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Vinte Anos da Constituição Federal (1988/2008): avanços e desafios para as políticas públicas e o desenvolvimento nacional Vinte Anos da Constituição Federal (1988/2008): avanços e desafios para as políticas públicas e o desenvolvimento nacional Plínio de Arruda Sampaio Aloísio Teixeira Raphael de Almeida Magalhães Gilberto Bercovici Plínio de Arruda Sampaio Aloísio Teixeira Raphael de Almeida Magalhães Gilberto Bercovici Perspectivas Do Desenvolvimento Brasileiro Ciclo de Seminários Seminário IV - Outubro 2008 Seminário IV - Outubro 2008

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Vinte Anos da Constituição Federal (1988/2008): avanços e desafios para as políticas públicas e o desenvolvimento nacional

Vinte Anos da Constituição Federal (1988/2008): avanços e desafios para as políticas públicas e o desenvolvimento nacional

Plínio de Arruda SampaioAloísio TeixeiraRaphael de Almeida MagalhãesGilberto Bercovici

Plínio de Arruda SampaioAloísio TeixeiraRaphael de Almeida MagalhãesGilberto Bercovici

Perspectivas Do Desenvolvimento

Brasileiro

Ciclo de Seminários

Seminário IV - Outubro 2008Seminário IV - Outubro 2008

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Governo Federal

Ministro de Estado Extraordinário de Assuntos Estratégicos – Roberto Mangabeira Unger

Secretaria de Assuntos Estratégicos

Fundação pública vinculada à Secretaria de Assuntos Estratégicos, o Ipea fornece suporte técnico e institucional às ações governamentais – possibilitando a formulação de inúmeras políticas públicas e programas de desenvolvimento brasileiro – e disponibiliza, para a sociedade, pesquisas e estudos realizados por seus técnicos.

Presidente Marcio Pochmann

Diretor de Administração e Finanças Fernando Ferreira

Diretor de Estudos Macroeconômicos João Sicsú

Diretor de Estudos Sociais Jorge Abrahão de Castro

Diretora de Estudos Regionais e Urbanos Liana Maria da Frota Carleial

Diretor de Estudos Setoriais Márcio Wohlers de Almeida

Diretor de Cooperação e Desenvolvimento Mário Lisboa Theodoro

Chefe de Gabinete Persio Marco Antonio Davison

Assessor-Chefe de Comunicação Estanislau Maria de Freitas Júnior

URL: http://www.ipea.gov.br

Ouvidoria: http://www.ipea.gov.br/ouvidoria

Projeto Perspectivas do Desenvolvimento Brasileiro Ciclo de Seminários Desafios e Perspectivas do Desenvolvimento Brasileiro Seminário IV: Vinte Anos da Constituição Federal (1988/2008):

avanços e desafios para as políticas públicas e o desenvolvimento nacional

Plínio de Arruda Sampaio Aloísio Teixeira Raphael de Almeida Magalhães Gilberto Bercovici Equipe Técnica Coordenação José Celso Cardoso Jr. Equipe Ricardo Luiz Chagas Amorim

Carolina Veríssimo Barbieri

Maria Vilar Ramalho Ramos

Carlos Henrique R. de Siqueira Organização do Evento Luiz Fernando Cortez

Andréa Ferreira da Silva

Natasha Sampaio

João Viana Transcrição e Edição Maria Vilar Ramalho Ramos

Carolina Veríssimo Barbieri

Carlos Henrique R. de Siqueira

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Sumário

Sumário

APRESENTAÇÃO ...................................................................................................................5

VINTE ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL (1988/2008): AVANÇOS E DESAFIOS PARA AS POLÍTICAS PÚBLICAS E O DESENVOLVIMENTO NACIONAL I

Plínio de Arruda Sampaio ..................................................................................................11

VINTE ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL (1988/2008): AVANÇOS E DESAFIOS PARA AS POLÍTICAS PÚBLICAS E O DESENVOLVIMENTO NACIONAL II

Aloísio Teixeira ..................................................................................................................17

VINTE ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL (1988/2008): AVANÇOS E DESAFIOS PARA AS POLÍTICAS PÚBLICAS E O DESENVOLVIMENTO NACIONAL III

Raphael de Almeida Magalhães...........................................................................................22

VINTE ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL (1988/2008): AVANÇOS E DESAFIOS PARA AS POLÍTICAS PÚBLICAS E O DESENVOLVIMENTO NACIONAL IV

Gilberto Bercovici ..............................................................................................................31

DEBATE: Gilberto Bercovici, Plínio de Arruda Sampaio, Raphael de Almeida Magalhães, Aloísio Teixeira ................................................................................................................................... 39

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SEMINÁRIO IV: VINTE ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL (1988/2008): AVANÇOS, LIMITES... 5

APRESENTAÇÃO

O IPEA elegeu a temática do Desenvolvimento Brasileiro – em suas mais importantes dimensões de análise e condições de realização – como o mote principal de suas atividades e projetos. Busca-se, com isso, retomar algo perdido desde os anos de inflação e crise, mas fundamental para qualquer país que almeje desenvolver-se: construir estratégias de desenvolvimento nacional em diálogo com atores sociais. Trata-se de projeto sabidamente ambicioso e complexo, mas indispensável para fornecer ao Brasil conhecimento crítico à tomada de posição frente aos desafios da contemporaneidade nacional e mundial.

Para tanto, foram delineados, de acordo com essa temática, sete eixos de atuação e pesquisa norteadores das atividades finalísticas do IPEA, a saber:

• Inserção internacional soberana;

• Macroeconomia para o pleno emprego;

• Fortalecimento do Estado, das instituições e da democracia;

• Estrutura produtivo-tecnológica avançada e regionalmente articulada;

• Infra-estrutura e logística econômica, social e urbana;

• Proteção social, direitos e oportunidades;

• Sustentabilidade ambiental.

A escolha da temática tem por objetivos primordiais:

1. enfatizar as atividades de planejamento de médio e longo prazo, propondo reflexões e diretrizes para o desenvolvimento econômico e social do país;

2. aprofundar a formulação, elaboração, acompanhamento e avaliação de políticas públicas;

3. apoiar a realização dos principais projetos e atividades governamentais, auxiliando na implementação de estratégias abrangentes e integradas;

4. criar novas metodologias de pesquisa e dar destaque ao estudo daquelas aplicadas em outros países; e

5. desenvolver sistemas de avaliação de políticas públicas com ênfase nos processos de inclusão social e de redução das desigualdades.

Frente a tamanhos desafios que estão colocados para a instituição, o Ipea vem realizando uma série de ações que vão desde o tratamento multidisciplinar dos temas pesquisados até a realização de um grande projeto denominado Perspectivas do Desenvolvimento Brasileiro. Este projeto pretende direcionar as preocupações do Instituto para a problemática do desenvolvimento nacional e seus desafios. Sua amplitude alcança estudos sobre os eixos delineados acima, a realização de cursos temáticos e sobre ferramentas de planejamento e avaliação e, ainda, a realização de um ciclo de seminários bimestrais sobre pontos fulcrais ao desenvolvimento do país. Esse ciclo, chamado ”Desafios e Perspectivas do Desenvolvimento Brasileiro” pretende ser uma plataforma de reflexão sobre as exigências e as oportunidades do desenvolvimento brasileiro, o que, para tanto, chama a colaboração de grandes nomes do pensamento nacional, debatendo assuntos de relevância estratégica para o país.

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6 SEMINÁRIO IV: VINTE ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL (1988/2008): AVANÇOS, LIMITES...

O primeiro seminário, “Perpectivas para o Brasil no Cenário Internacional”, realizado em abril de 2008, contou com a presença do economista Paulo Nogueira Batista Júnior e dos embaixadores Rubens Ricupero e Flávio Helmold Macieira.

Rubens Ricupero chama atenção para grandes movimentos de longo prazo que afetam diretamente nosso futuro. A questão energética, marcadamente as descobertas de petróleo no país, os problemas oriundos do aquecimento global e, por fim, a transição demográfica no Brasil e no mundo. Suas preocupações revelam que, ou nos preparamos devidamente para esses mega-fenômenos ou perderemos oportunidades e mesmo enfrentaremos crises.

Paulo Nogueira Batista Junior observa que as chamadas economias emergentes vêm ganhando espaço significativo no âmbito internacional e chama atenção para essa nova configuração de poder que se delineia. Brasil, Rússia, Índia e China têm, pelo seu desempenho econômico, suas considerações cada vez mais ouvidas, e hoje não se pensa em acordos internacionais sem a participação dos BRICs. Todavia, esse quadro de destaque internacional destoa da visão que os brasileiros têm de si mesmos e do país que constroem. Segundo o economista, a despeito do pessimismo que impera internamente, o país está mais forte, é bem visto e tem um futuro promissor a ser construído.

Por sua vez, Flavio Helmold Macieira expõe os grandes desafios e avanços da diplomacia brasileira em meio às transformações recentes do quadro mundial. Contudo, sua fala chama antes a atenção para a necessidade de o Brasil ser internamente forte, coeso e justo para melhor posicionar-se mundialmente. Só a partir daí é que o país poderá reivindicar participação maior nos fóruns e debates internacionais e ser pró-ativo em favor dos seus interesses. No fim, fica claro que o cerne de todo o esforço deve ser o desenvolvimento, único caminho capaz de levar o Brasil a transitar da Periferia para o Centro da economia e do poder mundial.

Em suma, os conferencistas tratam da importância do Brasil no cenário internacional, enfatizando que o país conta com uma diversidade de recursos próprios que favorecem sua posição enquanto global player. Contudo, apontaram também a deficiência do país na elaboração de um projeto para o futuro. Nesse sentido, o planejamento de longo prazo, baseado em estudos e pesquisas em temas estratégicos, como infra-estrutura e matriz energética, configura-se como grande desafio a ser enfrentado.

O segundo seminário, “Desenvolvimento, Estado e Sociedade: as relações necessárias, as coalizações possíveis e a institucionalidade requerida”, ocorrido em junho de 2008, contou como palestrantes com o cientista político Marco Aurélio Nogueira e o sociólogo Francisco de Oliveira. Ambos tiveram como desafio refletir sobre as condições e as possibilidades de articulação entre o social, o político e o econômico para a construção de um projeto democrático de desenvolvimento.

Marco Aurélio Nogueira destacou que, após o esgotamento dos modelos desenvolvimentistas dos anos 50 e 60, baseados na corrida pelo alcance dos índices econômicos dos países desenvolvidos, um projeto de desenvolvimento com sustentabilidade terá obrigatoriamente que levar em consideração o social. Em sua visão, uma espécie de pacto torna-se um elemento central e estratégico para a sua viabilidade e legitimidade. Nogueira alerta, no entanto, que a fragmentação do social e a crise da esquerda alijaram a sociedade dos canais tradicionais de expressão do descontentamento, tornando o vínculo entre o Estado e a sociedade ainda mais frágil.

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SEMINÁRIO IV: VINTE ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL (1988/2008): AVANÇOS, LIMITES... 7

Dessa maneira, para tornar-se exeqüível, um projeto de desenvolvimento deverá pensar também em maneiras de formar coalizões e colocar os pedaços estanques da sociedade em comunicação. Em outras palavras, as novas formas de institucionalidade que surgirão com os projetos de desenvolvimento deverão levar em consideração e reconhecer as novas formas de organização e sociabilidade daquilo que Nogueira denomina, parafraseando Zygmunt Bauman, de “vida líquida”.

Francisco de Oliveira, por sua vez, chama a atenção para as dimensões e a dificuldade do projeto que o IPEA se colocou. Ele faz questão de enfatizar que planejar políticas públicas ligadas ao desenvolvimento não é uma tarefa fácil, e nem sempre é suficiente, pois planejar significa fazer escolhas ou, em suas palavras, discriminar. Em sua visão, em certo momento de nossa história, o Estado brasileiro optou por um paradigma de desenvolvimento baseado num modelo simples, com o objetivo de prover subsistência à população.

Embora tenha surtido efeitos consideráveis, o problema desse modelo, segundo o sociólogo, é que, quando bem sucedidas, tais políticas passam a sustentar e não mais a eliminar a pobreza, mantendo parte da população em níveis ínfimos de sobrevivência. Para Francisco de Oliveira, no entanto, o Estado e a sociedade não podem renunciar ao desejo de ir além desse patamar. Ele conclui alertando que um projeto de desenvolvimento para o nosso tempo, e para a complexidade de nossa sociedade, deve avançar em relação às conquistas civilizatórias já atingidas.

As reflexões de Marco Aurélio Nogueira e Francisco de Oliveira destacam a necessidade do estabelecimento de novos canais de entendimento entre Estado e sociedade para além das estruturas dos partidos políticos. Ou seja, formas de institucionalidade que consigam traduzir as expressões da imaginação social e seus anseios em relação à direção e ao caráter dos projetos de desenvolvimento. Conforme sugerem, a complexidade do cenário no qual tais projetos se apresentam hoje exige uma reestruturação da relação entre Estado e sociedade que tenha maior mobilidade, mais flexibilidade e que seja igualmente complexa.

O terceiro seminário, “Redemocratização, arranjos partidários e pactos políticos: desafios à construção das instituições e da cidadania no Brasil” aconteceu em agosto de 2008, contando com as presenças de Fábio Wanderley Reis, Rachel Meneguello, Carlos Ranulfo e Maria Célia Paoli. O objetivo do evento foi discutir o papel dos arranjos partidários e alianças políticas no cenário brasileiro atual. Além disso, buscava-se fazer um balanço crítico do processo de redemocratização do Brasil e de construção da cidadania, tendo em vista sua importância para ampliação da coesão social e, conseqüentemente, para uma institucionalidade que favoreça o desenvolvimento.

O primeiro palestrante, Fábio Wanderley Reis destacou em sua intervenção o hiato existente entre os aspectos institucionais da dinâmica política e os seculares conflitos distributivos ainda não resolvidos da sociedade brasileira. Evocando a imagem da Belíndia, criada em 1974 pelo economista Edmar Bacha, Reis afirma que essa configuração social, que opõe a elite dirigente e partidária de um lado, e o “povo” de outro, acaba por colocar em xeque a credibilidade do próprio sistema político. E essa contraposição, por sua vez, se traduz numa visão extremamente negativa do processo eleitoral.

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8 SEMINÁRIO IV: VINTE ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL (1988/2008): AVANÇOS, LIMITES...

Apesar disso, o autor vê como importante a atual relação existente entre o avanço da democracia e a redistribuição, na qual candidatos e partidos (não só no Brasil, como na América Latina) têm sido obrigados a se comprometer com programas de maior penetração social, como o Bolsa-Família e outros, para tornarem-se atores relevantes no jogo político.

A análise de Rachel Meneguello centra-se no jogo político que está na base do presidencialismo de coalizão, e no que ela considera ser seu paradoxo. Por um lado, a autora traz dados importantes sobre a construção histórica do sistema de negociações no qual se apóiam os acordos políticos. Ela destaca a lógica e a estabilidade desse sistema que, em sua visão, funciona bem no sentido de proporcionar condições adequadas à produção da governabilidade. Por outro lado, no entanto, ela faz notar que, a despeito da consolidação da democracia, da estabilidade e regularidade das eleições em todos os níveis, existe um alto grau de desconfiança por parte dos cidadãos em relação aos agentes políticos e às instituições representativas.

Carlos Ranulfo, por sua vez, analisa a institucionalidade do processo decisório no Brasil, a partir da configuração do cenário partidário de hoje. O autor constata a crescente formação de certo bipartidarismo, especialmente no período posterior a 1994, quando um novo consociativismo emerge tendo o PMDB como fiel da balança. Uma das forças desse sistema bipartidário seria formado, em sua opinião, por um campo de centro-esquerda, mais heterogêneo e com menor capacidade de negociação; e um segundo campo, formado por forças de centro-direita, mais homogêneo e, portanto, mais capaz de formar maiorias parlamentares. Para Ranulfo, essa configuração do poder dificilmente poderá proporcionar as alianças necessárias para importantes reformas que deveriam ser realizadas no país, sugerindo que um maior diálogo entre essas duas forças, seria benéfico para alguns dos importantes desafios que o país enfrentará no futuro.

Já Maria Célia Paoli destaca a visão do cidadão em sua relação com a política instuticionalizada. Em sua perspectiva, há sim uma grande rejeição popular não só à política (no seu aspecto institucional), mas também uma forte crítica ao judiciário (que é percebido como um agente político também). Contudo, ela chama a atenção para o fato que a política, em seu sentido mais amplo, sobretudo no que tange à concepção dos movimentos sociais, passa por outro caminho que não a institucionalidade. E, embora muitas lutas e reivindicações acabem ao longo do tempo sendo incorporadas à institucionalidade estatal e afastando a participação direta, tais movimentos foram e continuam sendo os protagonistas da abertura de novos espaços de participação, de novas questões socialmente relevantes, e de uma nova agenda pública de demandas.

As intervenções ocorridas no seminário mostram uma diversidade de entendimentos sobre a institucionalidade política no cenário da redemocratização. Mas os pontos convergentes mostram que os arranjos partidários necessários ao funcionamento do nosso presidencialismo de coalizão, embora efetivo, nem sempre produz efeitos salutares. Além disso, a heterogeneidade dos campos políticos dominantes manda sinais pouco claros para a sociedade que, às vezes, não compreende e, outras vezes, não aceita determinadas estratégias, acordos ou alianças para a formação das maiorias parlamentares. Por isso, embora o sistema político

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SEMINÁRIO IV: VINTE ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL (1988/2008): AVANÇOS, LIMITES... 9

brasileiro tenha se estabilizado e se expandido desde a redemocratização, há uma percepção por parte de todos os participantes do evento que há um crescente abismo e uma sensação de falta de identidade entre as instâncias representativas e a sociedade que ela deveria representar.

O quarto seminário, “Vinte anos da Constituição Federal (1988/2008): avanços e desafios para as políticas públicas e o desenvolvimento nacional”, ocorrido em outubro de 2008, aproveitou o marco dos vinte anos da Constituição Federal para revisitar o projeto econômico e social inscrito na Carta Magna. O objetivo era refletir sobre seus avanços e limites, além de reavaliar os horizontes ali colocados para a promoção de políticas públicas e do próprio projeto de desenvolvimento nacional. Para tratar destas questões, participaram do evento Plínio de Arruda Sampaio, Aloísio Teixeira, Raphael de Almeida Magalhães e Gilberto Bercovici.

Plínio de Arruda Sampaio enfatizou que uma avaliação correta da Constituição depende de uma compreensão adequada dos processos políticos e econômicos que a antecederam e que levaram à necessidade de formação de um novo pacto nacional. A partir de um relato complexo, ele narra a história da decomposição do regime militar e das forças que o apoiaram, o momento de efervescência das forças populares, com os avanços e retrocessos durante os debates parlamentares, até a desfiguração do texto de 1988, com as inúmeras emendas que ameaçam seu projeto original. Por fim, ele elenca uma série de capítulos que, em sua visão, constituiriam algumas das conquistas válidas ainda hoje.

Aloísio Teixeira tentou reconstituir, a partir do texto original, uma espécie de ossatura básica da Constituição. Seu objetivo foi tentar compreender que tipo de Estado e de sociedade ela vislumbrava no momento de sua promulgação. Em sua proposta de avaliação, Teixeira destaca imensos avanços, como o da descentralização das decisões orçamentárias, a instituição do princípio do planejamento, o estabelecimento do mercado interno como patrimônio nacional, a proposta de integração do Brasil com seus vizinhos sul-americanos, dentre outros. O Estado delineado pela Constituição de 1988 era, na visão de Teixeira, democrático, nacional, descentralizado e tinha como missão a promoção da justiça social. O ponto negativo dessa história é que ela se desenrolaria justamente em um ambiente extremamente desfavorável, caracterizado por um ajuste estrutural da economia internacional (que geraria taxas ínfimas de crescimento) e de retração das forças populares em decorrência do refluxo do movimento operário. E esse cenário já não proporcionava mais espaço para a sustentação de um projeto político com tais características.

Raphael de Almeida Magalhães faz um relato histórico importante e minucioso da construção do capítulo da seguridade social na Constituição, período no qual foi Ministro da Previdência. Em sua intervenção ele proporciona um entendimento claro das dificuldades políticas, dos avanços e recuos, e das complicadas negociações que estiveram na base da construção de um sistema que, em sua visão, foi um dos mais importantes e justos instituídos pela Carta Magna.

Gilberto Bercovici analisa a Constituição Federal de 1988 à luz da teoria constitucional. Refutando a tese de que esta seja uma Constituição que coloca obstáculos ao desenvolvimento econômico e social, e gera instabilidade política, o autor mostra como seu modelo é consoante com o de outras constituições do período

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de redemocratização que se caracterizam por ter absorvido muitas das demandas dos grupos sociais populares, isto é, aqueles grupos que conquistaram espaço político e representatividade no século XX. Em sua avaliação, a Constituição brasileira expressou também boa parte de um projeto nacional de desenvolvimento criado entre os anos de 1930 a 1950, e que se concretizou tanto no capítulo da ordem econômica, quanto no estabelecimento dos direitos sociais. Bercovici conclui de forma otimista, sugerindo que, à despeito de todas as reformas instituídas pelos últimos governos, o seu esqueleto (de caráter predominantemente social-democrata, segundo ele) ainda sobrevive devido à sua legitimidade.

Por fim, as avaliações sobre a Constituição de 1988, realizadas pelos autores, acima foram unânimes em considerá-la um instrumento essencial no processo de redemocratização, e no enfrentamento da dívida social que o modelo de desenvolvimento brasileiro do século passado havia criado. Outro ponto que une as avaliações é a percepção do enorme retrocesso que significou muitas das reformas e emendas realizadas desde sua promulgação. Mas, embora tenham retirado importantes conquistas, grande parte dos direitos ali inaugurados parecem ter se integrado ao imaginário social de forma consistente.

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SEMINÁRIO IV: VINTE ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL (1988/2008): AVANÇOS, LIMITES... 11

VINTE ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL (1988/2008): AVANÇOS E LIMITES, DESAFIOS E HORIZONTES PARA AS POLÍTICAS PÚBLICAS E O DESENVOLVIMENTO NACIONAL I*

Plínio de Arruda Sampaio1

Nós viemos aqui para avaliar a Constituição. Em 20 anos, o que aconteceu, o que ficou, o que valeu, o que não valeu? Avaliação quer dizer: aferir valor. Portanto, para aferir valor eu tenho que comparar alguma coisa com um parâmetro. Toda avaliação é uma comparação. Portanto, avaliarei esse texto chamado Constituição Federal a partir de um parâmetro. Antes, porém, é necessário destacar uma coisa importante para discutirmos a partir da realidade: a avaliação aqui se refere ao texto de 1988, pois isso que está aí não é mais o texto original.

Quais seriam então, os parâmetros dessa avaliação? O parâmetro é o conceito de Constituição. Mas o que é uma Constituição? Constituição é a organização de um Estado, um Estado-nação (pelo menos da Constituição moderna) que se faz numa determinada oportunidade para institucionalizar esse Estado. O que é essa institucionalização? Ela é, na verdade, um processo de cortar privilégios e de reconhecer direitos. Ou seja, uma Constituição é feita exatamente por uma força vencedora para tirar os privilégios da força derrotada e reconhecer os seus direitos. É isso que define um processo constitucional. Em minha perspectiva, no entanto, creio que o mais importante numa Constituição é o processo que ocorre antes de sua produção. Porque uma Constituição é uma coisa que ocorre após um forte embate político que, geralmente, retira poder de um grupo social dominante e gera um outro poder, que precisa se institucionalizar.

O primeiro parâmetro que eu quero trazer para julgar essa Constituição (do texto que saiu em 1988, que eu assinei, porque esses outros eu não assinei) é o seguinte: o que quer dizer “lei” no Brasil? No Brasil existem três categorias de pessoas em relação à lei. Há os que têm que obedecer a lei, e os que não precisam. Para cerca de 80 milhões de brasileiros, a nossa Constituição quer dizer muito pouco, isto é, se quer dizer alguma coisa. Para cerca de 60 milhões, entre os quais estamos incluídos, a Constituição tem validade. Se um guarda quiser nos prender nós perguntamos o seu nome e se ele tem uma ordem de prisão. Mas, seja pobre, seja pedreiro, e pergunte para o guarda qual é o mandato que ele tem para prendê-lo! Na minha casa ninguém entra, na de vocês também. Se entrar é com mandato de juiz e no tempo do sol –

* Documento em versão preliminar, sujeito a revisão. 1. Plínio de Arruda Sampaio é formando em Direito pela USP, foi eleito Deputado Federal em 1962. Na Câmara, tornou-se relator do projeto de reforma agrária que integrava as “Reformas de Base” do governo João Goulart. Após o Golpe de Março de 1964, exilou-se no Chile onde trabalhou na FAO. Cursou o mestrado em Economia Agrícola na Cornell University, (EUA). Retornando ao Brasil em 1976, fundou o Centro de Estudos da Cultura Contemporânea (CEDEC). Na vida partidária, integrou os quadros do MDB, e ingressou no Partido dos Trabalhadores em 1980. Em 1986 retornou a Câmara dos Deputados como o 2º. Deputado mais votado do PT. Durante seu mandato durante a Constituinte defendeu projetos de reforma agrária e presidiu a Subcomissão de Municípios e Regiões. Foi líder de sua Bancada na Câmara entre 1987 e 1990. Em 2005 desligou-se do PT e fundou o Partido Socialismo e Liberdade. Atualmente é Presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA) e Diretor do jornal Correio da Cidadania.

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12 SEMINÁRIO IV: VINTE ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL (1988/2008): AVANÇOS, LIMITES...

assim diz a Constituição. Mas seja um favelado e more no morro da Rocinha, e veja quando é que entra e como é que entra um policial na sua casa. Então, essa lei que nós vamos discutir tem vigência para uns 60 milhões.

Por outro lado, avalio que haja algo como 500 mil pessoas que estão acima da Constituição. Quem consegue um habeas corpus em 24 horas no Supremo Tribunal Federal, como aconteceu há pouco, está acima da Constituição, pois todas as outras pessoas esperam dois anos apenas para que os relatores de seus processos sejam designados. Portanto, estamos falando de um processo muito parcial na sociedade brasileira. Isso é importante para não nutrirmos ilusões, tecendo fantasias sobre a nossa realidade. A Constituição é um instrumento dentro deste quadro.

O segundo parâmetro é: quais foram as forças vitoriosas que possibilitaram a realização da constituinte? Quem venceu para que fosse necessário criar uma constituinte? Isto se coloca da seguinte maneira: esse antes da Constituição, o antes do processo constituinte esteve pautado pelo grande projeto brasileiro depois dos anos 30, de construção de uma nação industrial na periferia do sistema capitalista. Esse é um projeto que está sempre associado a Getúlio Vargas, associado a Juscelino Kubitschek, ao que foi, enfim, a minha geração. Nasci em 1930, e tenho, portanto, minha vida consciente passada no interior desse processo de fazer esse projeto virar realidade.

O que de decisivo ocorreu nos anos 80, precedente à Constituição, foi justamente a inviabilização da construção de um projeto nacional na periferia do sistema. O que estava ocorrendo no mundo era uma nova divisão internacional do trabalho, na qual o Brasil, que era periférico, continuou periférico e, na minha opinião, mais periférico. Portanto, esse período que antecedeu a Constituição foi muito ruim, porque nós não fomos vencedores para fazer uma nação. Nós fomos derrotados.

Outro elemento que precedeu a Constituição, no front interno, foram três processos. Por um lado, uma retirada militar, determinada da seguinte maneira: “lenta, gradual e segura”. Que ela foi lenta, todos nós sabemos. Que ela foi gradual, também. Primeiro faz-se uma distensão, depois faz-se uma semi-anistia. Trouxeram o Plínio, que não era tão perigoso, o Almino [Afonso],2 que é gente finíssima, mas não os guerrilheiros. Depois veio todo mundo. Mas demorou para eu perceber o que era o “segura”.

Abertura “segura” significava que iríamos sair de um ponto, daríamos uma volta, mas retornaríamos ao mesmo ponto inicial. A sociedade era hierárquica, o establishment burguês estava aí; ele mexeria em tudo, só que voltaríamos ao mesmo Estado burguês. Ou seja, o povo que estava sem direitos, iria ganhar algumas concessões, mas nada iria frear o que já estava estabelecido. É isso que significava “segura”. Isso é o que estava na cabeça do Golbery [do Couto e Silva],3 e foi isso o que aconteceu.

Houve um outro processo igualmente curioso. Na hora em que o mundo disse que não era mais possível ter uma nação industrial, autônoma, independente, um Estado nacional como a França, a Inglaterra, a Alemanha, a Itália, na periferia, o que faz a burguesia brasileira? (burguesia essa que nasceu nesse processo; e foi criada pelo

2. Almino Afonso, ministro do Trabalho e Previdência Social no governo João Goulart. Cassado em 1964, retornou ao Brasil em 1976. 3. Golbery do Couto e Silva ocupou diferentes cargos durante o Regime Militar. Foi ministro Chefe da Casa Civil, Planejamento e Justiça.

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SEMINÁRIO IV: VINTE ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL (1988/2008): AVANÇOS, LIMITES... 13

Estado brasileiro corporativo). Ela ficou no seguinte dilema: faço, continuo o processo e brigo com o centro do capitalismo, ou concordo e aceito uma posição secundária? Só que nesse processo ela viraria uma burguesia de pequenas comissões, que é o que acontece hoje. É só ver os operadores. Eles estão nos jornais todos os dias. Alguns dentro da burguesia diziam: vamos brigar! Outros diziam: “vamos aceitar logo esse negócio”.

Terceiro processo: a ascensão de massas. Em 1964 houve um primeiro movimento de ascensão de massas. Esse processo foi um pouco exagerado, e, às vezes, muito maltratado. O Caio Prado tratou muito mal a nós, nós do Jango, em 1964. Ele disse que nós não éramos de nada. Acho que foi meio injusto. Mas também não era um movimento de massa que estava com a revolução na porta.

Este processo teve 20 anos de catacumba, e ele emerge da catacumba na hora em que os militares deram algum espaço. Então você tem os militares se retirando, divididos lá dentro (vejam a OAB e vejam o Rio-Centro4). A burguesia estava perplexa e não mandava sinais muito claros para o centro político, e o centro político estava, por sua vez, sem esses sinais (o centro político era composto por Ulysses Guimarães, Franco Montoro e Tancredo Neves; eles eram grandes figuras).

Portanto, realmente há uma situação curiosa na constituinte. Há um exército lutando e fazendo alianças para poder abrir e se retirar, já que ele se legitimava pela competência e pelo resultado. No entanto, não houve mais resultado porque não existiam condições de manter um crescimento de 10%, 9%, 13% ao ano, como nunca mais houve. Dessa forma, ele teve que recuar e se retirar. Enquanto a burguesia hesitava, o povo vinha dizendo: agora nós vamos!

Foi isso que formou a problemática da constituinte: será necessário incorporar um pouco da massa. Mas até onde? O que se vai permitir? Qual é o tamanho do corte do privilégio, e qual é o tamanho do reconhecimento de direitos? Foi justamente isso o que foi discutido. Só que não foi discutido assim. Ninguém viu isso falado dessa maneira, porque isso foi dito da seguinte maneira: Colégio Eleitoral ou Diretas Já?

E aí você tem, curiosamente, a mudança das alianças. Porque para poder fazer a eleição direta, teve que fazer um entendimento entre o grupo do Ernesto Gaisel, uma parte do exército, que chamaremos de “grupo democratizante”; o “centro”, cuja figura era Ulysses Guimarães; e o “grupo popular”, representado por Lula. Mas na hora que o povo foi para rua, que venceu, e dobrou o sistema militar e pedia a eleições, as Diretas já não poderiam ocorrer porque os militares vetaram. E por que eles vetaram? Porque o povo ganharia poder demais; e se ele ganhasse poder demais a retirada já não seria “lenta, gradual e segura” para a burguesia e para os militares (aliás, a saída foi tão segura que até hoje não conseguimos saber quem torturou e quem não torturou). Nesse momento, o centro foi para a direita. Ele aceitou o colégio eleitoral e derrotou a massa popular.

Depois, o problema era se a constituinte seria congressual ou exclusiva. E os nossos amigos advogados, que adoram discutir direito, fizeram tremendas digressões sobre o assunto. Na verdade, discutiu-se o seguinte: a constituinte vai poder tomar, 4. O autor faz referência à carta-bomba enviada à sede da OAB, no Rio de Janeiro, em 27 de agosto de 1980, vitimando a funcionária Lydia Monteiro da Silva; e ao atentado do Rio-Centro, ocorrido em 30 de abril de 1981, quando uma bomba explodiu dentro de um carro, matando os dois oficiais do exército responsáveis por plantar a bomba em um evento público que ocorria no local.

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enquanto está fazendo a Constituição, alguma deliberação que fira as leis institucionais da Ditadura ou não? Porque se puder é um perigo, não é segura. Se não puder, tudo bem, dará tempo para organizar a segurança.

Nessa hora nós tivemos de novo uma grande discussão que se deu em dois tempos. No primeiro tempo, discutia-se se haveria uma constituinte congressual ou não, no qual defenestraram o relator, que era o Flávio Bierrenbach5, e fizeram a constituinte congressual. E quando se entrou na constituinte, veio de novo a mesma discussão sobre a forma, no regimento interno, se era permitido ou não fazer decreto que tivesse força de lei própria. Houve então um embate tão apaixonado quando fiz parte da comissão que falei: “isso é briga de cachorro grande, não dá nem para entrar”.

Mas havia uma outra briga ali que não foi muito percebida, e passou: a Constituição não começou com um texto pronto – como foi feito pelo professor Mário Masagão,6 em 1946 –, e depois sujeita a emendas do Plenário. Ela começou com 24 Comissões Temáticas que devem chamar as pessoas do povo, ouvi-las e acolher as emendas populares. Nesse momento foi que algo inédito aconteceu, o decisivo: o povo acreditou e foi para o Congresso. Tínhamos uma média de 30 mil pessoas por dia. Os corredores foram inundados, assim como os gabinetes dos deputados. Topávamos com delegações a todo o momento. Foi a primeira vez, por exemplo, que as prostitutas fizeram uma delegação para exigir seus direitos. Foi a primeira vez que os gays foram à constituinte para exigir os seus direitos também. Todos foram, inclusive ministros do Supremo Tribunal Federal. A diferença é que os ministros do Supremo não iam para o Plenário, mas sim para o gabinete do Ulysses Guimarães. Foram também generais, carteiros, marinheiros e outros.

Naquele tempo a CUT era a CUT, coisa que depois acabou. Do mesmo modo, o PT era o PT, e depois deixou de sê-lo. Naquele tempo a CUT colocava um grande cartaz com a cara do cidadão que não votasse numa matéria de seu interesse. Isso era terrível e mortal no colégio eleitoral do dito cujo. Eu recebi inúmeras solicitações para tirar o cartaz pelo menos na cidade do deputado. Eles diziam: “pelo menos na minha, porque o meu filho vai na escola, Plínio, fica olhando aquilo ali, é uma humilhação, tira da minha cidade, eu já voto com você esse negócio que você quer aí.” Desde que não fosse a propriedade privada, eles podiam fazer vários negócios.

Pois bem, o que aconteceu? A presença do povo nos corredores e nas ruas, e a chegada das emendas populares deixaram a burguesia perplexa. No primeiro tempo estava 1 x 0 a favor do povo. Nós fizemos uma Constituição parlamentarista, programática, para criar um Estado de bem-estar social. Mas esse projeto não passou do primeiro tempo porque, no segundo tempo, os homens responsáveis da burguesia resolveram se reunir aqui no Hotel Carlton. Eles se reuniram, chamaram os deputados, e disseram: “isso não pode não, imagina se isso aqui vai para o Plenário, isso é uma loucura. Tem que parar com isso. E pára com esse negócio de querer fazer nação aqui. Não, não, nós temos que aceitar o que nós somos”. Então se formou um negócio chamado Centrão e ele derrotou a todos.

5. Flávio Bierrenbach, deputado pelo PMDB na legislatura dos anos de 1983-1987. Foi relator da Comissão Mista encarregada de convocar e instalar a Assembléia Constituinte de 1988.

6. Mário Masagão foi professor de Direito da USP, e Deputado Constituinte pela UDN na legislatura dos anos de 1946-1950.

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Mas o peso do povo era tão grande que não foi possível tirar tudo. Um dos problemas dessa burguesia perplexa foi que ela pôs na Comissão de Economia o senador Severo Gomes, que era um burguês. Quando eu fiz o plano de reforma durante o governo Carvalho Pinto7 em São Paulo, ele foi nosso inimigo figadal. Porque ele não queria nem pensar na revisão agrária que nós propusemos. Ele era de direita, só que era nacionalista. Por esse motivo ele fez um capítulo protecionista. Ele reservava o mercado brasileiro para a empresa brasileira; e reservava as riquezas naturais para o Estado brasileiro. Ele montou um capítulo econômico fantástico.

Embora o Centrão tenha arrebentado com quase tudo, esse capítulo especificamente ele não conseguiu derrubar. Quem acabou com esse capítulo foi Fernando Henrique Cardoso, muitos anos depois. E acabou com tudo mesmo.

Com isso, e esse é outro momento, aquilo que foi uma concepção mais ou menos harmoniosa perdeu a harmonia. Nós fizemos uma Constituição para ser parlamentarista, e ela virou presidencialista. Institutos, por exemplo, como a medida provisória, que tem muito sentido na ordem parlamentarista, porque no interregno de governo é preciso que o Ministro interino tenha força para resolver alguma coisa. Porém, na ordem presidencialista ela não tem sentido, e a medida provisória virou um decreto-lei que transformou o Legislativo num apêndice do Executivo.

Gostaria de enfatizar quais avanços acho que ainda permanecem. A constitucionalização dos direitos trabalhistas não instituiu nem reconheceu direito nenhum, porque já estava tudo na legislação do Getúlio Vargas. Apenas tiramos da legislação ordinária, e pusemos na Constituição para ser mais difícil de revogar, e nada mais. Na ocasião, os juristas, os constitucionalistas, diziam: “mas como? Isso não é matéria constitucional!” Eu falei: “e o que é constitucional?” Constitucional, para mim, é o que entra na Constituição. Na Constituição inglesa, por exemplo, que é oral, tem quatro Leis. Uma delas diz assim: “O Duque de Norfolk tem o direito de se sentar três cadeiras à direita do Rei em qualquer solenidade pública”. Ora, eu acho que inserir a lei trabalhista, que garante férias para o operário, é tão constitucional quanto isso.

Eu quero dizer o seguinte: nós pusemos na Constituição o que foi possível.

A previdência social foi um tremendo avanço. E isso se deve muito ao professor Aloísio Magalhães. Houve inclusive um pequeno artigo de lei que passou batido. Nem eu mesmo lembrava muito bem dele. O artigo diz o seguinte: o homem e a mulher, aos 60 anos de idade, que teve uma economia familiar como agricultor, posseiro, minifundista, pescador artesanal, ou como garimpeiro, enfim, o homem que conseguiu sobreviver, o país concede um salário mínimo para ele. Esse foi a meu ver o artigo mais importante dessa Constituição, aquele que realizou a maior distribuição de renda que já houve até hoje, informação essa confirmada inclusive pelo IPEA. É bom lembrar que só não houve uma fome mais grave em 1997 porque o pessoal tinha dinheiro na mão.

O mais importante, no entanto, não foi isso e sim o resgate da dignidade da pessoa idosa, da família camponesa, do handicapped que era, em termos americanos, uma liability, e virou um asset. Foram 36 bilhões de reais. O bolsa-família é pequeno perto disso. Esse foi um avanço real, que está provocando um movimento que nós precisamos começar a entender, para não ficar dizendo coisas do passado por aí.

7. Carvalho Pinto foi governador do Estado de São Paulo entre os anos de 1959-1962.

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Em terceiro lugar, houve o capítulo do meio-ambiente. Sem dúvida nenhuma, um grande capítulo. Índios: uma beleza de capítulo! Na minha área, que eu fui lá relator do Poder Judiciário houve a Adin, o juizado especial e o Ministério Público; sem dúvida são avanços.

Um retrocesso, no entanto, foi o direito de propriedade, que permaneceu praticamente intacto: jus utendi, jus fruendi, jus abutendi, com uma pequena função social difícil de mostrar, que até hoje não funcionou. O outro retrocesso foi a Reforma Agrária.

Para concluir, vou dizer que aquilo foi uma grande ilusão. Hoje estou convencido disso. Na época não, é óbvio. Mas hoje, vendo restropectivamente, acho que foi uma grande ilusão em que caímos todos. Eu, por exemplo, não tenho muita dificuldade para me iludir. Primeiro, porque eu sou muito fácil de ser iludido, tanto que eu fui iludido pelo Fernando Henrique Cardoso; depois, pelo Lula. Mas até o Florestan Fernandes, que era um marxista daqueles, noivou com a Rosa Luxemburgo e conhecia tudo, também se iludiu.

Qual foi a nossa ilusão, e uma ilusão que eu acho que nós precisamos perder se quisermos caminhar? A ilusão de que é possível domesticar o capitalismo; de que é possível fazer um capitalismo com cara humana; de que é possível recompor um Estado de bem-estar social. O que eu tiro da Constituição como um avanço é essa consciência de que nós precisamos enfrentar os problemas do país com muito mais radicalidade, com muito mais profundidade do que nós conseguimos naquele tempo.

Vocês me perguntarão: joga essa Constituição fora? De jeito nenhum! Ela é a arma que nós temos hoje. Hoje não temos um processo que justifique uma nova constituinte. Nós temos que criá-la com lucidez.

Muito obrigado.

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VINTE ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL (1988/2008): AVANÇOS E DESAFIOS PARA AS POLÍTICAS PÚBLICAS E O DESENVOLVIMENTO NACIONAL II*

Aloísio Teixeira8

Concordo que uma coisa é a Constituição, o sistema de leis que temos hoje, e outra coisa é o texto que foi aprovado em 1988. Fui buscar nos meus arquivos uma edição de 1988 para que pudéssemos comparar com a que existe hoje.

Minha proposta de intervenção é tentar mostrar o que era a Constituição de 1988, aquilo que (mesmo com todas essas mudanças) ainda se manteve. Gostaria também de tentar recuperar o que foi o contexto político interno e externo que cercou a sua elaboração. A riqueza dessas discussões é que embora haja uma grande convergência de idéias, de detalhes, as diferenças de opinião e de interpretação sobre os fatos passados e sobre as possibilidades de desdobramento são muito evidentes. Portanto, gostaria que aqueles que viveram a experiência fizessem junto conosco essa viagem pelo que eu chamo de o “litoral” da saudade. Não vamos para o interior, porque seria muito mais complicado.

Eu acho que há uma lacuna na historiografia e nos exercícios ensaísticos em relação a todo esse período que se abre no início dos anos 60. São mais de 40 anos passados e não temos ainda estudos sérios sobre o que foi o golpe de 64, o que foi a ditadura militar, o que foi o processo de término da ditadura militar, o que foi o processo da constituinte e o que tem sido esses 20 anos.

Se nós nos lembrarmos que nos anos 50 toda a literatura importante sobre a Revolução de 30 já havia sido publicada, talvez a gente tenha uma idéia da dimensão do problema e do atraso na interpretação dos fatos da história recente do Brasil. Tenho feito alguns trabalhos sobre a Constituição, que é um trabalho de arqueologia. Hoje eu peguei alguns pedaços de ossos para ver se consigo reconstituir esse dinossauro. E, para mim, nessa tentativa de recompor aquilo que era a espinha dorsal da Constituição de 1988, eu vou destacar três coisas.

Qual o primeiro conjunto de ossos? É o que aparece no Título I, Dos princípios fundamentais. Isso é muito importante para entendermos o que moveu não apenas o congresso constituinte, mas o movimento político da época. O Artigo 1º é muito interessante. Ele começa definindo o que é a República. “A República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados, municípios do Distrito Federal; constitui-se num Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: a

* Documento em versão preliminar, sujeito a revisão. 8. Aloísio Teixeira é Reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É Doutor em Economia e professor titular do Instituto de Economia da mesma universidade. Foi diretor da FINEP, Superintendente da SUNAB, Secretário de Planejamento da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, Diretor do Instituto de Economia Industrial, e Diretor da EMBRATEL. Tem mais de 60 trabalhos publicados em revistas especializadas, nacionais e estrangeiras. É autor dos livros O Ajuste Impossível – Um Estudo sobre a Desestruturação da Ordem Econômica Mundial e seu Impacto sobre o Brasil (Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 1994,) e Utópicos, Heréticos e Malditos – Os Precursores do Pensamento Social de Nossa Época (São Paulo, Record, 2002,).

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soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o pluralismo político”. Há o Artigo 2°, que explicita os poderes da União. O Artigo 3° indica os objetivos fundamentais da República. O Artigo 4° lista uma série de princípios que regem as relações internacionais do Brasil, com um parágrafo muito interessante porque destaca a importância da integração latino-americana. Não há uma Constituição no continente que tenha um parágrafo que afirme que a integração latino-americana é um princípio constitucional.

O segundo conjunto de ossos é o que aparece no capitulo da ordem econômica. Por quê? Porque tem o título que fala da tributação e do orçamento, e tem o título que fala da ordem econômica e financeira. No capítulo da “Ordem Tributária e Orçamentária” há um conjunto de artigos que define as competências tributárias da União, dos Estados e Municípios. Há um conjunto de artigos que estabelecem a repartição das receitas tributárias entre os entes federativos. Por que isso está na Constituição e por que isso é importante? Porque nós viemos de uma ditadura altamente centralizadora, onde as questões tributárias e orçamentárias eram decididas de uma forma fechada sem nenhuma audiência sequer com o Congresso Nacional, e sem nenhuma possibilidade de debate.

O que estava na cabeça daqueles que queriam uma Constituição era um sistema onde a gestão orçamentária, a competência tributária, estivesse mais próxima da cidadania. Nesse sentido a Constituição foi altamente descentralizadora, caminhando em sentido inverso ao que havia sido os 20 anos de ditadura.

Depois, há o Artigo 165º, que define o processo de elaboração do orçamento. Estabelece três momentos. Primeiro é o Plano Plurianual. O que é o Plano Plurianual? Isso introduz na Constituição um princípio de planejamento. Está dito ali que as despesas de capital, aquelas que têm efeito de prazo maior, e as despesas continuadas, que são aquelas que passam de um exercício para outro, têm que ser objeto de um planejamento. Isso entra no Plano Plurianual como um princípio constitucional.

O segundo é: Diretrizes Orçamentárias. É um segundo documento que compõe as Leis do Orçamento. As diretrizes fixam as prioridades inclusive nos gastos de capital. E o terceiro são os Orçamentos Anuais. Redigido assim no plural, com esse artigo definido: “os” Orçamentos Anuais. O que eram os Orçamentos Anuais? Primeiro: orçamento fiscal. Gente isso aí tem que ler porque as pessoas esquecem. E eu acho que a gente não pode esquecer. Então eu vou ler aqui. Diz assim: Parágrafo 5º - “A lei orçamentária anual compreenderá: I - o orçamento fiscal referente aos Poderes da União, seus fundos, órgãos e entidades da administração direta e indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público”

As pessoas não se dão conta do significado democrático que tem esse artigo. Por quê? Porque os fundos e fundações estavam fora do orçamento fiscal. Raphael [de Almeida Magalhães], que foi ministro da Previdência, e eu, Secretário-geral do mesmo ministério, administrávamos um orçamento de mais de 10 bilhões de dólares, onde nenhuma instância da sociedade opinava. Isso acabou com a Constituição de 1988. A participação constitui um dos seus eixos centrais, e é uma conquista democrática enorme.

O segundo orçamento era o de investimento das empresas estatais. É outra conquista democrática fantástica porque as aplicações eram decididas sem consulta a nenhuma instância da sociedade. Uma empresa tem o seu faturamento e suas

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despesas, e faz parte da vida empresarial. O lucro, quem decide é o dono, e o dono é a sociedade brasileira. Por isso, esse tema tem que ir para o Congresso para se decidir um orçamento de investimento das empresas estatais. E o terceiro orçamento é o da seguridade social. Também aqui abrangendo todas as entidades e órgãos a ela vinculados, da administração direta ou indireta, bem como os fundos e fundações, etc. Mais uma vez estava tudo ali. Tudo está no orçamento, e vai para o Congresso.

O Artigo 166º restabelece o poder do Congresso em matéria orçamentária. Também é uma conquista, pois durante a ditadura o Congresso não podia mexer no orçamento. É uma conquista democrática da maior relevância. O Artigo 170º é uma graça: ele define a ordem econômica e diz quais são os princípios em que se baseia a ordem econômica. Eu podia ler todos, mas vou chamar a atenção para o inciso 8°: “É princípio da ordem econômica brasileira a busca do pleno emprego”. Todos os governos da república de 1988 para cá foram inconstitucionais porque nenhum deles seguiu pelo princípio da busca do pleno emprego. Isso é altamente revelador daquilo que estava na cabeça dos que estavam elaborando ou lutando por uma Constituição.

O Artigo 171º também é central. Define e prioriza o que seja empresa brasileira de capital nacional. Esse artigo foi revogado pela Emenda Constitucional nº 6, de 1995, do governo passado. O parágrafo terceiro do Artigo 192º é outra peça. Ele restabelece a lei da usura. A lei da usura era uma lei de 1933, que estabelecia um teto para a taxa de juros, e esse parágrafo terceiro do Artigo 192º restabelecia a lei da usura. Foi revogado pela Emenda Constitucional nº 40.

O terceiro grupo de ossos está no Artigo 219º, no capítulo que trata de ciência e tecnologia. Talvez pouca gente tenha prestado atenção nesse artigo. Diz assim: “O mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País, nos termos de Lei Federal”. Não há Constituição no mundo que diga que o mercado interno é patrimônio nacional. Ele é inalienável enquanto patrimônio nacional. Isso aqui resultou de uma discussão que passou lá pelo Ministério da Ciência e Tecnologia.

Portanto, isso é o que eu chamo de espinha dorsal da Constituição de 1988. Que animal, que dinossauro podemos reconstruir com esses conjuntos de ossos? O que estava pautado ali? Um Estado republicano, democrático, nacional, popular, descentralizado, capaz de promover a justiça social e regional, pacífico e integrado no seu continente. Podemos olhar para isso hoje e dizer: era uma utopia. Podemos olhar e dizer: era um projeto de país e um programa de luta. Era disso que se tratava.

O Raphael [de Almeida Magalhães] foi ministro. Nós estávamos aqui em Brasília naquela época, lutando em duas frentes. Uma era a frente da constituinte, da elaboração da Constituição, particularmente nessas partes que eu falei: direitos e garantias fundamentais, organização do Estado, tributação e orçamento, ordem econômica e financeira, ordem social. O outro front era o da gestão da administração pública desse país, que correta, ou incorretamente, era a frente mais importante. Era ali que estávamos inteiramente envolvidos. E as duas foram simultâneas.

Quero chamar atenção para um fato que não é uma mera coincidência. A aprovação da Constituição foi exatamente o momento em que os últimos representantes da ala mais progressista e mais comprometida com a luta contra a ditadura do PMDB, saíram do

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governo. Isso não é casual. Há dois aspectos da conjuntura: um é o aspecto interno. Mas é impossível entendermos o que estava se passando na política do país se não levarmos em conta o que estava se passando no mundo. Houve uma mudança radical no modo de funcionamento da economia internacional, na passagem dos anos de 70 para os anos de 80. No final dos anos 70 houve uma mudança na política monetária americana, que subiu a taxa de juros e revalorizou o dólar. Isso causou um choque de juros e câmbio geral na recessão mundial que desestruturou o mercado voluntário de crédito, e redirecionou os movimentos de capital, que saíram do trajeto da periferia e se tornaram principalmente inter-centros.

Na verdade, esse é o ponto de partida de uma série de transformações que está culminando agora com essa crise da ordem financeira capitalista. Provavelmente naquela época que estávamos no governo discutindo a Constituição - embora nós acompanhássemos diariamente o que estava se passando na economia internacional - não tivéssemos a clareza completa da profundidade daquelas transformações. O fato é que elas impactaram no Brasil de uma forma muito intensa. Tínhamos uma trajetória de crescimento econômico com brevíssimos hiatos, de quase 30 anos. E, de repente, a economia brasileira parou de crescer. Foi uma recessão de grandes proporções, e isso desestruturou toda a base de funcionamento de nosso sistema político.

Os militares não caíram por obra e graça de Deus, ou por uma conspiração do destino; nem porque perderam a competência. Eles caíram porque o mundo passou a girar em outra direção, e era impossível para qualquer governo, nos marcos e nos limites do funcionamento de um país capitalista periférico e dependente, enfrentar aquela crise. Não era problema dos militares. E quem mais percebeu isso? Quem mais percebeu foi quem tinha lucro, porque quem vive na miséria, vive na miséria em qualquer circunstância. Aquela solidariedade que havia entre a elite dominante, a burguesia e o grupo militar se desfez, e ficou claro que era impossível manter funcionando o país daquele jeito. Isso é um elemento indispensável para entender o momento, a conjuntura política em que vivíamos.

Outro ponto é que o presidente era o Sarney. Não nos damos conta disso porque ele é um político respeitável do PMDB, está aí até hoje. O Sarney vinha de uma longa trajetória de um político ligado à ditadura, às práticas de clientelismo, de cartorialismo, etc. Nesta crise que envolve a sociedade brasileira, quando se desfazem as bases políticas de apoio da ditadura, e fica claro que aquilo não poderia continuar, quando há o Movimento das Diretas, a derrota da emenda Dante de Oliveira, criam-se as condições para se ir para o colégio eleitoral com uma candidatura que foi vitoriosa, que foi a de Tancredo Neves. Qual era o projeto do Tancredo? Era um projeto de transição política. Jamais passaria pela cabeça do Tancredo colocar na ordem do dia qualquer das questões que foram colocadas pelo governo Sarney. O projeto dele era um projeto de transição política, uma Constituição.

Para encerrar, gostaria de destacar duas coisas: a primeira é que eu acho que a Constituição foi muito melhor do que tudo que veio depois. O que significa que temos que retomar essa discussão de onde paramos. A pergunta que ficaria é a seguinte: por que no dia que a Constituição foi aprovada, os últimos remanescentes da ala progressista do PMDB saíram do governo? Primeiro, fica claro que aquele era um momento de corte. O presidente Sarney foi para a televisão e disse que ela tornara

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o país ingovernável. A segunda coisa é que não levamos em conta - e eu digo isso de um ponto de vista auto-crítico, de quem participou intensamente daquele processo – que pouquíssimos congressistas tinham consciência do que estava sendo discutido e aprovado. Nós passamos o rolo compressor. Éramos um bando de intelectuais do centro-sul, vindo das universidades, um grupo competente de técnicos do Ministério da Previdência, do movimento sanitarista, uma frente que ia para o Congresso passar 24 horas por dia batendo todas as idéias. Passamos o rolo compressor e a Constituição foi aprovada. No dia seguinte saímos, não tinha ninguém que fosse capaz de defender aquela Constituição (eu não vou cometer nenhuma indiscrição, mas nem o Ulysses defendia mais a Constituição no final da sua vida).

Temos que repensar essa coisa: o ponto de partida é aquele ali, e o ponto de chegada não será o mesmo. A História não volta para trás. As transformações que ocorreram no mundo e no país não podem colocar como objetivo para nós voltar a 1988, isso seria impensável. Mas nós temos que, com base nessa experiência, e com base naquilo que foi construído naquele momento, pensar um projeto de país que ainda não temos. A discussão desse projeto ainda não está colocada na ordem do dia por esse governo.

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VINTE ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL (1988/2008): AVANÇOS E DESAFIOS PARA AS POLÍTICAS PÚBLICAS E O DESENVOLVIMENTO NACIONAL III*

Raphael de Almeida Magalhães9

Eu era ministro da Previdência de 1986 a 1987, quando se instalou a constituinte. E acompanhei de perto, até a hora em que deixei o ministério, a construção desse capítulo da seguridade social. A Previdência dispunha de três ou quatro especialistas, extremamente habilitados e com conhecimento histórico de toda a temática da previdência social brasileira, que é um drama constante. E eles deram ao Congresso Nacional, essencialmente ao senador Almir Gabriel, que foi o relator, uma cobertura teórica e uma base de formulação deste capítulo da seguridade social.

De certa maneira é a essência da declaração do deputado Ulysses Guimarães de que essa Constituição é uma constituição cidadã. Este capítulo tem alguns aspectos que eu gostaria de destacar. O primeiro: o reconhecimento absoluto do direito à saúde de todos os brasileiros. Até esta hora, o homem do campo no Brasil estava à margem da cobertura de saúde no país, e estava, de certa maneira, à margem da cobertura previdenciária. Esta inserção, de que a saúde é um direito de todos, foi incluída nesse capítulo da seguridade social que englobou o direito de nascer, o direito de sobreviver, o direito à saúde, e o direito de ter uma aposentadoria descente, qualquer que fosse a natureza do trabalho exercido e qualquer que fosse a natureza do local onde esse trabalho foi exercido.

Esse capítulo da Constituição brasileira deu cidadania ao trabalhador rural brasileiro, que evidentemente não contribuiu ao longo da sua vida com a previdência, mesmo porque as relações do trabalho no campo seguem sendo informais até hoje, a não ser exceções da área que se industrializou e se modernizou como aparato produtivo.

Quando assumi o Ministério, havia benefício da previdência em valores que não compensavam o custo de pagá-los. Existiam benefícios extremamente baixos. Uma das coisas que fizemos logo foi nivelar o benefício mínimo do campo ao da cidade. Foi a primeira vez que se estabeleceu uma paridade de tratamento entre o homem do campo e o homem da cidade. Hoje a distribuição de benefício da previdência no campo representa em alguns municípios uma transferência de renda da União muito maior do que do imposto de renda, e do IPI. Houve uma enorme transferência de recursos e uma cobertura social extremamente relevante para o homem do campo brasileiro.

O Plínio [de Arruda Sampaio] se referiu a um deles, que é extremamente relevante, e deu direito à cidadania às pessoas de 60 anos sem capacidade de prover a sua existência e aos portadores de incapacidade física. Esse benefício representa no orçamento vigente um gasto de R$ 15 bilhões de reais, superior aos 11 bilhões que se destina ao salário-família. Mas é uma transferência de renda e de recursos que é um

* Documento em versão preliminar, sujeito a revisão. 9. Raphael de Almeida Magalhães é advogado, Ex-Governador do Estado da Guanabara, Ex-Ministro da Previdência Social entre 1986 e 1987, e atual membro do Conselho de Orientação do IPEA.

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direito, e não uma benesse. É diferente porque é um direito. Ninguém se vangloria dele porque não é um benefício que se dá porque há uma troca, um favor, uma contraparte. É um direito inserido na Constituição.

De modo que a Constituição, a mim, que participei muito de sua montagem, proporciona uma enorme felicidade cívica de ter contribuído para a montagem básica deste capítulo. Evidentemente nem tudo que a gente queira passou, mas alguns pontos eu destaco. Primeiro: é evidente que as fontes tradicionais de cobertura do gasto previdenciário não podiam dar conta nem dos benefícios rurais, nem dos benefícios dos incapazes físicos, nem de pessoas que não tivessem renda aos 65 anos de idade. E por isso, no capítulo da seguridade social, além da tradicional contribuição sobre folha, que financiava a previdência até a Constituição, foram introduzidas duas contribuições sociais. Essas contribuições já não tinham nada a ver com a folha de trabalho, e sim com o lucro e o faturamento das empresas. Isto era tão fundamental para que a previdência se equilibrasse (pois ninguém é insano o bastante para gerar benefícios numa Constituição e não gerar um paralelo de recursos necessários para que esses benefícios sejam atendidos consistentemente), que essas duas contribuições foram inseridas para financiar a seguridade social, e foram posteriormente apropriadas pelo Governo Federal para formar superávit primário.

Houve um desvio flagrante de função dessas duas contribuições que não são fiscais, não poderiam nunca engordar a caixa do Tesouro, teriam que se destinar ao objetivo a que se formou, ou seja, saúde e previdência e assistência a menores. Enfim, todo o capítulo de assistência social, que é uma das pernas da seguridade social. Evidentemente, essa era uma perna que se deseja provisória até que o país consiga elevar significativamente a renda da massa dos trabalhadores. Mas enquanto existirem bolsões de miséria, os programas assistenciais têm todo cabimento, e por isso essas duas contribuições foram criadas debaixo de outro princípio que está na Constituição: nenhum benefício da previdência pode ser reduzido. É a cláusula da irredutibilidade dos proventos e benefícios da previdência que está inserida na Constituição.

E por que as contribuições sociais eram relevantes? Porque o passivo do Estado, representado pelo gasto da previdência não podia ser diminuído para efeito de aumentar o superávit primário ou fazer economia no gasto público. É um gasto imperativo e por isso você podia ajustar as contribuições sociais no meio do exercício. Ou seja, se houvesse necessidade de mais recursos para manter integral a cobertura segurada na seguridade social, o governo tinha competência para elevar as alíquotas das contribuições sociais.

Tudo isso foi enormemente pervertido a partir da edição da Constituição. O Aloísio [Teixeira] tocou num ponto que me parece realmente relevante. Nós conseguimos gerar uma capacidade de obter fortes ganhos, mas acredito que nós não tenhamos gerado uma consciência clara do que estava se propondo a fazer. A primeira tempestade pós-Constituição foi com o presidente Sarney, que declarou pessoalmente, no dia seguinte em que a Constituição foi promulgada, que a Constituição tornava o país ingovernável. Desde então, toda pressão se faz para reduzir o gasto previdenciário, reduzir o salário mínimo como peso do benefício previdenciário. Posteriormente o governo Fernando Henrique Cardoso, ao aprovar a Lei de Responsabilidade Fiscal, teve autorização para desviar os recursos da contribuição social para formar o superávit primário.

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Essa é uma história que confirma a idéia de que os grupos populares não têm capacidade organizada de resistir a essas trocas. Os grupos integrados que têm interesses, e dispõem em geral de um bombardeio de mídia inexorável, têm uma imensa capacidade de paralisar qualquer tentativa de baixar os juros. Há uma antinomia da capacidade da massa de se mover em defesa dos seus legítimos interesses com precárias condições de resistência. A massa não tem capacidade para avançar, no máximo ela pode evitar perder o que foi conquistado. Na verdade, o esforço passou a ser, a partir de certa hora, aquele que todos fizemos, que foi o de não deixar passar a redução do benefício mínimo, que era um salário mínimo; e tivemos o cuidado para evitar o argumento de que o salário mínimo não podia subir acima da inflação, pois contaminaria o gasto previdenciário.

A Constituição proibiu no capítulo da seguridade social que o salário mínimo fosse usado como indexador da economia. A única referência ao salário mínimo como indexador foi em relação ao benefício previdenciário. Nas circunstancias em que se processou a Constituição, o debate sobre a seguridade social até que passou, de uma certa maneira, batido. Porque havia um núcleo de propostas fortemente articuladas, com conhecimento, com saber, com apoio, e uma certa concentração na organização econômica; ou seja, na disputa entre capital estrangeiro, capital nacional, estatização, mercado privado; isto é, a concentração se deu muito aí, e se concentrou efetivamente na natureza do regime, se era parlamentar, se era presidencialista, se o Sarney ia ter cinco ou quatro anos de mandato.

O fato é que os temas da seguridade social passaram, e hoje são uma referência. É importante garantir que essas conquistas persistirão e que sejam um ponto de partida para outro tipo de evolução. A Saúde se integrava dentro da seguridade social, era um dos setores que se integravam a ela como uma referência direta ao direito à vida. E é claro que se a Saúde tivesse se mantido no orçamento da seguridade social como estava previsto na Constituição, haveria que provê-la de recursos para garantir o exercício pleno do direito à saúde, que a Constituição garantia a todos os brasileiros. Havia recursos? É claro que havia: a contribuição sobre lucros, a contribuição sobre faturamentos. Ela tem uma passagem muito fácil, basta ver as alíquotas do ICMS para verificar que há uma certa facilidade de elevação das alíquotas de faturamento.

Eu pude implantar o SUDS.10 No meu tempo era SUDS, e o “D” era “descentralizado” (que é uma obsessão pessoal minha, a descentralização desse tipo de serviço, e que depois virou SUS; não foi o Renato que fez o SUS não, foi depois da Constituição já promulgada). Mas é Serviço Unificado e Descentralizado de Saúde, e a ênfase era a transferência de recursos para a prefeitura, que é quem tem contato direto com as pessoas; e a organização disso era um sistema de referência e contra-referência. E evidentemente não havia (como depois aconteceu) uma transferência per capita de recursos para cada um dos Estados, municípios. Nós fazíamos um planejamento do município até em cima. Fizemos vários programas desses, fazíamos convênios, e nesse tempo, a previdência tinha um enorme superávit de caixa. Chegamos a ter um bilhão de dólares de caixa nessa época. Não por virtude nossa, mas por conta do cruzado, porque a economia brasileira cresceu muito, os salários dispararam, e aprendi daí que o equilíbrio da previdência social é uma relação direta entre crescimento com

10. O SUDS (Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde) foi criado após a 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986.

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distribuição de renda. Se a classe operária aumentar a sua participação no bolo da formação da renda, a previdência brasileira será altamente superavitária. Agora, com os salários baixos, e com o desemprego muito grande, evidentemente que ela pode vir a ter problemas de caixa. E eles seriam supridos pelas contribuições sociais que infelizmente foram arrancadas da previdência.

Mas eu queria dizer que o conceito, a ação política que nós tínhamos na época, era a tentativa de construir uma social democracia, uma rede de proteção social, a mais extensa que pudéssemos, com garantia de recursos alocados à esse sistema. A idéia da seguridade social, na essência, era essa: criar uma rede de proteção social ampla, com o princípio do pleno emprego (que é um princípio constitucional; é um princípio que está na Constituição brasileira, que jamais foi levado em conta). Se isso tivesse acontecido, evidentemente que a gente tinha um processo de evolução social melhor, apesar dos contratempos porque passamos a partir de 88, 89, 90 (que foram anos patéticos).

Mas eu acho que há uma questão de fundo na Constituição brasileira que eu não posso deixar de me referir: ela permitiu que o PT se formasse. E anos depois, o Lula quase ganhou a eleição do Fernando Collor. Uma eleição de certa maneira atípica, debaixo de uma crise muito grande, uma crise de decomposição do governo Sarney no seu final. Essa estrutura política montada permitiu que o PT fosse ao poder, o que é uma coisa absolutamente nova no país.

Houve uma consolidação da idéia democrática, do aprofundamento disso. Ninguém pensa mais em não dar posse a um candidato eleito. É um valor extremamente relevante para minha geração, que viveu agruras de golpes e tentativas de não-posse, mais ou menos como uma constante em cada eleição. A sustentação da regra da competição política aberta, que é uma das essências do jogo democrático, permitiu ao PT ir ao poder. Mas a força constrangedora, do sistema de interesses, que são hegemônicos no país, foram tão fortes que antes da posse o Lula foi chamado ao Palácio pelo Fernando Henrique e assinou o que eu chamei de um golpe de estado preventivo. Ele assinou um documento se comprometendo a aceitar um empréstimo que o Fernando Henrique teve que fazer com o Fundo, e praticamente amarrou-se para fazer qualquer tentativa de mudança no rumo da política econômica.

A avaliação política da situação em que o Lula estava naquele momento é que, se ele resistisse, talvez ele não assumisse. E se assumisse, talvez caísse. Ou seja, é uma intransigência (quem está na política sabe que essas coisas existem). Ele cedeu, e foi ao poder, fez o primeiro mandato aquém da expectativa, mas se reelegeu e está fazendo um segundo mandato extremamente importante. O país avançou muito, mas por circunstâncias externas, e ele consolidou-se como um grande líder popular. Será muito relevante o papel que ele vai desempenhar no destino próximo do país. E se ele não avançou mais nos programas sociais (ele fez o bolsa-família), revelou sempre um cuidado muito grande com os grupos excluídos. Seu governo avançou na ampliação dos direitos aos grupos diferenciados, e tem hoje um papel extremamente relevante na vida pública do país. Ele é uma figura que extrapolou o PT, talvez maior do que o partido.

Mas é relevante que um homem que saiu do sindicalismo, que fez uma trajetória dentro do seu partido, chegasse ao poder e gozasse do prestígio (ele tem uma aprovação popular enorme). Isso se deve muito à construção da Constituição de 1988. A única coisa

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relevante na trajetória do PT em certa hora foi não permitir a mudança na regra do jogo. Houve uma, que foi o instituto da reeleição. Foi a única mudança substantiva na regra do jogo. O resto eles não conseguiram fazer. O fato é que a regra do jogo foi mantida, e a manutenção da regra do jogo da competição política é um instrumento muito importante em qualquer processo de transformação pelo jogo eleitoral, pelo jogo da política, que é um jogo da negociação, da aceitação do diferente, etc.

Eu acho que a Constituição de 1988 não chegou a ser testada na sua integridade, mas acredito que um dia possa vir a ser. Ela cria uma estrutura extremamente aberta do ponto de vista democrático. Há muitos partidos, mas não importa; isso faz parte do jogo político. Há toda essa literatura de desqualificação da política, mas eu acredito que isso é uma coisa perfeitamente normal. Faz parte do jogo da política, do amadurecimento do processo democrático.

Estava lendo o capítulo da ordem estatal, ali o planejamento é incisivo. Mas o planejamento não foi levado a sério. Para uma Constituição extremamente centralizadora, do ponto de vista de recurso, ela se converteu numa Constituição com inibições muito grandes da operação do Estado. Fizeram uma negociação das dívidas acumuladas do Estado e mataram sua capacidade de gastar. Eles transferem o pagamento de dívida passada para o Governo Federal, mais ou menos 14 a 15% da receita tributária que eles têm, para reforçar o superávit primário de caixa do governo central. É difícil, cheio de restrições.

Só a disputa eleitoral tem mais restrições que a capacidade de gasto do governo. É praticamente proibido fazer campanha. É quase tão difícil fazer gasto público hoje no país quanto fazer campanha política eleitoral. Isso não tem nada que ver com o voto popular. A informação da população é básica, e é claro que todas essas restrições ao direito de comunicar tornam extremamente relevante aquilo que já é grande: o papel da mídia.

A mídia passa a ser o canal de articulação entre a política e o eleitorado, num clima de degradação da política, que eu acho de uma gravidade enorme. Apresentar a política e os políticos brasileiros como canalhas, como desonestos, é uma tentativa de desqualificação grave porque isso passa como se fosse uma coisa habitual, rotineira, e desanima a cidadania da sua participação na política ativa do país. E, sobretudo, torna muito rígido o sistema de substituição e o sistema de luta social; o resultado disso é a conversão da economia na ciência das ciências, onde tudo é econômico e ninguém pode decidir nada.

Mas foi o que aconteceu. Estava no papel que o Lula assinou, ou seja, o compromisso de fazer a política do Fernando Henrique. O que ele assinou foi exatamente isso. Ele ganhou para mudar, e antes de assumir foi constrangido a não mudar, o que é uma barbaridade do ponto de vista democrático. Mas ele teve que fazer isso por cálculo político.

Nós discutimos muito na época se ele devia fazer isso ou não. Fizemos um manifesto, um apelo para que ele mudasse de pastor. Mas a luta política é pesada, os interesses cristalizados são muito fortes. Esses interesses são tão fortes que pegaram a Constituição e neutralizaram a aplicação dela. Eu vim aqui para poder ler esse texto.

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O que ele diz? Que é irredutível, que não pode baixar, que tem as contribuições sociais. Mas isso não adianta nada. Você vai me chamar para discutir o rombo da previdência? É uma brincadeira! Não há rombo, há roubo dos recursos especificamente destinados à previdência para cobrir os gastos.

O país entra em êxtase com a Lei de Responsabilidade Fiscal. É um dos pilares da Constituição brasileira pós-1997. Mas ela se fez a furto dos recursos da seguridade social. É um furto como outro qualquer. Tem a ADIN, no Supremo Tribunal, desde essa época para ser julgado. Vai fazer 12 anos, e não julgam. Vai ser difícil alguém do Supremo declarar que pode desviar esses recursos. Esses recursos foram criados assim, fora do orçamento.

Nós criamos o Orçamento da Seguridade Social. Chegamos a discutir se devia ir junto com o Orçamento Geral da União. Quase fizemos o orçamento da seguridade social ser apresentado em primeiro de janeiro, porque aí teríamos um descolamento completo. Por quê? Porque o Orçamento da Seguridade Social não é propriamente o uso de recursos públicos. Na verdade, o Estado faz uma mera circulação do que ele arrecada aqui e do que ele gasta ali, com um determinado propósito. Inclusive na Constituição está dito que devia ser criada uma estrutura quadripartite para administrar a previdência. O que seria irrelevante, porque na verdade o furto se dá no caixa. É um roubo que bate na Saúde, hoje, gravemente.

O [José Gomes] Temporão está aí lutando. O [Adib] Jatene pediu a CPMF. Mas se há as contribuições, então por que você vai pedir a CPMF? Como não houve organização clara disso, isto é, não houve a consciência do que estava se arrumando, não houve vocalização política em relação a tudo isso.

Admito que há excessos a corrigir. Uma das coisas que eu insisti muito para que não entrasse na Constituição é a definição da idade da aposentadoria. A demografia muda, aliás, como eu acho que está acontecendo agora. E ir para casa não é, certamente, um bom conselho para quem quer trabalhar. De certa maneira, o benefício da previdência para as pessoas de renda mais alta passou a ser, na verdade, quase que um complemento de salário. Mas para o trabalhador que ganha até dez salários, que é a cobertura básica da Constituição, isso aí é salário de substituição mesmo. Esta é a clientela básica da previdência. A clientela básica da previdência é até dez salários. Esse é o compromisso claro da previdência, intocável. O resto tem uma redução no benefício porque ele pode fazer de outro jeito, ele tem formas de poupança alternativa.

De vez em quando me provocam com isso: ou consertam no essencial, e depois, passamos aos aperfeiçoamentos, ou então não tem conversa. Temos que restabelecer honradamente o que está na Constituição.

Nós tentamos, assim como todos os que passaram pelo ministério tentaram. Mas nada aconteceu porque o que prepondera são os interesses do superávit primário, os interesses da Lei de Responsabilidade Fiscal, ou seja, é a desmontagem do Estado. A luta que a gente vive há muito tempo é para evitar essa desmontagem. Graças a Deus, com essa fantástica crise que estamos assistindo, creio que duas coisas vão morrer: primeiro, a ordem neoliberal na economia morreu. Nem a Miriam Leitão tem mais coragem de defender isso. Ainda sobraram uns mais malucos do que ela, mas poucos. Se morreu, então vai haver uma reconstituição do poder regulamentar do Estado. E a luta vai se travar aí.

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É evidente que se não houver um esforço muito grande para regulamentar isso em benefício da compaixão humana, em benefício da distribuição da riqueza, de uma outra forma de organizar a sociedade, vai sair mais dinheiro para salvar os bancos e para salvar os aplicadores. Se nós falássemos que o governo acabou de soltar cem milhões do compulsório para consertar a área de esporte, o mundo vinha abaixo. E para fazer reforma agrária ou qualquer outra coisa em benefício do conjunto da população, não há quórum.

O que os americanos fizeram agora, a Europa inteira fez: estatizaram o sistema bancário. Acho que é um bom caminho porque desmoraliza a idéia do mercado auto-regulado. É evidente que isso é uma coisa importante. Nós temos uma grande oportunidade de retomar projetos, como restaurar o pleno emprego. O Brasil tem uma enorme frente de crescimento no seu mercado interno, que a Constituição declarou que é patrimônio da União. Esse mercado é enorme, e com investimentos relativamente pequenos dará trabalho e renda para todo mundo. Isso pode ser feito por ação do poder público.

Os EUA fizeram isso no New Deal. E há um New Deal fantástico aqui para se fazer caso não se fique obcecado em cortar nos gastos. O Ministro do Planejamento,

em cima desta confusão toda, fez só uma declaração: “temos que cortar gastos sociais”. Ele não falou nem gastos de investimentos, falou ‘gastos sociais’. Mas não tem onde cortar. Vai cortar onde?

Uma das barbaridades que o país decretou foi considerar que o gasto de pessoal na prestação de serviços sociais amplos é custo. Mas esse é um investimento tanto quanto um investimento para fazer um porto ou uma ferrovia. O gasto com professor em classe não pode ser considerado custeio. O médico que atende no hospital não pode ser classificado como custeio. Isso é uma aberração, porque sem gente nunca haverá prestação de serviço Alguns conceitos têm que ser reparados. Gasto de pessoal nas atividades-fim sociais do Estado é gasto de capital como qualquer outro. No meu tempo no Ministério, a folha da previdência inteira custava 5% da arrecadação, o que é ridículo, porque a arrecadação era uma barbaridade. Se você fizer uma equivalência do faturamento de uma empresa, o que a Previdência gasta com o seu pessoal (e havia a Saúde também na folha) era mínimo.

De todo modo, a Constituição é um ponto de partida e eu acho que temos uma circunstância geral muito promissora para tentar mudar isso. Eu não sei qual será o comportamento do governo diante da crise. Se ele tiver um comportamento tímido e ficar assustado vai seguir pensando que é necessário fazer corte de gastos e subir a taxa de juros. O Banco Central do Brasil foi o único no mundo que pensou em subir a taxa de juros. Foi o único também que falou isso. Até o diretor do Banco Mundial e do Fundo Monetário [Internacional] disse que não se deveria subir a taxa de juros. Mas ainda assim é possível que suba.

Temos que pedir ao Lula que não deixe subir a taxa de juros, não corte gasto social, e sim que o aumente para enfrentar a crise, pois o mercado externo evidentemente vai cair e haverá recessão. No entanto, temos um mercado interno com um potencial enorme. A reação da China diante da crise foi exatamente essa. Ela avançou a reforma agrária e aumentou os gastos para ampliar o seu mercado interno. Se há um país com o qual o Brasil tem semelhança é com a China. Não há tantos brasileiros quanto há chineses, mas, de toda forma, lá existe um mercado interno sub-utilizado, que gerará um tipo de desenvolvimento.

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Para terminar, gostaria de dizer que a Constituição feita na transição foi um pouco assim. O que a gente queria no PMDB? Primeiro, o PMDB foi uma tentativa de juntar liberais democráticos com uma esquerda democrática (até uma tentativa de absorver o PT) para se fazer um projeto essencialmente social-democrático. O ideal era que o partido do Tancredo seguisse existindo (ele tinha formado um partido chamado PP). Ele fazia a negociação com os militares e a transição sob égide desse partido, e nos deixava construir uma coisa mais sólida com o tempo. Então cada um tinha o seu papel. Certo momento do processo, o governo proibiu as coligações partidárias. Evidente que era muito fácil fazer as coligações porque o PP tinha saído do PMDB. Quando saiu a proibição, houve a necessidade de se fazer a chapa inteira.

Então fundimos os partidos, mas muita gente resistiu. A fusão era uma maneira de tornar esta massa do PMDB amorfa, fazer perder um pouco da consistência do projeto inicial. Mas isso foi o possível no momento, pois foi o que os principais atores queriam e fizeram. Fizemos a incorporação e o PP passou a integrar o PMDB. Foi quando houve o episodio das Diretas. A emenda das Diretas deixou de passar por oito votos. Então veio o Estado de Sítio em Brasília. Eles tiraram do ar a irradiação da votação no Congresso. Se tivesse televisão no Congresso naquela hora, a emenda teria passado. Nós pedimos um mandato de segurança ao Supremo para assegurar o direito de transmissão, só que não conseguimos.

Qual era a tese principal naquele momento? Tínhamos uma Constituição que, mal ou bem, permitia ao partido existir. Então deveríamos acumular forças dentro desse sistema. Isto é, não tínhamos o apoio de uma revolta popular, nem base na área militar. O que conseguimos foi criar uma brecha entre eles. Mas a eficiência política inclinava para que se aceitasse a eleição indireta, e quando o Tancredo aceitou a indicação não havia nenhuma certeza de que ele seria eleito. A certeza da vitória só se deu quando o Maluf derrotou Andreazza dentro do PDS. Nós estávamos juntos na convenção para escolher o Tancredo. Ele perguntou: “o que vai acontecer?” Eu disse a ele: “se eles tiverem juízo eles vão de [Mário] Andreazza, se eles não tiverem nenhum juízo eles vão de [Paulo] Maluf”. O Golbery quis o Maluf. Por que, eu não sei.

O Maluf ganhou e todos os governadores que eram do PDS do nordeste acompanharam e ficaram com o Tancredo, que pegou o Aureliano [Chaves] e o Sarney, então todos os governadores do nordeste passaram a apoiá-lo. Não que as coisas não pudessem acontecer de modo diferente, mas ele ganhou desse jeito. O Maluf determinou a vitória do Tancredo na formação do PFL e a organização do governo da transição. O Tancredo teria feito uma transição muito mais moderada porque, de certa maneira, ele não precisava provar nada. Ele não ia reconhecer o partido comunista nunca, nem ia ampliar a anistia. Ele iria levar todas essas controvérsias para a Constituinte. O Sarney, que vinha do PDS, tinha que se legitimar, por isso ele avançou.

O Sarney tinha uma história no Maranhão, lá nos idos de 1968, com projetos muito avançados (eu não sei como ele não foi cassado já em 68. Eu estava convencido que ele seria cassado quando teve o AI-5). Ele pegou o governo feito pelo Tancredo e, na primeira oportunidade, tirou o [Francisco] Dornelles, que era a própria encarnação do Tancredo. Ele iria fazer a coisa mais conservadora da história dos ministros da Fazenda. E ele acabou voltando ao Dílson [Funaro], que trouxe o João Manuel, que trouxe Campinas. Isto é, a Unicamp foi incorporada no governo pelo Dílson.

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Em seguida ele fez o Plano Cruzado, e foi um fenômeno. Fui ministro nesse tempo, e quando fez um ano da morte do Tancredo, fomos a São João Del Rey. O Sarney estava no auge do cruzado, e ninguém se lembrou em São João Del Rey que o Tancredo existia. Foi um delírio sobre o Sarney. Ele e o Dílson foram tratados como santos brasileiros, algo inacreditável. Então o PMDB ganhou as eleições de 1986 nesse movimento.

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VINTE ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL (1988/2008): AVANÇOS E DESAFIOS PARA AS POLÍTICAS PÚBLICAS E O DESENVOLVIMENTO NACIONAL IV*

Gilberto Bercovici11

A primeira questão que chama a atenção na Constituição de 1988 é sua própria estrutura. Por que a Constituição vai prever como princípios fundamentais “que o Brasil é um Estado democrático de direito com base na dignidade da pessoa humana, no pluralismo político, nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, na soberania”? Por que uma Constituição vai colocar no seu texto, como no Artigo 3º, “que são os objetivos da República garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a miséria, eliminar a desigualdade, construir uma sociedade livre, justa e solidária”? Por que uma Constituição coloca no seu capítulo sobre a ordem econômica, além dos princípios estruturantes, a questão da soberania, da defesa do consumidor, do meio ambiente, da função social da propriedade? Por que a Constituição vai tentar controlar ou estruturar a maneira como a economia do país se insere no mercado internacional, com o antigo Artigo 181º, que trata da proteção da empresa nacional, de capital nacional? (O Artigo 172º continua em vigor, que trata do regime de capital estrangeiro, que é por onde passou o problema da dívida durante regime militar). E por que vai tentar colocar no Artigo 219º o mercado interno como patrimônio nacional?

Isto é, o que leva uma Constituição a tratar da questão previdenciária, saúde, educação? Por que uma Constituição vai falar de tudo isso? Já foi colocado aqui que parece que essas são matérias não-constitucionais. Na verdade essa é uma visão de direito constitucional do século XVIII, ou antes, que defende que questões sociais, questões econômicas não devem ser previstas no texto constitucional. Os que dizem isso, no entanto, esquecem o século XX. Todas as Constituições que foram elaboradas no século XX, desde a Constituição mexicana de 1917, passando pela Alemanha, de 1919, a emblemática Constituição de Weimar, até a última Constituição, a equatoriana, todas prevêem direitos sociais, políticas públicas e questões econômicas.

Isso ocorre por um motivo muito simples: a maior parte dessas Constituições foram elaboradas num contexto de transição para uma democracia de massas. A partir do momento em que os parlamentos deixaram de ser compostos pelos membros da elite e passaram a ser fruto do sufrágio universal, outras questões chegam para o debate constitucional. Nas assembléias constituintes, tais questões não passavam pelo parlamento, porque afinal, nenhum parlamentar estava preocupado com reforma agrária, com direito à saúde, à educação; não era um tipo de problema que eles tinham.

* Documento em versão preliminar, sujeito a revisão. 11. Gilberto Bercovici é doutor em Direito do Estado (2001) e Livre-Docente em Direito Econômico pela Universidade de São Paulo. Foi professor visitante na Universidade de Lecce. Atualmente é Professor Associado do Departamento de Direito Econômico e Financeiro da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e do Programa de Pós-Graduação em Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie. É autor dos livros Constituição e Estado de Exceção Permanente: Atualidade de Weimar (Rio de Janeiro, Azougue Editorial, 2004), Constituição Econômica e Desenvolvimento: Uma Leitura a partir da Constituição de 1988 (São Paulo, Malheiros, 2005) e Soberania e Constituição: Para uma Crítica do Constitucionalismo (São Paulo, Quartier Latin, 2008)

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Só após o sufrágio universal houve maior representação por parte dos trabalhadores e de outros setores da sociedade. Foi só então que esses grupos chegaram aos parlamentos e às assembléias constituintes. O que ocorreu foi que essas questões passaram a fazer parte do debate. Ou seja, o conflito social e o conflito econômico foram incorporados no texto jurídico, de uma forma ou de outra: foram incluídos ou para serem escamoteados, dando uma direção, seja propositadamente não dando direção alguma.

Na verdade, essa foi uma situação derivada da maneira como foram elaboradas essas constituições no contexto da transição democrática. A Constituição de 1988 não vai ser diferente. Já se tinha a Constituição de 1934 e 1946, mas a de 1988 será muito mais forte. Por quê? A transição da democracia no início da década de 1980 apresenta uma série de peculiaridades no Brasil.

Primeiro, havia todo aquele movimento popular no final da década de 1950, no início da década de 1960, que propugnava pelo que hoje chamamos de reforma de base. Essas são as reformas que até hoje não foram feitas no país: reforma agrária, reforma urbana, reforma educacional, e reforma dos direitos sociais de uma maneira geral. Era a conclusão do projeto nacional de desenvolvimento, a construção da nação, para usar os termos do Celso Furtado

Esse projeto, que foi calado e reprimido durante a ditadura, voltou a se exprimir. Aquelas demandas reprimidas há 20 anos retornaram, com um pouco mais de liberdade de manifestação. Houve também mais condições de influir na elaboração constituinte. Foi o momento de ascensão dos movimentos sociais. O início do processo constituinte foi um momento de ascensão desse fenômeno. Já foi colocado aqui como era a elaboração de uma constituinte, com toda a pressão dos mais variados movimentos sociais.

Teve uma hora que os índios foram ao Congresso Nacional para discutir as suas questões. Uma série de grupos apareceu para debater, para falar: “eu existo, eu tenho direitos, eu tenho que ser reconhecido no Congresso Nacional”. E foi um momento também de desenvolver – na falta de palavra melhor – o que foi, talvez, uma distração dos setores conservadores. Talvez eles tenham achado que a constituinte não ia dar em nada; talvez não dessem grande atenção para o que estava sendo debatido ali.

Quando perceberam, na segunda votação, foi quando montaram o Centrão, e então tentaram reverter o que puderam dos avanços já conseguidos. Mas não houve como reverter tudo. O professor Paulo Bonavides, na História Constitucional do Brasil, fala que a derrota, o grande momento da constituinte foi a votação em maio de 1988, que virou o capítulo da ordem econômica, com o Centrão derrotado. Ali se consolidou o modelo da Constituição de 1988.

Lógico que ocorreram várias outras derrotas. Mas essas derrotas foram incompletas. Por exemplo: se colocou no Artigo 185º da Constituição que a propriedade produtiva não pode ser desapropriada. Isso foi uma derrota, mas uma derrota pela metade. Por quê? Porque, embora o Supremo Tribunal Federal finja que não vê (assim como o constitucionalista), e amacie toda uma doutrina, há um parágrafo no Artigo 185º que diz: “a propriedade produtiva tem que cumprir função social”. Se ela não cumprir função social, ela pode ser desapropriada. Essa é a

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conseqüência lógica do artigo inteiro. Eu falei um pedaço do artigo. É uma derrota pela metade, não uma vitória completa; nem deles, nem dos setores progressistas, pois não conseguiram reverter o texto constitucional.

Já nos direitos trabalhistas, por exemplo, o Artigo 7º, não há nada mais que se colocar ali. Onde houve a derrota? No Artigo 8º, na organização sindical. Ela foi mantida em estruturas semelhantes ao do regime anterior. Houve cumplicidade do movimento sindical, que tinha interesse nessa manutenção. Houve refluxo ali na questão dos direitos trabalhistas, dos direitos coletivos.

O que ocorreu nesse processo foi uma série de idas e vindas, mas em que a maior parte do texto, com as conquistas, não foi propriamente desfigurado. E esse foi o grande pecado da Constituição de 1988. A Constituição de 1988 é o que se chama na teoria constitucional de “constituição dirigente”. Essa é uma teoria que vem de Portugal, mas na verdade ela, no fundo, explica as constituições da redemocratização européia das décadas de 60, e da latino-americana dos anos 80.

O que há numa Constituição? Há um projeto de organização para o Estado e para a sociedade brasileira. A Constituição tem um projeto de desenvolvimento. E o que ela tentou fazer? Isso já foi colocado também. Em primeiro lugar: ela tentou recuperar o que existia antes da ditadura militar, isto é, o Estado nacional desenvolvimentista. Tentou recuperar todo aquele ideal. É só ler o Artigo 3º e o que está escrito ali. O que está posto na Constituição é o projeto nacional desenvolvimentista sem tirar nem pôr uma linha. É a conclusão daquele projeto de construção nacional de integração, pelo mercado interno, de um Estado autônomo, desenvolvido, socialmente mais justo, na periferia do capitalismo.

Foi esse o projeto da Constituição de 1988. Ela tenta recuperar o planejamento, o controle das estatais, o controle sobre o orçamento público, e da questão regional (que volta, em vários momentos, no texto constitucional). Portanto, há uma tentativa de recuperação daquele Estado nacional desenvolvimentista, mas uma recuperação com outra perspectiva, não só nacional desenvolvimentista, mas também de ampliação para uma social-democracia. Um pouco além daquele projeto, ou pelo menos como modernização do projeto desenvolvimentista original.

Esse é o modelo original da Constituição. É uma Constituição que, embora tenha sido vitoriosa nesse aspecto, vai ser derrotada no dia seguinte. Não é só porque no dia 6 de outubro de 1988 se dirá que a Constituição gera ingovernabilidade. No dia 7 de outubro foi publicado no Diário Oficial um parecer do então Consultor Geral da República, o ministro Paulo Ramos, dizendo que o Artigo 192º, que tratava do sistema financeiro, era uma mera norma programática que não tinha validade, não se aplicava. Do que tratava o Artigo 192º? Da questão dos juros. O parágrafo 3º determinava juros de 12%. Não vou discutir se isso deveria estar ou não na Constituição. A questão é a seguinte: mal foi promulgada a Constituição, os derrotados na votação se articularam na reação pós-constituinte.

A Constituição de 1988 foi feita pensando num sujeito histórico que não veio. Foi o refluxo no pós-88, por uma série de razões. Não só o muro de Berlim, mas acho que várias outras coisas também. O muro de Berlim talvez tenha sido o símbolo, mas há outros fatores que explicam o refluxo dos movimentos sociais do pós-Constituição.

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A partir de 6 de outubro de 1988, todo e qualquer governo da república esteve empenhado não em cumprir a Constituição, mas em modificá-la. Em modificar a Constituição à sua imagem e semelhança, para ser o seu plano de governo. A Constituição como plano colou. Agora a questão é que ela não é um plano geral, ela é um plano para cada governo. E aqui vemos as curiosidades, que vão ocorrer especialmente nos oito anos do governo Fernando Henrique: o grande argumento que vai ser usado contra esse tipo de Constituição que é a nossa (uma Constituição que traz o problema para dentro do Direito Constitucional) é que o Direito não sabe lidar com o conflito. Da mesma maneira que não sabe lidar com a democracia. Ele não sabe lidar com essas questões, e tenta fingir que o conflito não existe. Pelo contrario, o direito afirma a idéia de que há estabilidade e harmonia, e não conflito.

Só que a democracia é conflito, é da natureza da democracia, só que o Direito não sabe lidar com isso. E o Direito Constitucional menos ainda. Não por acaso, o Direito Constitucional Brasileiro, no pós-88, vai jogar todas as suas armas e bagagens no fortalecimento do Supremo Tribunal Federal, porque é lá que “a gente se entende”; com “eles” a gente conversa, “eles” falam a “nossa” língua. Os juízes do Supremo não são eleitos e não devem satisfação para ninguém. E esse é um movimento, que não ocorre só no Brasil, mas em países da Europa, Canadá, África do Sul, Austrália, e outros, em que o fortalecimento das cortes constitucionais vem justamente num momento de enfraquecimento dos direitos sociais. Mesmo que pareça que eles estejam garantindo direitos, eles estão retirando. Há um discurso sobre garantias, mas na prática eles estão interferindo numa seara para a qual não foram legitimados. Tanto é assim que agora eles se arrogam o direito de serem poder constituinte permanente (e o poder constituinte, que eu saiba, pertence ao povo e não a 11 ministros do Supremo Tribunal Federal)

Uma reação a isso foi optar pela via da judicialização. O que fez o governo Fernando Henrique? Criticou-se a Constituição como sendo dirigente e conflituosa. E por quê? Porque ela era detalhista, porque ela previa políticas, porque ela amarrava os governos. E qual vai ser o paradoxo daqueles mesmos que criticavam a Constituição porque ela era detalhista, porque ela amarrava, porque tinha uma direção, porque ela impunha uma linha? Quando fizeram o processo de mais de 50 emendas constitucionais em 10 anos (que eu acho que nenhuma Constituição do mundo passou por isso num país democrático) qual vai ser a surpresa? As emendas constitucionais aprovadas, não só são mais detalhistas que o texto original, como amarram muito mais os governos do que o texto original. A única diferença é que elas têm o sinal invertido.

Então, na verdade, a Constituição dirigente das políticas de saúde, educação, previdência, reforma agrária era ruim porque amarrava, gerava ingovernabilidade, atrasava o desenvolvimento. Toda campanha da mídia nos últimos 20 anos, que temos visto no dia a dia, xinga a Constituição. Para a mídia a Constituição é um desastre. Ela só serve como garantia da liberdade de imprensa. Só aí a Constituição está sendo violada, como em qualquer outra coisa que ameace seus interesses. Porque eles confundem liberdade de imprensa com liberdade de empresa. Mas esse é um problema da formação dos meios de comunicação no Brasil. Não só no Brasil, como nos Estados Unidos também. Foi-se o tempo da mídia independente.

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Portanto, o que a gente percebe é que há todo um discurso de que essa Constituição é ruim, mas não a Constituição que se refere à política de restrição, de exclusão de direitos, de superávit primário. Chegou-se até a propor uma idéia, que não existe igual em nenhum lugar do mundo, de se constitucionalizar o déficit nominal zero, o que é algo absolutamente esdrúxulo para o Direito Constitucional. Essa medida foi blindada por outro meio, a lei de responsabilidade fiscal. Embora o déficit nominal zero não tenha sido constitucionalizado, foi assegurado por essa medida.

Esse é um modelo de blindagem oposto ao modelo da Constituição dirigente originária, a Constituição dirigente de 88. Ou seja, o problema não é que ela seja detalhista; porque ela prevê políticas públicas; porque ela amarraria a política: o problema é o sentido dessas políticas, para quem são essas políticas. A Constituição dirigente neoliberal, ortodoxa, de controle fiscal, essa sim seria boa, segundo os críticos da Constituição de 88.

Além disso, há uma outra reação ao modelo constitucional de 88: a democracia, a implantação e estabilização da regra do jogo foi uma grande conquista de 88. Mas, ao mesmo tempo, há todo um movimento de restrição dos espaços democráticos no pós-88. Quando se criaram órgãos ditos técnicos, com tudo que isso queira significar, para decidir, sem nenhum controle público, sobre uma série de setores estratégicos da economia e da infra-estrutura dos serviços públicos, não se está fazendo isso por mais eficiência ou por mais racionalidade. Isso foi feito para retirar o poder de decisão pública, do debate público e do controle social. Foi para isso que se criaram essas agências, ou seja lá o nome que queriam dar a isso.

Isso não é nenhuma novidade, isso não é o modelo americano, isso é o modelo alemão da década de 20 e 30. O banco alemão Reichsbank era independente, autônomo, e o seu presidente Hjalmar Schacht12 não só derrubou o governo social democrata em 1929, como se tornou o banqueiro do Hitler até o fim da guerra. Ele achou muito correto, e ainda deu tempo de escrever suas memórias dizendo que fez tudo certo e que faria tudo de novo. Ou seja, esse é um modelo, na verdade, de retirar do debate público uma série de temas que são complexos. Não quer dizer que o nosso sistema é de saídas técnicas, o plano não é técnico, o plano é como o técnico, é utilizado para legitimar as alterações que não necessariamente beneficiarão a maioria dos cidadãos ou dos usuários daquele serviço.

Outro exemplo, de como a democracia ainda não é efetiva e ainda não é firme no país: os instrumentos de participação política direta. Isso está no Artigo 14º da Constituição. Aliás, o Artigo 1º já fala: “o povo exerce o poder diretamente ou por meio de representantes”. E define os instrumentos de participação direta no Artigo 14º: plebiscito, referendo, iniciativa popular. Esses instrumentos só foram regulamentados dez anos depois, em 98, pela lei Almino Afonso, que era deputado e conseguiu fazer a aprovação dessa lei. E hoje, dez anos depois, em 2008, qual não é a surpresa em saber que o partido do então Presidente da República que sancionou essa Lei, Fernando Henrique Cardoso, entrou com uma ação direta de inconstitucionalidade no Supremo. Depois de dez anos, eles acham que a lei é inconstitucional. Plebiscito, referendo e

12. Hjalmar Schacht foi presidente do Reichsbank de 1923 a 1930 e de 1933 a 1939. Foi ministro da Economia da Alemanha entre 1934-1936.

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36 SEMINÁRIO IV: VINTE ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL (1988/2008): AVANÇOS, LIMITES...

iniciativa popular para eles é inconstitucional. Por que? Não é à toa que qualquer referência a instrumentos de participação direta na mídia é taxado como chavismo, fascismo, bonapartismo, czarismo, qualquer outra forma de autoritarismo que não seja a ampliação da democracia.

O que é contraditório, pois o país que mais faz plebiscitos chama-se Estados Unidos da América. Aliás, basta ler os jornais para saber que nas eleições americanas de agora, eles votarão não só no partido do presidente, mas também numa série de assuntos em plebiscito. Eles votam em uma série de temas, e fazem isso em todas as eleições. Não há nada de autoritário ou de inovador nisso.

Mas há uma grande reação ao modelo constitucional, que ampliou direitos, que ampliou conquistas, que ampliou a democracia, e uma falta de articulação na tentativa de segurar essas conquistas e esses direitos. Embora, verdade seja dita, talvez essa articulação esteja melhorando, porque há dez anos atrás, em 98, quem fosse fazer um congresso de dez anos da Constituição era louco. Não se encontrava gente para fazer isso. Hoje já temos vários congressos acontecendo. bem ou mal, em lugares que não necessariamente eu esperaria, mas no IPEA, na Unicamp, na UFRJ, no Instituto de Economia, isto é, não só nas faculdades de direito. Em outras palavras, o tema da Constituição está voltando de certa maneira ao debate público.

Esse modelo de Constituição tão criticado, tão retaliado, ele ainda permanece? Permanece. Apesar das reformas, apesar da desestruturação que veio com as emendas a partir de 95. Retiraram coisas importantes, mas não conseguiram acabar com o essencial, não conseguiram modificar a lógica da Constituição. Não é à toa que toda hora alguém aparece com uma idéia de assembléia constituinte revisora, ou assembléia constituinte exclusiva para fazer revisão da Constituição, aquela revisão constitucional que não deu certo. E não vão conseguir de novo, porque há uma série de conquistas que, bem ou mal, foram integradas no imaginário popular, no imaginário social. Ainda não chegaram para todo mundo, mas chegaram para mais gente do que até então tinha chegado.

O sistema de saúde chegou para mais gente hoje do que jamais tinha chegado; o sistema de educação chegou para mais gente hoje do que jamais tinha chegado; o de previdência chegou para mais gente hoje do que jamais tinha chegado. Então, houve efetivamente uma ampliação de direitos, uma concretização, talvez não a ideal, não a que a Constituição prevê, mas aquela que, apesar de toda a campanha contra, apesar de todo o desmonte, foi possível fazer. Mas qual é a possibilidade de sobrevivência de uma Constituição dessas, ou da necessidade de uma Constituição dessas?

A necessidade de sobrevivência é de refazer uma coisa, e eu acho que esse é bem o espírito do projeto aqui do IPEA e de outras frentes de pensamento: reestruturar o Estado. Sem reestruturar o Estado nacional não é possível pensar em democracia, quanto mais em social-democracia, em Estado democrático de direito ou Estado constitucional. Sem a reestruturação necessária e a capacidade de atuação do Estado, de intervenção desse Estado, que foi abalada, destruída, não só, mas especialmente nos oito anos do governo Fernando Henrique. Sem essa reestruturação a Constituição pode escrever o que ela quiser que não vai sair nada do papel.

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Esse, aliás, é um equívoco dos constitucionalistas e juristas de uma maneira geral. Nós temos esse defeito, somos instrumentalistas. Achamos que aquilo que está escrito, está resolvido. Há direito à saúde, educação, previdência etc. Está tudo na Constituição. Não importa, para mim, o que não existe na prática, isso é problema dos sociólogos, economistas, cientistas políticos, agentes públicos, não é problema meu. Porque eu vivo no mundo de fantasia chamado mundo jurídico, que fica discutindo hermenêutica, regras, princípios, teorias de argumentação e não se discute a efetivação, a concretização de direitos. Não é por acaso que caem discursos, como o que chamam hoje o discurso da moda no mundo jurídico: a reserva do possível. Ou seja, você só pode garantir direitos sociais na medida em que haja possibilidade de recursos, é óbvio (outra decisão alemã). Agora, o que não se fala é de onde vem esses recursos, e como eles são manipulados, como eles são manejados. Porque quem fala em reserva do possível diz que há limites nos direitos sociais.

Foi já mencionado aqui: vamos cortar gastos sociais. Agora, ninguém menciona o orçamento monetário, porque a crise cambial altera toda a lógica do orçamento. De onde eles tiram recurso para manter a política monetária? Sai de onde? Aí não tem reserva do possível, é reserva do impossível, que é um saco sem fundo. Mas para a saúde, educação, previdência, habitação, reforma agrária, aí é reserva do possível. Isto é, um meio em que esse tipo de discurso tem projeção é um meio que não vive na realidade

A Constituição sozinha não resolve nada, mas a Constituição ajuda a resolver as coisas também. A reforma agrária que está na Constituição de 88 não é a ideal, mas só o fato de ter reforma agrária prevista na Constituição já traz uma grande diferença com relação à Constituição de 1946, quando a reforma agrária era dada com uma mão e tirada com a outra. Falava-se em desapropriação para reforma agrária e se falava em indenização em dinheiro logo depois. Breve indenização em dinheiro, na Constituição de 1946. Isto é, a Constituição era um obstáculo para política social. A Constituição de 88 tem muitos defeitos, mas não é obstáculo para política social. Essa já é uma diferença. Mais do que isso, talvez seja esse o grande pecado da Constituição.

Eu disse no início que a Constituição de 88 tem as bases de um projeto nacional de desenvolvimento, que incorporou esse projeto, e talvez por isso seja tão combatida. Porque a Constituição de 88 não aceita como feito, como terminado, aquilo que se está por fazer. Esse é o problema da Constituição: ela coloca o dedo na ferida. Quando a Constituição de um país diz que o objetivo da República é garantir o desenvolvimento nacional, o que ela está dizendo? Que esse país é subdesenvolvido. Quando a constituição diz que é o objetivo da República reduzir a desigualdade, erradicar a miséria, o que ela está dizendo? Que o país é desigual e miserável. Quando diz que é o objetivo da República eliminar os preconceitos, de raça, cor, sexo, idade, diz o que? Que o país é preconceituoso. Quando diz que é o objetivo da República construir uma sociedade livre, justa e solidária, significa o que? Que não há sociedade nem livre, nem justa e nem solidária no país. Ou seja, ela diz o que tem que ser feito e que não foi feito, e que resume todo o projeto nacional, aquilo que pode ser feito para construir algo ou, como diria o Celso Furtado, o projeto necessário para a retomada da construção da nação.

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Não vou terminar com um economista, mas com um jurista. Também numa época conturbada, Hermann Heller,13 defendendo a Constituição de Weimar, atacada por todos os lados, dizia: eu tenho que defender a Constituição não pelo que ela não diz, mas pelo que ela diz. Eu tenho que defender a Constituição não pelo que ela proíbe, mas pelo que ela permite. Porque é a partir da Constituição que eu posso construir uma sociedade melhor, posso construir uma forma política mais adequada. É a partir da Constituição que eu posso construir uma estruturação política mais justa.

É o mesmo motivo pelo qual ainda temos que defender a Constituição de 88. Ela não resolve os problemas, mas é a partir dela que se pode encontrar a solução de vários dos problemas que são históricos na formação social brasileira.

Obrigado.

13. Herman Heller, jurista alemão pertencente à ala não-marxista do Partido Social-Democrata Alemão (PSD). Exilado em 1933, morreu em Madrid nesse mesmo ano.

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VINTE ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL (1988/2008): AVANÇOS E DESAFIOS PARA AS POLÍTICAS PÚBLICAS E O DESENVOLVIMENTO NACIONAL*

Debate:

(adequação da Constituição Federal de 1988 à realidade)

Gilberto Bercovici

Toda Constituição está estruturada tendo em perspectiva o futuro, não só a nossa. A Constituição americana e a francesa são da mesma forma. O que é uma Constituição? Ela é o fruto de uma dada realidade política num determinado momento histórico, que tenta reestruturar e refundar a organização política, social e, às vezes, econômica do país. Portanto, toda Constituição tem esse elemento prospectivo.

Mas eu acredito que o nosso problema não está entre a utopia e a realidade. Nosso problema é a tensão entre a tentativa de mudança estrutural e a manutenção de determinados privilégios que impedem que as transformações sejam garantidas constitucionalmente. A Constituição de 88, se for cumprida, pode causar uma verdadeira revolução na estrutura do país, mesmo com todos os defeitos que ela possa ter.

Ela é real sim. Ela foi feita pelo Congresso Nacional, num momento histórico concreto, e nenhuma palavra se encontra ali apenas para figurar um efeito poético. Há um motivo para cada uma das palavras estarem ali; todas elas têm um significado e uma história; e estão ali pelos motivos mais elevados, ou pelos motivos menos elevados. Portanto, a Constituição é fruto daquela realidade que reflete o Brasil.

Caso fizéssemos uma Assembléia Constituinte hoje eu não sei o que resultaria dela em termos de direitos sociais, ou direitos fundamentais. Mas eu posso dizer que muitos dos elementos que foram usados na Constituição de 88, esses permaneceriam porque fazem parte da própria realidade política, e tem força suficiente para continuar. Na verdade, a Constituição é fruto da realidade política, essa Constituição é fruto do Brasil, ela é o Brasil. Talvez seja por isso que alguns de nós não gostemos dela; porque ela nos espelha, diz o que somos, o que não somos, e o que deveríamos ser. E, também, o que temos que fazer para ser. Talvez seja esse o problema.

Plínio de Arruda Sampaio

Esse tipo de observação pode vir pela direita e pela esquerda. Pela direita diz o seguinte: escreveram um negócio que não cabe no país; o Brasil é outra coisa, diferente de sua Constituição. Nesse caso, a Constituição é exatamente o que disse o Sarney, ela gera ingovernabilidade.

Mas eu faço essa observação pelo lado da esquerda: primeiro, uma nação que não é autônoma, independente, dona do seu território, com capacidade militar para defendê-lo, com capacidade econômica para sustentá-lo, não tem Constituição. Essa é a verdade. A verdade é que essa Constituição vale para um pedaço pequeno, enquanto não mexe com o privilégio dos supra-constitucionais. Porque quando mexe, ela não vale. Caso se queira levá-la à sério, não há Constituição.

* Documento em versão preliminar, sujeito a revisão.

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40 SEMINÁRIO IV: VINTE ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL (1988/2008): AVANÇOS, LIMITES...

Sua proposta não tem mais vigência histórica. Com todo respeito que eu tenho pelos social-democratas: a social-democracia é uma coisa que já passou, no mundo e aqui. Na verdade, ela é irreal mesmo, mas por outras razões. Não porque ela dá direitos. Ela é irreal porque não há uma força popular que a sustente. Por isso que eu comecei dizendo: mais importante na Constituição são os processos que a precedem.

O que todos disseram aqui foi o seguinte: o movimento de massa que precisava ter algum retorno do establishment para poder reequilibrar o país, não teve força para fazer uma revolução, não teve força para ganhar do establishment burguês. E o establishment burguês pouco a pouco foi se recuperando. Hoje, com essa revolução pós-11 de setembro, o problema agora é a criminalização da pobreza, a barbarização da sociedade, lá e aqui.

O que se conclui disso tudo? Que eu sou contra a revolução? Não. Eu votei contra a Constituição, e meu partido não queria assiná-la. Eu disse: tem que assinar, porque senão vamos para montanha, pois não assinar e depois ir receber o contracheque fica meio sem sentido. Caso contrário, vamos todos para a montanha. Mas, como todo mundo precisava receber o contracheque, nós assinamos. Só que votamos contra.

Mas hoje, eu defendo essa Constituição. Por quê? Porque ela é um instrumento para aqueles 60 milhões que ainda tem alguns direitos enquanto não fere os privilégios dos supra-constitucionais. A Constituição é instrumento para nós, para fazermos agitação. E, de certa maneira, para ver se conseguimos compor um poder popular que arrebente o poder da burguesia para que a gente possa fazer uma Constituição de fato nesse país.

Raphael de Almeida Magalhães

Eu insisto que o projeto social democrático é possível, e as bases foram dadas pela Constituição. A coisa que mais me impressiona é a sua percepção de que não há meios para avançar no social, como a Constituição prevê. Há muitos meios. Há uma fortuna de meios. O Brasil gasta orçamentariamente mais de 200 milhões para pagar juros da dívida pública, que beneficia os portadores de títulos públicos, que remuneram a maior taxa de juros conhecida da história há muitos anos. Isto é, arrecadação tributária extraída da sociedade brasileira que se dirige ao pagamento de juros. Quando se fala atingir déficit zero, fala-se em manter essa transferência de renda, que é uma das coisas mais inomináveis se você pensar bem sobre o que se trata.

A maior despesa do orçamento é pagamento dos juros da dívida pública, mais de 200 bilhões de reais. O Brasil tem uma enorme carga tributária, a maior parte vai para o pagamento de juros. E a única utilidade de se aumentar a taxa de juros é a de remunerar os rentistas, e ao mesmo tempo, piorar as contas públicas. Se você, por hipótese, quiser fazer um extraordinário gasto social, você reduz a taxa de juros do Brasil, dos 14% para 6% (embora ainda assim seja a maior taxa de juros do mundo). Você faria uma economia de aproximadamente 120 bilhões de reais que sobrariam para a saúde, a previdência, a educação. E você lastreava a base de construir um país diferente. Recursos existem, e muito. O que há é uma escolha de onde aplicar os recursos.

Isso tudo tem sido feito com a imprensa e os interesses estabelecidos dizendo que é absolutamente racional, lógico e necessário. E, ainda, criam a idéia da gastança pública. E porque se insiste na idéia da gastança pública? Para sobrar dinheiro para pagar a taxa de juros.

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SEMINÁRIO IV: VINTE ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL (1988/2008): AVANÇOS, LIMITES... 41

Se houver uma reorientação no gasto público, haverá condições para um extraordinário programa social. Se pararem de tirar dinheiro dos Estados para gastarem em educação e saúde, haverá uma mudança, uma revolução na educação e na saúde do Brasil. Se parte desse dinheiro for destinado para fazer integração do mundo rural, no mercado de consumo brasileiro haverá uma revolução no país. E isso está ao nosso alcance.

Podem dizer que o Fundo Monetário Internacional vai nos condenar. Contudo, se deixamos de prestar atenção a isso e de imaginar que faremos desenvolvimento com recursos provenientes do capital externo, será possível fazer um extraordinário avanço social no país com essa carga fiscal.

Eu discordo um pouco do Plínio porque eu acho que as coisas avançaram muito. O fato de haver um enorme grupo de brasileiros recebendo proventos da aposentadoria é um avanço. O fato de haver o bolsa-família é um avanço. Estamos entrando na discussão da qualidade do ensino. Lembre-se que antes discutíamos a falta de vagas. Se houver investimento no salário da professora, no treinamento, e se dermos condições de satisfação social, mostrando que sua profissão é essencial do ponto de vista humano, e do ponto de vista do destino das pessoas, nós podemos superar um ciclo.

Acho que há um espaço para fazer essa política. É uma questão de se dizer: eu vou arrecadar impostos, e em vez de pagar juros, vamos fazer programas sociais largos, generosos e remunerar o pessoal devidamente. Isso seria uma revolução. E ao pagar salários importantes, criamos um grande mercado de consumo interno. Não há conflito nisso. O único conflito que existe é encher o bolso dos rentistas. Temos um país de rentistas. Já imaginou você tomar 200 bilhões de reais orçamentários para pagar rentistas do Banco Central? Estes recebem taxa de juros altas, liquidez absoluta na aplicação, e desfrutam de segurança total com títulos públicos.

Como é que podemos mudar a idéia de que o país não dispõe de meios? Nós temos sim! Nós temos uma carga fiscal enorme! Injusta, atrapalhada, mal distribuída, mas temos. E só cresceu porque pagamos esse tributo e pagamos esses juros. Esse dinheiro da contribuição social vai para pagar os juros. O superávit primário é para pagar juros. A prioridade é o pagamento dos juros. Tudo é para pagar juros. Quando é necessário socorrer o sistema bancário, aparece dinheiro! Dinheiro há. Acabaram de colocar 100 bilhões de reais à disposição dos bancos. Como é que não tem dinheiro?

Isso é uma embromação nacional que está rodando aí há muito tempo, e que serviu de base para o Fernando Henrique realizar privatizações. Serviu de base para tentar cortar direitos sociais. Os direitos sociais resistiram porque, na verdade, existia um sujeito do outro lado, havia um beneficiário do outro lado, e ficou difícil ser cortado. Difícil do ponto de vista eleitoral, não do ponto de vista da consciência social. Houve várias tentativas de baixar o piso da previdência para 60% do salário mínimo. Eu discuti isso aqui em Brasília com o Banco Central. Eles diziam que se não chegássemos a um piso de 60% do salário mínimo, a previdência quebraria. Mas como não dava para quebrar agora, iria quebrar daqui a 10 anos. Acontece que temos recursos. Podemos fazer uma sociedade muito melhor, muito mais organizada, muito mais justa, crescendo, sem estatização, sem nada disso. Podemos fazer sim.

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42 SEMINÁRIO IV: VINTE ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL (1988/2008): AVANÇOS, LIMITES...

Aloísio Teixeira

Eu acho que essa questão explicita as diferenças da mesa. A Constituição é adequada à realidade do país? Essa pergunta, no meio da trajetória que dessa vez veio da esquerda para direita, foi abandonada, e já não se tratava disso. Na verdade ela explicitou um fato. O PT votou contra a Constituição de 88, enquanto os outros partidos não. Passamos para uma discussão sobre social-democracia, e sobre as possibilidades econômicas e políticas de se mudar essa realidade que vivemos. Se fosse responder a essa pergunta eu diria: ela é adequada, e não é adequada.

Acho que a social democracia, enquanto idéia, não acabou. A social-democracia real, sim, acabou. Uma social democracia, tal como existiu no século XIX ou no início do século XX, não existe mais. A social-democracia nesse longo movimento da economia mundial que se inicia no final dos anos 60, acabou fazendo políticas que não foram absolutamente diferenciadas dos conservadores ou dos liberais. Isso nos chama a atenção para um problema que vai além do domínio puro e simples da gestão de políticas econômicas ou de opções de políticas econômicas, que é a profunda interpenetração das economias nacionais nesse grande tecido da economia mundial. E se não percebemos que temos uma realidade que é diferente, subestimaremos esse aspecto.

No Brasil, a social democracia não tomou o nome de social-democracia e sim de PT. O PT é a social-democracia brasileira. É um partido reformista, e de base sindical. Isso é a social democracia. Os tucanos jamais foram social-democratas. Eles podem ser liberais democratas, ou o que eles bem entenderem. Social democracia no Brasil é o PT. Isto é, ele tem uma base sindical forte e uma proposta reformista. No governo, no meio de uma situação extremamente complexa em vários aspectos, a gente avançou. Mas em outros eles não se diferenciaram dos seus antecessores.

Não é possível compreender a Constituição de 88 se não formos capazes de recriar o que era o ambiente político e econômico interno e externo que existia no Brasil na segunda metade dos anos 80. A mudança nas condições internacionais foi de uma radicalidade imensa. O choque de juros promovido nos Estados Unidos provocou dois movimentos estratégicos. Um foi com a intenção clara de submeter os seus parceiros do mundo capitalista, depois de uma década de crise, em que o dólar perdia sua função no sistema monetário internacional. O outro foi a “Guerra nas Estrelas”: o aumento da despesa militar, com o aumento da densidade tecnológica do armamento, que levou a União Soviética a quebrar.

Nesse ponto, na virada dos anos 70 para os 80, foram dissolvidos todos os pressupostos que informaram o funcionamento da economia mundial desde o pós-guerra. Isso impactou o mundo inteiro. Não existiu nos anos 80, em nenhum lugar do mundo, um movimento operário sindical ativo. Houve desemprego, perda de direitos, desorganização do movimento sindical e a derrota do pensamento de esquerda, qualquer que tenha sido o seu matiz.

Isso influenciou e criou condições que eram absolutamente diferentes em qualquer país, inclusive aqui. O que acontecia internamente? Uma recessão, alimentada pela conjuntura externa, agravada pelo nosso ciclo interno, quando os efeitos encadeados do pacote de investimentos do segundo PND havia terminado. Por razões externas e internas, nós entramos numa recessão. O quadro internacional de então, levou a uma desagregação do regime militar, com todas as conseqüências.

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SEMINÁRIO IV: VINTE ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL (1988/2008): AVANÇOS, LIMITES... 43

Não é verdade que nos anos 80 os movimentos sociais estivessem em ascensão. Temos que saber distinguir os movimentos sociais orgânicos ao capitalismo, que decorrem das relações entre capital e trabalho. O movimento sindical estava em baixa. O desemprego causava recuo do movimento sindical. No início dos anos 80 caiu o número de greves, caiu as reivindicações operárias, o que é natural no mundo do desemprego. O que cresceram foram os movimentos não-orgânicos. O que também é próprio num país como o Brasil, e de uma crise das dimensões que tivemos. O que é movimento não-orgânico? São aqueles que não estão diretamente inseridos no processo de produção da riqueza capitalista. São os sem-terra, são os sem-teto, são as associações de moradores, são as associações de favelados. Foi isso que cresceu.

E houve um movimento político fantástico, que é o movimento das “Diretas”, que ganhou o país inteiro. O Antônio Carlos Magalhães um dia chegou na Bahia e disse: acabou. E acabou mesmo. Essa percepção foi inflando esse movimento. Esse era um momento de luta política, de luta ideológica intensa, numa conjuntura adversa. Se pensarmos que a conjuntura era favorável, nós estamos nos enganando. A conjuntura era adversa, a correlação interna de forças no país não havia se deslocado para a esquerda. O processo de desagregação do regime militar não decorreu de um avanço da esquerda, mas de uma desmontagem da direita.

Nós fomos para essa luta sem uma consciência clara disso. Ilusão é uma palavra de derrotado. Ilusão é uma palavra de quem está se retirando da luta. Quem está na luta enfrenta a ilusão, a derrota da sua percepção, não como uma ilusão, mas como um momento da própria luta. Quantas vezes nós erramos? Erramos sempre, desde que estejamos lutando. Quando a gente diz ilusão, é porque a gente renunciou à luta. E eu digo para você: eu não renunciei. Aquilo foi ilusão? Não. Aquilo foi um programa de luta. Ilusão é achar que as leis fazem a realidade. As leis não fazem a realidade. Esta ilusão não existia. O que nos tínhamos ali era um programa de luta. Anticapitalista? Não era anticapitalista. Porque gostássemos do capitalismo? Não. Mas sabíamos que não havia nenhuma condição política de acabarmos com o capitalismo no Brasil.

O que nós queríamos? Construir diques, como existem em vários outros países. Construir limites, modernizar as relações capital-trabalho, isso era o que estava na ordem do dia. Ilusão não. Nós fomos derrotados, o que é diferente de ter ilusão. Nós fomos derrotados. Não na constituinte, mas no momento de sua aprovação. E por que fomos derrotados? Porque não tínhamos uma coligação de força favorável. Não é que o povo não quisesse.

Os movimentos sociais organizados nesse país, o movimento sindical, o movimento operário, aquele que podia ser o ator social de uma transformação, este movimento estava em declínio. Os outros movimentos não têm, embora populares, uma consciência e nenhuma estrutura que os permita assumir esta posição de vanguarda neste processo. Aquilo era uma luta política inexorável porque a alternativa era se retirar dela. Era uma luta política inexorável na qual a gente foi derrotado. E continuamos nessa luta até hoje.

Se nos retiramos dela e achamos que a Constituição é um instrumento de agitação, nós não vamos construir um movimento político que faça com que a democracia se consolide nesse país. Nós vamos ficar fora do processo político como o PT optou em

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1988, de ficar fora do processo político. Eu não sei se vai ser Dilma, se vai ser Serra, se vai ser Aécio, se não vai ser nenhum deles. Mas nós temos que ter a nossa proposta e abrir todos os espaços de discussão para que essas idéias possam avançar. É inútil reclamar do leite derramado. Temos que construir uma nova realidade.

Aquilo que foi perdido está perdido. O mundo não voltará a 1988. Mas temos a obrigação, nós que pensamos, que nos reunimos, que discutimos em espaços públicos, e às vezes em espaços privados, de formular essa proposta. Qual é a utopia de hoje? Qual é o projeto de hoje? Se formos chamados a uma Constituição, o que nós vamos dizer para reconstruir essa Constituição? Então esse é o problema. Não adianta ficar na querela passada, nas lágrimas derramadas pelas derrotas passadas. Isso acabou. Qual é a Constituição de 88 hoje? Isso é o que a gente tem que dizer.

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