TEXTO - Constituição e República(UMA RELAÇÃO DIFÍCIL) - Gilberto Bercovici

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/11/2019 TEXTO - Constituio e Repblica(UMA RELAO DIFCIL) - Gilberto Bercovici

    1/20

    A questo do primado da Constituio, como norma fundamen-tal do Estado, que garante os direitos e liberdades dos indivduos, foidesenvolvida no decorrer do sculo XIX, com a consolidao dos regimesliberais nos Estados Unidos e na Europa ps-revolucionrios. O constitu-cionalismo foi utilizado, de um lado, para contrapor ao contratualismo e soberania popular, idias-chave da Revoluo Francesa, os poderes consti-tudos no Estado. De outro, utilizou-se a Constituio contra os poderes do

    monarca, limitando-os. Dessa forma, a Constituio do Estado evitaria osextremos do poder do monarca (reduzido categoria de rgo do Estado,portanto, rgo regido constitucionalmente) e da soberania popular (o povopassa a ser visto como um dos elementos do Estado). Embora liberais, asConstituies no sero, ainda, democrticas. E, mais importante, aConstituio no do rei ou do povo, a Constituio do Estado, assimcomo o direito direito positivo, posto pelo Estado.1

    O conceito clssico de Constituio da segunda metade do sculo

    XIX o de Georg Jellinek, que entende a Constituio como os princpiosjurdicos que definem os rgos supremos do Estado, sua criao, suasrelaes mtuas, determinam o mbito de sua atuao e a situao de cadaum deles em relao ao poder do Estado. 2 A Constituio estatal, pois s

    CONSTITUIO E POLTICA:UMA RELAO DIFCIL

    GILBERTO BERCOVICI

    1 FIORAVANTI, Maurizio, Stato e Costituzione: Materiali per una Storia delle DottrineCostituzionali, Torino, G. Giappichelli Editore, 1993, pp. 144-145; GRIMM, Dieter, DerVerfassungsbegriff in historischen Entwicklung in Die Zukunft der Verfassung, 2 ed,

    Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1994, pp. 106-109 e 143-146; MATTEUCCI, Nicola,Organizacin del Poder y Libertad: Historia del Constitucionalismo Moderno, Madrid,Trotta, 1998, pp. 253-258 e 268-273; FIORAVANTI, Maurizio, Costituzione, Bologna, IlMulino, 1999, pp. 118-130 e 135-139 e STOLLEIS, Michael, Verfassungsideale derBrgerlichen Revolution in Konstitution und Intervention: Studien zur Geschichte desffentlichen Rechts im 19. Jahrhundert, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 2001, pp. 19-32.

  • 8/11/2019 TEXTO - Constituio e Repblica(UMA RELAO DIFCIL) - Gilberto Bercovici

    2/20

    possvel com o Estado. O Estado pressuposto pela Constituio, cujafuno regular os rgos estatais, seu funcionamento e esfera de atuao,

    o que ir, conseqentemente, delimitar a esfera da liberdade individual doscidados. A Constituio tambm um instrumento de governo, pois legiti-ma procedimentalmente o poder, limitando-o. A poltica est fora daConstituio.3 De acordo com o prprio Jellinek, deveria haver uma sepa-rao entre o direito e a poltica no estudo do Estado, inclusive na anliseda Constituio, sendo admissveis, no mximo, estudos jurdicos comple-mentares aos polticos.4 Jellinek pretendeu criar um sistema de validadeuniversal, margem da histria e da realidade. A teoria jurdica do Estado

    de Jellinek, segundo Pedro de Vega, est ligada a trs pressupostos: a posi-tividade do direito, o monoplio estatal da produo jurdica e a personali-dade jurdica do Estado. O principal conceito o do Estado como pessoajurdica, ligado teoria da autolimitao do Estado. Afinal, ao criar o direito,o Estado obriga-se a si mesmo e, submetendo-se ao direito, torna-se tambmsujeito de direitos e deveres.5

    A tentativa, nem sempre bem sucedida, de conciliar o constitu-cionalismo com a democracia vai, na Europa, ter incio com a Constituio

    alem de 1919, a clebre Constituio de Weimar.6

    Ser sob a vignciadesta Constituio que ocorrer o famoso e, at hoje, fundamental, debatesobre os mtodos do direito pblico7, iniciado quando Hans Kelsen prope

    LUANOVA N 61 20046

    2 JELLINEK, Georg,Allgemeine Staatslehre, reimpr. da 3 ed, Darmstadt, WissenschaftlicheBuchgesellschaft, 1960, p. 505.3 JELLINEK, Georg, Allgemeine Staatslehre cit., pp. 361-363; FIORAVANTI, Maurizio,Costituzione cit., pp. 137-139 e FIORAVANTI, Maurizio, Costituzione e Politica: Bilanciodi Fine Secolo in La Scienza del Diritto Pubblico: Dottrine dello Stato e della Costituzionetra Otto e Novecento , Milano, Giuffr, 2001, vol. 2, pp. 871-875.4

    JELLINEK, Georg, Verfassungsanderung und Verfassungswandlung: Eine staatsrechtliche-politische Abhandlung, reimpr., Goldbach, Keip Verlag, 1996, pp. 5-6 e 80. Sobre o fato deJellinek, assim como a maioria dos publicistas alemes da segunda metade do sculo XIX,propor a separao da poltica do direito pblico, vide WILHELM, Walter, Zur juristischen

    Methodenlehre im 19. Jahrhundert: Die Herkunft der Methode Paul Labands aus derPrivatrechtswissenschaft, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1958, pp. 141-142.5 JELLINEK, Georg,Allgemeine Staatslehre cit., pp. 169-173, 182-183, 367-375 e 386-387.Vide tambm CASTILLO, Monique, La Question de lAutolimitation de ltat, Cahiers dePhilosophie Politique et Juridique n 13, Caen, Centre de Publications de lUniversit deCaen, 1988, pp. 85-102 e GARCA, Pedro de Vega, El Trnsito del Positivismo Jurdico alPositivismo Jurisprudencial en la Doctrina Constitucional, Teora y Realidad Constitucional

    n 1, Madrid, Universidad Nacional de Educacin a Distancia/Editorial Centro de EstudiosRamn Areces, janeiro/junho de 1998, pp. 65-67 e 70-72.6 FIORAVANTI, Maurizio, Costituzione cit., pp. 146-157.7 Sobre o debate de Weimar, vide, por todos, FRIEDRICH, Manfred, Der Methoden undRichtungsstreit: Zur Grundlagendiskussion der Weimarer Staatsrechtslehre, Archiv desffentlichen Rechts, vol. 102, Tbingen, J.C.B. Mohr (Paul Siebeck), 1977, pp. 161-209.

  • 8/11/2019 TEXTO - Constituio e Repblica(UMA RELAO DIFCIL) - Gilberto Bercovici

    3/20

    CONSTITUIO E POLTICA: UMARELAO DIFCIL 7

    a aplicao do mtodo jurdico positivista at as ltimas conseqncias,gerando, nas palavras de Heller, uma Teoria do Estado sem Estado8. O

    debate, ento, vai se dar, segundo Olivier Beaud, em torno das concepesneohegelianas e neokantianas de Estado e Constituio: entre a idia deque a Constituio a lei da vida poltica global de um Estado, ou seja, estligada ao ser poltico do Estado e a concepo de que a Constituio uma regra de direito que apenas regula o comportamento estatal, estandoligada ao dever ser do Estado. Em suma, a Constituio entendidacomo regime poltico-social do pas (idia defendida por autores das maisdiversas tendncias ideolgicas, cujas origens esto em Hegel, passando

    por Ferdinand Lassalle e Lorenz von Stein) ou entende-se a Constituiolimitada ao texto constitucional, regulando os comportamentos dos agentesestatais (idia defendida pelo neokantismo e o normativismo positivista).9

    No estudo do Debate de Weimar, centrado na questo docombate ao positivismo jurdico e nas relaes entre Estado, Constituio,poltica e realidade, muitas vezes passa despercebida a, talvez, grande ino-vao de Hans Kelsen: a substituio da Teoria Geral do Estado pela Teoriada Constituio. Kelsen destaca a importncia da juridicidade da

    Constituio, indo alm da idia da Constituio estatal: a base daConstituio no o Estado ou a fora normativa dos fatos, mas a normafundamental, que no posta, mas pressuposta.10

    Segundo Kelsen, a estrutura hierrquica do processo de criaodo direito termina em uma norma que fundamenta a unidade do ordena-mento jurdico. Anorma fundamental hipottica, no positivada, portanto,no determinada por nenhuma norma superior do direito positivo. Estanorma fundamental a Constituio em sentido lgico-jurdico, queinstitui um rgo criador do direito, um grau inferior que estabelece as nor-mas que regulam a elaborao da legislao. Este rgo a Constituiopropriamente dita, ou Constituio em sentido jurdico-positivo.11

    O contedo da Teoria Geral do Estado, para Kelsen, o estudodos problemas referentes validade e produo da ordem estatal, ou seja,do ordenamento jurdico. Esses problemas de criao do ordenamento

    8 HELLER, Hermann, Die Krisis der Staatslehre in Gesammelte Schriften, 2 ed, Tbingen,J.C.B. Mohr (Paul Siebeck), 1992, vol. 2, pp. 15-24.9

    BEAUD, Olivier , Carl Schmitt ou le Juriste Engag in SCHMITT, Carl, Thorie de laConstitution, Paris, PUF, 1993, pp. 75-85. Vide tambm BEAUD, Olivier, La Puissance delEtat, Paris, PUF, 1994, pp. 359-368.10 BEAUD, Olivier, Carl Schmitt ou le Juriste Engag cit., pp. 80-81.11 KELSEN, Hans, Allgemeine Staatslehre, reimpr., Wien, Verlag der sterreichischenStaatsdruckerei, 1993, pp. 248-250.

  • 8/11/2019 TEXTO - Constituio e Repblica(UMA RELAO DIFCIL) - Gilberto Bercovici

    4/20

    jurdico (criao do direito e fundamentao da unidade do ordenamento),como vimos acima, so compreendidos sob o conceito de Constituio.

    Desta forma, para Hans Kelsen, a Teoria Geral do Estado coincide com aTeoria Geral da Constituio.12

    Apesar das consideraes de Kelsen, demonstrando a passagemda Teoria Geral do Estado para a Teoria da Constituio, a primeira obrasistemtica que entende a Teoria da Constituio como um ramo prprio dateoria geral do direito pblico a Ve r f a s s u n g s l e h re (Teoria daConstituio), de Carl Schmitt, publicada em 1928. O objetivo declaradode Schmitt o de oferecer uma obra sistemtica das questes de teoria

    constitucional tratadas incidentalmente pelo Direito Constitucional(Staatsrecht) e pela Teoria Geral do Estado. A necessidade de um trata-mento prprio dessas questes destacado por Carl Schmitt, ao criticar opositivismo jurdico que teria deslocado as questes fundamentais do direitopoltico para a Teoria Geral do Estado. Nesta disciplina as questes da teoriaconstitucional no seriam tratadas adequadamente, situadas entre as teoriaspolticas em geral e os temas filosficos, histricos e sociolgicos abarcadospelos tericos do Estado. Com a Teoria da Constituio, Schmitt busca

    superar a diviso, gerada pelo positivismo normativista, entre Teoria Geraldo Estado, Direito Constitucional e Poltica, reabilitando o poltico naanlise dos temas da teoria constitucional.13

    No mesmo ano de publicao da Teoria da Constituio de CarlSchmitt, 1928, Rudolf Smend publicou o seu livro Constituio e DireitoConstitucional (Verfassung und Verfassungsrecht), em que a Teoria daIntegrao era apresentada como alternativa ao positivismo jurdico.Smend desenvolve uma Teoria da Constituio, tornando a Constituio oponto de referncia, no lugar da tradicional Teoria Geral do Estado.14 Doconceito de Constituio elaborado por Smend15, podemos perceber que oaspecto relevante no o da normatividade da Constituio, mas sua reali-

    LUANOVA N 61 20048

    12 KELSEN, Hans,Allgemeine Staatslehre cit., pp. 45-46.13 SCHMITT, Carl, Verfassungslehre, 8 ed, Berlin, Duncker & Humblot, 1993, pp. XI-XIV(prefcio). Vide tambm BEAUD, Olivier, Carl Schmitt ou le Juriste Engag cit., pp. 58-61e 74-75.14 SMEND, Rudolf, Verfassung und Verfassungsrecht in Staatsrechtliche Abhandlungen und

    andere Aufstze, 3 ed, Berlin, Duncker & Humblot, 1994, p. 274.15 AConstituio a ordenao jurdica do Estado, ou melhor, da dinmica vital na qual sedesenvolve a vida do Estado, isto , de seu processo de integrao. A finalidade deste proces-so a permanente reestruturao da realidade total do Estado: e a Constituio o modelolegal ou normativo de determinados aspectos deste processo. Cf. Rudolf SMEND,Verfassung und Verfassungsrecht cit., p. 189.

  • 8/11/2019 TEXTO - Constituio e Repblica(UMA RELAO DIFCIL) - Gilberto Bercovici

    5/20

    CONSTITUIO E POLTICA: UMARELAO DIFCIL 9

    dade integradora, permanente e contnua. A Constituio uma ordemintegradora, graas aos seus valores materiais prprios. Alm disto, ao se

    constituir como um estmulo, ou limitao, da dinmica constitucional,estrutura o Estado como poder de dominao formal.16

    A POLTICA DIRIGIDA PELA CONSTITUIO

    O debate sobre o papel da Constituio e suas relaes com apoltica foi retomado no segundo ps-guerra. As Constituies do sculo

    XX, especialmente aps a Segunda Guerra Mundial, so polticas, noapenas estatais, na expresso de Maurizio Fioravanti. Assumem contedopoltico, ou seja, englobam os princpios de legitimao do poder, no ape-nas sua organizao. O campo constitucional ampliado para abrangertoda a sociedade, no s o Estado. A Constituio, nas palavras de KonradHesse, tambm a ordem jurdica fundamental da comunidade, ou seja,ela Constituio do Estado e da sociedade. A poltica se manifesta noapenas na instaurao da Constituio (o poder constituinte originrio),

    mas tambm nos momentos seguintes, de efetivao da ordem constitu-cional por meio de uma poltica constitucional.17 O grande protagonista dasconcepes, consubstanciadas com a Teoria da Constituio, segundoFioravanti, o partido poltico, intermedirio entre o Estado e a sociedade,englobados agora pela Constituio.18

    A idia da Constituio como totalidade, ressaltando-se o seucarter dinmico (no garante apenas uma ordem esttica), politiza oconceito de Constituio, que no se limita mais a sua normatividade.19

    Esta concepo, elaborada, como vimos, por autores como Schmitt eSmend, d origem Teoria Material da Constituio, ligada ao predomniodas Constituies sociais (ou programticas) do ps-guerra. A Teoria

    16 SMEND, Rudolf, Verfassung und Verfassungsrecht cit., pp. 190-193 e 195-196.17 HESSE, Konrad, Grundzge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland, 20ed, Heidelberg, C.F. Mller Verlag, 1999, pp. 10-11; BCKENFRDE, Ernst-Wolfgang,Grundrechte als Grundsatznormen: Zur gegenwrtigen Lage der Grundrechtsdogmatik in

    Staat, Verfassung, Demokratie cit., p. 189; FIORAVANTI, Maurizio, Costituzione cit., pp.159-162 e FIORAVANTI, Maurizio, Costituzione e Politica: Bilancio di Fine Secolo cit.,pp. 875-884.18 FIORAVANTI, Maurizio, Stato e Costituzione cit., p. 144.19 GARCA-PELAYO, Manuel,Derecho Constitucional Comparado, 8 ed, Madrid, AlianzaEditorial, 1993, pp. 80-81.

  • 8/11/2019 TEXTO - Constituio e Repblica(UMA RELAO DIFCIL) - Gilberto Bercovici

    6/20

    Material da Constituio permite compreender, a partir do conjunto total desuas condies jurdicas, polticas e sociais (ou seja, a Constituio em sua

    conexo com a realidade social), o Estado Constitucional Democrtico.Prope-se, portanto, a levar em considerao o sentido, fins, princpiospolticos e ideologia que conformam a Constituio, a realidade social daqual faz parte, sua dimenso histrica e sua pretenso de transformao.20

    As funes da Constituio podem ser sintetizadas, para HansPeter Schneider, em trs dimenses: a dimenso democrtica (formao daunidade poltica), a dimenso liberal (coordenao e limitao do poderestatal) e a dimenso social (configurao social das condies de vida).21

    Todas estas funes so interligadas, condicionando-se mutuamente. O signi-ficado da Constituio, portanto, no se esgota na regulao de procedi-mentos de deciso e de governo, nem tem por finalidade criar uma inte-grao alheia a qualquer conflito. Nenhuma de suas funes pode serentendida isoladamente ou absolutizada. A Constituio s pode ser plena-mente compreendida em sua totalidade. Mas, fundamentalmente, aConstituio, como afirmou Hans Peter Schneider, direito poltico: do,sobre e para o poltico.22

    O debate constitucional passa a travar-se entre aqueles que con-sideram a Constituio um simples instrumento de governo, definidor decompetncias e regulador de procedimentos, e os que acreditam que aConstituio deve aspirar a transformar-se num plano global que determinatarefas, estabelece programas e define fins para o Estado e para asociedade. No primeiro caso, a lei fundamental deve ser entendida apenascomo uma norma jurdica superior, abstraindo-se dos problemas de legiti-mao e domnio da sociedade. A Constituio como instrumento formalde garantia no possui qualquer contedo social ou econmico, sob a justi-ficativa de perda de juridicidade do texto. As leis constitucionais sservem, ento, para garantir o status quo. AConstituio estabelece compe-

    LUANOVA N 61 200410

    20 SCHNEIDER, Hans Peter, La Constitucin Funcin y Estructura in Democracia yConstitucin, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1991, pp. 35-37, 39 e 43 eBONAVIDES, Paulo, Curso de Direito Constitucional, 7 ed, So Paulo, Malheiros, 1998, pp.77-83 e 115-119.21

    Garca-Pelayo entende a Constituio como, simultaneamente, parte integrante do ordena-mento jurdico, da ordem estatal (organizao do Estado) e da estrutura poltica (modo con-creto de existncia poltica de um povo, com seus valores e princpios polticos). VideGARCA-PELAYO, Manuel,Derecho Constitucional Comparado cit., pp. 100-103.22 SCHNEIDER, Hans Peter, La Constitucin Funcin y Estructura cit., pp. 39-47 eGARCA-PELAYO, Manuel,Derecho Constitucional Comparado cit., pp. 100-103.

  • 8/11/2019 TEXTO - Constituio e Repblica(UMA RELAO DIFCIL) - Gilberto Bercovici

    7/20

    CONSTITUIO E POLTICA: UMARELAO DIFCIL 11

    tncias, preocupando-se com o procedimento, no com o contedo dasdecises, com o objetivo de criar uma ordem estvel. Subjacente a essa tese

    da Constituio como mero instrumento de governo est o liberalismo esua concepo da separao absoluta entre o Estado e a sociedade, com adefesa do Estado mnimo, competente apenas para organizar o procedi-mento de tomada de decises polticas.23

    Em contraposio a essas concepes, destaca-se, especialmenteno debate constitucional brasileiro, a proposta de Constituio Dirigente doconstitucionalista portugus Jos Joaquim Gomes Canotilho. Esta propos-ta busca a reconstruo da Teoria da Constituio por meio de uma Teoria

    Material da Constituio, concebida tambm como teoria social.24 ParaCanotilho, como todas as Constituies pretendem, de uma forma ou outra,conformar o poltico, com a denominao Constituio Dirigente afirma-seintencionalmente a fora de direo do direito constitucional.2 5 AConstituio Dirigente busca racionalizar a poltica, incorporando umadimenso materialmente legitimadora, ao estabelecer um fundamento consti-tucional para a poltica.26 O ncleo da idia de Constituio Dirigente aproposta de legitimao material da Constituio pelos fins e tarefas pre-

    vistos no texto constitucional. Em sntese, segundo Canotilho, o problemada Constituio Dirigente um problema de legitimao.27

    Tendo em vista essa concepo de Constituio, Canotilho vaiter como preocupaes centrais no seu trabalho a defesa da no-disponi-bilidade da Constituio pelo legislador28 e a questo da discricionariedadelegislativa29. Em suma, o debate sobre o eventual excesso de poder legisla-tivo em virtude da possibilidade dos fins constitucionais serem menos-prezados ou at substitudos.30 De acordo com sua proposta, a concretizaodas imposies constitucionais (normas constitucionais que determinama realizao de tarefas e persecuo de fins) funo tanto da legislao,

    23 CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes, Direito Constitucional, 6 ed, Coimbra, Almedina,1993, pp. 79-82.24 CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes, Constituio Dirigente e Vinculao do Legislador:Contributo para a Compreenso das Normas Constitucionais Programticas, 2 ed, Coimbra,Coimbra Ed., 2001, pp. 13-14.25

    Id., pp. 27-30.26 Id., pp. 42-49 e 462-471.27 Id., pp. 19-24, 157-158 e 380.28 Id., pp. 62-64, 329-331 e 401-403.29 Id., especialmente pp. 216-241.30 Id., pp. 263-266.

  • 8/11/2019 TEXTO - Constituio e Repblica(UMA RELAO DIFCIL) - Gilberto Bercovici

    8/20

    como da direo poltica. Ou seja, Canotilho procura estabelecer uma vin-culao jurdica para os atos polticos na Constituio. A questo das

    imposies constitucionais no mera discusso sobre a oportunidade daexecuo dos dispositivos constitucionais, mas um problema de cumpri-mento da Constituio.31

    Em relao ao cumprimento do texto constitucional, um dosproblemas dessa concepo de Constituio o fato de que, ao receardeixar a Constituio nas mos do legislador, a Teoria da ConstituioDirigente acaba entregando a deciso sobre as questes constitucionais aojudicirio. Como os problemas da Constituio Dirigente so, em grande

    medida, de concretizao constitucional32, o papel dos rgos judiciais decontrole de constitucionalidade torna-se fundamental, contribuindo, aindamais, para a despolitizao da Constituio. Apesar das crticas deCanotilho ao papel dos tribunais constitucionais na concretizao daConstituio Dirigente33, a observao histrica d razo a Bckenfrde,que afirmou que a Constituio Dirigente, ao conter todos os princpios epossibilidades de conformao do ordenamento, favoreceria o crescimentodo papel poltico do tribunal constitucional, que se autoconverteria em

    senhor da Constituio.34

    Para a Teoria da Constituio Dirigente, a Constituio no sgarantia do existente, mas tambm um programa para o futuro. Ao fornecerlinhas de atuao para a poltica, sem substitu-la, destaca a interde-pendncia entre Estado e sociedade: a Constituio Dirigente umaConstituio estatal e social.35 No fundo, a concepo de ConstituioDirigente para Canotilho est ligada defesa da mudana da realidade pelodireito. O sentido, o objetivo da Constituio Dirigente o de dar fora e

    LUANOVA N 61 200412

    31 Id., pp. 177-182, 254-256, 293-297, 305-308 e 316-321. Em sentido contrrio, GustavoZagrebelsky afirma que a Constituio no tem mais centralidade, dctil, ao no estabele-cer diretamente um projeto determinado, mas possibilidades de concretizao. A partir daConstituio, as foras polticas competem para imprimir ao Estado as diversas possibilidadesoferecidas pelo texto constitucional, ou seja, o pluralismo constitucional gera um compro-misso de possibilidades. Vide ZAGREBELSKY, Gustavo, El Derecho Dctil: Ley,

    Derechos, Justicia, 3 ed, Madrid, Trotta, 1999, pp. 12-17.32 CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes, Constituio Dirigente e Vinculao do Legislador

    cit., pp. 59-61, 172-177, 189-193.33 Id., pp. 270-277 e 350-351.34 BCKENFRDE, Ernst-Wolfgang, Grundrechte als Grundsatznormen: Zur gegenwrti-gen Lage der Grundrechtsdogmatik cit., pp. 197-198.35 CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes, Constituio Dirigente e Vinculao do Legisladorcit., pp. 150-153, 166-169, 453-456.

  • 8/11/2019 TEXTO - Constituio e Repblica(UMA RELAO DIFCIL) - Gilberto Bercovici

    9/20

    CONSTITUIO E POLTICA: UMARELAO DIFCIL 13

    substrato jurdico para a mudana social. A Constituio Dirigente umprograma de ao para a alterao da sociedade.36

    Essa viso, talvez, cause a principal falha, ao nosso ver, da Teoriada Constituio Dirigente: ela uma Teoria da Constituio centrada em simesma. ATeoria da Constituio Dirigente uma Teoria auto-suficienteda Constituio. Ou seja, pensa-se numa Teoria da Constituio topoderosa, que a Constituio, por si s, resolve todos os problemas. Oinstrumentalismo constitucional , dessa forma, favorecido: acredita-seque possvel mudar a sociedade, transformar a realidade apenas com osdispositivos constitucionais. Conseqentemente, o Estado e a poltica so

    ignorados, deixados de lado. A Teoria da Constituio Dirigente umaTeoria da Constituio sem Teoria do Estado e sem poltica.37 E justa-mente por meio da poltica e do Estado que a Constituio vai ser con-cretizada. Ser essa maneira totalizante (e, paradoxalmente, excludente) decompreender a Teoria da Constituio, sem poltica e sem Estado, ao ladodo poder crescente dos tribunais constitucionais, que vai favorecer, naexpresso de Boaventura de Sousa Santos 3 8, a manuteno daConstituio sem Estado.

    A POLTICA EXCLUDA DA CONSTITUIO

    A Teoria da Constituio Dirigente, como vimos, consolida opapel da Constituio como centro do direito pblico, minimizando oEstado e a poltica. Ao reduzir a importncia da Teoria do Estado e dapoltica, a Teoria da Constituio Dirigente, aliada ao momento histrico

    36 Id., pp. 455-459.37 Devemos ressaltar, no entanto, que Canotilho define a Constituio como estatuto jurdi-co do poltico e afirma que a Constituio Dirigente pressupe um Estado intervencionistaativo. Vide CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes, Constituio Dirigente e Vinculao do

    Legislador cit., pp. 79 e 390-392. Entretanto, essas consideraes no afetam substancial-mente a contestao levantada da falta de uma Teoria do Estado e da falta de maiores consid-eraes a respeito da poltica na Teoria da Constituio Dirigente. Para uma reviso posteriorde alguns desses posicionamentos, vide CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes, Direito

    Constitucional e Teoria da Constituio , Coimbra, Almedina, 1998, pp. 1197-1198 e 1273 eCANOTILHO, Jos Joaquim Gomes, Prefcio in Constituio Dirigente e Vinculao doLegislador cit., pp. XIII-XVe XXIII-XXVI.38 Vide SANTOS, Boaventura de Sousa, O Estado e a Sociedade na Semiperiferia doSistema Mundial: O Caso Portugus in O Estado e a Sociedade em Portugal (1974-1988),Porto, Edies Afrontamento, 1992, pp. 142-143.

  • 8/11/2019 TEXTO - Constituio e Repblica(UMA RELAO DIFCIL) - Gilberto Bercovici

    10/20

    da globalizao, facilitou, por mais paradoxal que possa ser, a dessubs-tancializao da Constituio.39 Com a globalizao, a reduo dos

    espaos polticos faz com que o nico elemento clarificador do horizontepoltico, segundo Pedro de Vega Garca, seja a Constituio. Torna-secorrente a tentativa de restaurar os fundamentos da legitimidade liberal-democrtica, reforando a normatividade dos direitos, sob a perspectiva dohomem como indivduo e entendendo a Constituio e a democracia comoestruturas processuais, ou seja, busca-se uma legitimidade meramenteprocessual. O problema a ausncia cada vez maior do elementodemocrtico como justificador da legitimidade, reduzido, com o auxlio

    das teorias processuais da Constituio, que levam em conta apenas o seuaspecto normativo, no poltico, a um simples procedimento de escolha degovernantes.40

    Ao contrrio do que possa parecer, essas teorias processuais daConstituio no so novas. Em 1968, por exemplo, ao criticar as teoriasmateriais da Constituio por sobrecarregarem a Constituio e transfor-marem-na em uma espcie de livro dos livros41, Wilhelm Hennis propsque, para evitar a dicotomia entre Constituio e realidade constitucional,

    a Teoria da Constituio deveria levar em conta a particularidade normativada Constituio. Para tanto, seguindo o modelo norte-americano, aConstituio deveria ser entendida como um instrumento de governo, comuma Teoria Processual da Constituio.42 Mais recentemente, no casonorte-americano, John Hart Ely entende que a Constituio no garantedireitos substantivos, mas impede que a maioria no tenha seus direitosameaados, nem ameace os da minoria. Para tanto, a Constituio no

    LUANOVA N 61 200414

    39 O prprio Canotilho reviu suas posies sobre a Constituio Dirigente. Os mais afoitos,inclusive, chegaram a proclam-la como morta. Para Canotilho, a Constituio Dirigenteest morta se o dirigismo constitucional for entendido como capaz de, por si s, revolu-cionariamente, realizar as transformaes sociais. Ela permanece, no entanto, enquanto esta-belecer os fundamentos materiais das polticas pblicas no Estado Constitucional. VideCANOTILHO, Jos Joaquim Gomes, Prefcio cit., pp. XXIX-XXX.4 0 GARCA, Pedro de Vega, El Trnsito del Positivismo Jurdico al PositivismoJurisprudencial en la Doctrina Constitucional cit., pp. 86-87 e GARCA, Eloy, El Estado

    Constitucional ante su Momento Maquiavlico , Madrid, Civitas, 2000, pp. 68-74.41 HENNIS, Wilhelm, Verfassung und Verfassungswirklichkeit: Ein deutsches Problem inFRIEDRICH, Manfred (org.), Verfassung: Beitrge zur Verfassungstheorie, Darmstadt,Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1978, pp. 248-253.42 HENNIS, Wilhelm, Verfassung und Verfassungswirklichkeit: Ein deutsches Problemcit., pp. 265-267.

  • 8/11/2019 TEXTO - Constituio e Repblica(UMA RELAO DIFCIL) - Gilberto Bercovici

    11/20

    CONSTITUIO E POLTICA: UMARELAO DIFCIL 15

    contm uma ideologia de governo, simplesmente garante o processogovernamental.43

    Parte das concepes das teorias processuais da Constituioest ligada idia de legitimao pelo procedimento, elaborada por NiklasLuhmann. A preocupao de Luhmann a de esclarecer os mecanismosque dotam uma deciso de fora vinculativa, possibilitando sua assimi-lao e aceitao por todos os atingidos, estejam eles satisfeitos ou no.44

    Para a legitimao pelo procedimento, pouco importa se a deciso justa,exata ou congruente45, pois, nas sociedades complexas, a natureza dadeciso cede lugar aos procedimentos que generalizam o reconhecimento

    das decises.Os procedimentos, como as eleies, o processo legislativo e o

    processo judicial, so, para Luhmann, a melhor maneira de garantirdecises vinculativas, alm de reduzir as complexidades sociais. Aosubmeterem-se s regras e necessidades do sistema processual, todos osenvolvidos so obrigados a aceitar a deciso final, mesmo contrariados,pois eles prprios participaram do procedimento. A legitimidade pelo pro-cedimento uma legitimidade institucional, no proveniente de derivaes

    valorativas.46

    A representao poltica, por exemplo, passa a ser vista comoum conjunto de aes que confere legitimidade ao poder. A eleio popu-lar cria uma identificao simblica entre representado e representante,gerando um mnimo de consenso47 e tornando esse consenso independenteda situao concreta em que ele obtido. Desta maneira, o representanteexerce um mandato no apenas referente ao que lhe foi conferido, mas tam-bm ao que no lhe foi. O representante foi eleito num procedimentoinstitucionalizado, portanto digno de representar o representado. O poderrepresentativo se legitima no porque expressa um consenso real, masporque permite uma antecipao bem-sucedida do consenso presumido dos

    43 ELY, John Hart,Democracy and Distrust: A Theory of Judicial Review, reimpr., Cambridge(Mass.)/London, Harvard University Press, 1998, pp. 100-101. Nas palavras de Ely: TheAmerican Constitution has thus by and large remained a constitution properly so called, con-cerned with constitutive questions. What has distinguished it, and indeed the United Statesitself, has been a process of government, not a governing ideology in idem, p. 101.44

    LUHMANN, Niklas, Rechtssoziologie, 3 ed, Opladen, Westdeutscher Verlag, 1987, pp.259-261.45 LUHMANN, Niklas,Legitimation durch Verfahren, 4 ed, Frankfurt am Main, Suhrkamp,1997, pp. 29-31 e LUHMANN, Niklas,Rechtssoziologie cit., pp. 265-266.46 LUHMANN, Niklas,Rechtssoziologie cit., pp. 261-265.47 LUHMANN, Niklas,Legitimation durch Verfahren cit., pp. 155-173 e 179-180.

  • 8/11/2019 TEXTO - Constituio e Repblica(UMA RELAO DIFCIL) - Gilberto Bercovici

    12/20

    representados.48 Em suma, para Luhmann, cada sistema se legitima por simesmo, ao fixar os procedimentos decisrios em seu direito positivo. O

    contedo do ordenamento jurdico no relevante para a legitimidade,basta, apenas, a sua validade.49

    As teorias processuais, em sua quase totalidade, consideram aConstituio um simples instrumento de governo, definidor de competn-cias e regulador de procedimentos. Georges Burdeau alega que, apenascom a fixao de procedimentos para as foras polticas, consegue-se evi-tar a relativizao das normas constitucionais. Para ele, a Constituio deveter um carter de fluidez, sob pena de ser dissolvida na realidade.50 A

    Constituio rica em disposies relativas filosofia de um regime , tambm,cheia de elementos diversos e contraditrios. A Constituio no umaordem para o futuro, mas uma ordem de equilbrio, essencialmente esttica.51

    Por esses motivos, estaramos vivendo a decadncia da noo deConstituio, que no controlaria mais a vida poltica. As Constituiescontinuam a ser redigidas, mas como mera survivance.52

    Dessa maneira, para essas teorias, a Constituio deve ser enten-dida apenas como uma norma jurdica superior, abstraindo-se dos proble-

    mas de legitimao e domnio da sociedade. A Constituio como instru-mento formal de garantia no possui qualquer contedo social ou econmi-co, sob a justificativa de perda de juridicidade do texto. As leis constitu-cionais s servem, ento, para garantir o status quo.A Constituio estabe-lece competncias, preocupando-se com o procedimento, no propria-mente com o contedo das decises, com o objetivo de criar uma ordemestvel dentro da complexidade da sociedade contempornea.53

    A materializao do Direito Constitucional, evidenciada com aconcepo dos direitos fundamentais tambm como valores, trouxe, paraEstvez Araujo, a questo da legitimidade do juiz constitucional. Este seria

    LUANOVA N 61 200416

    48 Id., pp. 152-154, 156-162, 164-166 e 169-173.49 BONAVIDES, Paulo, A Despolitizao da Legitimidade,Revista Trimestral de DireitoPblico n 3, So Paulo, Malheiros, 1993, pp. 27-31.50 BURDEAU, Georges, Une Survivance: La Notion de Constitution in Lvolution du

    Droit Public tudes en lHonneur dAchille Mestre, Paris, Sirey, 1956, pp. 60-62.51

    Id., pp. 57-60.52 Id., pp. 54-57.53 GUERRAFilho, Willis Santiago, Teoria Processual da Constituio , So Paulo, InstitutoBrasileiro de Direito Constitucional/Celso Bastos Editor, 2000, pp. 49-52, 67-70 e 93-95.Vide tambm LOEWENSTEIN, Karl, Teora de la Constitucin, 2 ed, Barcelona, Ariel,1976, pp. 211-212.

  • 8/11/2019 TEXTO - Constituio e Repblica(UMA RELAO DIFCIL) - Gilberto Bercovici

    13/20

    CONSTITUIO E POLTICA: UMARELAO DIFCIL 17

    o dficit de legitimidade resultante das concepes materiais daConstituio. A soluo, para esse autor, seria a procedimentalizao da

    Constituio. Ao conceber a Constituio como processo, Estvez Araujoprope que seu contedo seja, essencialmente, prever procedimentos queestabelecem os meios e as garantias para a adoo de decises coletivas.54

    Estvez Arajo, portanto, atribui teoria material da Constituio a respon-sabilidade pelos problemas de legitimao do controle de constitucionali-dade. E, neste sentido, ele tem razo. Afinal, uma teoria procedimental daConstituio no tem qualquer preocupao com a legitimidadedemocrtica do controle de constitucionalidade, satisfazendo-se com o

    mero cumprimento dos procedimentos previstos.No entanto, uma contribuio fundamental das teorias procedi-

    mentais da Constituio a de que a Constituio possui tambm, e noexclusivamente, como querem alguns autores, a natureza de uma leiprocessual para a realizao de seus princpios. O processo, assim, torna-seum instrumento para a efetivao da Constituio. Entender a Constituiotambm enquanto processo significa que a ordem constitucional no umaordem totalmente estabelecida, mas que vai sendo criada, por meio da

    relao entre a Constituio material e os procedimentos de interpretaoe concretizao.55 O interesse pelas teorias procedimentais, todavia, devedespertar cautela. As teorias procedimentais, segundo Robert Alexy, carac-terizam-se pela plasticidade, ou seja, nelas cabe tudo. Embora deva-sereconhecer a importncia do procedimento na concretizao constitu-cional, a adoo de uma teoria procedimental no ser a soluo para todosos problemas constitucionais.56

    As teorias procedimentais da Constituio tambm costumamser apresentadas como estratgia de desjuridificao. A desjuridificao,nos pases centrais, entendida como forma de favorecer o racionalismo eo pluralismo jurdico, ampliando, para seus defensores, o espao da cidada-nia. A Constituio, dessa maneira, no poderia mais pretender regular associedades complexas da atualidade. Deve limitar-se, portanto, a fixar a

    54 ARAUJO, Jos Antonio Estvez,La Constitucin como Proceso y la Desobediencia Civil,

    Madrid, Trotta, 1994, pp. 139-143.55 CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes,Direito Constitucional e Teoria da Constituio cit.,pp. 853-860 e GUERRA Filho, Willis Santiago, Teoria Processual da Constituio cit., pp.15-20 e 27-39.56 ALEXY, Robert, Theorie der Grundrechte, 2 ed, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1994, pp.428-430.

  • 8/11/2019 TEXTO - Constituio e Repblica(UMA RELAO DIFCIL) - Gilberto Bercovici

    14/20

    estrutura bsica do Estado, os procedimentos governamentais e os princ-pios relevantes para a comunidade poltica, como os direitos e liberdades

    fundamentais.57Os adeptos dessas teorias entre ns esquecem-se de que a

    desjuridificao, no Brasil, deve ser entendida de modo distinto do que nospases europeus ou nos Estados Unidos. Como muito bem afirmou MarceloNeves, o nosso problema no de juridificao, mas de desjuridificao darealidade constitucional. Aqui, a desjuridificao, bem como a desconsti-tucionalizao, favorecem a manuteno dos privilgios e desigualdades.A desjuridificao, no Brasil, no ampliaria o espao da cidadania, pois,

    enquanto a Constituio no concretizada, segundo Marcelo Neves, noh nem um espao da cidadania.58

    A questo da normatividade da Constituio tornou-se crucialpara a Teoria da Constituio, no como reao s crticas mais con-servadoras ou ao debate entre teorias materiais e processuais daConstituio, mas tendo em vista o papel cada vez mais destacado dosnovos tribunais constitucionais (especialmente na Itlia e na Alemanha).O resultado foi a revalorizao da normatividade constitucional tambm

    pelas teorias materiais da Constituio.59

    Com a tendncia, cada vezm a i o r, normativizao da Constituio, o papel preponderante queera da poltica (e dos partidos polticos) na Teoria da Constituio, foisendo tomado pelos tribunais constitucionais e pelas discusses sobrecontrole deconstitucionalidade. A hipervalorizao das questeshermenuticas no campo constitucional fortaleceram, ainda mais, anormativizao da Teoria da Constituio. Essa consolidao dostribunais constitucionais na Europa e a tendncia crescente norma-tivizao da Constituio favoreceram, ainda, uma mudana de para-digmas na Teoria da Constituio, que passou a enfatizar muitomais a hermenutica constitucional e o papel dos princpios constitu-

    LUANOVA N 61 200418

    57 Vide, neste sentido, CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes,Direito Constitucional e Teoriada Constituio cit., pp. 1191-1193, 1205, 1272-1273 e 1289-1290.58 NEVES, Marcelo,A Constitucionalizao Simblica, So Paulo, Acadmica, 1994, pp128-129, 144-147 e 160 e NEVES, Marcelo, Entre Subintegrao e Sobreintegrao: A

    Cidadania Inexistente, Dados - Revista de Cincias Sociais vol. 37, n 2, Rio de Janeiro,IUPERJ, 1994, pp. 262-266.59 Vide GARCA, Pedro de Vega, El Trnsito del Positivismo Jurdico al PositivismoJurisprudencial en la Doctrina Constitucional cit., p. 85 e STRECK, Lenio Luiz,JurisdioConstitucional e Hermenutica: Uma Nova Crtica do Direito, Porto Alegre, Livraria doAdvogado, 2002, pp. 31-35, 99-106, 127-128 e 156-162.

  • 8/11/2019 TEXTO - Constituio e Repblica(UMA RELAO DIFCIL) - Gilberto Bercovici

    15/20

    CONSTITUIO E POLTICA: UMARELAO DIFCIL 19

    c i o n a i s .6 0 To d a discusso sobre interpretao e concretizao daConstituio passou a ser, ao mesmo tempo, uma discusso sobre o con-

    ceito e a Teoria da Constituio.61Dentro dessa perspectiva, a Constituio, segundo Garca de

    Enterra, s pode ser entendida como norma. Compreend-la tambmcomo uma estrutura poltica seria anticientfico, pois estaramos confun-dindo direito constitucional e cincia poltica, ou seja, os mtodos jurdicoe sociolgico.62 A partir desta metodologia jurdica circunscrita ao materialnormativo, cria-se um jurista assptico, nas palavras de Rogrio EhrhardtSoares, convicto de que o direito constitucional recebeu todo o poltico e

    que tudo o que necessrio para a compreenso do Estado est nas normasjurdicas. O jurista constitucional, assim, ignora a realidade poltica na qualse manifesta o direito constitucional. As valoraes extrajurdicas(econmicas, sociais, polticas, etc) no so entendidas como problema dodireito constitucional (e da Teoria da Constituio), mas das demais cin-cias sociais.63

    A doutrina constitucional conseguiu criar, de acordo comEloy Garca, todo um aparato tcnico no domnio do estritamente ju-

    rdico, ao custo de renunciar aos componentes polticos. A poltica foireduzida ao poder constituinte e, este, relegado a segundo plano. A j u ri s-dio constitucional foi alada a garantidora da correta aplicao danormatividade, a nica referncia de legitimidade do sistema, refu-giando-se a doutrina na exegese das interpretaes dos tribunais consti-

    60 Vide GRAU, Eros Roberto, Ensaio e Discurso sobre a Interpretao/Aplicao do Direito,

    So Paulo, Malheiros, 2002, pp. 120-121.61 BCKENFRDE, Ernst-Wolfgang, Die Methoden der Verfassungsinterpretation -Bestandsaufnahme und Kritik in Staat, Verfassung, Demokratie cit., p. 82. Vide tambmBCKENFRDE, Ernst-Wolfgang, Grundrechte als Grundsatznormen: Zur gegenwrtigenLage der Grundrechtsdogmatik cit., pp. 195-197.6 2 ENTERRA, Eduardo Garca de, La Constitucin como Norma y el Tr i b u n a lConstitucional, 3 ed, Madrid, Civitas, 1994, pp. 27-32 e 49-50.63 SOARES, Rogrio Guilherme Ehrhardt, Direito Pblico e Sociedade Tcnica, Coimbra,Atlntida Editorial, 1969, pp. 22-25. O mtodo jurdico estrito separa a normatividade jurdi-ca da realidade poltica. A recente disputa entre cientistas polticos e neoconstitucionalistassobre a compreenso da Constituio estril, pois ignora a unidade sistemtica das disci-

    plinas. Essa separao de mtodos apenas torna claro, segundo Lucas Verd, a insuficinciade conhecimento jurdico dos cientistas polticos e de conhecimentos cientfico-polticos dosconstitucionalistas. Vide VERD, Pablo Lucas, El Derecho Constitucional como DerechoAdministrativo (La Ideologa Constitucionaldel Professor Garca de Enterra),Revista de

    Derecho Poltico n 13, Madrid, UNED, maro de 1982, pp. 29-34 e VERD, Pablo Lucas,La Constitucin en la Encrucijada (Palingenesia Iuris Politici) cit., pp. 59-64.

  • 8/11/2019 TEXTO - Constituio e Repblica(UMA RELAO DIFCIL) - Gilberto Bercovici

    16/20

    t uci o nais.64 Os autodenominados neoconstitucionalistas so neoposi-tivistas, renovando o positivismo jurdico ao propor a Constituio

    jurisprudencial, com o tribunal constitucional se assenhoreando daCo n s t i tu i o.6 5

    A supremacia dos tribunais constitucionais sobre os demaispoderes caracteriza-se pelo fato de os tribunais pretenderem ser o cume dasoberania, da qual disporiam pela sua competncia para decidir em ltimainstncia com carter vinculante. Desta forma, o tribunal constitucionaltransforma-se em substituto do poder constituinte soberano.66 Repre-sentativa dessa viso a opinio de Dominique Rousseau, para quem a

    Constituio , cada vez mais, jurisprudencial: um ato escrito pelo juizconstitucional, uma espcie de carta jurisprudencial dos governados.67 OConselho Constitucional francs encarna, na sua concepo, a prpriasoberania popular, estabelecendo as bases sociais e filosficas da comu-nidade nacional.68

    Pertinente, ao nosso ver, a crtica de Ingeborg Maus. De acordocom Maus, o tribunal constitucional se arroga o poder de elaborar a inter-pretao devidamente constitucional, baseando suas decises, no caso

    alemo, em fundamentos constitucionais anteriores prpria Constituio.Ou seja, a competncia do tribunal constitucional no deriva daConstituio, mas est acima dela.69 Atribuindo-se tamanho poder, o tribunalconstitucional atua, nas palavras de Maus, menos como guardio da Cons-

    LUANOVA N 61 200420

    64 GARCA, Eloy, El Estado Constitucional ante su Momento Maquiavlico cit., pp. 60-64.Vide tambm BEAUD, Olivier,La Puissance de lEtat cit. , pp. 11-12.65

    VERD, Pablo Lucas,La Constitucin en la Encrucijada (Palingenesia Iuris Politici) cit.,pp. 65-82 e CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes, Direito Constitucional e Teoria daConstituio cit., p. 1198.66 BCKENFRDE, Ernst-Wolfgang, Grundrechte als Grundsatznormen: Zur gegenwrti-gen Lage der Grundrechtsdogmatik cit., pp. 189-191; BEAUD, Olivier, La Puissance delEtat cit., pp. 307-308 e GARCA, Pedro de Vega, Mondializzazione e DirittoCostituzionale: La Crisi del Principio Democratico nel Costituzionalismo Attuale, DirittoPubblico, 2001 n 3, Padova, CEDAM, 2001, pp. 1068-1069.67 ROUSSEAU, Dominique, Une Rssurrection: La Notion de Constitution,Revue du DroitPublic et de la Science Politique en France et a ltranger, 1990 - n 1, Paris, LGDJ,

    janeiro/fevereiro de 1990, pp. 5-6, 15-18 e 20-22.68

    Id., pp. 8-10. Para uma defesa do papel do Tribunal Constitucional Espanhol em um senti-do prximo, vide ENTERRA, Eduardo Garca de,La Constitucin como Norma y el TribunalConstitucional cit., pp. 175-196.69 MAUS, Ingeborg, Judicirio como Superego da Sociedade: O Papel da AtividadeJurisprudencial na Sociedade rf,Novos Estudos n 58, So Paulo, Cebrap, novembro de2000, pp. 190-192.

  • 8/11/2019 TEXTO - Constituio e Repblica(UMA RELAO DIFCIL) - Gilberto Bercovici

    17/20

    CONSTITUIO E POLTICA: UMARELAO DIFCIL 21

    tituiodo que como garantidor de sua prpria histria jurisprudencial.70

    Ao contrrio do que afirmam os tribunais, o direito constitu-

    cional no monoplio do judicirio. O direito constitucional e a interpre-tao constitucional so fruto de uma ao coordenada entre os poderespolticos e o judicirio. Nenhuma instituio, muito menos o judicirio,pode ter a palavra final nas questes constitucionais.71

    A questo fundamental (e no respondida pelos adeptos dopositivismo jurisprudencial) a da substituio do Poder Legislativo,eleito pelo povo, pelo governo dos juzes constitucionais. Em quem ocidado deve confiar: no representante eleito ou no juz constitucional? Se

    o legislador no pode fugir tentao do arbtrio, por que o juiz poderia?72No entanto, com o positivismo jurisprudencial, o constitucionalismocontinua incapacitado de sair do discurso do dever ser, com a jurisdioconstitucional, segundo Pedro de Vega Garca, assumindo a ambiciosapretenso de reduzir e concentrar nela toda a problemtica da teoria cons-titucional, abandonando questes essenciais, como, por exemplo, a democra-cia ou o poder constituinte.73

    A NECESSIDADE DA POLTICA PARA A CONSTITUIO

    Fechando os olhos para a realidade constitucional, o pensamen-to jurdico dominante absolutizou as solues constitucionais histricas do

    70

    Id., pp. 192-193. No texto: Por conta de seus mtodos especficos de interpretaoconstitucional, atua o TFC menos como guardio da Constituio do que como garantidorda prpria histria jurisprudencial, qual se refere legitimamente de modo auto-referencial.Tal histria fornece-lhe fundamentaes que no necessitam mais ser justificadas, sendosomente descritas retrospectivamente dentro de cada sistema de referncias in idem, p. 192.71 FISHER, Louis, Constitutional Dialogues: Interpretation as Political Process, Princeton,Princeton University Press, 1988, pp. 3-6 e 231-276.72 SOARES, Rogrio Guilherme Ehrhardt,Direito Pblico e Sociedade Tcnica cit., pp. 154-155 e 182-183 e BCKENFRDE, Ernst-Wolfgang, Grundrechte als Grundsatznormen:Zur gegenwrtigen Lage der Grundrechtsdogmatik cit., pp. 191 e 198-199. Sobre as relaescontraditrias entre o controle judicial de constitucionalidade, exercido no Brasil pelo Supremo

    Tribunal Federal, e democracia, vide LIMA, Martonio MontAlverne Barreto, JustiaConstitucional e Democracia: Perspectivas para o Papel do Poder Judicirio,Revista da Procu-radoria-Geral da Repblica n 8, So Paulo, RT, janeiro/junho de 1996, pp. 82-83 e 93-101.7 3 GARCA, Pedro de Vega, El Trnsito del Positivismo Jurdico al PositivismoJurisprudencial en la Doctrina Constitucional cit., pp. 85-86 e GARCA, Eloy, El EstadoConstitucional ante su Momento Maquiavlico cit., pp. 64-66.

  • 8/11/2019 TEXTO - Constituio e Repblica(UMA RELAO DIFCIL) - Gilberto Bercovici

    18/20

    liberalismo como atemporais.74 Para no cair neste equvoco, a Teoria daConstituio deve ser entendida na lgica das situaes concretas histricas

    de cada pas, integrando em um sistema unitrio a realidade histrico-poltica e a realidade jurdica. O direito constitucional recupera, assim,segundo Pedro de Vega Garca, as categorias de espao e tempo e adquiredimenses concretas e histricas. A Constituio no pode ser entendidacomo entidade normativa independente e autnoma, sem histria e tempo-ralidade prprias. No h uma Teoria da Constituio, mas vrias teorias daConstituio, adequadas sua realidade concreta.75 A Constituio nodeve apenas estar adequada ao tempo, mas tambm ao espao. Sem enten-

    der o Estado, no h como entender a Constituio, o que desqualifica aconstante hostilidade da Teoria da Constituio contra o Estado.76

    As Constituies deixaram de ser entendidas como obra do povopara transformarem-se em criaturas de poderes misteriosos, metafsicosat. Sintomtico o fato, denunciado por autores como Olivier Beaud ePedro de Vega Garca, que a teoria do poder constituinte, como mximaexpresso do princpio democrtico e como questo central da teoria consti-tucional, foi relegada ao silncio pela Teoria da Constituio.77 O poder

    constituinte refere-se ao povo real, no ao idealismo jusnaturalista ou norma fundamental pressuposta, pois diz respeito fora e autoridade dopovo para estabelecer a Constituio com pretenso normativa, paramant-la e revog-la. O poder constituinte no se limita a estabelecer aConstituio, mas tem existncia permanente, pois dele deriva a prpriafora normativa da Constituio.78

    Divergimos, portanto, da afirmao de Canotilho de que a criseda Teoria da Constituio fruto da crise do Estado soberano.79 Autorescomo Peter Hberle e Jos Joaquim Gomes Canotilho discordam dessa

    LUANOVA N 61 200422

    74 SOARES, Rogrio Guilherme Ehrhardt, Direito Pblico e Sociedade Tcnica, p. 27.75 GARCA, Pedro de Vega, Mondializzazione e Diritto Costituzionale: La Crisi delPrincipio Democratico nel Costituzionalismo Attuale, pp. 1056-1061 e 1082-1089.76 Id, pp. 1089-1090. Vide tambm SMEND, Rudolf, Verfassung und Verfassungsrecht,p. 121.77 BEAUD, Olivier, La Puissance de lEtat cit., pp. 210-220 e GARCA, Pedro de Vega,

    Mondializzazione e Diritto Costituzionale: La Crisi del Principio Democratico nelCostituzionalismo Attuale cit., pp. 1072-1082 e 1090-1094.78 BCKENFRDE, Ernst-Wolfgang, Demokratie als Verfassungsprinzip in Staat,Verfassung, Demokratie cit., pp. 293-295.79 CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes,Direito Constitucional e Teoria da Constituio cit.,pp. 1200-1203.

  • 8/11/2019 TEXTO - Constituio e Repblica(UMA RELAO DIFCIL) - Gilberto Bercovici

    19/20

    CONSTITUIO E POLTICA: UMARELAO DIFCIL 23

    viso. Ambos concordam que Estado e Constituio formam uma unidadeno Estado Constitucional. Mas as relaes recprocas entre Estado e

    Constituio devem implicar a no primazia do Estado. Para Hberle eCanotilho, o Estado Constitucional existe a partir da Constituio, s existetanto Estado quanto a Constituio constitui. Caso entenda-se que aConstituio fornece uma ordem jurdica ao Estado pr-existente, segundoCanotilho, a Constituio pode ser reduzida a uma forma transitria doEstado, este sim perene.80 Ao contrrio do que alguns juristas defendem,no possvel entender a Constituio sem o Estado. A existncia histri-ca e concreta do Estado soberano pressuposto, condio de existncia

    da Constituio.81Ademocracia tambm no pode ser reduzida a um mero princpio

    constitucional. Como bem afirma Friedrich Mller, o Estado Consti-tucional foi conquistado no combate contra a falta do Estado de Direito eda democracia e esse combate continua, pois a democracia deve sercumprida no cotidiano para a realizao dos direitos fundamentais.82 Ademocracia e a soberania popular pressupem a titularidade do poder doEstado, cuja legitimao e deciso surgem do povo.83 A legitimidade da

    Constituio est vinculada ao povo e o povo uma realidade concreta.Dessa forma, a democracia no pode tambm ser entendida apenas comotcnica de representao e de legislao, como mera tcnica jurdica.84

    O pensamento constitucional precisa ser reorientado para areflexo sobre contedos polticos. Talvez devamos retomar a proposta deLoewenstein, que entendia a Teoria da Constituio como uma explicao

    80

    Vide HBERLE, Peter, Verfassungslehre als Kulturwissenschaft, 2 ed, Berlin, Duncker &Humblot, 1998, pp. 620-621 e CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes, A Teoria daConstituio e as Insinuaes do Hegelianismo Democrtico in RIBEIRO, J. A. Pinto(coord.), O Homem e o Tempo - Liber Amicorum para Miguel Baptista Pereira , Porto,Fundao Engenheiro Antnio de Almeida, 1999, pp. 415-418.81 BEAUD, Olivier,La Puissance de lEtat, pp. 208-210. Vide, tambm, o estudo MAYER-TASCH, Peter Cornelius, Politische Theorie des Verfassungsstaates: Eine Einfhrung,Mnchen, Deutscher Taschenbuch Verlag, 1991, especialmente pp. 19-36 e 213-219.82 MLLER, Friedrich, Wer ist das Volk? Die Grundfrage der Demokratie: Elemente einerVerfassungstheorie VI, Berlin, Duncker & Humblot, 1997, pp. 43-45 e 56.83 Contra a reduo da soberania a mero princpio constitucional, colocado, portanto, dis-

    posio de parlamentares e juzes, vide a argumentao de BEAUD, Olivier,La Puissance delEtat cit., pp. 469-476, 479-482 e 490-491. Vide, ainda, MAYER-TASCH, Peter Cornelius,Politische Theorie des Verfassungsstaates cit., pp. 70-104.84 BCKENFRDE, Ernst-Wolfgang, Demokratie als Verfassungsprinzip cit., pp. 297-301e 311-315 e MLLER, Friedrich, Wer ist das Volk? Die Grundfrage der Demokratie cit.,pp. 59-62.

  • 8/11/2019 TEXTO - Constituio e Repblica(UMA RELAO DIFCIL) - Gilberto Bercovici

    20/20

    realista do papel que a Constituio joga na dinmica poltica.85 Afinal, odireito constitucional direito poltico. A Constituio, no entanto, no

    pode ter a pretenso de resumir ou abarcar em si a totalidade do poltico,como ocorreu com a Teoria da Constituio Dirigente, pois foi nesseuniverso normativo fechado que, de acordo com Eloy Garca, prosperou opositivismo jurisprudencial.86

    No se pode, portanto, entender a Constituio fora da realidadepoltica, com categorias exclusivamente jurdicas. A Constituio no exclusivamente normativa, mas tambm poltica; as questes constitu-cionais so tambm questes polticas. A poltica deve ser levada em

    considerao para a prpria manuteno dos fundamentos constitu-cionais.87 Na feliz expresso de Dieter Grimm, a Constituio resultantee determinante da poltica.88

    GILBERTO BERCOVICI professor associado daFaculdade de Direito da Universidade de So Paulo.

    LUANOVA N 61 200424

    85 LOEWENSTEIN, Karl, Teora de la Constitucincit., pp. 217-222. Vide, tambm, as con-sideraes de REDISH, Martin H., The Constitution as Political Structure, Oxford/New York,Oxford University Press, 1995, pp. 3-21.86 GARCA, Eloy, El Estado Constitucional ante su Momento Maquiavlico cit., pp. 90-91.87

    MLLER, Friedrich,Juristische Methodik, 7 ed, Berlin, Duncker & Humblot, 1997, pp. 89,174 e 209-211 e VERD, Pablo Lucas, El Derecho Constitucional como DerechoAdministrativo (La Ideologa Constitucional del Professor Garca de Enterra) cit., pp. 8,15-18 e 37-40.88 GRIMM, Dieter, Die Gegenwartsprobleme der Verfassungspolitik und der Beitrag derPolitikwissenschaft in Die Zukunft der Verfassung cit., pp. 368-373.