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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE CINCIAS ECONMICAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DESENVOLVIMENTO RURAL
ANTONIO JOO CASTRILLON FERNNDEZ
DO CERRADO AMAZNIA: AS ESTRUTURAS SOCIAIS DA ECONOMIA DA SOJA EM MATO GROSSO
Porto Alegre 2007
ANTONIO JOO CASTRILLON FERNNDEZ
DO CERRADO AMAZNIA: AS ESTRUTURAS SOCIAIS DA ECONOMIA DA SOJA EM MATO GROSSO
Tese submetida ao Programa de Ps-Graduao em Desenvolvimento Rural da Faculdade de Cincias Econmicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito parcial para obteno do grau de Doutor em Desenvolvimento Rural. Orientador: Prof. Dr. Jos Carlos Gomes dos Anjos
Porto Alegre 2007
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAO NA PUBLICAO (CIP)
Responsvel: Biblioteca Gldis W. do Amaral, Faculdade de Cincias Econmicas da UFRGS
C355d Castrillon Fernandz, Antonio Joo
Do cerrado Amaznia : as estruturas sociais da economia da soja em Mato Grosso / Antonio Joo Castrillon Fernandz. Porto Alegre, 2007.
262, [4] f. : il.
Orientador: Jos Carlos Gomes dos Anjos.
Tese (Doutorado em Desenvolvimento Rural) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de Cincias Econmicas, Programa de Ps-Graduao em Desenvolvimento Rural, Porto Alegre, 2007.
1. Soja : Economia : Estrutura social. 2. Processo social : Produo agrcola : Soja. 3. Relaes sociais : Espao rural. 4. Desenvolvimento rural : Mato Grosso. 5. Agricultura : Desenvolvimento econmico. 6. Migrao : Colonizao. I. Anjos, Jos Carlos Gomes dos. II. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Cincias Econmicas. Programa de Ps-Graduao em Desenvolvimento Rural. III. Ttulo.
CDU 316.334.55
316.4
ANTONIO JOO CASTRILLON FERNNDEZ
DO CERRADO AMAZNIA: AS ESTRUTURAS SOCIAIS DA ECONOMIA DA SOJA EM MATO GROSSO
Tese de doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Desenvolvimento Rural da Faculdade de Cincias Econmicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como quesito parcial para a obteno do ttulo de Doutor em Desenvolvimento Rural.
Aprovada em: Porto Alegre, 31 de agosto de 2007. __________________________________________________________________________ Prof. Dr. Jos Carlos Gomes dos Anjos Orientador UFRGS ___________________________________________________________________________ Prof. Dr. Marcelo Kunrath Silva UFRGS ___________________________________________________________________________ Prof. Dr. Joo Carlos Barroso UFMT ___________________________________________________________________________ Prof. Dr. Fbio Nolasco UNEMAT
AGRADECIMENTOS Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas leituras no era a beleza das frases, mas a doena delas. Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor, esse gosto esquisito. Eu pensava que fosse um sujeito escaleno. - Gostar de fazer defeitos na frase muito saudvel, o Padre me disse. Ele fez um limpamento em meus receios. O Padre falou ainda: Manoel, isso no doena, pode muito que voc carregue para o resto da vida um certo gosto por nadas... E se riu. Voc no de bugre? - ele continuou. Que sim, eu respondi. Veja que bugre s pega por desvios, no anda em estradas Pois nos desvios que encontra as melhores surpresas e os ariticuns maduros. H que apenas saber errar bem o seu idioma. Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de gramtica
(Manoel de Barros) Gostaria continuar nas palavras de Manoel de Barros que o Z Carlos foi o meu primeiro professor de sociologia, me ensinou a despensar o pensado, me ensinou coisas importantes e as coisas importantes so difceis de serem ditas, s vezes so desditas... como na minha tese. Agradeo a todas as instituies e pessoas que contriburam para a realizao deste trabalho: aos professores, colegas e amigos do PGDR; aos agricultores, tcnicos, lideranas que dispuseram do seu tempo para as entrevistas; de modo especial agradeo ao Professor Jos Carlos que me orientou, ao Zander que, com todo o seu entusiasmo de quem comeava um novo projeto me desviou ao PGDR; ao Marcelo, pela sua presena; e, de modo muito pessoal agradeo minha L, por tudo e ainda um pouco mais, a quem dedico este trabalho.
RESUMO
O esforo principal deste trabalho realizar uma anlise sociolgica do processo de expanso
das lavouras de soja nas reas de Cerrado em direo s reas de Floresta Amaznica, com
foco no estado de Mato Grosso, a partir do recorte especfico do processo de aquisio de
terras, que leva em considerao quatro dimenses analticas: dimenso econmica, dimenso
cultural, dimenso poltica e dimenso ambiental. A caracterstica diferencial desta
proposio que as dimenses selecionadas no sero trabalhadas, enquanto recursos terico-
metodolgicos, de forma isolada, autnoma e independente uma das outras, como tem sido
recorrente aos estudos do tema do desenvolvimento da agricultura. Contrrio a essa
perspectiva, prope-se apreender as diferentes dimenses que dinamizam a expanso da
atividade agrcola a partir das relaes de interdependncia que os agentes estabelecem entre
si. O elemento central da anlise deslocado da unidade de cada dimenso (econmico,
poltico, cultural) para o conjunto de relaes que as dimenses selecionadas estabelecem
entre si, formando um verdadeiro campo de relaes de fora, aqui definido como
configuraes sociais do processo de expanso das lavouras de soja.
Palavras-chave: Expanso da soja; Mato Grosso; Sociedade e economia; Desenvolvimento
rural.
ABSTRACT
The main effort of this work is to carry through a sociological analysis of the process of
expansion of the soy farming in Savanna areas in direction to the areas of Amazonian Forest,
with focus in the state of Mato Grosso, from the specific clipping of the process of acquisition
of lands, that takes in consideration four analytical dimensions: economic dimension, cultural
dimension, politics dimension and ambient dimension. The distinguishing characteristic of
this proposal is that the selected dimensions will not be worked, as resources theoretician-
methodology, of isolated form, independent one of the others, as has been recurrent to the
studies of the subject of the development of agriculture. The opposite to this perspective, is
considered to apprehend the different dimensions that dynamisms the expansion of the
agricultural activity from the interdependence relations that the agents establish between
itself. The central element of the analysis is dislocated from the unit of each dimension
(economic, politician, cultural) for the set of relations that the selected dimensions establish
between itself, forming a true field of force relations, defined here as social configurations of
the process of expansion of the soy farming.
Key words: Soy expansion, Mato Grosso State, Society and Economy, Rural Development.
LISTA DE DIAGRAMAS Diagrama 1 Fluxo do mercado internacional de soja e seus derivados ....................... 244
Diagrama 2 Fluxo do mercado nacional de soja e seus derivados .............................. 245
LISTA DE FIGURAS Figura 1 Distribuio da rea plantada de soja em Mato Grosso, 1981 .......... 246
Figura 2 Distribuio da rea plantada de soja em Mato Grosso, 1985 .......... 247
Figura 3 Distribuio da rea plantada de soja em Mato Grosso, 1990 ......... 248
Figura 4 Distribuio da rea plantada de soja em Mato Grosso, 1995 .......... 249
Figura 5 Distribuio da rea plantada de soja em Mato Grosso, 2000 .......... 250
Figura 6 Distribuio da rea plantada de soja em Mato Grosso, 2004 .......... 251
Figura 7 Mapa de Biomas - Mato Grosso ........................................................ 254
Figura 8 Representao do bioma Cerrado ...................................................... 137
Figura 9 Representao do bioma Floresta ...................................................... 138
Figura 10 Caracterizao de relevo do Estado de Mato Grosso ........................ 255
Figura 11 Distribuio das Terras Indgenas em Mato Grosso ......................... 256
LISTA DE TABELAS Tabela 1 Produo mundial de soja, srie histrica .......................................... 257 Tabela 2 Produo mundial de soja: principais pases produtores ..................... 257 Tabela 3 Distribuio da produo de soja no Brasil Srie 1940 a 1985 ........ 258 Tabela 4 Distribuio da produo de soja no Brasil Srie 1975 a 2005 ........ 259 Tabela 5 Produo de soja em Mato Grosso, srie histrica .............................. 260 Tabela 6 Mato Grosso: Distribuio das lavouras de soja por Meso e
Microrregies geogrficas ...................................................................
261 Tabela 7 Mato Grosso: principais produtos de lavoura temporria 1978 a
2005 ....................................................................................................
262 Tabela 8 Distribuio das lavouras de soja por grupo de rea, 1995/96
Brasil, RS, PR, MT .............................................................................
133
LISTA DE GRFICOS Grfico 1 Consumo mundial de leo vegetal e protena em rao animal e produo
de soja ..........................................................................................................
101
Grfico 2 Produo Mundial de Soja: principais pases produtores ............................ 252
Grfico 3 Distribuio da produo de soja por regies .............................................. 107
Grfico 4 Mato Grosso: rea Plantada de Soja (ha), srie histrica (1970 1979) .... 253
Grfico 5 MT: Distribuio das lavouras de soja (ha) por mesorregio ...................... 119
Grfico 6 Distribuio das lavouras de soja por classes de rea Brasil e Mato Grosso, 1995-96 ...........................................................................................
122
LISTA DE SIGLAS
APP rea de Preservao Permanente
APROSOJA Associao dos Produtores de Soja
ASA - American Soybean Association
BASA Banco da Amaznia
CAIs Complexo Agroindustriais
CNA Confederao Nacional da Agricultura
CONAB Companhia Nacional de Abastecimento
CSA Commodity Sistem Aproach
CTG Centro de Tradio Gacha
DOU Dirio Oficial da Unio
ECT Economia dos Custos de Transao
EMATER Empresa Mato-Grossense de Extenso Rural
EMBRAPA Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria
EMPAER Empresa Mato-Grossense de Pesquisa, Assistncia e Extenso Rural
FAMATO Federao da Agricultura e da Pecuria do Estado de Mato Grosso
FEMA Fundao Estadual do Meio Ambiente do Estado de Mato Grosso
FIDAM Fundo para Investimentos Privados do Desenvolvimento da Amaznia
FUNAI Fundao Nacional de Assistncia ao ndio
IAC Instituto Agronmico de Campinas
IBAMA Instituto Brasileiro do Meio e dos Recursos Naturais Renovveis
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
ICMS Imposto sobre Circulao de Mercadorias e Servios
INPE Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
INTERMAT Instituto de Terras de Mato Grosso
IPI Imposto sobre Produtos Industrializados
ISA Instituto Scio Ambiental
LVA Latossolo Vermelho Amarelo
PACs Projeto de Ao Conjunta
PAR Projeto de Assentamento Rpido
PEPRO Prmio Equalizador Pago ao Produtor
PESA Programa Especial de Saneamento de Ativos
PH Potencial Hidrogeninico
PIN Plano de Integrao Nacional
POLOAMAZNIA Programa de Plos Agropecurios e Agrominerais da Amaznia
POLOCENTRO Programa de Desenvolvimento do Cerrado
PROAGRO - Programa de Garantia da Atividade Agropecuria
PRODES Programa de Monitoramento do Desflorestamento nos Municpios da Amaznia
Legal
PROP Prmio de Risco para Aquisio de Produto Agrcola Oriundo de Contrato Privado
de Opo de Venda
PROTERRA Programa de Redistribuio de Terras e de Estmulo Agroindstria do Norte
e do Nordeste
SEMA Secretaria Estadual do Meio Ambiente do Estado de Mato Grosso
SNCR Sistema Nacional de Crdito Rural
SPI Servio de Proteo ao ndio
SUDAM Superintendncia do Desenvolvimento da Amaznia
SUDECO Superintendncia do Desenvolvimento do Centro Oeste
SUDENE Superintendncia do Desenvolvimento do Nordeste
USDA United States Department of Agriculture
SUMRIO
1 INTRODUO ...................................................................................................... 16
2 DESENVOLVIMENTO DO PROBLEMA E CONFIGURAO TERICA 28
2.1 A Inovao Induzida .............................................................................................. 32
2.2 Os complexos agroindustriais ............................................................................... 35
2.3 Dos Sistemas Agroindustriais ao Agribusiness .................................................... 40
2.4 Uma sntese da crtica econmica ......................................................................... 45
2.5 A agricultura e sua especificidade ........................................................................ 53
2.6 O problema ............................................................................................................. 58
2.7 Uma proposio terica ......................................................................................... 60
2.7.1 Contribuies da Sociologia Econmica ................................................................. 64
2.7.2 A Sociologia da Economia contribuies de Bourdieu ........................................... 70
2.8 De processos a configuraes sociais: as contribuies da sociologia elisiana . 76
2.9 Metodologia ........................................................................................................... 91
3 A SOJA EM NMEROS ...................................................................................... 100
3.1 A soja no mundo .................................................................................................... 100
3.2 A soja no Brasil ...................................................................................................... 104
3.3 A soja em Mato Grosso ......................................................................................... 110
4 TEMPOS DE REOCUPAO ............................................................................ 125
4.1 A funo das novas terras ................................................................................. 128
4.2 Paisagem: terra, mato e gente ............................................................................... 135
4.2.1 Formao vegetal ..................................................................................................... 136
4.2.2 Unidades de relevo ................................................................................................... 140
4.2.3 Os ciclos econmicos ............................................................................................... 142
4.3 Os programas de reocupao ................................................................................ 146
4.3.1 Na Marcha para o Oeste ....................................................................................... 146
4.3.2 A abertura do estoque de terra para o Sul: os programas de colonizao ............ 160
5 A FORMAO DE UM NOVO TERRITRIO: O CRESCIMENTO DAS LAVOURAS DE SOJA .........................................................................................
176
5.1 A migrao .............................................................................................................. 178
5.2 Origem dos colonos ................................................................................................ 182
5.3 Motivos da migrao .............................................................................................. 184
5.4 Estratgia de migrao .......................................................................................... 188
6 MECANISMOS E ESTRATGIAS PARA EXPANSO DAS LAVOURAS DE SOJA: eu pergunto, isso uma agricultura normal? ..............................
194
6.1 A funo colonizadora na construo dos espaos sociais ................................. 199
6.2 A expanso das lavouras de soja .......................................................................... 207
6.2.1 O crescimento .......................................................................................................... 210
6.2.2 A expanso da soja e produo social da crise ........................................................ 217
7 CONCLUSO ....................................................................................................... 225
REFERNCIAS ................................................................................................................ 231
APNDICE A. Diagrama 1. Fluxo do mercado internacional de soja e seus derivados 2006 (milhes de toneladas) ................................................................................................
244
APNDICE B. Diagrama 2. Fluxo do mercado nacional de soja e seus derivados 2005/2006 (em milhes de toneladas) .................................................................................
245
APNDICE C. Figura 1. Distribuio da rea plantada de soja em MT, 1981 ................. 246
APNDICE D. Figura 2. Distribuio da rea plantada de soja em MT, 1985 ................. 247
APNDICE E. Figura 3. Distribuio da rea plantada de soja em MT, 1990 ................. 248
APNDICE F. Figura 4. Distribuio da rea plantada de soja em MT, 1995 ................. 249
APNDICE G. Figura 5. Distribuio da rea plantada de soja em MT, 2000 ................. 250
APNDICE H. Figura 6. Distribuio da rea plantada de soja em MT, 2004 ................. 251
APNDICE I. Grfico 2. Produo mundial de soja: principais pases produtores .......... 252
APNDICE J. Grfico 3. Mato Grosso: Dinmica de crescimento das principais lavouras ...............................................................................................................................
252
APNDICE K. Grfico 4. rea plantada de soja, srie histrica (1970-1979) ................ 253
ANEXO A. Figura 7 - Mapas de biomas Mato Grosso ................................................... 254
ANEXO B. Figura 10 - Caracterizao do relevo do Estado de Mato Grosso .................. 255
ANEXO C. Figura 11 - Distribuio das Terras Indgenas em Mato Grosso ................... 256
ANEXO D. Tabela 1 - Produo mundial de soja, srie histrica ...................................... 257
ANEXO E. Tabela 2 - Produo mundial de soja: principais pases produtores ............... 257
ANEXO F. Tabela 3 - Distribuio da produo de soja no Brasil - 1940 a 1985 ............ 258
ANEXO G. Tabela 4. Distribuio da produo de soja no Brasil 1975 a 2005 ............. 259
ANEXO H. Tabela 5 - Produo de soja em Mato Grosso 1970 a 2007 ....................... 260
ANEXO I. Tabela 6 - Mato Grosso: distribuio das lavouras de soja por Meso e Microrregies geogrficas 1981 a 2006 ..........................................................................
261
ANEXO J. Tabela 7 - Mato Grosso: principais produtos de lavoura temporria 1978 a 2005 ....................................................................................................................................
262
16
1. INTRODUO
A soja (Glycine Max (L.) Merril), da famlia das leguminosas, uma planta
herbcea com altura de 0,3 a dois metros. Os frutos, que se apresentam na forma de
vagem, podem variar de trs a dez centmetros de comprimento, e abrigam de um a
cinco gros. O elevado teor de protena e de lipdeos fez da soja um importante produto
no mercado de rao animal, de leo vegetal e de consumo humano. Suas caractersticas
atuais resultam de um longo processo de mudana gentica, visando sua adaptao para
diferentes situaes de clima, relevo, fotoperodo, resistncia a doenas e melhor
produtividade por rea.
Registros indicam que as variedades mais antigas se desenvolveram nas margens
de rios e lagos da regio central da China. Sua domesticao ocorreu h
aproximadamente cinco mil anos, tornando-se fonte essencial de alimento para o povo
chins. Durante a dinastia Zhou (1112 256 a.C.), a soja, juntamente com o arroz, o
trigo, o paino e a cevada, foi considerada um dos cinco gros sagrados. Do incio da
era Crist at o perodo das Grandes Navegaes (XVI e XVII), ocorreu uma disperso
do produto para vrios pases, como o Japo, a Indonsia, as Filipinas, a Malsia, a
ndia, entre outros, com uso mais direcionado alimentao humana1.
As primeiras sementes foram introduzidas nos EUA, em 1765, por Samuel
Bowen, marinheiro da Companhia Ocidental das ndias. Seu objetivo era o
processamento dos gros na forma de molho e macarro e posterior exportao para a
Inglaterra. No entanto, por mais de um sculo, o seu cultivo ficou restrito produo de
forrageiras, quando, em 1904, George Washinton, do Instituto Tuskegee, identificou
elevados teores de leo e protena nessa leguminosa, apresentando seu grande potencial
para a produo de rao e leo vegetal. Em decorrncia do espao que comeava a
ocupar no mercado interno, em 1920 foi criada a American Soybean Association (ASA),
organizao que teve por funo inserir a soja na agenda de pesquisa e de polticas
pblicas americanas. A baixa diversidade de material gentico impunha restries ao
1 As informaes sobre a origem da soja e o processo de domesticao so muito fragmentadas e pontuais, com pouca preciso de datas e fatos histricos. Consultar: North Carolina Soybean Producers Association, [ca. 2000]; HYMOWITZ; SHURTLEFF, 2005; Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria - EMBRAPA, 2004; Klaus, 2005; Hasse, 1996.
17
desenvolvimento de programas de adaptao das variedades. A fim de solucionar o
problema, entre 1929 e 1931, dois pesquisadores americanos, entre eles William Morse,
fundador da ASA, catalogaram e coletaram aproximadamente 4.500 variedades de soja
dos pases asiticos, ampliando a base gentica das pesquisas americanas (ASA, 2007).
Em 1930, a soja era cultivada em 3,5 milhes de acres (1,4 milhes de hectares)
de terras americanas, predominando ainda a sua utilizao como forragem (56%).
Apenas 30% da rea eram colhidas, sendo a produo utilizada como sementes e
matria-prima para o processamento de leo e rao (ASA, 2007). medida que crescia
o mercado desses produtos, reduzia-se o emprego da soja na forma de forragem e
pastagem. Com o desenvolvimento de variedades adaptadas ao clima da regio e com
teores mais elevados de leo e protena, o uso principal da planta foi sendo deslocado da
parte vegetativa (caule, folhas e razes, fixao de nitrognio) para a reprodutiva
(gros).
No Brasil, sua introduo ocorreu no final do sculo XIX e incio do XX, com
material gentico adquirido principalmente dos Estados Unidos. Em terras brasileiras, a
soja percorreu distintas trajetrias, sem vnculos explcitos entre elas. O cultivo mais
antigo data de 1882, realizado por um agricultor do estado da Bahia. O professor
Gustavo DUtra, da Escola de Agronomia da Bahia, realizou o primeiro estudo de
avaliao de cultivares, publicado em 1989 no Boletim do Instituto Agronmico de
Campinas (IAC). Nesse mesmo perodo, o IAC mantinha canteiros de produo de
sementes com o objetivo de difundi-las entre os agricultores da regio. Foi tambm no
incio do sculo XX que migrantes japoneses radicados em So Paulo, trouxeram nas
suas bagagens alguns gros, que passaram a ser cultivados em hortas domsticas para a
produo de derivados, como o tofu, miss e shoyu (HASSE, 1996; EMPRESA
BRASILEIRA DE PESQUISA AGROPECURIA - EMBRAPA, 2004).
A terceira trajetria, que constituiu a base da difuso da soja no Brasil, foi
estabelecida no Rio Grande do Sul. Em 1900, experimentos foram instalados no Liceu
Rio-Grandense de Agronomia, em Pelotas, e algumas variedades cultivadas em Dom
Pedrito, Pinheiro Machado e Venncio Aires (HASSE, 1996). No entanto, foi na regio
de Santa Rosa, fronteira noroeste do Estado, que despertou o interesse dos agricultores.
O pastor luterano Albert Lehenbauer, migrando dos Estados Unidos, em 1923, trouxe
uma pequena quantidade de sementes e, aps reproduzi-las, distribuiu-as entre os
18
colonos da regio. Apesar das restries iniciais, passaram a incorpor-las lentamente
aos sistemas produtivos, utilizando-as como forrageira e na alimentao de sunos
(CHRISTENSEN, 2004).
O cultivo foi intensificado a partir de 1935, quando o comerciante Frederico
Orteman, de Santo ngelo, realizou as primeiras compras. Em 1938, exportou trs mil
sacas de soja para a Alemanha, despertando o interesse de exportadores e industririos.
Com o incio da Segunda Guerra Mundial, as exportaes foram interrompidas e as
indstrias direcionaram a produo para o mercado interno, atravs do processamento
de leo vegetal (CHRISTENSEN, 2004).
At o incio da dcada de quarenta, o plantio da soja ainda estava voltado,
predominantemente, para a produo de forrageira, utilizada na alimentao de bovinos
e sunos. Com o fim da Segunda Guerra e o incio da industrializao mais intensiva do
Brasil, cresceu o consumo de leos vegetais, o que incentivou a demanda pela
oleaginosa. A rea cultivada no estado do Rio Grande do Sul passou de 650 hectares
(BONETT, 1987 apud CHRISTENSEN, 2004, p. 58), no comeo dos anos quarenta,
para seiscentos mil, na dcada de sessenta, saltando para oito milhes de hectares na
dcada de oitenta (CHRISTENSEN, 2004, p. 59)2. Um rpido crescimento que mudou
as caractersticas da agricultura na regio.
Durante as trs primeiras dcadas em que as lavouras se estabeleceram no Brasil,
entre 1940 e incio dos anos de 1970, a produo esteve concentrada no Rio Grande do
Sul, com 99% da produo nacional em 1950, e manteve-se elevada nas dcadas
seguintes (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATSTICA - IBGE,
1940-1996).
O desempenho das lavouras na regio Sul esteve associado, entre outros fatores,
adaptao das variedades s condies ambientais. A soja uma planta com
sensibilidade ao fotoperodo, ou seja, seu florescimento influenciado pela durao do
2 Segundo o Censo Agropecurio de 1940, a produo de soja no estado do Rio Grande do Sul passou de 1,23 mil toneladas para 44,5 mil, no ano de 1950, saltando para 209 mil toneladas em 1960. Considerando que a produtividade mdia das lavouras de soja na regio, em 1975, foi de 1,38 toneladas por hectare, os dados do Censo destoam das informaes de Bonett (1987 apud CHRISTENSEN, 2004). Em uma rea de 650 hectares seria possvel produzir apenas 897 toneladas de gro e no as 44,5 mil apresentadas no Censo Agropecurio de 1940 (IBGE, 1940-1996). No entanto, o que as diferentes fontes destacam o rpido crescimento da rea cultivada no referido territrio.
19
dia (nmero de horas de luminosidade)3. Quanto mais se afasta da linha do equador em
direo aos plos, mais o grau da latitude aumenta e, conseqentemente, reduz o
tamanho do dia (nmero de horas de luminosidade a que a planta est sujeita). As
caractersticas climticas da regio Sul do Brasil favoreceram a adaptao das primeiras
variedades trazidas do Sul dos EUA, que ainda apresentavam sensibilidade ao
fotoperodo. Foi preciso um longo processo de adaptao e aprendizagem para que a
soja viesse a figurar entre os principais produtos cultivados em territrio brasileiro. Se,
por um lado, a estrutura produtiva dos colonos favoreceu esse processo, devido
experincia no trabalho agrcola, abertura para a incorporao de novos
conhecimentos e necessidade de alternativas econmicas, por outro, imps barreiras
para a sua expanso. A estrutura fundiria (tamanho dos estabelecimentos e
disponibilidade de terra) mostrava-se inflexvel para assimilar o crescimento do ncleo
familiar e explorar as possibilidades produtivas que se apresentavam com as mudanas
da base tcnica aplicada agricultura. As novas fronteiras agrcolas, inicialmente do
Paran, Santa Catarina e posteriormente de outros estados, surgiram como alternativas
de acesso a terra e de recursos de produo para essas famlias, irradiando processos
migratrios do Rio Grande do Sul para outros estados brasileiros. As trajetrias
desenhadas pelas famlias de colonos coincidiram, ou cruzaram-se, com as trajetrias
das lavouras de soja: em 1975 foram cultivados no estado do Paran 32% dos cinco
milhes de hectares de soja plantados na regio Sul.
No se pretende explicar a dinmica da expanso das lavouras de soja atravs do
processo migratrio como uma relao de causa e efeito, mas demonstrar que no existe
fator nico, independente, como por exemplo, inovao tecnolgica, ampliao de
mercado ou mesmo migrao, que explique isoladamente a dinmica deste processo. O
que existe um conjunto de fatores, alguns planejados, intencionalmente elaborados,
como as polticas pblicas, as estratgia de reproduo, e outros no-planejados,
involuntrios, incorporados s estruturas sociais, decorrentes de atividades que fazem
parte do cotidiano das famlias e instituies, de uma maneira pr-reflexiva de agir.
Como sugere Souza (2000, p. 12),
3 Cada cultivar possui seu fotoperodo crtico, acima do qual o florescimento atrasado. Por isso a soja considerada planta de dia curto. Em funo dessa caracterstica, a faixa de adaptabilidade de cada cultivar varia medida que se desloca em direo ao norte ou ao sul. (EMPRESA BRASILEIRA DE PESQUISA AGROPECURIA - EMBRAPA, 2004, p. 31).
20
A imensa maioria de nossas aes nascem do hbito e de estmulos ao localizados em algum ponto liminar entre conscincia e inconscincia. Isso significa que o agir exige esforo, um esforo metdico de esclarecimento das idias e dos mveis que nos guiam. Liberdade de escolha e conduta racional da vida s existe, em sentido rigoroso, no ltimo caso.
A expanso das lavouras de soja expressa um processo de longa durao, em que
se foi incorporando aprendizados, estratgias, recursos, formas de agir, de articular, de
consolidar referncias de ao. Ou seja, seus aspectos econmicos, caracterizados pelas
relaes de troca, pelas relaes de produo e pelo acesso a servios, no se realizam
de forma autnoma e independente das outras dimenses que constituem um processo
social. Uma anlise mais detalhada demonstra a maneira como as relaes econmicas
so estabelecidas por um mecanismo de entrelaamento, de associao e de conflitos
com outros tipos de relao.
A partir dos anos de 1970, a soja irradiou-se da regio Sul para outros estados
brasileiros: Minas Gerais, Bahia4, Gois e Mato Grosso, seguindo a trajetria dos
migrantes gachos para alm das fronteiras do Sul do Brasil.
Os primeiros plantios em Mato Grosso ocorreram no incio dos anos de 1970, na
poro sul do Estado. Foram pequenas experincias realizadas por agricultores que
procuravam adaptar variedades. Na medida em que isso ia ocorrendo, que
conhecimentos sobre o manejo de solos do cerrado foram sendo desenvolvidos, que
mercados foram sendo consolidados, que cidades foram sendo formadas e que
incentivos de polticas pblicas foram sendo concedidos, a rea cultivada ampliava-se
rapidamente, passando de 56 mil hectares em 1980 para 1,5 milhes em 1990, chegando
uma dcada depois a aproximadamente trs milhes de hectares (IBGE, 1996).
Uma das caractersticas do sistema de plantio nas reas de cerrado e que o
distingue dos plantios na regio Sul o tamanho mdio das lavouras: enquanto no sul
do Brasil a rea mdia cultivada no ano de 1995 foi de 16,8 hectares, em Mato Grosso
essa mdia foi de 663 hectares. Ou seja, 77,7% das lavouras possuam rea superior a
mil hectares, enquanto que, no Rio Grande do Sul, apenas 10% se situavam nessa classe
de rea (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATSTICA - IBGE,
4 O cultivo de soja no estado da Bahia, nos anos de 1970, est associado migrao dos colonos gachos e no extenso dos plantios experimentais realizados ainda no final do sculo XIX. Ao contrrio dos plantios no estado de So Paulo, que est relacionado, tambm, s experincias dos migrantes japoneses, expandindo-se posteriormente para outros grupos de agricultores.
21
1996). Esses dados revelam que a trajetria das lavouras de soja em Mato Grosso,
porm, de um modo geral, nas reas de cerrado em direo floresta Amaznica, bem
como a trajetria dos colonos do Sul que migraram para a nova fronteira agrcola, foi
amplamente marcada pelo processo de aquisio de ativos fundirios. A produo da
disponibilidade de grandes estoques de terra pela iniciativa estatal, pelas empresas de
colonizao privada ou ainda pela ao de agentes intermedirios, como corretores e
grileiros, favoreceu a esses migrantes a aquisio de grandes extenses de reas a preos
relativamente baixos, vis a vis, os preos praticados no Estado de origem. Assim como a
terra, outros fatores de produo foram tambm produzidos, como por exemplo,
polticas pblicas para abertura de rea, aquisio de mquinas e construo de infra-
estrutura, entre elas, estradas, portos e cidades; investimentos em pesquisas, formao
de mercados, organizaes de condomnios. Portanto, o que se procura evidenciar o
efeito de produo de um ambiente, ou de um conjunto de relaes sociais, que
favoreceram e tornaram possveis a introduo e a expanso das lavouras de soja no
cerrado.
Diante desse quadro, importante formular o seguinte questionamento: o
desenvolvimento da agricultura, seja no Brasil seja em outros pases, tem sido
explicado como efeito da penetrao ou do desenvolvimento do capitalismo no
campo. Segundo essa tendncia, a dinmica da agricultura, bem como a apropriao dos
recursos naturais (terra), segue uma lgica de reproduo do capital, molda-se pelos
interesses da acumulao. No seria oportuno questionar se o capitalismo no campo
no se desenvolve, tambm, segundo uma lgica de reproduo dos atores? Ou, de outra
forma, no se encontram as condies materiais para o seu desenvolvimento na base
das relaes sociais tecidas entre colonos e outros atores?
O presente trabalho tem por objetivo principal analisar e compreender a
expanso das lavouras de soja nas reas de cerrado, em direo s reas de transio
com a floresta Amaznica, como expresso de um conjunto de relaes sociais capazes
de mobilizar recursos considerados, pelos agentes envolvidos, necessrios dinmica da
atividade. Partindo da compreenso desse fenmeno como um processo, procura-se
apreend-lo no mais de forma isolada, naquilo que ele tem de nico e particular, para
descrev-lo interpretativamente como um processo social mais geral, como um sistema
22
de vida e economia5 de famlias e empresas, que migraram das regies Sul e Sudeste
do pas em busca de novas possibilidades de realizao econmica atravs da
agricultura.
A anlise sobre o desenvolvimento da agricultura, no mbito do que se institui
como estudos econmicos, caracteriza-se por abstrair os fenmenos ou fatores
econmicos do contexto social em que o prprio fenmeno foi produzido. Desse
modo, pode-se compreender por que o processo de transformao da agricultura
brasileira, no qual est inserida a consolidao das lavouras de soja na regio Sul e sua
expanso para outros Estados, tradicionalmente tem sido analisado a partir de conceitos
como inovao tecnolgica, especializao da produo, diferenciao do
trabalho e coordenao e gesto econmica, segundo uma lgica especfica da
prpria razo econmica. Dissocia-se, portanto, uma categoria particular de prticas de
um contexto maior em que elas prprias foram construdas. Bourdieu (2003, p. 13), ao
iniciar o seu trabalho sobre as Estruturas Sociais da Economia, desenvolve o seguinte
argumento acerca das possibilidades de construo de conhecimentos nas cincias
econmicas:
La cincia que llamamos economa se sustenta en una abstraccin inicial que consiste en disociar una categora particular de prcticas, o una dimensin particular de cualquier prctica, del orden social en el que toda practica humana est inmersa. Esta inmersin [] obliga [] a concebir cualquier prctica, empezando por la que se puede ver, de la forma mas evidente y estricta, que es econmica, como un hecho social total, en el sentido de Marcel Mauss.
Ao contrrio das abordagens econmicas, o presente trabalho procura apreender
as mudanas que vm ocorrendo na agricultura, a partir da relao de interdependncia
que a dimenso econmica estabelece com outras dimenses constitutivas de uma
configurao social especfica, formando, assim, a base para a expanso das lavouras de
soja. A especificidade da ao econmica no est no grau de autonomia, de
independncia e auto-realizao que possa existir como sugere a economia
neoclssica ao propor, por exemplo, o conceito de custo de transao zero e
5 Abordagem adotada por Ricardo (1970, p. 14) ao desenvolver o seu estudo sobre a Marcha para o Oeste: O movimento de avano da gente do Planalto na direo oeste como sistema de vida e economia, teria de sofrer inmeras mudanas, adaptando-se presso das condies e circunstncias determinadas por fatores temporais e espaciais. No apenas elementos, mas tambm complexos culturais inteiros tero perdidos o seu significado, funo, uso e forma, adquirindo outros, em troca, atravs principalmente do contato com outras culturas.
23
racionalidade plena das aes em relao a outros tipos de ao, mas na capacidade de
mobilizar e converter diferentes tipos de recursos, no estritamente econmicos, para o
campo das aes econmicas. Entende-se, portanto, que a dimenso econmica s
pode ser compreendida como um processo social em construo caso se adote como
perspectiva de anlise a relao de interdependncia que ela estabelece com as demais
dimenses constitutivas do processo em estudo.
Assim, a presente investigao diferencia-se das pesquisas mais correntes sobre
o desenvolvimento da agricultura por dois aspectos essenciais: no se prende aos
limites dos estudos disciplinares e procura, por outro lado, mobilizar um conjunto
amplo de conhecimento que enfoque as diferentes dimenses constitutivas do processo
social, ou, de modo mais preciso, que o aborde nas diferentes dimenses que o
constituem famlia, igreja, manifestao cultural, identidade, organizaes, sindicatos,
Estados e no apenas mercado, empresas, banco, tecnologia etc. Compreende-se que a
expanso da soja traduzida por uma dinmica social de longa durao, resultado tanto
de aes imediatas, intencionais e planejadas, quanto de aes no-planejadas, no-
intencionais, ou seja, aquelas incorporadas s estruturas dos indivduos e da
sociedade, que independem da vontade dos agentes para a sua realizao. Para tanto,
foi definido um arranjo de conceitos6 que procura dar conta dos dados de observao
naquilo que eles tm de mais profcuo para a anlise sociolgica, a interao entre
agentes, situados num campo de relaes de foras que impe restries a essa prpria
ao: o conceito de processo social procura dar conta das mudanas, das
transformaes, dos arranjos que vm ocorrendo na base da produo agrcola,
resultado da combinao de diferentes tipos de ao, algumas planejadas, intencionais e
voluntrias e outras, no-planejadas, no-intencionais, incorporadas s estruturas da
sociedade e dos indivduos; o conceito de relao social abrange as formas pelas quais
os agentes interagem, buscam suas alianas, definem suas estratgias, mobilizam
recursos e criam relaes de poder capazes de alterar a dinmica dos processos sociais,
bem como se prender s suas estruturas; por fim, o conceito de configurao social
expe os agrupamentos, os arranjos formados entre os agentes, a sua posio em
espaos sociais definidos e os tipos de recursos mobilizados. O primeiro conceito
permite formular as perguntas: por que a expanso das lavouras de soja segue uma
6 Os conceitos sero desenvolvidos no prximo item, acompanhando a construo do problema.
24
determinada dinmica especfica e no outra? Por que est consolidada em plantios de
larga escala enquanto no Sul do Brasil se desenvolveu em pequenos estabelecimentos?
Ou, ainda, por que uma atividade desenvolvida, predominantemente, por famlias que
migraram da regio Sul? Os conceitos seguintes permitem formular o problema de
como esse processo se desenvolve, em quais circunstncias e com quais recursos.
O que torna possvel a expanso da soja em uma regio de fronteira, onde as
relaes sociais e as condies de produo no esto dadas e muito menos a diviso
social do trabalho e a especializao tcnica so pressupostos para o
desenvolvimento do capitalismo? Nas reas de abertura recente, aqui denominadas de
fronteira, o desenvolvimento do capitalismo, ou melhor, do capital, vem se realizando
de maneira bastante peculiar: a partir da histria de colonos que migraram em busca de
oportunidades de terra e trabalho e se transformaram em grandes produtores ou
retornaram pelas dificuldades encontradas; a partir da histria de populaes nativas e
povos indgenas que foram forados a ceder suas terras, sua cultura, seus hbitos, para
que um novo padro de ocupao e sociabilidade pudesse ser construdo; a partir da
histria da Natureza, que precisou ser transformada em um ambiente homogneo para
que extensos monocultivos pudessem ser implantados; a partir da histria de homens e
mulheres que migraram do Nordeste em busca de oportunidade de trabalho, que se
esvaece juntamente com as razes catadas; a partir da histria de empresas que se
estabelecem em busca do lucro. A sociologia elisiana, de onde derivam os conceitos
acima apresentados, oferece elementos tericos e metodolgicos para uma aproximao
da multiplicidade histrica, da multiplicidade de processos sociais que precisam ser
identificados caso se queira compreender a dinmica da agricultura em reas de abertura
recente, como o caso do estado de Mato Grosso.
Antes de tudo, preciso deixar claro o esforo terico de se afastar das
explicaes deterministas, aquelas que traduzem processos sociais complexos,
multifacetados, como o so todos os processos sociais, em formas explicativas
simplificadas, como se uma dimenso, um aspecto de determinado processo social
pudesse explicar o processo como um todo; como se o desenvolvimento da
agricultura pudesse ser explicado pela inovao tecnolgica ou por arranjos de
capitais. Afastar-se dessas formas de explicao no significa afiliar-se s formas de
pensamento holistas, em que, para se explicar e compreender os processos sociais
25
especficos seria preciso compreend-los, primeiro, na sua totalidade. Procura-se
direcionar a anlise para as formas como os indivduos interagem em processos de
formao social, focalizando as relaes de interdependncia entre os indivduos e
destes com a sociedade. Essa uma maneira, segundo Elias (1994, 2005), de
desubstancializar indivduo e sociedade, abrindo possibilidades ao estudo das
relaes. Para o autor, o primeiro no pode existir independentemente do segundo: o
indivduo no manifesta livremente sua ao e a sociedade no se impe por uma
coao ilimitada (como se o capital pudesse existir na agricultura independentemente
da ao dos indivduos, ou, por outro lado, como se os indivduos pudessem orientar
suas aes segundo uma racionalidade abstrada do meio social em que esto inseridos).
Desse modo, desubstancializar carrega o sentido de deslocar o foco de anlise das
coisas para as relaes, ou seja, a materialidade que pode ser atribuda existncia de
indivduo e de sociedade reflete mais uma soma de possibilidades em uma determinada
configurao do que a materialidade transcendente das prprias coisas.
A iniciativa em se definir um conjunto de conceitos, noes e idias que possam
ser trabalhados como alternativas aos estudos econmicos sobre o desenvolvimento da
agricultura, mais precisamente, sobre a expanso das lavouras de soja nas reas de
cerrado em direo floresta Amaznica, no desconsidera a contribuio desses
estudos para a compreenso das transformaes ocorridas na agricultura brasileira,
mesmo porque esse um setor fortemente influenciado pelas foras econmicas. No
entanto, aponta para a necessidade de se construir outra perspectiva de anlise, que
possibilite a compreenso dos chamados fatores econmicos a partir das formas
diferenciadas de associao e dissociao que mantm com outros fatores constituintes
do processo em anlise. A crtica abre novas possibilidades de construo do
conhecimento. Aqui, empenha-se em desenvolver uma viso de ao diferente daquelas
que fundamentam as teorias econmicas aplicadas aos estudos da agricultura. Nas
abordagens sobre a inovao tecnolgica, em que a adoo de tecnologia explicada
pelo resultado do balano entre oferta de fatores e demanda de produtos
(HAYAMI; RUTTAN, 1988), o agente econmico aparece dotado de uma
racionalidade maximizadora de fatores, cuja ao motivada pelos interesses
individuais e imediatos escolha do melhor fator de produo segundo um balano de
demanda e oferta , exibindo um controle de todos os vetores de fora que agem
26
sobre o sistema econmico. Por outro lado, nas abordagens sobre a formao dos
Complexos Agroindustriais (CAIs) (SILVA, 1996) e Cadeias de Produo
(ZYLBERSZTAJN, 2000), de onde deriva o atual conceito de Agribusiness, predomina
a idia de um sistema econmico que se impe aos interesses individuais os
indivduos agem orientados pelas foras de coero impostas pelas estruturas da
economia. Ao situar o tema deste trabalho em uma linha temporal de longa durao, que
extrapola o imediatismo da conjuntura, percebe-se que o objeto em estudo (expanso da
soja) forma-se por um processo que combina lgicas diferenciadas de ao, em que
homens e mulheres, com trajetrias distintas, com recursos diferenciados, mas com
objetivos similares consideram a fronteira como o local de possibilidade de trabalho,
de negcio e de vida. Assim, a ao expressa tanto a fora do agente para deslocar ou
consolidar o curso do processo social (por exemplo, atravs da migrao, da inovao
tecnolgica, da formao de mercados etc.), como tambm a fora que as configuraes
sociais impem sobre os indivduos, coagindo seus interesses mais imediatos, quando
eles procuram alterar o sentido do processo em curso. Se a ao pudesse ser mensurada
por um balano, este no seria o da otimizao dos fatores de produo, mas das
foras que agem simultaneamente sobre indivduos e sociedade.
Tomando como pressuposto que no existe apenas um fator, ou um conjunto
deles, que isoladamente explique a formao de processos sociais especficos, este
trabalho procura identificar quais as condies histricas e materiais de possibilidades
para a expanso das lavouras de soja nas reas de cerrado. Para proceder anlise,
definiu-se como unidade emprica de referncia o estado de Mato Grosso, no perodo
que se estende da segunda metade dos anos de 1960, quando os primeiros programas de
ocupao da Amaznia dos governos militares comeam a ser implantados, at os
primeiros anos dos anos 2000, perodo de rpido crescimento da produo agrcola. O
recorte temporal e espacial arbitrrio, pois desconsidera a idia de processo como um
desencadeamento de aes que no se fixa em tempo e espao delimitados, no entanto,
essa arbitrariedade se faz necessria para a organizao e sistematizao da pesquisa.
Dois tipos de informaes foram trabalhados e sero apresentados com mais
detalhes no captulo seguinte: o primeiro resulta da pesquisa de fontes secundrias, com
o objetivo de reconstruir a trajetria da soja em Mato Grosso, enfocando o crescimento
da rea plantada, a produtividade, a ampliao de mercado, as polticas de crdito e a
27
gerao de tecnologia; o segundo refere-se aos dados da pesquisa de campo, realizada
com agricultores representantes de empresas, associaes, sindicatos e rgos pblicos,
visando identificar o conjunto de relaes sociais, as estratgias, os arranjos e os
recursos mobilizados que configuram a base material e social para o desenvolvimento
das relaes de produo na agricultura. Essa pesquisa aconteceu no municpio de
Sorriso, onde a soja uma atividade consolidada, respondendo por aproximadamente
10% da produo do Estado, e nos municpios que compem a regio do Baixo
Araguaia, caracterizada como uma rea de abertura recente e com elevado dinamismo
do mercado de terras.
28
2 DESENVOLVIMENTO DO PROBLEMA E CONFIGURAO TERICA
Atualmente, cabe ainda o questionamento sobre as vantagens competitivas da
produo agrcola em larga escala no regime de economia capitalista? Essa questo
alimentou com bastante nfase a pesquisa acadmica no mbito da Economia e
Sociologia Rural, no perodo que se estendeu entre as dcadas de 1970 a 1990, quando
autores debatiam o problema da tendncia do desaparecimento das formas familiares
de produo, diante da consolidao das foras produtivas do capitalismo no campo,
como um movimento intrnseco ao prprio capital.
Este trabalho tem por objetivo analisar a expanso das lavouras de soja nas reas
de cerrado em direo s reas de transio da floresta Amaznica, orientando-se a
partir do seguinte problema de estudo: por que a consolidao dessas lavouras ocorreu
em bases de produo em larga escala, com grande mobilizao de capital e recursos
naturais? Para exemplificar a escala de produo nas lavouras de soja em Mato Grosso,
que ser mais bem detalhada no prximo captulo, o Censo Agropecurio de 1995/96
(INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATSTICA - IBGE , 1996)
indica que aproximadamente 78% das lavouras possuam rea superior a mil hectares.
Qual o sentido de propor um problema que tem como objetivo primeiro discutir
as possibilidades de realizao econmica em sociedades nas quais a economia vista
como o principal elemento gerador da vida social; nas quais as aes econmicas, seja
atravs dos meios de produo seja por meio das formas de comercializao,
globalizam-se pelos continentes, ampliando as suas possibilidades de realizao; nas
quais o capital rompe com as fronteiras nacionais para especular os mercados
financeiros de diferentes pases; nas quais os avanos tecnolgicos se mostram capazes
de eliminar os obstculos para a realizao plena da vida, ou pelo menos, para a
realizao plena da vida econmica. Enfim, qual o sentido de se apresentar um
problema dessa natureza em sociedades nas quais a economia parece se fazer presente
cada vez mais no cotidiano das pessoas?
O que est em jogo no o problema em si da viabilidade da produo em larga
escala na agricultura como uma atividade essencialmente capitalista, trata-se
fundamentalmente de questionar sob quais condies materiais e sociais ocorre a
29
reproduo do capital na agricultura. Portanto, o que se pretende no discutir a
eficincia ou a ineficincia da produo capitalista, mas introduzir novas possibilidades
tericas capazes de explicar como, de que maneira, com quais recursos e,
conseqentemente, por que a trajetria da agricultura nas reas de cerrado proporcionou
o estabelecimento de lavouras em grande escala. Ou seja, quais so as condies sociais
para que o capital se reproduza na agricultura em reas de fronteira?
Ao contrrio dos estudos econmicos voltados para a anlise da agricultura, este
trabalho fundamenta-se na idia de que a produo em larga escala, marcada pela
concentrao e centralizao de capital no uma caracterstica natural, intrnseca da
economia. Se ela toma essa conformao porque uma base material e social foi
construda para sua viabilizao; porque foras sociais agiram no sentido de criar as
condies necessrias e favorveis para que grandes propriedades pudessem se
estabelecer como unidades de produo no campo. Essa idia leva formulao da
hiptese, geradora das anlises neste trabalho, de que a dimenso econmica de
processos sociais especficos no est separada das demais dimenses que os
constituem. Isso equivale a dizer que os aspectos econmicos da expanso das lavouras
de soja nas reas de cerrado so construdos por relaes de interdependncia com os
aspectos polticos, sociais, culturais e ambientais. A especificidade do que
econmico e suas possibilidades de realizao no derivam da natureza da prpria
economia, mas dos tipos de associaes, de conflitos, de relaes que os agentes
estabelecem entre si, em uma configurao social especfica.
A partir dos anos de 1950, desencadeou-se um processo de mudanas na
agricultura brasileira que alterou tanto os sistemas produtivos quanto as estruturas de
produo. Essas mudanas coincidiram com a intensificao da industrializao da
economia nas regies Sudeste e Sul e com a incorporao de novas fronteiras para o
desenvolvimento do capital, atravs do programa Marcha para o Oeste1. A
industrializao favoreceu, como sugere Silva (1996), a implantao do departamento
de mquinas e insumos especficos para a agricultura, em substituio ao modelo de
importaes em vigor at ento, o qual, juntamente com as instituies de pesquisas e
sua difuso, acelerou o ritmo de incorporao de novas tecnologias.
Concomitantemente, as iniciativas federais de incentivos interiorizao da economia,
1 Para uma leitura complementar, ver: Ricardo (1970); Lenharo (1982) e Goodman (1986, p. 113-176).
30
inicialmente atravs do referido programa e, posteriormente, das iniciativas de
colonizao, estimularam a migrao de famlias e empresas para as novas frentes de
expanso agrcola, facilitando o acesso a terras e disponibilizando recursos financeiros.
Segundo Goodman (1986, p. 124),
O movimento da fronteira agrcola na direo do oeste ganhou alento aps 1940, quando a incorporao de novas terras de cultivo tornou-se objetivo importante da poltica de desenvolvimento agrcola promovida por programas federais de investimento em infra-estrutura [...]. Assim, a incorporao de novas terras de cultivo foi responsvel por 92% do aumento global da produo no perodo 1948-69.
Essas mudanas, que tiveram incio nos anos de 1950, ganharam novo ritmo a
partir dos anos de 1970, com as polticas desenvolvimentistas dos governos militares.
Alm de ampliar as possibilidades de acesso a terra, seja para as empresas da regio
Sudeste seja para colonos do Sul, atravs dos programas de colonizao, criaram as
bases necessrias, em termos de pesquisa, difuso e polticas de incentivos (crdito
rural), para a consolidao de uma estrutura produtiva pautada na concentrao de
capital e de recursos naturais e tecnolgicos.
No mbito das cincias econmicas (o plural se faz necessrio devido
diversidade de formas explicativas agrupadas no interior desse campo disciplinar), a
tese da modernizao constitui a base terica dos estudos mais correntes sobre o
desenvolvimento da agricultura2, realizados nas ltimas trs dcadas, cuja idia
bsica atribuir ao agricultor, enquanto agente econmico, a capacidade de prover as
transformaes necessrias para a modernizao da agricultura, reagindo
favoravelmente s inovaes tecnolgicas, aos estmulos de mercado e aos incentivos de
polticas pblicas. parte das singularidades das diferentes abordagens, elas
apresentam em comum o pressuposto de que a economia se manifesta como uma
dimenso estruturada segundo princpios, regras e lgicas prprias, manifestando,
assim, autonomia e independncia de outras dimenses que constituem processos
sociais especficos. Esse tipo de abordagem desvela-se no emprego de conceitos como
sistema de produo, cadeias produtivas, complexos agroindustriais, delimitados
2 O termo desenvolvimento da agricultura tem sido usado com muita recorrncia por economistas, socilogos, agentes mediadores e pelo Estado para traduzir um conjunto de mudanas, tanto da base tcnica da agricultura, como, de um modo geral, das relaes sociais de produo, que envolve, alm da incorporao de novas tecnologias, a diviso do trabalho, a composio de capital, formas de insero no mercado, mudanas essas orientadas por um padro de racionalidade cujo princpio a maximizao dos fatores produtivos.
31
por um conjunto de prticas, aes e relaes que se enquadram em um princpio da
racionalidade econmica, com vistas maximizao dos fatores produtivos, ou seja, os
atores tendem a agir segundo um padro de racionalidade que induz a eficincia
produtiva do sistema. Razo que no faz sentido elevar categoria de problema
questionamentos sobre as possibilidades de realizao das lavouras em larga escala em
regimes capitalistas de produo, uma vez que concentrao e centralizao de capital e
recursos naturais so compreendidas como condies necessrias para eficincia a
produtiva.
A hiptese apresentada anteriormente como idia motivadora das anlises sobre
a expanso das lavouras de soja nas reas de cerrado, cujo processo se desencadeia no
contexto das transformaes da agricultura brasileira, contrasta com a tese
modernizante. Considera que no uma condio intrnseca do capital, ou de uma
maneira mais geral da economia, a agricultura ter na sua base produtiva
estabelecimentos em larga escala como requisito inevitvel para o seu desenvolvimento.
Mas esse o resultado de um processo social de longa durao, em que foras sociais
agem no sentido de criar as condies materiais e sociais necessrias para o
estabelecimento de unidades produtivas em larga escala. Isso equivale a dizer, como
sugere Bourdieu (2003, p. 15), que o mundo social est inteiramente presente em cada
ao econmica e, por isso,
[] hay que recurrir a instrumentos de conocimiento que, lejos de cuestionar la multidimensionalidad y la multifuncionalidad de las prcticas, permitan elaborar modelos histricos capaces de dar razn, con rigor e minuciosidad, de las acciones y de las instituciones econmicas tal como se ofrecen a la observacin emprica.
Em seguida sero apresentadas algumas das principais abordagens tericas sobre
o desenvolvimento da agricultura brasileira, com o objetivo de indicar as idias chaves
de enquadramento das mudanas ocorridas na agricultura como desdobramento de aes
estritamente econmicas. No se trata de realizar uma reviso ampla e exaustiva das
diferentes perspectivas tericas, mas sim de trabalhar alguns elementos que ajudem a
desvendar a maneira pela qual a tradio econmica aplicada agricultura age no
sentido de subtrair a base social em que as prticas econmicas so construdas para
enquadr-las no princpio do mercado auto-regulado.
32
2.1 A Inovao Induzida
A Teoria da Inovao Induzida, formulada inicialmente por Hayami e Ruttan
(1988), no s teve grande repercusso como modelo terico para explicar as mudanas
tecnolgicas pelas quais passavam a agricultura, mas tambm, de acordo com Salles
Filho e Silveira (199?), teve implicaes importantes para a implantao de modelos
institucionais de pesquisa e desenvolvimento, assim como para a concepo de
instrumentos de polticas pblicas.
Seu postulado bsico que os agentes econmicos so sensveis s variaes de
preos que afetam o custo de produo e tendem a agir no sentido de substituir os
fatores escassos por fatores abundantes. Nas palavras dos autores, tecnologias podem
ser desenvolvidas de modo a facilitar a substituio de fatores relativamente escassos
(portanto, dispendioso) por fatores relativamente abundantes (e, portanto, baratos) na
economia. (HAYAMI; RUTTAN, 1988, p. 89). A modernizao da agricultura
tenderia a seguir o caminho desses ltimos: se o fator escasso mo-de-obra, investe-se
mais em pesquisa sobre mecanizao; por outro lado, se o fator escasso a terra,
investe-se mais em tecnologias que elevem a produtividade, como adubao e
melhoramento gentico.
Esses mesmos autores consideram que uma das principais contribuies dessa
teoria consiste em tratar o processo de inovao como endgeno ao sistema econmico,
j que mudanas na demanda por produtos refletem diretamente sobre os preos dos
fatores de produo e, por sua vez, os custos dos fatores induzem tendncias de
inovao:
O processo pelo qual se gera uma mudana tcnica tem sido, tradicionalmente, tratado como exgeno ao sistema econmico como um produto de avanos autnomos no conhecimento cientfico e tcnico. A teoria da inovao induzida representa um esforo para interpretar o processo da mudana tcnica como endgeno ao sistema econmico. Desse ponto de vista, a mudana tcnica representa uma resposta dinmica s mudanas na disponibilidade de recursos e ao crescimento da demanda (HAYAMI; RUTTAN, 1988, p. 100).
Duas idias bsicas, derivadas da teoria econmica neoclssica, contribuem para
a definio do modelo de desenvolvimento agrcola no qual a mudana tcnica tratada
como endgena ao prprio processo de desenvolvimento, sendo isso bastante ilustrativo
33
de um padro de pensamento que toma como pressuposto que a prpria economia
motriz das foras necessrias para esse crescimento. A primeira idia estabelece que o
agente econmico dotado de uma racionalidade calculadora capaz de identificar nos
estmulos de mercado o balano entre oferta de produo e custo dos fatores como
princpio indutor das inovaes tecnolgicas e, por conseguinte, de desenvolvimento
econmico. A segunda idia, derivada da anterior, considera que o mercado tende a
operar por um equilbrio entre demanda e oferta de produo, ao qual os agentes
reagem, buscando, atravs das inovaes tecnolgicas, a reduo dos custos de
produo e ampliando, desse modo, a sua competitividade no mercado. A no adoo de
novas tecnologias indutoras da utilizao de fatores menos escassos, ou seja, mais
baratos, pode ocasionar um desequilbrio do mercado, porque a baixa remunerao dos
fatores, causada pela estabilidade entre oferta e demanda, reduz o interesse pela
produo.
Nesse ciclo de desenvolvimento, cabe aos agricultores mais aptos, ou seja,
aqueles capazes de endogenizar os estmulos de inovao distanciando-se dos fatores
externos, moldar o padro de desenvolvimento econmico na agricultura. Por outro
lado, os menos aptos, aqueles que encontram dificuldades em cobrir os custos de
produo por utilizarem os fatores escassos, so pressionados a deixar a atividade.
Assim, [...] o progresso tecnolgico promove uma redistribuio dos ativos, fazendo
com que a produo comercial se concentre cada vez mais em fazendas cada vez
maiores, em um processo canibalstico. (VEIGA, 1991, p. 104).
Salles Filho e Silveira (199?), com base no enfoque neo-shumpeteriano,
consideram como ponto fraco da teoria da inovao induzida o princpio de que a
inovao tecnolgica seja conduzida por estmulos dos fatores escassos,
desconsiderando questes relacionadas s estratgias das empresas como ofertadoras de
tecnologias, ou seja, a capacidade da firma em endogenizar o processo de gerao e
de difuso de inovaes em ambiente concorrenciais. Segundo os autores,
O papel do mercado neste caso no o de fornecer sinais, via preos, para induzir o processo inovativo. O mercado atuaria como fornecedor de feed-backs ao processo de gerao, mas principalmente no sancionamento das inovaes, adotando e excluindo produtos e processos produtivos (p. 14).
A crtica apresentada por esses autores restringe-se a identificar os limites
tericos da inovao induzida por estmulos de mercados e acrescenta a importncia do
34
papel desempenhado pelas empresas na difuso de tecnologia como uma estratgia de
domnio de mercado. Os autores no problematizam o tema da endogenizao do
processo inovador ao sistema econmico; no levam em considerao as restries
tcnicas inerentes ao processo de inovao na agricultura, como sugere Romeiro (1991,
p. 49-50), para quem, nesse caso especfico, esse tipo de considerao particularmente
importante devido s especificidades ecolgicas que lhe so inerentes:
Trabalha-se neste setor com interaes fsico-qumicas e biolgicas de incrvel complexidade. Um determinado mtodo de interveno no sistema agrcola provoca uma cadeia de reaes que traa de modo preciso toda uma srie de problemas a serem resolvidos, os quais do origem a uma seqncia particular de inovao tcnico-cientficas [...] Em outras palavras, no possvel compreender a emergncia do atual padro tecnolgico de modernizao agrcola sem levar em conta estes fatores tcnico-ecolgicos.
Assim como as restries tcnicas, considerando-se as particularidades
ecolgicas da atividade, deve-se considerar ainda o papel desempenhado pela crtica
como expresso de relaes de foras no processo de inovao tecnolgica. A crtica
ambiental, pautada pela ao de movimentos ambientalistas, tem questionado o
modelo de desenvolvimento da agricultura no Brasil, especialmente no que diz respeito
ao acelerado processo de desmatamento, com forte repercusso sobre os mercados
agrcolas europeus. Preocupados com possveis restries comerciais, agricultores
comeam a endogenizar problematizaes tecnolgicas aos sistemas produtivos, em
alguns casos questionando a viabilidade ou no do uso de material modificado
geneticamente, no devido contabilizao dos custos de produo, mas a possveis
restries de mercado para o produto.
Portanto, observa-se que o processo de modernizao da agricultura brasileira
no pode ser explicado apenas pela identificao dos fatores econmicos que a operam,
seja pela capacidade de substituir fatores escassos por fatores abundantes, seja pela ao
das empresas em oferecer novas tecnologias como estratgia de domnios de mercado.
Esse um processo mais complexo que inclui fatores de outras naturezas, situados,
segundo Romeiro (1991), nas caractersticas biolgicas da atividade agrcola; ou, ainda,
nos processos de aquisio de terra em que nem sempre predominam as relaes
formais de mercado; nas caractersticas da fora de trabalho, em que o salrio nem
sempre uma boa medida para identificar as relaes contratuais; nas caractersticas
culturais dos agentes, que imprimem tempos diferenciados para a adoo de novas
35
tecnologias. Enfim, h uma srie de condies de acesso tecnologia que no se
enquadra no modelo explicativo da modernizao da agricultura via endogenizao
desses fatores ao sistema econmico. O tratamento insuficiente dessas variveis,
[...] no somente dificulta a explicao da emergncia de um novo padro tecnolgico, como tambm a explicao da difuso de um dado modelo de modernizao agrcola em pases, como o Brasil, onde o quadro scio-econmico, poltico, institucional etc. distinto daqueles dos casos clssicos estudados. (ROMEIRO, 1991, p. 54).
A tecnologia, no mbito dos estudos sobre a modernizao da agricultura,
compreendida, portanto, como um recurso produtivo cujo objetivo primeiro a reduo
dos custos de produo atravs da implantao de formas especficas de racionalidade
com vistas maximizao dos fatores. O desenvolvimento do capitalismo na
agricultura, de modo particular, aps a segunda Guerra Mundial, quando ocorreu um
processo mais intensivo de industrializao, tem sido analisado pelo ritmo e natureza
das mudanas tecnolgicas, responsveis por um aprofundamento da especializao da
produo e da diviso social do trabalho. importante destacar o entrelaamento
contnuo e dependente entre racionalizao da tcnica e gesto econmica como
elementos explicativos e tambm de justificativa da concentrao e centralizao de
capital nas unidades de produo agrcola. A formao dos Complexos Agroindustriais,
ou melhor, a formao do modelo terico a partir do conceito de Complexos
Agroindustriais procura associar o capital industrial agricultura e converter essa
associao no elemento explicativo da nova dinmica dessa atividade, que ganhou
destaque a partir dos anos de 1970.
2.2 Os Complexos Agroindstrias
Enquanto as teorias da inovao tecnolgica trabalham com os elementos
responsveis pela difuso e adoo de novas tecnologias, as teorias dos CAIs procuram
compreender de que maneira elas se enquadram na lgica de reproduo do capital na
agricultura.
36
Pela abrangncia e repercusso, as obras de Jos Graziano da Silva3 so de longe
as mais influentes nos estudos sobre as transformaes recentes da agricultura brasileira.
A mudana da base tcnica, proporcionada pela internalizao do D1 (Departamento de
Mquinas e Insumos) na agricultura, ocorreu simultaneamente a uma nova composio
de capital, levando formao dos CAIs, ponto alto da sua teoria. Conforme o autor,
A constituio dos CAIs pode ser localizada na dcada de 70, a partir da integrao tcnica intersetorial entre as indstrias que produzem para a agricultura, a agricultura propriamente dita e as agroindstrias processadoras, integrao que s se torna possvel a partir da internalizao da produo de mquinas e insumos para a agricultura. Sua consolidao se d pelo capital financeiro, basicamente atravs do SNCR (Sistema Nacional de Crdito Rural) e das polticas de agroindustrializao especficas institudas a partir dos chamados fundos de financiamento. O ponto fundamental que qualifica a existncia de um complexo o elevado grau das relaes interindustriais dos ramos ou setores que o compem. (SILVA, 1996, p. 31, grifos do autor).
Dois aspectos revelam-se centrais para a definio dos CAIs como unidade de
anlise do processo de industrializao da agricultura: o primeiro a especializao
da produo e, conseqentemente, do trabalho; o segundo, corolrio do anterior, a
relao intersetorial, criada pela interdependncia dos setores industriais e desses com a
agricultura. O princpio da especializao da produo deriva da teoria dos
mercados proposta por Lnin (1985), segundo a qual, nas palavras de Silva (1996, p.
85), [...] os mercados vo sendo criados medida que o prprio capitalismo se
desenvolve, pela ampliao da diviso do trabalho na sociedade. Portanto, o
crescimento do mercado (momento de concretizao da reproduo ampliada do capital)
depende da especializao da produo e da diviso social do trabalho, fechando um
ciclo que tende a se auto desenvolver com o aprofundamento da dependncia dessas trs
dimenses. Isso extremamente relevante do ponto de vista terico, pois se assume
como princpio que as foras capitalistas encontram no prprio capital o estmulo
necessrio para a sua reproduo.
A partir do momento em que a agricultura se insere no cenrio da
especializao, da diviso social do trabalho e da emergncia de novos mercados, ela se
transforma em uma atividade propriamente capitalista, ou seja, sua realizao fica
condicionada s possibilidades de reproduo do capital:
3 Ver: SILVA (1981, 1991, 1992, 1996, 1999).
37
[...] a ampliao de mercado interno apia-se no processo que da agricultura se separam, um aps outro, diferentes tipos de transformao das matrias-primas (e diferentes operaes dessa transformao) e formam-se ramos industriais com existncia prpria, que trocam seus produtos e servios (que agora j so mercadorias) por produtos da agricultura. Assim, a prpria agricultura se transforma e no seu interior se opera idntico processo de especializao (SILVA, 1996, p. 85-86)
A formao dos Complexos Agroindustriais, enquanto um processo
historicamente definido, delineia-se a partir da desestruturao dos Complexos
Rurais. Noo trabalhada, entre outros autores, por Incio Rangel4 para designar o
conjunto de atividades desenvolvidas no interior das fazendas da poca da Colnia,
assentadas na economia natural com sua incipiente diviso de trabalho (SILVA, 1996,
p. 84). Ao contrrio dos CAIs, as fazendas tradicionais formavam elas mesmas um
Complexo Rural na medida em que produziam no seu interior todos os bens necessrios
para a realizao da atividade principal, alm daqueles utilizados para garantir a
reproduo da fora de trabalho, como roupas e alimentos. Ou seja, alm da produo
de bens de consumo, internalizava [...] a produo de meios de produo (insumos,
mquinas e equipamentos), mas um D1 assentado em bases artesanais com o ferreiro,
o carpinteiro, o pedreiro, o domador de animais, o seleiro etc. (SILVA, 1996, p. 84).
Enquanto lgica de organizao da produo, o conceito de Complexos
Agroindustriais construdo em oposio ao conceito de Complexos Rurais: a
pluralidade de atividades no mbito do Complexo Rural substituda pela dedicao a
uma atividade central; o trabalho geral, em que o trabalhador participa de todas as
etapas do processo produtivo, substitudo pelo trabalho especializado; a fraca insero
no mercado, pela forte insero; a relativa autonomia do complexo, pela completa
dependncia de outros setores, formando novos complexos. Demarca a separao entre
uma economia natural, com incipiente diviso social do trabalho, e uma economia
formal, com forte especializao e diviso social do trabalho. Isso representa, em efeitos
prticos e tericos, um afastamento dos elementos sociais da formao econmica,
passando a orientar-se por uma racionalidade formal prpria das estruturas econmicas
capitalistas. O sentido da ao dos agentes econmicos fica condicionado prpria
lgica da dinmica econmica. Ao realizar essa operao, as prticas nele inscritas so
4 Ver: Kageyama (198?); Rangel (2000).
38
abstradas do mundo social, seguindo uma regularidade interna que independe das
foras externas5.
Toda a extenso do modelo terico aplicado anlise do desenvolvimento da
agricultura, no mbito dos Complexos Agroindustriais, tem como ponto de partida a
especializao da produo (que desencadeia uma srie de mudanas na economia e na
composio das relaes sociais) e como ponto de chegada a conformao das
estruturas socioculturais a esse modelo. Polanyi (2000, p. 77), ao trabalhar a passagem
do modelo econmico das sociedades pr-industriais para o das sociedades industriais,
quando o controle do sistema econmico se desloca da sociedade para o mercado,
faz a seguinte considerao, que ajuda a ilustrar a inverso do vnculo entre sociedade e
economia: em vez da economia estar embutida nas relaes sociais, so as relaes
sociais que esto embutidas na economia [...] A sociedade tem que ser modelada de
maneira tal a permitir que o sistema funcione de acordo com as suas prprias leis.
Esse tipo de considerao s se torna possvel na medida em que se dissociam as
prticas econmicas, mais precisamente, sua lgica de realizao, daquela constitutiva
das prticas sociais como um todo. exatamente essa a grande transformao
demonstrada por Polanyi (2000) e que caracteriza a passagem das sociedades pr-
industriais para as sociedades industriais; das sociedades em que a gesto econmica
orientada por mercados regulados pelos interesses de foras sociais, para sociedades em
que a gesto econmica influenciada por mercados auto-regulveis.
A construo do conceito de Complexo Agroindustrial expressa essa dissociao
ao tomar como ponto de referncia o efeito de distino das prticas econmicas
daquelas imersas no mundo social. Esse efeito pode ser observado, passo a passo,
quando da desconstruo do conceito de Complexo Rural para a elaborao do conceito
de Complexo Agroindustrial. Os arranjos de uma economia natural so substitudos
pelos arranjos de uma economia formal, isto , as prticas econmicas passam por um
processo de especializao e ao mesmo tempo de endogenizao ao sistema econmico. 5 Na definio do conceito de Complexos Industriais, Muller (1981, 1991) acrescenta a importncia dos interesses corporativos exercidos pelas associaes empresariais no mercado dos seus produtos, ou seja, das relaes de poder que o setor exerce para conquistar novos mercados ou manter os existentes. Nesse caso, introduz-se um elemento de carter no-econmico, a dimenso histrica das relaes de poder, para delimitar a configurao do complexo econmico. Segundo Silva (1996, p. 83), [...] ao estender o conceito de poder de mercado para incluir dimenses no-econmicas, Mller tornou imprecisa a delimitao do ncleo do CI, sendo obrigado a refazer o percurso histrico da sua construo. A crtica de Graziano a Mller coloca em evidncia que o modelo de anlise no comporta fatores de ordem no-econmica, correndo-se o risco de enfraquecer a fora de anlise do conjunto do modelo.
39
Trata-se de um movimento dialtico, na medida em que a idia de sistema s pode ser
construda caso o processo de especializao se materialize, funcionando como um
mecanismo de distino, definindo e ao mesmo tempo separando as prticas econmicas
das demais que constituem o cotidiano da vida social. O que se verifica nessa passagem
no apenas a construo de um novo conceito analtico que acompanha as mudanas
dos modos de produo na agricultura, mas a construo de novas possibilidades de
produo de conhecimento das cincias econmicas. Um dos elementos importantes
desse novo campo de conhecimento a iluso de que as prticas econmicas
abstraem-se do meio social nas quais esto inseridas. O mecanismo de abstrao tem
como objetivo produzir o efeito de autonomia, de independncia e de naturalizao.
O desenvolvimento da agricultura analisado, portanto, pela perspectiva do
condicionamento das relaes sociais de produo s lgicas de reproduo do capital,
direcionando o problema terico tanto para as mudanas tecnolgicas, que [...]
funcionam como o viabilizador da capitalizao da agricultura. (SILVA, 1981, p. 23),
quanto para a integrao de capitais, cujo objetivo elevar a taxa mdia de lucro do
conglomerado (SILVA, 1996, p. 27). Esses estudos expressam pouco interesse pelas
relaes que os agentes econmicos estabelecem com outros agentes sociais no
processo de construo das prticas econmicas.
Uma anlise mais detalhada do mercado de soja em Mato Grosso, constitudo
entre agricultores e empresas, indica que essa transao no mediada apenas por
relaes econmicas nas quais o vnculo entre os agentes termina com a finalizao da
troca. Essa relao tende a continuar num jogo de reciprocidade, de cordialidade e de
favores, enfim, num jogo de relao de foras com implicaes em transaes futuras.
Isso significa dizer que a eficincia do fazer econmico (pensando na capacidade de
gerao de renda) no se restringe apenas maneira como os agentes maximizam seus
investimentos, ou, por outro lado, minimizam os seus gastos, segundo uma lgica
formal de racionalizao econmica, mas abre-se para as possibilidades de se
mobilizarem diferentes tipos de recursos, disponveis e acessveis atravs das relaes
que estabelecem com outros agentes. Portanto, h uma base social, formada pela
interdependncia entre os agentes, que preciso recuperar caso se queira compreender a
trajetria da produo agrcola no Brasil.
40
2.3 Dos Sistemas Agroindustriais ao Agribusiness
Alm das teorias das Inovaes Tecnolgicas e dos Complexos Agroindustriais,
acima apresentadas, cabe ainda destacar as contribuies dos recentes trabalhos
desenvolvidos no mbito da teoria dos Sistemas Agroindustriais.
Esta abordagem d nfase articulao entre os diferentes momentos que
constituem o processo produtivo, procurando compreender as formas de associao, de
dependncia, que a produo agropecuria estabelece com a produo e distribuio de
insumos e mquinas, de processamento e de distribuio final.
Enquanto a teoria dos Complexos Agroindustriais tem por objetivo compreender
as formas de desenvolvimento do capitalismo na agricultura, ou seja, de que maneira a
agricultura se transforma em uma atividade essencialmente capitalista, definindo como
elemento de anlise a associao entre diferentes tipos de capital e a mudana do padro
tecnolgico, que concorrem para uma maior especializao da produo e diviso social
do trabalho, tal qual a atividade industrial. A teoria dos Sistemas Agroindustriais busca
compreender a estrutura de governana das cadeias de produo, com o objetivo de
definir qual o arranjo institucional capaz de elevar a eficincia do sistema em termos de
gesto dos recursos de produo e de distribuio, servindo de balizador [...] para a
formulao de estratgias empresariais e polticas pblicas. (ZYLBERSZTAJN, 2000,
p. 2).
Enquanto os estudos dos Complexos Agroindustriais explicam as mudanas
ocorridas na agricultura como resultado de um movimento mais amplo que ocorre na
economia brasileira marcado pela passagem de uma economia de base artesanal ou
natural para uma economia de mercado ou capitalista, os estudos dos Sistemas
Agroindustriais assumem como um fato consolidado, ou seja, naturalizado, o princpio
de que a agricultura uma atividade que se realiza em um ambiente econmico
competitivo, funcionando segundo as leis de mercado. Cabe, portanto, compreender
quais os arranjos institucionais mais adequados para elevar a eficincia competitiva do
sistema, ou da cadeia produtiva.
41
Sistema Agroindustrial, segundo Batalha e Silva (2001) e Zylbersztajn (1995,
2000), uma formulao conceitual derivada de dois conjuntos de idias, que, apesar de
guardarem diferenas metodolgicas entre si, apresentam pontos em comum: o primeiro
deles teve origem nos Estados Unidos, atravs dos trabalhos de Davis e Goldberg
(1957) e de Goldberg (1968), quando apresentaram pela primeira vez os conceitos de
Agribusiness e Commodity Sistem Aproach (CSA), respectivamente; o segundo conjunto
de idias derivado do conceito de filire, do mbito da escola industrial francesa nos
anos de 1960.
Agribusiness, segundo Davis, Goldberg (1957 apud ZILBERSZTAJN, 1995, p.
107), expressa a
[...] soma de todas as operaes associadas produo e distribuio de insumos agrcolas, operaes realizadas nas unidades agrcolas bem como as aes de estocagem, processamento e distribuio dos produtos, e tambm dos produtos derivados.
No conceito de CSA, os autores do nfase aos atores envolvidos com a
produo, o processamento e a distribuio de um determinado produto: O conceito
engloba todas as instituies que afetam a coordenao dos estgios sucessivos do fluxo
de produtos, tais como as instituies governamentais, mercados futuros e associaes
de comrcio. (GOLDBERG, 1968 apud ZILBERSZTAJN, 1995, p. 118). Por fim, o
conceito de filire foi definido por Morvan (1985 apud ZILBERSZTAJN, 1995, p. 125)
como
[...] uma seqncia de operaes que conduzem operao de bens. Sua articulao amplamente influenciada pela fronteira de possibilidades ditadas pela tecnologia e definida pelas estratgias dos agentes que buscam a maximizao dos seus lucros. As relaes entre os agentes so de interdependncia ou complementaridade e so determinadas por foras hierrquicas. Em diferentes nveis de anlise a cadeia um sistema, mais ou menos capaz de assegurar a sua prpria transformao.
Esses dois conjuntos de conceitos, forjados em ambientes acadmicos distintos
para estudar realidades empricas distintas, guardam semelhanas, mas tambm
diferenas nas suas formulaes: a) a base conceitual do CSA e do filire deriva da
matriz insumo-produto da teoria neoclssica que, segundo Zylbersztajn (1995, p. 117),
[...] deu base para a questo da dependncia inter-setorial e tambm expressa a
preocupao com a mensurao da intensidade das ligaes intersetoriais.; b) a
42
construo da anlise orientada pela seqncia de operaes do processo produtivo,
desde a produo de insumos at a gerao do produto final, ou at a sua distribuio ao
consumidor; c) ambos os enfoque enfatizam as relaes de dependncia intersetoriais
como elementos dinamizadores e delineadores da cadeia e, por conseguinte, da anlise;
d) a varivel tecnolgica, tambm de acordo com Zylbersztajn (1995, p. 125), recebe
tratamento especial nos dois enfoques, no entanto, a literatura de cadeias caracteriza-se
por uma anlise schumpeteriana enquanto no modelo de Harvard predomina uma viso
neo-clssica. e) finalmente, a noo de sistema modela tanto as anlises do CSA quanto
de filire, delimitando a fronteira de coordenao de eventos sucessivos e dependentes
do sistema agroindustrial; f) uma das principais diferenas entre o conceito francs e o
americano reside na importncia que a escola francesa atribui ao consumidor final como
agente dinamizador da cadeia (BATALHA; SILVA, 2001, p. 36).
Na sua formulao inicial, os modelos de CSA e filire consideram que a
agricultura se realiza como uma atividade dependente dos setores que fornecem
insumos, mquinas e capital e que distribuem a produo. A relao da agricultura com
cada um desses segmentos ou de cada um deles com a agricultura no apenas pontual
e restrita ao processo de troca. A matriz insumo-produto, caracterstica do pensamento
neoclssico, incorpora as relaes de dependncia que se estendem ao longo de toda a
cadeia produtiva, elevando-a ao nvel de sistema. A endogenizao das atividades e das
relaes ao nvel sistmico define que a agricultura est situada em um ambiente de
auto-alimentao e auto-realizao. Qualquer mudana nas estruturas de produo
significa mudanas no sistema como um todo e no seu ambiente. Assim, o foco da
anlise fica direcionado para as formas de coordenao do sistema e para os
mecan