Ditadura Militar, Esquerdas e Sociedade - Daniel Aarão Reis

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Daniel Aarão Reis Filhos - DItadura

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  • confortador pensar as ditaduras como impostas de cima para baixo, pelas elites, ou por circunstncias particulares, e no como construes histricas de sociedades concretas, apesar e para alm das oposies e das resistncias. Este livro escolhe o segundo caminho e convida o leitor a um viagem crtica pela ditadura militar que a sociedade brasileira construiu e no destruiu.

  • Crditosdasilustraes

    A montagem na capa composta das ilustraes 3, 5 e 8 (ver crditosabaixo),almdefotodoFundoCorreiodaManh, PH FOT/2007(32).ArquivoNacional

    1.ComciodasReformas.EmpresaBrasileiradeNotcias2. Marcha da Famlia com Deus pela Liberdade. Foto de Wilson Santos.AgnciaJB3. Militares no Clube de Oiciais da Marinha. Arquivo Antonio CarlosMuricy.FundaoGetulioVargas/CPDOC4.GregrioBezerrapresoemRecife.AcervodoJornalEstadodeMinas5. Enterro do estudante Edson Luis de Lima Souto. Fundo Correio daManh,PH/F0T/43891(17).ArquivoNacional6. Passeata dos Cem Mil. Fundo Correio da Manh, PH/FOT/2007(111).ArquivoNacional7.ConstruodabarragemdeItaipu.FotodeClausMeyer.CmaraTrs8. Inaugurao de uma nova reinaria da Petrobras. Fundo Correio daManh,PH/F0T/23314(8).ArquivoNacional9. Polcia barra manifestantes em Salvador. Foto de Luciano Andrade.ArquivoUlissesGuimares.FundaoGetulioVargas/CPDOC10. Apresentao do grupo de teatro do Comit Brasileiro pela Anistia.Setor do Departamento Geral de Investigaes Especiais (DGIE). ArquivoPblicodoEstadodoRiodeJaneiro11. Fim da greve em So Bernardo em 1979. Foto de Reinaldo Martins.DiriodoGrandeABC

  • DitaduramilitarnoBrasil:umaincmodamemriaQuase ningum quer se identiicar com a ditadura militar no Brasil nosdiasdehoje.Contam-senosdedosaquelesquesedispemadefenderasopes que levaram sua instaurao e consolidao. At mesmopersonalidades que se projetaram sua sombra, e que devem a ela aSorte, o poder e a riqueza que possuem, no esto dispostas, salvoexcees,aacorreremsuadefesa.

    Paraagrandemaioriadasociedade,aditaduraeosditadores foramdemonizados. Em 1998, por ocasio das comemoraes dos 30 anos doestranho ano de 1968, a sociedade brasileira, atravs da mdia e daacademia,consagrouumaorientaodehostilidadeditadura:celebrouosvencidosdeentoecondenousempiedadeospoderososquemandavamedesmandavam no pas. Sobre o perodo, de modo geral, a memria dasociedade tendeu a adquirir uma arquitetura simpliicada: de um lado, aditadura, um tempo de trevas, o predomnio da truculncia, o reino daexceo, os chamadosanos de chumbo. De outro, anova repblica, livre,regida pela Lei, o reino da cidadania, a sociedade reencontrando-se comsuavocaodemocrtica.

    Nessa reconstruo, as esquerdas freqentemente aparecem comovtimas.Quando lutam,o fazemintegradasemumprocessode resistncia.Esta uma palavra-chave na memria das esquerdas submetidas peladitadura.Nessareconstruoosvaloresdemocrticos,emboraderrotadosem 1964, sempre contaram com um apoio amplo emacio na sociedade,embora sob vigilncia, acuados pela represso, pelomenos at 1974. Foiexatamente nessas circunstncias, sem vlvulas de escape, que algunsgruposdeesquerdadesesperadosedesesperanadosselanaramluta armada. Constitudos fundamentalmente por jovens estudantes,audaciosos mas inexperientes, foram destroados em uma luta desigualcontra os aparelhos da represso. Bravos jovens! Radicais, equivocados,masgenerosos!Arigor,aditadura,sempresegundoessasverses, foraagrande responsvel pela luta armada, redimensionada como uma reaodesesperadafaltadealternativas.

    De 1974 em diante, nas condies relativamente favorveis criadaspela distensolenta, segura e gradual, comandada pelo general Geisel,haveriaumrelorescimentodas esquerdasmoderadasedemocrticasnasociedade. Na segunda metade dos anos 70 sobretudo depois da

  • revogao do Ato Institucional n.5, a partir do incio de 1979, e daaprovaodaAnistia,emagostodomesmoano,lideranasepartidosdeesquerda, embora ainda minoritrios, voltariam a desempenhar papisimportantesnacenapoltica.

    A ditadura fora uma noite. Mas triunfara a manh, conirmando aprofecia do poeta Thiago de Melo: Faz escuro, mas eu canto, porque amanh vai chegar. Em 1979 amanh chegou, inalmente. E a sociedadebrasileira pde repudiar a ditadura, reincorporando sua margemesquerdaereconfortando-senaidiadequesuasopespelademocraciatinhamfundaseautnticasrazeshistricas.

    Muitos dos aspectos at agora referidos constituem lugares-comunsem uma certa memria sobre a ditadura e as esquerdas. Habitamdiscursospolticos,livrosdidticos,ilmesemateriaisdiversosdeanliseedivulgao.Emtudoisto,sobressaiumatese:asociedadebrasileiraviveuaditadura comoumpesadelo que preciso exorcizar, ou seja, a sociedadenotem,enuncateve,nadaavercomaditadura.

    Assim,embora tenhadesaparecidogradualmente,emordemepaz,aditaduramilitarfoietemsidoobjetodeescrnio,desprezoouindiferena,atitudesquetendemaestabelecerumarupturadrsticaentreopassadoeo presente, quando no induzem ao silncio e ao esquecimento de umprocesso,contudo,torecenteetoimportantedenossahistria.

    Entretanto, se isso tudo corresponde verdade, como explicar porque a ditadura no foi simplesmente escorraada? Ou que tenha sidoaprovada uma anistiarecproca? Como compreender que permaneamcom tanta fora lideranas e mecanismos de poder preservados e/ouconstrudosnoperododaditadura,pelaeparaaditadura?Comosesabe,do latifndio ao poder incontrastvel dos bancos, damdiamonopolizadade Roberto Marinho aos servios pblicos deteriorados da sade e daeducao, da dvida interna externa, de Jos Sarney a Antonio CarlosMagalhes, passando por Delim Neto, so inmeras as continuidadesentre astrevas da ditadura e as luzes da democracia. E o que dizer dacultura poltica autoritria, cuja vitalidade ningumpode contestar tantosanosdepoisdefechadooperododaditaduramilitar?

    Talvez seja necessrio reletir um pouco mais sobre as razes e osfundamentoshistricosdaditaduramilitar, as complexas relaesque seestabeleceram entre ela e a sociedade, e, em um contraponto, sobre opapeldesempenhadopelasesquerdasnoperodo.

    o que o presente texto pretende fazer. Comeando pelo incio: o

  • processo que desembocou na instaurao da ditadura. Reconstruir ocontexto internacional. Revisitar as verses ento formuladas: umarevoluo? Um simples golpe de Estado? Em seguida, estudar odesenvolvimento contraditrio dos governosditatoriais, seus ziguezagues,astradiesconservadas,asrupturasefetuadas,asoposiesdeesquerda,os programas alternativos apresentados, o impacto que tiveram, sempreno contexto de uma sociedade que, ainal, nunca se rebelou de formaradical contra a ordem vigente. E observar, inalmente, como se foiextinguindo a ditadura militar, redeinindo-se, transformando-se,transitando para umademocracia sob formas hbridas,mudando de pelecomo um camaleo muda de cores, em uma lenta metamorfose que athojedesencadeiapolmicasarespeitodequando,efetivamente,terminou.Nossa escolha recai em 1979, quando deixou de existir o estado deexceo,comarevogaodosAtos Institucionais,e foiaprovadaaanistia,ensejandoavoltadoexliodosprincipaislderesdasesquerdasbrasileiras.Da em diante, abriu-se um perodo de transio, at 1988, quando aaprovao de uma nova Constituio restabeleceu as condies de umplenoestadodedireitoemnossopas.

    Para almdosmarcos cronolgicos, porm, o fato que da ditadurafez-se a democracia, como um parto sem dor, sem grandiloqncia ouherosmo, sem revolues ou morte dhomem. Cordialmente,macunaimicamente,brasileiramente.

  • Abril,1964:agnesedaditaduraAvitriadomovimentocivil-militarquederrubouJooGoulartemabrilde1964 desferiu um golpe no projeto poltico nacional-estatista que o ldertrabalhistaencarnavaeencerrouaexperinciarepublicanainiciadacomoimdoEstadoNovo,em1945.Masnofoiumraioquedesceudeumcuazul. Ao contrrio, resultou de uma conjuno complexa de condies, deaes e de processos, cuja compreenso permite elucidar o que deixouento surpresos e perplexos no apenas os vencidos, mas tambm osprpriosvencedores.

    BrasileAmricaLatina:alutapelaautonomiadonacional-estatismo

    Uma primeira chave, mais ampla, engloba a Amrica Latina e, a rigor, oTerceiro Mundo em seu conjunto. Remete questo da viabilidade doprojetodeconstruodaautonomianocontextodomundocapitalista.Comefeito,desdeaSegundaRevoluoIndustrial,de insdosculoXIX, frentesgrandespotnciascapitalistas,colocou-separaumasriedesociedadeso desaio de construir uma insero autnoma no mercado capitalistainternacional. Na rede armada pelo processo de internacionalizao docapital (comrcio demercadorias e exportao de capitais), combinada expanso territorial, sobretudo das potncias europias, laos apertadosde dependncia foram tecidos, diicultando s vezes impedindo aconquista de uma real autonomia poltica e econmica nas regies dafrica, sia e Amrica Latina, mesmo entre aqueles pases que nochegaramasertransformadosemcolniasdiretas,comoaChina,ouquejtinhamdeixadodes-lo,comoquasetodosospasesdaAmricaLatina.

    AIGrandeGuerraeasconvulsessubseqentesdoscrticosanos20e30(aemergnciadarevoluorussa,osurgimentodosfascismos,acrisegeral das economias liberais) abriram brechas nesses laos dedependncia, permitindo a estruturao de projetos autonomistas,assumindo, quase sempre, um carter nacional-estatista. A propostarepublicanadeSunYat-sennaChina,amodernizaodaTurquia,lideradapor Mustapha Kemal, o Partido do Congresso na ndia, o nacionalismomexicano de Ernesto Cardenas, o Estado Novo varguista tinham essesentido: explorar os espaos criadospelo enfraquecimentodaspotncias,ou/earivalidadeentreelas,paralograrmargensdeautonomia.Paraalmde suas diversidades, essas diferentes iniciativas esboaram o projeto

  • ambicioso de construir um desenvolvimento nacional autnomo nocontexto do capitalismo internacional, baseado nos seguintes elementosprincipais:umEstadofortalecidoeintervencionista;umplanejamentomaisou menos centralizado; um movimento, ou um partido nacional,congregandoasdiferentesclassesemtornodeumaideologianacionaledelideranas carismticas, baseadas em uma ntima associao, no apenasimposta,mas tambm concertada, entre Estado, patres e trabalhadores.Era a disseminada a crtica aos princpios do capitalismo liberal e liberdade irrestrita dos capitais. Em oposio, defendia-se a lgica dosinteresses nacionais e dajustia social, que um Estado intervencionista ereguladortratariadegarantir.

    No transcursoda II GuerraMundial, as circunstncias obrigariamasgrandespotnciasaseconciliaremcomessesprojetos,quetiveramentoumdeseusmelhoresmomentosparasolicitarauxliosdiversos,barganharapoios e exercermargensde soberania.Depoisda conlagrao, contudo,novascircunstnciasimporiamredefiniesderumos.

    O enfraquecimento das potncias europias e do Japo e aestruturao de poderosos movimentos de libertao nacional pareciamabrir um horizonte favorvel, inclusive porque as duas grandessuperpotncias resultantes do conlito mundial os EUA e a URSS ,emboracomintenesdiversas,estavamtambminteressadasnoimdosvelhos imprios coloniais. Este ltimo aspecto, contudo, apresentavaambigidades, porque tanto os EUA como a URSS cultivavam ambiesuniversaise,nalgicadabipolaridadedaGuerraFria,pretendiamreduzirasmargensdeautonomiajconquistadasouaconquistar.

    Masascoisasnosepassaramdamesmaformanasvriasregiesdomundo.

    Nasia,aconjunturadoimediatops-guerrafoiauspiciosaparatodosos que tentavam encontrar um caminho prprio. O Japo, derrotado, noameaavamais. As potncias europias aliadas estavam fragilizadas paramanter as colnias adquiridas ao longo do tempo. Em muitas regies, ocrescimento dos movimentos de libertao nacional, articulado com oprprio programa poltico da Grande Aliana contra o nazi-fascismo,comprometidocomademocraciaeautodeterminaodospovos,conduziuaceitaoouaoreconhecimentoda independnciapolticadeumasriede povos: Filipinas (1946), ndia e Paquisto (1947), Birmnia e Ceilo(1948), Indonsia(1949).Emalgunscasos,areaodasvelhaspotnciascoloniais, ou disputas ideolgicas acirradas, retardariam ou imporiam

  • limitaesoupartilhasindependncianacional,comonoscasosdoVietne da Coria. Mas no foi possvel impedir de todo a conquista deconsiderveismargens de autonomia. A vitria da revoluo chinesa, em1949,consolidariaedarianovoimpulsoaesseprocesso.

    No mundo muulmano e entre os pases rabes, os movimentosautonomistas, esboados desde o im da II Guerra, tornaram-seirreversveis na primeira metade dos anos 50, com o nasserismo, e, umpoucomais tarde, atravs da revoluo argelina e do socialismo rabe naSriaenoIraque.Nafricanegra,apartirdasegundametadedosanos50registraram-se os primeiros xitos signiicativos (por exemplo aindependnciadeGhana,em1957)doqueviriaserumagrandeondadeindependncias.

    Todoesseprocessoabriuhorizontesegrandesesperanasparaa construo dos projetos autonomistas. A conferncia de Bandung,realizada em1955, estabeleceria osmarcos iniciaisdessautopia terceiro-mundista, umdos componentes essenciaisdas relaes internacionais atos anos 70. Ela se baseava na crena de que seria possvel alcanar osonhado desenvolvimento autnomo com base em um projeto nacional-estatista.

    Na Amrica Latina, entretanto, as coisas tomaram outros rumos. Emvirtude damaior presenapoltica e econmicados EUA, do poucopesoexercidopelaURSS,dasopesdeinidaspelamaiorpartedaselitesdominantes da rea e de certas tradies culturais, os projetosautonomistas construdos com algum xito at 1945 tenderam a perderflegoevigor,definharam,entraramemcrise.

    Houveresistncias,semdvida.OperonismonaArgentina,arevoluoboliviana,oaprismonoPeru,o

    movimentodemocrtico-popularnaVenezuela,onacionalismomexicano,ovarguismoeo trabalhismonoBrasil,almdeumasriedemovimentoseexperimentos na Amrica Central, como o liderado por J. Arbenz naGuatemala, atestama foraacumuladaeas razes sociais ehistricas, emnosso continente, do programa nacional-estatista, em luta pela conquistadaautonomia.

    Entretanto, a proposta de um desenvolvimento dependente eassociadoaoscapitaisinternacionaistendeuaganharfora,sobretudonosanos 50, quando novas reestruturaes da diviso internacional dotrabalho permitiram a alguns pases mais importantes do continente Brasil, Argentina, Mxico estabelecer polticas de atrao e incentivos

  • aoscapitais internacionaisedispordecondiesparaempreendersurtosindustrializantes.

    As alianas ento constitudas, e as expectativas geradas pelomenos em alguns pases que puderam registrar altos nveis decrescimento econmico, como por exemplo o Brasil dos 50 anos em 5 deJuscelino Kubitschek , minaram mas, como se ver, no chegaram adestruirasbasesconstitudaspelatradionacional-estatista.

    Comefeito,nemtodososdadosestavamaindajogados.A vitria das revolues cubana, em 1959, e argelina, em 1962, o

    processodeindependnciasnacionaisnafricanegraenomundorabeemuulmano, a luta revolucionria no Vietn, retomada a partir doscomeos dos anos 60, entre muitos outros acontecimentos, conferiramnovoalentoaosmovimentosnacional-estatistaslatino-americanos.

    O enfrentamento entre Cuba e os poderosos Estados Unidos daAmrica,asobrevivnciadarevoluocubanaemmeioapressesdetodaordem, empolgava as correntes nacionalistas, que se reconheciam comoparte danuestra America, um sonho de Jos Mart que muito seassemelhava,nascondiesespecicasdaAmricaLatina,aoespritoafro-asitico formulado em Bandung. Assim, em uma perspectivamais ampla,histrica, a revoluo cubana pode ser avaliada como um elo a mais dalonga luta dos movimentos nacional-estatistas latino-americanos pelaconquista de margens de autonomia. Nessa mesma perspectiva asdeclaraes altissonantes sobre o carter socialista do regime poltico esocial cubano deveriam ser compreendidas muito mais como umaimposio da presso e do cerco dos EUA e da necessria aliana dedefesacomaURSSdoquecomoumaevoluoconscienteeestruturadadaprpriarevoluo.

    Ofatoquetodoesseprocessoincendiavaasimaginaes.Asutopiaspareciam ao alcance da mo, um fermento para o nacionalismo latino-americano, um alarme para as classes conservadoras e para o Estadonorte-americano.

    Nesse contexto internacional, abriu-se uma conjuntura de grandeslutassociais,atento,inditanahistriadarepblicabrasileira.OmarcoinicialfoiarennciadopresidenteJnioQuadros,emagostode1961.

    1961-1964:aderrotadonacional-estatismo

    Jnio fora eleito, em outubro de 1960, com um discurso ambguo,

  • articulandoum lequede foras: oligarcas liberais, classesmdias, amploscontingentes de trabalhadores. Estavam todos, por diferentes razes,descontentes com os rumos da sociedade. A euforia provocada pelocrescimento da segundametade dos anos 50, que de fato abrira amploshorizontes, cedera lugar apreenso face s contradies que seacumulavam.

    Em seus tempos de glria, certo que o modelodesenvolvimentistaefetuara rupturas com o projeto nacional-estatista associado a Vargas.Paraalguns, sobretudodepoisdo suicdiodo lder gacho, aqueleprojetoestava condenado pela Histria. Entretanto, apesar de suas inovaes, os50anosem5deJKconservaramalgumasheranasessenciaisdostemposvarguistas:o intervencionismoestatal,ospesados investimentoseminfra-estrutura (Plano de Metas) e a incorporao dos trabalhadores(afrouxamento da tutela ministerial sobre o movimento sindical e gestoassociadadaPrevidnciaSocial).NoporacasoforapossvelmanterdepaalianaarticuladaporGetlioVargasentreoPartidoSocial-Democrtico(PSD)eoPartidoTrabalhistaBrasileiro (PTB), comoapoio,nasmargens,dosprprioscomunistas.

    Mas, em ins dos anos 50, parecia que o desenvolvimentismo estava,dealgummodo, fazendogua:oritmodecrescimentodiminura,cresceraa inlao, intensiicara-se o cortejo de desajustes prprios de pocas detransformaesaceleradas.

    Como resultado, desgastaram-se as foras e os partidos que haviamat ento comandado o pas. Criou-se na sociedade, lentamente, umaatmosferagerala favordemudanas,dereformas.Eraprecisorenovaravidapolticadopas.Jnio,ldercarismticoporexcelncia,soubeencarnaresses anseios pelonovo, to prprios da cultura poltica brasileira. Comuma vassoura, smbolo da campanha eleitoral, saberia varrer asdiiculdades e os problemas. Elegendo-se com quase 6 milhes de votos(cerca de 48% dos votantes), assumiu o poder com fora considervel,alimentandoasexpectativasdeumnovocomeo.

    Mas o governo, iniciado em janeiro de 1961, cedo pareceu umapotncia que no se realizava, como se fosse um blido que noconseguisse arrancar. A poltica econmica, na linha da ortodoxiamonetarista, desagradava o setor industrial acostumado ao crdito fcil,semconseguirsegurarainlao.Apolticaexternaindependenteirritavaos setores conservadores sem angariar os apoios das esquerdas,desprezadas por Jnio. Quanto aos trabalhadores, frente inlao

  • crescente, recebiam promessas de austeridade Enquanto isso, asreformas vagamente anunciadas e to desejadas no se concretizavam,nemmesmonaformadeprojetosconsistentes.

    O presidente parecia apostar apenas no dilogo direto com asociedade, exercitando seu inegvel carisma. Reclamava de restries ealegava carecer de plenos poderes, embora no estivesse evidente paraningum, e provavelmente sequer para elemesmo, o que faria com eles.Contudo, foi comessaperspectivaquerenunciou,emagostode1961,emum golpe bem urdido, que surpreendeu a todos, mas pessimamenteexecutado, posto que no havia nenhuma organizao acompanhando odesfechodatrama.

    Anao,durantequaseduassemanas,estevebeiradaguerraciviledocaos.

    Os ministros militares tentaram impedir a posse do vice-presidenteeleito, JooGoulart, o Jango, lderdoPartidoTrabalhistaBrasileiro (PTB).No entanto, frente ao movimento de resistncia ao golpe e quebra dalegalidade constitucional, encabeado pelo governador do Rio Grande doSul,LeonelBrizola,houveumacordoemqueambososladosrecuaram,naboatradiodeItarara.

    AinalJangoassumiuogoverno,em7desetembrode1961,mascomospoderespresidenciaiscastrados,emumparlamentarismohbrido,umaestranha frmula constitucional em que se associavam um presidenteenfraquecido e um parlamento fraco. Quanto aos golpistas, tiveram asposiespreservadas,nosendopunidos.

    Alguns aspectos dessa crise merecem ser destacados para ainteligiblidadedosacontecimentosquese seguiro.Primo, a improvisaodo veto posse de Jango, devida prpria surpresa com que foramcolhidososministrosmilitarespelarennciadopresidenteJnioQuadros,e a indeciso e as divises das elites dominantes constituram fatoresfundamentais para o fracasso da tentativa de golpe. Secundo, oprotagonismo dos movimentos populares, que entraram na cena polticaem defesa da posse de Goulart. Na seqncia, eles no se deixariam tofacilmente afastar do palco.Tertio, o fator essencial de que essesmovimentoshaviampartidoparaa lutaemdefesadademocracia,da leieda ordem constitucional. No por acaso, a rede de comunicaesorganizada pela posse de Jango se auto-intitulavarede da legalidade. Emoutraspalavras,alutasetravaraemdefesadaordemlegal.

    Com a posse de JooGoulart, retornou do passado uma sombra que

  • parecia banida pela morte: a de Vargas. Nas condies internacionaisaparentemente favorveis ento existentes, entre as quais igurava osucessodarevoluocubana,onovopresidentefortalecidopelavitriadomovimento pela legalidade, que lhe assegurou a posse, apoiado em umpartidodemassasemcrescimento,oPTB,esobretudopelotipoparticularde relaes que entretinha com os movimentos sociais organizados,poderia reunir condies de reatualizar a hiptese do projeto nacional-estatista.Comefeito,seodesenvolvimentismodeJKabalaraalgunsdeseusfundamentos, no o superara. Quanto a Jnio Quadros, no teve sequertempo, ou condies, para elaborar alguma alternativa. Assim, em umcontextode intensosdebatese lutaspolticas,marcadopeloprotagonismodos movimentos populares, ressurgia uma possibilidade que muitosimaginavamdefinitivamenteenterrada.

    As agitaes sociais ampliaram-se, em um crescendo, alcanandotrabalhadores urbanos e rurais, assalariados e posseiros, estudantes egraduados das foras armadas, conigurando uma redeinio do projetonacional-estatista, que passaria a incorporar uma ampla e indita participaopopular.Talvezexatamenteporcausadisso,mudaramotomeo sentido do discurso: ao contrrio de uma certa tradio conciliatria,tpica do estilo de Getlio Vargas, os obstculos deveriam agora serremovidos,enoevitados,eosalvos,abatidos,enocontornados.

    Eassimtomoucorpooprogramadasreformasdebase.Areformaagrria,paradistribuiraterra,comoobjetivodecriaruma

    numerosa classedepequenosproprietriosno campo.A reforma urbana,para planejar e regular o crescimento das cidades. A reforma bancria,com o objetivo de criar um sistema voltado para o inanciamento dasprioridades nacionais. Areforma tributria, deslocando a nfase daarrecadao para os impostos diretos, sobretudo o imposto de rendaprogressivo. A reformaeleitoral, liberandoovotoparaosanalfabetos,queentoconstituamquasemetadedapopulaoadultadopas.Areformadoestatutodocapitalestrangeiro, paradisciplinareregularos investimentosestrangeiros no pas e as remessas de lucros para o exterior. A reformauniversitria, para que o ensino e a pesquisa se voltassem para oatendimentodasnecessidadessociaisenacionais.

    Instaurou-se um amplo debate na sociedade sobre o assunto. Nasruas, nas greves e nos campos, agitavam-se os movimentos sociais,reivindicando,exigindo,radicalizando-se.

    Entretanto, em sentido contrrio, mobilizavam-se igualmente

  • resistnciasexpressivas.Aanlisedaseleiesde1962,cercadeumanoapsapossedeJango,querenovaramaCmaraFederal,partedoSenadoemaisumconjunto importantedegovernosestaduais,evidencioua foradasdireitasedaopinioconservadora.

    No CongressoNacional, embora o PTB e outros partidos reformistasmenores houvessem registrado avanos relevantes, o PSD e a UDNnucleavamamplamaioriaconservadora.Naseleiesparaosgovernosdosestados,seasesquerdastinhamconseguidoxitoemPernambucoenoRiodeJaneiro,elegendoMiguelArraeseBadgerdaSilveira,asdireitashaviameleito I. Meneghetti no Rio Grande do Sul e Ademar de Barros em SoPaulo. Sem contar o fato de que outros importantes estados, comoMinasGerais e Guanabara, j eram governados por lideranas conservadoras(MagalhesPintoeCarlosLacerda).Atraduopolticadessaseleies,noquedizrespeitosreformas,poderiaserassimresumida:elasnoseriamaprovadaslegalmentepelasinstituiesrepresentativas.

    Nasmargens da Lei, restara a expectativa de viabilizar as reformasatravsdorestabelecimentodosplenospoderespresidenciaisdeJango.Oplebiscitosobreaquesto,antecipadopara janeirode1963,resultara,defato, em uma vitria consagradora para Jango. Mas gerara, em seguida,grandes frustraes,porqueoPlanoTrienal formuladoporCelsoFurtadoeapresentadoporJangonochegouadurartrsmeses.Alis,apropsitodoplebiscito,sejaditoqueaeuforiadasesquerdascomorestabelecimentodopresidencialismoapenasempartesejustificava,poisavitriadevera-setambmaofatodequegrandeslderesconservadores,cominteressesnaseleies presidenciais de 1965, haviam apoiado o voto que derrubara oparlamentarismoexistente.

    De sorte que, em ins do primeiro semestre de 1963, o programareformista,queredesenhavaaperspectivanacional-estatistaemumnovopatamar de incorporao popular, aprofundando uma proposta deinsero autnoma nas relaes internacionais, estava atolado em umimpassehistrico.

    Asociedadedividira-se.Deum lado, amplos contingentesde trabalhadoresurbanos e rurais,

    setores estudantis de algumas grandes universidades pblicas, alm demuitos graduados das foras armadas. Omovimento pelas reformas lhesconferira uma importncia poltica considervel, e percebiam, com razo,queaconcretizaodelashaveriadeconsolidarumarepartiodepoderede riqueza que certamente lhes traria grandes benecios, materiais e

  • simblicos. Por issomesmo, acionavamosmecanismosdopactonacional-estatista, tensionando-os ao mximo, exigindo as reformas. Contudo, namedida em que essas no se concretizavam, desiludiam-se com a Lei epassavam, crescentemente, a defender o recurso fora, sintetizado naagressivapalavradeordem:reformaagrrianaleiounamarra.

    De outro lado, um processo de condensao de vrias correntes deoposio s reformas: das elites tradicionais a grupos empresariaisfavorveisaprojetosmodernizantes.Aliavam-setambm,nessaverdadeirafrente social, grande parte das classes mdias e at mesmo setorespopulares: pequenos proprietrios, proissionais liberais, homens deterno-e-gravata, empregados decolarinho branco, oiciais das forasarmadas, professores e estudantes, jornalistas, trabalhadores autnomos,enim, toda uma constelao de proisses e atividades beneiciadas pelodinamismodaeconomiabrasileira.

    Nesse conjunto extremamente heterogneo, muitos haviamacumuladoriquezas,privilgiosefavoresnointeriordonacional-estatismo.Nodesejavamdestru-lo,masno suportavama irrupodas lideranaspopulares que se faziam cada vez mais atuantes. Todos sentiamobscuramente que um processo radical de redistribuio de riqueza epoder na sociedade brasileira, em cuja direo apontava o movimentoreformista, iriaatingirsuasposies,rebaixando-as.EnutriamumgrandeMedo de que viria um tempo de desordem e de caos, marcado pelasubversodosprincpiosedosvalores, inclusivedosreligiosos.A idiadequeacivilizaoocidentalecristestavaameaadanoBrasilpeloespectrod ocomunismo ateu invadiu o processo poltico, assombrando asconscincias.

    Nunca seria demais recordar a importncia da conjunturainternacional da guerra fria, ento radicalizando-se mais uma vez,condicionando os acontecimentos. Um dos eixos do processo era, semdvida, a revoluo cubana, epicentro de vrios acontecimentos dedimenso mundial, entre 1960 e 1962: a invaso frustrada da ilharevolucionriaporexiladosinanciadosearmadospelosnorte-americanos;o lanamento da Aliana para o Progresso, com propostas reformistasmoderadasparaconteraondaradicale comunizante;acrisedosfoguetes,levandoomundobeiradeumaguerra atmica; a expulsodeCubadaOrganizaodosEstadosAmericanosnocontextodeumagrandeofensivaguerrilheiraemtodoocontinente.Ohlitoquentedarevoluoaqueciaanucadaselites latino-americanas, tirando-lhesosono.Complementavamo

  • quadro a vitria da revoluo argelina (1962), a retomada da guerra doVietn (1960) e o processo das independncias na frica (primeirametadedosanos60).

    Oprojetonacional-estatistabrasileirolevariatambm,comoemCuba, comunizao do Brasil? No seria esse um resultado inevitvel,considerando-se o protagonismo crescente dos movimentos sociais?Mobilizavam-seosdinheiroseosterosparaesconjurarofantasma.

    Eentoocorreuumanotvelinversodetendncias.Os movimentos e lideranas partidrios das reformas, que haviam

    originalmente construdo sua fora na luta pela posse de Jango e, emseguida, pelo restabelecimento dos plenos poderes presidenciais emoutras palavras, nadefesadaordemconstituda eda legalidade, tinhamevoludo, progressivamente, para uma linha ofensiva emque inclusive secontemplava o recurso violncia revolucionria. Sucediam-se discursosexaltados,ameaasveladas,umaretricagrandiloqente, freqentementesem correspondncia com a fora e a organizao reais dosmovimentossociais em curso. Com efeito, em larga medida, tudo, ou quase tudo, natradio nacional-estatista, ainda dependia da tolerncia, ou do apoio, doEstado.Descoladas das realidades, as imaginaes ardiam.Atmesmo osexperientes e moderados dirigentes do Partido Comunista Brasileiro,formalmente ilegal mas, de fato, atuando s claras, deixaram-secontaminar. Comeou a haver ali um desejo de ir s vias de fato, deprocurar umdesfecho. E, assim, quem estava em linhas de defesa passouaoataque,imaginandoterchegadoasuahora.

    Enquanto isso, do outro lado, notrios conspiradores de todos osgolpes, desde que se fundara aquela repblica em1945, osmesmos quehaviam se ativado na tentativa de impedir a posse de Goulart,encontravam-seagoradefendendoaconstituioea legalidadedaordemvigente. Falavam palavras ponderadas, aconselhavam ritmos lentos,invocavama razo e a religio, condenavamexcessos e radicalismos e seexaltavam pregando a moderao. Entretanto, armavam o bote, ou osbotes,porque,almdenumerosos,eramdiversos,heterogneos.E,assim,quemsempreatacarapassaraagoradefensiva,esperandoasuahora.

    Eafinalahorachegou,paratodos,emmarode1964.Depoisdelongosmesesdeindeciso,armadilhadonoimpassedeuma

    correlao de foras aparentemente equilibrada, Jango resolveu partirparaaofensiva.Disps-sealiderarumconjuntodegrandescomciosparaaumentarapressopelasreformas.OprimeiroserianoRio,oltimo,em

  • 1demaio,emSoPaulo.Planejou-seigualmente,nolimitedasatribuiesdopresidentedaRepblica,aediodedecretos,queimplementariam,naprtica,aspectosdoprogramadasreformasdebase.

    Oprimeiroenicocomciorealizou-seem13demarode1964.Umsucesso.Reuniram-setodasasesquerdas,maisde350milpessoas,nadefesa exaltada das reformas e na celebrao dos decretos assinados,expropriandopequenas reinariasparticulares e abrindo caminhoparaareforma agrria, ao prever a possibilidade de desapropriao de terrasimprodutivasaolongodoseixosrodoferrovirios.Umvalormaissimblicodo que real, mas indicando uma direo a da radicalizao e doenfrentamento.Asforasdesencadeadasdareforma.

    A reao veio imediata.Nodia 19, em SoPaulo, desenrolou-se umaprimeiraMarchadaFamliacomDeuspelaLiberdade.Asdireitasunidas,alarmadas,aparentandodeciso,tambmforamsruas,cercade500milpessoas.Outrasmarchasseseguiramemvriascidades,emprocessoathojemalestudado.Asforasdesencadeadasdacontra-reforma.

    Ondeaquilotudoiriaparar?Jango foi parar em uma pescaria, com a famlia, em uma de suas

    fazendasnoRioGrandedoSul,aproveitandooferiadodaSemanaSanta.Muito simblico. Inclusive porque essa atitude foi, em maior ou menormedida,compartilhadapeloconjuntodasesquerdas.Natradionacional-estatista,a iniciativadecisivasempreviriadoaltoedoEstado,emboraspodendo ganhar consistncia como apoio e amobilizao consciente dosmovimentos sociais. E, assim, s grandespalabras do comcio do 13 demaroseguiu-seumaespciedeletargia,esperadocomcioseguinte.Emvez de febris preparativos para um grande enfrentamento histrico,previsvel,umaexcursofamiliaraospeixes

    Masobarrildeplvoraeamechaestavaml,esperadeumfsforoaceso.

    Quem o acendeu foi uma reunio da Associao dos Marinheiros eFuzileiros Navais do Brasil (AMFNB). Proibida peloministro daMarinha,mantida pela diretoria da entidade, reunida, ainal, na sede do SindicatodosMetalrgicosdoRiode Janeiro.Ocenrio teveumardeEncouraadoPotemkin, do cineasta russo Eisenstein. Qualquer semelhana entre osfatosbrasileiroseoilmerussonoera,evidentemente,meracoincidncia, inclusive porque, como convidado de honra, compareceraJoo Cndido,oalmirantenegro, lder e nico sobrevivente da revolta daarmada,de1910,quandotivemostambmdireitoaosnossosPotemkins

  • Apartirdeento,ascoisascorrerammuitorapidamente.AcrisenaMarinhamudouo focodoprocessopoltico.Emvezdeum

    enfrentamento entre projetos polticos, entre reforma e contra-reforma,uma luta entre os defensores da hierarquia e da disciplina nas ForasArmadaseosquedesejavamsubverteressesvalores.UmdesastrepolticoparaJangoeparaasforasreformistas,cujodispositivomilitarcomeouaruir.

    Um ltimo discurso no Automvel Clube a uma assembliaradicalizadadesubalternosdasForasArmadasempurroudevezocarroladeiraabaixo.Condensaram-se todasas forasanti-reformistas,esperade uma iniciativa que, ainal, veio deMinas Gerais, atravs do estouvadomas decidido general Olmpio Mouro. Os demais dispositivosconspiratrios,depoisdealgumahesitao,acompanharam.

    Jango foi fugindo do cenrio aos soluos: Braslia, Porto Alegre,Montevidu, deixando atrs de si um rastro de desorientao edesagregao. Apavorado diante do incndio que provocara sem querer,horrorizadocomahiptesedeumaguerracivilquenodesejava,decidiunadadecidiresaiudaHistriapelafronteiracomoUruguai.Asesquerdasno ofereceram resistncia, salvo focos isolados, dispersados sem grandediiculdade. Jogavam todas as ichas no dispositivo militar de Jango e noprprio presidente. Quando o primeiro ruiu, em uma sucessoimpressionante de batalhas de Itarar, e o segundo fugiu, quedaram-seaparvalhadas,desmoralizadas.

    As direitas saudaram nas ruas a vitria imprevista. Uma grandiosaMarchadaFamliacomDeusepelaLiberdade,comcentenasdemilharesde pessoas, no Rio de Janeiro, comemorou o golpe militar e festejou aderrocada de Jango, das foras favorveis s reformas e do projetonacional-estatistaqueencarnavam.

    Semaindasaberexatamenteoqueiriaacontecer,opasingressaranalonganoitedaDitaduraMilitar.

    aNosanaisdahistriamilitar,Itararavulta,em1930,comoamaiorbatalhadocontinentelatino-americanoquenohouve.Comefeito, os contendores, partidrios e adversriosdamarchaque levariaGetlioVargas aopoder, depoisde se aprestaremparaumchoquedecisivo,retiraram-separaposiesdefensivas,semdispararumtiro,negociandoodesfechodeformapacfica.

  • Ditaduraoudemocracia:abuscadeidentidadeA primeira grande diiculdade dos vitoriosos foi deinir um programaconstrutivo,umaidentidadepolticapositiva.

    Comefeito,comojsedisse, formara-se,paraderrubarogovernodeJango,umaamplaediferenciadafrente,comdenominadorescomunsmuitogenricos: salvar o pas dasubverso e docomunismo, dacorrupo e dopopulismo. E restabelecer a democracia. Funcionando como cimento,unindo a todos, o Medo de que um processo radical de distribuio derendaedepoderpudessesairdoscontrolese levaropasdesordemeaocaos.

    Agora,obtidaavitria,colocava-seaprosaicaquesto:oquefazer?No foi muito fcil encontrar uma resposta comum. Havia os que

    desejavamsimplesmenteremoverJango.Depois, legitimarogolpeporumexpediente jurdico qualquer, devidamente aprovado pelo Parlamento.Ento, as Foras Armadas voltariam aos quartis, retomando-se a vidainstitucionalnospadresanteriores.Grandepartedospolticosemilitares,aderentesdeltimahorapropostadederrubar Jango,desejavamassimcircunscrever a interveno militar. Outros, no entanto, queriam umalimpeza mais funda. Assim, as eleies previstas para 1965 e 1966 nodariam chance para os agora vencidos recobrarem suas posies.Sintonizados comessepontodevista estavamos crculosquegravitavamem torno dos lderes civis do movimento, Ademar de Barros, MagalhesPintoeCarlosLacerda, entreoutros, quepretendiambeneiciar-se comosaldodaoperaomilitar.Ehavia, inalmente,osque imaginavam terumprojeto alternativo global situao existente. Pretendiam destruir, emseus fundamentos, a ordem e as tradies nacional-estatistas que Jangorepresentava, e pr no lugar uma alternativa internacionalista-liberal,centrada na abertura econmica para o mercado internacional, noincentivoaos capitaisprivados, inclusiveestrangeiros, emumaconcepodiferente do papel do Estado na economia, mais regulador do queintervencionista. Tais perspectivas tinham sido elaboradas no mbito doInstitutodePesquisaeEstudosSociais,oIPES,umaorganizaoquereunialideranas civis emilitares e quedesempenharaum importantepapel navitriadogolpe.

    Emmeioa essas contradies, apossedeRanieriMazzili, presidentedaCmara,foiummerorito.Todossabiamqueeleapenasestavaemumaposio de poder, mas no o detinha. Na desordem que se seguiu

  • derrocadadeJango,houveumaespciededisputasurdaentrelideranasedispositivosalternativos.Rapidamenteopoderefetivocondensou-seemtornodeumajuntamilitar,reunindochefesmilitaresdastrsArmasequeseautodenominaraComandoSupremodaRevoluo.

    Poucosdiasdepois,em9deabril,a juntaeditouumAto Institucionalqueinstaurouoestadodeexceonopas.Comeouadecretaracassaodemandatoseletivos,asuspensodedireitospolticos,pordezanos,almdeaposentadoriasdecivise reformasdemilitares,atingindocentenasdepessoas.Aomesmotempo,umprocessodecaasbruxasdesencadeava-se pelo pas afora, com prises, censura a publicaes e intimidaes detodaaordem.

    Nem todos que haviam apoiado a queda de Jango se reconheciamnaquelas aes. Havia uma certa diiculdade em deinir o que se estavapassando. Mas aquilo, decididamente, no parecia umgolpe na tradiolatino-americana. Os homens do Comando Supremo falavam emnome deumarevoluo, querendo explicitar a perspectiva de que no tinhampromovido uma interveno de carter passageiro, mas algo maisprofundo. O que, exatamente, poucos, talvez nem eles mesmos saberiamdizernaquelemomento.

    Oproblemaqueoprocesso todo fora consumadono emnomedeumarevoluo, mas no dos valores da civilizao crist e da democracia.Era necessrio, portanto, conferir legitimidade ao novo poder e deiniralgum com qualiicaes para assumir a presidncia da Repblica. Foinessas circunstncias que o nome do general Castelo Branco apareceu.Tinha prestgio entre seus pares e conexes com o IPES, o dispositivoorganizado que, naquele momento, era inegavelmente o mais articuladoemtermospolticos.

    A entronizao do homem, contudo, requereu percia e uma certalexibilidade.Ainal,depoisdecomplicadasnegociaes,ogeneralfoieleitopeloCongressoNacional,jdepuradopordezenasdecassaesdedireitospolticos.A seu lado, comovice-presidente, a igurade JosMariaAlkmin,velharaposadoPSD,amigoecorreligionriodeJuscelinoKubitscheck,queparticipou tambm da trama, pensando estar assegurando seu futuropoltico.

    Assim, desde aprpria gnese, aqueleprocesso armouum imbrogliomaior, que omarcaria at o im de seus dias. De um lado, em funo daproposta,nemsempremuitoclaramenteformulada,dedestruirpelaraizoantigo regime representado por Jango, o Ato Institucional, a exceo, a

  • revoluo,aditadura.Deoutro,emvirtudedanecessidadedeconsideraroconjuntodeforasquehaviamsereunidoparaaqueledesfecho,orespeitopelademocracia,porseusvaloreseporsuasformaseritos.

    CasteloBrancopareceu,naquelemomento,sintetizaressesdoisladosdiicilmentecompatveis.PorissofoieleitopeloCongresso.Mashouve,nosbastidores, ranger de dentes e imprecaes. Mesmo porque no erammuitososquesabiamcomclarezaquaiseramseusplanosparaopas.

    Asvicissitudesdointernacional-liberalismo

    Entreoshomenspolticosenasociedadeemgeral,comumapercepode que tudo possvel a partir do poder, sobretudo de um podercentralizado e forte por tradio. Na Histria, muitos lderes, inclusiverevolucionrios, aprenderam prpria custa que no bem assim. Sehouvesse necessidade, a trajetria do governo Castelo Branco seria umaboa ilustrao a respeito dos limites de um poder aparentementeincontrastvel.Onovogovernotinhaumperfil,eumprograma.

    O seuinternacionalismo rompia com as pretenses autonomistas donacional-estatismoeenveredavaporumapropostadealinhamentocomosEUA. Essa era a dimenso geopoltica de um projeto mais amplo deintegrao do Brasil no chamadomundo ocidental e de abertura do pasaos luxos do capital internacional. O que se traduziu em uma polticaeconmica ainada com as propostas do Fundo Monetrio Internacionalpara debelar a crise econmica brasileira, cujos aspectos inlacionistas(80% em 1963) e recessivos (1,6% de crescimento em 1963) foramcombatidos de acordo com os padresmonetaristas ortodoxos: corte dosgastos pblicos, conteno do crdito, arrocho dos salrios, em outraspalavras,eno jargousual,saneamentoinanceiro.Ogovernoresolveuosproblemas existentes com as empresas estrangeiras concessionrias deservios pblicos, atravs da compra da AMFORP, assinou um generosoacordo de investimentos, oferecendo amplas garantias aos capitais derisco, formulou uma lei de remessa de lucros convidativa e conseguiureescalonarasdvidasque tinhacomosbancosprivadoseas instituiesinternacionais, afastando o espectro da moratria. Havia um projetoambiciosodeestabilizaraeconomiaeas inanas, constituirumautnticomercado de capitais no pas, incentivar as exportaes e atrair vultososinvestimentosdecapitaisprivados.

    Ogovernonorte-americanoeas instituies internacionaisdecrditoacolheramcomgrandesatisfaoonovoaliado.Nofaltaramapoiopoltico

  • e crdito internacional para o Brasil. Contudo, seja pelas desconianasacumuladas,sejaporcondiesgeraisdesfavorveis,oluxo,esperado,decapitaisinternacionaisnoapareceu,frustrandoasexpectativasdeCasteloBrancoedesuaequipeeconmica.

    Emcertamedida,porcausadisto,apolticaeconmicanoapresentouresultadosconvincentes.Ainlaobaixava,masnoeradomada:86%em1964,45%em1965,40%em1966.Ocrdito,escasso,provocavaquebrasno comrcio e na indstria, ensejando reclamaes e crticas decomercianteseindustriais,quemobilizavamsuaspoderosasorganizaes,pressionando o governo. Quanto aos assalariados, tinham reajustes beminferiores aos ndices inlacionrios. Se a insatisfao provocada pelasituaono seexprimiaatravsdemovimentos sociais,bemcontroladospela dupla fora da represso e da desmoralizao poltica, ningumousariadizerqueonimoestivessefavorvelaogoverno.

    Do ponto de vista do iderio liberal, o governo ia muito mal daspernas.

    No foi possvel fazer desaparecerem as tradies controladoras eintervencionistas do Estado brasileiro, ao contrrio. Um outro aspecto-chave:paraalmdadegoladealgumascentenasdelideranassindicais,aestrutura corporativista, de trabalhadores e patres, permaneceu intacta.Comoseopesodetradiesmalcontroladasseimpusessesobreavontadereformadoradogoverno.

    Poroutrolado,arepressodesatadapunhaemfrangalhososvaloresliberaisedemocrticoscomosquaisogovernodizia-secomprometido.Ascentenas de cassaes e as operaes desastradas de censura causavamescndaloedesgaste,semfalarnocortejodeInquritosPoliciais-Militares(IPMs),completamenteincuosdopontodevistadaeliminaodasrazesdoregimeanterior.

    Formou-se,assim,umaatmosferadedescontentamento.Nosomenteentreosderrotados,claro,masmesmoemsetoresexpressivosdagrandefrentequehaviaapoiadoogolpe.Lderescivis importantesdomovimentovitorioso, como por exemplo Carlos Lacerda, preocupados com aimpopularidade do governo, com o qual eram identiicados pela opiniopblica,ecomaproximidadedaseleies,previstaspara1965e1966,squaisdeveriam se submeter, comearama criticar a poltica econmica epedir a cabea dos seus responsveis: Roberto Campos, ministro doPlanejamento e Otvio Gouvea de Bulhes, da Fazenda, no que seriamacompanhados por boa parte da grande mdia conservadora, porm

  • rebelde,sdeterminaesgovernamentais.Tais dissonncias geravam brechas por onde penetraram as crticas

    deestudanteseintelectuais.Os representantes e potentados do regime faziam a delcia de

    humoristas e cartunistas, que exprimiam amarmontante do desagradodasociedadediantedeumregimequeseconigurava,cadavezmais,comouma ditadura militar, sobretudo depois da prorrogao do mandato deCastelo Branco, em julho de 1964. No teatro, na msica de protesto, nocinema,nasartesplsticas, ecoavamasperplexidadeseasamargurasdeamplossetoressociais.

    Elas tambm seriam agitadas pelos estudantes universitrios. Porocasio do movimento golpista, estes encontravam-se profundamentedivididos,eapenasumapequenaminoriaarriscou-seadefenderoregimeque estava sendo derrubado. Contudo, o novo governo, com umatruculncia mpar, auxiliadopor algumasdezenas de IPMs, fora capaz deganhar a hostilidade da grande maioria. De forma molecular, formou-seumaoposiocrescente,vindodaasprimeirasmanifestaespblicasderepulsa ao governo. Tambm foram os estudantes universitrios queconstituram a principal base social do processo de rearticulao dasesquerdas organizadas, postas, todas, na clandestinidade desde abril de1964.

    Entretanto, de modo geral, todo esse movimento crtico tinha duasgrandeslimitaes.Aprimeira,eprincipal,eradeordemsocial.Asgrandesmassas de trabalhadores urbanos e rurais no tinham vez, nem voz,naquelas crticas. A maior parte simplesmente acomodou-se novasituao, devotando-se batalha pela sobrevivncia. Outros setores,maisparticipantes nas lutas pelas reformas de base, encontraram-sedesorientados e desmoralizados pelo desabamento de suas refernciaspoltico-partidriasesindicais.Dispersos,derrotados,rfosdelideranas,presas ou exiladas, quedavam-se mudos, atomizados, envolvidos naamarguradasilusesperdidas.

    Mas no havia apenas limitaes sociais. Do ponto de vista docontedo,ascrticasentoelaboradastinhamumanotvelpredileoparaosaspectosincongruentesdoregime,sobretudoparaosqueseprestavamaorisoeaodeboche.Falava-semuitonascontradiesenos impassesdogoverno.Apostava-se emumaespciedebeco semsada.Comoseopasestivesse embalado em uma caminhada inevitvel para uma exploso,metaforicamente comparado com um barril de plvora. A obtusidade

  • daquelesgorilasseriaincapazdedirigirpormuitotempoumpasgrandeecomplexo como o Brasil. Eles seriam obrigados a recuar, pela fora dascircunstncias, ou aquilo tudo explodiria, reabrindo horizontes para anica alternativa possvel: as reformas de estrutura. Formou-se, assim,sobretudoentreosmaisradicais,uma utopiadoimpasse,emumalinhadecontinuidade comoquehaviademais extremadona conjuntura anteriorao golpe militar. Com essa crena se organizaria a autodenominadaesquerdarevolucionria, ounova esquerda. Para ela, a ditadura era umatragdia,mastinhaumavirtude:adelimparoshorizontes,removendodacena poltica as tradiesmoderadas do PTB e do velho PCB de Prestes,soterrados sob os escombros da derrota poltica. Agora, no mais seriapossvel cultivar iluses. Asmassas se transformariam emclasses, e arevoluo,aautnticarevoluo,poderiadespontarcomohiptese.Nessasconstrues,distantesdadinmicadasociedade,era impossvelperceberque,noemaranhadocontraditriodaspolticasdaditadura,tomavacorpoumprocessodemodernizaoconservadora.

    O governo Castelo Branco encerrou-se emmeio a ondas de descrdito einsatisfao.Muitopoucosaindaacreditavamemseuscompromissoscomademocracia e com o liberalismo, sobretudo depois de um novo AtoInstitucional, o AI-2, editado sob sua direta responsabilidade depois daderrota eleitoral para os governos de Minas Gerais e da Guanabara em1965. Com o novo Ato, reinstaurou-se o estado de exceo, a ditaduraaberta. Com ele namo, Castelo Branco cometeu as arbitrariedades quelhepareceramnecessrias:milharesdecassaes(noimdeseugoverno,mais de 3.500 pessoas haviam sido punidas pelos atos de exceo),deposio de governantes legalmente eleitos, recesso do CongressoNacional,extinodospartidospolticostradicionais,imposiodeeleiesindiretas para governadores e presidente da Repblica, entre muitasoutrasdecisesdecarterditatorial.

    Atropelando a tudo e a todos, at mesmo a seus princpios,acumulandodesgastesemtodasasreas,CasteloBrancoacabouperdendoo controle da prpria sucesso, obrigado a aceitar a candidatura doministrodoExrcito,CostaeSilva.

    O general-presidente ainda tentou legar uma armadura jurdico-constitucional ao pas com uma nova Constituio, uma nova Lei deImprensaeumanovaLeideSeguranaNacional,masaaprovaoatoquede caixa por um Congresso encolhido no conseguiu legitimar seuspropsitos. certo que se realizaram as eleies legislativas de 1966,

  • quando os novos partidos, criados sombra do arbtrio, a AlianaRenovadora Nacional (ARENA) e o Movimento Democrtico Brasileiro(MDB), izeram sua estria.Mas nem commuito boa vontade se poderiadizer que foram eleies livres e democrticas, cercadas que foram porameaas e intimidaes de toda a espcie. No gratuitamente os votosnulosebrancosalcanariamproporesinditas.

    Desorteque,emseuocaso,ogovernoaparentavaumardefracasso.Associado represso e recesso, tornara impopular, sobretudo nosgrandescentrosurbanos,ummovimentoque,nonascedouro,dispunhadesubstancialapoio,emboraheterogneo.Entretanto,importantesublinharqueamaiorpartedasoposiesaogovernoeramoderada,noassumindoprogramas radicais. O que se desejava era o restabelecimento dademocracia, mas sem embates violentos ou o recurso fora, que, alis,nosarraiaisoposicionistas,erainexistente.

    1. O Comcio da Central do Brasil: reformas na lei ou na marra! Rio deJaneiro,13.3.1964.

  • 2. Uma semana depois, a reao: a Marcha da Famlia com Deus pelaLiberdade.SoPaulo,19.3.1964.

    3. Um brinde aos trs poderes da ditadura: Exrcito, Marinha eAeronutica.

  • 4.GregrioBezerra,presoetorturadoempblico.Recife,abrilde1964.

    5. Enterro do estudante Edson Luis de Lima Souto, 29.3.1968. O estopimqueacendeuoanode1968.

  • 6.Estudanteseclassemdiacontraaditadura:aPasseatadosCemMilem1968.

    7.Prafrente,Brasil!AbarragemdeItaipu.Inciodadcadade1970.

    8. Trs generais Mdici, Geisel e Figueiredo , quinze anos de poder:1969-1984.

  • 9.Aanti-candidaturadeUlissesGuimaresem1978:aoposiomoderadavaisruas.

    10.Anistiaampla,geraleirrestrita!Masaleide1979foiparcial,limitadaerecproca.

  • 11.GreveemSoBernardoofimeorecomeo,27.3.1979.Oprogramainternacionalista-liberal,apesardesuacoernciainterna,

    no vencera os obstculos. Fora mais fcil derrubar homens e cassarlideranas do que transformar estruturas ancoradas na tradio. verdade que a obra feita no fora completamente v. Todos os anistinham sido salvos, e bem postas certas bases econmico-inanceiras einstitucionais que serviriam aos governos seguintes. Contudo,mais de 20anosainda sepassariamparaqueasplataformasdefendidasporCasteloBranco, se reatualizassem, com chances de concretizao. Nesse sentido,Castelo Branco foi um pioneiro, ou um precursor, um neoliberal avant lalettre.

    Noimediato,asatenesvoltavam-separaonovogeneral-presidente,Costa e Silva, inclusive porque o homem vinha com promessas dereconciliaodemocrticaededesenvolvimento.

  • Repressoedesenvolvimento:amodernizaoconservadoraNodiscursodeposse,comoCasteloBranco,ecomoossucessores,CostaeSilva prometeu democracia, dilogo, ordem jurdica estvel e reformas. Eproclamou: Ametademeugovernoohomem.Subjacente,umacrticaaogovernoanterior,apenaspreocupadocomnmerosecifras.Tratava-sede apostar novamente no desenvolvimento, dando um basta recessoqueaprofundavaa impopularidadedoregime.Aorientao,deinidapelonovo ministro da Fazenda, Delim Neto, passou a enfatizar a queda dosjuros e das tarifas, a ampliao dos crditos, os incentivos aosinvestimentosesexportaes.

    Em1967,opasjregistrouumrazovelcrescimentode4,8%.Noanoseguinte, quase o dobro: 9,3%, tendo o conjunto da atividade industrialalcanadoopatamarde15,5%,puxadopelaconstruocivil,com17%decrescimento. A decolagem era produto da combinao das medidas dogoverno com uma srie de condies favorveis, internas (ociosidade doparque industrial, demanda reprimida, saneamento inanceiro executadopelo governo anterior) e externas (incio de umboom espetacular nomercado internacional: entre1967e1973,o comrciomundial cresceuaumataxade18%aoano).

    Entretanto, a insatisfao acumulada e represada durante ogoverno anterior tenderia agora a desaguar em protestos e movimentospblicos.

    Na prpria frente que protagonizou o golpe os antagonismos seradicalizaram. Amaior expresso do fenmeno foi a aliana entre CarlosLacerda, JooGoularte JuscelinoKubitcheck,aFrenteAmpla, formadaaolongode1967.Haviaoutras, comoaoposio liberaldeparte importantedagrandeimprensa(JornaldoBrasileEstadodeSoPaulo)ouapassagemdesetoresminoritrios,masexpressivos,da IgrejaCatlicaparaposieshostisaopoder, sejadenunciandoapolticaeconmica, sejaprotegendoeabrigandocorrentesradicaisdeoposio,comoasorganizaesestudantisuniversitriaspostasnailegalidade.

    Nareaintelectual,eramvisveisasmanifestaescrticasaogoverno,embora tambm se izessem presentes expresses, seno favorveis, aomenos complacentes, com o sistema poltico em vigor ou com a ordemvigente. Assim, ao lado da msica de protesto (Geraldo Vandr e Chico

  • Buarque, entre outros), sempre lembrada, preciso recordar outraspropostas incompreensveis a um gnero de oposio mais ortodoxa{CaetanoVelosoeo tropicalismo).Almdisso,havia todoumconjunto,degrandesucesso,demdiaedepblico,comoaJovemGuarda,deRobertoeErasmo Carlos, entre outros, para quem as lutas polticas passavamliteralmente ct. No eram nem contra nem a favor delas, muito pelocontrrio e nem por isso recebiam menos ateno ou aplausos. Domesmomodo, em relao ao cinema, h uma constante nfase em certosilmeseautores, comoOsfuzis,deRuiGuerra,ouDeuseoDiabonaTerrado Sol, de Glauber Rocha, uma cinematograia deresistncia, engajada,comosedizianapoca.Emboradealtaqualidade,atraareduzidopblico.Os campees de bilheteria eram Roberto Farias com um ilme sobreRoberto Carlos, melhor bilheteria de 1968, ou Jos Mojica Marins, cujosilmes de terror (por exemplo,Esta noite encarnarei no teu cadver)transformavam-se emgrandes sucessos.Ambigidadesquemerecemserconsideradas na avaliao dosmovimentos da opinio pblica, sobretudoporque as grandes massas populares, sem recursos para ir s salas decinema, embalavam-se nas novelas que ento iniciavam sua trajetriadesucesso,nosshowsdevariedadesenosprogramashumorsticosdasTVsquesmuitoraramente,edeformaindireta,ingressavamnasearadaslutaspolticas.

    De sorteque, a rigor, apesardaagitao crescente,opoder, apoiadoagora nos ndices de crescimento econmico reencontrados, parecia terreservas apreciveis para enfrentar o descontentamento existente nasociedade

    Masnofoioqueocorreu.J em 1967, primeiro ano do governo Costa e Silva, o dilogo

    prometidonofuncionoufacespressesdonicomovimentosocialativoo estudantil. Sucederam-se asmanifestaes reivindicatrias, demodogeral acompanhadas por uma represso desproporcional. Parecia, svezes, haver uma espcie de emulao entre, de um lado, a grandeimprensa liberal, quepassaraa fazeroposioaogoverno, e apolcia, deoutro, no sentido de exagerar a fora do movimento estudantil, unsquerendoenfraquecerogoverno,outros,provarqueeramindispensveis.

    Em1968,omovimentoestudantiltomouumoutrovulto,sobretudonoprimeirosemestre,culminandooprocessonachamadaPasseatadosCemMil, no Rio de Janeiro. No apenas se uniicaram as lutas dos estudantesuniversitrios, em torno de suas entidades representativas e de

  • reivindicaes concretas, mas tambm toda uma srie de categoriasdescontentes passou a se agrupar ao lado deles: escritores, religiosos,professores, msicos, cantores, cineastas, alm de outros setoresestudantis,comoossecundaristas.

    No conjunto, o movimento social dos estudantes tinha um marcadocartersindical,noqual se retomavamaspectosdoprogramadareformauniversitria, avanado no perodo anterior a 1964, e a questo dasliberdadesdemocrticas.Masasmanifestaespblicasagoraseinseriamno contexto doano quente de 1968, quando irromperam todas asrebeldias, eos sistemasdominantes em todoomundopareceramvacilar.Poroutrolado,organizaesrevolucionriasclandestinas,quecontrolavamquase todas as entidades representativas, apareciam nas manifestaescom propsitos que ultrapassavam o escopo prprio do movimento, egritavampalavrasdeordemdeenfrentamento,inclusivearmado.Apolciapoltica e mesmo alguns analistas, mais tarde, confundiram os doisprocessos,queprecisamserdeslindadosomovimentosocialestudantil,em sua autonomia, de carter basicamente sindical, e as organizaesrevolucionriasclandestinas,gruposdevanguarda,jdecididos,emfunodesuaevoluointerna,lutaarmadacomosistema.

    So essas organizaes, da esquerdarevolucionria, que, a partir de1965 (coma tentativa frustradado ten. cel. JefersonCardimdeconstituirumacolunamilitarapartirdoSuldopas)ede1966(comoinciodeumfoco guerrilheiro na Serra de Capara, abortado pela polcia antes deentrarematividade),eaindacommais foranosdoisanosseguintes,soessas organizaes que se lanaro s aes armadas. Eram pequenasaes, e minsculas as organizaes envolvidas, mas, pelo ineditismo, epelo simbolismo do desaio, provocavam uma imensa repercussomiditica ena sociedade.O fenmenodava continuidadeaoquehaviademais radical nomovimento anterior a 1964 e se nutria de duas grandesrefernciasjaquiindicadas:adautopiadoimpasse,ouseja,aidiadequeogovernonotinhacondieshistricasdeofereceralternativaspolticasao pas; e a de que as grandes massas populares, desiludidas com osprogramas reformistas, tenderiam a passar para expectativas e posiesradicaisdeenfrentamentoarmado,revolucionrio.

    Contratudoisso,ogovernoCostaeSilvajogoudeformapesada,comose mobilizasse canhes contra passarinhos, na comparao de FlorestanFernandes.

    Jnosegundosemestredoprprioanode1968,osestudantesdavam

  • claros sinaisdequeestavamrecuando.Somenteos setoresmais radicais,algunspoucosmilharesdejovens,mantinhamonimo,frenterepressodesencadeada. No conjunto, a grande massa relua. Estava disposta areivindicareadenunciar,masnoapontodearriscar-seemumvaletudode vida ou morte. O canto de cisne ocorreu quando da dissoluo, pelapolcia, do XXX Congresso da UNE, em Ibina, interior de So Paulo, emoutubrode1968,tendosidopresascentenasdelideranasestudantis.

    Nessaaltura,asoposiesliberaisemoderadasjestavamsemrumo,privadasdaFrenteAmpla, proibidadesdeomsde abril.Dispunhamdeum partido, o MDB, mas ele estava ainda profundamente desacreditado.Assim, tais oposies resumiam sua atividade a batalhas de retaguarda,semconseguirabalaroucindirasbasesmilitaresdoregime.

    Pois foi exatamente nesse momento que o governo intensiicou aofensiva. Tomando como pretexto a recusa do Congresso em autorizar oprocesso do deputado Mrcio Moreira Alves, acusado de um discursoultrajante s Foras Armadas, o general-presidente decretou o AI-5, emdezembro de 1968, fechando todos os parlamentos por tempoindeterminado, recobrando amplos poderes discricionrios ereinstaurando,demodoinaudito,oterrordaditadura.

    Foiumgolpedentrodogolpe.Os alvos visveis, os movimentos de estudantes e intelectuais, j

    estavam derrotados, em debandada, e eram totalmente incapazes desubverter a ordem.Na verdade, o aprofundamentodo estadode exceovisou muito mais os componentes insatisfeitos daquela grande eheterogneafrentequeapoiaraogolpede1964.

    A situao criada favoreceu, aparentemente, as propostas radicais eofensivas de luta. Chegara a hora das organizaes da esquerdarevolucionria?. No estado de exceo construdo pelo AI-5, com asmargens de liberdade e de crticas reduzidas a quase zero, era como seestivessem realizando as condies dautopia do impasse. O advento dotudo ou nada. Ou, como se dizia entre os revolucionrios, socialismo oubarbrie,semnuanasoumeios-termos.

    Assim, entre 1969 e 1972, desdobraram-se aes espetaculares deguerrilha urbana: expropriaes de armas e fundos, ataques a quartis,cercosefugas,seqestrosdeembaixadores.Osrevolucionrioschegarama ter momentos fulgurantes, mas, isolados, foram cedo aniquilados. Naseqncia, entre 1972 e 1975, seria identiicado, caado e tambmdestrudoumfocoguerrilheironaregiodoAraguaia,nafronteiradoPar,

  • Maranho e Gois, reunindo algumas dezenas de guerrilheiros, natentativamaisconsistentedaesquerdarevolucionria.

    A sociedade assistiu medusada a todo esse processo, como se fosseuma platia de um jogo de futebol. Ou espectadores de um ilme, ou deuma novela de TV. s vezes, muitos pareciam simpatizar com osrevolucionrios: foi o que aconteceu por ocasio do seqestro doembaixador norte-americano no Rio de Janeiro, em setembro de 1969,quando a populao divertiu-se com o embarao dos poderosos frente ousadiadeumpunhadodemoasederapazesbravosmeninosqueobrigaram a ditadura a consentir concesses normalmente impensveis:libertaode15prisioneirospolticose leituranosmeiosdecomunicaode manifestos revolucionrios. Mas, no raramente, outros tantosdenunciavam esses mesmos revolucionrios, apontando-os, e seusesconderijos,polcia.

    A rigor, para a grandemaioria da populao, aquela guerra, como achamavam os revolucionrios e a polcia poltica, era algo que noconseguiam compreender, quanto mais participar de forma direta. Aocontrrio do que os revolucionrios imaginavam, muito poucoscompartilhavamdesuasconvicesecertezas.Eelaseramindispensveispara que se consentissem os riscos e os sacricios inerentes, naquelemomento, ao desaio aberto da ditadura. Por outro lado, tambm no certo que houvesse simpatias pelos mtodos brutais empregados pelapolciapoltica,emboraasociedadebrasileirajtivesseentoaprendidoeathoje issocontinuaaconviver serenamentecoma torturamasdesdequeempregadacontraoschamadosmarginais.Desdequeessejogosujosepassasseforadasvistaselongedosouvidos,nascelasimundasdefedoredesangue,pormfechadasebemguarnecidasporisoporprovadesom,sempreseriapossvelsustentarqueosexcessoseramignoradoseasociedade,inocente.

    Demodoqueaquelalutadesigualacabouemmassacre.Encurraladospor uma polcia poltica crescentemente soisticada e proissional, osgrupos e organizaes revolucionrias, quase sempre inexperientes eamadores,dispondoapenasdavontadeedaousadia, foramescorraadosdahistria.Arigor, longedeconstituremforasradicalmenteinovadoras,como desejavam ser, no passaram de um ltimo suspiro das propostasofensivas construdas no mbito dos grandes movimentos sociaisanteriores a 1964. Autoritrios e soberbos, generosos e audaciosos, nolimitedaarrogncia,equivocaram-sedesociedadeedetempohistrico

  • epagaramcomaexistncia,fsicaepoltica,peloserroscometidos.sombradestaderrota,esobasasasdeterrordoAI-5,construiu-se

    umpasprsperoedinmico.Em um contexto internacional extraordinariamente favorvel

    (expanso acelerada do comrcio internacional e disponibilidade decapitais para investimento e inanciamento), que no se repetiria nasdcadas seguintes, e apoiado por um conjunto de medidas e incentivosestatais, o capitalismo brasileiro, continuando e aprofundando a linhaascendenteinauguradaem1967,deuumgigantescosaltoparaafrente.

    Milagreeretornodonacional-estatismo

    A sinfonia dos ndices anuais de crescimento do Produto Nacional Bruto(PNB) era docemsica para todos os que se beneiciavam: 9,5% (1970),11,3% (1971), 10,4% (1972), 11,4% (1973). Na ponta, a indstria,registrando taxasde14%anuais, comdestaqueparaasduas locomotivasdoprocesso:aindstriaautomobilstica,comtaxasanuaisde25,5%,eadeeletroeletrnicos, 28%. Mesmo os setores menos dinmicos, como o debens de consumo popular, apresentavam ndices inusitados: 9,1%, emmdia, para o perodo. As exportaes registraram aumentos de 32% aoano,oqueensejouumritmoequivalentedecrescimentodasimportaes.

    Mais do que aumentos quantitativos, promoviam-se mudanasqualitativas. Na indstria, as dimenses da petroqumica; na infra-estrutura, o fantstico desenvolvimento das telecomunicaes, integrandoo pas de uma forma nova, sem falar nas rodovias e no complexohidreltrico; nas inanas, a constituio de uma banca de nvelinternacional;naagricultura,odesenvolvimentodenovasculturas,comoadasoja;nocomrciointernacional,paraalmdojreferidocrescimento,aintroduo de uma proporo crescente de manufaturados na pauta deexportaes.

    Rompendo com os propsitos internacionalistas-liberais do governoCasteloBranco,oEstado,almdeincentivar,regular, inanciareproteger,intervinha ativamente nos mais variados setores, seja atravs detradicionaisegigantescasempresasestatais,comoPetrobrs,ValedoRioDoceeCompanhiaSiderrgicaNacional, sejaatravsdeoutras,aquedeualentocomoaEletrobrs,ouaindaaSiderbrs, imensa holding daproduo de ao , alm de estimular fuses e associaes do capitalprivado nacional e estrangeiro s quais, com freqncia, comparecia o

  • prprioEstado.CombasenoEstadoenoscapitaisprivadosnacionaiseestrangeiros,

    formou-se uma aliana de interesses e de recursos que exacerbaria ostraos esboados pelo governo de JK, na segunda metade dos anos 50.Nessas combinaes, o Estado aparecia, em todos os setores, como quehipertroiado no crdito, nas inanas, nos investimentos, na infra-estrutura,nasexportaes.

    O pas, comparado a um imenso canteiro de obras, foi tomado porincontida euforia desenvolvimentista. Martelavam-se osslogans otimistas,animando, encorajando, em mensagens positivas e ufanistas:Pra frente,Brasil;Ningummaisseguraestepas;Brasil,terradeoportunidades;Brasil,potncia emergente. Para os que discordavam, a porta de sada:Brasil,ame-o ou deixe-o. A conquista do tricampeonato mundial, no Mxico, em1970, foi uma bno para esses propsitos de exaltao patritica,inclusiveporquefoiaprimeiravezqueumcampeonatomundialdefutebolfoi transmitido ao vivo para todo o pas. O caneco, a taa Jules Rimet,definitivamenteconquistada,agoraeranosso,eofuturotambm.

    Nesse jardim de rosas, porm, nem tudo eram lores. Como disse opoeta,haviaespinhostambm.

    AdoenaeoposteriorafastamentodogeneralCostaeSilva,emjulho-agostode1969complicadacomaentronizaodeumajuntamilitar,emvirtudedoimpedimentodovice-presidente,PedroAleixo,legalmenteeleitoevidenciouocarterditadorialdoregime.Osmtodosatravsdosquaisonovo general-presidente foi escolhidoporuma indita votao entreos oiciais-generais tambm no convenceram. No adiantou muitoreconvocar o congresso, fechado desde dezembro de 1968, para eleger ogeneral Garrastazu Mdici, pois ningum tinha dvidas de que suaverdadeirauno tinhasido feitapeloalto comandodasForasArmadas.Ele j estava escolhido, antes de ser eleito.O prejuzo que isso causava imageminternacionaldopaseraagravadopelasdenncias,cadavezmaisnumerosaseconsistentes,doempregodatorturacomopolticadeEstado.Os desmentidos do governo no bastavam frente s evidncias dasdenncias, trombeteadas pelos pequenos grupos de exilados no exterior os mosquitos ferroando o elefante. Nesse particular, David estavavencendoGolias.

    Emumoutroplano,osxitoseconmicosnoconseguiamdisfararasdesigualdadessociaisquecomearam,noincioaindadosanos70,aseremdenunciadas por insuspeitos organismos internacionais. Como disse o

  • prprio general-presidenteMdici, emumato falho, ou emumacessodesinceridade, embora a economia estivesse bem, o povo, ou pelo menosgrandepartedele,iamal.

    Apropagandaoicialanunciavaperiodicamenteprogramasoupacotessociais, mas havia qualquer coisa ali que no funcionava. Os pacotessimplesmentenoengrenavam,ounosedeixavamabrir.OProgramadeIntegraoNacional(PIN),combasenaconstruodemaisumagigantescaestrada, a Transamaznica, e na instalao de centenas de milhares decamponesessem-terranordestinosemagrovilas,acaboutransformadoemmais um plano de atrao de grandes empresas para investimentosagropecurios. Em 1974, quando o programa foi deinitivamentecancelado, em vez da promessa inicial de um milho de famlias, haviaapenas cerca de 6 mil instaladas. O ambicioso projeto de erradicar oanalfabetismo, o Mobral, cuja meta era alfabetizar 8 milhes de adultosentre1971e1974,acaboutambmsendomelancolicamenteabandonado,muitosanosmaistarde.OsalfabetizadosdoMobralnosabiamler,sequerassinar o nome. O mesmo destino tiveram o Plano Nacional de Sade, oPISPASEP,oProjetoRondoneoutrosmais,comoatentativadeestruturarum sistema nacional de instruo moral e cvica que orientasse aquelasgentes nos bons caminhos da moral e dos bons costumes. Na terra deMacunama,eraumaincongruncia.

    De sorte que, no que dizia respeito dimenso social, o esquemacomeouasetornarrepetitivo:annciosbombsticos,grandiososplanoseconcretizao moina, ou nula. A montanha, apesar de estremecerfuriosamente, s paria ratos, sucessivos ratos, cada ummenor do que ooutro.

    Nas eleies legislativas de 1970, houve o troco: novamente, umaenorme proporo de votos nulos e brancos, cerca de 30%, ainda emmaior nmero do que em 1966. Entretanto, o regime confortava-se emsuas maiorias, ganhas sobretudo no Brasilprofundo e nos grotes dosinterioresedascidadesmenores.

    Mas seria um erro, no raramente cultivado, o de estabelecerpolaridades entre um Brasil arcaico, favorvel ditadura, e um Brasilmoderno, partidrio do progresso e da democracia. Inclusive porque aditadura, e suas agncias, e seusprodutos, transformaram-se emumdosmaispoderososfatoresdemodernizao.

    Averdadequeomilagre, emboragerandodesigualdadesde todootipo, sociais e regionais, fora capaz de beneiciar, de modo substantivo,

  • muitos setoresmodernos. Considerveis estratos das classesmdias, porexemplo,comacessoaocrditofartoefcil,puderamadquirir,emmassa,a casa prpria e o primeiro automvel. Os funcionrios pblicos,principalmente os das estatais, viveram tambm um perodo bastantefavorvel, apoiados em toda uma srie de planos assistenciais, como separaelesnotivessemdesaparecidoastradieseasbenessestpicasdatradio nacional-estatista. Do mesmo modo, importantes setores detrabalhadores autnomos e operrios qualiicados, sobretudo osempregadosemgrandesempresasdecapital internacional,beneiciavam-se de condies particulares, de modo nenhum extensivas a toda asociedade. Aquela impressionante massa de produtos, basicamenteconsumidos no mercado interno, estava melhorando, certamente, ascondiesdevidadeseuscompradores.

    Havia, claro, enormes sombras na paisagem, que os holofotes dapublicidade no conseguiam esconder. Os pequenos posseiros eproprietriosdeterra,queperderamsuapoucaterranoprocessoterrvelda concentrao fundiria e viraramdesterrados em seuprprio pasosbias-frias.Ostrabalhadoressemqualiicaoadaptadasededelucrodos capitais, que icavam margem, desabrigados e desprotegidos noambiente cada vez mais esgarado de um tecido social cujas redes deproteo (sade e educao pblicas) se deterioravam cada vez mais.Constituamvastos contingentes,perdidos, semeiranembeira, chamadosequivocadamente de excludos, porque eram legtimoproduto do sistemae, como tal, estavam nele incluidssimos, embora cada vez maisaparecessemcomodescartveis.

    Eparaalmdosganhosmateriaisquedeformanenhumapodemsernegligenciados, mas que freqentemente no so decisivos, havia umprocesso nomensurvel em rguas ou emnmeros, o da integrao dopaspelasredesdeTV,principalmentepelaRedeGlobo.Aestavao lazerfundamentaldapopulao.Omundodasnovelas,principalmente.Eodasvariedades, e o do telejornalismo. Aquela teia conseguiu estabelecer umanotvelinterlocuocomasociedade,confortando,integrando,embalando,anestesiando,estimulando,modernizando.

    Osanos70,consideradoseaperreadoscomoanosdechumbo, tendema icarpesadoscomoometaldametfora, carregandoparaasprofundasdo esquecimento amemria nacional. Eles precisam ser revisitados, poisforamtambmanosdeouro,descortinandohorizontes,abrindofronteiras,geogricas e econmicas,movendo as pessoas em todas as direes dos

  • pontoscardeais,paracimaeparabaixonasescalassociais,anosobscurosparaquemdescia,mascintilantesparaosqueascendiam.Naquelasareiasmovedias havia os que afundavam, mas tambm os que emergiam,surgidos de todos os lados, desenraizados, em busca de referncias,querendo aderir. Anos prenhes de fantasias esfuziantes, transmitidaspelasTVsemcores,alucinadosanos70,comtigresetigresasdetodasortedanandoaosomdefrenticosdancingdays.

    Nestepasformou-seumapirmidesocialcheiadedistores,emquea concentrao de renda e de poder chamava a ateno do observadormais desatento. Mas a anlise detida dos dados j ento mostrava aconstituio de uma estrutura complexa, de forma nenhuma redutvel polaridadeextremadadeumtopomilionrioeumabasemiservel.certoqueo topo, j enriquecido, enriqueceu-se aindamais. E abasemiservel,mais miservel se tornou. Mas, entre esses extremos, havia camadas deamortecimento, e a existncia delas conferiu sade, estabilidade e vigorquelecorpo,cujacabeaestavaeaindaestnasricasavenidasdeMiami,enquantoospschafurdamnasmaismiserveisfavelas.

    AscontradiesdoMilagre

    Oltimogovernodaditadura,odogeneralGeisel, iniciadoem1974, teveque sehaver comumaconjunturaexternadistintaedesfavorvel.Em1971, os EUA j tinham virado a mesa do pacto de Bretton Woods,subvertendo o sistema monetrio internacional. Em 1973, houve oprimeirochoquedopetrleo,multiplicandoopreodobarrilpordez.Maistarde, viria um segundo, com conseqncias diceis para o Brasil, aindamuito dependente das importaes petrolferas. Um desastre. Por outrolado, omercado internacional entrouem fasede grande turbulnciaede declnio. Os principais pases capitalistas se retraram, envolvidos emprocessosderecesso,protegendo-seunsdosoutros,exatamenteoopostodoqueocorreraentre1967e1973.

    A ditadura brasileira, contudo, preferiu uma poltica de fuga parafrente. Lanouo II PlanoNacional deDesenvolvimento (PND), commetasambiciosas: perfazer uma autonomia semiconstruda no processo domilagre.Opas era iguradocomouma ilhadeprosperidadeedepazemum mundo de crise e de convulses. Havia que caminhar para frente.Completar o ciclo iniciado nos anos 30, conquistar a autonomia, com oEstado, e as empresas estatais, como fatores propulsores de umdesenvolvimentoquehaveriadesedarsegundoosinteressesnacionais.

  • Em relao ao mundo intelectual e artstico, o governo deiniu umaambiciosa poltica de estmulo aos cursos de ps-graduao, visando odesenvolvimento autnomo cientico-tecnolgico. Alm disso, ativou, emvriosnveis, agnciasestataisde incentivoeapoio (Embrailme,Funarte,Servio Nacional de Teatro/SNT). Juntamente com a Rede Globo, foipossvel estabelecer conexes que atraram inmeros intelectuais empadressemelhantesaosdoEstadoNovo.Paraalguns,oBrasiljeraumapotncia emergente. Para outros, mais otimistas, uma grande potncia, ooitavoprodutonacionalbrutonomundo,dizia-secomorgulhonoscrculosdopoder,namdiaenosbotequins.

    Os mais pessimistas diziam que aquilo no poderia durar, mas,enquanto durou, assistiu-se ao exacerbamento da adeso da ditadura aaspectos essenciais do programa nacional-estatista. O general Geisel,emboraformalmenteiliadoaochamadogrupocastelista, delenopareciaterherdadonenhumvestgiodoque fora aperspectiva internacionalista-liberal,pelomenosnombitodapolticaeconmica.

    Na poltica externa ouviam-se tambm acordes autonomistas.Reconhecimento imediato da independncia de Angola, apesar dasinclinaes esquerdistas do partido governante, oMovimento Popular deLibertaodeAngola/MPLA;aberturaderelaescomerciaiscomaChina;aproximao agressiva com a Comunidade Europia, com as visitas deGeisel Inglaterra e Frana, resultando no acordo nuclear com aAlemanha e desagradando profundamente o grande irmo e parceiro doNorte; denncia do acordomilitar com os EUA, irmado em 1952, que jno tinha tanta importncia prtica, mas nem por isso a ruptura seriamenossimblica,inclusivepelamaneirabruscacomoadecisofoitomada,comosehouvesseavontadedeenviarumrecadoeexplicitarumavontadepoltica prpria. Pragmatismo responsvel, alinhamento no-automtico,fosse como fosse chamada, a poltica externa fazia recordar os velhostemposdeVargas,JnioeJango.

    No plano poltico-institucional, o governo Geisel deiniu a aberturalenta,seguraegradual, oqueequivaliaaumaretirada,aoperaomilitarmais delicada, como se sabe. Qualquer descuido, e a retirada viradebandada. Era necessrio o maior cuidado para que as coisas sepassassememordemepaz.ParaissoGeiselcontavacomagrandemaioriadaimpropriamentechamadaclassepoltica,comosmoderadosdetodososbordos e com a ampla maioria da sociedade, (sobretudo dos grandescentros urbanos), hostil ditadura, mas tambm adversria de polticas

  • radicais de enfrentamento, como icara demonstrado pela atitude deneutralidade passiva, assumida em relao s aes e lideranasidentificadascomalutaarmada.

    Masfoinecessrioenfrentarresistncias.De um lado, os chamadosbolses sinceros, mas radicais. A tropa de

    choque da ditadura. A chamada comunidade das informaes. Em outraspalavras,apolciapoltica.Alisereuniamanimaisdevriostipos.Haviaosoiciais treinados nos soisticados servios de inteligncia e contra-informao,acostumadosalereaanalisartextospolticoseorganogramasde organizaes clandestinas, e a dar instrues que viabilizassem atorturacomomtododecoletadeinformaes.Esseshomenstrabalhavamemsalasclimatizadasenosemisturavamaotrabalhosujoedegradanteda tortura, embora o sucesso dessa deles dependesse. Eram homensnormais,naquelesentidoemqueHannahArendt faloudabanalidadeedanormalidadedoMal.Ehaviatambmfacnorasdetodootipo,semfalarnosbate-paus obtusos, e nos que se haviam corrompido nos submundos docrime e da contraveno, protegidos pela impunidade dos chamadoshomensdosistema.Essagente,desdeo incio,nuncaviucombonsolhosapolticadeabertura.Esepreparouparacombat-la.

    No outro extremo, os remanescentes das esquerdas revolucionrias.Estavamdispersos, nas cadeias, nos exlios sem im, oumeioperdidosnopas, nas margens, mas incomodavam, com campanhas permanentes dedennciasdaditadura,deseumodeloeconmicoe, sobretudo,da torturacomo poltica de Estado, o que horrorizava a opinio internacional. Essasesquerdas, em grande maioria, j haviam abandonado a perspectiva doenfrentamento armado, ou por terem mudado de convices, ou porreconheceremaesmagadorasuperioridadedoinimigo.Mantinhamalgumainluncianamdia,nosmeiosacadmicos,naintelectualidadeemgeral,e,um pouco mais tarde, se organizariam nos comits de anistia, exigindocontas da ditadura, o desmantelamento dos aparelhos repressivos e umaanista ampla, geral e irrestrita. Nesse campo, embora faltassem foras,aindasobravamenergiaeousadia.

    Finalmente, entre esses plos opostos, havia espao para os amplossetores das oposies moderadas. Haviam praticamente desaparecido sombra da exceo instaurada pelo AI-5 e no meio do tiroteio entre apolcia poltica e as esquerdas revolucionrias. Entretanto, depois dadestruiodessasltimas,recobraramvigor.Naseleiesde1974,jsobogoverno Geisel, agrupadas em torno do MDB, registrariam uma grande

  • vitria eleitoral e poltica, arrasando o partido oicial, a ARENA, nosprincipaiscentrosurbanosdopas.Passaramentoatervoznocaptulo,esuas concepes sobre a abertura, seu sentido e ritmos, no seriam asmesmasdasdogovernomilitar.

    Com todas essas vozes dissonantes teve que se haver o projeto deaberturadeGeisel.Eofariamodadaditadura,aoscachaes.Deuforapolciapolticanadestruiodosltimos focosclandestinos,constitudospeloPCBepeloPCdoB, cujasdirees foram impiedosamente torturadas,massacradas oudesaparecidas. Finalmente, veio a hora do basta, j em1976,quandodademissodogeneralEdnardoDvila,comandantedo IIExrcito,emcujasdependnciasseriamassassinadosojornalistaVladimirHerzog e o operrioManoel Fiel Filho. Foi ummarco. A polcia poltica jnoestavaautorizadaamatar.Naseqncia,veioademissodoministrodoExrcito,SylvioFrota,queseaprestavaafazercomGeiseloqueCostaeSilvafizeracomCastelo.Outromarco:aaberturaeraparavaler.

    MasnostermosdogeneralGeiseledesuaequipe.Assim,paraconteraavalancheemedebista,ogovernodispsdeengenho, truculnciaearte:fez aprovar a chamada Lei Falco, que, na prtica, acabava com apropagandaeleitoralgratuitapelaTV,poderosoinstrumentodasoposiespara divulgar idias e candidatos. Depois, atravs dopacote de abril, em1977, cassou mandatos de lderes moderados, instituiu a abominveliguradosenadorbinico(1/3dossenadoresdarepblicaseriameleitosde forma indireta), redimensionou os coeicientes eleitorais, favorecendoosestadosemqueaARENA,opartidodogoverno, conservavamaioria, egarantiucondiesparaumasucessotranqila,naiguradogeneralJooBaptista Figueiredo, escalado, com mandato ampliado, para ser o ltimogeneral-presidente.

    Todos esses dispositivos estabilizaram o poder e permitiram aliberalizao gradativa dos controles sobre a mdia, com a suspenso dacensura aos jornais apartir de1978.E foi possvel tambmamortecer, emesmo neutralizar, a vitria prevista do MDB nas grandes cidades naseleiesdesseltimoano.

    Nessanovaatmosfera,desenvolveram-seasprimeirasmanifestaespblicas desde 1968. O movimento estudantil e a luta pela anistiaocuparamespaosapartirde1977,agitandoreivindicaesdemocrticas.Em1978entrariaemcena,inesperadamente,omovimentooperrio,comagrevede SoBernardo.Nada ainda estavamuito claro, como s vezes seimagina hoje, de forma retrospectiva, ao se dizer que a abertura

  • caminhava inevitavelmente para o im da ditadura. Ao contrrio: haviamuitas dvidas no ar, e tambm muita represso, no se devendoesquecer que os temveis aparelhos da polcia poltica ainda estavamintactos,espreita.

    O AI-5, por deciso da prpria ditadura, expirou no ltimo dia de1978. Assim, com o ano novo, em 1979 o pas reingressou no Estado dedireitoaindaprecrioporqueapoiadoemumaConstituio imposta, ade1967, emuma emenda constitucional espria, arrancada, sob ameaa,em 1969, e em toda uma constelao de leis e decretos que formavam,como se chamou desde ento, um verdadeiro entulho autoritrio. Mas aditaduraabertajnoexistiamais.Opaseasociedaderespiravam.

    Aanistiaeareconstruodamemria

    ALeidaAnistia,aprovadaemagostode1979,consolidouessequadro.Nodebate que se instaurou a seu propsito, quando a sociedade brasileirateveumaprimeiraoportunidadedeexercitaramemriasobreopassadorecente, airmaram-se algumas interessantes (re)construes histricas,verdadeirosdeslocamentosdesentidoqueseixaramnamemrianacionalcomo verdades irrefutveis, correspondentes a processos histricosobjetivos,enoaversesconsideradasapropriadasporseusautores.

    Um primeirodeslocamentodesentido,promovidopelospartidriosdaAnistia,apresentouasesquerdasrevolucionriascomoparteintegrantedaresistncia democrtica, uma espcie de brao armado dessa resistncia.Apagou-se, assim, a perspectiva ofensiva, revolucionria, que haviamoldado aquelas esquerdas. E o fato de que elas no eram de modonenhum apaixonadas pela democracia, francamente desprezada em seustextos.

    Os partidrios da ditadura responderam altura, retomando odiscurso da polcia poltica e reconstruindo as aes armadas praticadascomoumaautnticaguerrarevolucionria, naqualasprpriasesquerdasrevolucionrias,emcertomomento,acreditaram.Combasenessatese(sehouve umaguerra, os dois lados devem ser considerados), foi possvelintroduzirnaLeidaAnistiadispositivosquegarantiramaestranhaigurad aanistia recproca, em que os torturadores foram anistiados com ostorturados.

    Finalmente, teria lugar uma terceira reconstruo: a sociedade sereconigurou como tendo se oposto, sempre, e maciamente, ditadura,

  • transformadaemcorpoestranho.Redesenhou-seoquadrodasrelaesdasociedade com a ditadura, que apareceu como permanentementehostilizada por aquela. Apagou-se da memria o amplo movimento demassasque, atravsdasMarchasdaFamlia comDeus epelaLiberdade,legitimousocialmenteainstauraodaditadura.Desapareceramaspontese as cumplicidades tecidas entre a sociedade e a ditadura ao longo dosanos70,eque,nolimite,constituramosfundamentosdoprprioprocessoda abertura lenta, segura e gradual. Um poltico imaginativo empregouentoumacuriosametfora:opovobrasileiro,macunaimicamente,comeralentamente a ditadura, mastigando-a devagarzinho, a digerira e sepreparava agora para expeli-la pelos canais prprios. Um verdadeiroachado.Asociedadebrasileiranosresistiraditadura,masavencera.Difcilimaginarpoomelhorpararevigoraraauto-estima.

    Eassim,mesmoquemuitopoucagenteosoubesse,reatualizou-senoBrasil contemporneo a igura de Ernest Renan, o grande pensadorfrancs de ins do sculo XIX que dizia, com agudo senso prtico e semnenhum cinismo, que, freqentemente, para a boa coeso e harmoniasociais,maisvaleconstruiroesquecimentodoqueexercitaramemria.

  • maneiradepsfacio:reflexessobreaditaduraAs sociedades tm semprediiculdades emexercitar amemria sobre assuas ditaduras, sobretudoapartirdomomentoemqueassumemcdigosdevaloresopostosaosprincpiosdoestadodeexceo.

    No se trata de algo especico de nosso pas. Os franceses tm, athoje, diiculdades em se relacionar com a Frana de Vichy. E o mesmoocorre com os alemes, quando pensam em Hitler, ou com os russos,quandorecordamStalin.

    At que ponto o exerccio damemria no passa de autolagelao?Noseriamelhoremaissaudvelcultivarapazdasconscincias?Eolharparafrente,deixandoopassadosossegado,easferidas,cicatrizando?

    Entretanto,halgunsnsqueprecisamserdesatados,ou, aomenos,compreendidos. E isso no diz respeito apenas ao passado, mas aopresentee,sobretudo,aofuturo.

    AditadurareatualizoueexacerbounoBrasilaculturaautoritria.Nobastou uma roupa nova a Constituio de 1988para resolver essedesaio.Queodigamospataxsqueimados,ospresosdeCarandiruetodaa legio de cidados de segunda, terceira e quantas classesmais houverabaixo da primeira, vagando nasmargens do sistema. Entretanto, foi emplenaexceo,nomaisfundodosexlios,queasesquerdasdescobriramosvalores democrticos. Veremos se no os esquecero, ou no tero delesuma abordagem meramente formalista, perdendo a perspectiva damudanaparasetornaremadministradorasdaordem.

    Aditadurareatualizoueexacerbouas tradieseaculturanacional-estatista. curioso ver como as esquerdas brasileiras ainda fazemacrobacias para rejeitar aquela sem negar essa. E como os liberaisfreqentementeempregammtodosdaquelaparadestruiressa.

    A ditadura, inalmente, instaurou-se sob o signo do Medo. Medo deque as desigualdades fossem questionadas por um processo deredistribuioderendaedepoder.Ora,atravsdosanos,mantiveram-seeseconsolidaramessasdesigualdades.Notersidoessaamaiorobradaditadura? Entretanto, o questionamento dessa obra continua provocandoMedo.Eopavordocaos.

    Ocaosouoretornoaformasautoritrias.Umarelexomaisacuradae sistemtica sobre os tempos da ditadura talvez seja um antdoto para

  • escapar desse maldito dilema. Pronto a ressuscitar to logo apareamnovasameaasordem.

  • Cronologia1961

    25agoRennciadeJnioQuadros7 set Posse de Joo Goulart nos termos do regime parlamentarista,

    aprovadopeloCongressoem2set.(primeiro-ministro:TancredoNeves).

    19636janPlebiscitoconsagravoltaaoregimepresidencialista.

    196413marGrandecomcionoRiodeJaneiropelasreformasdebase,com

    apresenadeJooGoulartedasprincipais lideranaseorganizaesdasesquerdasbrasileiras

    19marMarchadaFamliacomDeuspelaLiberdadeemSoPaulo31marComeaomovimentomilitarcontraopresidenteJooGoulart,

    sobiniciativadogeneralOlmpioMouro9 abr O auto-intitulado Comando Supremo da Revoluo (junta dos

    trsministrosmilitares) edita um Ato Institucional, instaurando o estadodeexceo

    13agoPublicaodoPlanodeAoEconmicadoGoverno/PAEG.

    196527outAtoInstitucionaln.2.Extinodospartidospolticos.

    196724janPromulgada,peloCongressoNacional,novaConstituioparao

    pas,estabelecendoeleiesindiretasparapresidentedaRepblica27 jun Programa Estratgico de Desenvolvimento (PED) anunciado

    peloministrodoPlanejamento,HlioBeltro.

    1968Comeaaseconfiguraromilagreeconmicobrasileiro(at1973)26junManifestaodosCemMil,noRiodeJaneiro16julGreveoperriaemOsasco,SoPaulo12outDissoluodoCongressodaUNE,emIbina,SoPaulo.Priso

    decentenasdelderesestudantis13 dez Ato Institucional n.5. Dissoluo do Congresso Nacional por

    tempoindeterminado.

  • 19694 set Seqestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick, no

    RiodeJaneiro.Ocomandoresponsvelpelaaoreivindicaalibertaode15presospolticosemtrocadavidadoembaixador.OspresosiroparaoMxico

    22 out Reaberto o Congresso Nacional para sagrar o general EmlioGarrastazu Mdici como novo presidente da Repblica (vice-presidente:AlmiranteAugustoRademaker)

    4novMortedeCarlosMarighella.

    197015outEleies legislativasemtodoopas.Altos ndicesdeabsteno

    evotosnulos.

    197117setMortonointeriordaBahiaocapitoCarlosLamarca.

    1972FocodoAraguaiadescoberta,resistnciaecerco.Oaniquilamentosedariaem1975.

    197415marAssumeapresidnciadaRepblica o generalErnestoGeisel

    (vice-presidente: general Adalberto Pereira dos Santos). Poltica deabertura

    10setOgeneralErnestoGeiselenviaaoCongressoNacionalo IIPlanoNacionaldeDesenvolvimento(PND)

    15 nov Eleies legislativas em todo o pas. Vitria do MovimentoDemocrticoBrasileiro(MDB)nasgrandescidades.

    19771 abr O general Geisel decreta o recesso do Congresso Nacional e

    editaumasriedemedidas,inclusiveumareformadoJudicirio(oPacotedeAbril)

    15 junAprovadapeloCongressoNacionalemendaconstitucionalqueinstituiodivrcionopas.

    197812maiGreveoperriaemSoBernardo,iniciadapor1.600operrios

  • daSaab-Scania.

    19791janDeixadevigoraroAtoInstitucionaln.528agoSancionadaaLei

    deAnistia

    1980dez/jan/fevVerodaAnistia.

  • SobreoautorDaniel Aaro Reis Filho nasceu no Rio de Janeiro em 1946. Nos anos 60esteveentreosqueamavamarevoluo,efoiporissoperseguidoepresopela ditaduramilitar.Mas seus companheiros o salvaram emboa hora e,graasaeles,pdevoarparaaliberdade,emjunhode1970.Impedidodefazerhistria,resolveuestud-la,massmuitomaistardeaprenderiaqueelanotemliesadar.Mesmoassim,graduou-senadisciplinaetambmnelafezseumestrado,nauniversidadedeParisVII(1975).

    DescrentedasconspiraesemParis,partiuparaMoambique,ondefoi professor de histria contempornea e chefe do Departamento deHistria na Universidade Eduardo Mondlane (1976-1979). Desde entoespecializou-se em histria das revolues socialistas no sculo XX e dasesquerdasnoBrasil.

    De volta ao Brasil, foi aprovado em concurso para professor dehistria moderna e contempornea na Universidade Federal Fluminense(UFF), em 1980, onde aprende e ensina at hoje. Doutorou-se em histriapelauniversidadedeSoPaulo(USP),comumateseautobiogricasobreatrajetriadasorganizaescomunistasnoBrasil.Publicoutrabalhossobreas revolues socialistas naRssia, na China e naAlemanha (Brasiliense,1981-1984), uma crnica de viagem ao socialismo perdido (De volta Estao Finlndia, Relume-Dumar, 1993) e uma histria geral dosocialismo sovitico(Umarevoluoperdida, Fund.PerseuAbramo,1997).Sobre a histria da esquerda brasileira, publicou Imagens da Revoluo(MarcoZero,1985),1968,apaixodeumautopia (Espao&Tempo,1988;reed.,FGV,1998)eARevoluofaltouaoencontro(Brasiliense,1990).

    Tornou-se professor titular de histria contempornea da UFF, em1995,comumatesesobreacrisedosprojetossocialistascontemporneos.

    Depoisdoatuallivro,selhederemchance,temdoisdesaios:escreversobreosencontrosedesencontrosentreliberalismoesocial-democraciae