por exemplo,Carlos Heitor Cony, porque escreveu um artigo

no Correio da Manhã, chamado a Revolução dosCaranguejos, foi ameaçado de morte, precisou seesconder. Em suma, toda uma perseguição em re-lação à intelectualidade, aos artistas... A peçaRoda Viva estava sendo encenada, e os atores fo-ram presos, seqüestrados. Em resumo, toda umabarbárie, entre 1964 e 1968 até chegar o AI5. Issoem relação às artes. Professores universitários, to-dos muito inteligentes, foram expulsos, exilados.O que todos, até o Jango, achávamos é que seriauma intervenção de curto prazo e acabou se reve-lando extremamente danosa na história do Brasil,de 21 anos, e com efeitos muito perversos para ofuturo do País. Daí a responsabilidade que eu im-puto aos atores políticos de 1964: não terem com-preendido a gravidade daquela conjuntura, teremimaginado que era um golpe como outros que oBrasil já sofrera e que tudo se resolveria rapida-mente. Infelizmente não foi assim...

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O golpe do ponto de vista dos militares

Entrevista com Celso Castro

Celso Castro, doutor em Antropologia Socialpela UFRJ, pesquisador no Centro de Pesquisa eDocumentação de História Contemporânea doBrasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas, é es-pecialista na questão militar brasileira. É responsá-vel por um amplo projeto para resgatar a “memó-ria militar”, de onde já saíram volumes como Vi-

sões do golpe (1994), Os anos de chumbo

(1994) e A volta aos quartéis (1995). CelsoCastro também é professor no Departamento deSociologia e Política da PUC-Rio e editor da revis-ta Estudos Históricos e dos informativos eletrô-nicos de Ciências Sociais, História e Arquivologia.Autor de livros, como O Espírito Militar: um

Estudo de Antropologia Social na Academia

Militar de Agulhas Negras. Jorge Zahar, 1990;Os Militares e a República: um Estudo sobre

Cultura e Ação Política Jorge Zahar, 1995; A

Proclamação da República. Jorge Zahar,1999; e organizador, com Maria Celina D’Araujo,de Ernesto Geisel. Rio de Janeiro: Editora FGV,1997, entre outros. O pesquisador conversou comIHU On-Line, antes da sua apresentação na AulaInaugural do Programa de Pós-graduação em His-tória da Unisinos, no dia 30 de março de 2004,ocasião em que abordou o tema Visões do gol-

pe: os militares e a memória de 1964.

IHU On-Line – Quais os aspectos fundamen-

tais que o senhor vai desenvolver em sua

palestra?

Celso Castro – Hoje vou tratar principalmentesobre a memória militar, sobre o período e as difi-culdades de se construir uma memória militar so-bre esse período. Apesar de os próprios militaresterem acabado com o golpe e permanecido du-

rante 21 anos no exercício do poder, a questão daconstrução da memória sempre foi complicadapara eles. Não só para eles. Mesmo hoje, apesarde o golpe ter tido apoio de setores expressivos,esses não gostam nem de lembrar que apoiaram ogolpe nem a ditadura. Então, pretendo exploraresses dilemas presentes na construção dessa re-presentação que os militares fazem sobre sua ex-periência no poder.

IHU On-Line – Seria um olhar o golpe do

ponto de vista dos militares?

Celso Castro – Sim, e, a partir disso, discutir ou-tros impasses mais gerais para se pensar o perío-do. A minha experiência desse tempo é com en-trevistas a militares. Quando começamos a pes-quisa, esperávamos ter a visão militar sobre esses21 anos de exercício do poder, mas, como resulta-do, vimos que é complicado falar da memória mi-litar. Têm-se algumas memórias militares confli-tantes e concorrentes em boa medida. Emborahaja alguns pontos de consenso, existem pontosde conflito e dissenso muito fortes também. Isso sedá porque eram de diferentes grupos, mesmo osque apoiaram o regime, mas que divergiam muitoentre si, em relação à profundidade, ao ritmo, àspessoas que ocuparam posições, à orientação.Aparecem diferenças bastante significativas, bri-gas e disputas entre grupos militares.

IHU On-Line – Mas existe, em alguns milita-

res, uma verdadeira consciência das conse-

qüências negativas que o regime trouxe

para o País?

Celso Castro – Aí se divide. Boa parte acha quefoi positivo, que só se exploram as coisas negati-vas, mas que foi necessário. Do ponto de vista bio-

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gráfico, todos têm a percepção clara de que virouum estigma o fato de terem sido militares que apoia-ram e participaram do regime militar. Em relaçãoà imagem deles entre os civis, eles têm a percep-ção de que saiu muito abalada desse período. Àsvezes, eles respondem ao revanchismo ou à mídiaainda dominada por pessoas que foram derrota-das politicamente em 1964, ou depois, e lembramsempre que tiveram apoio popular significativoem 1964. Isso é verdade, eles tiveram mesmo mui-tos setores apoiando o golpe, mas depois esseapoio foi sendo perdido em boa parte durante os21 anos do exercício de poder. Eles mostram-semuito ressentidos com os civis, e, ao mesmo tem-po que a lembrança esmorece, não gostam de re-cordar a atuação na repressão. Tortura é tabu,eles falam em “excesso”.

IHU On-Line – Os militares entrevistados ti-

veram ligação direta com a tortura?

Celso Castro – Não todos. Alguns tiveram atua-ção importante, criando órgãos de informaçãodurante o regime militar, como o Centro de Infor-mações do Exército, o Centro de Informações daAeronáutica, nos quais tiveram posições impor-tantes. Nem todos necessariamente participaramde tortura física. Esse é um assunto muito delicadode eles falarem por razões óbvias.

IHU On-Line – Em que elementos está basea-

da a memória que eles reconstroem hoje?

Celso Castro – Não sei dar uma resposta única.Eles têm a idéia de que venceram a guerra contraas organizações de esquerda revolucionárias,mas perderam a batalha pela memória do perío-do. Essa percepção é muito clara para eles. Nãohá dúvida disso. Hoje, há 40 anos do golpe, não

se vê nenhum evento comemorando, festejando ogolpe. Os próprios militares da ativa mal queremlembrar disso. O Clube Militar no Rio de Janeiro,formado pelo pessoal da reserva mais antigo, vaifazer uma sessão com umas 30 pessoas. Eles têmessa percepção de que, realmente, foram derrota-dos e o foram, de fato, na memória sobre operíodo.

IHU On-Line – Qual é a percepção da socie-

dade civil em relação ao governo militar?

No ano passado, o Chile lembrou os 30

anos do golpe militar com uma divisão mui-

to forte da sociedade civil. A visão brasilei-

ra é mais unânime?

Celso Castro – Acho que sim, de repúdio, de crí-tica. Uma imagem negativa da atuação políticados militares nesse período. No caso do Brasil, ti-vemos, mais em termos quantitativos, uma exten-são da repressão menor quando comparada aocaso chileno e ao caso argentino. No Brasil, tive-mos 300 desaparecidos. No Chile e na Argentina,foram ao largo de milhares e milhares. O Chiletem um terço de direita, um terço de esquerda eum terço de centro. No Chile, é bem mais fácil al-guém falar a favor do Pinochet ou defender. Aquino Brasil, não se vê ninguém defendendo. AArgentina está ligada às Malvinas, onde o regimeentrou em colapso, e tudo ficou mais fácil em ter-mos de punição, de verdade, de justiça. No Brasil,existe uma transição longa, que durou dez anos, eas coisas vão se ajeitando aos poucos. Ao contrá-rio da do Chile, a ditadura não foi tão personaliza-da. Nunca tivemos uma figura como o Pinochet.Existiram generais que se revezaram numa dinâ-mica diferente.

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A “segurança da cela” e o risco da liberdade

Entrevista com Vera Stringuini

Vera Stringuini é médica, especialista em psi-quiatria pela UFRGS. Atualmente, além de traba-lhar em consultório, é coordenadora da SaúdeMental, na Secretaria da Saúde do Estado. O ar-tista Leandro Selister criou um memorial históricosob o título Consciência, com fotos do período doregime militar. No fôlder do evento HumanitasArte, foi utilizada uma foto da Vera no momentoem que estava sendo fichada pelo governo militarpara uma prisão que duraria quatro anos. IHU

On-Line conversou com Vera Stringuini sobre es-ses anos de prisão e as lições que ela pode dar 40anos depois do golpe militar.

IHU On-Line – O que diria às novas gera-

ções 40 anos depois do Golpe Militar?

Vera Stringuini – Muitas vezes, eu ouço de pes-soas, inclusive de jovens: “Era melhor em tempode ditadura, não tinha tanto assalto, tanta insegu-rança, não havia riscos”. Essa diferenciação entreestar seguro e ser livre, esse conflito entre liberda-de e segurança é uma coisa que me parece impor-tantíssima discutir com as pessoas na contempo-raneidade. Eu nunca estive tão segura em todaminha vida quanto no tempo em que estive nacela, ninguém ia me assaltar lá, esse é o preço daditadura. A liberdade tem riscos. Ela entra naconstrução, lenta, verdadeira, genuína da cultura,porque só podemos aspirar a uma condição de li-berdade que não seja na barbárie, se tivermosconstruído uma cultura, por isso há que construira cultura. Hoje muitas pessoas pensam que a re-pressão é a solução para as drogas, que a políciaresolve tudo, que deve haver tortura. Por isso valea pena falar do passado, na realidade estamos fa-lando do presente. A prisão dá segurança, e a li-berdade tem seus riscos.

IHU On-Line – Qual era a situação vivida

naquele dia de junho de 1970, em que foi ti-

rada a foto de fichamento da prisão, que foi

divulgada no fôlder do evento Humanitas

Arte?

Vera Stringuini – Eu tinha 23 anos, e aquelafoto foi tirada em Recife, imediatamente depois deminha prisão. Eu fui presa lá. Eu sou gaúcha, eraestudante de medicina, e como estava integrandoo movimento estudantil, movimento que come-çou, a partir de 1968, a ser alvo de muita repres-são, era procurada pela polícia. Muitas pessoas domovimento estudantil faziam parte de partidos or-ganizados. No caso, eu participava de um movi-mento de implantação bolchevique trotskista daIV Internacional. Nós estávamos bem organizadosnacional e internacionalmente. Havia um grupoaqui, no Rio Grande do Sul, outro grupo em SãoPaulo e estávamos tentando nos organizar noNordeste: tínhamos um grupo em Recife e um emFortaleza. Eu tinha viajado para a Bolívia, na ten-tativa de fazer contato com remanescentes de gru-pos trotskistas. Voltei ao Nordeste em 1970, pas-sei um mês em Fortaleza, depois fui a Recife, sen-do presa no dia seguinte depois da minha chega-da. Já havia um trabalho policial de observaçãodos militantes de Recife. Isso foi em abril, mas afoto de minha prisão oficial data de 11 de junhode 1970. De abril a junho, praticamente eu nãoexistia oficialmente. Essa forma de agir fazia partedo interrogatório. O interrogatório era feito à reve-lia dos marcos oficiais, porque podia acontecer amorte da pessoa durante esse percurso. Depois depassado o interrogatório, a pessoa era apresenta-da oficialmente e eram feitas essas fotos, entran-do, assim, no sistema de informações como presa.De março a junho, eu era levada a casas alugadas

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pelo Dops, depois de feita a ficha e apresentadana delegacia militar. A partir daí, os maus tratoseram reduzidos e melhorava a situação do preso.

IHU On-Line – O tempo anterior ao ficha-

mento era por excelência o tempo da tortura?

Vera Stringuini – Os militares tentavam obter asconfissões de todas as maneiras. O nosso grupo,na verdade, não foi muito torturado. Em primeirolugar, porque caiu inteiro e quiçá porque não tí-nhamos envolvimento com as forças armadas. Asnossas opções eram mais políticas de participaçãoem assembléias movimentos de base, sindicatos,movimentos acadêmicos, etc. O que acontecia eraa crueldade gratuita que se distribuía por sermossimples opositores do governo, o que criava umaraiva, mas diferente da raiva dos grandes tortura-dos que eu presenciei. Pessoas escandalosamentemachucadas.

IHU On-Line – O que acontecia depois do

fichamento?

Vera Stringuini – Depois do fichamento, come-çou o processo, fui para o julgamento e depoispara a Colônia Penal das Irmãs do Bom Pastor,em Recife. Lá o regime era muito diferente. Tantoas freiras de lá quanto Dom Helder Câmara se-guiam outras normas. Havia também ONGs depadres americanos que cuidavam de presos políti-cos. Ali não éramos atingidos pela polícia. Todosnos deram muito apoio. A Igreja Católica teve fi-guras singulares, como Dom Helder Câmara,Dom Evaristo Arns, e outros que tiveram uma ex-traordinária função. Eles salvaram inúmeras vidasde pessoas. Na medida do possível, não apenasdenunciavam a tortura, davam também uma as-sistência de todo tipo e de toda hora, inclusive fi-nanceira, farmacológica, familiar, promoviam acomunicação com a família, forneciam livros,quebra-cabeças, brinquedos. A Igreja Católica foiuma das poucas instituições que ousou desafiar oregime. Tanto que lá em Recife mataram padres

que trabalhavam com Dom Helder9, claro, nãopodiam matar Dom Helder, porque seria um es-cândalo internacional.

IHU On-Line – Quais foram os cargos impu-

tados no julgamento?

Vera Stringuini – Condenada a quatro anos porparticipação em partidos clandestinos, ações sub-versivas e tentativas de derrubar o regime. Tudoisso era crime durante a ditadura.

IHU On-Line – O que aconteceu depois de

sair de Recife?

Vera Stringuini – Fiquei dois anos em Recifecom todos esses cuidados. Depois vim para PortoAlegre e aqui as condições do presídio eram com-pletamente diferentes. Também estava sob o cui-dado de freiras, mas elas não tomavam conheci-mento. As orientações de Dom Helder eram bemdiferentes das de Dom Vicente Scherer, arcebispode Porto Alegre. Estive um ano em uma cela soli-tária. As condições eram degradantes, desuma-nas, eram celas de castigo. Celas permanente-mente fechadas, a luz sempre acesa (nós tínhamosque escolher se era sempre desligada ou sempreacesa, preferimos a segunda para poder ler, masera um sofrimento). Não tínhamos água nemonde fazer as necessidades fora àqueles horáriosestipulados. Éramos quatro, cada uma fechadanuma cela por um ano. Abriam meia hora por diae nós corríamos para pegar sol, tomar banho, la-var as coisas. Tínhamos direito a visita só de pai emãe. Eu tinha um filho que uma vez por mês dei-xavam entrar. Depois, com muito esforço, conse-guimos que a luz fosse desligada de noite, não es-távamos mais tolerando. Eu não sei se essas celasainda existem, vale a pena conferir. Eram no Ma-dre Peletier, embaixo do pátio, em Porto Alegre.

IHU On-Line – Quais eram os mecanismos

de sobrevivência usados em condições tão

desumanas?

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9 Um dos padres que foi assassinado pela repressão foi Antônio Henrique Pereira Neto, aos 29 anos. Ele era assistente do grupode Recife da Juventude Estudantil Católica (JEC). O prof. Dr. Hilário Dick, pesquisador do IHU, escreveu, com MarinalvaAngélica da Silva, um livro sobre a vida dele, sob o título O mártir da juventude – Padre Antônio Henrique Pereira

Neto. (São Paulo: Paulinas, 1985).

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Vera Stringuini – Gritávamos nas celas para fa-lar com as outras e líamos. Hoje em dia, as pessoasse admiram com minha cultura literária, e eu sei oque ela custou. Li obras clássicas de todo o tipo,vida de santos que as freiras tinham, outros livrosque nos forneciam os centros acadêmicos com osquais entrávamos em contato por meio de nossafamília. Sempre tem suporte social, é interessantecomo a gente não fica completamente abandona-da nunca. Algo que me preocupa muito é quehoje continua havendo presos. Eles têm as mes-mas necessidades de apoio que nós tínhamos esão principalmente pessoas pobres. A ditaduraterminou, mas há presos que vivem nas mesmassituações em que nós vivíamos.

IHU On-Line – Como foi a liberdade?

Vera Stringuini – O impacto da liberdade, con-versando com outros amigos que passaram maisanos que eu presos, mas que tiveram a mesma ex-periência, é muito grande. Ao sair, sempre se ti-

nha medo de ser capturado por grupos paramilita-res de extermínio. Quando saíamos, chamávamosa família e bastante gente para sair com um gran-de grupo e não ser morto. Depois vem esse impac-to da liberdade. Três anos de ausência: a cidade édiferente, as roupas mudaram, as gírias mudaram.Era a sensação de que ia enlouquecer com o baru-lho. Fiquei muito tempo com muito medo degrandes encontros, tomei gosto por estar sozinha.É que na cela me acostumei, tinha dois caminhos,ou me adaptava, ou enlouquecia.

O último ano da pena foi em liberdade con-dicional, porque existia a possibilidade de as co-missões de carreiras das faculdades impedirem ouautorizarem a volta de um preso a seu curso, se es-tivesse em liberdade condicional. A comissão decarreira da Faculdade de Medicina aceitou minhavolta apesar de a ditadura ter aquele poder imen-so sobre a sociedade, e continuei os estudos deMedicina. Existiam pequenos movimentos, empa-tias, acolhidas... Havia frestas através das quais asociedade respirava...

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“O golpe dividiu a Igreja e a sociedade”

Entrevista com José Oscar Beozzo

José Oscar Beozzo é padre, teólogo e historia-dor, um dos maiores historiadores da Igreja naAmérica Latina. É coordenador-geral do CentroEcumênico de Serviços à Evangelização e Educa-ção Popular (Cesep). Faz parte do Centro de Estu-dos de História da Igreja na América Latina(CEHILA-Brasil). É filiado à Comissão de Estudosde História da Igreja na América Latina e no Cari-be (CEHILA). É autor de diversos livros, dentre osquais A Igreja do Brasil: de João XXIII a João

Paulo II, de Medellín a Santo Domingo. Pe-trópolis: Vozes, 1993.

IHU On-Line – Qual foi a reação da Igreja no

golpe militar de 1º de abril de 1964?

José Oscar Beozzo – A sociedade brasileira es-tava profundamente dividida naquele momento,e a Igreja também. Alguns setores importantes daIgreja apoiavam as reformas do governo Goulart,mas havia outros que não o faziam. Oficialmente,a CNBB apoiava a reforma agrária, a reforma ad-ministrativa, a reforma educacional, um leque dereformas. Em 1962, houve uma declaração im-portante da CNBB nesse sentido, outra em 1963,quando havia muita controvérsia no País. A maiordelas era em relação ao pagamento das terras de-sapropriadas: se o Estado podia ou não pagar emtítulos, porque a direita pressionava para que ogoverno pagasse em dinheiro. Não havia proble-ma que o Estado pagasse em títulos, mas a direita

nunca aceitou10. Nos dias que precederam o gol-pe, aconteceu uma reunião em São Paulo entreD. Carlos Carmelo Motta, cardeal de São Paulo,Dom Helder Câmara, respectivamente presidentee secretário da CNBB, e o Presidente Jango, por-que a situação estava indo para o abismo. Inclusi-ve foi o Presidente que pediu a reunião. Eles im-puseram uma condição: não haver fotos. Termi-nada a reunião, o Presidente pediu permissãopara tirar uma foto para o seu arquivo pessoal. Nodia seguinte, a foto do Presidente, com o cardealde São Paulo, Dom Carlos Carmelo de Vasconce-los Motta, e com Dom Helder, saiu estampada naprimeira página dos jornais. Ela foi usada politica-mente. Do outro lado, havia a campanha do pa-dre Peyton, norte-americano do terço em família edas Marchas com Deus pela família11, contra o co-munismo, que mobilizou 500 mil pessoas em SãoPaulo e outro tanto no Rio de Janeiro, em marçode 1964. Bispos da extrema direita, como DomGeraldo Proença Sigaud, arcebispo de Diamanti-na, MG, diziam que o Estado não tinha direito defazer a reforma agrária, de dividir a terra e assimpor diante e que os fazendeiros tinham direito dedefender sua propriedade de armas na mão, con-tra desapropriações pelo Estado. Havia um pano-rama complexo com a Ação Católica, sobretudo aJuventude Universitária Católica (JUC), tomandouma posição bastante à esquerda e, de maneiraainda mais radical, a Ação Popular (AP), que tinha

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10 A idéia que padre Beozzo pretende passar é de que a Igreja aceitava que o pagamento das terras para desapropriação fossefeito mediante o pagamento de títulos. Era a proposta do governo Goulart. A direita queria que o pagamento fosse feito emdinheiro. Isso inviabilizava a reforma agrária. Em 1965, por ironia da história, o Estatuto da Terra, promulgado pela ditaduramilitar, admitiu o pagamento em títulos, e não em dinheiro. (Nota do IHU On-Line).

11 Trata-se da campanha da reza do terço em família, cujo lema era “família que reza unida permanece unida”, que mobilizou asmarchas contra o comunismo. (Nota do IHU On-Line)

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saído da JUC, e se instituído como partido políticocristão de esquerda. Havia assim, um leque im-portante de bispos, apoiando as reformas e já umnúcleo bem à direita que pregava, inclusive, umaresistência armada a qualquer reforma, sobretudoà reforma agrária. Quando aconteceu o golpe, aIgreja ficou um pouco paralisada. Como estava di-vidida internamente, não se pronunciou, nem nodia 31 de março, nem no dia seguinte, nem na se-mana seguinte. Só quatro semanas depois, houveuma reunião do Conselho Permanente da CNBB,que era formado pelos arcebispos, pelos cardeaise pela direção da CNBB, somando umas 28 pes-soas. Eles discutiram, durante três dias, sobre osdois rascunhos de declarações e não chegaram aum acordo. Um rascunho havia sido redigido porDom Sigaud, que era o arcebispo de Diamantina,dizendo que agradecia a Deus pela intervençãodos militares, que haviam salvo o País do comu-nismo. O outro foi redigido por Dom Helder Câ-mara e denunciava as prisões arbitrárias, a torturae que estavam perseguindo os militantes da Igreja,prendendo-os injustificadamente. Como nãohouve um acordo, foram justapostas as duas pro-postas, uma abrindo o texto, e a outra fazendo oseu fecho. Esta foi a declaração da CNBB quesaiu na imprensa. A primeira parte correspondeao texto do Dom Sigaud, em que agradece aosmilitares pela intervenção; a segunda parte aotexto de Dom Helder, que reafirma o compromis-so da Igreja com as reformas de base, com a op-ção pelos pobres e que denuncia as arbitrarieda-des. Os 28 assinaram embaixo, uns por causa daprimeira parte, e outros por causa da segunda. Ogolpe dividiu a Igreja tão profundamente quenão houve mais um pronunciamento político daCNBB até 1977, porque a divisão interna perma-neceu. A direita da Igreja foi perdendo terrenopor causa do Ato Institucional n.º 5 de 1968 e daposterior repressão que atingiu setores importan-tes da Igreja, não poupando nem mesmo bispos,arcebispos e a própria CNBB. Em julho de 1968, aassembléia da CNBB devia fazer um pronuncia-mento sobre a situação nacional e não o fez. De-morou os 10 anos seguintes para conseguir reali-zá-lo. Somente em 1977, chegou-se a um consen-so que foi traduzido no documento As exigências

cristãs para uma ordem política. A CNBB levou,assim, depois da declaração de abril de 1964, 13anos para poder redigir um documento que ex-pressasse um novo consenso geral sobre o estadode direito, afirmando que não poderia haver dita-dura, que os direitos da pessoa humana são origi-nários, precedem o próprio Estado e dele não de-pendem, a não ser para sua regulamentação. OEstado não tem direito de violar os direitos da pes-soa ou suprimi-los, sob qualquer pretexto, poissão direitos invioláveis anteriores ao Estado. A or-dem democrática é apresentada como uma exi-gência cristã, mas foram precisos 13 laboriososanos para se costurar este novo consenso. As po-sições tomadas pela CNBB durante a ditadura mi-litar foram muito firmes, mas sempre em âmbitoregional, demonstrando a dificuldade em se che-gar a um consenso geral. Os bispos do Nordeste,muito cedo, em 1967, fizeram um documento dedenúncia, chamado Desenvolvimento sem justiça,preparado com base no levantamento realizadopelos núcleos da Juventude Operária Católica(JOC) do Nordeste. Depois veio o documentoOuvi os clamores do meu povo, de Dom Helder eum grupo de bispos e superiores religiosos provin-ciais do Nordeste. Os bispos do Centro-oeste redi-giram um documento sobre o modelo econômicoe sobre a questão da terra. Os bispos do estado deSão Paulo elaboraram o famoso documento deBrodósqui, Testemunho de Paz, denunciando astorturas e exigindo a paz. Mas são sempre declara-ções regionais. O primeiro grande consenso sobreuma declaração doutrinal, na esfera da política,assumido por toda a CNBB é de 1977 e foi intitula-do As exigências cristãs de uma ordem política12.

IHU On-Line – Em toda essa situação, como

se moviam as diferentes congregações reli-

giosas? Também havia uma divisão?

José Oscar Beozzo – A divisão dos grupos daIgreja foi interna. Havia religiosos que apoiavam ogoverno, inclusive denunciando colegas da mes-ma congregação. Em 1968, um grupo de bispos,em carta aberta ao Marechal Costa e Silva pediuque o governo interviesse na Igreja, porque haviabispos comunistas, e nem a CNBB, nem o Vaticanotomavam providências. Eram bispos pedindo aos

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militares para reprimirem os próprios bispos. DomGeraldo Sigaud e alguns bispos denunciaram ou-tros bispos da CNBB como comunistas. Isso já erao desespero. A extrema direita se isolou, mas nãose conseguia unir o restante da CNBB, dividida en-tre moderados e progressistas. Dom Helder lan-çou as Minorias Abraâmicas, um movimento maisradical, que também não levava os bispos a umconsenso. Eu estava presente na Assembléia daCNBB de 1968, acompanhando o bispo de Lins,Dom Pedro Paulo Koop. Numa noite, falou, aconvite do presidente da CNBB, Dom Agnelo Ros-si, o ministro do Planejamento de Costa e Silva,Hélio Beltrão. Falou apenas para os bispos quequisessem, porque não houve consenso para quefalasse para toda a CNBB. Nesse mesmo instante,Dom Helder estava reunido, no mesmo prédio,com o deputado Márcio Moreira Alves13 e com jo-vens que haviam estado presos, lançando o movi-mento das Minorias Abraâmicas. Tínhamos en-tão, Hélio Beltrão, tentando justificar o programade governo do Marechal Costa e Silva, dizendoque ele estava pondo em prática a PopulorumProgressio14 e, no mesmo prédio, Dom Helder eoutros bispos, junto com estudantes e liderançaspolíticas e religiosas leigas, fazendo a crítica radi-cal ao modelo de desenvolvimento adotado pelogoverno. Nessa mesma Assembléia, Dom Cândi-do Padim15 apresentou um documento, chaman-do o projeto da nova Lei de Segurança Nacionaldo Governo Costa e Silva de “nazi-fascista”, por-que tinha princípios totalitários. Esse documento,apresentado aos bispos por Dom Padim vazoupara a imprensa e criou uma grande confusãopolítica.

IHU On-Line – O senhor tem falado, algu-

mas vezes, sobre o padre Pedro Calderon

Beltrão, que nos é muito próximo, aqui em

São Leopoldo. Qual foi o papel dele durante

esses anos?

José Oscar Beozzo – O padre Beltrão era umsociólogo jesuíta brasileiro, especialista em demo-grafia e que dava aulas de Sociologia na PontifíciaUniversidade Gregoriana, em Roma. Lecionavatambém em São Leopoldo, na Unisinos16. Em ju-lho de 1961, houve o XI Conselho Nacional da Ju-ventude Universitária Católica (JUC), em Natal,no Rio Grande do Norte, e lá ele denunciou, numrelatório, outro padre jesuíta, Henrique C. deLima Vaz17, que era um dos assessores da JUC,um grande filósofo, dizendo que ele era hegelia-no, que era marxista e que a JUC tinha se tornadomarxista. Ele denunciou isso em Natal, onde, naépoca, Dom Eugênio Sales18 era o administradordiocesano, por causa da cegueira que acometerao bispo Dom Marcolino. Começou, então, o cal-vário da JUC, porque esse documento do padreBeltrão, denunciando o fundamento filosófico,que era dado por outro jesuíta, serviu de basepara muitas suspeitas e condenações de autorida-des eclesiásticas em relação à JUC, causando mui-tas divisões e sofrimentos.

IHU On-Line – Qual foi o papel dos Círculos

Operários?

José Oscar Beozzo – Os Círculos Operários sãoanteriores a 1964. Começaram no fim da décadade 1920, no Rio Grande do Sul e tiveram um pesomuito grande, porque, com a ditadura do EstadoNovo, em 1937, Vargas fechou os sindicatos e re-

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13 Márcio Moreira Alves era deputado federal. Ele se notabilizou pelo pronunciamento que fez na Câmara Federal, durante asemana da pátria, em 1968, contra o regime militar. Os militares pediram a sua cassação como deputado federal. A Câmaranegou o pedido. Isso deu a oportunidade para que os militares decretassem o Ato Institucional n.º 5, no dia 13 de dezembro de1968, dissolvendo o Congresso e suspendendo as garantias individuais, o habeas corpus e outras medidas jurídicas contra oarbítrio do poder. Márcio Moreira Alves, hoje, é jornalista e escreve no jornal O Globo. (Nota do IHU On-Line)

14 Populorum Progressio é a encíclica do papa Paulo VI, intitulada O Desenvolvimento dos Povos, lançada na páscoa de1967. Ela teve uma grande repercussão no mundo, especialmente, na América Latina. (Nota do IHU On-Line)

15 D. Cândido Padim, bispo de Bauru, SP, beneditino, profundo conhecedor do Direito Constitucional, foi um dos bispos quesempre contestou o regime militar. (Nota do IHU On-Line).

16 Padre Beltrão foi o fundador do antigo Centro de Documentação e Pesquisa (CEDOPE) da Unisinos. (Nota do IHU On-Line).17 Sobre o padre jesuíta e filósofo Henrique C. de Lima Vaz confira o IHU On-Line edições nº 19, de 27 de maio de 2002, e nº

59, de 12 de maio de 2003.18 D. Eugênio Sales é, hoje, cardeal arcebispo emérito do Rio de Janeiro. (Nota do IHU On-Line).

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passou muito dinheiro para os Círculos Operários.Estes pregavam estreita colaboração entre operá-rios e patrões, numa visão corporativa de coope-ração entre as classes e não de luta de classes.Logo, eles alcançaram o seu auge durante o Esta-do Novo, pois com o dinheiro do Estado, pude-ram construir uma ampla rede de círculos e au-mentar os serviços que prestavam aos trabalhado-res. A visão ideológica dos Círculos Operários etambém do Governo Vargas, na esfera trabalhis-ta, encontrava seu fundamento na Carta del Lavo-ro do regime fascista de Mussolini na Itália19. Mas,já com a redemocratização, em 1945, os CírculosOperários perderam sua relevância, pelo retornodos sindicatos e pelo deslocamento operado pelaIgreja na sua pastoral em relação com a classeoperária. O trabalho da Igreja com a classe operá-ria passou a ser realizado, prioritariamente, por in-termédio da Juventude Operária Católica (JOC),da Ação Católica Operária (ACO) e, posterior-mente, da Pastoral Operária (PO).

IHU On-Line – Há um olhar mais crítico e

unânime sobre os anos de repressão 40

anos depois, na Igreja?

José Oscar Beozzo – Esse olhar, como disse an-tes, foi alcançado em 1977, com um corajosodocumento votado por toda a Assembléia e queapoiava o esforço da sociedade civil pela redemo-cratização do País, condenando, sem nenhummeio termo, toda e qualquer violação dos direitosdas pessoas e um formato de Estado apoiado eminstrumentos de exceção e não no estado de direi-to. Esta tomada de posição sobre estes princípiosdemocráticos e de respeito aos direitos das pes-soas que deveriam reger a ordem política, que setornou consensual para a Igreja, aconteceu em1977, e não agora, 40 anos depois. Houve só umameia dúzia de bispos, dos quase 300, que forma-vam a assembléia que não assinou o documento.

Ter alcançado esse consenso deu muita força eautoridade à Igreja seja perante a sociedade civil,seja perante o Estado.

IHU On-Line – Com esse documento, a socie-

dade sentiu mais forte a posição da Igreja?

José Oscar Beozzo – A partir daí, a Igreja en-trou na Campanha pela Anistia dos presos políti-cos e pelo retorno dos exilados, na campanhapela redemocratização, pela liberdade de criaçãode partidos políticos e por eleições livres e diretaspara todos os cargos executivos e legislativos, semprefeitos, governadores, presidentes e senadoresnomeados pelo poder. Foi uma linha clara daCNBB.

IHU On-Line – Assinalaria a figura de Dom

Helder como uma das peças centrais na

luta contra a ditadura?

José Oscar Beozzo – Dom Helder saiu do nú-cleo central de poder da CNBB, em outubro de1964. Na ocasião, tomou posse uma nova presi-dência que era contra as suas idéias e opções.Assim, se tornou difícil qualquer declaração, por-que a cúpula da CNBB passou a apoiar o regimemilitar. O cardeal Agnelo Rossi20 era muito coni-vente com o regime e não acreditava que houves-se tortura. Dizia que isso era campanha orquestra-da do exterior contra o governo brasileiro; umeventual desvio de subalternos, mas não uma po-lítica de governo. Ele fora eleito presidente daCNBB em substituição ao Cardeal Carlos Carmelode Vasconcelos Motta. Dom José Gonçalves, queera mais um organizador e administrador, substi-tuiu Dom Helder. A nova cúpula varreu toda a an-tiga CNBB e apoiou o regime. Houve mudança sóquando Dom Aloysio Lorscheider21 assumiu a se-cretaria-geral da CNBB (1968-72), depois a Presi-dência (1972-74, 1974-78), e seu primo, Dom Ivo

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19 Sobre os círculos operários, confira a resenha do livro de Jessie Jane, Círculos Operários: a Igreja Católica e o mundo

do trabalho no Brasil, publicada na 44.ª edição de IHU On-Line, de 25 de novembro de 2002. (Nota do IHU On-Line)20 D. Agnelo Rossi, cardeal-arcebispo de S. Paulo, substituiu D. Carlos Carmelo Motta. Este último se opusera ao golpe militar e

foi transferido para o arcebispado de Aparecida do Norte. (Nota do IHU On-Line).21 D. Aloísio Lorscheider, franciscano, então era bispo de Santo Ângelo, RS. Depois foi arcebispo de Fortaleza, nomeado cardeal,

e depois foi arcebispo de Aparecida do Norte, SP. Hoje, aposentado, vive num convento em Porto Alegre, RS. Ele foi umafigura proeminente no episcopado brasileiro. (Nota do IHU On-Line).

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Lorscheiter22, chegou à Secretaria-Geral (1972-1978)e, em seguida, à Presidência (1979-82; 1983-86).

IHU On-Line – Como a Igreja de Roma acom-

panhou todo esse tempo?

José Oscar Beozzo – Estávamos saindo doConcílio Vaticano II, que foi uma reviravolta ecle-sial, com a Igreja passando a ser vista como “povode Deus” na Lúmen Gentium. Com a Gadium etSpes, o documento social do Concílio, que fala dapresença ativa da Igreja no mundo de hoje, abri-ram-se novas perspectivas para a aceitação domundo moderno, da ciência, da técnica23. Logodepois, veio a encíclica Populorum Progressio,que aborda a questão do desenvolvimento dospovos, da cisão crescente entre o norte e o sul, dei-xando de se fixar na oposição entre comunismo-liberalismo, entre ocidente e oriente. A divisão en-tre o Norte rico e o Sul empobrecido passou a servista como a contradição principal do mundo con-temporâneo. A realidade de países pobres, cadavez mais pobres, e de países ricos, cada vez maisricos, passou a ser o desafio central, e não mais aoposição ideológica entre comunismo e capitalis-mo. Nesse sentido, há um respaldo da Encíclica àposição militante da igreja latino-americana, rea-firmada na II Conferência Geral do EpiscopadoLatino-americano em Medellín, na Colômbia, em196824. Paulo VI sempre defendeu os bispos doBrasil que o regime queria tirar. O regime queria

afastar Dom Pedro Casaldáliga25, e Paulo VI omanteve firme, à frente da Prelazia de São Félixdo Araguaia. O regime militar sentiu-se muito des-confortável, quando Roma tirou o cardeal Rosside São Paulo, transferindo-o para Roma, por cau-sa da questão das torturas dos dominicanos26. OCardeal negara publicamente a prática de tortu-ras, mesmo diante do desespero de Frei Tito Alen-car O.P., que cortara os pulsos por não suportá-lase para denunciar a situação existente nos presídiospolíticos da ditadura. O papa Paulo VI estava apar do que estava acontecendo, porque o superiorgeral dos dominicanos e o Cardeal Alfrink27, queera membro da Pontifícia Comissão Justiça e Paz,do Vaticano, vieram visitar o Brasil, estiveram naprisão, puderam conversar com os dominicanos econstatar pessoalmente os maus tratos e torturas.Ambos denunciaram publicamente para o mundointeiro o que viram, enquanto o cardeal de SãoPaulo, Dom Agnelo desmentia as torturas. O car-delal Rossi foi transferido para Roma, ficando noseu lugar Dom Paulo Evaristo Arns, que cuidavajustamente dos presos políticos, do ponto de vistapastoral, visitando os presídios, até ser proibidopelos militares de fazê-lo28. Nesse período maisduro, Roma respaldou o episcopado e a Igreja doBrasil. A partir de 1977, 1978, começou a mudar.A repressão que vinha do Estado parou e veio re-pressão de Roma. Quando relaxou a pressão doEstado, Roma começou a fazer os ajustes de con-

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22 D. Ivo Lorscheiter, até recentemente, foi bispo de Santa Maria. Foi, por longos anos, secretário-geral e presidente da CNBB.Nestes cargos, sempre foi um firme opositor do regime militar. (Nota do IHU On-Line).

23 O Concílio Vaticano II começou no dia 11 de outubro de 1962 e terminou no dia 8 de dezembro de 1965. Gaudium et Spes,que significa As alegrias e as esperanças, é um dos documentos mais importantes deste Concílio. (Nota do IHU On-Line).

24 Em 1968, na esteira do Concílio Vaticano II e da encíclica Populorum Progressio, realizou-se, na cidade de Medellín,Colômbia, a II Assembléia Geral do Episcopado Latino-Americano que deu origem ao importante documento que passou a serchamado Documento de Medellín. Nele se expressa a clara opção pelos pobres da Igreja Latino-Americana. A conferência foiaberta pessoalmente pelo papa Paulo VI. Era a primeira vez que um papa visitava a América Latina. (Nota do IHU On-Line).

25 D. Pedro Casaldáliga, poeta e escritor de renome internacional, foi bispo prelado de São Félix, MT. Quando assumiu a prelaziade São Félix, em pleno regime militar, denunciou veementemente o latifúndio e defendeu a reforma agrária e o direitoindígena à terra. Foi duramente perseguido pelo regime militar. Pe. João Bosco Penido Burnier, jesuíta, foi assassinado ao ladodele, no dia 12 de outubro de 1976. (Nota do IHU On-Line).

26 Entre os muitos cristãos que foram presos e torturados no regime militar, foram destacados pela opinião pública os freisdominicanos Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, Ivo Lesbaupin, Tito Alencar, entre outros. Sobre isso podem serconsultados, entre outros, os livros de Frei Betto, Batismo de Sangue e e o de Jacob Gorender, O Combate nas Trevas.(Nota do IHU On-Line).

27 Cardeal Alfrink, arcebispo de Utrecht, na Holanda, foi uma das figuras mais importantes do Concílio Vaticano II e presidente daPax Christi Internacional. (Nota do IHU On-Line).

28 Confira a entrevista com o cardeal Paulo Evaristo Arns no boletim IHU On-Line n.º 95, de 5 de abril de 2004.

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tas, com a Igreja do Brasil, reprimindo bispos eteólogos, intervindo nos seminários, levantandosuspeitas acerca das Comunidades Eclesiais de

Base (CEBs), da teologia da libertação, das pasto-rais sociais, mas este já um outro capítulo de nossahistória e matéria para outra conversa.

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O Brasil no imaginário e nos porões da ditadura

Entrevista com Carlos Fico

Carlos Fico é mestre em História pela Univer-sidade Federal Fluminense e doutor em HistóriaSocial pela USP. Pesquisador do CNPq e “Cientis-ta do Nosso Estado” da Faperj, é também profes-sor no departamento de História da UFRJ e criadordo Centro Nacional de Referência Historiográfica(CNRH). Entre seus livros destacamos: A Histó-

ria no Brasil (1980-1989): elementos para

uma avaliação historiográfica. Ouro Preto:Editora UFOP, 1992 (co-autoria com Ronald Poli-to); A História no Brasil (1980-1989): séries

de dados. Ouro Preto: Editora UFOP, 1994(co-autoria com Ronald Polito); Reinventando o

otimismo: ditadura, propaganda e imaginá-

rio social no Brasil (1969-1977). Rio de Ja-neiro: FGV, 1997; O Regime militar. São Paulo:Saraiva, 1999; Como eles agiam. Os subterrâ-

neos da Ditadura Militar: espionagem e po-

lícia política. Rio de Janeiro: Record, 2001;Além do golpe. Rio de Janeiro: Record, 2004.

IHU On-Line – Sua tese de doutorado, que

depois foi publicada, levou o título Rein-

ventando o otimismo: ditadura, propaganda

e imaginário social no Brasil. O que caracte-

rizou o imaginário sobre o Brasil durante o

governo militar?

Carlos Fico – A propaganda da ditadura militarse fundamentou em longas tradições históricasque existem no Brasil em relação a uma visão oti-mista. Na sociedade brasileira, no que se refere aofuturo do País, persiste a velha utopia da grandio-sidade da natureza e também de um caráter nacio-nal que singularizaria o povo brasileiro, que seriapossuidor de diversas características positivas. Éuma tradição de otimismo muito antiga que vem

desde o século XVI e foi utilizada, com muito su-cesso, pela propaganda política da ditadura mili-tar. O que eu tentei fazer nessa tese foi correlacio-nar aquele ufanismo da propaganda política aessa tradição secular de otimismo que existe noBrasil. Esse imaginário da sociedade brasileira, fa-lando em termos naturalmente genéricos e simpli-ficados, se afiança numa série de convicções, decrenças quanto ao perfil do brasileiro, ao perfil doPaís, às características que singularizariam o Brasile seu povo, de modo que essa propaganda políti-ca, para ter sucesso, se assentou num material his-tórico pré-existente, que é este imaginário relativoao otimismo brasileiro: a crença de que o Brasil éum país fadado ao sucesso, é um “país do futuro”,um “Brasil potência”. Todas essas característicasque a gente julga terem sido inventadas pela dita-dura militar, foram, na verdade, reinventadas deum material histórico que já existia.

IHU On-Line – Uma espécie de estratégia

para desviar o olhar do que realmente esta-

va acontecendo nesses anos?

Carlos Fico – Claro. Toda propaganda políticatem esse propósito, especialmente em ditadurasou regimes autoritários em geral. Desviar a aten-ção da repressão, do autoritarismo, para uma su-posta via bem-sucedida de tranqüilidade, segu-rança, etc. Toda propaganda política tem esse pro-pósito. Também no Brasil foi assim. O que os mili-tares fizeram foi lançar mão desse material históri-co pré-existente para propagar a idéia de que nósestávamos caminhando rumo ao Brasil potência.

IHU On-Line – Esse imaginário foi ajudado

pelo momento inicial econômico que pare-

cia bastante promissor?

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Carlos Fico – Sim, a época foi muito propícia. Adivulgação dessa idéia, durante o chamado “mila-gre econômico”, de um lado, quando o Brasilcresceu num índice realmente surpreendente e, deoutro, por coincidências conjunturais, como aconquista da Copa do Mundo pelo Brasil. Isso foitambém utilizado pelos “assessores de relaçõespúblicas”, como eles se chamavam, para a elabo-ração daquela propaganda ufanista.

IHU On-Line – Esse imaginário continua

existindo nos tempos atuais?

Carlos Fico – Esse imaginário é bastante perene.Em alguns momentos, ele fica adormecido, mas,de tempos em tempos, em função de situaçõesconjunturais, ele reaparece. É o caso, por exem-plo, do lançamento do Plano Cruzado, depois dofim da ditadura, em 1986, pelo ex-presidente Sar-ney, quando esse tipo de imaginário social foi re-tomado, numa onda de otimismo muito grande,embora de curtíssima duração, porque o planologo fracassou. A crise econômica dos últimos 20anos tem feito com que essa crença otimista numBrasil grandioso, do futuro, etc., permaneça ador-mecida. Mas eu imagino que, se a gente tiver, um,dois, três anos de crescimento econômico semmaiores crises, qualquer governo que esteja nopoder vai lançar mão dessa utopia nacional dootimismo.

IHU On-Line – O senhor escreveu um livro

intitulado Como eles agiam. Os subterrâneos

da Ditadura Militar: espionagem e polícia

política. Como era a situação de espionagem

enquanto acontecia a propaganda ufanista?

Carlos Fico – Eu entendi que, para compreen-der a ditadura militar, havia que estudar o quechamo de pilares repressivos, ou instâncias re-pressivas da ditadura, ou seja, a propaganda polí-tica, por onde comecei, mas também a espiona-gem, a polícia política, a censura da imprensa, acensura de diversões públicas e uma instância queera chamada de Comissão Geral de Investigações(CGI), que fazia julgamentos sumários de pessoassupostamente corruptas. Em 1998, descobri oacervo de documentos secretos da Divisão de Se-gurança e Informações do Ministério da Justiça e

comecei a trabalhar com o tema da espionagem eda polícia política. E este livro, Como eles agiam,trata da espionagem e da polícia política. Mais re-centemente, eu trabalhei com o acervo da divisãode censura para tratar desse outro pilar da ditadu-ra, que são as censuras, censura da imprensa edas diversões públicas. Em 2004, lancei outro li-vro, também pela Record, um livro de avaliaçãodas teses que explicam o golpe. Ele se chamaAlém do golpe.

IHU On-Line – Há quem afirme que a dita-

dura no Brasil foi mais “branda” que em ou-

tros países da América Latina. O senhor,

que estudou esses porões da ditadura, con-

corda com essa afirmação?

Carlos Fico – Eu acho que é uma contabilidadeum pouco mórbida, quantos morreram, ondemorreu mais gente... O fato de a Argentina e de oChile terem ditaduras mais violentas, não descul-pa em nada a ditadura militar brasileira, que foiigualmente violenta, quando foi necessário, em-bora tenha causado um número menor de víti-mas. Na verdade, a repressão brasileira foi bemmais dirigida e, nesse sentido, mais eficaz, entreaspas, do que as demais ditaduras da América La-tina, que fizeram a repressão de maneira muitomais aleatória, talvez por conta do sistema de es-pionagem brasileiro que atuava já desde antes de1964 – o SNI foi criado em 1964, mas antes já ha-via atividades de espionagem, de modo que a re-pressão sabia exatamente a quem buscar. Achoque essa comparação é equivocada, porque, sehouvesse a necessidade de uma violência descon-trolada, abrangente, os militares brasileiros tam-bém a teriam feito.

IHU On-Line – O senhor se referiu a docu-

mentos que encontrou há poucos anos. Que

documentos são esses?

Carlos Fico – É o acervo documental da Divisãode Segurança e Informações (DSI) do Ministérioda Justiça. Em cada ministério civil, havia umaDSI. As DSIs eram repartições, subdivisões do SNI,nos ministérios civis. Em 1998, eu fiquei sabendoque o Arquivo Nacional estava de posse dessa do-cumentação. Então eu fiz um requerimento ao mi-

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nistro da Justiça, solicitando acesso aos documen-tos, o que me foi concedido depois de um longoprocesso. É o primeiro acervo de documentos se-cretos da ditadura pesquisado por um historiadorbrasileiro. Com base nesse acervo, eu fiz o Como

eles agiam e criei o Grupo de Estudos sobre a Di-tadura Militar, na UFRJ. Como é um acervo muitogrande, envolvi mestrandos e doutorandos traba-lhando com temas específicos.

IHU On-Line – A pesquisa histórica sobre a

ditadura estaria, então, em seus inícios?

Carlos Fico – Sem dúvida. Há muito estereóti-po sobre a ditadura militar. O senso comum temleituras muito equivocadas sobre o tema, porqueo trabalho do historiador sobre o tema da ditadu-ra, que vamos aos poucos realizando, é muito re-cente. O que houve foram avaliações da CiênciaPolítica e também memórias: uma grande me-morialística, que existe, sobretudo desde os anos1970, da direita e da esquerda. Mas o trabalhodo historiador, com base em acervos documentaisdiretamente emanados da ditadura militar, é mui-to recente.

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O Pasquim: resistência crítica e humor

Entrevista com José Luiz Braga

José Luiz Braga é coordenador do PPG emComunicação da Unisinos, doutor em Ciências daInformação e da Comunicação pela Universidadede Paris II, França. Sua tese de doutorado, que,posteriormente foi publicada, intitula-se O Pas-

quim e Os Anos 70. Brasília: UnB, 1991. Napesquisa, Braga fez, entre 1980 e 1984, um estu-do do jornal semanal O Pasquim, abrangendo asorigens do jornal, em 1969, até 1982, data em queO Pasquim começou uma nova fase. O pesquisa-dor é também autor de Comunicação & Educa-

ção – Questões delicadas na interface. SãoPaulo: Hacker, 2001 e organizador de Brasil –

Comunicação, Cultura e Política. Rio de Ja-neiro: Diadorim, 1994 e A Encenação dos

Sentidos – Mídia, Cultura e Política. Rio de

Janeiro: Diadorim, 1995.

IHU On-Line – Quais eram as condições so-

ciais, políticas e culturais que levaram à cri-

ação de O Pasquim?

José Luiz Braga – Ele não começou como con-testação ao regime militar. Começou numa pers-pectiva de sobrevivência dos jornalistas que o cri-aram. Em 1964, o governo cortou uma série decoisas que eram mais visivelmente populares,com perfil de esquerda, e que imediatamente setornariam contestadoras: movimentos estudantil esindical, jornais de esquerda e ações muito con-cretas que aconteciam no País, relacionadas à re-forma agrária, às experiências educacionais dePaulo Freire, etc. Com relação à imprensa, a açãofoi maior sobre a imprensa partidária e sindical emenos sobre a imprensa geral. O período entre1964 e 1968 ainda, para a imprensa, é muito rico,tanto que surgiu a revista Veja, que não é a Veja

que conhecemos hoje. Era uma revista extrema-mente renovadora. Apareceram a revista Reali-

dade e o Jornal da Tarde. Todas elas experiên-cias muito ricas de jornalismo, porque os jornalis-tas que saíram dos jornais fechados, foram paraesses espaços. No pré-1964, havia um perfil dejornalista crítico, analítico, contestador. Em 1968,surgiram novas complicações para a imprensa.Quando veio o “golpe dentro do golpe”, com oAI-5, começou uma pressão radical sobre as em-presas jornalísticas para frear o profissional do jor-nalismo crítico e politicamente ativo. O Pasquim

começou em julho de 1969. Um grupo que tinhaperdido espaços nos jornais, humoristas, dese-nhistas de humor, que faziam charge política, cria-ram O Pasquim como estratégia de sobrevivên-cia. A idéia deles era criar um jornal de humorpara abordar outros assuntos que não fosse políti-ca e se deslocaram para a crítica de costumes, acrítica cultural.

IHU On-Line – Mas, ainda sem querer, aca-

baram fazendo uma proposta que incomo-

dou os militares?

José Luiz Braga – Em um período bastante cur-to, eles descobriram que a crítica de costumes in-comodava o governo. O que não foi pensadopara criticá-lo acabou incomodando-o e é fácil en-tender por quê. A política conservadora dos mili-tares era coerente com uma política conservadorados costumes tirados dos velhos baús de família,valores extremamente tradicionais, como a posi-ção da mulher na sociedade, etc. Diante disso,uma crítica de costumes numa perspectiva sarcás-tica, que criticava exatamente esses valores, foisentida pelo regime militar como crítica política.Os jornalistas do Pasquim pensavam estar traba-

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lhando numa área de baixo risco e, de repente,todo o mundo é preso, depois da lei da censuraprévia, sem nem saber por quê. Só nesse momen-to, perceberam que aquilo que faziam tinha umsentido político.

IHU On-Line – Como o jornal continuou, es-

tando eles presos?

José Luiz Braga – Eles ficaram presos uns 20 ou30 dias. O único que não foi preso, porque apenaspublicava os cartoons, foi Millor Fernandes. Ele eo Henfil fizeram os quatro números do jornal.Esses números são muito interessantes, porqueeles não podiam sequer noticiar que os outros es-tavam presos. Pensaram em fechar o jornal, masresolveram assumir e eles dois publicaram chargesao estilo dos outros, como se fossem Ziraldo, Ja-guar, etc. Como se O Pasquim estivesse sendoredigido normalmente, mas era evidente a dife-rença. Uma forma óbvia de dizer que os outrosnão estavam. Nessa época, publicavam muitascartas de leitores. Alguns leitores reclamavam,não entendiam e escreviam: “O Pasquim estáuma droga, mudou. O que está acontecendo?”.Por esse fato, muitas pessoas entenderam que ha-via um espaço cultural rico em O Pasquim, quefazia sentido como contestação, a contestaçãopossível da época. E começaram a aparecer mili-tantes culturais de diversas áreas, intelectuais, ar-tistas, produtores culturais, etc., pois perceberamque era um espaço a ser defendido e nele podiamdar sua contribuição. Começou, então, a ser umjornal humorístico e de crítica social, cheio de en-trelinhas, de insinuações. No início, os censoresnão percebiam certas obviedades. Por exemplo,eles mudavam a cada semana o lema do jornal.Um deles, que passou pela censura prévia, dizia“tesoura sim, alicate não”. Uma crítica contra atortura, ou seja, “a censura a gente agüenta, mas atortura, não”. Claro que muita gente não enten-dia, era preciso ter uma percepção do contexto.

IHU On-Line – O público que compreendia

a mensagem do jornal era muito reduzido?

José Luiz Braga – Roberto Schwartz, em um es-tudo dos anos 1970, diz que a esquerda brasileiraera, na época, um grupo de 50 mil pessoas, urba-

nas, especialmente de São Paulo, e acho que essenúmero era otimista. Mas claro que não eram sóeles os leitores de O Pasquim, o jornal chegou ater uma tiragem de 120 mil exemplares, que, paraa época, era absolutamente extraordinário.

IHU On-Line – Qual era a diferença dos ou-

tros jornais alternativos da época?

José Luiz Braga – A diferença estava, porexemplo, nas linhas editoriais. Nos jornais alter-nativos, geralmente, o editorial era decidido se-mana a semana em assembléia, mas sempre fica-vam vozes que calavam, já que ganhava a maio-ria. O Pasquim era diferente. O camarada tinhauma coluna e escrevia o que ele queria, o quepossibilitava, inclusive, debate entre colunas. Naverdade, era um jornal de colunas, sendo algu-mas de desenho. Eram espaços de decisão indi-vidual do autor. Freqüentemente, brigavam “aovivo” no jornal. Jaguar publicava uma charge, nonúmero seguinte o Ivan Lessa fazia uma críticadaquilo, na outra alguém tomava uma terceiraposição e, acompanhando uma série de jornais,fica evidente essa polêmica, acontecendo ao vivono jornal. Isso o mantinha muito rico, muito vivoe muito plural.

IHU On-Line – Que outras formas eles usa-

vam para passar pela censura?

José Luiz Braga – Para sair um jornal, eles pro-duziam três, o que tinha um efeito de cansaço so-bre o censor, que sempre deixava passar algumacoisa. No começo, quem fazia a censura era umamulher com uma certa formação jornalística. Elesdescobriram que ela gostava de beber, então aconvidavam para ir ao jornal, ficavam batendopapo e bebendo, depois entregavam a edição dasemana para ela, e a censura era mínima. Logo,os militares desconfiaram o que estava acontecen-do e a substituíram por um general. O jornal foi re-colhido das bancas várias vezes, teve quatro a cin-co apreensões. Passando pela censura prévia, iapara as bancas. Nesse meio tempo, os militaresdescobriam alguma coisa de que não gostavam eapreendiam o jornal. E o jornal não podia dizerque tinha sido apreendido, porque a imprensanão podia dizer que havia censura. Mas eles sem-

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pre encontravam uma forma de dizê-lo. Uma de-las foi a escolha do lema: “O Pasquim: um jornalmuito apreensivo”, fazendo um jogo de palavrascom estar apreendido. E a censura não percebia.

IHU On-Line – Mas nunca foi fechado como

foi o caso de jornais políticos e sindicais?

José Luiz Braga – Octavio Ianni tem um estudomuito interessante sobre a imagem que o governomilitar criava para fora e para dentro. O regimemilitar tinha uma postura para si próprio que eraconsiderar-se democrático. Os militares semprerecusaram a idéia de que fosse uma ditadura.Tanto que eles cumpriram uma série de formali-dades democráticas para manter uma imagem,até para eles mesmos. Claro que as fronteiras dademocracia se encolheram: os generais sempreforam eleitos. Os presidentes nunca foram direta-mente designados, foram eleitos pelos própriosgenerais. Para eles isso era democracia: ninguémtomou o poder, foi eleito. Sempre assumiram essaauto-imagem. Até aos Atos Institucionais eles qui-seram dar o status de decisões constitucionais.Houve sempre essa preocupação. Por exemplo,Petrônio Portella disse, como porta-voz do Geisel:“O Presidente não tem como saber o que aconte-ce nos porões do poder”, referindo-se à tortura.Os jornais alternativos tiveram seu espaço, mas,em nenhum momento, houve a decisão de proi-bi-los. No momento em que fechassem o jornal,escancarava a idéia de ditadura.

IHU On-Line – Como e quando acabou a

censura?

José Luiz Braga – O Pasquim parou de ter cen-sura prévia, no n.º 300, em 1975. Os membros dojornal receberam um telegrama dos censores, di-zendo que não precisavam mais passar pela cen-sura e que “a partir deste momento, a responsabi-lidade é de vocês”. O número 300 foi o primeirosem censura, o Millôr Fernandes era o presidentedo jornal. Eles tiraram da gaveta uma porção decoisas bem radicais de crítica. Millôr fez um edito-rial, sobre essa frase do telegrama. Ele disse expli-citamente que o jornal não estava mais sob censu-ra prévia e disse que o General que assinou o tele-

grama se enganou: “a responsabilidade semprefoi nossa e sempre caiu nas nossas costas, porquenós que fomos presos, tivemos números apreendi-dos, matérias cortadas, etc.”. O número 300 foiapreendido. O primeiro número sem censura foiapreendido. No número 301, os integrantes dojornal recuaram, porque eles não teriam como so-breviver se todos os jornais fossem apreendidos.No n.º 301, Millôr disse explicitamente que seriammais cautelosos. Ainda outros números, mesmona transição lenta e gradual, no governo Figueire-do, foram apreendidos. Por exemplo, quando ogoverno Figueiredo completou um ano, a capa deO Pasquim trazia um bolo e uma moça saindodo bolo, só que o rosto era o do presidente Figuei-redo, em volta os integrantes de O Pasquim, ba-tendo palmas e uma legenda dizendo: “um ani-nho só” (um ano de seu governo) “e já com umcorpinho de 16” (os anos anteriores do regime). Eobviamente foi apreendido de novo.

IHU On-Line – Em que momento O Pasquim

começa a abandonar essas características

tão marcantes?

José Luiz Braga – O jornal vai com essa plurali-dade até a anistia. Com a anistia, O Pasquim deuênfase aos retornados. Eu chamo esse período de“o jornal dos retornados”. Todo o mundo passoua escrever no jornal e, ao mesmo tempo, as vozesliberais também se fizeram presentes. Com a anis-tia, há um relaxamento dos controles, e a situaçãoé outra. É o esforço de recuperação da democra-cia e obviamente os aliados mais evidentes são asvozes liberais que não são contestação de esquer-da, mas esforço de retomada do padrão democrá-tico anterior, sem uma preocupação pela implan-tação de um regime socialista. Amplia-se mais oleque de pluralidade, e as vozes liberais entramnesse leque. Isso já é no período dos anos 1980.Começa a haver eleições nos Estados e se elegem,em 1982, governos de oposição aos militares. Omomento é outro. Para O Pasquim é um períodode fechamento, vai se tornando mais estadual(RJ), não nacional. Um grande conflito internosão as opções que os jornalistas fazem entre as vá-rias candidaturas, e quem apóia Brizola e o PDT,

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que vence as eleições no Rio de Janeiro, é o Ja-guar. Depois das eleições, muitas pessoas saemdo jornal, e ele perde a pluralidade.

IHU On-Line – Parece um paradoxo tanta

pluralidade em tempos de repressão e, em

tempos de abertura, a pluralidade diminui?

José Luiz Braga – O jornal se politiza mais a par-tir dos retornados e perde o que o caracterizava efazia sua pluralidade. Ao mesmo tempo, os inte-lectuais, artistas, etc., que tinham espaço no jor-nal, começam a encontrar espaços em outras áreas.Perde pluralidade também por causa disso. E O

Pasquim, hoje, é outra coisa, decorre diretamen-te do contexto em que foi desenvolvido. Muitosdos que estão agora, estavam nos inícios. Eles fa-zem humor com as posições que já tinham naépoca, mas o jornal não é só a substância, é a rela-ção com o contexto. A lógica de O Pasquim é opercurso que constrói nesse contexto específico.O Pasquim, lido nas suas entrelinhas, é muito re-presentativo da história da década de 1970, inclu-sive da década anterior, de enorme riqueza cultu-ral, artística, acadêmica... É um dos lugares deonde se pode olhar o golpe com uma panorâmicamuito grande.

IHU On-Line – Como vê o jornalismo alter-

nativo hoje?

José Luiz Braga – A imprensa alternativa de1960-1970 se tornou uma riqueza extraordinária.Não só porque tinha uma postura de crítica políti-ca, predominantemente socialista, mas tambémporque, na prática, eles realizaram uma outra críti-ca que, infelizmente, não se tornou tão explícita: acrítica aos processos jornalísticos. A grande im-prensa se desenvolveu nesse período. O regimeajudou a modernizar as empresas jornalísticas,como a Globo, tanto a TV como seus jornais, quese modernizou, como empresa jornalística, capita-lista, com suas qualidades específicas. O que a im-prensa alternativa fez foi uma experimentação dejornalismo “outro”, alternativo. Não só por ter ou-tra posição política, mas também por outra posi-ção de fazer jornal. E isso para mim foi riquíssimo.A abertura significou praticamente o desapareci-mento da pequena imprensa, porque não ficousuficientemente claro que eles não eram simples-mente crítica política ao regime, mas sim queeram crítica ao processo jornalístico. Só que essacrítica não era refletida, escrita, era simplesmentecrítica ao modo de ser outra coisa. Houve a expe-riência, mas não a reflexão, porque se pensava apolítica, mas não se pensava a própria experiênciade vida de imprensa alternativa.

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Berlinda na lua cheia. João Carlos Haas

e a guerrilha do Araguaia

Entrevista com Sônia Haas

Última dos sete irmãos da família Haas, Sô-nia Maria, publicitária, ex-professora das Ciênciasda Comunicação da Unisinos e ex-diretora de Co-municação Social e Marketing da Universidade,dedicou muitos anos de sua vida a uma busca queparece estar próxima do fim. Sônia tinha seteanos, quando seu irmão João Carlos Haas Sobri-nho saiu de casa e foi para São Paulo. Em 1964,João Carlos formou-se em Medicina pela UFRGSe, aos 24 anos, continuou os estudos, fazendouma especialização no Hospital de Clínicas.

Em 1980, Sônia tomou a iniciativa de buscaros restos mortais de seu irmão. Ele teria sido mor-to na guerrilha do Araguaia, região localizada noatual estado de Tocantins, onde o Partido Comu-nista do Brasil (PCdoB) organizou um foco guerri-lheiro, nos anos 1970. É o que ela vem fazendodesde então, ajudada pela Comissão de Familia-res de Mortos e Desaparecidos, pelo movimento“Tortura Nunca Mais” e pelo Movimento Nacionalde Direitos Humanos, organizações apoiadas pelaAnistia Internacional e pela Comissão Nacional deJustiça e Paz, vinculada à CNBB. Os restos mortaisdos guerrilheiros continuam desaparecidos. Em1996, uma das ossadas foi encontrada, sendo preli-minarmente apontada como pertencente a JoãoCarlos Haas. Sônia relata toda essa história em en-trevista ao IHU On-Line por telefone, falando deCacha Pregos, um vilarejo de pescadores, na Ilha deItaparica, na Bahia, lugar onde reside atualmente.

IHU On-Line – Já foi confirmada a informa-

ção de que o corpo encontrado em 1996 é

realmente o de João Carlos Haas Sobrinho?

Sônia Haas – Não. Trouxemos uma ossada em1996, levamos para Brasília e lá ela ficou todos es-ses anos, sendo submetida a exames, mas não ha-via tecnologia, não havia um método... Era difícilde fazer. Faz três meses que o secretário nacionalde Direitos Humanos, Nilmário Miranda, levou osrestos mortais para a Argentina, para peritos deantropologia forense mais equipados e experien-tes. Lá estão tentando fazer a identificação, pormeio de um exame feito com os sangues da minhamãe, retirado quando estava viva, meu e da mi-nha irmã. Hoje me pediram que obtivesse o san-gue do meu irmão mais velho, porque eles não es-tão conseguindo fazer a amostragem, que é muitodifícil, pois a ossada está muito contaminada combactérias. Então eles querem tentar com um ho-mem. Talvez, nessa semana, eu consiga enviaresse sangue para a Argentina. Será a última tenta-tiva. Se eles não conseguirem identificar, vou terque me reunir com eles e ver se vamos fazer com aperícia de antropologia forense propriamente dita,considerando a medida de ossos, o histórico... Eletinha um tiro na perna, essa ossada tem um tiro naperna bem na altura que ele também tinha. Há co-incidências. Se a opinião do antropólogo argentino,Luis Fondebrider, o mesmo que reconheceu a ossa-da do Che Guevara, for que podemos reconheceressa ossada, mesmo sem DNA, aí vamos aprovar. Éalgo subjetivo. Logo vamos resolver essa questão, seDeus quiser.

IHU On-Line – Qual era a percepção que a

família tinha do que estava acontecendo a

partir de 1964?

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Sônia Haas – Nós morávamos em São Leopol-do, que não era um foco político de esquerda. OJoão Carlos estudava em Porto Alegre, na Facul-dade de Medicina. Ele já era presidente do CentroAcadêmico, ele já tinha sido vice-presidente daFederação dos Estudantes. São Leopoldo não ti-nha esse clima. Nós não vivemos essa tensãopré-golpe. Se vivemos, foi muito de longe. Meupai foi sapateiro, depois virou empresário, mas foium homem muito humilde, discreto. Minha mãetambém. Nós não tínhamos envolvimento políti-co. Só quando João Carlos foi preso em 1964, an-tes de se formar, meus pais se deram conta de queele estava envolvido numa coisa muito séria. Elenão tinha falado nada em casa. Minha irmã estavacursando Filosofia na UFRGS e ali soube que ele ti-nha sido preso e trouxe a notícia para a família.Na época, não estava ligado ao PCdoB. Foi presoporque era presidente do Centro Acadêmico.Mais tarde ele deve ter se filiado ao PCdoB e foiembora sem dizer para meus pais que seguiriaessa opção política. As cartas não falavam. Meupai começou a procurar depois de 1968, e já ima-ginou que, se ele estava envolvido em política es-tudantil, seguira esse caminho. Mas nunca se ti-nha certeza do paradeiro dele. E assim foram mui-tos anos até sabermos, pela imprensa, em 1979,que tinha falecido e que tinha participado da guer-rilha do Araguaia. Mas já tinham se passado seteanos de sua morte.

IHU On-Line – Na época, São Leopoldo não

tinha muitas fontes de informação da reali-

dade do País?

Sônia Haas – Nesse tempo, não existia Internet,as linhas telefônicas eram caríssimas, não tínha-mos o Trensurb [empresa operadora do metrô desuperfície que liga Porto Alegre à região metropo-litana] para Porto Alegre, que era “a capital”. Aí jáse corta a metade das informações que hoje setem. Os jornais de grande circulação no País nãochegavam ao interior. Mesmo em Porto Alegre,para conseguir uma Folha de S. Paulo, um Esta-dão, O Globo, era uma dificuldade. Além disso, oExército, já na pressão pós-golpe, começou atrancar as distribuições dos jornais. Começou a fa-zer censura, a fazer controle da mídia. As rádios

não podiam falar nada, televisão nem se fala...Era só bobagem. Não sabíamos o que estavaacontecendo no País. Isso foi por muitos anos, atéo final de 1979. Pessoas como nós, que vivíamosem São Leopoldo, que tínhamos acesso limitadoàs informações, que não conhecíamos militantesde partidos políticos, não conhecíamos ninguémdo PCdoB, ficávamos isoladas. Não tínhamoscomo conversar com essas pessoas, elas se escon-diam, tinham medo. Era um cenário em que se ig-norava o que estava acontecendo ali na esquina.As pessoas poderiam estar morrendo, sendo tortu-radas na delegacia da cidade, e ninguém sabia.Isso aconteceu conosco. Meu pai procurou meu ir-mão pelo Uruguai, porque achou que ele estivessecom Brizola, procurou-o pela Argentina, até maislonge, em vários países, porque algumas pessoasdiziam saber onde ele estava por algum dinheiro,especulavam... Nada teve sucesso. Fomos nosaquietando com aquela dor, aquela angústia...Existia um silêncio lá em casa em relação a esseassunto, porque era uma dor tão grande e sem ex-plicação, que estávamos esperando o que ia acon-tecer. Pensávamos que um dia iríamos encon-trá-lo vivo. Eu tinha sempre esse sonho. Quandoficamos sabendo, ele já tinha falecido há seteanos... Foi uma falta de dignidade, de justiça, dogoverno, o modo como comunicou à família. Po-deria, pelo menos, ter dito: “Matamos essas pes-soas, porque estavam fazendo um movimentocontra o nosso governo”. Isso qualquer lei interna-cional de guerra determina, que haja divulgaçãodos mortos. O Brasil não cumpriu isso, até hoje es-tamos esperando essa localização de corpos.

IHU On-Line – Pelos depoimentos dos cole-

gas, João Carlos exerceu uma liderança for-

te tanto no movimento estudantil quanto na

guerrilha do Araguaia?

Sônia Haas – Existia uma efervescência de pes-soas pensantes, de líderes, de pessoas inteligentes,que queriam um país melhor. Ninguém tem quejulgar se eles estavam certos ou errados. Mas hou-ve uma pressão política enorme, o Exército seapavorou e quis tomar conta do poder, derrubouo Jango e veio para cima com toda a violência efoi matando e prendendo... As pessoas tiveram

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que sair do País e ficou um vazio no Brasil, de mui-tos anos. Hoje é difícil encontrar um líder. Temoso Lula, que foi meio forjado. Também nos sindi-catos eles cortaram as lideranças. O GenoínoNeto, hoje presidente do PT, era da guerrilha doAraguaia. Era um militante fraquíssimo da guerri-lha. Era uma pessoa de pouca importância, comtodo respeito que tenho por ele. Era um menino,foi preso logo no início, uma pessoa que não tinharelevância política como os demais. Ele hoje é opresidente do partido que governa o País. Imagi-na quantas outras pessoas maravilhosas não ha-veria. Quem conhece história sabe o quanto fo-ram procuradas essas pessoas. Esse pessoal daguerrilha que foi para o Araguaia sumiu mesmo,pois era um lugar totalmente inacessível. Haviaum desespero para saber onde eles estavam, oque eles estavam aprontando.

IHU On-Line – João Carlos esteve na China,

antes de ir para Araguaia, mas vocês acha-

vam que ele ainda estava em São Paulo?

Sônia Haas – Exato. Foi em 1967. Nós não sa-bíamos. Ficamos sabendo depois, quando oPCdoB começou a divulgar que eles tinham ido,em 1979. Ficamos sabendo de tudo em 1979 e1980. Ele estava aqui pertinho. Eu jamais imagi-nava que o João Carlos estaria no Brasil, porqueeu não tinha também idéia do quão grande era oBrasil... A gente vivia num lugar pequeno, comtodo o controle de informação. Dentro das esco-las, houve uma repressão intensa. Tudo isso euvivi, estudei na década de1970, que foi “a pesa-da”. Por exemplo, eu tinha um professor de socio-logia, marido da professora da Unisinos Lia Ber-gamo Becker, o Vitor, que foi perseguido, porquenos falava sobre política, sobre América Latina,sobre situações de pobreza. Era tudo muitocontrolado.

IHU On-Line – Você lembra bem, em 1979,

do momento em que ficaram sabendo da no-

tícia da morte de seu irmão pelos jornais?

Sônia Haas – Lembro, sim. Foi muito difícil. Agente custou para entender o que tinha aconteci-do. Meus irmãos, que moravam em Porto Alegre,começaram a buscar pessoas conhecidas, em

quem confiavam, porque ainda era um períodoperigoso, do PMDB na época, que era o partidooficial de esquerda, para saber o que havia acon-tecido, e elas foram confirmando que tinha havidouma guerrilha no Araguaia, e tinha sido o PartidoComunista do Brasil. Em 1980, o PCdoB fez umcongresso na Bahia. Uma prima minha, que eramuito amiga do João Carlos, veio. Ela conversoucom as pessoas do partido, pegou um diário daguerrilha, mostrou fotos para elas. Elas tambémmostraram fotos. Foi uma troca de informaçõesMas a gente sempre tinha aquela dúvida: Será queele morreu mesmo? Será que eles não mandaramessa gente para um outro país? Será que não fica-ram morrendo de fome no meio do mato e fica-ram loucos? Minha irmã mais velha, que era mui-to ligada ao João Carlos, até hoje, eu percebo,tem essas questões presentes. A vontade de ter apessoa viva faz pensar nisso.

IHU On-Line – A partir do momento em que

vocês ficaram sabendo da morte de João

Carlos, a família se centrou nessa busca?

Sônia Haas – A partir desse momento, as coisasficaram complicadas, com maior silêncio ainda.Esse assunto não era conversado. Era uma coisaabsurda, muda dentro de casa. Eu já estava na fa-culdade, na Unisinos, tinha professores de esquer-da maravilhosos, como o André Forster e outrosque passaram por aí. Comecei a procurá-los e ame articular e tomei a frente. No início, houve re-sistência dos meus pais. Eles não queriam que eufosse atrás da história, achavam perigoso. Aindaera realmente perigoso. A abertura mesmo come-çou em 1980, 1981. Mas enfrentei, inclusive, en-frentei meu pai. Depois ele entendeu, me deu umaprocuração para eu poder fazer as tramitações bu-rocráticas, senão eu não podia fazer nada. A partirde 1980, eu assumi o assunto. Já estou há 24 anosnessa história, mais da metade da minha vida.

IHU On-Line – De certa forma, seu conheci-

mento de João Carlos completou-se muito

mais com os depoimentos das pessoas ao

longo destes anos de busca?

Sônia Haas – É exatamente isso. Minha busca épor isso. Para montar esse quebra-cabeça que foi

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a vida dele, reconhecê-lo nas outras pessoas, nashistórias. É muito importante resgatar a pessoa acada encontro novo. Nunca vamos saber tudo. Éimpossível... mas o importante é essa caminhada.É muito bonito, de repente, sem querer, estar nomeio de uma outra história, alguém ver o sobre-nome, me procurar para dizer que foi colega ouque foi professor de meu irmão. Existem históriasmuito bonitas. Isso acalmou um pouco meu cora-ção. Era uma forma de encontrá-lo. Muito maiscom o pessoal da região do Araguaia. Eu estivetrês vezes lá, com aquelas pessoas que o adora-vam. Lá está cheio de crianças com o nome dele,afilhados dele. Ele ensinava inglês para os campo-neses e um pouco de português também. Ele com-prava livros para o pessoal ler. Essas coisas são domeu irmão. Eu gosto de escutar histórias que res-gatam a identidade dele. Isso também vai fortifi-cando a idéia de que ele foi feliz. Pelo menos a mi-nha percepção é essa. Ele foi feliz com a escolhadele. Infelizmente, ele foi embora muito cedo, masele escolheu o caminho no qual acreditava e se rea-lizou. Ele gostou muito da região. Era uma pessoamuito alegre, jogava futebol com o pessoal, brin-cava... Eles contam histórias muito bonitas. Nãosó eles, mas também os militantes do PCdoB. Foiuma trajetória belíssima de vida, pena que curta,mas isso também é incontrolável. Eu acho que elesabia disso também. Ele resolveu doar a vida dele.Quando ele foi preso em 1964, ficou cerca de 15dias. Eu cheguei a ir visitá-lo, não pude entrar,mas fiquei dentro do carro. Minha mãe entrou, le-vou maçã e não lembro mais o quê. Quando elevoltou para casa, minha mãe trancou-o dentro doquarto dela e fechou a porta. O lugar de confissão,na minha casa, era o quarto da minha mãe. Eladisse: “João Carlos, por favor, pára de fazer políti-ca estudantil, sai desse grêmio estudantil, faz a tuamedicina que tu gosta tanto, tu sempre sonhouem ser médico, a gente vai te ajudar”. Meu pai ti-nha o sonho de fazer um hospital para pessoas po-bres em São Leopoldo. E ela continuou: “O paivai fazer esse hospital, tu vai trabalhar lá, vai te re-alizar”. Ele não conseguiu. Ele se atirou na camachorando e disse: “Mãe, não me pede isso. Eu nãoposso. Eu quero fazer mais, eu tenho que ajudarmais pessoas”. Ele até apela e diz: “Tu é tão católi-

ca e acredita tanto, e tem fé em Jesus Cristo, entãotu tem que me entender, porque meu pensamentoé parecido com o dele”. A minha mãe teve quedesistir. O que ela iria dizer? Em uma entrevista,ela falou para o jornalista que, a partir daí, come-çou a rezar para que ele se desse bem. Claro queela não imaginava que a história dele iria ser tãomarcante. Ela sempre teve muito orgulho dele. Eutambém tenho e acho que toda a nossa famíliatem, independente de qualquer posicionamentopolítico. O que vale da pessoa é a coragem de as-sumir um ideal em que ela acredita, ser fiel a seusvalores. Ele foi assim. Foi o que ele aprendeu den-tro da minha casa.

IHU On-Line – Como você se sente em estar

aparentemente tão próxima de tê-lo encon-

trado?

Sônia Haas – Nem sei dizer. Eu queria ter certezaque é ele. Isso para mim é fundamental. Se eu nãotiver essa certeza, eu não sei como vou reagir. Seeu tiver a certeza, vai ser um alívio, vai ser umponto final numa história que a gente vem bus-cando há muito tempo, poder oferecer para eleuma sepultura digna, um sepultamento com ahonra de um cidadão. A minha mãe sempre quisisso. Ela era muito católica e queria sempre trazerpara São Leopoldo seja lá o que fosse do filhodela. Ela achava que a pessoa ficar jogada emqualquer lugar do Brasil não era certo. Ele tinhafamília, tinha o lugar onde nasceu. Nisso eu con-cordei com ela e por isso busquei-o muito, semprepor causa da minha mãe, que era uma pessoa fan-tástica. Eu sinto como se tivesse cumprido umamissão. Estou cansada disso, sinceramente.Estressou-me durante esses anos todos, porque eunão me dediquei profissionalmente a isso. Há pes-soas que só viveram disso. Eu sempre estudei, tra-balhei, e esse fato foi uma coisa paralela na minhavida. É difícil coordenar. Em certos momentos émuito forte, mas tenho que levantar a cabeça e irde novo. Há momentos em que dá vontade de de-sistir, momentos de frustração, o que é normal.Poder levar o João Carlos para São Leopoldo serápara mim uma realização. Um sentimento de paz.O mais importante é essa paz que quero ter aindano meu coração. A madrinha dele, que é minha

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tia, ainda está viva e mora em São Leopoldo. Seique ela ainda sofre muito e meus irmãos todostambém. Vai ser bom para a nossa família.

IHU On-Line – Todas estas experiências es-

tão ficando registradas em um livro?

Sônia Haas – Sim. Eu quero ver se termino atéjunho, porque ainda falta muita coisa. A jornalistaAna Flor, que trabalhava conosco, na Unisinos,está me ajudando, fazendo entrevistas com váriaspessoas. Eu estou redigindo o texto e vamos vercomo vamos editar o livro. Vai ser algo bem mes-clado. O título do livro eu já escolhi. Será uma ho-menagem à juventude da região do Araguaia, emvirtude de uma brincadeira que meu irmão faziacom os jovens de lá, que se chama “berlinda nalua cheia”. No dia da lua cheia, eles faziam umaberlinda, que era uma ciranda com vários jogos àluz da lua. Vinham adultos, crianças, velhos...Eram várias brincadeiras, joguinhos, aquelas coi-sas de interior. Uma das vezes que eu fui lá umadas moças, que conheceu o João Carlos, me con-tou e me mostrou o lugar na beira do rio onde elesfaziam a “berlinda na lua cheia”. Tem muita coisaa ver com a proposta dele de andar pelo Brasil, fa-zer um jogo, uma berlinda, conhecer outros mun-dos, apostar nas coisas, de conhecer pessoas, detrocar. A minha vivência nessa história também éum jogo, é um vai-e-vem, são várias situações queforam acontecendo e montando a minha história

em cima da dele. No livro, eu explico um poucodo porquê desse título, meio romântico, como eusou, ainda.

IHU On-Line – O fato de você estar morando

em Cacha Pregos, um vilarejo de pescado-

res, na Ilha de Itaparica, num cenário tão

simples, pode ter a ver com uma influência

de João Carlos na sua vida?

Sônia Haas – Provavelmente. Depois nos damosconta de que vamos fazendo as coisas. Na verda-de, eu fui conhecer o interior do Brasil, buscandopor ele. Fui para o norte e conheci um mundoque, no Rio Grande do Sul, não se conhece. Fuipara o Pará, fui para Goiás, para Tocantins. Eume encantei com o povo brasileiro e quis conhe-cer mais. Eu não conheço a Europa e não conhe-ço os Estados Unidos. Eu conheço o Brasil, Cuba,Chile, Argentina, Uruguai. Sempre me interesseimais pelo que é nosso. Isso me marcou. Eu sem-pre procurei ler coisas que falassem do povo brasi-leiro, já que meu irmão, afinal, deu a vida por ele.Então, eu sempre quis entender melhor isso. Aca-bei vindo para um lugar que tem essa característi-ca e me sinto bem. Recuperei-me muito aqui domeu estresse. É bom para a cabeça e é uma expe-riência fascinante. Para quem já viveu num lugarcomo a Unisinos, por exemplo, poder vir para cá ese desprender das amarras daquelas exigências,daquelas regras... É bom. É inegável que tem a in-fluência do meu irmão nisso.

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Principais diferenças nos modelos econômicos:

governo militar, FHC e Lula

Entrevista com Wilson Cano

Wilson Cano bacharelou-se em CiênciasEconômicas pela Pontifícia Universidade Católicade São Paulo, realizou o doutorado em CiênciasEconômicas pelo Instituto de Filosofia e CiênciasHumanas/Unicamp. Na Unicamp, prestou concur-sos para livre-docente, professor adjunto e profes-sor titular. Foi diretor do Instituto de Filosofia eCiências Humanas no período de 1976 a 1980. Éprofessor no Departamento de Política e HistóriaEconômica do Instituto de Economia da Unicamp.Cano estuda os problemas do Brasil e da AméricaLatina há mais de 30 anos. Trabalha para identifi-car as razões que levam ao subdesenvolvimento.Seus livros mais recentes são: Introdução à

Economia. São Paulo: Editora UNESP, 2001;Soberania y Política Económica en América

Latina, 2001; e Ensaios sobre a formação

econômica regional do Brasil. Campinas: Edi-tora Unicamp, 2002.

IHU On-Line – Qual é o significado de fazer

memória dos 40 anos do golpe de estado,

acontecido em 1º de abril de 1964?

Wilson Cano – Sempre é bom relembrar ummomento crítico pelo qual o povo pode ter passa-do, uma revolução, uma catástrofe, uma guerra,um golpe militar, enfim, é uma data extremamen-te significativa. A ditadura já passou. Nós conse-guimos reingressar num processo de redemocrati-zação do País, mas é sempre bom lembrar o signi-ficado daquilo, principalmente para que se possafazer um balanço da história e tentar indagar queefeitos aquele fato social gerou, positivos e negati-vos, e como eles se desenrolaram ao longo dotempo desses 40 anos.

IHU On-Line – Em relação ao modelo eco-

nômico do governo militar, como o senhor o

descreveria?

Wilson Cano – A economia brasileira estava vi-vendo a crise do início e meados dos anos 1960,que decorre do esgotamento de um processo decrescimento industrial intenso, iniciado nos anos1930, pela decidida visão desenvolvimentista deVargas. Quase toda a América Latina viveu essacrise, não necessariamente no mesmo momentodo Brasil. Eu chamo isso de uma “industrializaçãofácil”. Isso foi possível graças a uma série de cir-cunstâncias internas e externas, que favorecerama montagem e a expansão industrial, predomi-nando os setores leves. Porém, no caso brasileiro,e em parte do argentino, a indústria havia monta-do já alguns compartimentos mais complexos. Nasegunda metade da década de 1950, o Brasil deupassos muito mais avançados, montando uma in-dústria de bens duráveis e alguns segmentos da debens de capital. Nesse sentido, ele é quase umaexceção na América Latina, salvo uma pequenaproporção da indústria argentina que também ha-via avançado nesse setor. No esgotamento desseprocesso de crescimento anterior, a economia e asociedade exigiam uma série de reformulaçõesprofundas, para que se pudesse repensar uma ou-tra alternativa de crescimento.

IHU On-Line – Que reformulações eram essas?

Wilson Cano – Primeiro, os aparelhos de Esta-do, anteriores à “Crise de 1929", remendados,precisavam de uma reestruturação e reclamavamuma reforma fiscal e tributária de envergadura.Em segundo lugar, a economia já era muito dife-

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rente, mais complexa. Nós tínhamos ingressadona industrialização, portanto, o sistema financeiroreclamava, também, reformulações que pudes-sem ampliar e regulamentar o crédito ao consumi-dor, porque as pessoas queriam comprar geladei-ra, televisão, automóveis, e não apenas utensíliosmais baratos. A indústria e a agricultura tambémdemandavam financiamentos mais pesados delongo prazo. Os nossos sistemas financeiros eramcompletamente inadequados para atender a essasreclamações. Além disso, havia outros tipos deproblemas. A nação reivindicava uma série de re-formas, como a agrária, a urbana, a tributária, ado ensino, e outras. Como perdemos o embatepolítico com as forças golpistas de 1964, quem fezas reformas foi a direita, não do modo como que-ríamos, nem com o conteúdo que pretendíamos,mas fez para atender, principalmente, aos interes-ses dela. De qualquer forma, algumas dessas re-formas foram extremamente positivas para a con-tinuidade de crescimento do País. Por exemplo, areforma tributária, a instituição da correção mone-tária que permitiu ao estado corrigir a sua dívida eseus títulos e, portanto, ampliar o seu financia-mento, a reforma do sistema financeiro que au-mentou o crédito ao consumidor, a reforma docrédito rural, a reforma para o financiamento debens de capital no BNDE, e eram sumamente ne-cessárias. Com isso, foram feitas outras coisasque, evidentemente, nós não desejávamos, comoa eliminação da estabilidade do trabalhador, emtroca do fundo de garantia. Outras coisas forambem feitas, como a instituição da caderneta depoupança e o sistema federal de habitação, que,no início, tinha como objetivo atender as deman-das de habitação das classes de menor renda.Esse período de reformas foi positivo e é ele quevai permitir o primeiro avanço colossal que se dána primeira fase do “milagre brasileiro”. Entre1967 e 1970, o crescimento é vertiginoso, em tor-no de 10% ao ano. No início (1967), o crescimen-to foi facilitado, porque havia capacidade ociosana economia. O estado teve as suas finanças revi-goradas, com o que pôde ampliar o gasto e o in-vestimento públicos. No período de 1970 a 1974,na continuidade do “milagre”, os militares perce-beram que a economia, crescendo a uma taxa tão

alta, trazia uma série de efeitos econômicos e polí-ticos importantes para eles, porque, com uma taxade crescimento elevada, aumentava o emprego,portanto, a classe trabalhadora não tinha motivospara reclamar dos salários baixos ou de desem-prego, que não havia mais. A classe média, por-que, com o avanço da industrialização, se criarammuitos postos de trabalho moderno, de nível qua-lificado, com salários mais elevados, teve ascen-são social. O empresariado, porque aumentouseus lucros e investimentos, não só pelo crédito fá-cil, mas também pelo crédito subsidiado. A agri-cultura se modernizou, etc. Porém os militaresacharam que poderiam ainda continuar crescen-do a essas taxas altas como 10%. Geisel, como ini-cia seu governo em pleno “milagre”, tentou pros-seguir na política econômica de alto crescimento.Contudo, a economia já dava claros sinais de re-produzir o movimento inflacionário, o problemade balanço de pagamentos e com dificuldades definanciamento externo. Então o governo tentoufazer uma política que, ao mesmo tempo, obtives-se alto crescimento (o Brasil Potência) e desseconta daqueles problemas. Esse foi um erro gra-víssimo que ele cometeu, pois nós demos passosmuito maiores que nossas pernas permitiam.

IHU On-Line – Sua leitura, então, assinala

fatos positivos e negativos no modelo eco-

nômico do governo militar?

Wilson Cano – Os fatos positivos são: a taxa deemprego foi fenomenalmente alta, o PIB cresceu,como tinha crescido nos anos 1930, ou seja, maisde 10% ao ano, a urbanização avançou sobremo-do, ampliamos consideravelmente a classe média,modernizamos parte da agricultura e uma partesubstancial do setor industrial. Os fatos negativossão: nós tivemos um crescimento tão elevado daprodutividade que poderíamos ter praticado umapolítica de redistribuição de renda urbana bastan-te considerável, e isso não foi feito. Em segundolugar, para que a classe média ficasse cooptada eapoiasse os militares, eles passaram a desviar par-te substancial dos recursos da política de habita-ção para o financiamento da habitação da classemédia e menos para o financiamento das classespopulares. Em terceiro lugar, piorou a distribuição

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de renda. Em quarto lugar, não se fez a reformaagrária. Passados mais alguns anos, a partir de1977-78, os problemas internacionais começa-ram a se agravar. Com o segundo choque de pe-tróleo (o primeiro foi em 1973), em 1979, a infla-ção internacional e a crise financeira internacionalcresceram e, no período de 1977 a 1979, o capitalfinanceiro internacional começou a fechar as tor-neiras para os países subdesenvolvidos e foramtotalmente fechadas na passagem de 1979 para1980. Isso significava afogar todo aquele processode euforia e elevado crescimento, porque ele esta-va calcado no financiamento externo via endivi-damento. A maioria dos países latino-americanosfez isso. Endividaram-se, porque era muito fácilobter empréstimos internacionais, e a taxa de ju-ros, durante muitos anos, foi negativa. Todos in-correram no mesmo problema e todos também ti-veram como objetivo transformar sua agricultura,transformar sua indústria e tentar, com isso, alte-rar a estrutura da pauta exportadora. Hoje nós te-mos uma pesadíssima herança negativa, que é adívida externa e a dívida pública interna.

IHU On-Line – A origem da dívida externa e

interna estariam naqueles anos?

Wilson Cano – Entre 1968 e 1976. É essa aorigem.

IHU On-Line – A partir dessas bases, desses

alicerces, como foi nos anos posteriores?

Wilson Cano – No meu livro Soberania e Polí-

tica Econômica na América Latina (UNESP,2000), eu denomino o capítulo sobre o Brasil, de“O sonho acabou”. O financiamento externo foitotalmente cortado, a inflação contaminou prati-camente todos os países latino-americanos, emespecial o Brasil e a Argentina, caminhamos parainflações muito elevadas e tivemos a década de1980 inteira como a “década perdida”, porque fi-camos como um cachorro querendo morder seupróprio rabo, ou seja, tentando nivelar a inflação eresolver o problema de balanço de pagamentos.Não se resolveu absolutamente nada, perderam-se10 anos com um crescimento medíocre, com in-flação alta, com falta de criação de empregos, compiora na distribuição de renda e com o agrava-

mento dos problemas sociais latino-americanos,principalmente problemas urbanos, como pobre-za, habitação, saneamento, educação, saúde, etc.Na redemocratização brasileira, a partir de marçode 1985, aconteceu isso e continuamos com osmesmos problemas estruturais econômicos.

IHU On-Line – Quais teriam sido outras al-

ternativas econômicas, quando se esgotou

o “milagre econômico”?

Wilson Cano – Infelizmente não foi possível jun-tar em uma mesma mesa Brasil, Argentina e Méxi-co, principalmente esses três, que respondiam porum peso muito grande da dívida externa dos paí-ses subdesenvolvidos, em especial da América La-tina, porque esses países estavam fragmentadospor interesses externos muito diferentes. O Méxicocom seus interesses colados na economia nor-te-americana, a Argentina com um pressupostoideológico muito complicado, pró-americano. Elasempre tentou conduzir o estado argentino parauma forma liberal. Com isso sofreu uma desesta-bilização do mercado interno. Então estes três paí-ses não se uniram para tentar enfrentar o capital fi-nanceiro internacional, para tentar obter, no míni-mo, uma negociação em bases mais condizentescom as necessidades da população. Isso não foifeito ou não foi possível, de qualquer maneira.Houve até ensaio para essa tentativa com os pre-sidentes Alfonsin e Sarney em 1985, que resultouna criação da Associação de Livre Comércio,que, mais tarde, se converteria no Mercosul, masfoi uma amizade sem qualquer resultadoobjetivo.

IHU On-Line – Haveria possibilidades de es-

tabelecer semelhanças e diferenças entre o

modelo instalado pelo golpe militar, o mo-

delo posterior do governo FHC e o modelo

econômico atual do presidente Lula?

Wilson Cano – Nós tivemos um período de largocrescimento entre 1967 e 1980. Depois tivemos,na década de 1980, uma quase paralisia, houve oproblema da inflação, juros, de resolução do pro-blema da dívida externa, etc. Depois, nos anos1990, foi o neoliberalismo, que, no início, agra-vou os problemas de inflação e de dívida externa.

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Mas a política econômica adotada foi ainda piordo que a da década anterior. Antes, pelo menos,nós tínhamos salva-guardas, nós tínhamos graude proteção para nossa economia e para nossoemprego e tudo isso foi jogado fora com a políticade abertura comercial e financeira, a partir já dogoverno Collor, em 1990. Então hoje eles nos in-vadem 24 horas por dia. Atualmente, a situação édiferente, as políticas são diferentes, da dos anos1990 e da dos anos 1980, mas continuamos comocachorros querendo morder o próprio rabo. Esta-mos tentando evitar que a inflação suba, que a dí-vida pública interna suba muito e tentando fazercom que o problema da dívida externa não derra-me. Temos uma mesma política econômica decurto prazo, tentando buscar a estabilidade a todocusto e, com isso, estamos repetindo os mesmoserros da década de 1980, só que piorados, por-que, além de crescermos quase nada, agora a situ-ação, com a mudança das tecnologias, com umasérie de mudanças na estrutura produtiva, fez comque o desemprego na América Latina mais do queduplicasse. Então nós estamos numa situação mu-ito pior do que a dos anos 1980. A diferença subs-tancial do governo Lula, em relação a Collor eFHC, não reside na política econômica, que é pra-ticamente a mesma – a neoliberal –, mas na políti-ca externa, que tenta trazer de novo para o Brasilanseios de soberania na área internacional.

IHU On-Line – Mas a geração que está go-

vernando não foi parte da geração que lutou

contra o golpe militar, contra o governo mi-

litar e contra a política econômica ortodoxa

do FMI/BIRD?

Wilson Cano – Sim. Eles foram contra as políti-cas ortodoxas monetárias, contra esse controleférreo do gasto público, contra as privatizações,contra tudo. Só que são eles que estão no poderagora, repetindo os neoliberais.

IHU On-Line – O que está faltando? Vonta-

de política?

Wilson Cano – Essa é uma pergunta de caráterpolítico muito complicada. Eu mesmo fazia parte

da assessoria do PT. Fazia parte do grupo maisalto de economistas do partido. Esses anos todos(1989-2002), ficamos discutindo e escrevendo,fazendo os programas do partido. Eu não fui parao governo, tive uma briga muito séria dentro dopartido, em julho de 2002, porque me rebelei con-tra algumas coisas que estavam sendo ditas, por-tanto eu me afastei.

IHU On-Line – Seu afastamento do PT foi

por causa do modelo econômico que se pre-

parava para quando Lula fosse governo?

Wilson Cano – Justamente, porque eles já mos-traram, em 7/2002, que, muito provavelmente,dariam continuidade ao modelo neoliberal doFernando Henrique Cardoso. A única soluçãoacertada é a política externa. Vamos ver até ondevai ser possível. Mas, de resto, é a mesma coisa.

IHU On-Line – Na atualidade, o senhor con-

tinua sendo um dos assessores econômicos

do governo, tem alguma participação?

Wilson Cano – Não, nenhuma. Não me retireiainda do partido, porque tendo alguma esperança,não sei se é ingenuidade minha, de que se possadiscutir e mudar isso dentro do partido. Cada diaque passa, entretanto, vejo isso mais longínquo.

IHU On-Line – Se o governo estivesse mais

aberto a escutar os economistas e intelec-

tuais mais críticos, haveria uma mudança?

Wilson Cano – Aqueles que se encontram nopoder, raramente acatam as críticas e sugestõesdos seus críticos. Se não fosse assim, teríamos evi-tado gravíssimos problemas com o endividamen-to externo e com o público interno, com o cresci-mento e com o emprego, e, que dizer da distribui-ção da renda e da reforma agrária, questões quecontestamos desde a década de 1950! Às vezes, adesconsideração se dá com a outorga de pechas,como no regime militar, em que éramos “econo-mistas catastrofistas”, ou no de FHC, em que éra-mos “neobobos”. Não sei qual será a alcunha noatual. Este criou vários conselhos para “ouvir aopinião pública”...

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IHU On-Line – Então devemos perder a

esperança?

Wilson Cano – Não, pelo contrário, deve-mos manter nossa persistente resistência ao engo-do, ao falso brilhante e à costumeira desculpa de

que “não há recursos para isto”... Ou, ainda, deque “não há alternativas...” Veja a “audaciosa”Argentina, que enquadrou recentemente seus cre-dores, e ninguém sequer pensou em invadi-la... Épreciso resistir e manter acesa a luta pela crítica epela democracia.

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