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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA DO ESCONDIDO Santo Agostinho e os limites da estética Ana Rita de Almeida Araújo Francisco Ferreira DOUTORAMENTO EM FILOSOFIA ESTÉTICA E FILOSOFIA DA ARTE 2012

DO ESCONDIDO Santo Agostinho e os limites da estéticasintomática não de uma limitação do pensamento estético de Santo Agostinho, mas de uma visão aprisionada no tempo da estética

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Page 1: DO ESCONDIDO Santo Agostinho e os limites da estéticasintomática não de uma limitação do pensamento estético de Santo Agostinho, mas de uma visão aprisionada no tempo da estética

UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

DO ESCONDIDO

Santo Agostinho e os limites da esteacutetica

Ana Rita de Almeida Arauacutejo Francisco Ferreira

DOUTORAMENTO EM FILOSOFIA

ESTEacuteTICA E FILOSOFIA DA ARTE

2012

UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

DO ESCONDIDO

Santo Agostinho e os limites da esteacutetica

Tese orientada pela Professora Doutora Maria Leonor Lamas Xavier

e pelo Professor Doutor Carlos Joatildeo Correia

Ana Rita de Almeida Arauacutejo Francisco Ferreira

DOUTORAMENTO EM FILOSOFIA

ESTEacuteTICA E FILOSOFIA DA ARTE

2012

Esta tese foi realizada com o apoio da Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e Tecnologia e da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian

Resumo

O tema desta dissertaccedilatildeo eacute a esteacutetica agostiniana e a abordagem que proponho

parte do problema da secundarizaccedilatildeo deste autor na aacuterea da esteacutetica com base nas

criacuteticas agrave ausecircncia de sistema ao caraacutecter esparso das consideraccedilotildees sobre a beleza e ao

natildeo desenvolvimento de uma filosofia da arte Essa marginalizaccedilatildeo a meu ver eacute

sintomaacutetica natildeo de uma limitaccedilatildeo do pensamento esteacutetico de Santo Agostinho mas de

uma visatildeo aprisionada no tempo da esteacutetica ndash enquanto disciplina enquanto ramo

autoacutenomo da filosofia institucionalmente reconhecido Nesta senda procedo a uma

anaacutelise dos eixos teoacutericos que no pensamento agostiniano estruturam a sua

mundividecircncia esteacutetica e que natildeo apenas se enquadram numa perspectiva alargada deste

ramo disciplinar como contribuem para clarificar as suas valecircncias A visatildeo tradicional

do universo da anaacutelise conceptual esteacutetica eacute assim problematizada atraveacutes de uma

revisitaccedilatildeo agrave esteacutetica agostiniana para laacute das consideraccedilotildees acerca da arte e da mera

teofania atraveacutes do belo

Pelo conceito de numerus Santo Agostinho demonstra subscrever uma

concepccedilatildeo racional da apreciaccedilatildeo esteacutetica que todavia natildeo lhe predetermina um caraacutecter

objectivo O seu neoplatonismo cristatildeo permite-lhe perspectivar a relaccedilatildeo sensiacutevel como

uma propedecircutica para o reconhecimento da inteligibilidade divina que ordena o criado

e portanto para o alcance contemplativo do Criador - Beleza tatildeo antiga e tatildeo nova O

aperfeiccediloamento da sensibilidade enquanto modo de relaccedilatildeo e de valoraccedilatildeo eacute

traduziacutevel na justeza do ordo amoris cujo caraacutecter criterioso ancora a liberdade

individual agraves leis da verdade eterna revelando quer um paralelismo entre as esteses e o

conhecimento intelectual quer um enlace entre a esfera da acccedilatildeo humana e os juiacutezos das

percepccedilotildees sensiacuteveis ou por outras palavras entre a eacutetica e a esteacutetica

No seio do pensamento agostiniano a transversalidade da esteacutetica e o tipo de

estamento a que a experiecircncia sensiacutevel deve predispor parecem tornar mais proacuteximo das

actuais correntes esteacuteticas o filoacutesofo africano do que os filoacutesofos iluministas aos quais

devemos o desenvolvimento da aacuterea disciplinar em questatildeo

Palavras-chave

Belo Esteacutetica Filosofia Numerus Santo Agostinho

Reacutesumeacute

Le thegraveme de la preacutesente dissertation est lrsquoestheacutetique augustinienne et lrsquoangle

drsquoapproche que je propose a pour point de deacutepart le problegraveme de la mise au second plan de

cet auteur dans le domaine de lrsquoestheacutetique en prenant appui sur les critiques de lrsquoabsence de

systegraveme et du non deacuteveloppement drsquoune philosophie de lrsquoart Cette marginalisation est

selon moi symptomatique non pas drsquoune limitation de la penseacutee estheacutetique de Saint

Augustin mais drsquoune vision prisonniegravere de lrsquohistoire de lrsquoestheacutetique ndash en tant que

discipline en tant que branche autonome de la philosophie institutionnellement

reconnue En empruntant cette voie je procegravede agrave une analyse des axes theacuteoriques qui

dans la penseacutee augustinienne structurent sa vision estheacutetique du monde et qui nrsquoentrent

pas seulement dans le cadre drsquoune perspective eacutelargie de cette branche disciplinaire

mais qui contribuent eacutegalement agrave clarifier leurs validiteacutes La vision traditionnelle de

lrsquounivers de lrsquoanalyse conceptuelle estheacutetique est ainsi probleacutematiseacutee en revisitant

lrsquoestheacutetique augustinienne par-delagrave les consideacuterations autour de lrsquoart et drsquoune simple

theacuteophanie agrave travers le beau

Par le concept de numerus Saint Augustin reacutevegravele son adheacutesion agrave une conception

rationnelle de lrsquoappreacuteciation estheacutetique qui ne lui confegravere pas toutefois un caractegravere

objectif Son neacuteoplatonisme chreacutetien lui permet drsquoenvisager la relation sensible comme

propeacutedeutique pour la reconnaissance de lrsquointelligibiliteacute divine qui ordonne le creacuteeacute et par

conseacutequent pour aboutir agrave la contemplation du Creacuteateur ndash Beauteacute si ancienne et si nouvelle

Le perfectionnement de la sensibiliteacute en tant que mode de relation et de valorisation se

traduit par la justesse de lrsquoordo amoris dont le caractegravere pertinent ancre la liberteacute

individuelle dans les lois de la veacuteriteacute inteacuterieure reacuteveacutelant tantocirct un paralleacutelisme entre les

estheacutetismes et le savoir intellectuel tantocirct un lien entre la sphegravere de lrsquoaction humaine et les

jugements des perceptions sensibles ou en drsquoautres mots entre lrsquoeacutethique et lrsquoestheacutetique

Au sein de la penseacutee augustinienne la transversaliteacute de lrsquoestheacutetique et le mode

existentiel auquel lrsquoexpeacuterience sensible doit preacutedisposer semblent rapprocher davantage

des actuels courants estheacutetiques le philosophe africain que les philosophes des Lumiegraveres

auxquels nous devons le deacuteveloppement du champ disciplinaire dont il est ici question

Mots-cleacutes

Beau Estheacutetique Philosophie Numerus Saint Augustin

IacuteNDICE GERAL

Agradecimentos 15

Abreviaturas 19

Introduccedilatildeo 23

Parte I

A esteacutetica de Santo Agostinho

1 Os corpos e os sentidos

11 ndash Materia moles e forma species 37

12 ndash Os fundamentos antropoloacutegicos da esteacutetica agostiniana 51

13 ndash A alma e os sentidos corpoacutereos 62

14 ndash O sentido interior e a memoacuteria 77

2 O potencial cognoscitivo da experiecircncia esteacutetica

21 ndash Os fundamentos gnosioloacutegicos da atitude esteacutetica 97

211 ndash O papel da razatildeo na percepccedilatildeo sensiacutevel 97

212 ndash A propedecircutica do olhar e a aprendizagem da razatildeo com vista agrave beata vita 113

22 ndash Uma esteacutetica expressa em termos matemaacuteticos 126

2 2 1 ndash Numerus pondus e mensura 126

2 2 2 ndash Unidade multiplicidade e ordem 145

3 Gradaccedilotildees de ser de beleza e dos efeitos da percepccedilatildeo do belo

31 ndash Do pulchrum aptum ao par conceptual uti frui 157

32 ndash Na raia do erotismo ndash da philocalia agrave philosophia 169

33 ndash Atitude esteacutetica como processo relacional introspectivo e intencional 180

4 A relaccedilatildeo entre beleza e verdade

41 ndash Acccedilatildeo perceptiva e juiacutezo racional 193

42 ndash A verdade como criteacuterio do juiacutezo esteacutetico 204

43 ndash Imagem signo e alegoria 215

Parte II

O lugar da esteacutetica agostiniana na esteacutetica contemporacircnea

1 Teraacute Santo Agostinho uma filosofia da arte

11 ndash As trecircs acepccedilotildees da palavra ldquoarterdquo artes ars e ars 235

12 ndash Santo Agostinho e as artes como hoje as entendemos 247

2 Um sistema esteacutetico agostiniano

21 ndash Por que razatildeo se deve falar sem medo numa esteacutetica agostiniana 263

22 ndash Sistematicidade e esteacutetica agostiniana 273

3 De que modo Santo Agostinho nos leva a repensar a esteacutetica

31 ndash O que foi e o que eacute a esteacutetica 285

32 ndash Repensando a esteacutetica a partir de Santo Agostinho 303

321 ndash O potencial cognoscitivo da experiecircncia esteacutetica 309

322 ndash Emoccedilotildees esteacuteticas 314

323 ndash A questatildeo do valor e a afinidade entre os domiacutenios esteacutetico e eacutetico 320

Conclusatildeo 325

Bibliografia

I Obras de Santo Agostinho 339

II Textos antigos referidos 343

III Bibliografia especiacutefica 345

IV Outros estudos sobre Santo Agostinho 353

V Bibliografia geral 361

Iacutendices

Iacutendice onomaacutestico 371

Iacutendice temaacutetico 375

Iacutendice de obras de Santo Agostinho 381

15

AGRADECIMENTOS

A originalidade pressuposta numa tese de doutoramento natildeo significa que seja

fruto de um trabalho autoacutenomo e isolado do seu autor A aparente auto-suficiecircncia por

detraacutes do meu projecto de investigaccedilatildeo doutoral nutriu-se do acompanhamento que

ambos os meus orientadores foram dedicando ao que escrevi das conversas informais

que mantive com outros Professores das opiniotildees e incentivos dos colegas e da

compreensatildeo e suporte que a estrutura familiar sempre me proporcionou Seria

indelicado e mesmo injusto natildeo agradecer a todas as pessoas que fizeram parte desta

fase do meu percurso acadeacutemico e que a seu modo contribuiacuteram para os conteuacutedos da

minha tese A responsabilidade pelas incorrecccedilotildees e incompletude cabe-me

exclusivamente mas o meacuterito por aquilo que de novo e de interessante esta tese trouxer

ultrapassa-me havendo que reconhecer o papel de cada amigo ou mentor

Desde logo tenho de expressar a mais profunda gratidatildeo agrave Professora Doutora

Maria Leonor Xavier que meticulosamente seguiu o desenvolvimento de cada

subcapiacutetulo da dissertaccedilatildeo sugerindo novas abordagens apontando incongruecircncias ou

imprecisotildees norteando leituras e sempre evidenciando um justo equiliacutebrio entre as

palavras de estiacutemulo e as de criacutetica A preocupaccedilatildeo que teve em integrar a minha

contribuiccedilatildeo acadeacutemica para laacute do acircmbito da tese foi de grande importacircncia e permitiu-

-me crescer como investigadora Eacute sobretudo o seu exemplo de seriedade competecircncia

e dedicaccedilatildeo profissional que reterei como meta a atingir

Ao Professor Doutor Carlos Joatildeo Correia agradeccedilo a preocupaccedilatildeo e o interesse

com que sempre segue o percurso dos seus orientandos A constante disponibilidade e

generosidade demonstradas ao longo destes anos de trabalho ultrapassaram o tradicional

acompanhamento de um orientador permitindo-me beneficiar de uma rara combinaccedilatildeo

entre a exigecircncia em termos cientiacuteficos e a rectitude em termos humanos O bom-

-humor a paciecircncia e a confianccedila com que foi respondendo agraves minhas solicitaccedilotildees

tornaram bastante mais faacutecil o meu percurso

Natildeo posso deixar de referir o quanto beneficiei da erudiccedilatildeo do Professor Doutor

Costa Macedo da visatildeo alargada da esteacutetica que as aulas da Professora Doutora Adriana

Veriacutessimo Serratildeo me proporcionaram e da elegacircncia filosoacutefica com que a Professora

Doutora Maria Luiacutesa Ribeiro Ferreira sempre estrutura as suas apresentaccedilotildees Ao

16

Professor Doutor Leonel Ribeiro dos Santos agrave Filipa Seabra agrave Carla Simotildees e agrave D

Filomena da Piedade agradeccedilo o caloroso acolhimento com que brindam todos os

alunos e investigadores de Filosofia atendendo agraves nossas necessidades e facilitando ao

maacuteximo o nosso trabalho pela agilizaccedilatildeo de processos paralelos que sempre influem na

pesquisa pela logiacutestica e pela disponibilizaccedilatildeo de materiais e espaccedilos que criam o

ambiente propiacutecio agrave investigaccedilatildeo

O aspecto mais positivo destes anos que dediquei ao projecto de doutoramento

foi a amizade que estabeleci com vaacuterios dos meus colegas investigadores Pude sempre

partilhar com eles as minhas duacutevidas beneficiei sempre do seu interesse pelo meu

trabalho pude contar com as suas palavras de incentivo com a sugestatildeo de livros e

artigos com a disponibilidade para resolverem os meus problemas burocraacuteticos na

secretaria da FLUL e pude contar com a companhia deles em momentos de lazer que soacute

vieram beneficiar a escrita da tese Assim natildeo posso deixar de agradecer agrave Teresa

Quirino ao Tiago Mesquita Carvalho agrave Ana Nolasco agrave Ana Cravo agrave Filipa Afonso agrave

Inecircs Bolinhas ao Francisco Ribeiro Soares e agrave sua esposa Isabel

Para aleacutem destes amigos feitos no acircmbito do doutoramento outros houve de

longa data que tambeacutem contribuiacuteram directamente para que pudesse levar a bom porto

o meu projecto de investigaccedilatildeo Qualquer agradecimento seraacute sempre insuficiente face

ao apoio e agrave boa vontade da Ilda e da Ana Salomeacute que tantas vezes me acolheram nas

deslocaccedilotildees a Lisboa ou agraves atenccedilotildees da Cristina de Melo sempre a par das novidades

editoriais acerca de Santo Agostinho e cujo entusiasmo e confianccedila face ao meu

trabalho frequentemente suplantavam o meu proacuteprio empenho Agrave Sandra Lourenccedilo o

meu bem-haja pela constacircncia da sua amizade e pelos afagos ao ego que tantas vezes

me proporcionou

O facto de deixar a famiacutelia para o fim em nada reflecte um decreacutescimo na ordem

de importacircncia que atribuo ao seu papel no meu percurso Aos meus pais e irmatildeo

agradeccedilo a forccedila o carinho e a estabilidade necessaacuterios para suplantar os momentos de

dificuldade que surgiram durante a redacccedilatildeo da tese Agrave minha cadela Fideacutelia agradeccedilo a

companhia que fez durante as muitas horas que passou debaixo da minha secretaacuteria e os

passeios que me obrigou a dar juntamente com o Castanho e com o Rufias propiciando

um saudaacutevel distanciamento do computador Por uacuteltimo agradeccedilo ao meu companheiro

Paulo pela compreensatildeo e paciecircncia que sempre demonstrou todas as vezes que roubei

o tempo que lhe deveria ser dedicado a favor desta dissertaccedilatildeo

19

ABREVIATURAS

Conf Confessionum

Contra Acad Contra Academicos

Contra ep fund Contra epistulam Manichaei quam vocant fundamenti

Contra Faust Contra Faustum

Contra Jul Contra Julianum

Contra Jul op imp Contra Julianum opus imperfectum

De an et orig De anima et ejus origine

De bono con De bono conjugali

De civ Dei De civitate Dei

De corr grat De correptione et gratia

De div quaest 83 De diversis quaestionibus octoginta tribus

De doct christ De doctrina christiana

De fide et op De fide et operibus

De grat et lib arb De gratia et libero arbitrio

De Gen ad litt De Genesi ad litteram

De Gen ad litt imp De Genesi ad litteram imperfectus liber

De Gen cont Man De Genesi contra Manichaeos

De Imm An De immortalitate animae

De lib arb De libero arbitrio

De Mag De Magistro

De mus De musica

De nat boni De natura boni

De quant an De quantitate animae

De ord De ordine

De Trin De Trinitate

20

De vera relig De vera religione

En Psa Enarrationes in Psalmos

Ep Epistulae

In Iohan ep Parthos In Iohannis epistulam ad Parthos tractatus

In Iohan Evang tract In Iohannis evangelium tractatus

Quaest Hept Quaestionum in Heptateuchum

Retr Retractationum

Sol Soliloquiorum

Plotino

En Eneacuteadas

Outra

REAug Revue d Etudes Augustiniennes et Patristiques

INTRODUCcedilAtildeO

25

A abordagem agrave esteacutetica agostiniana implica ao niacutevel dos conceitos um triplo

transporte em primeiro lugar entre liacutenguas jaacute que os textos a analisar estatildeo em Latim

em segundo lugar entre tempos visto terem sido escritos haacute dezassete seacuteculos e por

fim entre ramos filosoacuteficos uma vez que no tempo de Santo Agostinho a esteacutetica natildeo

constituiacutea ainda um ramo autoacutenomo da filosofia e aquilo que podemos considerar como

sendo o seu pensamento esteacutetico encontra-se disseminado entre as outras problemaacuteticas

filosoacuteficas que desenvolve Este triplo transporte torna necessaacuteria uma perspectivaccedilatildeo

filoloacutegica preacutevia sobre a relaccedilatildeo da linguagem com o tempo e com os contextos de

forma a justificar a pertinecircncia da leitura contemporacircnea sobre a esteacutetica agostiniana

que propomos

Para aleacutem de ser uma disciplina a esteacutetica eacute tambeacutem um conceito e um conceito

eacute em primeiro lugar um nome que usamos para designar os fenoacutemenos e os objectos

que integram as nossas vivecircncias Um conceito eacute pois uma delimitaccedilatildeo uma fronteira

que estabelecemos face a um determinado nuacutecleo de representaccedilotildees mentais Eacute

importante salientar que essa delimitaccedilatildeo eacute sinuosa natildeo eacute estaacutevel nem definitiva

Inevitavelmente as fronteiras entre conceitos interpenetram-se partilhando espaccedilos

proxeacutemicos alargados ndash por vezes natildeo sabemos mesmo onde situar essas fronteiras

reconhecendo apenas a dinacircmica que estabelecem com outros conceitos circunjacentes

Este eacute o caso da esteacutetica Soacute no seacuteculo XVIII com Baumgarten se deu nome ao nuacutecleo

constituiacutedo pelas consideraccedilotildees acerca do sentimento do belo e ao qual foi feito um

casamento imediato com outro nuacutecleo ndash o da arte Esse casamento ainda que tenha

ampliado de forma bastante legiacutetima o territoacuterio da esteacutetica tem constituiacutedo a nosso

ver uma prisatildeo para a disciplina tamanha tem sido a confusatildeo entre a abrangecircncia dos

limites da esteacutetica e os da filosofia da arte

Na verdade a histoacuteria da esteacutetica tem sido dominada pela questatildeo das fronteiras

que delimitam o seu campo de estudo Sendo uma disciplina recente e em maturaccedilatildeo

muitos dos universos que no passado natildeo eram abarcados pelo domiacutenio da esteacutetica

vecircem-se hoje no seu fulcro No futuro essa abrangecircncia seraacute ainda maior Associar o

26

reformular das fronteiras da esteacutetica ao constante reformular das fronteiras da arte eacute uma

visatildeo simplista e redutora do fenoacutemeno A esteacutetica tem vindo a ganhar terrenos que

fazem parte da eacutetica da ontologia da epistemologia ndash com a diferenccedila relativamente a

estes ramos filosoacuteficos de natildeo ter ainda o seu objecto claramente definido Mas natildeo eacute

por se desconhecer a linha de demarcaccedilatildeo do campo e do objecto de estudo da esteacutetica

que se torna impossiacutevel reflectir sobre os fenoacutemenos esteacuteticos e sobre as possibilidades

e limites de um discurso que os descreva (e que tambeacutem a constitui como disciplina)

Para abordar a esteacutetica agostiniana natildeo nos podemos reportar a um quadro

conceptual esteacutetico do seacuteculo IV porque tal quadro eacute inexistente ndash haacute portanto que

delimitar dentro das temaacuteticas de base do pensamento agostiniano os nuacutecleos de

abordagem que poderatildeo encontrar lugar num quadro conceptual esteacutetico

contemporacircneo Nas diferentes obras de Santo Agostinho eacute possiacutevel encontrar

passagens esparsas sobre a relaccedilatildeo entre a philosophia e a philocalia passagens sobre as

faculdades sensitivas sobre os criteacuterios daquilo que por outras palavras eacute o juiacutezo

esteacutetico sobre a sua intencionalidade sobre o valor cognoscitivo do belo e mesmo sobre

as implicaccedilotildees eacuteticas da fruiccedilatildeo Nos escritos agostinianos eacute tambeacutem possiacutevel encontrar

pistas quanto agrave subjectividade da experiecircncia esteacutetica e sobre o seu caraacutecter relacional

Claro que a transposiccedilatildeo dos conceitos agostinianos para um quadro conceptual esteacutetico

contemporacircneo natildeo pode ser feita arbitrariamente Tal questatildeo impotildee voltar aos

transportes referidos no iniacutecio deste texto ndash impotildee portanto a questatildeo da traduccedilatildeo

enquanto exerciacutecio de deslocaccedilatildeo do pensamento

Para a filosofia a questatildeo da traduccedilatildeo natildeo poder ser um assunto perifeacuterico e haacute

que assumir a necessidade de problematizar as tradiccedilotildees de recepccedilatildeo de textos antigos

O caso agostiniano eacute flagrante Actualmente face agrave maioria das traduccedilotildees e dos estudos

que dispomos sobre os textos de Santo Agostinho tendemos a consideraacute-los

conservadores quando na verdade no seu contexto de origem tais escritos eram quase

subversivos A sobriedade da linguagem que hoje parece revestir as suas obras

corresponde pouco ao tom crepuscular e violento do latim agostiniano ndash um latim que jaacute

natildeo obedece aos cacircnones gramaticais dos claacutessicos pelos quais Santo Agostinho foi

influenciado (Ciacutecero Virgiacutelio) e que tornava os seus escritos semanticamente

inovadores e estilisticamente muito complexos O idiolecto agostiniano eacute iroacutenico

angustiado por vezes sensual e por vezes ofensivo Os muitos seacuteculos de recepccedilatildeo dos

seus textos foram polindo tais asperezas e o seu caraacutecter audacioso perdeu-se O que

estaacute em causa natildeo eacute apenas o estilo literaacuterio pois do mesmo modo que natildeo existem

27

conteuacutedos transmissiacuteveis sem expressatildeo que os veicule tambeacutem natildeo existe expressatildeo

que natildeo veicule conteuacutedos Havendo perda de expressatildeo haacute perda de conteuacutedos

Os conceitos abordados nos textos antigos chegam aos nossos dias com perdas

nem sempre oacutebvias relativamente ao contexto de origem Os conceitos evoluem por

heterogenia e o seu percurso histoacuterico vai implicando diferentes circunscriccedilotildees e

intersecccedilotildees de valor significaccedilatildeo e intenccedilatildeo O ideal seria que os conceitos dos textos

antigos chegassem ateacute noacutes acompanhados pela respectiva estrutura diacroacutenica ndash

acompanhados por todas as especificidades do percurso histoacuterico do seu emprego As

alteraccedilotildees que os conceitos vatildeo sofrendo coincidem muitas vezes com as mudanccedilas de

episteme As associaccedilotildees conceptuais numa cultura ou numa liacutengua rumam em

diferentes direcccedilotildees noutra A grande questatildeo eacute que a recepccedilatildeo dos textos antigos eacute

sempre indirecta requerendo a mediaccedilatildeo de um lance hermenecircutico O que recebemos

tem que fazer sentido no nosso contexto de recepccedilatildeo sem perder o sentido intencionado

pelo contexto de origem

O proacuteprio Santo Agostinho deixou algumas coordenadas em relaccedilatildeo a estas

questotildees pois pela exegese tambeacutem ele se confrontou com a necessidade de interpretar

textos que natildeo lhe eram coevos e que natildeo podiam ou natildeo deviam ser interpretados

literalmente Em De Doctrina Christiana tal como jaacute havia enunciado em De Magistro

afirma que a linguagem eacute um sistema de sinais Muitos dos sinais presentes nos textos

tecircm sentidos ambiacuteguos ou desconhecidos (ignotis aut ambiguis signis)1 porque satildeo

metafoacutericos (signa translata)2 mas todos satildeo significantes Ao abordar a interpretaccedilatildeo

dos sinais metafoacutericos Santo Agostinho natildeo soacute admite a possibilidade de significados

muacuteltiplos como sugere que pode ser impossiacutevel determinar a intenccedilatildeo original que os

determinou e admite a possibilidade de futuras exegeses poderem extrair significados

legiacutetimos para aleacutem das intenccedilotildees originais No De doctrina christiana Santo

Agostinho reconhece ainda o caraacutecter convencional das palavras e antecipa as

comunidades sociolinguiacutesticas ao referir que a diferenciaccedilatildeo das diversas liacutenguas

humanas resulta de diferentes convenccedilotildees (instituta hominum)3

1 De doct christ II 10 15

2 Ibid

3 De doct christ II 24 37 - II 25 40

28

A abordagem agrave esteacutetica agostiniana que se propotildee nesta dissertaccedilatildeo parte de um

problema a secundarizaccedilatildeo deste autor na aacuterea da esteacutetica com base em trecircs criacuteticas

principais a) a ausecircncia de sistema b) o natildeo confinamento das suas consideraccedilotildees

esteacuteticas e c) a ausecircncia de uma filosofia da arte Essa marginalizaccedilatildeo a nosso ver eacute

sintomaacutetica natildeo de uma limitaccedilatildeo do pensamento esteacutetico de Santo Agostinho mas de

uma visatildeo aprisionada no tempo da esteacutetica ndash enquanto disciplina enquanto ramo

autoacutenomo da filosofia institucionalmente reconhecido Assim esta proposta tem um

caraacutecter biacutefido por um lado intenta a reabilitaccedilatildeo de um pensamento esteacutetico medieval

e por outro lado problematiza o universo contemporacircneo da anaacutelise conceptual

esteacutetica

A reabilitaccedilatildeo da esteacutetica agostiniana natildeo passa pela tentativa de lhe reconstituir

o tal sistema esteacutetico pelo menos natildeo na acepccedilatildeo tradicional dos termos mas passa sim

por reequacionar as valecircncias do campo de estudos delimitado pela esteacutetica e pela

demonstraccedilatildeo atraveacutes de uma leitura contemporacircnea do pensamento esteacutetico

agostiniano de que a marginalidade imputada natildeo corresponde agrave adequaccedilatildeo das

especificidades de tal pensamento agrave disciplina em questatildeo

O estudo da esteacutetica medieval eacute sobretudo dominado pela figura de S Tomaacutes de

Aquino muito graccedilas ao contributo de Umberto Eco que na deacutecada de 50 do seacuteculo

passado lhe consagrou a sua tese de doutoramento4 Nessa obra seminal Eco afirmava

ser seu intento explorar cada conceito agrave luz das respectivas circunstacircncias histoacutericas

situando os textos no seu tempo original pois soacute assim poderia aceder agrave sua ldquoverdaderdquo

A nossa preocupaccedilatildeo em reconhecer um nuacutecleo teoacuterico perfeitamente delimitaacutevel

apesar do seu caraacutecter esparso no seio da obra agostiniana eacute em tudo paralela ao

propoacutesito de Eco relativamente a S Tomaacutes poreacutem em termos metodoloacutegicos natildeo

poderiacuteamos ser mais discordantes Obviamente natildeo descartamos o enquadramento

histoacuterico dos conceitos ou daquilo que eacute encerrado pelos conceitos mesmo antes destes

serem formados ndash coisa aliaacutes frequente quando se lida com a esteacutetica ndash mas assumimos

especificamente o Presente como contexto de ancoragem desse trabalho de

interpretaccedilatildeo

4 Umberto Eco Il Problema Esteacutetico in Tommaso drsquoAquino 2ordf ed Milano Bompiani 1998

29

Hannah Arendt entende por ldquointerpretarrdquo o acto de tornar expliacutecito aquilo que

Santo Agostinho apenas diz implicitamente5 Eacute precisamente assim que nos lanccedilamos

sem medo numa estruturaccedilatildeo de nuacutecleos de anaacutelise que congregam vaacuterias temaacuteticas

desenvolvidas por Santo Agostinho a propoacutesito de questotildees que ndash mesmo estando no

contexto original directamente associadas a outros modos de abordagem filosoacutefica ndash

definem pela forma como se articulam um acircmbito de indubitaacutevel pertinecircncia esteacutetica Eacute

a acepccedilatildeo contemporacircnea e alargada da esteacutetica que temos em mente nessa anaacutelise e

estruturaccedilatildeo do pensamento agostiniano O respeito pelo contexto de origem ao qual

natildeo deixaacutemos de atender salvaguarda-nos das sobre-interpretaccedilotildees mas poderaacute tambeacutem

frustrar as expectativas de uma leitura radicalmente inovadora acerca da esteacutetica

agostiniana Para um investigador familiarizado com o pensamento do filoacutesofo africano

natildeo haveraacute agrave primeira vista uma originalidade tatildeo evidente nos conteuacutedos ainda que a

nossa anaacutelise siga trilhos menos convencionais e decirc relevacircncia inusual a toacutepicos que

qualquer outro enquadramento filosoacutefico relegaria para segundo plano ou a um total

esquecimento Eacute sobretudo no modo como eacute feita a articulaccedilatildeo desses toacutepicos que reside

a originalidade do nosso contributo

Ao propormos os diversos nuacutecleos de abordagem que constituem a primeira

parte desta tese tiacutenhamos jaacute presentes as bases nas quais assenta a nossa perspectiva

esteacutetica e que apontam para um alargamento do acircmbito tradicionalmente associado a

este ramo disciplinar filosoacutefico A intuiccedilatildeo de que o pensamento esteacutetico agostiniano

mereceria um maior reconhecimento e uma anaacutelise mais alargada do que aquela que lhe

tem sido consagrada pelos poucos investigadores que se dedicam a este acircmbito do seu

pensamento conduziu por um lado agrave percepccedilatildeo das possibilidades dessa ampliaccedilatildeo das

valecircncias do ramo disciplinar esteacutetico por outro lado a proacutepria antevisatildeo de uma nova

abrangecircncia relativamente agrave esteacutetica fautorizou o modo como reunimos e interpretaacutemos

as consideraccedilotildees agostinianas acerca dos assuntos que consideramos poderem filiar-se

no acircmbito esteacutetico

A interdependecircncia da perspectiva acerca do alargamento da esteacutetica enquanto

aacuterea disciplinar e da perspectiva acerca da esteacutetica de Santo Agostinho fez com que

hesitaacutessemos entre iniciar esta tese com a problematizaccedilatildeo relativa ao universo

contemporacircneo da anaacutelise conceptual esteacutetica e entre iniciaacute-la directamente com a

abordagem daquilo que entendemos ser o pensamento esteacutetico agostiniano A escolha

5 Hannah Arendt O conceito de amor em Santo Agostinho Alberto Pereira Dinis (trad) Lisboa Instituto

Piaget 1997 p 9

30

recaiu sobre esta segunda opccedilatildeo natildeo apenas porque consideramos ser aiacute que reside o

verdadeiro fulcro deste projecto doutoral mas tambeacutem por entendermos que a trama de

questotildees e temaacuteticas implicadas no universo da esteacutetica de Santo Agostinho poderia

propiciar novas pistas para o sobrepujar da acepccedilatildeo tradicionalmente atribuiacuteda agrave

esteacutetica De uma anaacutelise mais convencional em torno da beleza e da sensibilidade vimos

derivar uma constelaccedilatildeo de outros assuntos directamente implicados em tal nuacutecleo de

abordagem cuja relevacircncia destoava da mera subsunccedilatildeo agrave teoria do belo indiciando

antes um estatuto paralelo ao papel da beleza mas ainda pertinente no acircmbito esteacutetico

A complexidade e riqueza da esteacutetica agostiniana aponta direcccedilotildees e contribui para

justificar a actual tendecircncia de alargamento da esfera contemporacircnea da esteacutetica

Assim a primeira parte deste estudo concerne integralmente agrave estruturaccedilatildeo das

principais linhas do pensamento esteacutetico de Santo Agostinho No primeiro capiacutetulo satildeo

abordadas as temaacuteticas da criaccedilatildeo e da relaccedilatildeo sensiacutevel face ao criado A teoria do belo

marca aqui presenccedila incontornaacutevel natildeo apenas no que toca agrave sua formulaccedilatildeo como

transcendental mas igualmente no que respeita agraves implicaccedilotildees de um formalismo de

origem estoacuteica que aparentemente contrasta com a matriz neoplatoacutenica subjacente agrave

reflexatildeo agostiniana Partindo da anaacutelise de conceitos centrais como forma e species a

teoria do belo acaba por se ver enleada a temaacuteticas como o nihil ou como o mal das

quais ressalta a distacircncia entre Criador e criatura A esteacutetica agostiniana parece ir no

sentido de contrariar tal distacircncia revelando pontos de contacto entre finitude e infinitude

A relaccedilatildeo corpo alma e a forma como se processa a percepccedilatildeo sensiacutevel satildeo

desenvolvidas neste primeiro capiacutetulo jaacute que se constituem como alicerces de qualquer

experiecircncia esteacutetica O papel do sentido interior e da memoacuteria estabelecem a

transiccedilatildeo entre tal dimensatildeo e a esfera racional que contrariamente agravequilo que

comummente se assume natildeo constitui um poacutelo oposto da sensibilidade mas uma

condiccedilatildeo sine qua non da experiecircncia esteacutetica Tal complementaridade pode ser

compreendida na esteacutetica agostiniana atraveacutes de dicotomias como a de homem

exterior homem interior ou ratio superior ratio inferior bem como atraveacutes da

articulaccedilatildeo entre os diferentes tipos de visatildeo (corporal espiritual e intelectual) ou

entre os diversos tipos de luz (luz fiacutesica luz da alma e luz da inteligecircncia) que se

constituem como condiccedilatildeo da visualidade e que introduzem a teoria agostiniana da

iluminaccedilatildeo divina O segundo capiacutetulo desenvolve portanto tais temaacuteticas

explorando tambeacutem a relevacircncia do conceito de numerus para a esteacutetica de Santo

Agostinho e as triacuteades que permitem relacionar as caracteriacutesticas das criaturas com

31

as perfeiccedilotildees do Criador As relaccedilotildees entre as pessoas divinas na essecircncia una de

Deus abrem caminho agraves dinacircmicas que a multiplicidade pode configurar

determinando qualidades esteacuteticas exprimidas em conceitos como modulatio

proportio coaptatio congruentia convenientia consonantia rythmus integritas

aequalitas e ordo

O terceiro capiacutetulo clarifica os dois pontos de vista agostinianos a partir dos

quais as categorias esteacuteticas podem ser consideradas a) um ponto de vista autoacutenomo

que concerne agrave conveniecircncia do todo graccedilas agrave adaptaccedilatildeo das partes (e que eacute do domiacutenio

do pulchrum) e b) um ponto de vista relativo ndash o da conveniecircncia das partes em relaccedilatildeo

ao todo (do domiacutenio do aptum) O pulchrum e o aptum natildeo satildeo redundantes eles

marcam uma gradaccedilatildeo na suposiccedilatildeo das categorias esteacuteticas que se reflecte na

qualificaccedilatildeo do real e que torna indissociaacutevel o acircmbito esteacutetico do acircmbito eacutetico Assim

vaacuterias hierarquias se delineiam na filosofia agostiniana ndash de ser de beleza de elevaccedilatildeo

da alma de actividades humanas ndash hierarquias estas cuja descriccedilatildeo converge para a

ideia da indissociabilidade entre o belo e o bem

A legitimidade dos liames afectivos que o homem estabelece com aquilo que o

rodeia eacute problematizada agrave luz do ordo amoris tambeacutem ele uma estrutura de natureza

gradativa agrave qual natildeo eacute alheia a questatildeo uti frui A relaccedilatildeo entre a beleza e o amor eacute

equacionada por Santo Agostinho segundo o prisma do conhecimento levando-o a

constatar a equivalecircncia entre philosophia e philocalia O questionamento da beleza

conduz agrave percepccedilatildeo da inteligibilidade e em uacuteltima instacircncia ao reconhecimento de

Deus pela via da interioridade na qual a feacute no Mediador se assume como caracteriacutestica

central e distintiva do neoplatonismo agostiniano

No quarto capiacutetulo a inseparabilidade da esteacutetica em relaccedilatildeo agrave eacutetica na

perspectiva do Bispo de Hipona eacute reiterada atraveacutes da anaacutelise do processo de judicaccedilatildeo

O juiacutezo esteacutetico eacute com efeito uma avaliaccedilatildeo acerca da adequaccedilatildeo de uma resposta

natural da sensibilidade em relaccedilatildeo ao contexto e agrave sua determinaccedilatildeo final A utilizaccedilatildeo

do conceito ldquodesinteresserdquo no sentido kantiano parece natildeo encontrar adequaccedilatildeo na

perspectiva agostiniana jaacute que o juiacutezo implica uma reflexatildeo acerca da lex numerorum e

o prazer inscreve-se nas especificidades do ordo amoris

O acto judicativo esteacutetico natildeo apenas eacute indissociaacutevel do criteacuterio do bem como do

da verdade pelo que a moldura propiciada por Cristo quer como Mestre interior quer

como Verbo incarnado permite reconhecer na experiecircncia esteacutetica uma dimensatildeo

reveladora e ateacute mesmo salviacutefica A proacutepria beatitudo pode ser considerada de um

32

ponto de vista esteacutetico e o seu alcance estaacute dependente de uma estrateacutegia de

conformaccedilatildeo da imagem de Deus existente no homem ao seu modelo A abordagem

que Santo Agostinho consagra ao tema da imagem e das implicaccedilotildees da igualdade da

semelhanccedila e da especularidade traduz um modo de pensar a relaccedilatildeo de equidade entre

Deus Pai e Deus Filho e a relaccedilatildeo de proximidade entre Deus e o homem Tal

abordagem natildeo deixa de ser formulada em termos esteacuteticos jaacute que eacute a uma matriz de

beleza que a imagem se refere e jaacute que a conversatildeo pressupotildee simultaneamente a

reconversatildeo do olhar e a reformulaccedilatildeo da beleza da alma agrave luz de tal matriz atraveacutes da

mediaccedilatildeo de Cristo que eacute o modelo ao qual o homem tem de atender pela

exemplaridade da beleza divina que ele incarna O proacuteprio modo especular a que a

visatildeo humana estaacute limitada predispotildee a uma leitura caracteriacutestica da semiologia acerca

da relaccedilatildeo entre o universo criado e a esfera divina

Com a segunda parte da dissertaccedilatildeo pretende-se demonstrar e consolidar a ideia

de que haacute efectivamente uma esteacutetica agostiniana ndash contrariamente ao que afirmam

muitos dos filoacutesofos historiadores desta aacuterea como Raymond Bayer6 ndash e desmistificar o

receio que os proacuteprios investigadores que se debruccedilam sobre o pensamento esteacutetico de

Santo Agostinho tecircm demonstrado pela relutacircncia em usar a palavra ldquoesteacuteticardquo

relativamente ao Bispo de Hipona preferindo a seguranccedila da expressatildeo ldquoteoria do

belordquo Mesmo sem sistema esteacutetico e sem filosofia da arte a esteacutetica agostiniana natildeo se

resume a uma teoria do belo

No primeiro capiacutetulo desta segunda parte enfrenta-se a questatildeo da ausecircncia de

uma filosofia da arte no pensamento agostiniano clarificando as diversas acepccedilotildees que

o filoacutesofo africano consagra agrave palavra ldquoarterdquo e analisando a consideraccedilatildeo que dedica agraves

actividades que contemporaneamente se considera pertencerem ao universo da criaccedilatildeo

artiacutestica Anuiacutemos quanto agrave inexistecircncia de uma filosofia da arte mas discordamos

daqueles que vecircem em tal ausecircncia um impedimento a que se possa legitimamente falar

de uma esteacutetica agostiniana A atenccedilatildeo que o filoacutesofo daacute agraves especificidades da

experiecircncia temporal humana e a permeabilidade que reconhece existir entre o homem

interior e o homem exterior revelam uma rara valorizaccedilatildeo da dimensatildeo sensiacutevel a ponto

de Santo Agostinho descrever ateacute mesmo para o homem ressurrecto um possiacutevel uso

dos sentidos corpoacutereos jaacute desnecessaacuterios quanto agrave sua funccedilatildeo utilitaacuteria um uso

destinado ao deleite como preacutemio por uma vida virtuosa

6 Cf Raymond Bayer Histoacuteria da Esteacutetica Lisboa Estampa 1995 p 87

33

O segundo capiacutetulo visa responder agrave criacutetica da ausecircncia de sistema no

pensamento agostiniano uma vez mais anuindo quanto agrave veracidade da constataccedilatildeo de

assistematicidade mas recusando tal argumento como um factor de menoscabo e de

recusa de uma reflexatildeo estruturada enquadraacutevel no acircmbito da esteacutetica Para tal

problematiza-se o proacuteprio conceito de sistema enquanto forma filosoacutefica superior e

propotildee-se uma leitura da expressatildeo teoacuterica agostiniana agrave luz do conceito de

dispositivo na acepccedilatildeo que Deleuze lhe consagra atraveacutes da descriccedilatildeo que faz deste

filosofema em Foucault

O uacuteltimo capiacutetulo desta tese consiste numa exposiccedilatildeo acerca do que eacute a esteacutetica

de certo modo justificando os nuacutecleos de abordagem propostos como eixos do

pensamento esteacutetico agostiniano Parte-se de uma perspectiva histoacuterica sumaacuteria que

revisita alguns dos autores mais representativos do momento fundacional da disciplina

filosoacutefica em questatildeo Tarefa ingrata pelas omissotildees a que natildeo nos podemos furtar

Todavia assumimos com tal escolha de autores ndash Baumgarten Kant Schiller Schelling

e Hegel ndash o propoacutesito de descrever as linhas teoacutericas de base que alicerccedilariam os

posteriores desenvolvimentos na aacuterea da esteacutetica e que viriam a culminar na actual

tendecircncia de alargamento do acircmbito disciplinar Tendecircncia esta que contrasta com o

momento fundacional da esteacutetica durante o periacuteodo iluminista alematildeo no qual se

procurou lindar e circunscrever o acircmbito da disciplina para assim o legitimar

filosoficamente A transversalidade da esteacutetica agostiniana revela uma salutar

abrangecircncia aliaacutes comum a tantos outros autores medievos que poderaacute servir como

exemplo ou como reforccedilo teoacuterico para a esteacutetica contemporacircnea face agraves dificuldades

com que esta se tem deparado nesse seu movimento de expansatildeo Aleacutem da perspectiva

histoacuterica o perfil que se pretende traccedilar da esteacutetica exige tambeacutem a exploraccedilatildeo de

alguns conceitos fulcrais como o de ldquoexperiecircncia esteacuteticardquo ldquoemoccedilotildees esteacuteticasrdquo e ldquovalor

esteacuteticordquo A tese finda precisamente com tal anaacutelise que se por um lado revela uma

concepccedilatildeo da esteacutetica capaz de abranger as linhas do pensamento agostiniano em funccedilatildeo

dela previamente traccediladas por outro lado tambeacutem foi dessas linhas que se nutriu tal

concepccedilatildeo e nelas encontrou contributo para melhor se perspectivar

Nota Salvo indicaccedilatildeo contraacuteria as traduccedilotildees satildeo da nossa responsabilidade

Parte I

37

1 Os corpos e os sentidos

11 ndash Materia moles e forma species

A esteacutetica agostiniana eacute natildeo raras vezes tida como menos interessante do que a

esteacutetica neoplatoacutenica que tanto a influenciou Com efeito as Eneacuteadas de Plotino

parecem evidenciar uma abordagem relativa ao belo e agrave arte mais autoacutenoma ou

especiacutefica do que aquela que eacute desenvolvida em qualquer uma das obras de Santo

Agostinho que chegaram ateacute noacutes ndash a excepccedilatildeo estaria certamente em De pulchro et

apto Aleacutem de Plotino dedicar dois tratados especificamente ao tema do belo7 haacute nas

Eneacuteadas uma perspectivaccedilatildeo inovadora da arte ndash que Santo Agostinho de certo modo

adoptaraacute ndash expressa em termos bastante positivos e que contrastam com o aparente

menosprezo com que o Bispo de Hipona se refere a todas as formas de expressatildeo

artiacutestica que natildeo a muacutesica A perspectivaccedilatildeo inovadora da arte que Plotino desenvolve

e que Santo Agostinho segue sem no entanto lhe tecer encoacutemios marca uma inflexatildeo

quanto agrave esteacutetica platoacutenica que eacute avessa agravequilo que hoje podemos designar de beleza

artiacutestica Para Plotino a arte (τέχνη) porque proveacutem da ideia do artista mais do que da

sua habilidade manual faculta o conhecimento da beleza superior e eacute nesse sentido

valorizada como afirmaccedilatildeo do divino ndash ora isto eacute contraacuterio ao pensamento de Platatildeo

para quem a arte estava trecircs graus afastada da verdade e para quem a obra de um

sapateiro tinha maior valor do que a de um escultor Apesar de toda a sensibilidade

artiacutestica presente nos termos que Plotino usa para distinguir a beleza do bloco de pedra

7 O sexto tratado da Primeira Eneacuteada tido como o primeiro na cronologia plotiniana ndash conhecido pelo

tiacutetulo ldquoAcerca do Belordquo ndash e o oitavo tratado da Quinta Eneacuteada o trigeacutesimo primeiro em termos

cronoloacutegicos e intitulado por Porfiacuterio de ldquoAcerca da Beleza Inteligiacutevelrdquo Cf Plotin Enneacuteades I-VI2

Eacutemile Breacutehier (ed trad) Paris Belles-Lettres 1924-1938

38

esculpido da do bloco de pedra tosco8 e para se referir ao processo de purificaccedilatildeo da

alma em analogia com o gesto escultoacuterico9 a verdade eacute que para aleacutem dessa estrateacutegia

retoacuterica natildeo haacute propriamente diferenccedila entre a consideraccedilatildeo da arte plotiniana e

agostiniana Para ambos os filoacutesofos a arte estaacute subjugada a um quadro finaliacutestico que

tem no seu fulcro a purificaccedilatildeo da alma e a contemplaccedilatildeo da esfera divina ndash para ambos

a arte tem um valor heuriacutestico e a beleza que se lhe associa natildeo eacute mais do que um paacutelido

traccedilo da beleza superior da esfera divina

Sendo o proacuteprio Santo Agostinho um filoacutesofo de tradiccedilatildeo neoplatoacutenica o

pensamento esteacutetico que desenvolve manteacutem o pressuposto de que toda a beleza

inclusivamente a corpoacuterea adveacutem da comunhatildeo com uma forma ideal mas Santo

Agostinho vai mais longe do que Plotino ao estabelecer que a natureza inteligiacutevel do

belo natildeo obsta a que este possa ser concebido de um modo formalista material Assim

quando em ldquoAcerca do Belordquo Plotino comeccedila por negar a ideia de que a beleza consiste

na simetria apresentando cinco argumentos para refutar tal tese estoacuteica10

o Bispo de

Hipona por seu turno habituado a conciliar teorias antagoacutenicas coloca lado a lado a

perspectiva plotiniana ndash que enfatiza a existecircncia de belezas natildeo compostas no mundo

sensiacutevel e a ideia de que a fonte uacuteltima do belo eacute una simples ndash com a tese rival estoacuteica

segundo a qual a beleza requer uma multiplicidade de partes em harmoniosa relaccedilatildeo Ao

fazecirc-lo Santo Agostinho parece ignorar voluntariamente a muacutetua inconsistecircncia destas

perspectivas Na verdade o Bispo de Hipona apenas reduz o alcance da objecccedilatildeo

plotiniana jaacute que manteacutem a pertinecircncia do criteacuterio da simetria interpretando-o natildeo

8 Cf En V 8 1

9 Cf En I 6 9

10 A tradicional definiccedilatildeo de beleza que se supotildee de origem estoacuteica sintetizava-se nos seguintes termos

συμμετρία καὶ χρώμα Os argumentos plotinianos para a recusa da ideia de que a beleza resulta da

simetria desenvolvem-se do seguinte modo a) tal ideia pressuporia que soacute um ser composto seria belo e

por exemplo um ser simples como uma cor um som ou a luz do sol natildeo poderiam ser belos b)

equivaleria tambeacutem a afirmar que cada parte em si natildeo possui beleza mas apenas agrave sua combinaccedilatildeo tal

atributo poderia ser imputado ora segundo Plotino para um conjunto ser belo as partes tambeacutem tecircm de

o ser Um conjunto belo natildeo pode constituir-se por partes feias c) haacute tambeacutem exemplos como o de um

rosto proporcionado que natildeo poderaacute tirar a sua beleza das proporccedilotildees (simetria) uma vez que estas se

mantecircm mesmo quando por vezes esse rosto se mostra feio d) tambeacutem porque haacute beleza por exemplo

nos conhecimentos nas ciecircncias nas leis nos discursos e nas nobres condutas de vida para os quais eacute

impossiacutevel determinar um padratildeo de medida passiacutevel de aferir a relaccedilatildeo entre as partes da alma ndash e todos

estes exemplos satildeo jaacute uma beleza da alma e) acrescenta-se o facto de poder haver por exemplo simetria

em teorias maacutes e f) porque a beleza da inteligecircncia que eacute livre em si mesma natildeo poderia colocar-se em

termos de simetria proporccedilotildees Cf En I 6 1

39

como um criteacuterio falso mas como um criteacuterio insuficiente Quando Santo Agostinho

articula elementos da esteacutetica plotiniana com elementos estoacuteicos a ambivalecircncia em que

cai a perspectivaccedilatildeo da beleza corpoacuterea pode natildeo ser necessariamente entendida como

paradoxal no sentido de mutuamente invalidante se tomarmos a beleza corpoacuterea como

um elemento teofacircnico proclamador da beleza divina e prescritor de uma via para se lhe

aceder que tanto implica a desvalorizaccedilatildeo desta beleza que eacute imagem como insiste no

reconhecimento do seu encanto enquanto promessa da maior beleza constituiacuteda pela

esfera divina Estas duas atitudes divergentes em relaccedilatildeo ao mundo sensiacutevel satildeo

conciliaacuteveis porque satildeo paralelas agrave duplicidade do movimento a partir do qual a

multiplicidade adveacutem da unidade e a ela tende novamente A unidade eacute afim do desejo

criador de beleza e eacute a partir dessa unidade que nasce uma harmonia numerosa

(coaptatio) divergindo e desdobrando-se numa multiplicidade de partes e convergindo

novamente ao tender para o todo A duplicidade deste movimento marca qualquer

beleza criada e marcaraacute o modo de relaccedilatildeo que o homem deve manter face a este geacutenero

de beleza Deste modo embora Santo Agostinho insista na esteira de Plotino no

caraacutecter imaterial da beleza sempre dependente do princiacutepio de racionalidade que estaacute

na sua origem e natildeo da massa que constitui os corpos tidos por belos a verdade eacute que

por exemplo em De civitate Dei o Bispo de Hipona define a beleza fiacutesica como sendo

ldquoa harmonia das partes com uma certa suavidade da corrdquo11

evidenciando que natildeo

descarta a tradicional esteacutetica das proporccedilotildees reformulando-a natildeo mais em termos de

simetria como os estoacuteicos mas em termos de harmonia de partes (congruentia partium

ou congruentia numerosa)12

e da muacutetua adaptaccedilatildeo (coaptatio) que entre elas se

observa13

Natildeo haacute portanto o abandono completo da concepccedilatildeo formal da beleza como

pressuporia naturalmente o legado neoplatoacutenico mas de modo a reiterar a pertinecircncia

de tal legado a esteacutetica agostiniana assenta em pressupostos que acentuam a

subordinaccedilatildeo formal das diversas belezas existentes ao princiacutepio que as informa

Curiosamente esses pressupostos em que assenta a esteacutetica agostiniana e que lhe

permitem enfatizar o caraacutecter hiacutebrido e derivado as belezas sensiacuteveis por oposiccedilatildeo agrave sua

fonte simples e una para a qual remetem pelo acordo entre o nuacutemero e a sua figura

11

laquoOmnis enim corporis pulchritudo est partium congruentia cum quandam coloris suavitateraquo De civ Dei

XXII 19 (CCL 48 p 838)

12 Cf Ibid

13 Cf De civ Dei XXII 24

40

visiacutevel14

ao mesmo tempo que permitem reiterar os assertos em que assenta a

concepccedilatildeo plotiniana do belo constituem-se como elementos de dissensatildeo entre o

pensamento do filoacutesofo africano e o do filoacutesofo egiacutepcio Esses pressupostos satildeo a

criaccedilatildeo ex nihilo e a recusa da teoria plotiniana da emanaccedilatildeo O primeiro opondo-se agraves

teorias da preexistecircncia da mateacuteria e agrave ideia de um criador demiuacutergico que lhe daacute forma

faraacute com que a categoria ontoloacutegica da forma nos seus variados graus de igualdade e

natildeo apenas como padratildeo inteligiacutevel assuma um papel crucial na concepccedilatildeo da beleza do

universo O segundo amplia a ideia de participaccedilatildeo das belezas inferiores na beleza

superior e contribuiraacute decisivamente para a percepccedilatildeo e para o exerciacutecio da beleza

orientada para Deus Se a criaccedilatildeo tivesse emanado de Deus tal implicaria que nas

criaturas essa proacutepria substacircncia divina por natureza infinita e imutaacutevel em si mesma

seria sujeita a mutaccedilotildees e mesmo a degradaccedilatildeo ndash o que se constitui como uma ideia

sacriacutelega aos olhos de Santo Agostinho A criatura natildeo deriva da proacutepria substacircncia do

criador mas do nada

Santo Agostinho descreve Deus como forma infabricata atque omnium

formosissima 15

que cria a mateacuteria informe ex nihilo com o potencial para receber

forma16

pela conversatildeo a si A beleza da criaccedilatildeo eacute intriacutenseca agrave sua existecircncia e sua

equivalente desde o momento da criaccedilatildeo

A exploraccedilatildeo do conceito agostiniano de forma eacute fulcral para qualquer

abordagem agrave esteacutetica deste autor pois traduz o caraacutecter intermediaacuterio da atitude esteacutetica

ndash um caraacutecter que natildeo deixa de ser religioso17

ndash ao preservar num uacutenico lexema dois

significados semanticamente distintos A este niacutevel o latim agostiniano quase parece

permitir uma cintilaccedilatildeo da harmoniosa indiscernibilidade dos opostos que o caraacutecter

delimitador da linguagem verbal inevitavelmente gorou O conceito forma natildeo soacute se

refere aos arqueacutetipos transcendentes da realidade como agraves configuraccedilotildees dos corpos

14

Cf De civ Dei XX 30 10-19

15 De vera relig 11 21

16 Cf De vera relig 18 36

17 Na acepccedilatildeo priacutestina de religiosidade enquanto esfera empiacuterica propiacutecia ao re-ligare transdimensional

41

materiais Significa isto que contingecircncia e transcendecircncia satildeo expressas do mesmo

modo em termos esteacuteticos18

O conceito forma congrega portanto as acepccedilotildees que os gregos cindiram pelos

termos μορφή ou σχῆμα e ιδέα A natureza ambivalente da forma agostiniana torna

incontornaacutevel ancorar a sua abordagem agrave temaacutetica da criaccedilatildeo que por seu turno articula

a questatildeo da ordem a questatildeo do exemplarismo impliacutecita nas rationes seminales e

obviamente as questotildees do nihil e do mal

A doutrina da creatio ex nihilo era jaacute vigente na ortodoxia cristatilde19

quando Santo

Agostinho desenvolve a sua perspectiva sobre a criaccedilatildeo do mundo adequando-se muito

eficazmente agrave necessidade de refutar o dualismo maniqueu cujos argumentos tanto

incomodavam o Bispo de Hipona apesar de com eles ter comungado inicialmente Natildeo

eacute portanto de estranhar que o tema da criaccedilatildeo seja sobretudo tratado por Santo

Agostinho nos seus escritos de maior pendor antimaniqueiacutesta como De ordine (386)

De Genesi contra Manichaeos (388) De Genesi ad litteram liber imperfectus (393)

Contra Adimantum (393) De Genesi ad litteram (393-415) Contra adversarium Legis

et Prophetarum (420) e naturalmente tambeacutem em passagens presentes em

Confessionum XI-XIII (397-398) e em De civitate Dei XI (413-426)

Todas as coisas foram criadas por Deus a partir do nada e atraveacutes de um acto

livre de amor A mateacuteria da criaccedilatildeo natildeo eacute preexistente ou co-eterna com Deus Ele criou

a proacutepria mateacuteria da criaccedilatildeo e por isso o acto criador concerne natildeo apenas a tudo o que

existe como tambeacutem a tudo que poderaacute ainda vir a existir Ora a mateacuteria da criaccedilatildeo eacute

uma mateacuteria informe tal como se lhe refere o Livro da Sabedoria20

agrave qual Santo

18

Carol Harrison expotildee singularmente esta ideia ao escrever que ldquoAs configuraccedilotildees concretas e as

formas vagamente discerniacuteveis satildeo nomeadas com os nomes da transcendecircncia do belo Assim o latim

agostiniano permite-lhe conservar lado a lado o imediato e a ultimidade fazendo-o [por intermeacutedio da

beleza] pensando-os como o belordquo laquoThe actual shapes and forms dimly discerned are named with the

names of the ultimate of the beautiful Thus Augustinersquos Latin helps him to hold together the immediate

and the ultimate and to do this by thinking of them as the beautifulraquo Harrison Beauty and Revelation in

the Thought of Saint Augustine Oxford Clarendon Press 1992 p 2

19 Teoacutefilo de Antioquia (~120 ndash 180) eacute tido como o primeiro autor cristatildeo a defender a creatio ex nihilo

argumentando que se a mateacuteria fosse tal como Deus incriada ndash como postulavam os platoacutenicos ndash entatildeo

natildeo faria sentido considerar a transcendecircncia de Deus jaacute que tal pressuporia que a mateacuteria fosse igual a

Deus e que Ele natildeo poderia ser o criador de todas as coisas A preexistecircncia da mateacuteria gorava o caraacutecter

extraordinaacuterio da criaccedilatildeo e da actividade do criador divino ateacute porque os homens tambeacutem conseguem

produzir coisas novas a partir da mateacuteria existente

20 laquo[hellip]Vossa matildeo omnipotente que formou o mundo de mateacuteria informe [hellip]raquo Sab 1117

42

Agostinho faz equivaler ldquoos ceacuteus e a terrardquo do princiacutepio do acto criador descrito no

Geacutenesis21

A interpretaccedilatildeo agostiniana da criaccedilatildeo biacuteblica vecirc-se a braccedilos com a

necessidade de natildeo incompatibilizar entre si estas passagens do Antigo Testamento

bem como com a necessidade de dar resposta agraves criacuteticas sarcaacutesticas em que resultava a

interpretaccedilatildeo maniqueiacutesta das mesmas22

A criaccedilatildeo da mateacuteria informe corresponde a

um primeiro momento do acto criador que natildeo deveraacute ser entendido como primeiro

num sentido cronoloacutegico ou diacroacutenico mas em termos meramente loacutegicos ou

ontoloacutegicos e que permitem uma compreensatildeo triaacutedica da geacutenese

Assim a creatio prima contempla a criaccedilatildeo dos ceacuteus e da terra ex nihilo ainda

sem forma mas com capacidade para receber nos momentos seguintes as formas das

coisas23

Pela creatio secunda Deus informa o informe dando forma aos seres

particulares a partir da mateacuteria informe da creatio prima Eacute neste segundo momento que

surge a determinaccedilatildeo temporal e que se estabelecem os seis dias da criaccedilatildeo e o seacutetimo

dia de descanso que natildeo corresponde a um cessar da actividade divina relativamente agraves

criaturas mas ao acto criativo constituiacutedo por estes dois primeiros momentos Como

poreacutem a criaccedilatildeo se processa ao longo da histoacuteria haacute um terceiro momento ainda em

curso sob a divina providecircncia pelo qual os seres jaacute criados crescem e multiplicam-se

(agora em termos geracionais) e no qual graccedilas agraves razotildees seminais (rationes seminales)24

21

laquoNo princiacutepio Deus criou os ceacuteus e a terra A terra era informe e vaziaraquo Gn 1 1-2

22 Os maniqueus questionavam ironicamente o que andara Deus a fazer antes de criar os ceacuteus e a terra

por que razotildees resolvera criaacute-los e ridicularizavam uma suposta antropomorfizaccedilatildeo de Deus presente no

Antigo Testamento Cf De Gen cont Man I 2 3 e Conf XI 10 12

23 Cf De Gen cont Man I 5 9 e I 7 11 onde Santo Agostinho diz que no princiacutepio Deus fez os ceacuteus e

a terra como se fizesse o geacutermen do ceacuteu e da terra estando ainda confusa e sem forma (confusa et

informis) a mateacuteria do ceacuteu e da terra ndash e ainda invisiacuteveis (Cf De Gen cont Man I 3 5) pois satildeo

anteriores ao fiat lux ndash mas jaacute assim designados dado que deles procederiam os ceacuteus e a terra agora

visiacuteveis aos nossos olhos Esta mateacuteria informe encontra correspondecircncia no χάος grego conforme aponta

o proacuteprio Bispo de Hipona Dada a sua ldquoinformidaderdquo ela estaacute muito proacutexima do nada (prope nihil erat) e

eacute quase nada (paene nihilo) Cf Conf XII 6 6 - 8 8

24 Para um estudo mais aprofundado sobre o conceito de razotildees seminais na obra do Bispo de Hipona cf

Charles Boyer ldquoLa theacuteorie augustinienne des raisons seacuteminalesrdquo in Essais sur la doctrine de saint

Augustin Paris Gabriel Beauchesne et ses fils 1932 pp 97-137 J Brady The Function of the Seminal

Reasons in St Augustinersquos Theory of Reality PhD Dissertation St Louis University 1949 Michael

John McKeough The Meaning of the Rationes Seminales in St Augustine Washington Catholic

University of America Press 1926

43

as coisas que existem no mundo apenas em potecircncia25

podem actualizar-se dando origem a

novos seres

A explicaccedilatildeo triaacutedica da criaccedilatildeo natildeo obsta agrave ideia de que Deus tenha criado tudo

a partir do nada num uacutenico instante criador O segundo e o terceiro momentos da

criaccedilatildeo estatildeo desde logo contemplados na creatio prima onde a mateacuteria informe

criada do nada conteacutem em si todas as coisas nas suas particularidades ainda em

potecircncia26

Nada mais ndash ou nada realmente novo ndash foi criado apoacutes o primeiro acto de

criaccedilatildeo tudo foi criado no princiacutepio antes de aparecer na terra e no tempo mas esse

acto criativo actualiza-se progressivamente atraveacutes dos tempos pelo trabalho contiacutenuo

da divina providecircncia

A teoria das rationes seminales permite estabelecer uma distinccedilatildeo entre o acto

original da criaccedilatildeo e o operar providencial de Deus ou por outras palavras entre o

modo atraveacutes do qual Deus se constitui como causa uacutenica livre de tudo o que eacute e de

tudo o que natildeo sendo poderaacute ainda vir a ser e o modo de causalidade necessaacuterio das

leis naturais que presidem ao curso da natureza Tambeacutem este modo eacute em uacuteltima

instacircncia resultante da causa primeira e superior de todas as coisas27

e que portanto

natildeo inviabiliza a capacidade causal passiva ou potencial relativa aos acontecimentos

que natildeo tomamos por habituais ndash como os milagres ndash mas que nem por isso deveratildeo

ser considerados como uma quebra na cadeia causal natural Os milagres resultam

tambeacutem da capacidade intriacutenseca agraves razotildees seminais que tecircm a sua origem em Deus28

As causas naturais natildeo passam poreacutem de instrumentos da actividade providencial de

25

Apesar de natildeo conhecer as noccedilotildees aristoteacutelicas de acto e potecircncia a verdade eacute que Santo Agostinho

envereda por uma via que natildeo eacute completamente distinta da do estagirita e que facilitaraacute a

conceptualizaccedilatildeo do ser em Satildeo Tomaacutes de Aquino nove seacuteculos depois

26 Cf De Gen cont Man I 6 10

27 Cf De Trin III 4 9

28 Ocorre poreacutem que se os acontecimentos vulgares satildeo operados espontaneamente pela providecircncia

natural jaacute os milagres e os prodiacutegios satildeo operados pela providecircncia voluntaacuteria atraveacutes da

instrumentalizaccedilatildeo dos homens e dos seres angeacutelicos o que significa que para ocorrerem os milagres

tecircm de ser operados pelos homens ou pelos anjos Providecircncia natural e providecircncia voluntaacuteria satildeo ambas

modalidades da providecircncia divina ainda que Deus natildeo intervenha directamente em nenhum dos casos A

terminologia ldquoprovidecircncia naturalrdquo e ldquoprovidecircncia voluntaacuteriardquo embora natildeo seja muito comum nas obras

agostinianas eacute empregue pelo Bispo de Hipona em De Genesi ad litteram VIII 9 17 laquo[hellip] operatio

providentiae reperitur partim naturalis partim voluntariaraquo

44

Deus pelo que haacute diferenccedila entre a criaccedilatildeo das razotildees seminais e a sua sequente

manifestaccedilatildeo no tempo

A ideia das razotildees seminais remonta a Anaxaacutegoras (seacutec V a C) quando este

substitui a tradicional concepccedilatildeo dos quatro elementos pela noccedilatildeo de um nuacutemero

infinito de causas primeiras inertes ndash os geacutermenes (σπέρματα) ndash que seriam activadas

pela essecircncia intelectual (νοῦς) explicando assim a possibilidade de surgirem coisas

aparentemente novas Para Anaxaacutegoras os σπέρματα confirmavam a sua ideia de que

nada de novo poderia ser criado nem nada do que existia poderia ser totalmente

destruiacutedo ndash tudo se transformava Demoacutecrito foi bastante influenciado por esta ideia

de geacutermenes a partir dos quais todas as coisas se desenvolvem apondo-lhe outro

conceito ndash o de substacircncias elementares (ἄτομος) controladas por um poder externo

que ao dotaacute-las de movimento dava origem a todas as coisas Estava assim firmada a

base da ideia das rationes seminales que conheceria ainda desenvolvimentos e

variaccedilotildees com os contributos de Aristoacuteteles dos Estoacuteicos e de Fiacutelon Este uacuteltimo

introduz a ideia na exegese biacuteblica

Santo Agostinho simpatizava com os pressupostos desenvolvidos por

Anaxaacutegoras e pela variante estoacuteica29

adoptando o que diziam sobre os λόγοι

σπερματικοί Para o Bispo de Hipona as formas ou ideias platoacutenicas tinham existecircncia

eterna na mente de Deus que ao contemplaacute-las criou ex nihilo as razotildees seminais agrave

semelhanccedila das ideias ou formas30

Assim ideias eternas e razotildees seminais distinguem-se

pois as uacuteltimas tecircm existecircncia fiacutesica na mateacuteria ndash ainda que no primeiro acto criativo

natildeo sejam originadas logo com uma forma definida31

ndash e estatildeo ligadas por participaccedilatildeo

agraves primeiras (agraves ideias eternas) e por dependecircncia agrave vontade de Deus32

29

Que consistia numa visatildeo conciliadora entre a perspectiva aristoteacutelica e a perspectiva platoacutenica

postulando uma distinccedilatildeo entre mateacuteria passiva e mateacuteria activa Os Estoacuteicos defendiam uma alma do

mundo de natureza iacutegnea existente na mateacuteria passiva e contendo todas as razotildees (λόγοι) de todas as

mudanccedilas bem como os geacutermenes (σπέρματα) das formas futuras O fogo era o princiacutepio activo que

informava e movia a mateacuteria (princiacutepio passivo)

30 Com efeito as ideias eternas correspondem no leacutexico agostiniano agrave Sabedoria divina ou Verbo

31 Cf Conf XI 4 6 onde Santo Agostinho afirma que mesmo o que natildeo foi criado e todavia existe nada

tem em si que natildeo existisse

32 Cf Chris Gousmett ldquoCreation order and miracle according to Augustinerdquo In Evangelical Quaterly 60

3 1988 p 222

45

As rationes seminales actualizam-se fisicamente ao longo da criaccedilatildeo que

continua a ocorrer no decurso da histoacuteria e sob a divina providecircncia Na creatio prima

descrita no primeiro versiacuteculo do Geacutenesis elas contecircm como potecircncia todas as espeacutecies

possiacuteveis de coisas particulares Este substrato potencial eacute mantido e materializado pela

vontade e pelo poder causal de Deus nele imposto Sem esta perene dependecircncia

relativamente a Deus as razotildees seminais natildeo existiriam A intervenccedilatildeo divina nas

razotildees seminais pela providecircncia constitui-se como a derradeira causa ndash uma causa

interna ndash todas as outras causas operam externamente sobre as razotildees seminais

As rationes seminales obedecem agrave moccedilatildeo divina e soacute assim desenvolvem no

tempo as formas nelas existentes pelo que mesmo os novos seres natildeo escapam aos

desiacutegnios de Deus33

A criaccedilatildeo ex nihilo coloca a Santo Agostinho o problema da responsabilizaccedilatildeo

de Deus pelo mal pois se criou tudo a partir do nada entatildeo tambeacutem teraacute criado o mal A

soluccedilatildeo passa por negar a existecircncia do mal enquanto substacircncia Se tudo o que existe

foi criado por Deus e se o que Deus cria soacute pode ser tido como bom34

conclui-se

portanto que o mal eacute meramente uma privaccedilatildeo de bem Neste seguimento sendo a

existecircncia boa por natureza e sendo a suprema existecircncia o sumo bem35

natildeo seraacute

descabido reportar o mal ao nada (nihil) A doutrina da creatio ex nihilo postulada por

Santo Agostinho evidencia que o filoacutesofo distingue claramente o nada da mateacuteria

informe contrariamente a Plotino que fazia equivaler os dois conceitos A mateacuteria

informe estaacute no entanto proacutexima do nada e pode considerar-se como um estaacutedio

intermeacutedio entre a forma e o natildeo-ser36

Alguns autores consideram que mesmo natildeo

havendo equivalecircncia entre a mateacuteria informe e o nihil eacute plausiacutevel que o nihil

33

Foram vaacuterios os investigadores a argumentar sobre se o posicionamento agostiniano a este niacutevel

assumiria um caraacutecter determinista ou evolucionista Para um resumo esquemaacutetico de tal debate cf

Marcos Roberto Nunes Costa ldquoDefesa agostiniana da criaccedilatildeo ex nihilo contra os Maniqueusrdquo in

Scintilla Curitiba vol 5 nordm 1 Jan Jun 2008 p 51 n 20 Concordando com Copleston cremos que a

pertinecircncia de tal debate eacute questionaacutevel jaacute que este problema para Santo Agostinho eacute equacionado

relativamente agrave interpretaccedilatildeo biacuteblica e natildeo lhe eacute consagrado um tratamento cientiacutefico Cf Frederick

Copleston Histoacuteria de la Filosofia De San Agustiacuten a Escoto vol II Barcelona Ariel 1983 p83

34 Aliaacutes como muito bom como estaacute expresso em Gn1 31 laquoDeus vendo toda a Sua obra considerou-a

muito boaraquo Cf De Gen ad litt imp I 3

35 Cf De vera relig 17 34 ndash 18 36

36 Cf Conf XII 6 6 onde Santo Agostinho afirma que a mateacuteria informe natildeo era ainda nada e no

entanto era jaacute algo

46

agostiniano natildeo seja um nada absoluto ou ontoloacutegico constituindo-se jaacute como alguma

forma de substacircncia agrave semelhanccedila da ὕλη maniqueia ou da quase-existecircncia impliacutecita

no μὴ ὄν plotiniano37

Se as rationes seminales pareciam ser uma figura da

estabilidade ndash pois apesar de serem o veiacuteculo capaz de dar origem a novos seres esse

movimento configura-se como mais uma das evidecircncias da estabilidade divina que

havia assegurado desde o iniacutecio a tal possibilidade de novas espeacutecies criando-as ainda

que em potecircncia e assim relativizando o seu caraacutecter de novidade ndash o nihil sugere ao

inveacutes uma ausecircncia de estabilidade porque eacute o que sempre se dispersa constantemente

se torna dissoluto e eternamente perece38

Em termos morais o nada eacute a fonte do

movimento defectivo da vontade Pela corrupccedilatildeo tende-se ao lapso do ser ndash ao nada

Assim aleacutem de ausecircncia de estabilidade eacute tambeacutem ausecircncia de ser configurando-se

efectivamente como um nada absoluto ontoloacutegico39

Apesar de natildeo possuir qualquer referente ontoloacutegico o nada agostiniano tambeacutem

natildeo eacute estaacutetico ndash daiacute que se constitua como uma ameaccedila e mantenha um elo com a

corrupccedilatildeo (nequitia)40

com o pecado (iniquitas)41

e com o mal A criaccedilatildeo eacute ex nihilo in

principio e a Deo o que significa que Deus natildeo emana de si o mundo e que o mundo

natildeo lhe eacute igual42

As criaturas satildeo um outro inferior de Deus ao criaacute-las o inexistente

comeccedilou tambeacutem a fazer sentido enquanto inexistente (negaccedilatildeo do criado) ndash o que natildeo

37

Cf Gavin Hyman ldquoAugustine on the lsquoNihilrsquo An Interrogationrdquo Journal for Cultural and Religious

Theory vol 9 nordm 1 2008 p 40

38 Cf De beata vita 2 8 onde Santo Agostinho descreve a eterna dissolvecircncia do nihil

39 Cf De Gen ad litt VII 5 7 De nat boni 25 ou In Iohan Evang tract I 13 onde o Bispo de Hipona

adverte para o erro em que alguns incorrem ao tomar o nada por alguma coisa (putare aliquid esse nihil)

Os Maniqueus estariam certamente entre essas pessoas

40 Cf De beata vita 2 8

41 Cf Conf VII 12 18 e VII 16 22

42 Gerado a partir de Si e igual a Si soacute mesmo o Filho unigeacutenito que participa da sua essecircncia tudo o

demais natildeo partilha a substacircncia divina porque adveacutem do nada Cf De Gen ad litt VI 2 2 onde Santo

Agostinho diz que o criado natildeo eacute da mesma essecircncia ou substacircncia do criador De Gen cont Man I 2 4

onde explicita que a bondade das coisas natildeo eacute a mesma bondade com que Deus eacute bom e Conf VII 10 16

onde referindo-se agrave luz imutaacutevel escreve laquo[hellip] superior quia ipsa fecit me et ego inferior quia factus

ab earaquo Aleacutem da criaccedilatildeo ser ex nihilo in principio e abs Deo poderemos ainda acrescentar que quanto

ao seu modo ela eacute in Verbo pois resulta da Palavra criadora Como princiacutepio o Verbo divino identifica-

se com o Filho com a Sabedoria ndash a Palavra de Deus enleia conhecimento e amor e faz equivaler o dizer

ao fazer laquoin hoc principio deus fecisti caelum et terram in verbo tuo in filio tuo in virtute tua in

sapientia tua in veritate tua miro modo dicens et miro modo faciensraquo Conf XI 9 11

47

significa que exista ndash pois ao criar algo que natildeo eacute igual a si Deus instaura a distacircncia

entre si e o que cria43

Essa distacircncia absolutamente vazia opotildee-se no entanto agrave

estabilidade que caracteriza Deus O nada flui perenemente mas natildeo pode ser

equacionado em termos temporais jaacute que mesmo o tempo eacute ex nihilo44

O acto de criaccedilatildeo ex nihilo eacute tambeacutem um acto de domesticaccedilatildeo ou de

subordinaccedilatildeo do nihil pois ao mesmo tempo que se instaura a distacircncia entre o criador e

a criatura o facto de a criaccedilatildeo resultar de um acto livre de amor significa que haacute

uma proximidade iacutentima entre Deus e a sua obra Deus quis livremente o mundo e

por tecirc-lo desejado haacute proximidade entre ambos mesmo que ao fazecirc-lo do nada o

tenha distanciado de si A inigualaacutevel bondade de Deus e o seu amor incondicional

fazem da criatura um ser livre cujo sentido de si ndash da sua vida ndash lhe eacute entregue Essa

entrega eacute a abertura do ser ao ser e ao nada trata-se de uma questatildeo de sentido e de

existecircncia pois ao tender naturalmente ao ser o homem tende agrave completude da

existecircncia e a este niacutevel natildeo tende naturalmente ao natildeo-ser ao nada poreacutem tendo

sido criado por Deus a partir do nada a distacircncia que tem de percorrer ateacute Deus eacute

sempre ameaccedilada pela possibilidade de deslizar para o nada ndash natildeo pela ausecircncia de

Deus que eacute omnipresente mas pela deficiecircncia de ser na criatura enfatizada ao

distanciar-se de Deus por um acto defectivo da vontade

Indubitavelmente o nada possui uma conotaccedilatildeo negativa que o torna

indissociaacutevel do mal mesmo que como este careccedila de estatuto ontoloacutegico e natildeo possa

ser tido como um princiacutepio rival de Deus nem ser considerado co-eterno com Deus

como postulavam os Maniqueus Contra qualquer dualismo Santo Agostinho defende

que nunca algo existiu que natildeo fosse criado por Deus nem que se opusesse a Deus

sendo diferente dele45

Soacute faz sentido equacionar o sentido do mal e do nada em relaccedilatildeo

ao criado ou melhor a partir do momento em que o gesto criador instaura uma

distacircncia entre Deus e o demais O nada natildeo eacute uma realidade positiva baseia-se na

defecccedilatildeo e na ausecircncia de ser e permite que o mal seja experienciado no mundo como

privaccedilatildeo de bem O mal nada tem de substancial ele natildeo eacute poreacutem afecta o ser

43

Em Conf XII 7 7 Santo Agostinho refere que essa distacircncia do Criador ao criado natildeo eacute um

afastamento em termos espaciais permitindo a conclusatildeo oacutebvia de que se trata de uma distacircncia

ontoloacutegica em termos de ser e natildeo de espaccedilo

44 Tal natildeo significa que o nada seja co-eterno com Deus pois o nada natildeo eacute apenas faz sentido com o

gesto criador ndash daiacute que o nada seja considerado tambeacutem como um movimento

45 Cf Conf XII 7 7

48

Soacute quando o amorfismo da mateacuteria eacute ultrapassado pela creatio secunda eacute que o

ceacuteu e a terra saem das trevas ndash o fiat lux marca a possibilidade da perspectivaccedilatildeo

esteacutetica do criado natildeo soacute porque o surgimento da luz vem a par da configuraccedilatildeo

material em termos de existecircncia e visibilidade mas tambeacutem porque essa luz eacute tida

como boa46

Haacute uma triacuteplice articulaccedilatildeo impliacutecita no conceito de forma que irmana

existecircncia bondade e beleza assim o evidencia Santo Agostinho em De vera religione

Pois tudo o que eacute necessariamente possui beleza por mais iacutenfima que

seja portanto ainda que seja um bem iacutenfimo seraacute todavia um bem e procederaacute de Deus

Pois que se a suma beleza eacute um sumo bem tambeacutem a mais iacutenfima beleza seraacute um

iacutenfimo bem Assim todo o bem ou eacute Deus ou procede de Deus Logo ateacute mesmo a

beleza mais iacutenfima proveacutem de Deus Sem duacutevida o que se diz a respeito da beleza pode

tambeacutem ser dito quanto agrave forma47

Eacute a forma que vivifica a mateacuteria e que a retira do limbo entre o ser e o natildeo ser

Tudo o que eacute tendo sido criado por Deus eacute bom qualquer que seja o seu modo (bonum

est quidquid aliquo modo est)48

A existecircncia implica um certo modo ou uma certa

forma de ser nos conceitos species e forma radicam os qualificativos speciosus e

formosus Plotino jaacute havia enunciado a articulaccedilatildeo entre ser e beleza ao defender que

natildeo haacute belo privado de ser nem essecircncia privada de ser belo Para o licopolitano na

falta de belo falta tambeacutem a essecircncia o ser eacute tanto mais ser na medida em que eacute belo49

Santo Agostinho natildeo poderia estar mais de acordo quando em De immortalitate

animae conclui que se natildeo eacute a massa material (moles) mas a species que daacute ao corpo o

seu ser entatildeo a sua plenitude eacute tanto maior quanto mais speciosus e pulchrius for Pela

46

laquoDeus disse ldquoFaccedila a luzrdquo E a luz foi feita Deus viu que a luz era boa e separou a luz das trevasraquo Gn

13-4

47 laquoQuoniam quidquid est quantulacumque specie sit necesse est ita etsi minimum bonum tamen bonum

erit et ex Deo erit Nam quoniam summa species summum bonum est minima species minimum bonum

est Omne autem bonum aut Deus aut ex Deo Ergo ex Deo est etiam minima species Sane quod de

specie hoc etiam de forma dici potestraquo De ver relig XVIII 35 (CCL 32 p 208) A traduccedilatildeo de species

por beleza pretende evitar uma transliteraccedilatildeo que limitaria a nosso ver a verdadeira acepccedilatildeo do trecho e

segue a estrateacutegia utilizada por Boyer na ediccedilatildeo francesa de Confessionum onde este conceito eacute tambeacutem

traduzido por beauteacute Cf Saint Augustin Les aveux trad Freacutedeacuteric Boyer Paris POL 2008

48 Cf Conf XIII 31 46

49 Cf En V 8 9

49

mesma loacutegica substituindo os qualificativos speciosus e pulchrius por deformis o

inverso eacute verdadeiro50

Por outras palavras um corpo tem tanto mais ser quanto mais

speciosus atque pulchrius for e tem menos ser quatildeo mais feio ou disforme for O ser eacute

proporcional agrave species o que seraacute o mesmo que dizer que o ser de um corpo eacute

proporcional agrave sua beleza

Tal como moles e materia surgem lado a lado nos textos agostinianos ndash e na

maioria das vezes com valor intermutaacutevel ndash tambeacutem com os substantivos forma e

species ocorre o mesmo Tal sinoniacutemia natildeo significa poreacutem que o Bispo de Hipona os

empregue indistintamente Em relaccedilatildeo ao binoacutemio materia moles evidencia-se que o

uacuteltimo termo eacute utilizado sobretudo para expressar a ideia de ldquoextensatildeo materialrdquo51

embora muitas vezes surja tambeacutem empregue no sentido de ldquosubstacircnciardquo52

No que

toca ao par forma species haacute que salientar que a ambivalecircncia anteriormente apontada

para o conceito de forma se aplica tambeacutem agrave species pelo que natildeo raras vezes Santo

Agostinho emprega ambos os termos ligando-os pela conjunccedilatildeo ndashque (atque) ou ateacute por

vel53

Quando species se articula com pulcher geralmente este uacuteltimo qualificativo tem

uma funccedilatildeo de reforccedilo do primeiro jaacute que como nota Monteil a pulchritudo evoca um

estado optimizado do corpo54

Se species e forma se podem reportar agrave causa da

perfeiccedilatildeo ou plenitude do ser e do corpo o mesmo jaacute natildeo parece verificar-se

relativamente a pulcher ainda que seja empregue conjuntamente com species A

sinoniacutemia apontada entre forma e species natildeo sucede entre forma e pulcher A

pulchritudo estaacute mais para consequecircncia do que para causa ndash mais para uma

conformidade exterior do que para o princiacutepio que a configura

Fontanier sugere que em relaccedilatildeo agrave forma species cobre um registo mais extenso

e que etimologicamente seraacute a transposiccedilatildeo mais correcta do grego ίδέα55

Segundo

este autor ldquospecies designa toda a beleza desde a epifania de Deus ateacute agrave atracccedilatildeo dos

50

Cf De imm an 8 13

51 Cf Conf VII 1 2 XII 20 29 XII 21 30 XIII 32 47

52 Cf Conf V 10 20 V 11 21 X 6 10 X 43 70 XII 15 19

53 Cf Jean Michel Fontanier La beauteacute selon Saint Augustin Presses Universitaires de Rennes 2008 p 29

54 Cf P Monteil Beau et Laid en Latin Eacutetude de vocabulaire Paris Klincksieck 1964 p 91

55 Cf Fontanier op cit pp 31-38

50

corpos Forma evoca mais a correcccedilatildeo do desenho e corresponde mais a uma geometria

da belezardquo56

Soacute em parte concordamos com tais suposiccedilotildees pois se a palavra species

sugere mais enfaticamente o acircmbito esteacutetico do contexto em que eacute referida parece-nos

que tal ocorre precisamente em virtude de uma crescente especificidade que

esteticamente se comeccedila a definir com o conceito de forma e que se vai concentrando

em termos de acepccedilatildeo e de particularizaccedilatildeo no conceito species ateacute agrave perda de valecircncias

pelo qualificativo pulcher anteriormente referida Quase incorrendo numa redundacircncia

podemos considerar a species uma especificaccedilatildeo da forma que a centraliza com maior

margem no seio do acircmbito esteacutetico Eacute o proacuteprio Fontanier quem refere que ldquoa

diferenciaccedilatildeo da mateacuteria capax specierum em muacuteltiplas species significa

indissociavelmente a especificaccedilatildeo dos seres nas formas proacuteprias e a sua acessatildeo agrave

visibilidade ou melhor agrave perceptibilidade ndash a criaccedilatildeo de substacircncias discretas e

discerniacuteveisrdquo57

Efectivamente o termo forma quase parece insuficiente porque menos

especiacutefico para exprimir em concreto a ideia de beleza mas natildeo corresponderaacute mais a

uma geometria da beleza ou a uma correcccedilatildeo do desenho do que o termo species jaacute que

se ambas forem perspectivadas em relaccedilatildeo agrave ordem que prefiguram percebe-se que

efectivamente haacute uma real sinoniacutemia entre os dois conceitos e que as diferenccedilas no

emprego de cada um satildeo fruto do cuidado do Bispo de Hipona em exprimir a

possibilidade empiacuterica da compreensatildeo esteacutetica dos diferentes modos do ser por vezes

fazendo deles objectos directos dessa perspectivaccedilatildeo sensiacutevel

56

Ibid p 35

57 Ibid p 31 Cf tambeacutem p 32 onde Fontanier afirma que Santo Agostinho utiliza o termo species para

designar a forma imprimida (o τύπος) na mateacuteria informe

51

12 ndash Os fundamentos antropoloacutegicos da esteacutetica agostiniana

A doutrina da criaccedilatildeo ex nihilo natildeo soacute permitiu a Santo Agostinho refutar o

dualismo maniqueiacutesta como lhe facultou um enquadramento propiacutecio agrave diminuiccedilatildeo do

fosso ontoloacutegico entre a esfera divina e a esfera sensiacutevel que o dualismo platoacutenico lhe

legara A forma inovadora como o Bispo de Hipona perspectiva a relaccedilatildeo corpo alma

pode ser interpretada como paradigmaacutetica da relaccedilatildeo esfera sensiacutevel esfera inteligiacutevel58

assumindo especial relevacircncia no entendimento do papel que a beleza dos corpos tem

no percurso ascensional a empreender pela alma ateacute agrave sua origem

Para Santo Agostinho tambeacutem a alma eacute uma criatura mutaacutevel e ainda que nas

primeiras obras seja possiacutevel encontrar expressotildees como ldquoalma divinardquo59

o Bispo de

Hipona natildeo a perspectiva enquanto tal contrariamente aos maniqueus para quem as

almas eram partiacuteculas da natureza divina enclausuradas em corpos temporais na

sequecircncia do conflito primordial entre o bem e o mal O ponto de vista maniqueu que

Santo Agostinho partilhou durante cerca de nove anos culminava de certo modo numa

desresponsabilizaccedilatildeo face ao pecado uma vez que natildeo era verdadeiramente o homem

quem pecava mas a natureza maligna que o enclausurava60

Santo Agostinho rejeita

tambeacutem a hipoacutetese plotiniana da alma como hipoacutestase que abarca a multiplicidade de

almas individuais

58

Na mesma senda Peter Brown afirma que a relaccedilatildeo alma corpo eacute uma sineacutedoque para designar a

humanidade vulneraacutevel face a Deus Cf P Brown Le Renoncement agrave la chair Virginiteacute ceacutelibat et

continence dans le christianisme primitif Paris Gallimard 1995 p76

59 Por exemplo em Contra Acad I 1 1 Cocircnscios de que a expressatildeo divinum animum assume um

sentido figurativo os tradutores agostinianos evitam traduzi-la literalmente optando por acepccedilotildees como

ldquoalma sublimerdquo

60 Cf Conf V 10 18

52

Natildeo sendo aquilo que Deus eacute a alma foi criada por Ele a partir do nada A

questatildeo da origem da alma permaneceraacute no entanto sempre em aberto para o filoacutesofo

africano que natildeo aventa muito mais sobre o assunto para aleacutem da sua convicccedilatildeo de a

alma ter sido criada por Deus e de natildeo ser um corpo61

A convicccedilatildeo de a alma ter sido

criada por Deus ndash a partir do nada e natildeo de si62

ndash pressupotildee desde logo que a alma seja

naturalmente boa embora sujeita agrave degradaccedilatildeo e agrave corrupccedilatildeo A alma natildeo pode dada a

sua natureza ser maacute Ela eacute um bem corruptiacutevel que ocupa uma posiccedilatildeo intermeacutedia entre

Deus e os corpos Nada estaacute mais proacuteximo de Deus do que a alma63

A posiccedilatildeo intermeacutedia da alma natildeo lhe outorga poreacutem o papel de intermediaacuteria

entre a esfera divina e a esfera sensiacutevel como sucedia na perspectiva neoplatoacutenica Para

Santo Agostinho esse papel mediador cabe exclusivamente a Cristo A convicccedilatildeo da

incorporalidade da alma preconiza que esta se constitui como uma substacircncia imaterial

inextensa e indivisiacutevel ndash caracteriacutesticas que o Bispo de Hipona retira do neoplatonismo

No discurso epistolar que dirige a Jeroacutenimo64

Santo Agostinho argumenta a favor da

incorporalidade da alma ao notar que esta se apercebe das ocorrecircncias em diversas

partes do corpo o que implica que a totalidade da alma deva estar presente em cada

parte do corpo Ora se a alma estaacute inteiramente em cada parte do corpo natildeo pode ela

proacutepria ser um corpo65

Sendo uma criatura a alma tal como o corpo estaacute sujeita agrave

mudanccedila ndash a aprendizagem os afectos a deterioraccedilatildeo ou o progresso moral podem

mudar a alma ndash poreacutem diferenciando-se do corpo que eacute mutaacutevel no espaccedilo e no tempo

a alma apenas estaacute sujeita agrave mudanccedila no plano da temporalidade e ainda assim a

mutabilidade da alma natildeo lhe pressupotildee quaisquer mudanccedilas substanciais As mudanccedilas

61

Cf De Gen ad litt VII 28 43 onde Santo Agostinho elenca o que seguramente pode afirmar acerca

da alma Em relaccedilatildeo agrave questatildeo da origem da alma esta obra iniciada em 393 e concluiacuteda em 415 natildeo

difere da posiccedilatildeo evidenciada por Santo Agostinho em Epistola ad Hieronymum de Origine Animae (Ep

166 a Jeroacutenimo acerca da origem da alma) tambeacutem redigida em 415 nem dos quatro textos que compotildeem

De Anima et ejus Origine escritos em 419 como reacccedilatildeo aos dois livros que um jovem filoacutesofo africano

chamado Vicente Victor escrevera criticando a indefiniccedilatildeo da abordagem agostiniana sobre a origem da

alma e apresentando as suas ingeacutenuas conclusotildees

62 Cf De an et orig I 4

63 Cf De quant an 34 77

64 Mais concretamente em Ep 166 2 4 Esta epiacutestola eacute tambeacutem conhecida pelo tiacutetulo De origine animae

hominis

65 Cf De imm an 17 26

53

qualitativas que a existecircncia temporal imprime na alma satildeo alteraccedilotildees acidentais e natildeo

determinam uma perda ou alteraccedilatildeo de identidade Aliaacutes mais do que em mudanccedila ao

niacutevel da alma dever-se-aacute falar em moccedilatildeo uma vez que a sua substancialidade a torna

afim do movimento A substacircncia aniacutemica eacute uma substacircncia viva pois sem vida natildeo

poderia ser o motor do corpo e enquanto motor ela eacute imutaacutevel no sentido em que natildeo

se altera a sua substacircncia A alma eacute mantida na sua existecircncia pela vontade de Deus e a

natureza imutaacutevel de certo tipo de conhecimentos implica necessariamente a identidade

substancial da mente na qual tal conhecimento estaacute presente Aqui reside tambeacutem uma

das provas da imortalidade da alma ainda que ela natildeo partilhe a eternidade de Deus66

Santo Agostinho permaneceraacute irresoluto quanto agrave questatildeo da origem da alma

especialmente no que concerne ao momento em que a alma e o corpo se unem para

constituir o homem Em De beata vita escrito em Cassiciacuteaco no ano 386 o filoacutesofo

exprime as suas reticecircncias quanto agrave possibilidade de algum dia poder encontrar uma

soluccedilatildeo para a anima quaestio67

Mais de uma trintena de anos depois em De anima et

ejus origine as duacutevidas mantecircm-se Durante este periacuteodo vaacuterias foram as obras nas

quais a questatildeo eacute abordada e nas quais o Bispo de Hipona vai elencando hipoacuteteses sem

no entanto tomar partido por alguma delas Se em De beata vita as razotildees sobre a

presenccedila do homem no mundo ndash e consequentemente sobre a ligaccedilatildeo das almas

individuais aos corpos ndash variam entre seis hipoacuteteses68

jaacute em De libero arbitrio escrito

dois anos depois Santo Agostinho apresenta um conjunto de possiacuteveis razotildees mais

reduzido mas tambeacutem mais estruturado sobre a origem das almas com vista agrave defesa

da justiccedila divina a) as almas surgem por propagaccedilatildeo ou descendecircncia tendo sido

criadas a partir da alma pecadora de Adatildeo (hipoacutetese traducianista)69

b) as almas satildeo

individualmente criadas em cada crianccedila que nasce (hipoacutetese criacionista)70

c) as almas

preexistem algures e satildeo enviadas por Deus para os corpos dos que nascem obliterando

66

Sobre a distinccedilatildeo entre imortalidade e eternidade cf De div quaest 83 19

67 Cf De beata vita 5 5 Na uacuteltima obra que escreveu em 430 Santo Agostinho confessa sem pejo que

continua na ignoracircncia em relaccedilatildeo a esta questatildeo Cf Contra Jul op imp II 68

68 Satildeo elas a) o acaso desordenado b) a vontade de Deus c) a natureza d) a necessidade e) a vontade do

homem f) a confluecircncia de algumas ou de todas estas causas Cf De beata vita 1 1

69 Cf De lib arb III 20 55

70 Cf De lib arb III 20 56

54

tudo o que povoou as respectivas vidas preacute-corpoacutereas para se submeterem agrave vida

terrena71

e d) as almas preexistem algures e descem voluntariamente (sponte) ateacute aos

corpos72

Santo Agostinho recusa optar por qualquer uma destas hipoacuteteses para as quais

desenvolve argumentos a favor da justiccedila de Deus e da Sua total inocecircncia

relativamente a quaisquer pecados do homem

A maioria dos comentadores da obra agostiniana defende que dificilmente o

Bispo de Hipona tomaria o partido das duas uacuteltimas hipoacuteteses que implicam a ideia

platoacutenica da preexistecircncia da alma em relaccedilatildeo ao corpo Por exemplo Teske e Madec

defendem que Santo Agostinho preferiria a hipoacutetese criacionista73

jaacute Montcheuil e

Bassols consideram que o Bispo de Hipona teria escolhido a traducianista74

A grande

excepccedilatildeo eacute OrsquoConnell que defende a hipoacutetese da preexistecircncia da alma Segundo este

autor o traducianismo e o criacionismo satildeo mais dificilmente compatiacuteveis com a

incorporalidade da alma feita agrave imagem de Deus OrsquoConnell argumenta ainda que

parece oacutebvio que Santo Agostinho defende a preexistecircncia da alma humana ao

descrever que a alma humana antes de pecar fazia parte da criaccedilatildeo invisiacutevel e espiritual

habitando um paraiacuteso sem lugar em corpos celestiais diaacutefanos tendo sido expulsa para

71

Cf De lib arb III 20 57

72 Cf De lib arb III 20 58

73 R Teske ldquoAugustinersquos Theory of Soulrdquo STUMP et al The Cambridge Companion to Augustine

Cambridge University Press 2001 pp 116-123 G Madec (ed) De libero arbitrio BA Paris 1976 p

580

74 Y de Montcheuil laquoLrsquohypothegravese de lrsquoeacutetat originel drsquoignorance et de difficulteacute drsquoapregraves le De libero

arbitrio de saint Augustinraquo Meacutelanges theacuteologiques Paris Aubier 1946 pp 93-111 L Bassols Santo

Agostinho vida obra e pensamento Lisboa Puacuteblico 2008 p 138 Note-se que a favor da opiniatildeo destes

investigadores concorre uma passagem em De anima et ejus origine I 24 onde Santo Agostinho diz que

Vicente Victor ndash o tal jovem filoacutesofo africano que escrevera dois livros criticando a irresoluccedilatildeo

agostiniana acerca da origem da alma ndash estaacute errado ao afirmar que a alma natildeo eacute tirada da geraccedilatildeo nem do

nada Mais adiante nesta obra (I 26) o Bispo de Hipona acaba por escrever que natildeo afirma nem

desmente que a alma seja dada por geraccedilatildeo Haacute uma corrente traducianista conhecida por

generacionismo em que se faz a defesa de que as almas subsquentes derivam da de Adatildeo sendo

transmitidas de pai para filho OrsquoConnor eacute o seu maior seguidor Cf William P OrsquoConnor The Concept

of the Human Soul according to Saint Augustine PhD Dissertation Faculty of Philosophy of the Catholic

Universityof America 1921 p73 A nossa opiniatildeo concorre com a dos que defendem que o Bispo de

Hipona ter-se-ia aproximado mais da hipoacutetese traducionista geracionista com base em Ep 166 IV 10

onde Santo Agostinho roga a Jeroacutenimo que lhe mostre indiacutecios capazes de contrariar a opiniatildeo de que as

almas derivam da alma do primeiro homem e capazes de provar que as almas satildeo individualmente

criadas como sucedeu para Adatildeo Apesar de notarmos tal preferecircncia natildeo podemos esquecer que o Bispo

de Hipona sempre fez questatildeo de salientar a sua irresoluccedilatildeo relativamente a este problema da origem das

almas poacutes-adamitas

55

o mundo terreno aquando do seu pecado75

Em 415 Na Epiacutestola 166 a Jeroacutenimo acerca

da origem da alma76

Santo Agostinho reitera as suas duacutevidas sobre como as almas poacutes-

adamitas se originavam A alma de Adatildeo foi claramente criada por Deus77

mas a

explicaccedilatildeo relativa ao momento e ao modo da criaccedilatildeo da alma dos homens subsequentes

permanece obscura Seguro eacute tambeacutem que o Bispo de Hipona rejeita a doutrina

platoacutenica da transmigraccedilatildeo ou reincarnaccedilatildeo progressiva das almas A transmigraccedilatildeo

ocorre pois a alma apoacutes a morte torna ao corpo humano poreacutem este corpo humano eacute

agora imortal e nele natildeo se experienciam as miseacuterias do corpo corruptiacutevel Santo

Agostinho vecirc nas proposiccedilotildees de Platatildeo e de Porfiacuterio acerca deste tema uma

possibilidade de acerto caso ambos os autores abdicassem de determinadas concepccedilotildees

harmonizando as suas perspectivas antagoacutenicas78

75

Cf OrsquoConnell ldquoThe Genesi contra Manichaeos and the origin of the soulrdquo REAug 39 1993 pp129-

141 Idem ldquoPre-Existence in the Early Augustinerdquo REAug 25 1980 pp 176-188 Idem ldquoThe Origin of

the Soul in Saint Augustinersquos Letter 143rdquo REAug 28 1982 pp 239-252 A defesa da preexistecircncia da

alma que OrsquoConnell leva a cabo eacute bastante criticada por Carrol Harrison em Beauty and revelation in the

thought of Saint Augustine Oxford Clarendon Press 1992 p 35 OrsquoDaly tambeacutem se manifesta contra a

adopccedilatildeo agostiniana da teoria da preexistecircncia da alma argumentando que a teoria da iluminaccedilatildeo eacute a

prova inequiacutevoca de que o Bispo de Hipona natildeo vai nesse sentido embora o equacione a tiacutetulo

meramente hipoteacutetico em De lib arb I 12 24 e III 20 56-21 59 Cf OrsquoDaly Augustinersquos philosophy of

mind University of California Press 1987 p 199 e Idem ldquoDid St Augustine ever believe in the Soulrsquos

Pre-existencerdquo Augustinian Studies 5 1974 pp 227-235 Na opiniatildeo de Gilson eacute possiacutevel que Santo

Agostinho tenha aceitado numa primeira fase a articulaccedilatildeo entre a teoria da preexistecircncia da alma e a

doutrina da reminiscecircncia que eacute o seu complemento natural Cf Gilson Introduction agrave leacutetude de saint

Augustin 10 ed Paris Vrin 1987 p 95

76 Cf Ep 166 ad Hieronymum de Origine Animae 3 7 - 4 8 Nesta carta o Bispo de Hipona volta a

elencar cinco possiacuteveis formas pelas quais a alma pode ter incarnado no corpo descartando

imediatamente a quinta hipoacutetese segundo a qual a alma humana faria parte da alma divina e salientando

que ateacute agrave data natildeo conseguira ainda subscrever a hipoacutetese criacionista preferida por Jeroacutenimo A razatildeo

de tal relutacircncia assentava no facto de que se as almas fossem criadas por Deus para cada indiviacuteduo

aquando do seu nascimento o sacramento do baptismo deixaria de fazer sentido para as almas das

crianccedilas que natildeo estariam ainda maculadas por qualquer pecado

77 A alma de Adatildeo foi criada conjuntamente com o seu corpo correspondendo portanto agrave hipoacutetese

criacionista Tal como a de Adatildeo tambeacutem a alma de Eva eacute criada ex nihilo pois ela natildeo eacute uma

descendente do primeiro homem apesar de o seu corpo ter sido feito a partir da costela adacircmica nem a

sua alma eacute emanada da de Adatildeo Cf De Gen ad litt X 4 e X 10

78 Cf De civ Dei XXII 27-28 O Bispo de Hipona com certa ingenuidade considera que tanto Platatildeo

como Porfiacuterio poderiam ter-se tornado cristatildeos se conjugassem as suas perspectivas abrindo matildeo de

certas premissas Desde logo o filoacutesofo vecirc uma siacutentese cristatilde na afirmaccedilatildeo de Platatildeo de que as almas natildeo

podem existir para sempre sem os corpos e na afirmaccedilatildeo porfiriana de que a alma purificada e regressada

agrave origem natildeo pode novamente voltar aos males do mundo terreno

56

Se a origem da alma individual poacutes-adamita eacute obscura para Santo Agostinho o

mesmo natildeo se pode dizer quanto ao seu destino O Bispo de Hipona advoga firmemente

a imortalidade da alma sobretudo em De immortalitate animae e em Soliloquia Aleacutem

do jaacute citado argumento baseado na natureza imutaacutevel de certo tipo de conhecimentos

Santo Agostinho adopta tambeacutem o argumento que Platatildeo apresenta do Feacutedon 102a-

107b segundo o qual se a caracteriacutestica definidora da alma eacute o facto de ter vida entatildeo

ela natildeo pode admitir o contraacuterio da vida ndash natildeo pode cessar de viver79

Aleacutem destes

argumentos Santo Agostinho defende a imortalidade da alma considerando que se eacute

nela que reside o conhecimento ndash capacidade de direccionar o pensamento daquilo que

se tem por certo para a descoberta do incerto ndash entatildeo a alma humana soacute pode ser

imortal pois o conhecimento e as relaccedilotildees racionais satildeo realidades imutaacuteveis que a

morte natildeo pode tocar sendo a alma o lugar do conhecimento e da razatildeo ela tambeacutem eacute

imortal80

Na alma residem as verdades eternas ainda que por vezes pareccedila natildeo as

possuir dada a sua ignoracircncia ou esquecimento81

A alma soacute poderia deixar de ser se

fosse separada da razatildeo mas tal natildeo eacute possiacutevel pois a alma natildeo pode ser sem razatildeo 82

Outro argumento baseia-se na divisibilidade infinita da mateacuteria que por muito que a

reduza nunca faz com que caia no nada ora sendo isto verdade para a mateacuteria mais

ainda seraacute para a alma que a vivifica Tender ao nada eacute tender para a morte e na

impossibilidade da alma cair no nada reside tambeacutem a prova da sua imortalidade83

Acrescente-se ainda que tal como o corpo natildeo pode ser privado da sua forma jaacute que por

mais mudanccedilas que sofra natildeo perde a sua natureza corpoacuterea tambeacutem a alma natildeo perde

nunca a sua natureza84

Por vivificar a mateacuteria a alma natildeo eacute um mero acidente eacute vida e

natildeo comporta a sua privaccedilatildeo pois natildeo seria uma alma mas algo animado (como um

corpo) ora nunca a alma poderaacute tornar-se um corpo85

Se a alma recebeu o que a

79

Cf De imm an 4 5 9 16

80 Cf De imm an 1 1-2

81 Cf De imm an 4 5-6

82 Cf De imm an 16 25

83 Cf De imm an 7 12

84 Cf De imm an 8 13

85 Cf De imm an 13 20-21 15 24

57

constitui do Ser Supremo nada haacute que se oponha a esta substacircncia primordial logo

nada haacute que possa retirar agrave alma o que Dele recebeu86

Note-se poreacutem que a defesa da imortalidade da alma humana assume na

perspectiva de Santo Agostinho como que uma estrateacutegia adjuvante na questatildeo da

ressurreiccedilatildeo do corpo Tal ocorre em virtude da tomada de posiccedilatildeo cristatilde em detrimento

da perspectiva platoacutenica

A antropologia agostiniana considera que o homem eacute composto por uma alma e

um corpo (tambeacutem este vindo de Deus87

) funcionando a alma como uma espeacutecie de

arrais do corpo a partir do qual se desenrolam todos os seus movimentos88

Eacute portanto a

alma que governa o corpo e do mesmo modo que este natildeo deve ser considerado como

seu ergaacutestulo tambeacutem a uniatildeo da alma com o corpo terreno natildeo deve pressupor que se

trate de um supliacutecio imerecido em virtude do pecado ou um estado desprovido de todo o

bem Tendo Deus dotado a alma da faculdade de com a sua ajuda se trabalhar e

aperfeiccediloar a si mesma o estado de ignoracircncia e servidatildeo que a existecircncia sensiacutevel

comporta deve ser encarado como uma incitaccedilatildeo e um ponto de partida para o

aperfeiccediloamento Se a alma se recusar a aperfeiccediloar entatildeo efectivamente seraacute merecedora

de puniccedilatildeo pois despreza a faculdade que Deus lhe deu se a alma seguir a sua proacutepria

natureza entatildeo teraacute por recompensa poder retomar o estado puro e preacute-pecador da alma de

Adatildeo no Paraiacuteso Nem mesmo nesta condiccedilatildeo de inocecircncia e perfeiccedilatildeo a alma

individual eacute considerada sem estar associada a um corpo ndash neste caso natildeo a um corpo

corruptiacutevel mas a um corpo celestial espiritual89

Este corpo conforme Santo

Agostinho adverte natildeo deve ser tomado por um espiacuterito90

O corpo espiritual eacute um

corpo translucente e diaacutefano que permite a percepccedilatildeo imediata das almas entre si sendo

directamente iluminado pela luz do Verbo91

O corpo espiritual eacute um corpo glorioso

86

Cf De imm an 12 19

87 Cf De an et orig I 21

88 Cf De quant an 14 23

89 Cf Cor 115

90 Cf De civ Dei XIII 23

91 Eacute possiacutevel encontrar prenuacutencios desta ideia em Plotino mais especificamente em En V 8 3-4 onde eacute

abordado o tipo de visibilidade que os inteligiacuteveis estabelecem entre si e a relaccedilatildeo entre o princiacutepio

racional modelo da beleza corpoacuterea com a beleza primeira da qual deriva e que eacute perspectivada como

uma luz maior

58

que pela ressurreiccedilatildeo conserva a plena materialidade da sua carne e adquire qualidades

suplementares tal como a alma ele deveacutem imortal e impassiacutevel furtando-se aos efeitos

do tempo e da corrupccedilatildeo A grande diferenccedila estaacute na relaccedilatildeo que manteacutem com a alma

Se na existecircncia terrena a alma experiencia as paixotildees do corpo com a ressurreiccedilatildeo quer

o corpo quer a alma vivem em total harmonia num estado de natildeo perturbaccedilatildeo Esta

harmonia eacute fundamentalmente hieraacuterquica caracterizando-se pela obediecircncia absoluta

do corpo aos desiacutegnios da alma O corpo espiritual eacute assim designado por se submeter

totalmente agrave alma92

Santo Agostinho natildeo perspectiva portanto uma libertaccedilatildeo da alma em

relaccedilatildeo ao corpo que habita atraveacutes da morte Para o homem ressurrecto nem o seu

corpo deixa de ser reconheciacutevel no outro mundo nem a sua alma passa a ser um

vago espectro impessoal que desapareccedila no anonimato dos mortos93

Apoacutes a morte o

corpo mortal eacute renovado para acompanhar servilmente a alma auxiliando-a na sua

dignidade94

e impedindo que esta corte peremptoriamente com a ordem sensiacutevel

apesar de natildeo mais estar sujeita a paixotildees Santo Agostinho refere que pela

ressurreiccedilatildeo os santos habitaratildeo o mesmo corpo em que sofreram as agruras da vida

na terra95

aqueles que sofreram martiacuterios manteratildeo no corpo renovado as cicatrizes

pois natildeo satildeo uma deformidade mas um sinal de dignidade e beleza de valor96

Pela

ressurreiccedilatildeo os corpos erguer-se-atildeo como seriam na sua condiccedilatildeo oacuteptima de sauacutede

forccedila e beleza fiacutesica que como anteriormente referimos Santo Agostinho descreve

como dependente de uma harmonia de partes combinada com uma compleiccedilatildeo

agradaacutevel (suavitas coloris)97

A estatura dos corpos teraacute as proporccedilotildees que tinha

atingido ou que deveria ter atingido na juventude98

embora tambeacutem seja aceitaacutevel

92

Cf J Baschet laquoAcircme et corps dans lrsquooccident medieval ndash une dualiteacute dynamique entre pluraliteacute et

dualismeraquo in Archives de sciences sociales des religions 112 Paris EHESS 2000 p 12 onde se

clarifica o paradoxo do corpo glorioso se constituir como um modelo de soberania da alma

93 Em Ep 7 5 13 Santo Agostinho apresenta a ideia de que depois da morte as almas permanecem num

estado de repouso ou possivelmente de purificaccedilatildeo ateacute ao momento da ressurreiccedilatildeo dos corpos

94 Cf De mus VI 5 13 (PL 32 c 1170)

95 Cf De civ Dei XXII 19

96 Cf ibid

97 Cf ibid

98 Cf De civ Dei XXII 16 e 20

59

considerar que se manteraacute a estatura que se tinha por altura da morte desde que se

exclua toda a disformidade Com efeito haacute uma medida de perfeiccedilatildeo que todos os

corpos possuem desde que foram concebidos mas esta medida de perfeiccedilatildeo eacute in

ratione non in mole ndash os corpos possuem-na na razatildeo causal e natildeo na sua

materialidade Pode ocorrer ela nunca chegar a manifestar-se no corpo animal mas

apenas no corpo espiritual como sucede no caso de algueacutem que tenha falecido ainda

na infacircncia99

Nenhum defeito corporal que possa ter existido nesta vida e que se oponha agrave beleza

humana prevaleceraacute na ressurreiccedilatildeo Natildeo haveraacute alopecia100

nem corpos mutilados nem

corpos monstruosos Todas as excrescecircncias naturais mas desgraciosas que um corpo possua

na sua existecircncia terrena desapareceratildeo com a renovaccedilatildeo apoacutes a morte

Esta renovaccedilatildeo do corpo natildeo implica qualquer diminuiccedilatildeo da substacircncia corporal jaacute

que Deus tem o poder para separar o que de errado haja com um corpo natildeo para eliminar esse

componente disforme mas para agrave semelhanccedila de um artiacutefice o redistribuir e misturar em

conformidade com a proporccedilatildeo das partes conservando a quantidade e corrigindo a

disformidade101

A beleza do corpo espiritual seraacute portanto bastante superior agrave beleza do corpo

animal jaacute que o primeiro eacute uma optimizaccedilatildeo do segundo natildeo soacute no que toca agrave sua

corporeidade mas tambeacutem graccedilas agrave sua harmonizaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave alma A beleza do corpo

eacute uma beleza de terceira ordem inferior agrave da alma sendo que a beleza da alma de algum

modo acaba por ser perceptiacutevel tambeacutem no corpo No corpo animal isso ocorre por exemplo

pela percepccedilatildeo da sauacutede jaacute que esta indicia uma vida regrada e sem viacutecios No corpo

espiritual ndash ressurrecto ndash isso ocorre pela clarissima perspicuitas102

que caracteriza o modo

de visibilidade vigente no reino de Deus e que possibilita que na carne espiritual refulja

99

Cf De civ Dei XXII 15

100 Note-se a insistecircncia com que em De civitate Dei o Bispo de Hipona cita os versiacuteculos do Evangelho

de S Lucas Nem um soacute cabelo da vossa cabeccedila se perderaacute (laquoCapillus capitis vestri non peribitraquo Lc 21

18) e Ateacute os cabelos da vossa cabeccedila estatildeo contados (laquoCapilli capitis vestri numerati sunt omnes raquo Lc

12 7) Cf De civ Dei XXII 12 14 19 20

101 Afirma Santo Agostinho que aquilo que eacute mal feito seraacute corrigido aquilo que eacute menos do que conveacutem

seraacute completado e aquilo que eacute mais do que conveacutem seraacute suprimido mantendo-se em todo o caso a

integridade da mateacuteria (laquoProinde nulla erit deformitas quam facit incongruentia partium ubi et quae

prava sunt corrigentur et quod minus est quam decet unde Creator novit inde supplebitur et quod plus

est quam decet materiae servata integritate detraheturraquo De civ Dei XXII 19)

102 Cf De civ Dei XXII 29

60

tambeacutem a beleza da virtude103

Esteticamente o ser humano deve o seu hibridismo ao enlace

entre a beleza da alma ndash uma beleza racional ndash e a beleza do corpo ndash uma beleza formal

positiva na sua espeacutecie poreacutem bastante relativa e que natildeo deixa de estar desvinculada da

beleza racional incorpoacuterea (mas nem por isso imperceptiacutevel) A beleza do corpo exprime a

beleza da forma que lha confere

A beleza da alma eacute seguramente superior agrave beleza do corpo pois a verdade desta

segunda encontra o seu fulcro na primeira e a prova disso eacute que se a alma abandonasse o

corpo este natildeo passaria de um cadaacutever horrendo A beleza da alma estaacute relacionada com o

processo de autoconhecimento pelo qual o homem descobre a sua condiccedilatildeo de imago Dei

Pelo fortalecimento da razatildeo pelo exerciacutecio da feacute e das virtudes (sobretudo da caritas) a alma

aperfeiccediloa-se tornando-se cada vez mais igual a si mesma Novamente eacute aqui oacutebvia a

influecircncia de Plotino pela conformaccedilatildeo da alma agrave sua proacutepria substacircncia e pela exaltaccedilatildeo da

beleza da alma (na qual estatildeo impliacutecitas as virtudes) face agrave beleza do corpo Santo Agostinho

destaca-se do legado neoplatoacutenico contando entre as virtudes da alma a feacute cristatilde que descreve

como sendo mais bela do que a Helena do mito grego104

mas subsiste a ideia de que as

belezas meramente corporais satildeo inferiores agrave beleza das virtudes Tal como a beleza do corpo

tambeacutem a beleza da alma consiste na sua forma mas mais especificamente a forma revela a

sua condiccedilatildeo de imago Dei Pelo pecado a alma torna-se deficiente e natildeo soacute o homem se

torna disforme como perde ser mas a imagem de Deus nunca eacute totalmente apagada105

A beleza eacute da ordem da conversio ndash formaccedilatildeo ou reformaccedilatildeo da imagem de Deus nas

criaturas ao se direccionarem para Ele em resposta ao Seu chamamento106

A fealdade eacute da

ordem da aversio ndash afastamento da criatura em relaccedilatildeo a Deus pela dispersatildeo das faculdades

humanas nas coisas materiais e pela conformaccedilatildeo (conformatio) a elas resultando na

deformaccedilatildeo da imago Dei107

Com efeito logo pelo pecado original o homem ficou

103

Cf De civ Dei XXII 19 onde Santo Agostinho se refere agraves cicatrizes das chagas dos maacutertires que

atraem o olhar dada a beleza da virtude que nelas refulge Esta beleza natildeo eacute do corpo embora esteja no

corpo (in corpore non corporis)

104 Cf Ep 40 4 7

105 Cf De Trin XIV 4 6 e 16 22

106 Cf C Harrison Beauty and Revelation in the Thought of Saint Augustine Oxford University Press

1992 p 178

107 Para a questatildeo da aversio cf De imm an 8 13 Conf XIII 12 13 - 13 14 em relaccedilatildeo agrave questatildeo da

conformatio cf De Trin XIV 16 22 e Rom 122

61

condenado a errar pela regio dissimilitudinis108

na qual para a reformaccedilatildeo da imagem de Deus

(reformatio) eacute totalmente dependente da graccedila divina109

A conversatildeo do homem e a

reformaccedilatildeo da sua alma soacute satildeo possiacuteveis ldquopela feacute na revelaccedilatildeo de Deus no amor e na

esperanccedila que Ele inspira e que leva ao entendimento e ao conhecimentordquo110

A soteriologia

cristatilde preconiza que Deus incarnado assume a disformidade humana para a reformar A graccedila

divina manifesta-se de modo expliacutecito e inequiacutevoco em Cristo cuja humanidade natildeo O

impede de ser a forma ou a beleza suprema de Deus111

O Verbo incarnado eacute pois a via de

ligaccedilatildeo entre as belezas temporais e a sua fonte de beleza superior112

A beleza paradoxal do

Salvador permite que a partir de referentes humanos os atributos divinos sejam

compreensiacuteveis capacitando o homem para alcanccedilar realidades que de outro modo

permaneceriam meras abstracccedilotildees

A coexistecircncia da forma servi e da forma Dei em Cristo113

incentiva e demonstra a

correcta utilizaccedilatildeo dos sentidos corporais cujas impressotildees natildeo devem ser assumidas pelo

homem como realidades finais ou como objectivos em si mesmas Ao inveacutes os sentidos

corporais constituem uma propedecircutica para a utilizaccedilatildeo dos sentidos espirituais soacute eles aptos

a captar a expressatildeo da natureza divina presente em todas as criaturas desde a mais pequena

flor ou fio de erva114

A exemplaridade de Cristo significa a possibilidade de pela feacute e pelo

amor o homem se reformar adquirindo algo da Sua beleza115

conformando-se-Lhe Cristo eacute

pois a revelaccedilatildeo da beleza de Deus que torna o homem belo a Sua acccedilatildeo mediadora permite

que a imagem de Deus no homem possa restaurar-se e devir semelhanccedila (similitudo)

108

Cf Conf VII 10 16

109 Cf Psa 45 14

110 Cf C Harrison op cit p 178 De Trin IV 18 24

111 Cf De mus V 17 56 De Trin VI 10 11

112 Cf Div quaest 83 23 laquoomne pulchrum pulchritudinoraquo

113 Cf De Trin II 5 9

114 Cf De civ Dei X 14 e 17

115 Cf De civ Dei X 6

62

13 ndash A alma e os sentidos corpoacutereos

A teoria agostiniana da sensaccedilatildeo assenta na sua concepccedilatildeo de humanidade ndash o

homem eacute um animal rationale mortale116

um composto de alma espiritual e corpo

material sendo que o corpo natildeo tem qualquer capacidade de actuar sobre a alma e que

nenhuma modificaccedilatildeo causada pelos sentidos corpoacutereos pode afectar por si a mente

Seguindo fielmente o princiacutepio neoplatoacutenico que pressupotildee que o que eacute inferior natildeo

pode agir sobre o que lhe eacute superior117

o Bispo de Hipona tem por premissas que na

hierarquia natural soacute a alma pode instrumentalizar o corpo e que este natildeo tem quaisquer

capacidades sem a alma que o vivifica Nesta senda a sensaccedilatildeo soacute pode ser uma

actividade imputaacutevel agrave alma e natildeo ao corpo ainda que esta actividade da alma decorra a

partir dos oacutergatildeos dos sentidos118

A grande questatildeo reside portanto no modo como a

alma racional faz uso dos oacutergatildeos dos sentidos corpoacutereos na experiecircncia sensiacutevel

Para ocorrer sensaccedilatildeo eacute condiccedilatildeo necessaacuteria haver um encontro do sujeito

atraveacutes dos oacutergatildeos dos sentidos com um objecto poreacutem esta condiccedilatildeo necessaacuteria natildeo eacute

suficiente ndash a sensaccedilatildeo ultrapassa o mero encontro fiacutesico que estaacute na sua base jaacute que

implica a consciecircncia da mente A presenccedila da alma no corpo natildeo eacute da ordem da difusatildeo

espacial pois esta natildeo tem qualquer extensatildeo ou medida aferiacutevel ndash a sua grandeza eacute o

seu poder119

ndash pelo que a alma natildeo estaacute presente parcialmente nas diversas partes do

corpo mas sim como um todo em cada uma destas partes atraveacutes de uma espeacutecie de

116

De ord II 11 31 cf De quant an 25 47 De Trin VII 4 7 XV 7 11

117 Cf De mus VI 5 8

118 De Gen ad lit III 5 7 laquosentire non est corporis sed animae per corpusraquo

119 Cf De quant an 32 69

63

impulso corporal ou ldquoatenccedilatildeo vitalrdquo120

que se revela nas acccedilotildees do corpo Ora a

consciecircncia dos estados corporais eacute precisamente uma parte da presenccedila vivificante

da alma no corpo manifesta na capacidade dela experienciar atraveacutes do seu corpo dor

ou prazer de acordo com as variaccedilotildees nas condiccedilotildees da sua actividade

instrumentalizadora121

Se a acccedilatildeo da alma sobre o corpo ndash de acordo com a percepccedilatildeo

que tem das afecccedilotildees por ele sofridas no encontro com um objecto sensiacutevel ndash se

processar de modo harmonioso e faacutecil por conveniecircncia entre o sensoacuterio e o sensiacutevel

a alma experiencia uma sensaccedilatildeo de prazer Se ao inveacutes a acccedilatildeo da alma sobre o

corpo se revelar difiacutecil e obstaculizada pela inconveniecircncia entre os oacutergatildeos sensoacuterios e

a realidade sensiacutevel a sensaccedilatildeo de desprazer ou mesmo de dor seraacute experienciada122

Em nenhum dos casos a alma sofre algo pelo corpo ndash a alma sente sim atraveacutes do

corpo e no corpo

Embora Santo Agostinho natildeo o explicite eficazmente ainda neste seguimento eacute

importante compreender que os diversos graus de resistecircncia que os objectos sensiacuteveis

vatildeo impondo aos oacutergatildeos dos sentidos e que condicionam se o resultado da experiecircncia eacute

uma sensaccedilatildeo de prazer ou de desprazer natildeo correspondem necessariamente agraves

dificuldades que a alma vai encontrando na natureza corpoacuterea de acordo com as suas

capacidades Por exemplo os prazeres da carne satildeo ao niacutevel sensoacuterio reconhecidos

pela alma como sensaccedilotildees de prazer efectivo mas isto significa que a alma os

reconhece como apraziacuteveis para o corpo e natildeo para si mesma Na perspectiva

agostiniana os prazeres da carne resultam de uma harmonizaccedilatildeo entre os oacutergatildeos

sensoacuterios ndash que a alma obrigatoriamente reconhece como tal ndash com um corpo exterior

mas relativamente agrave natureza da alma soacute pode reconhecer-se uma desadequaccedilatildeo entre

esta e a natureza carnal de tais experiecircncias Uma alma aperfeiccediloada natildeo estaacute atenta a

120

Ep 166 2 4 laquoquadam vitali intentioneraquo

121 Cf De mus VI 5 9-10 De Gen ad lit VII 19 25

122 Em De musica Santo Agostinho explica a experiecircncia do prazer e do seu contraacuterio de acordo com o

seguinte a actividade da alma sobre o corpo pode desenvolver-se de modo congruente ou encontrar

resistecircncias Natildeo eacute na alma mas no corpo que os objectos exteriores provocam um efeito que se opotildee ou

harmoniza com o movimento dos oacutergatildeos Eacute a partir do momento em que a alma toma consciecircncia deste

processo que ocorre a sensaccedilatildeo Designamos por dor ou labor (dolor aut labor) a sensaccedilatildeo que se

processa dificilmente por natildeo haver adequaccedilatildeo entre o objecto sensiacutevel experienciado e o movimento do

oacutergatildeo que eacute afectado pela experiecircncia desse objecto sensiacutevel Designamos por prazer (voluptas) ao acto

pelo qual a alma atende ao processo em que faz comunicar o corpo que lhe estaacute associado com um corpo

estranho que lhe eacute conveniente Cf De mus VI 5 9

64

este tipo de prazeres sensiacuteveis e por isso natildeo os procura Daiacute que Santo Agostinho decirc a

entender que proporcionalmente agraves dificuldades que experiencia a alma se torna mais

ou menos atenta agraves afecccedilotildees do corpo Quanto mais rebelde for o corpo quanto maior

for a necessidade de a alma o submeter agrave sua acccedilatildeo maior empenho haveraacute entre a alma

e a materialidade que caracteriza o alvo da sua acccedilatildeo ndash o que obviamente natildeo eacute

desejaacutevel Eacute de acordo com os seus meacuteritos que a alma vai encontrando maior ou menor

dificuldade relativamente agrave natureza corpoacuterea123

Dois processos concorrem portanto no fenoacutemeno da percepccedilatildeo sensiacutevel

segundo a perspectiva agostiniana o primeiro eacute respeitante agrave acccedilatildeo do objecto exterior

sobre o corpo e o segundo eacute respeitante agrave acccedilatildeo da alma sobre o corpo Este duplo

movimento infringido ao corpo natildeo o subtrai agrave sua passividade jaacute que em qualquer um

destes processos o princiacutepio activo nunca eacute o corpo124

A sensaccedilatildeo eacute exclusivamente do

acircmbito da alma ainda que a alma sinta por intermeacutedio do corpo Em De quantitate

animae Santo Agostinho estabelece a definiccedilatildeo da sensaccedilatildeo como ldquo uma impressatildeo

corporal que por si mesma natildeo escapa agrave almardquo125

e em De musica como a atenccedilatildeo dada

pela alma a propoacutesito das modificaccedilotildees do corpo face a um objecto exterior ldquoo proacuteprio

sentir eacute [a alma] mover o corpo em resposta ao movimento que nele foi produzidordquo126

No fundo estamos perante uma atenccedilatildeo por parte da alma em relaccedilatildeo a uma mudanccedila

fiacutesica nos oacutergatildeos dos sentidos Os cinco sentidos exteriores apenas indiciam o contacto

123

Cf De mus VI 5 9

124 Eacute comum pensar-se que num primeiro niacutevel o corpo humano pelo simples facto de ter o privileacutegio de

estar associado a uma alma pudesse assumir um papel activo face ao encontro com um qualquer objecto

sensiacutevel inanimado poreacutem assim natildeo ocorre Na perspectiva agostiniana natildeo haacute a este niacutevel risco de se

estar a inverter a premissa de que o inferior natildeo actua sobre o superior pois a sua teoria da sensaccedilatildeo

aborda a dualidade ontoloacutegica consignando agrave alma um papel preponderante e embora o corpo nunca seja

abordado como estando desligado dela a verdade eacute que natildeo passa de um corpo como todos os outros

laacutebil e material Portanto a acccedilatildeo seraacute sempre de um corpo sobre outro corpo ndash natildeo havendo problemas

em considerar que o corpo exterior ao sujeito que experiencia a sensaccedilatildeo assuma nesse processo o papel

activo em relaccedilatildeo ao corpo do sujeito A premissa a empregar natildeo seraacute a das hierarquias naturais mas a

que preconiza que a causa se impotildee ao efeito Daiacute que quando em De musica o disciacutepulo vecirc grande

dificuldade em considerar que os nuacutemeros sonoros que satildeo materiais devem ter proeminecircncia sobre os

nuacutemeros que se elevam no sujeito quando experiencia uma sensaccedilatildeo o mestre responde-lhe que natildeo haacute

por que vacilar em fazer tal consideraccedilatildeo jaacute que natildeo se estaacute a hierarquizar o corpo acima da alma mas

nuacutemeros acima de nuacutemeros preferindo a causa ao efeito Cf De mus VI 4 6-7

125 De quant an 30 59 laquosensus est corporis passio per seipsam non latens animam [hellip]raquo

126 De mus VI 5 15 laquoCum igitur ipsum sentire movere sit corpus adversus illum motum qui in eo factus

est [hellip]raquo

65

com os objectos sensiacuteveis havendo dois modos de considerar o resultado deste contacto

entre o sensiacutevel e os oacutergatildeos sensitivos podemos a este niacutevel falar em a) impressotildees (dos

objectos sobre o corpo) e b) afecccedilotildees (do corpo pelos objectos) Note-se que a este niacutevel

natildeo haacute ainda sensaccedilatildeo pois conforme anteriormente referimos o encontro entre o

sujeito e o objecto apesar de ser condiccedilatildeo necessaacuteria para que ocorra a sensaccedilatildeo natildeo eacute

poreacutem condiccedilatildeo suficiente Soacute quando a alma estaacute atenta agraves afecccedilotildees do corpo face a

um objecto exterior eacute que se daacute a sensaccedilatildeo Por outras palavras a sensaccedilatildeo eacute a resposta

consciente da alma face agraves impressotildees no corpo A impressatildeo pertence ao corpo

(princiacutepio passivo) e a sensaccedilatildeo soacute pertence agrave alma (princiacutepio activo) Para o Bispo de

Hipona a sensaccedilatildeo eacute um caso particular da utilizaccedilatildeo do corpo pela alma pelo que natildeo

haacute razatildeo para nos admirarmos que a alma agindo num invoacutelucro mortal ressinta as

modificaccedilotildees do corpo

Em De quantitate animae Santo Agostinho analisa o processo da visatildeo

questionando o seu interlocutor Evoacutedio sobre o que ocorre aos olhos quando vecircem

Evoacutedio comeccedila por invocar determinadas analogias relacionadas com a percepccedilatildeo de

emoccedilotildees e de comoccedilotildees para explicar o processo visual afirmando que os olhos

experienciam a visatildeo tal como um doente experiencia uma doenccedila ou um homem que

deseja experiencia desejo ou um homem que teme experiencia temor ou um homem

alegre experiencia alegria127

Imediatamente Evoacutedio eacute levado a considerar as

dificuldades da assimilaccedilatildeo do acto visual aos sentimentos quando Santo Agostinho lhe

pede para que considere se os olhos vecircem tudo o que eacute experienciado e se tudo o que

experienciamos eacute por noacutes visto A partir deste questionamento o disciacutepulo acaba por

concluir que natildeo haacute uma correspondecircncia necessaacuteria entre o que eacute visto e o que eacute

sentido ndash entre sensaccedilatildeo e sentimento ndash jaacute que por exemplo quando vemos algo que

nos suscita amor natildeo podemos ver em si esse amor128

O sentimento impotildee uma

compenetraccedilatildeo fiacutesica daquilo que eacute sentido ora se ver fosse sentir (sentimentos) entatildeo

os olhos natildeo poderiam ver nada mais aleacutem de si mesmos Esta hipoacutetese eacute absurda jaacute

que o que eacute visto natildeo satildeo os proacuteprios olhos ou os seus estados ndash o que eacute visto eacute algo de

ordem necessariamente exterior ao sujeito que vecirc Assim quando Evoacutedio vecirc Santo

Agostinho e Santo Agostinho vecirc Evoacutedio eles natildeo se estatildeo a experienciar a sentir um

ao outro o que requereria a tal compenetraccedilatildeo dos corpos

127

Cf De quant an 23 42

128 Cf Ibid

66

A fisiologia da visatildeo eacute explicada pelo Bispo de Hipona como tendo por base

uma emissatildeo visual a partir dos olhos ateacute ao objecto visiacutevel129

Esta emissatildeo que a partir

dos olhos atinge o objecto eacute explicada por Santo Agostinho como uma espeacutecie de

instrumentalizaccedilatildeo da emissatildeo visual pelos olhos anaacuteloga agrave manipulaccedilatildeo de uma vara Eacute

Evoacutedio quem verbaliza no diaacutelogo esta analogia ldquoTal como se ao tocar-te com uma

vara eu efectivamente te tocaria e sentiria que te estava a tocar sem no entanto estar no

siacutetio onde te toco assim quando digo que vejo por meio da vista ainda que eu natildeo

esteja nesse lugar natildeo sou obrigado a reconhecer que natildeo sou eu quem vecircrdquo130

Se os

olhos vecircem um objecto exterior que estaacute a alguma distacircncia eacute porque a alma percebe no

ponto em que os olhos vecircem 131

Ainda que a alma possa perceber para laacute do corpo ela

apenas existe no corpo e natildeo eacute extensiacutevel agrave mateacuteria Sem a alma os olhos jamais

poderiam sofrer a impressatildeo da visatildeo132

Este princiacutepio eacute aliaacutes extensiacutevel a todos os

restantes oacutergatildeos sensiacuteveis corpoacutereos Num outro diaacutelogo agostiniano ndash em De musica ndash

o disciacutepulo comenta que seria preferiacutevel atribuir directamente agrave alma todos os

movimentos em vez de atribuir ao corpo a funccedilatildeo motora jaacute que este apenas lhe

obedece133

O Bispo de Hipona responde que se assim fosse quanto mais se

performassem os movimentos maior seria o conhecimento Ora a praacutetica pode levar ao

aperfeiccediloamento dos movimentos do corpo independentemente de qualquer

conhecimento Fica assim assente que do mesmo modo que natildeo haacute correspondecircncia

directa entre sensaccedilatildeo e sentimento134

tambeacutem natildeo haacute entre sensaccedilatildeo (sensus) e

conhecimento (scientia)

129

De quant an 23 43 Evoacutedio diz a este propoacutesito laquoomnino ego video sed emisso viso per oculos

videoraquo Em De mus VI 5 10 fala-se num agente luminoso laquoluminosum aliquid in oculisraquo e em De Trin

XI 2 4 em laquoradiis oculorumraquo Cf Ep 137 2 8

130 De quant an 23 43 laquoSed quemadmodum si virga te tangerem ego utique tangerem idque sentirem

neque tamen ego ibi essem ubi te tangerem ita quod dico visu me videre quamvis ego ibi non sim non

ex eo cogor fateri non me esse qui videamraquo

131 Cf Ep 137 2 6

132 Cf De quant an 30 60

133 De mus I 4 9 laquoSed cum sciens animus hoc imperat corpori magis hoc scienti animo quam

servientibus membris tribuendum putoraquo

134 Embora tambeacutem no latim os verbos que dizem respeito a estes substantivos sejam intermutaacuteveis

quando Santo Agostinho fala em sensus no sentido de sensaccedilatildeo costuma acoplar-lhe o verbo patior e

quando fala de sensus no sentido de sentimento costuma preferir a forma verbal sentire sobretudo

quando se refere na mesma passagem agraves sensaccedilotildees e aos sentimentos

67

A anaacutelise agostiniana da sensaccedilatildeo auditiva eacute desenvolvida em De musica e os seus

pressupostos em nada diferem daquilo que o Bispo de Hipona expotildee em De quantitate

animae relativamente ao processo visual Quase numa intuiccedilatildeo das ondas sonoras da

fiacutesica moderna Santo Agostinho refere que o fluido que circula no ouvido eacute posto em

movimento pela percussatildeo do ar que o som provoca Mesmo antes de perceber as

modificaccedilotildees que o oacutergatildeo auditivo sofre em virtude desse movimento jaacute a alma agia

sobre esse oacutergatildeo comunicando-lhe vida Pela audiccedilatildeo a alma natildeo suspende essa

actividade mas performa uma outra ao empreender sobre ele um acto consciente dos

seus movimentos No seguimento das impressotildees fiacutesicas produzidas sobre o corpo quando

um objecto intersecta a luz dos olhos ou quando um som invade os ouvidos ou quando

as emanaccedilotildees dos corpos atingem as narinas ou quando os sabores invadem o palato ou

quando o resto do corpo estaacute em contacto com objectos exteriores ou mesmo quando no

proacuteprio corpo algum oacutergatildeo muda de lugar ndash em suma quando ele eacute afectado por um

impulso interior ou exterior ndash a alma ldquosofrerdquo com o processo sendo isso um efeito da sua

proacutepria actividade e natildeo do corpo

Em De Genesi ad litteram eacute possiacutevel verificar que o Bispo de Hipona estava jaacute

familiarizado com o funcionamento do sistema nervoso135

jaacute que se refere agraves tenues

fistulae que unem o ceacuterebro aos olhos aos ouvidos agraves narinas e ao palato para transmitir

os sons os odores e os sabores Quanto ao tacto Santo Agostinho diz que este se exerce

por todo o corpo atraveacutes da espinal medula e dos seus finiacutessimos canais que divergem da

coluna vertebral espalhando-se por todos os membros136

O ceacuterebro eacute o centro dos

135

As descobertas meacutedicas a este propoacutesito remontam ao seacutec III aC mais concretamente aos estudos de

dois fisiologistas fundadores da Escola de Medicina de Alexandria ndash Heroacutefilo e Erasiacutestrato Este uacuteltimo

foi o que mais contribuiu para a fisiologia da sensaccedilatildeo tendo praticado inuacutemeras experiecircncias

dissecaccedilotildees e vivissecccedilotildees em prisioneiros de guerra e em animais A ele se deve a distinccedilatildeo entre ceacuterebro

e cerebelo e entre nervos motores e nervos sensoacuterios bem como a descriccedilatildeo das meninges membranas

cavidades e ventriacuteculos cerebrais Foi o primeiro meacutedico a associar o nuacutemero de sulcos e circunvoluccedilotildees

cerebrais ao grau de desenvolvimento intelectual Muitos dos conhecimentos meacutedicos do Bispo de

Hipona podem ter tido como fonte Aulus Cornelius Celsus ndash um enciclopedista romano do seacutec I que

escreveu os famosos oito livros de De medicina ndash e que o Bispo de Hipona cita em Soliloquiorum I 12

21 Para um estudo aprofundado acerca dos conhecimentos meacutedicos e das fontes sobre esse tema no

tempo de Santo Agostinho cf Shelley Reid The first dispensation of Christ is medicinal Augustine and

roman medical culture unpublished PhD thesis Vancouver University of British Columbia 2008 URL

httpscircleubccabitstreamubc_2008_fall_reid_shelley_annettepdf

136 Cf De Gen ad lit VII 13 20 e Ep 137 2 8

68

movimentos sensiacuteveis137

e os sentidos satildeo assim uma espeacutecie de mensageiros da alma138

ou portas do corpo139

Os sentidos da visatildeo e da audiccedilatildeo foram considerados por Santo Agostinho

superiores aos demais pelo menos numa primeira fase em que o filoacutesofo africano

adoptou certos pressupostos de origem estoacuteica para contrariar os ceacutepticos Estes uacuteltimos

consideravam toda a realidade corpoacuterea deceptiva consideraccedilatildeo que se estendia aos

sentidos devendo as suas impressotildees falazes desmerecer qualquer atenccedilatildeo Por seu turno

os estoacuteicos consideravam que os sentidos corpoacutereos podiam ser penetrados pela razatildeo e

mesmo ajuizar as belezas sensiacuteveis Eacute nesta senda que Santo Agostinho inicialmente

defende que os sentidos superiores ndash visatildeo e audiccedilatildeo ndash mantecircm alguma contiguidade com

a razatildeo pois permitem que as suas impressotildees sejam julgadas pela mente segundo

categorias racionais Nos restantes sentidos haacute apenas vestiacutegios da razatildeo quanto agrave sua

finalidade140

ao passo que nos sentidos superiores pode haver um prazer que afecta a

razatildeo em virtude da presenccedila do numerus141

Em Contra Academicos com o intuito de

refutar os ceacutepticos Santo Agostinho defende ateacute os sentidos mais baixos dizendo que

estes natildeo satildeo essencialmente maus ou estranhos a Deus e que natildeo enganam por si

mesmos mas pelo modo como satildeo afectados142

pelo que as suas impressotildees devem ser

137

Cf De Gen ad lit VII 20 42

138 Cf De Gen ad lit VII 14 20

139 Cf De Gen ad lit VII 20 42

140 Cf De ord II 11 33

141 Cf De ord II 11 32 (acerca da razoabilidade nos sentidos) II 14 39 (acerca da audiccedilatildeo) e II 15 42

(acerca da visatildeo) Em De libero arbitrio II 7 17-19 a visatildeo e a audiccedilatildeo satildeo descritas como superiores em

virtude de conseguirem abarcar uma totalidade enquanto que o olfacto o paladar e o tacto soacute alcanccedilam

partes os exemplos que usa para ilustrar esta ideia de apreensatildeo total e apreensatildeo parcial por parte dos

sentidos satildeo o da audiccedilatildeo de uma mesma palavra escutada por dois sujeitos (ambos conseguem ouvir

integralmente a palavra ao mesmo tempo) e o da visatildeo de uma imagem (tambeacutem abarcada

simultaneamente na totalidade por sujeitos distintos) em contraposiccedilatildeo dois sujeitos distintos natildeo podem

saborear cheirar ou tocar simultaneamente a mesmiacutessima porccedilatildeo de algo cada sujeito soacute tem acesso agrave

respectiva parte do objecto na sensaccedilatildeo Cf De lib arb II 14 38 onde Santo Agostinho admite que tais

analogias estatildeo longe de ser perfeitas Em De Trinitate XI I 1 o Bispo de Hipona refere-se novamente agrave

visatildeo como sendo o sentido corporal mais perfeito e mais proacuteximo da visatildeo intelectual corroborando o

seguinte trecho de De Genesi ad litteram XII 16 32 laquo[hellip] quinque sensus cum ipso ubi sola excellit

oculorum sensu efficit sicut in libro quarto itemque in septimo disseruisse me recolo Est autem hoc

coelum oculis conspicuum unde luminaria et sidera effulgent excellentius utique omnibus corporeis

elementis sicut oculorum sensus excellit in corporeraquo

142 Cf Contra Acad III 11 26 De vera relig 33 62

69

correctamente ajuizadas e utilizadas143

Santo Agostinho chega a utilizar a expressatildeo

ldquojulgamento dos sentidosrdquo (judicium sensus) equacionando-os com a reacccedilatildeo prazer

dor144

e a consideraacute-los como arautos da verdade a que a razatildeo aponta como index

veritatis145

Nas obras de maturidade o processo de apreciaccedilatildeo da beleza requer um

julgamento raramente reportado aos sentidos e mais consistente com determinadas

passagens dos diaacutelogos de Cassiciacuteaco que o ligam a um juiacutezo de inteligecircncia146

A

distinccedilatildeo entre sentidos superiores e sentidos inferiores perde forccedila na teoria agostiniana

da sensaccedilatildeo e deixa de fazer sentido a ideia de que os primeiros satildeo capazes de uma

resposta esteacutetica adequada ao passo que os segundos natildeo o satildeo ateacute porque esta ideia

pressupunha uma certa antinomia entre os conceitos de pulchrum e aptum que como

veremos no terceiro capiacutetulo deste ensaio natildeo procede Pelo menos no mundo sensiacutevel

haacute uma relaccedilatildeo estrita entre o pulchrum e o aptum que gora a ideia de que os sentidos

mais baixos estariam demasiado orientados para o aptum e por isso mais presos ao

prazer do que os sentidos superiores Essa orientaccedilatildeo dos sentidos inferiores dificultaria a

suspensatildeo que a contemplaccedilatildeo esteacutetica pressupotildee daiacute que a visatildeo e a audiccedilatildeo

supostamente orientadas para o pulchrum fossem capazes de uma resposta esteacutetica mais

adequada que os demais sentidos O juiacutezo da beleza ou acto estimativo esteacutetico eacute

considerado por fim do domiacutenio exclusivo da razatildeo incorpoacuterea Soacute ela eacute capaz de

reconhecer os nuacutemeros inteligiacuteveis que presidem a todas as belezas natildeo devendo

considerar-se qualquer reflexividade em relaccedilatildeo aos sentidos

Em De musica Santo Agostinho parece antecipar a tendecircncia contemporacircnea de

natildeo limitar os sentidos corpoacutereos aos tradicionais cinco prevendo a propriocepccedilatildeo como

um sentido corpoacutereo por meio do qual agrave semelhanccedila dos demais sentimos desconforto ou

143

Cf De vera relig 54 106

144 Cf De mus VI 10 27 VI 9 23 Em De libero arbitrio Santo Agostinho chega tambeacutem a admitir que

os sentidos corpoacutereos exercem juiacutezos sobre o corpo em virtude de afectarem prazer ou dor face a um

objecto mas a argumentaccedilatildeo desenvolvida parece recair mais sobre uma reacccedilatildeo instintiva e natildeo

reflexiva como pressuporia a acccedilatildeo judicativa Cf De lib arb II 5 12 Aleacutem disso Santo Agostinho

refere que eacute esse ldquojuiacutezordquo que os sentidos corpoacutereos exercem sobre o corpo que leva o sujeito a repulsar ou

a aceitar aquilo que afectou os seus sentidos mas pouco antes na mesma obra (cf De lib arb II 3 8)

afirmara que a repulsatildeo ou procura das coisas vistas por um animal eacute algo que se distingue do sentido da

visatildeo jaacute que este estaacute nos olhos enquanto que o outro estaacute dentro da proacutepria alma ndash referindo-se

claramente ao sentido interior e a ele atribuindo o tal juiacutezo exercido sobre o corpo

145 Cf De mus VI 7 18

146 Cf De Trin VIII 4 5 IX 6 11 XII 2 2 De civ Dei VIII 5-7 XI 16 e 27 De lib arb II 5 12

70

prazer Afirma o Bispo de Hipona que a actividade da alma desencadeia certas

necessidades no corpo agraves quais ela estaacute atenta Entre estas necessidades conta-se a fome

ou qualquer outro sentimento afim Descreve Santo Agostinho que se cometermos um

excesso o estocircmago fica sobrecarregado e torna os movimentos do corpo mais peniacuteveis

Como esta situaccedilatildeo natildeo escapa agrave alma o desprazer faz-se sentir A proacutepria atenccedilatildeo da

alma acompanha o acto pelo qual o excesso de comida eacute rejeitado e tambeacutem a facilidade

desta evacuaccedilatildeo gera prazer ou dor147

Quando por exemplo uma doenccedila se instala e

impotildee um problema ao organismo a alma presta-lhe atenccedilatildeo procurando debelar as

deficiecircncias ou as causas da degradaccedilatildeo do corpo e eacute em virtude deste acto acompanhado

da sua consciecircncia que a alma sente a doenccedila e o sofrimento148

A descriccedilatildeo que o Bispo

de Hipona faz em relaccedilatildeo agraves sensaccedilotildees que o proacuteprio corpo desencadeia pelos seus

processos fisioloacutegicos encontra perfeita adequaccedilatildeo agraves conceptualizaccedilotildees que a esteacutetica

somaacutetica contemporacircnea contempla

A sensaccedilatildeo natildeo nasce da razatildeo ldquomas da vista do ouvido do olfacto da palavra

do tactordquo149

desde logo isso pressupotildee que seja ontologicamente fraca Diz o Bispo de

Hipona que os sentidos regulam a vida humana durante a infacircncia e a primeira juventude

mas soacute a miseacuteria e o mal deles resultam se natildeo forem sujeitos ao controle da razatildeo o mais

cedo possiacutevel150

jaacute que ldquoDeus natildeo se oferece aos sentidos corpoacutereosrdquo151

Os sentidos

devem ser tratados como escravos da alma e devem ser correctamente utilizados com

consciecircncia de que as impressotildees deles resultantes equivalem a um estaacutedio bastante inicial

e ainda preparatoacuterio do percurso que a alma deve empreender ateacute agrave sua origem Os

sentidos corpoacutereos apenas manifestam o contacto com os objectos exteriores natildeo se lhes

podendo imputar qualquer outra valecircncia Assim os sentidos natildeo enganam pois a

verdade ou a falsidade natildeo estaacute neles mas no julgamento da alma relativamente agraves

147

Cf De mus VI 5 9

148 Cf Ibid

149 De quant an 29 57 laquoNon autem sentimus ratione sed aut visu aut auditu aut olfactu aut gustatu

aut tacturaquo

150 Cf De Gen cont Man I 20 31

151 De vera relig 36 67 laquo[hellip]Deus enim non corporalibus sensibus subiacet [sed ipsi menti

supereminet]raquo

71

impressotildees corpoacutereas152

Compete agrave alma responder conscientemente agraves afecccedilotildees do

corpo sentindo prazer ou dor e ajuizando sobre a legitimidade de tais sensaccedilotildees A alma

natildeo deve distrair-se com as impressotildees do corpo ficando a elas presa nem deve pretender

retirar felicidade dos prazeres sensiacuteveis Quando usadas correctamente as impressotildees

veiculadas atraveacutes dos sentidos podem funcionar como uma propedecircutica para a

verdadeira visatildeo da alma Os perigos da sensaccedilatildeo residem na forma desviante que pode

assumir a consciecircncia da alma em relaccedilatildeo agraves afecccedilotildees do corpo A attentio153

que define a

sensaccedilatildeo pode redundar em curiositas que na terminologia agostiniana corresponderaacute a

um desejo (appetitus) inquietante orientado para o conhecimento das coisas sensiacuteveis

como um fim em si mesmo ao inveacutes de o assumir como um meio para alcanccedilar um

conhecimento mais elevado154

Outra modalidade da curiositas eacute a tentaccedilatildeo que o homem

sente em se direccionar para as realidades espirituais com o ldquoolho terrenordquo155

No fundo a

inclinaccedilatildeo para ver as coisas sensiacuteveis como um fim e a inclinaccedilatildeo para perscrutar a

verdade atraveacutes das sensaccedilotildees satildeo uma e a mesma coisa ndash traduzem-se ambas no amor

inquietante pelo conhecimento vatildeo156

Enquanto que a attentio eacute saudaacutevel e desejaacutevel a curiositas natildeo o eacute ela eacute jaacute a

transformaccedilatildeo da attentio numa afecccedilatildeo da alma Obviamente natildeo de uma afecccedilatildeo

provocada pelo corpo mas por um processamento desviante dos dados resultantes da

atenccedilatildeo da alma sobre o corpo que culmina num iacutempeto da alma em direcccedilatildeo aos deleites

falazes das coisas sensiacuteveis A curiositas eacute jaacute da ordem do juiacutezo e natildeo tanto da sensaccedilatildeo

ainda que a ela remonte Por vezes o Bispo de Hipona reporta directamente essa atenccedilatildeo

iliacutecita relativamente agrave experiecircncia sensual tambeacutem agrave passio Mas se etimologicamente a

raiz cura aponta para o cuidado ou zelo e logo para uma acccedilatildeo intencional e consciente

152

Cf De vera relig 33 61-62 36 67 laquoUnde falsitas oritur non rebus ipsis fallentibus quae nihil aliud

ostendunt sentienti quam speciem suam quam pro suae pulchritudinis acceperunt gradu neque ipsis

sensibus fallentibus qui pro natura sui corporis affecti non aliud quam suas affectiones praesidenti animo

nuntiant sed peccata animas fallunt cum verum quaerunt relicta et neglecta veritateraquo

153 A attentio natildeo eacute apenas usada por Santo Agostinho no contexto da atenccedilatildeo da alma relativamente ao

corpo mas tambeacutem na acepccedilatildeo de poder de concentraccedilatildeo associado ao sentido interior que abordaremos

no subcapiacutetulo seguinte

154 Cf Conf X 34 53- 35 55

155 De Gen cont Man II 26 40 laquo[hellip] aut curiosos qui terrena sapiunt et spiritalia terreno oculo

inquirunt[hellip]raquo

156 Cf De mus VI 13 39

72

agrave qual pode ser imputada a responsabilidade do erro jaacute a passio corresponde mais agrave acccedilatildeo

de suportar ou sofrer A negatividade do conceito acentua-se se o encararmos na acepccedilatildeo

cristatilde ligada ao facto da condenaccedilatildeo agonia e morte do Salvador Natildeo seraacute de estranhar

que as passiones equivalham muitas vezes agraves tentaccedilotildees dos sentidos poreacutem mais

frequentemente Santo Agostinho emprega esta palavra no sentido de impressatildeo

enquanto resultado da influecircncia exercida por algo exterior nos oacutergatildeos dos sentidos As

passiones satildeo sobretudo modificaccedilotildees no corpo daiacute que o Bispo de Hipona considere

que o crescimento fiacutesico seja tambeacutem uma passio157

Mas as passiones pertencem

igualmente agrave alma e a este niacutevel as formulaccedilotildees agostinianas satildeo bastante influenciadas

por Ciacutecero e por aquilo que este designa de perturbationes ou manifestaccedilotildees

emocionais158

As passiones natildeo implicam apenas movimentos negativos da alma ateacute

mesmo a cupiditas ou o timor podem estar na base de emoccedilotildees positivas visto poderem

nortear para o verdadeiro bem A orientaccedilatildeo da vontade eacute que determina se as paixotildees satildeo

positivas ou negativas159

Natildeo eacute desejaacutevel refrear totalmente as paixotildees durante a vida terrena Santo

Agostinho alude agrave ἀπάθεια (apatheia) estoacuteica criticando os estados de impassibilidade

em que a alma natildeo eacute sujeita a nenhuma paixatildeo que a perturbe parecendo natildeo estar atenta

agraves afecccedilotildees do corpo Diz Santo Agostinho que tal estado natildeo eacute adequado a esta vida e

revela uma insensibilidade pior do que todos os viacutecios A apatia consiste em natildeo se ser

tocado por nada nem dor nem amor ou temor A nosso ver tambeacutem natildeo eacute unicamente da

ordem da sensaccedilatildeo mas jaacute do juiacutezo da alma que insiste em desvalorizar as sensaccedilotildees e

anular a senciecircncia A apatheia eacute um estado que coube aos habitantes do Eacuteden160

e que

nos caberaacute na vida apoacutes a morte Durante a vida terrena as paixotildees da alma satildeo

necessaacuterias e naturais podem ateacute ser pedagogicamente uacuteteis embora natildeo devamos

157

Cf De quant an 25 48

158 Santo Agostinho refere-se directamente a Ciacutecero e agraves paixotildees da alma nos livros IX e XIV de De

civitate Dei Para um estudo aprofundado acerca deste tema cf Johannes Brachtendorf laquoCicero and

Augustine on the Passionsraquo REAug 43 1997 pp 289-308

159 Para Santo Agostinho cada paixatildeo tem uma versatildeo positiva e uma versatildeo negativa daiacute que uma boa

vontade seja um bom amor e uma perversatildeo da vontade um mau amor (Cf De civ Dei XIV 7) No

entanto per se as paixotildees natildeo satildeo intrinsecamente positivas elas potildeem em risco o domiacutenio da razatildeo e

satildeo um mal a que estamos sujeitos na nossa vida terrena mas que podemos redireccionar positivamente

pela vontade

160 Cf De civ Dei XIV 10

73

esquecer que satildeo o resultado da condenaccedilatildeo do pecado original Os saacutebios conseguem

lidar bem com as paixotildees moderando-as jaacute que as subordinam agrave razatildeo161

Santo

Agostinho conclui que todas as afecccedilotildees satildeo boas naqueles que vivem bem e maacutes nos que

natildeo fazem bom uso delas A insensibilidade natildeo eacute sauacutede162

Em relaccedilatildeo ao modo como Santo equaciona os sentidos corpoacutereos haacute ainda que

questionar sobre a sua existecircncia no corpo celestial possuiria o corpo de Adatildeo os mesmo

oacutergatildeos dos sentidos antes e depois da queda O que aconteceraacute aos sentidos no corpo

celestial ressurrecto Os sentidos do nosso corpo terreno satildeo uma espeacutecie de interface

entre a alma racional e as realidades sensiacuteveis corruptiacuteveis deste mundo a que a expulsatildeo

do Paraiacuteso nos condenou Na ausecircncia de realidades sensiacuteveis a existecircncia dos sentidos

corpoacutereos deveacutem obsoleta mas seraacute realmente que Santo Agostinho natildeo perspectiva o seu

uso para o corpo da fase adamita preacute-queda e relativamente ao corpo ressurrecto

Antes do pecado original as almas de Adatildeo e Eva habitavam corpos gloriosos

celestiais e eram directamente iluminadas pela luz do Verbo divino163

Os seus corpos

espirituais permitiam a intuiccedilatildeo imediata e directa das almas164

mas em virtude da

expulsatildeo do Eacuteden Adatildeo e Eva perderam esse corpo celestial transparente165

bem como a

visatildeo beatificante de que gozavam Em De Genesi ad litteram Santo Agostinho comenta

o facto de Adatildeo e Eva ouvirem a voz de Deus no Eacuteden166

e sustenta que antes da queda

eles teriam constantes conversas com Deus interiormente Com a expulsatildeo ficam

consignados ao reino da mediaccedilatildeo simboacutelica ao labor da sensaccedilatildeo e da linguagem167

Deus soacute lhes fala atraveacutes de imagens corpoacutereas perceptiacuteveis pelos sentidos e a verdade jaacute

soacute pode ser perscrutada de modo velado e indirecto daiacute que a linguagem seja tambeacutem

161

A defesa que Santo Agostinho faz desta ideia em De civ Dei IX 4-5 eacute contra os postulados estoacuteicos

segundo os quais os saacutebios natildeo seriam sujeitos a paixotildees e que a apatia era um estado desejaacutevel e

alcanccedilaacutevel por meio de uma espeacutecie de terapia filosoacutefica O proacuteprio Santo Agostinho tenta demonstrar

que no fundo os estoacuteicos seguiam a mesma perspectiva que os peripateacuteticos e que realmente natildeo

postulavam a possibilidade de tal impassibilidade feliz na vida terrena

162 Cf De civ Dei XVI 9

163 Cf De lib arb II 4 5

164 Cf De lib arb II 6 14 e II 11 30-32

165 Cf De lib arb II 8 23 e II 11 32

166 Cf De Gen ad lit XI 33 43

167 Cf De lib arb II 2 5 e II 11 30-32

74

uma consequecircncia da queda Antes do pecado os sentidos corpoacutereos parecem natildeo ter

qualquer papel ainda que no Eacuteden houvesse ldquotoda a espeacutecie de aacutervores agradaacuteveis agrave vista

e de saborosos frutos para comerrdquo168

Soacute quando comem o fruto proibido eacute que os

sentidos corpoacutereos do primeiro casal parecem ter sido activados pois Adatildeo e Eva abrem

os olhos e vecircem que estatildeo nus169

antes disso viviam num estado de natildeo perturbaccedilatildeo em

que a alma natildeo experienciava as paixotildees do corpo Mas a verdade eacute que Santo Agostinho

parece perspectivar que Adatildeo e Eva jaacute fariam uso dos sentidos corpoacutereos antes do pecado

original pois adverte que a nudez de ambos natildeo lhes era desconhecida ndash ela simplesmente

natildeo era vergonhosa O casal natildeo foi criado cego viam animais aos quais Adatildeo atribuiu

nomes e Eva viu que o fruto proibido era agradaacutevel agrave vista170

Ambos tinham os olhos

abertos mas a sua nudez natildeo lhes despertava qualquer concupiscecircncia Quando a

Escritura diz que ao pecarem os seus olhos foram abertos e eles viram que estavam

nus isso significa que os olhos se abriram natildeo agrave visatildeo visto que eles viam

anteriormente mas ao conhecimento do bem que acabavam de perder e do mal em que

vinham de incorrer ndash daiacute que a aacutervore do fruto proibido seja tambeacutem conhecida como

aacutervore do conhecimento do bem e do mal171

Aleacutem disso Santo Agostinho diz que o

homem vivia segundo Deus no Paraiacuteso e este era simultaneamente corporal e espiritual

pois natildeo fazia sentido haver um Paraiacuteso corporal para os bens do corpo sem um Paraiacuteso

espiritual para os do espiacuterito e por outro lado um Paraiacuteso fonte de alegrias interiores natildeo

podia existir sem um Paraiacuteso corporal fonte de alegrias exteriores A existecircncia de

sentidos na carne espiritual natildeo eacute portanto um anacronismo Haacute para o ser dual um

Paraiacuteso duplo172

simultaneamente material e espiritual de modo a satisfazer quer os

sentidos interiores do homem quer as suas percepccedilotildees externas Natildeo eacute suposto negar a

realidade do paraiacuteso terrestre para que possa existir um paraiacuteso espiritual173

Do mesmo

modo que os corpos pela ressurreiccedilatildeo seratildeo transformados em corpos espirituais sem que

168

Gn 2 9

169 Gn 3 7

170 Cf Gn 3 6

171 Cf De civ Dei XIV 17

172 Cf De civ Dei XIV 11

173 Cf De civ Dei XIII 21

75

a sua carne se converta em espiacuterito tambeacutem todas as restantes realidades corpoacutereas que

existem na vida terrena e que podem contribuir para a vida feliz estaratildeo presentes no

Paraiacuteso ndash natildeo haacute por que assumir que jaacute laacute natildeo estivessem desde os primeiros tempos

Em relaccedilatildeo ao corpo ressurrecto o Bispo de Hipona interroga-se sobre as

capacidades dos sentidos corpoacutereos renovados Comeccedila por afirmar que eacute no corpo

ressurrecto que haveremos de ver Deus mas questiona se eacute por intermeacutedio do corpo que

agrave semelhanccedila do que ocorre com o processo visual sensiacutevel essa visatildeo esplendorosa

ocorreraacute Certo eacute que o corpo conservaraacute os seus olhos e que estes manteratildeo a sua funccedilatildeo

e estaratildeo no seu devido lugar podendo abrir-se e fechar-se No entanto Santo Agostinho

constata que seria estranho se mesmo com os olhos fechados natildeo se pudesse ver Deus174

Mais adiante o Bispo de Hipona afirma que o espiacuterito se serviraacute dos olhos por intermeacutedio

do corpo espiritual mas reitera a questatildeo se de facto nos corpos espirituais os olhos

espirituais tambeacutem teratildeo apenas o mesmo poder que agora possuem na vida terrena o

que significaria que com eles Deus natildeo poderia ser visto A natureza divina incorpoacuterea

dada a Sua ubiquidade natildeo estaacute limitada a um lugar e tal exige que os olhos da carne

ressurrecta para verem Deus e as realidades incorpoacutereas teratildeo de ser dotados de uma

capacidade muito mais poderosa do que quando eram olhos mortais Nas Escrituras

Santo Agostinho lecirc que ldquotoda a carne veraacute a salvaccedilatildeo de Deusrdquo175

e lecirc a afirmaccedilatildeo de Job

ldquo[hellip] e a minha carne veraacute a Deusrdquo176

Estas passagens natildeo satildeo no entanto conclusivas

para a questatildeo sobre qual se debruccedila o Bispo de Hipona jaacute que para elas estabelece mais

do que uma acepccedilatildeo possiacutevel De acordo com o proacuteprio a sua incerteza quanto agraves

capacidades do corpo espiritual encontra eco no Livro da Sabedoria ldquoOs pensamentos

dos mortais satildeo tiacutemidos e incertas as nossas previsotildeesrdquo177

O Bispo de Hipona critica o

raciociacutenio dos filoacutesofos que afirmam peremptoriamente que as realidades inteligiacuteveis soacute

satildeo vistas pela mente e que as realidades sensiacuteveis soacute satildeo percebidas pelos sentidos do

corpo Contra tal raciociacutenio concorre a premissa de que Deus incorpoacutereo conhece as

coisas corpoacutereas que criou bem como certos exemplos biacuteblicos como eacute o caso do profeta

174

Cf De civ Dei XXII 29

175 Is 40 5 laquoEt videbit omnis caro salutare Deiraquo

176 Job 19 26 laquo[hellip] Et in carne mea videbo Deumraquo

177 Sab 9 14 laquoCogitationes mortalium timidae et incertae providentiae nostraeraquo

76

Eliseu que natildeo estando presente na altura em que o seu servo recebeu o dinheiro178

viu

toda a cena ora tal visatildeo de coisas corpoacutereas soacute pode ter sido conseguida pelo espiacuterito de

Eliseu e natildeo pelos olhos do corpo Nesta senda se os corpos podem ser vistos pelo

espiacuterito natildeo seraacute descabido equacionar a hipoacutetese de que o poder do corpo espiritual seja

tatildeo grande que tambeacutem ele (um corpo) possa ver um espiacuterito Deus eacute um espiacuterito

Segundo Santo Agostinho eacute bastante provaacutevel que os olhos dos corpos espirituais possam

ver Deus incorpoacutereo regendo todas as coisas Tal visatildeo da divindade por parte dos olhos

do corpo ressurrecto ou implica que os olhos adquiram algo semelhante agrave mente isto eacute

implica que os nossos sentidos corporais sejam elevados agrave visatildeo que geralmente se

reserva para a pura inteligecircncia ndash o que segundo o Bispo de Hipona parece impossiacutevel de

demonstrar a partir do testemunho biacuteblico ndash ou entatildeo

ldquo[hellip] Deus ser-nos-aacute conhecido e visiacutevel de tal modo que seraacute visto em

espiacuterito por cada um de noacutes seraacute visto por uns nos outros seraacute visto em si

proacuteprio seraacute visto num novo Ceacuteu e numa nova Terra seraacute visto em toda a

criatura que entatildeo existir seraacute visto em todo o corpo com os olhos do corpo

para onde quer que se voltem esses olhos do corpo espiritualrdquo179

Embora natildeo o assuma abertamente o Bispo de Hipona parece pender mais para

esta segunda hipoacutetese Quaisquer que sejam o uso e as possibilidades dos sentidos

corpoacutereos ressurrectos certo eacute que na perspectiva agostiniana eles natildeo perturbaratildeo a alma

com paixotildees jaacute que em plena concordacircncia com ela o corpo experienciaraacute a perfeita

beatitude Por exemplo a contemplaccedilatildeo dos atributos fiacutesicos femininos natildeo iraacute suscitar

luxuacuteria concupiscente mas puro louvor ndash estes atributos natildeo suscitaratildeo paixatildeo (libido)180

Diz Santo Agostinho que as mulheres ressuscitaratildeo com o sexo feminino jaacute que ambos os

sexos seratildeo restabelecidos e que os seus oacutergatildeos subsistiratildeo embora livres do coito e do

parto portanto natildeo mais ldquoacomodados ao antigo uso mas a uma nova belezardquo181

178

Cf 2ordm Rs 5 26

179 De civ Dei XXII 29 laquo[hellip] Deus nobis erit notus atque conspicuus ut videatur spiritu a singulis nobis

in singulis nobis videatur ab altero in altero videatur in se ipso videatur in caelo novo et terra nova atque

in omni quae tunc fuerit creatura videatur et per corpora in omni corpore quocumque fuerint spiritalis

corporis oculi acie perveniente directiraquo A traduccedilatildeo da periacutecope eacute de J Dias Pereira in A cidade de Deus

vol III 2ordf ed Lisboa FCG 2000 p 2354

180 Cf De civ Dei XXII 17

181 Ibid laquo[hellip] non accommodata usui veteri sed decori novo [hellip]raquo

77

14 ndash O sentido interior e a memoacuteria

No penuacuteltimo tratado escrito por Plotino o licopolitano estabelece uma distinccedilatildeo

entre sensaccedilatildeo e percepccedilatildeo que encontra eco na distinccedilatildeo agostiniana entre sentidos natildeo

reflexivos e sentido interior182

Para Plotino a sensaccedilatildeo diz respeito agrave impressatildeo (τύπος)

sensiacutevel resultante da acccedilatildeo do objecto exterior ao passo que a apreensatildeo consciente ou

percepccedilatildeo (ἀντίληψις) dessas impressotildees sensiacuteveis eacute jaacute uma faculdade da alma racional

(ψυχὴ λογική) proacutepria do ser humano e natildeo do animal A percepccedilatildeo na perspectiva

plotiniana eacute uma intuiccedilatildeo impassiacutevel da alma sobre as imagens ou formas de natureza

jaacute inteligiacutevel que resultam das impressotildees sensiacuteveis e agraves quais se aplica jaacute ldquoo raciociacutenio

a opiniatildeo o pensamento que sobretudo nos constituemrdquo183

Plotino natildeo distingue no processo da sensaccedilatildeo entre o momento da impressatildeo ao

niacutevel dos oacutergatildeos sensiacuteveis e o momento em que a alma tem consciecircncia dessas

impressotildees Esta percepccedilatildeo por parte da alma racional natildeo deve ser tida como paralela

ao segundo momento considerado por Santo Agostinho em relaccedilatildeo agrave sensaccedilatildeo184

pelo

qual a alma estaacute atenta agraves afecccedilotildees do corpo deve sim considerar-se paralela ao sentido

interior que o filoacutesofo africano descreve em De libero arbitrio como sendo um sentido

reflexivo Nesta obra agostiniana eacute feita uma distinccedilatildeo entre as propriedades dos

182

Trata-se cronologicamente do quinquageacutesimo terceiro tratado escrito por Plotino jaacute no final da

sua vida embora de acordo com a ordenaccedilatildeo porfiriana corresponda ao primeiro livro da primeira

Eneacuteada Neste tratado Plotino natildeo chega a falar num sentido interior mas refere a sensibilidade

exterior (ἕξις παθητική) distinguindo-a da faculdade de sentir proacutepria agrave alma racional e que poderaacute

ser considerado como uma sensibilidade interior Cf En I 1 7 e tambeacutem En IV 3 23-26 IV 4

18-21 IV 8 8 e V 5 1

183 Plotino En I 1 7 laquoδιάνοιαι δὴ καὶ δόξαι καὶ νοήσεις ἔνθα δὴ ἡμεῖς μάλισταraquo

184 Natildeo se trata de um segundo momento em termos diacroacutenicos visto que eacute instantacircneo agrave alteraccedilatildeo

provocada pelo objecto no oacutergatildeo corpoacutereo

78

objectos que podem ser apercebidas singularmente por um sentido corpoacutereo ndash como a

cor o som ou o cheiro ndash e a percepccedilatildeo de propriedades relativamente agraves quais eacute

possiacutevel o concurso de dois ou mais sentidos corpoacutereos ndash como por exemplo a

configuraccedilatildeo do objecto que tanto pode ser apercebida pela visatildeo como pelo tacto185

Tal distinccedilatildeo remete necessariamente para a questatildeo aristoteacutelica do sensus communis

(κοινή αἴσθησις)186

desenvolvida em De anima de modo muito semelhante agrave exposiccedilatildeo

do diaacutelogo agostiniano mas com conclusotildees bastante distintas Para Aristoacuteteles natildeo haacute

um sentido subsidiaacuterio relativamente aos tradicionais cinco sentidos corpoacutereos jaacute que

estes satildeo reflexivos e assumem-se como funccedilotildees particulares daquilo que hoje diriacuteamos

ser um sistema intersensorial e que enquanto sistema perceberia os sensiacuteveis comuns e

seria capaz de distinguir que objecto ou propriedade corresponde a cada funccedilatildeo geneacuterica

do sistema Santo Agostinho natildeo teve acesso ao De anima187

embora a leitura de alguns

tratados das Eneacuteadas possa ter facultado um acesso indirecto a determinados

conteuacutedos188

O penuacuteltimo tratado de Plotino teve precisamente por modelo o De anima

185

Cf De lib arb II 3 8

186 Cf Aristoacuteteles De anima II 6 418a 7-25 III 1 424b 22-427a 16 e III 3 428b 22-24 Para

Aristoacuteteles a expressatildeo κοινή αἴσθησις natildeo soacute alude agrave combinaccedilatildeo das modalidades especiacuteficas de cada

um dos sentidos entre si como tambeacutem ao facto de cada sensaccedilatildeo ser acompanhada pela consciecircncia de si

mesma Santo Agostinho natildeo usa a expressatildeo sensus communis relativamente agrave percepccedilatildeo sensiacutevel mas

na acepccedilatildeo que corresponderia a κοινή δόξα

187 De Aristoacuteteles o Bispo de Hipona parece soacute ter lido a traduccedilatildeo latina das Categoriae feita por Maacuterio

Vitorino Cf Conf IV 16 28

28 De Trin V 2 3 e V 7 8 onde se fala em essecircncia e em substacircncia

188 Acerca da problemaacutetica sobre quais os tratados plotinianos que teraacute Santo Agostinho lido vide Ana

Rita Ferreira laquoDo Belo a esteacutetica augustiniana vista agrave luz das Eneacuteadasraquo in Revista Signum vol 11 n 1

2010 p 7 Natildeo eacute possiacutevel ter certezas quanto agraves fontes agostinianas relativamente ao sentido interior mas

haacute seguramente uma seacuterie de filoacutesofos e de correntes filosoacuteficas com as quais Santo Agostinho estava

familiarizado que desenvolveram conceitos muito proacuteximos ao de sentido interior ou que com ele se

relacionam Directa ou indirectamente o filoacutesofo africano tomou conhecimento de tais

desenvolvimentos ndash natildeo pode ser mera coincidecircncia o facto da formulaccedilatildeo que Santo Agostinho faz do

conceito sentido interior seguir termos tatildeo semelhantes aos empregues por Aristoacuteteles relativamente ao

sentido comum Tambeacutem natildeo faz sentido duvidar que Santo Agostinho desconhecia a posiccedilatildeo estoacuteica

sobre as impressotildees sensiacuteveis e sobre conceitos como ἡγεμονικόν (hegecircmonikon ndash faculdade que

reconhece coordena e julga as impressotildees sensiacuteveis) οἰκείωσις (oikeiosis ndash espeacutecie de identificaccedilatildeo

apropriaccedilatildeo que implica o sentimento de si e permite aos animais procurar o que lhes conveacutem e evitar o

que lhes eacute prejudicial) e ἐντός ἁφή (entos haphecirc ndash tacto interno) Apesar de nunca citar tais expressotildees

Santo Agostinho refere-se por vaacuterias vezes aos estoacuteicos para os criticar quanto agrave reflexividade dos

sentidos e agrave assunccedilatildeo da verdade a eles associada (como em De civ Dei VIII 7) ou paradoxalmente para

invocar o estoicismo contra o cepticismo acadeacutemico contrariando assim a ideia de que os sentidos

enganam (por exemplo em Contra Academicos) Ora se Santo Agostinho estaacute familiarizado com o

79

do qual adopta o plano de trabalho contudo dificilmente teraacute sido atraveacutes deste

trabalho que Santo Agostinho se aproximou tanto da anaacutelise dos sensiacuteveis comuns e da

capacidade de distinguir os objectos dos diferentes sentidos ndash Plotino diz que a sensaccedilatildeo

eacute considerada comum em virtude de implicar corpo e alma189

mas natildeo se aproxima

daquilo que Aristoacuteteles designa por κοινή αίσθησις a natildeo ser quando em outros tratados

refere uma uacutenica alma sensitiva da qual cada um dos cinco sentidos corpoacutereos satildeo

poderes190

ou quando refere que na percepccedilatildeo de um objecto as diversas sensaccedilotildees

devem ser unidas e ordenadas por uma faculdade perceptiva incorpoacuterea191

Eacute mais nesta

direcccedilatildeo que se orienta tambeacutem o conceito agostiniano de sentido interior em De libero

arbitrio Neste diaacutelogo a anaacutelise levada a cabo por Santo Agostinho e pelo seu

interlocutor Evoacutedio acerca das competecircncias e das capacidades de cada um dos sentidos

corpoacutereos revela rapidamente a intenccedilatildeo de nortear os toacutepicos da conversaccedilatildeo desde o

domiacutenio da sensibilidade para o domiacutenio da razatildeo o que obviamente natildeo pode ser feito

de maneira abrupta Tal direccionamento espelhar-se-aacute uma deacutecada mais tarde neste

trecho de Confessionum ldquoPortanto por etapas passei dos corpos para a alma que

percebe atraveacutes do corpo e daiacute para o poder interno da alma ao qual os sentidos

corpoacutereos reportam as coisas externas etapa que os animais conseguem alcanccedilarrdquo192

O sentido interno embora resulte da ratio enquanto movimento da mens natildeo se

confunde com ela pois natildeo chega a ser uma consciecircncia racional mas antes uma

estoicismo eacute quase certo que os conceitos acima indicados tenham contribuiacutedo para a formulaccedilatildeo do

ldquosentido interiorrdquo tal como teraacute contribuiacutedo o sensus sui ciceroniano (De finibus bonorum et malorum

III 16) Acerca da influecircncia do estoicismo em Santo Agostinho aconselha-se a leitura do quarto capiacutetulo

da obra de Marcia L Colish The Stoic Tradition from Antiquity to the Early Middle Ages Leiden Brill

1985 pp 142-238 e Michel Spanneut ldquoLe Stoiumlcisme et saint Augustin Etat de la questionrdquo in AAVV

Forma futuri FS Michele Pellegrino Turin 1975 p 896-914 Acerca da influecircncia ciceroniana cf M

Testard Saint Augustin et Ciceacuteron Paris Etudes Augustiniennes 1958 Em relaccedilatildeo a Plotino haacute certezas

quanto ao facto de que Santo Agostinho teraacute lido certos tratados das Eneacuteadas mas natildeo haacute certezas sobre

quais os tratados e essa eacute uma discussatildeo bastante antiga entre os investigadores da qual natildeo se pode

esperar um resoluccedilatildeo concreta

189 Cf Plotino En I 1 9 e IV 3 26

190 Cf Plotino En IV 3 3

191 Cf Plotino En IV 7 6

192 Cf Conf VII 17 23 (CCL 27 p 107) laquoAtque ita gradatim a corporibus ad sentientem per corpus

animam atque inde ad eius interiorem vim cui sensus corporis exteriora nuntiaret et quousque possunt

bestiaeraquo

80

consciecircncia sub-racional193

que medeia a sensaccedilatildeo e o conhecimento e que eacute comum

aos homens e aos animais194

Eacute nesta senda que OrsquoDaly explica o surgimento isolado do

conceito de sentido interno Sendo apenas em De libero arbitrio que haacute referecircncia

expliacutecita ao conceito195

este comentador da obra agostiniana defende que ele eacute aduzido

pelo filoacutesofo africano dada a necessidade em completar dois niacuteveis hieraacuterquicos

correspondentes entre si corpo alma mente e percepccedilatildeo sensoacuteria sentido interior

conhecimento196

Em nenhuma outra obra se repete tal esquema analoacutegico pelo que a

formulaccedilatildeo ldquosentido interiorrdquo deixa de ser necessaacuteria no entanto a acepccedilatildeo que lhe eacute

preconizada em De libero arbitrio natildeo eacute descartada nas abordagens ao tema da

percepccedilatildeo desenvolvidas em obras posteriores OrsquoDaly considera que a noccedilatildeo de

concentraccedilatildeo (intentio attentio) eacute com efeito uma reformulaccedilatildeo do poder reflexivo do

sentido interno197

Em obras anteriores a De libero arbitrio poderatildeo tambeacutem encontrar-se indiacutecios

do conceito em questatildeo por exemplo em Soliloquia na metaacutefora dos sentidos da alma

(sensus animae)198

ou em De musica quando Santo Agostinho diz que os oacutergatildeos dos

sentidos satildeo instrumentos corpoacutereos passiacuteveis de ser activados pela attentio da alma199

O sentido interior (sensus interior) conforme descrito em De libero arbitrio200

eacute a

capacidade de ajuizar as sensaccedilotildees reportadas pelos cinco sentidos corpoacutereos Eacute ele que

controla os sentidos corpoacutereos e que permite a consciecircncia da actividade ou da ausecircncia

193

Cf De lib arb III 5 12 onde Santo Agostinho diz reconhecer que o sentido interior eacute abaixo da razatildeo

(infra rationem)

194 No caso dos animais obviamente o sentido interior natildeo ocuparaacute uma posiccedilatildeo intermeacutedia entre a

sensaccedilatildeo e o conhecimento (scientia) neles as percepccedilotildees tecircm a mesma eficaacutecia que o conhecimento tem

para o homem

195 Noutras obras agostinianas muito raramente se encontra a expressatildeo sensus interior e quando tal

ocorre eacute com a acepccedilatildeo de faculdade racional de discernimento particular do ser humano Esta acepccedilatildeo

natildeo tem obviamente qualquer relaccedilatildeo com o conceito desenvolvido em De libero arbitrio Cf De civ Dei

XI 27 e RetrI 1 2

196 OrsquoDaly Augustinersquos philosophy of mind Berkeley University of California Press 1987 p 105

197 Ibid

198 Cf Sol I 6 12

199 Cf De mus VI 5 10

200 Cf De libero arbitrio II 3 8 - II 6 13

81

de actividade por parte desses sentidos corpoacutereos No diaacutelogo Evoacutedio diz a Santo

Agostinho que eacute a razatildeo que faculta a compreensatildeo da existecircncia do sentido interior e

salienta que embora este seja apreendido por ela natildeo se lhe pode atribuir o nome de

razatildeo visto que os animais tambeacutem o possuem201

Se parece ser oacutebvio que o sentido

interior se apercebe de tudo o que ocorre ao niacutevel dos sentidos corpoacutereos jaacute natildeo eacute tatildeo

oacutebvio que o sentido interior se aperceba de si mesmo Santo Agostinho tambeacutem natildeo

parece ir nesse sentido afirmando apenas como certo que a razatildeo julga o sentido

interior202

e que este estaacute ao serviccedilo dela203

Sabemos pela razatildeo que o sentido interior existe necessariamente pois a

distinccedilatildeo entre os sensiacuteveis proacuteprios e os sensiacuteveis comuns natildeo poderia ser estabelecida

pelos sentidos corpoacutereos uma vez que estes carecem de reflexividade A proacutepria

articulaccedilatildeo entre os sentidos face a um sensiacutevel comum pressupotildee que haja um sentido

superior capaz de coordenar tal papel conjunto Aleacutem disto acresce a evidecircncia da

funccedilatildeo reflexiva do sentir ou por outras palavras a consciecircncia da sensaccedilatildeo que soacute

pode ser imputada ao sentido interior jaacute que ultrapassa as capacidades dos sentidos

corpoacutereos A visatildeo natildeo sente a vista ao ver uma cor o ouvido natildeo se sente a si mesmo

quando ouve um som o paladar carece de sabor e quando tocamos em algo natildeo

sentimos o tacto do mesmo modo quando cheiramos o odor natildeo nos faculta qualquer

cheiro de si mesmo204

Eacute o sentido interior quem tem a sensaccedilatildeo dos proacuteprios sentidos

No caso do homem haacute o conhecimento daquilo que propriamente cada um dos

sentidos corpoacutereos tem por competecircncia por exemplo agrave visatildeo compete-lhe reportar a

cor e agrave audiccedilatildeo compete-lhe reportar o som ndash tal discernimento racional natildeo eacute partilhado

pelos animais No entanto eles partilham connosco a consciecircncia sub-racional da

sensaccedilatildeo sem essa consciecircncia os animais natildeo poderiam sequer mover-se Santo

Agostinho explica a Evoacutedio que por exemplo para que um animal possa abrir os olhos

direccionando-os para o objecto que pretende ver ele tem de sentir que natildeo vecirc tendo os

olhos fechados ou por direccionar Os sentidos corpoacutereos sentem as coisas corpoacutereas

201

De lib arb II 3 8 (CCL 29 p 240) laquoQuod cum ratione comprehendamus ut dixi hoc ipsum tamen

rationem vocare non possum quoniam et bestiis inesse manifestum estraquo

202 Cf De lib arb II 6 13

203 Cf De lib arb II 3 9

204 Cf Ibid

82

mas natildeo podem ter a sensaccedilatildeo de si mesmos jaacute o sentido interior tem natildeo apenas a

sensaccedilatildeo das coisas corpoacutereas atraveacutes dos sentidos corpoacutereos como tambeacutem tem a

sensaccedilatildeo dos proacuteprios sentidos corpoacutereos Atraveacutes do sentido interior a alma apercebe-se

dos sentidos e das sensaccedilotildees A transitividade dos sentidos corpoacutereos relativamente ao

sentido interior prova que estes satildeo limitados face a si mesmos e entre si ndash demarcando

radicalmente a perspectiva agostiniana da perspectiva aristoteacutelica

O sentido interior parece articular-se natildeo apenas com as impressotildees sensiacuteveis

mas tambeacutem com a memoacuteria inclusivamente no caso dos animais205

que face agrave visatildeo

de algo que anteriormente lhes causou uma sensaccedilatildeo desagradaacutevel evitam aproximar-se

do objecto responsaacutevel por tal sensaccedilatildeo

A memoacuteria tem aliaacutes um funcionamento afim ao do sentido interno pois lida

com os dados da sensibilidade e natildeo com os objectos sensiacuteveis em si e permite a

concentraccedilatildeo mental ndash que Santo Agostinho tambeacutem refere atraveacutes do termo intentio ndash sem

a qual as sensaccedilotildees seriam imperceptiacuteveis Com efeito a memoacuteria tem um papel

imprescindiacutevel no processo da percepccedilatildeo sensiacutevel tal como Santo Agostinho ilustra em

De musica pela anaacutelise do hino ambrosiano Deus creator omnium206

Qualquer objecto

sensiacutevel tem uma existecircncia espacio-temporal que predetermina que a sua percepccedilatildeo se

subordine necessariamente aos limites fiacutesicos desse contexto e que se articule agrave

actividade de reconstruccedilatildeo da memoacuteria sem a qual se perderia a noccedilatildeo da continuidade

espacial eou duracional do objecto percebido atraveacutes das impressotildees corpoacutereas

Sem a memoacuteria qualquer percepccedilatildeo seria imperceptiacutevel Ao ouvirmos uma

frase lidamos com ritmos sonoros com cadecircncias e intervalos de tempo que

obviamente natildeo decorrem em simultacircneo A sucessividade dos objectos sonoros implica

que para os percebermos sejamos capazes de nos lembrar ordenadamente dos diferentes

espaccedilos temporais que compotildeem esse objecto sonoro de modo a que quando ele deixa

de ressoar tenhamos ainda presente o seu iniacutecio No caso da percepccedilatildeo de siacutelabas isso eacute

ainda mais flagrante Por mais breve que uma siacutelaba seja podemos distinguir-lhe um

iniacutecio e um fim que o ouvido percebe em tempos distintos cabe agrave memoacuteria reconstituir

esses tempos estabilizando-os como que num presente interno que nela permanece por

oposiccedilatildeo ao movimento fiacutesico exterior do qual resulta a impressatildeo e que imediatamente

205

Cf De quant an 33 71

206 Cf De mus VI 9 23 e VI 8 21

83

deveacutem preteacuterito desvanecendo-se na exacta proporccedilatildeo da sua ocorrecircncia Tal

presentificaccedilatildeo interior operada pela memoacuteria ocasiona que no momento em que

ouvimos retinir o fim da siacutelaba haja uma reproduccedilatildeo do movimento que se operou

quando ouvimos o seu iniacutecio permitindo-nos ouvir como que instantaneamente essa

siacutelaba A instantaneidade para a qual a memoacuteria concorre no processo da percepccedilatildeo

sensiacutevel estaacute ligada agrave produccedilatildeo de imagens (imagines ou similitudines) Em De Genesis

ad litteram o Bispo de Hipona explica que logo que os sentidos percebem um objecto

produz-se uma imagem sua na mente de modo instantacircneo (nullius puncti temporalis

interpositione formatur) Se a mente fosse incapaz de formar em si uma imagem daquilo

que eacute percebido pelo ouvido e se a memoacuteria fosse incapaz de a conservar ela natildeo

poderia conhecer a segunda siacutelaba nem saber que se trata da segunda pois a primeira jaacute

teria perdido a sua existecircncia desvanecendo-se ao repercutir o ar Naturalmente

qualquer potencial praacutetico e esteacutetico da percepccedilatildeo seria gorado uma vez que neste caso

a proacutepria percepccedilatildeo natildeo se efectivaria laquo[hellip] por conseguinte veriacuteamos desaparecer

todo o proveito de uma conversa toda a agradabilidade de um canto enfim todo o

movimento relativo agrave acccedilatildeo do corporaquo207

Parafraseando Moreau sem o papel fundamental da memoacuteria a sensaccedilatildeo seria

fragmentaacuteria e ininteligiacutevel sequer seria uma sensaccedilatildeo pois esta soacute se completa na

instantaneidade da memoacuteria ou seja no momento aglutinador que o operar

presentificante da memoacuteria permite208

O proacuteprio Santo Agostinho parece explicar que a

impressatildeo sonora soacute devem sensaccedilatildeo quando entra em jogo a memoacuteria ao exemplificar

que quando estamos distraiacutedos por vezes parece-nos natildeo ouvirmos as pessoas que nos

falam e isto ocorre natildeo porque o som natildeo atinja os nossos ouvidos mas porque a alma

permanece inactiva como se tal impressatildeo nunca tivesse ocorrido209

Em relaccedilatildeo agrave percepccedilatildeo visual o processo eacute idecircntico natildeo podemos percepcionar

um corpo por menor que seja sem o auxiacutelio da memoacuteria Se a memoacuteria natildeo se aplicar

ao sentido do corpo tal como este se aplicou ao objecto visiacutevel quando por exemplo

lemos uma paacutegina sucederaacute que teremos de recomeccedilar a leitura pois apesar de termos

207

De Gen ad litt XII 16 33 (CSEL 28 I p 431) laquo[hellip] ac sic omnis locutionis usus omnis cantandi

suavitas omnis postremo in actibus nostris corporalis motus dilapsus occideretraquo

208 Cf M Moreau laquoMeacutemoire et Dureacuteeraquo in REAug 3 1955 p 240 laquo La sensation pure srsquoaccomplit dans

lrsquoinstantaneacute elle serait fragmentaire et inintelligible sans la ldquomeacutemoirerdquoraquo

209 Cf De mus VI 8 21

84

seguido as letras que compunham as frases nada do que foi lido ficaraacute em noacutes210

Aleacutem

disso os olhos satildeo obrigados a captar progressivamente as qualidades dos objectos

cabendo agrave memoacuteria salvaguardar uma espeacutecie de sincronia das sucessivas imagens

captadas pela vista e disponibilizar tal conjunto para a mente De certo modo a

memoacuteria pode retardar pausar ou prolongar a percepccedilatildeo conferindo-lhe uma certa

dimensatildeo espiritual ao transcender o espaccedilo e o tempo fiacutesicos Eacute neste sentido que o

Bispo de Hipona diz que a memoacuteria eacute uma espeacutecie de luz dos intervalos de duraccedilatildeo

que se espraia tanto quanto possiacutevel pelos espaccedilos temporais agrave semelhanccedila da

difusatildeo dos raios luminosos que divergem das nossas pupilas para abarcar vastas

distacircncias espaciais211

Para Santo Agostinho a memoacuteria eacute um dos trecircs aspectos da mente (mens) e esta

eacute por seu turno a parte mais excelente da alma212

Embora o proacuteprio Bispo de Hipona

fale em pars animi a expressatildeo eacute algo desajustada uma vez que a alma natildeo tem

qualquer extensatildeo nem eacute divisiacutevel O proacuteprio conceito de mens natildeo eacute usado sempre com

a mesma acepccedilatildeo nos escritos agostinianos oscilando entre a sinoniacutemia com a proacutepria

razatildeo (ratio)213

e entre uma acepccedilatildeo mais lata em que a mens conteacutem a razatildeo

excedendo-a214

Seja como mens rationalis seja como ratio a mente articula trecircs

aspectos memoacuteria (memoria) entendimento (intellectus) e vontade (voluntas) apenas

distintos pelas suas muacutetuas relaccedilotildees agrave semelhanccedila da Santiacutessima Trindade A mens

trabalha com imagens (imagines ou phantasiae) que satildeo construiacutedas por si mesma e

nesse sentido constituem-se tambeacutem como formas (formae) articuladas com certa

afinidade estrutural relativamente agrave proacutepria mens215

Uma coisa eacute a forma do objecto

sensiacutevel outra eacute a forma que os nossos sentidos corpoacutereos reportam ao nosso sentido

210

Cf De Trin XI 8 15

211 Cf De mus VI 8 21

212 Cf De Trin XV 7 11 e Contra Acad I 2 5

213 Cf Contra Acad I 2 5 ou por exemplo Sol I 4 12 onde a mens eacute considerada como oculus animae

e De lib arb II 6 13 onde a razatildeo eacute tambeacutem considerada como a cabeccedila ou o olho da alma

214 Por exemplo em De ord II 11 30 onde a ratio eacute assumida como o movimento da mens ou De civ

Dei XI 2 onde a mens abarca a razatildeo e a inteligecircncia

215 OrsquoDaly refere que quando Santo Agostinho pretende enfatizar o aspecto racional da percepccedilatildeo fala

em forma ou species quando tal ecircnfase eacute desnecessaacuteria utiliza os termos imago ou phantasia referindo-se

ao objecto da nossa percepccedilatildeo Cf OrsquoDaly op cit p 141

85

interior e outra ainda eacute a forma que se constitui na percepccedilatildeo216

Em De Trinitate Santo

Agostinho serve-se de uma imagem bastante recorrente para melhor explicar o processo

da percepccedilatildeo ndash a da impressatildeo de um pequeno anel sobre cera217

Platatildeo no Teeteto (191d-c) recorre jaacute a essa imagem218

aludindo ao

funcionamento da memoacuteria como um bloco de cera onde ficam gravadas as sensaccedilotildees e

as concepccedilotildees quais marcas de sinete aiacute impressas Os blocos de cera satildeo como um

presente de Mnemoacutesina a matildee das musas Aristoacuteteles retoma a imagem da gravaccedilatildeo em

cera mas com uma nova abordagem que seraacute seguida pelo Bispo de Hipona as formas

gravadas natildeo satildeo tanto coacutepias da forma constituiacuteda pelo sinete mas novas formas em si

mesmo imagens cujo caraacutecter mimeacutetico cede lugar ao caraacutecter fantasmaacutetico uma vez

que satildeo mais o resultado da ductilidade da cera da substacircncia aniacutemica e natildeo tanto do

sinete da impressatildeo sensiacutevel Aristoacuteteles afirma que a lembranccedila qual marca de um

sinete eacute uma imagem mental (φάντασμα) uma aparecircncia fisicamente inscrita na parte

do corpo que constitui a memoacuteria e diz que este φάντασμα eacute o corolaacuterio de qualquer

processo de percepccedilatildeo sensiacutevel seja ele visual auditivo taacutectil palatal ou olfactivo219

Plotino rejeita a imagem da impressatildeo em cera relativamente agraves sensaccedilotildees pois

considera que se a alma se comportasse de tal modo ela seria como um corpo que se

deixa afectar passivamente220

A sua criacutetica visa sobretudo refutar os peripateacuteticos e os

estoacuteicos que consideravam a alma como sendo corporal e tendo um papel passivo na

teoria da sensaccedilatildeo Para Plotino as sensaccedilotildees natildeo satildeo paixotildees (πάθη) mas actos da alma

relativos agraves paixotildees do corpo ndash portanto a sensaccedilatildeo eacute uma operaccedilatildeo comum agrave alma e ao

corpo em que o corpo experiencia a paixatildeo e serve de mensageiro da alma que por sua

vez percebe a impressatildeo produzida no corpo ela tambeacutem pode formular um juiacutezo

(χρίσις) acerca da paixatildeo que o corpo experiencia A memoacuteria ocorre posteriormente agrave

216

Cf De Trin XI 2 5

217 Cf De Trin XI 2 3

218 Que Herman Parret diz remontar jaacute a Homero Cf Parret laquoVestige archive et trace Preacutesences du

temps passeacuteraquo in Proteacutee v 32 n 2 automne 2004 pp 37-46

219 Cf Aristoacuteteles De memoria et reminiscentia 450a - 450b Cf Idem De anima II 12 424a 17-20

onde a imagem da marca de um anel em ouro ou bronze sobre cera eacute utilizada em relaccedilatildeo aos sentidos

corpoacutereos que recebem as formas sensiacuteveis sem a mateacuteria tal como a cera recebe a forma do anel sem o

ouro ou sem o bronze que o constitui

220 Cf Plotino En IV 6 1

86

percepccedilatildeo que a alma tem da impressatildeo produzida no corpo pela sensaccedilatildeo ndash pode retecirc-la

ou deixar que se desvaneccedila Eacute sempre a alma que se lembra ndash a memoacuteria soacute pertence agrave

alma mas pertence-lhe na medida em que ela natildeo eacute pura e habita um corpo Eacute preciso

que ela habite um corpo para receber e conservar formas na memoacuteria Ao tratar-se de

formas sem extensatildeo elas natildeo podem constituir-se como caracteres nem como imagens

ou impressotildees (αἱ ἐνσφραγίσεις οὐδacute ἀντερείσεις ἢ τυπώσεις) pois natildeo haacute na alma

nenhum impulso (ὠθισμός) nem marca semelhante agrave de um sinete sobre cera221

Plotino

diz que a proacutepria operaccedilatildeo pela qual a alma percebe as coisas sensiacuteveis eacute jaacute uma espeacutecie

de pensamento ou inteleccedilatildeo (νόησις)

O Bispo de Hipona segue tambeacutem a via plotiniana mas faz uma leitura mais

flexiacutevel acerca da comparaccedilatildeo do funcionamento da memoacuteria a uma placa de cera que

o aproxima igualmente da via aristoteacutelica ainda que tal imagem da cera seja referida

pelo Bispo de Hipona em relaccedilatildeo aos sentidos e natildeo directamente em relaccedilatildeo agrave

memoacuteria Em De Trinitate Santo Agostinho explica que do mesmo modo que um anel

sobre a cera faz com que a sua marca aiacute fique impressa ndash e sabecircmo-lo mesmo antes do

anel se separar da cera ndash tambeacutem sabemos que se colocarmos o anel sobre uma

superfiacutecie liacutequida antes da separaccedilatildeo de ambos haacute uma forma do anel feita a partir

dele distinta da forma que eacute o proacuteprio anel Essa forma feita a partir da forma que eacute o

proacuteprio anel desaparece no momento exacto da separaccedilatildeo entre o anel e o liacutequido pelo

que natildeo haacute hipoacutetese de percebermos a forma resultante da junccedilatildeo do anel com o liacutequido

Mas ainda que os nossos olhos natildeo a vejam como vecircem a marca do anel numa placa de

cera a nossa razatildeo diz-nos que tal forma tem lugar quando o liacutequido e o anel se

encontram222

O objecto nunca gera o sentido pois este existe independentemente da

sensaccedilatildeo mas gera a sua forma ou semelhanccedila que tem lugar nos sentidos corpoacutereos

face ao encontro com esse objecto Santo Agostinho recorre ao exemplo das imagens de

persistecircncia retiacutenica para confirmar que nos sentidos se gera uma forma da forma

corpoacuterea sentida Esta forma nos sentidos eacute a impressatildeo sensiacutevel que eacute automaticamente

reportada ao sentido interior e soacute entatildeo pertence agrave alma ndash enquanto impressatildeo sensiacutevel

eacute do domiacutenio do corpo mas quando eacute interiorizada passa a ser do domiacutenio exclusivo da

221

Cf Plotino En IV 3 26

222 Cf De Trin XI 2 3

87

alma223

As trecircs formas tecircm substacircncias distintas poreacutem estatildeo de tal modo

interrelacionadas que dificilmente se destrinccedilam

A percepccedilatildeo sensiacutevel soacute pode ser uma percepccedilatildeo de aparecircncias ndash de imagens

incorpoacutereas de corpos sensiacuteveis ou como diria Aristoacuteteles uma recepccedilatildeo de formas sem

mateacuteria224

Tal desdobramento de formas que ocorre no processo perceptivo tem por

resultado o facto de a alma acabar por lidar com uma forma que jaacute lhe eacute afim225

Natildeo eacute o

objecto que produz na mente uma imagem de si mas antes eacute a mente que forma em si

mesma uma imagem do objecto visto pelos olhos e faacute-lo de modo praticamente

instantacircneo ldquosem qualquer interposiccedilatildeo temporalrdquo226

Essa imagem produzida na mente

a partir da impressatildeo sensiacutevel mesmo sendo posterior ao objecto eacute-lhe superior

precisamente porque eacute um produto mental espiritual e natildeo corporal As imagens

mentais satildeo armazenadas na memoacuteria que como salientaacutemos tem tambeacutem um papel

activo na sua formaccedilatildeo

O papel activo da memoacuteria enleia-se com as competecircncias do sentido interior e

embora os escritos agostinianos permitam facilmente concluir que de modo algum o

sentido interior e a memoacuteria satildeo conceitos intermutaacuteveis a verdade eacute que dada a falta

de uniformidade dos termos empregues dificilmente se podem traccedilar fronteiras

definidas entre o domiacutenio do sentido interior e o da memoacuteria sendo certo que se

interpenetram

O papel da memoacuteria no processo perceptivo eacute sobretudo clarificado em De

Trinitate Nesta obra a forma como Santo Agostinho expotildee a sua perspectiva

ontoloacutegica parece contribuir para cercear mais ainda o fosso entre a sensibilidade e a

inteligibilidade bem como a separaccedilatildeo entre a dimensatildeo do corpo face agrave da alma A

dualidade homem interior homem exterior natildeo parece implicar uma cisatildeo no animal

mortal humano sobretudo quando entra em jogo a intentio animi que o Bispo de

223

Note-se que em De Trinitate Santo Agostinho natildeo se refere a esta interiorizaccedilatildeo atraveacutes do sentido

interior mas atraveacutes da vontade da alma (voluntas animi) Cf De Trin XI 2 5

224 Cf Aristoacuteteles De anima II 12 424a 18

225 Cf De Trin X 5 7 (CCL 50 p 320) onde Santo Agostinho diz que ao recolher em si imagens dos

corpos criadas em si mesma e por si mesma a alma comunica algo da sua proacutepria substacircncia a essas

imagens laquo[hellip] imagines eorum convolvit et rapit factas in semetipsa de semetipsa Dat enim eis

formandis quiddam substantiae suae [hellip]raquo

226 Cf De Gen ad litt XII 16 33 (CSEL 281 p 402) laquo[hellip]nullius puncti temporalis interpositione

formaturraquo

88

Hipona tambeacutem perspectiva como voluntas227

De modo algum poderaacute considerar-se um

paralelismo entre os pares alma corpo e homem interior homem exterior uma vez que

este uacuteltimo conceito ndash o de homem exterior ndash se refere na verdade ao sujeito do

conhecimento sensiacutevel implicando o ser na sua animalidade implicando a natureza

corpoacuterea animada A articulaccedilatildeo corpo alma alicerccedila portanto o homem exterior O

homem interior ainda que pressuponha uma vivecircncia relativamente autoacutenoma face ao

corpo sendo o sujeito do conhecimento inteligiacutevel encontra na memoacuteria na voliccedilatildeo e

na cogitaccedilatildeo um inegaacutevel elo com o homem exterior

O homem interior acede agrave imagem da Trindade que eacute toda a alma que se conhece

e se ama Esse conhecimento procede da vontade da alma que a atrai para aquilo que

deseja conhecer228

Logo que aquilo que se deseja conhecer se torna conhecido o desejo

transforma-se em amor pelo conhecimento e por aquilo que eacute conhecido Esta trindade

da alma do conhecimento que alma tem de si e do amor eacute uma soacute essecircncia da qual os

trecircs constituintes satildeo iacutendices de inter-relacionamento sem mistura ou confusatildeo229

O

conhecimento natildeo eacute menor do que a alma uma vez que esta se conhece em toda a sua

extensatildeo ele eacute como que o filho da alma como o verbo criado pela alma O amor

tambeacutem natildeo eacute menor do que a alma ou do que o conhecimento pois a alma ama-se na

medida em que se conhece e em toda a sua extensatildeo O amor acarinha o conhecimento e

une-o agrave alma que o gera como a um filho ou verbo Assim a imagem da Trindade

repercute o Pai na alma que tambeacutem eacute memoacuteria espiacuterito ou vida o Filho no

conhecimento que tambeacutem eacute inteligecircncia ou ciecircncia e o Espiacuterito Santo no amor que

tambeacutem eacute vontade ou acccedilatildeo ndash e todos satildeo uma soacute quanto agrave essecircncia e trecircs em relaccedilatildeo a

cada qual A memoacuteria considerada vida alma substacircncia eacute tomada no sentido absoluto

e soacute eacute memoacuteria quando se reporta a algo o mesmo ocorre com os outros iacutendices O

homem exterior natildeo encontra em si a imagem da Trindade mas encontra vestiacutegios dela

a dois niacuteveis o primeiro respeitante agrave percepccedilatildeo e o segundo agrave cogitaccedilatildeo

227

Cf De Trin XI 2 5

228 Cf De Trin IX 12 18 Bourke defende que Santo Agostinho faz corresponder o homem interior agrave

triacuteade mens memoria voluntas Cf Vernon Joseph Bourke Augustines love of wisdom An introspective

philosophy West Lafayette Purdue University Press 1992 p 24

229 Cf De Trin IX 5 8

89

Ao niacutevel da percepccedilatildeo haacute vestiacutegios da Trindade na relaccedilatildeo triaacutedica composta

pelo exterior visiacutevel a visatildeo (visio) e a atenccedilatildeo da alma (animi intentio)230

ndash mas estes

componentes natildeo satildeo consubstanciais satildeo trecircs coisas de natureza diferente (discreta

natura) o primeiro eacute corpoacutereo a segunda pertence agrave natureza animal231

e a terceira

pertence soacute agrave alma O primeiro gera as formas ou semelhanccedilas que tecircm lugar nos

sentidos quando vemos a segunda eacute gerada pelo visiacutevel exterior e pelo sujeito que vecirc

tendo portanto jaacute algo de espiritual pois natildeo poderia existir sem a alma e a terceira une

a visatildeo ao exterior visiacutevel e equivale ao Espiacuterito Santo232

porque natildeo eacute nem filha da

visatildeo existindo como quieta voluntas antes dela nem seu pai

Ao niacutevel da cogitaccedilatildeo haacute vestiacutegios da Trindade na relaccedilatildeo triaacutedica estabelecida

pelo seguinte conjunto memoacuteria (memoria) visatildeo interior (acies animi) e vontade

(voluntas) A memoacuteria conserva a imagem que penetrou na alma a partir do sentido

corpoacutereo A visatildeo interior recai sobre a lembranccedila da memoacuteria e a vontade une as outras

duas voltando o olhar da alma (acies animi) para a memoacuteria porque esta se forma a

partir daquilo que a memoacuteria reteve originando assim uma visatildeo semelhante na

cogitaccedilatildeo (in cogitatione)233

Nesta triacuteade todos os componentes satildeo de uma uacutenica e

mesma substacircncia jaacute que todos satildeo interiores sendo uma soacute alma234

Esta trindade

ocorre inteiramente ao niacutevel do pensamento e por implicar uma recolecccedilatildeo Santo

Agostinho designa-a de cogitaccedilatildeo (cogitatio) Tal como a distinccedilatildeo entre o visiacutevel

exterior e a semelhanccedila que dele se forma nos sentidos pela sensaccedilatildeo soacute era destrinccedilaacutevel

pela razatildeo tambeacutem a distinccedilatildeo entre a imaginaccedilatildeo (phantasia) formada a partir da

semelhanccedila (similitudo) do exterior sensiacutevel conservado pela memoacuteria e a imagem que

dele nasce no olhar da alma que se recorda (acie recordentis animi) parecem de tal

modo unas e simples que soacute um juiacutezo da razatildeo as permite distinguir A memoacuteria e a

230

Ou vontade Cf De Trin XI 2 5

231 Por natureza animal entenda-se a do corpo ligado agrave alma

232 Cf De Trin XI 5 9

233 Cf De Trin XI 3 6

234 Cf De Trin XI 3 7 laquo[] sed unius eiusdemque substantiae quia hoctotum intus est et totum unus

animusraquo

90

aparecircncia (species) que encontramos quando a ela retornamos no processo de

recordaccedilatildeo satildeo duas coisas distintas235

Viver segundo as trindades do homem exterior eacute degradante para a alma pois

mesmo ocorrendo interiormente elas referem-se a coisas exteriores ndash satildeo acerca do que

haacute de mais imperfeito na criaccedilatildeo236

Poreacutem nestas trindades a vontade eacute quem dita a

boa conduta da alma Eacute a vontade que une a visatildeo (visio) ao exterior sensiacutevel no caso da

percepccedilatildeo e a visatildeo interior (acies animi) agrave memoacuteria no caso do pensamento ou

cogitaccedilatildeo Em nenhum dos casos a visatildeo deveraacute ser o fim da vontade237

mas antes um

acto acidental do seu desejo de ver Se a vontade repousar sobre a visatildeo tomaraacute por

verdadeiro (vero) o que apenas tem semelhanccedilas com a verdade (verisimilis) Todas as

criaturas tecircm uma semelhanccedila ainda que imperfeita com Deus que tudo fez muito

bem238

e satildeo portanto boas no seu geacutenero Natildeo haacute uma contaminaccedilatildeo pecaminosa

directa atraveacutes do sensiacutevel exterior ou das imagens que dele ficam na memoacuteria haacute sim

um mau direccionamento da vontade que se ateacutem na visatildeo (seja na visio ou na acies

animi) A vontade deveraacute sempre querer algo mais do que a visatildeo e deveraacute utilizaacute-la

como a uma janela ndash quando a olhamos ela natildeo eacute o termo da nossa vontade de ver eacute-o

sim o que se passa para laacute dela239

Do mesmo modo que a sensaccedilatildeo depende do corpo a cogitaccedilatildeo depende da

memoacuteria240

A memoacuteria eacute limitada quanto ao nuacutemero agrave extensatildeo e agrave qualidade das

sensaccedilotildees experienciadas em termos de imagens corporais que armazena poreacutem as

visotildees da cogitaccedilatildeo ocasionadas a partir daquilo que a memoacuteria conteacutem satildeo infinitas

Aquilo que fica armazenado na memoacuteria natildeo eacute aquilo que se reproduz no pensamento

daquele que se recorda embora ambas as imagens sejam tatildeo unidas que pareccedilam uma

soacute Para haver recordaccedilatildeo eacute necessaacuterio uma outra trindade mais interior eacute preciso a

235

Neste processo de recordaccedilatildeo pode suceder natildeo encontrarmos a tal species e eacute nesse caso que

dizemos que nos esquecemos (ita oblitos nos esse diceremus) Cf De Trin XI 3 6

236 Cf De Trin XI 5 8

237 Soacute a felicidade se constitui legitimamente com o fim da vontade Cf De Trin XI 6 10

238 Gn 1 31

239 Cf De Trin XI 6 10

240 Natildeo eacute no entanto verdade que a memoacuteria necessite da cogitaccedilatildeo jaacute que pode exercer-se

independentemente das suas imagens (phantasiae) Cf Ep 7 1 1

91

aparecircncia do objecto escondida na memoacuteria (mesmo antes de o pensarmos) eacute preciso

aquilo que se forma no pensamento quando o objecto eacute visto e eacute precisa a vontade que

os une e que com eles faz uma terceira coisa ndash um todo Atraveacutes do pensamento (cum

cogitatus) forma-se uma outra forma (species) a partir da forma armazenada na

memoacuteria Assim apesar da forma se produzir no olhar da alma pelo acto de recordar

ela resulta daquela outra forma que existe na memoacuteria pelo que o olhar da alma eacute-lhe

anterior natildeo sendo como o seu pai A trindade do pensamento pode desdobrar-se

infinitamente ateacute porque o olhar da alma natildeo pode abarcar de um soacute lance tudo o que

conteacutem a memoacuteria241

Santo Agostinho exemplifica ao dizer que quando se lembra de

um sol faacute-lo porque o viu mas se quiser poderaacute imaginar dois ou trecircs soacuteis e esta visatildeo

do pensamento eacute formada a partir da memoacuteria onde soacute haacute um sol A seu bel-prazer

poderaacute recordar-se de um sol maior ou menor quadrado ou verde mesmo que nunca o

tenha visto assim Tal aplica-se a qualquer outra coisa Por norma e a um primeiro

niacutevel as nossas recordaccedilotildees satildeo verdadeiras mas por vezes a vontade faz com que o

olhar do pensamento (cogitantis acies) figure coisas das quais natildeo nos poderiacuteamos

lembrar porque natildeo existem ou natildeo ocorreram a partir de coisas que estatildeo na nossa

memoacuteria tomando daqui um traccedilo e dali outro e reunindo tudo numa soacute visatildeo que

diremos ser falsa242

Mesmo no caso das falsas imagens a memoacuteria tem portanto um

papel fundamental pois fornece imagens esparsas que podemos reunir ampliar ou

reduzir quando pensamos (cogitamus)

Tais variaccedilotildees que operamos nas formas sem mateacuteria que a memoacuteria conteacutem

estatildeo na origem dos produtos da nossa imaginaccedilatildeo das aparecircncias que figuramos nos

sonhos e das recordaccedilotildees falsas que a um segundo niacutevel podemos armazenar tambeacutem

na memoacuteria243

Este segundo niacutevel diz respeito a uma espeacutecie de actualizaccedilatildeo das

imagens que a memoacuteria conteacutem e que graccedilas ao papel mediador da voliccedilatildeo mental 244

e

241

Cf De Trin XI 8 12

242 Cf De Trin XI 10 17 e Ep 7 3 6

243 O Bispo de Hipona nunca fala em niacuteveis de memoacuteria mas de certo modo parece pressupocirc-los Em De

Trin XI 10 17 afirma que soacute temos recordaccedilotildees verdadeiras das coisas que sentimos ao passo que em

De Trin XIII 5 24 diz que haacute falsas memoacuterias As afirmaccedilotildees natildeo satildeo antagoacutenicas pois pressupotildeem

dois niacuteveis distintos no acto de memoriar no primeiro caso a construccedilatildeo da imagem-memoacuteria eacute feita a

partir da impressatildeo sensiacutevel e no segundo caso a construccedilatildeo da imagem-memoacuteria eacute feita a partir de

outras imagens-memoacuterias

244 Cf De mus VI 8 22

92

a um certo poder de associaccedilatildeo transfigura tais imagens que se mantecircm na memoacuteria jaacute

como fruto da cogitaccedilatildeo e natildeo mais como um dado directo da percepccedilatildeo Assim haacute com

efeito um desdobramento de quatro formas que derivam gradualmente umas das outras

da forma do exterior sensiacutevel nasce a forma impressa no sentido desta por seu turno

nasce a forma que a um primeiro niacutevel eacute guardada na memoacuteria e da qual deriva uma

quarta forma nascida do olhar do pensamento (in contuitu cogitantis) que ficaraacute tambeacutem

ela guardada na memoacuteria como que num segundo niacutevel Esta eacute a siacutentese entre

percepccedilatildeo e cogitaccedilatildeo em que a vontade eacute por trecircs vezes o elo entre formas245

Eacute

atraveacutes desta siacutentese que se vai da sensaccedilatildeo ao pensamento num processo de

desdobramento de semelhanccedilas

Para aleacutem da analogia da Trindade que Santo Agostinho estabelece

relativamente ao concurso da memoacuteria com o entendimento e com a vontade eacute possiacutevel

perceber outras valecircncias da memoacuteria que se repercutem de modo indirecto no processo

da percepccedilatildeo sensiacutevel ou que com ele se articulam Desde logo a memoacuteria parece

funcionar tambeacutem como um dispositivo de positivaccedilatildeo de imagens negativas pois para

aleacutem das imagens das coisas reportadas pelos sentidos as afecccedilotildees da mente fazem

tambeacutem parte dos conteuacutedos da memoacuteria estando nela armazenadas de um modo que

poderemos dizer ldquoapaacuteticordquo que possibilita a sua reequacionaccedilatildeo moral e em uacuteltima

instacircncia alicerccedila o acto confessional

A recordaccedilatildeo das afecccedilotildees da mente (alegria tristeza medo desejo) processa-se

de um modo distinto daquele que resultou na experiecircncia efectiva de tais sentimentos

pela mente pois quando nos lembramos de tais afecccedilotildees fazecircmo-lo sem efectivamente

as sentir Esse modo ldquoapaacuteticordquo de as armazenar e reutilizar eacute quase uma sublimaccedilatildeo

dessas afecccedilotildees atraveacutes da qual comeccedila a interrogaccedilatildeo de si mesmo e o conhecimento

de si mesmo Em relaccedilatildeo ao papel da memoacuteria sobre estas afecccedilotildees Santo Agostinho

245

Cf De Trin XI 9 16 (CCL 50 p 353) onde o Bispo de Hipona diz que laquoNa sequecircncia que deste

modo comeccedilamos com a forma do corpo e atraveacutes da qual chegamos ateacute agrave forma que eacute originada no olhar

do pensamento encontramos quatro formas como que nascidas gradualmente umas das outras a segunda

da primeira a terceira da segunda a quarta da terceira Da forma do corpo que efectivamente vemos

surge aquela originada no sentido daquele que vecirc por seu turno desta surge aquela que eacute originada na

memoacuteria e desta por sua vez nasce aquela que eacute originada no olhar do pensamentoraquo laquoIn hac igitur

distributione cum incipimus a specie corporis et pervenimus usque ad speciem quae fit in contuitu

cogitantis quattuor species reperiuntur quasi gradatim natae altera ex altera secunda de prima tertia de

secunda quarta de tertia A specie quippe corporis quod cernitur exoritur ea quae fit in sensu cernentis

et ab hac ea quae fit in memoria et ab hac ea quae fit in acie cogitantisraquo

93

diz que ela funciona como um estocircmago da mente (venter animi) que as digere246

Tal

como em relaccedilatildeo ao exterior sensiacutevel a memoacuteria natildeo guarda qualquer corporeidade dele

mas apenas as suas imagens tambeacutem em relaccedilatildeo agraves afecccedilotildees da alma a memoacuteria natildeo

guarda as sensaccedilotildees em si mesmas ndash dessas afecccedilotildees a memoacuteria apenas tem noccedilotildees

(notiones)247

e eacute isso que permite reviver as experiecircncias na memoacuteria de uma forma

educativa

Quando o Bispo de Hipona descreve em Confessionum o episoacutedio do roubo das

peras em que se envolveu na sua juventude faacute-lo dirigindo-se directamente a Deus

estabelecendo um contraponto moral ao qual anexa uma evidecircncia de ordem esteacutetica A

admissatildeo do erro de conduta eacute acompanhada pelo reconhecimento da fealdade da alma

que para sua ruiacutena se afasta do suporte divino248

O enlace entre as dimensotildees eacutetica e

esteacutetica concorre para que em determinadas contextos da perspectiva agostiniana o

pecado surja integrado na proacutepria beleza do universo enquanto um todo ndash podendo este

conformar-se-lhe pela expiaccedilatildeo e podendo mesmo ser usado para glorificar Deus249

Ao promover uma presenccedila figurativa da nossa vida em noacutes mesmos a

memoacuteria conforme descrita por Santo Agostinho parece ser a base da nossa identidade

histoacuterica e do processo de consciecircncia ldquoResponder agrave questatildeo laquoergo sumraquo eacute responder agrave

questatildeo da natureza mesma da memoacuteriardquo250

Diz o Bispo de Hipona que eacute ele que se

lembra na mente e pergunta o que de mais proacuteximo haacute de si do que ele mesmo251

A

246

Cf Conf X 14 21

247 Cf Conf X 14 22 Aleacutem dos dados da sensibilidada das phantasiae e das notiones o conteuacutedo

da memoacuteria eacute tambeacutem composto por rationes As rationes dizem respeito agravequilo que foi aprendido

pelo estudo das artes liberais e satildeo coisas em si mesmas ndash natildeo satildeo imagens de coisas ndash pois

constituem-se como nuacutemeros princiacutepios e leis matemaacuteticas natildeo veiculados pelos sentidos

corpoacutereos Cf Conf X 12 19

248 Cf Conf II 4 9 (CCL 27 p 21) laquo[hellip] turpis anima et dissiliens a firmamento tuo in exterminium [hellip]raquo

249 Cf De Trin XI 5 8 onde Santo Agostinho afirma que mesmo nos pecados as almas mostram alguma

semelhanccedila com Deus

250 Maria Manuela Brito Martins ldquoA leitura heideggeriana do Livro X das Confissotildees de Agostinhordquo

Actas do Congresso Internacional As Confissotildees de Santo Agostinho 1600 anos depois Presenccedila e

actualidade Lisboa Universidade Catoacutelica Editora 2001 p 390

251 Cf Conf X 16 25

94

memoacuteria eacute a proacutepria mente252

ainda que seja a mente empenhada numa actividade

particular

A memoacuteria consegue voltar-se para si mesma e consegue mesmo lembrar-se

do esquecimento Assim o esquecimento que no geral consiste na privaccedilatildeo de

memoacuteria tambeacutem pode portanto ser um conteuacutedo da memoacuteria enquanto imagem

Santo Agostinho parece incorrer numa aporia ao considerar que o esquecimento

pode inscrever a sua imagem e ao afirmar tambeacutem que pela sua acccedilatildeo tudo o que

lembramos eacute destruiacutedo253

Diz ainda que natildeo podemos sequer desejar recordar algo

a menos que tenhamos na memoacuteria ainda que parcialmente a imagem daquilo que

queremos recordar254

A vontade de recordar procede das coisas que estatildeo

armazenadas na memoacuteria

Ao reunir e unificar as lembranccedilas a memoacuteria lida com o tempo de um modo

muito particular que natildeo soacute reitera a sua a sua capacidade compreensiva ao niacutevel da

percepccedilatildeo sensiacutevel como se constitui como uma espeacutecie de dispositivo

transcendentalizador O espaccedilo e o tempo ndash que satildeo as marcas da nossa mortalidade e os

alicerces da percepccedilatildeo sensiacutevel ndash vecircem-se como que espiritualizados pela acccedilatildeo da

memoacuteria ela proacutepria duraccedilatildeo255

Ao fazer participar na sua duraccedilatildeo interior as imagens

dos corpos sensiacuteveis a memoacuteria presentifica o tempo que perenemente se escapa no

sensiacutevel exterior e transcende-o256

No tempo fiacutesico o presente eacute inalcanccedilaacutevel pois natildeo

tem qualquer extensatildeo de duraccedilatildeo ou eacute jaacute passado ou ainda eacute futuro (em ambos os

casos natildeo eacute) A memoacuteria pode reter o passado no seu presente interior e pode antecipar o

futuro estabilizando o curso do tempo ao operar a siacutentese dos seus modos e conceder-lhe

existecircncia A memoacuteria permite a elevaccedilatildeo do pensamento ao plano da eternidade

promovendo um presente interno estaacutevel em que na revisatildeo das experiecircncias passadas

se clarifica uma antevisatildeo do futuro ndash a este futuro a alma espera-o e imagina-o ndash daiacute

que o tempo seja distentio animi e que a existecircncia se possa projectar como intentio animi

252

Cf Conf X 14 21

253 Cf Conf X 16 24 -25

254 Cf De Trin XI 7 12

255 Para um estudo mais aprofundado sobre a memoacuteria como duraccedilatildeo cf Moreau laquoMeacutemoire et Dureacuteeraquo in

REAug 3 1955 pp 239-250

256 Aleacutem da memoacuteria tambeacutem a atenccedilatildeo e a expectaccedilatildeo satildeo funccedilotildees psicoloacutegicas convergentes na criaccedilatildeo

do tempo interior

95

Embora natildeo seja possiacutevel encontrar Deus na memoacuteria Ele torna-se ldquouma

imagem alcanccedilaacutevel no trabalho espiritual da memoacuteriardquo257

Deus eacute o eterno hoje258

pelo

que a estabilidade do presente interior propiciada pela memoacuteria na unificaccedilatildeo dos trecircs

modos temporais conta jaacute como uma aproximaccedilatildeo agrave transcendecircncia divina Viver de

acordo com o homem interior implica o conhecimento de si soacute possiacutevel pelo trabalho

da memoacuteria

257

Doucet laquoLrsquoArs Memoriae dans les Confessionsraquo in REAug 33 1987 p 54

258 Cf Conf I 6 10

97

2 O potencial cognoscitivo da experiecircncia esteacutetica

21 Os fundamentos gnosioloacutegicos da atitude esteacutetica

211 ndash O papel da razatildeo na percepccedilatildeo sensiacutevel

Tanto o sentido interior quanto a memoacuteria parecem funcionar como dispositivos

de intermediaccedilatildeo entre a percepccedilatildeo sensiacutevel e o conhecimento racional Eacute curioso

constatar que se por um lado tal papel intermediaacuterio supotildee um hiato entre a

sensibilidade e o conhecimento por outro lado paralelamente denota a necessidade de

elos entre ambos os domiacutenios Natildeo haacute na perspectiva agostiniana uma correspondecircncia

directa entre sensaccedilatildeo e conhecimento (scientia) nem haacute dependecircncia entre

conhecimento e sabedoria (sapientia) poreacutem o conhecimento natildeo deixa de ser uma

visatildeo mediada constituiacuteda a partir das percepccedilotildees sensiacuteveis e a sabedoria natildeo exclui

radicalmente o conhecimento daquilo que eacute contingente

O conhecimento racional das realidades inteligiacuteveis eternas e imutaacuteveis estaacute

intimamente ligado ao conhecimento de si e por conseguinte ao conhecimento de tudo

mais A alma natildeo consegue entrar em si mesma sem levar consigo nesse percurso

interior as suas imagens ndash as imagens das coisas sensiacuteveis259

A necessidade que a alma

tem de se destacar de tudo o que lhe eacute estranho para se conhecer implica precisamente

o reconhecimento daquilo que lhe eacute alheio e natildeo haacute possibilidade de distanciamento

sem antes a alma imergir em tudo o que directa ou indirectamente se encontra com ela

enleado Por outro lado as imagens das coisas sensiacuteveis tecircm algo de espiritual uma vez

que tais imagens satildeo criadas na alma e com a ldquomateacuteriardquo da proacutepria alma a partir dos

259

De Trin X 8 11 (CCL 50 p325) laquo[mens] non valet sine imaginibus eorum esse in semetipsaraquo De

acordo com passagens anteriores do texto a expressatildeo imagines eorum diz respeito agraves imagens das coisas

sensiacuteveis corpoacutereas

98

objectos sensiacuteveis Assim algo da proacutepria alma eacute comunicado agraves imagens que cria para

si dos objectos sensiacuteveis260

Algo da relaccedilatildeo da alma com o sensiacutevel permanece nela e

trata-se de algo necessariamente positivo que contribui para o crescimento da alma

algo que a faraacute merecedora da Cidade Celeste e de algum modo diferente superior agraves

almas dos primeiros habitantes que dele foram expulsos A alma ressurrecta teraacute um

aperfeiccediloamento ao qual natildeo eacute estranha a relaccedilatildeo com o sensiacutevel um aperfeiccediloamento

que a fortaleceu a ponto de natildeo mais experienciar as paixotildees ndash a ponto de natildeo mais cair

na mortalidade como ocorreu com Adatildeo e Eva

O interesse pelas res temporales eacute mais um indiacutecio do caraacutecter inovador da

perspectiva agostiniana face agrave tradiccedilatildeo neoplatoacutenica em que se filia Para o Bispo de

Hipona podemos contar com um conhecimento seguro do mundo exterior o que de

certo modo antecipa a ideia de um mundo fenomeacutenico261

Em Contra Academicos

critica a utilizaccedilatildeo que os Acadeacutemicos fazem da definiccedilatildeo de Zenatildeo262

problematizando

sobretudo a acepccedilatildeo de verdade nela expliacutecita ao demonstrar que uma verdade loacutegica

garante por si soacute o seu caraacutecter verdadeiro ao niacutevel da percepccedilatildeo263

Para demonstrar a

impossibilidade do conhecimento os Acadeacutemicos socorrem-se da definiccedilatildeo de Zenatildeo

segundo a qual soacute eacute possiacutevel conhecer uma verdade quando o princiacutepio que a gera a

260

Cf De Trin X 5 7

261 Uma das razotildees que levou Santo Agostinho a abandonar o maniqueiacutesmo foi precisamente a

incompatibilidade entre as explicaccedilotildees miacuteticas apresentadas por Mani acerca dos fenoacutemenos naturais e as

explicaccedilotildees cientiacuteficas cuja comprovaccedilatildeo factual descredibilizava a perspectiva maniqueia Cf Conf V

3 6 Procurando evitar que o mesmo descreacutedito ocorresse em relaccedilatildeo ao Cristianismo Santo Agostinho

iraacute constatar uma certa autonomia da ciecircncia face agrave religiatildeo ndash pela capacidade que os homens da ciecircncia

mesmo infieacuteis tecircm de aceder a conhecimentos precisos acerca dos fenoacutemenos naturais ndash e defenderaacute que

natildeo haacute qualquer oposiccedilatildeo entre o conhecimento cientiacutefico e a Escritura natildeo devendo esta ser tomada agrave

letra e sim no caraacutecter metafoacuterico e alegoacuterico de muitas das suas passagens Cf De Gen ad litt I 19 38-

40 e De Trin IV 16 21 Feacute e razatildeo satildeo compatiacuteveis para o Bispo de Hipona a quem certamente

repugnariam condenaccedilotildees da Inquisiccedilatildeo como a de Galileu treze seacuteculos mais tarde Na sua carta de

1615 agrave Gratilde-duquesa da Toscacircnia Cristina de Lorena Galileu cita repetidamente Santo Agostinho de

modo a fundamentar a sua defesa ante a incompreensatildeo da Igreja Cf Galileu Galilei Ciecircncia e feacute cartas

de Galileu sobre o acordo do sistema copernicano com a Biacuteblia Carlos Arthur do Nascimento (trad e

ed) 2ordf ed S Paulo UNESP 2009 p 49-102

262 Trata-se de Zenatildeo de Ciacutetio (334-262 a C) e da sua formulaccedilatildeo do criteacuterio de conhecimento

263 A este propoacutesito Gareth B Matthews refere-se agraves impressotildees cataleacutepticas ndash impressotildees garantidas por

si mesmas pela forma como satildeo recebidas e que reflectem com exactidatildeo aquilo a que se referem

enquanto impressotildees ndash ou seja uma impressatildeo de P que garante que o conhecimento eacute tal que

impossibilita ter esse geacutenero de impressatildeo de P sem ser verdade que P Cf Matthews Augustine Oxford

Blackwell 2005 p 17

99

imprimiu de tal modo na mente que nenhuma outra coisa poderia provocar semelhante

impressatildeo ou seja segundo a qual o verdadeiro eacute reconheciacutevel por certas caracteriacutesticas

que o falso natildeo poderia ter264

Para os Acadeacutemicos tal eacute impossiacutevel de encontrar pelo

que soacute podemos contar com impressotildees incertas e enganos dos sentidos Ora Santo

Agostinho pelo princiacutepio da bivalecircncia argumenta que o simples facto de sabermos

que a definiccedilatildeo de Zenatildeo eacute verdadeira ou falsa desde logo prova que dela podemos

saber algo265

Fica portanto refutada a impossibilidade de encontrar algo que preencha

os requisitos da definiccedilatildeo de Zenatildeo e por conseguinte fica refutada a alegaccedilatildeo dos

Acadeacutemicos de que nada podemos conhecer no mundo sensiacutevel Tal via eacute

complementada pelo argumento ad fallor sum266

de acordo com o qual a proacutepria

realidade do pensamento estaacute acima de qualquer duacutediva ou por outras palavras ainda

que pudeacutessemos duvidar de tudo natildeo poderiacuteamos duvidar do pensamento

A verdade natildeo estaacute fora do alcance humano e eacute absurdo considerar que as

percepccedilotildees sensiacuteveis nos reportam coisas falsas ou enganadoras dada a sua semelhanccedila

com aquilo que para os Acadeacutemicos natildeo conhecemos ndash a verdade O cepticismo eacute

absurdo mesmo admitindo que frequentemente nos enganamos em relaccedilatildeo agraves

percepccedilotildees sensiacuteveis Para Santo Agostinho os sentidos natildeo satildeo enganadores

aproximando-se assim da perspectiva epicurista267

A defesa das percepccedilotildees sensiacuteveis assenta no pressuposto da consciecircncia de que

elas nos reportam apenas aparecircncias ou semelhanccedilas natildeo podendo ser consideradas

deceptivas uma vez que cumprem o que lhes compete268

O erro estaacute em assumir que

essas aparecircncias verdadeiras apenas enquanto tal satildeo verdadeiras em si ou seja o erro

estaacute em natildeo tomar os dados da sensibilidade no seu caraacutecter aparente pois se o mundo

sensiacutevel eacute verissimilis do mesmo modo em que aparenta a verdade tambeacutem apresenta o

risco de a tomarmos pela proacutepria verdade269

mas as consequecircncias deste risco natildeo

deveratildeo imputar-se nem aos sentidos nem ao mundo sensiacutevel

264

Cf Contra Acad II 5 11

265 Cf Contra Acad III 9 21

266 Cf De civ Dei XI 26

267 Cf Contra Acad III 11 26

268 Cf Contra Acad III 9 26

269 Cf Contra Acad I 4 11

100

Como as ilusotildees oacutepticas bem ilustram as sensaccedilotildees satildeo verdadeiras de um

modo muito relativo270

por si soacute as sensaccedilotildees natildeo tecircm qualquer caraacutecter apofacircntico

natildeo permitem a distinccedilatildeo entre falso e verdadeiro a realidade que reportam eacute

necessariamente verdadeira (caso contraacuterio nem sequer existiria) mas o

reconhecimento que dela fazemos nunca eacute directo ndash conforme explicitaacutemos no capiacutetulo

anterior ao analisarmos o desdobramento de formas na siacutentese que vai da sensaccedilatildeo ao

pensamento ndash daiacute que seja comum fazermos juiacutezos errados acerca de conteuacutedos

sensiacuteveis O juiacutezo compete agrave mente e embora no que toca agrave sua formulaccedilatildeo relativa agraves

coisas do universo sensiacutevel seja mais adequado falar em opiniatildeo (opinio) do que em

conhecimento (scientia)271

esse conhecimento eacute possiacutevel e efectivo uma vez que estaacute

sempre pressuposto o criteacuterio de verdade

Soacute podemos formular juiacutezos acerca das realidades sensiacuteveis porque possuiacutemos

uma espeacutecie de padratildeo comparativo que nos sugere se algo eacute falso ou verdadeiro Esse

padratildeo (regula) eacute constituiacutedo pelo acesso da mente agraves ideias e eacute o que nos diferencia dos

restantes animais272

Como anteriormente referimos o Bispo de Hipona natildeo eacute claro porque natildeo

apresenta uma concepccedilatildeo estaacutevel no que respeita aos conceitos de mens e de ratio

chegando por vezes a utilizaacute-los intermutavelmente Seguindo a diferenciaccedilatildeo proposta

por Gilson Santo Agostinho designa ldquoalmardquo (anima animus) o princiacutepio vital que

anima o corpo dos homens e dos restantes animais e que eacute simultaneamente uma

substacircncia racional assumindo em determinados trechos da obra agostiniana o caraacutecter

de ldquosummus gradus animaerdquo273

e neste caso aplicando-se exclusivamente aos seres

humanos Esta uacuteltima acepccedilatildeo corresponde tambeacutem agrave de spiritus na linguagem biacuteblica

270

As sensaccedilotildees satildeo verdadeiras no sentido em que reportam correctamente o que se passa nos sentidos

cai-se facilmente no erro de julgar que aquilo que se passa nos sentidos equivale directamente ao que

ocorre na realidade ndash e tal eacute uma fraqueza do espiacuterito Cf De Gen ad litt XII 25 52

271 Cf Contra Acad III 17 37

272 De Trin XIV 15 21 laquoQuibus ea tandem regulis iudicant nisi in quibus vident quemadmodum

quisque vivere debeat etiamsi nec ipsi eodem modo vivant Ubi eas vident Neque enim in sua natura

cum procul dubio mente ista videantur eorumque mentes constet esse mutabiles has vero regulas

immutabiles videat quisquis in eis et hoc videre potuerit nec in habitu suae mentis cum illae regulae sint

iustitiae mentes vero eorum constet esse iniustas Ubinam sunt istae regulae scriptae ubi quid sit iustum

et iniustus agnoscit ubi cernit habendum esse quod ipse non habet Ubi ergo scriptae sunt nisi in libro

lucis illius quae veritas diciturraquo

273 Civ Dei VII 23 1

101

tal como eacute utilizada pelo Bispo de Hipona em De fide et symbolo X 23 Mas Gilson

constata tambeacutem que o conceito spiritus de acordo com a linhagem porfiriana pode ser

encontrado na obra de Santo Agostinho com a acepccedilatildeo de imaginaccedilatildeo reprodutiva ou

memoacuteria sensiacutevel hierarquizando-se assim de modo crescente entre a vida (anima) e a

mente (mens) tal como surge em De Gen ad litt XII 24 5 A mente (mens) constitui-se

privilegiadamente como parte superior da alma razoaacutevel (animus) comunicando com os

inteligiacuteveis e com Deus274

Em De civ Dei XI 2 o Bispo de Hipona afirma que a mente

(mens) abarca a razatildeo (ratio) e a inteligecircncia (intellegentia) sendo a razatildeo o movimento

pelo qual o pensamento ldquopassa de um dos seus conhecimentos a outro para os associar

ou dissociarrdquo275

Num outro ensaio Gilson associa a mens ao homem interior276

A

inteligecircncia (intellegentia) e o intelecto (intellectus) concernem a uma faculdade

superior agrave razatildeo (ratio) e confundem-se entre si277

A inteligecircncia eacute o que haacute de mais

eminente no homem278

O intellectus pertence agrave mens sendo uma faculdade da alma

proacutepria do homem uma vez que eacute directamente iluminado pela luz divina279

Pode ter-se razatildeo sem se ter inteligecircncia mas natildeo se pode ter inteligecircncia sem se

ter razatildeo o que dita a superioridade do intellectus sobre a ratio mas tambeacutem permite

constatar que eacute por possuir razatildeo que se procura alcanccedilar a inteligecircncia que natildeo eacute mais

do que uma visatildeo interior atraveacutes da qual a mens percebe a verdade que a luz divina lhe

mostra280

Esta luz divina incorpoacuterea que irradia na parte mais excelsa da mente

permite-lhe ver as ideias281

Eacute nesta senda que o Bispo de Hipona contrapotildee a sua teoria

da iluminaccedilatildeo agrave teoria platoacutenica da reminiscecircncia defendendo que a natureza da alma

inteligente eacute tal que de acordo com os desiacutegnios do Criador descobre tudo o que

naturalmente se liga agraves coisas intelectuais por meio de tal luz imaterial e espiritual ndash nas

274

Cf En PsaIII 3 De div quaest 83 7

275 Gilson Introduction agrave lrsquoeacutetude de saint Augustin p 56

276 Idem The Christian Philosophy of Saint Augustine New York Random House 1960 p 117

277 Cf En PsaXXXI 9

278 Cf De lib arb I 1 13

279 Cf In Iohan Evan tract XV 4 19

280 Cf Gilson Introduction agrave lrsquoeacutetude de saint Augustin p 57

281 Cf De Trin XII 15 24

102

palavras do proacuteprio Santo Agostinho sui generis282

ndash da mesma forma que o olho da

carne vecirc o que o rodeia atraveacutes da luz material que percebe e para a qual foi preparado

Na verdade haacute nas obras agostinianas a distinccedilatildeo entre a luz fiacutesica vista pelos

olhos e que eacute ela proacutepria condiccedilatildeo da visatildeo corpoacuterea a luz natildeo corporal que estaacute na

alma e que eacute uma luz viva sempre presente e que permite discernir de modo senciente o

que eacute referido atraveacutes do corpo ao juiacutezo da alma283

e ainda a luz da inteligecircncia que daacute

a ver as ideias Soacute esta uacuteltima eacute exclusiva dos seres humanos A luz que permite a

senciecircncia eacute ainda comum aos animais e corresponde agrave faculdade perceptiva pelo

que como nota o proacuteprio Bispo de Hipona ela emprega meios corpoacutereos para

discernir ndash acccedilatildeo que pode ser afectada pelos defeitos ou maleitas dos sentidos

corpoacutereos embora em momento algum eles possam pocircr em causa a existecircncia desta

luz284

Eacute graccedilas a esta luz na alma que qualquer ser vivo sabe o que deve evitar ou o que

lhe conveacutem Eacute tambeacutem ela que permite discernir (discernere) aquilo que os oacutergatildeos do

corpo apresentam agrave apreciaccedilatildeo da alma ldquo[hellip] como o branco e o negro a melodia e o

ruiacutedo o oloroso e o fedorento o doce e o amargo o quente e o frio e coisas afinsrdquo285

Sem tal luz seriacuteamos forccedilados a ter uma vida vegetativa pois a alma natildeo poderia

relacionar-se com o exterior A ldquoluz da almardquo poderaacute ser entendida como uma outra

formulaccedilatildeo para o sentido interior

Apesar de Santo Agostinho indiciar o paralelo entre as trecircs luzes e os trecircs tipos

de visatildeo em De Genesi ad litteram a verdade eacute que tal equivalecircncia apresenta algumas

incongruecircncias ao niacutevel do par luz senciente286

visatildeo espiritual As duas primeiras luzes

satildeo criadas por Deus sendo portanto mutaacuteveis ao passo que a uacuteltima nasce de Deus

(non creata est sed nata) e eacute a sua proacutepria Sabedoria (ipsa Dei Sapientia)287

Os

primeiros dois tipos de visatildeo ndash a visatildeo corporal e a visatildeo espiritual estatildeo de tal modo

282

Cf Ibid

283 Cf De Gen ad litt imp V 20-24

284 Cf De Gen ad litt imp V 24

285 Ibid laquo[hellip] id est alba et nigra canora et rauca suaveolentia et graveolentia dulcia et amara calida et

frigida et caetera huiusmodiraquo

286 Na verdade o Bispo de Hipona jamais se refere a esta luz como ldquoluz sencienterdquo (lux sentienti)

cataloga-a sim de ldquoluz da vida sensitivardquo (lux vita sentiens) em De Gen ad litt imp V 24 ou ldquoluz

sensualrdquo (lucem sensualem ndash lux sensualis) em De Gen ad litt imp V 25

287 Cf De Gen ad litt imp V 20

103

interligadas que a primeira natildeo poderia ocorrer sem a segunda A visatildeo corporal

baseia-se na relaccedilatildeo entre a percepccedilatildeo sensiacutevel e o primeiro niacutevel de memoacuteria que a

possibilita Desde logo este primeiro niacutevel de visatildeo implica quer a luz solar quer a luz

incorpoacuterea criada que estaacute na alma Esta visatildeo permite a senciecircncia ndash o conhecimento

resultante dos dados da sensibilidade e que natildeo implicando auto-consciecircncia permite

no entanto constatar o estado corpoacutereo face agraves impressotildees288

A visatildeo corpoacuterea natildeo eacute

mais do que a capacidade de sentir ora como na perspectiva agostiniana a sensaccedilatildeo

pressupotildee a actividade da alma natildeo haacute qualquer descontinuidade entre a visatildeo corporal

e a visatildeo espiritual no ser humano Mas esta segunda visatildeo eacute jaacute uma capacidade que natildeo

compartilhamos inteiramente com os restantes animais pois abarca faculdades racionais

que pertencem exclusivamente agrave alma humana ndash desde logo ficando comprometida uma

correspondecircncia total com a segunda luz referida por Santo Agostinho289

A visatildeo

espiritual eacute uma visatildeo mental em relaccedilatildeo directa com a percepccedilatildeo sensiacutevel mas envolve

a actividade da vontade implica um consentimento distinto da reacccedilatildeo instantacircnea e

impulsiva dos outros animais Graccedilas a esta visatildeo o homem pode reagir agrave sensaccedilatildeo de

modo natildeo instintivo290

O homem pode independentemente da visatildeo corporal produzir as suas proacuteprias

visotildees pelo que apesar da visatildeo corporal depender da visatildeo espiritual esta natildeo depende

da primeira291

Tal constataccedilatildeo do filoacutesofo africano levanta alguns problemas

nomeadamente ao pressupor de modo ambivalente que os animais precisam da visatildeo

espiritual para que possam usufruir da visatildeo corporal292

parecendo logo de seguida

negar-lhes tal capacidade espiritual afirmando que ela se refere por exemplo agrave

288

Permite constatar as sensaccedilotildees de prazer por exemplo ou simplesmente constatar que eacute preciso

redireccionar o olhar para ver melhor um objecto perifeacuterico no nosso campo de visatildeo

289 O proacuteprio Santo Agostinho parece admitir as suas limitaccedilotildees quanto agrave perspectivaccedilatildeo das diferentes

visotildees ao prever a possibilidade de existirem vaacuterios patamares nas visotildees espirituais e racionais e ao

justificar a sua incapacidade para explicar mais do que as trecircs ordens de visatildeo referidas Diz reconhecer a

proacutepria ignoracircncia em saber se haveria de definir diferentes espeacutecies de visotildees dentro de cada um dos trecircs

geacuteneros e em definir diversos graus para cada uma das suas espeacutecies Cf De Gen ad litt XII 29 27

290 Cf De Gen ad litt IX 14 25

291 Cf De Gen ad litt XII 24 51

292 Natildeo apenas o pressupotildee como afirma que a visatildeo sensiacutevel e a visatildeo espiritual satildeo simultacircneas (simul)

Cf De Gen ad litt XII 24 51

104

recordaccedilatildeo intencional de algo que estaacute ausente e agrave actividade imaginativa293

Ora em

De Trinitate ao estabelecer as capacidades que na alma satildeo exclusivas do homem e as

que satildeo tambeacutem comuns aos animais o Bispo de Hipona refere precisamente que as

almas dos animais carecendo de determinadas apetecircncias racionais natildeo estatildeo

capacitadas para concentrar a sua atenccedilatildeo intencionalmente numa dada imagem da sua

mente assumindo-a enquanto tal nem satildeo capazes de confiar determinadas imagens agrave

memoacuteria de forma premeditada (de industria commendata) nem de reiterar pelo

pensamento os conteuacutedos da memoacuteria e nem de compor ficccedilotildees imaginaacuterias

reconfigurando partes de lembranccedilas Soacute o homem consegue lidar de tal modo com a

memoacuteria e com a imaginaccedilatildeo tal como soacute o homem tem capacidade para ver como

nesta ordem de coisas o semelhante se distingue do verdadeiro294

Ainda em De

Trinitate Santo Agostinho afirma que tudo o que na nossa alma eacute comum agrave dos animais

eacute atribuiacutevel ao homem exterior que natildeo consiste apenas no corpo mas tambeacutem no

princiacutepio vital que anima o seu organismo e os sentidos As proacuteprias imagens dos

objectos sensiacuteveis gravadas na memoacuteria e reproduzidas pela recordaccedilatildeo (cum

recordando revisuntur) pertencem ainda ao homem exterior e portanto satildeo valecircncias

que tambeacutem comungamos com os animais295

Em De Genesis ad litteram o Bispo de Hipona explica que tal como a visatildeo

corporal depende da visatildeo espiritual tambeacutem a visatildeo espiritual precisa do concurso da

visatildeo intelectual sendo esta a subordinante das duas primeiras296

Soacute a visatildeo intelectual

natildeo estaacute sujeita ao erro pois ela mesma eacute da ordem da verdade Sempre que fazemos

uso desta modalidade superior de visatildeo estamos no acircmbito da verdade297

caso

contraacuterio sequer tal visatildeo eacute activada Sem qualquer problema esta visatildeo corresponde agrave

luz da inteligecircncia que daacute a ver as ideias e que nos permite distinguir o que eacute certo e o

que eacute errado298

As visotildees intelectuais satildeo as que nos apresentam conteuacutedos da proacutepria

293

Cf De Gen ad litt XII 24 51

294 Cf De Trin XII 2 2

295 Cf De Trin XII 1 1

296 Cf De Gen ad litt XII 24 51

297 Cf De Gen ad litt XII 25 52

298 Cf De civ Dei XII 3 (CCL 48 p 358) laquoDe vitiis quippe nunc loquimur eius naturae cui mens inest

capax intellegibilis lucis qua discern justum ab injustoraquo

105

alma como as virtudes de uso eterno (como a piedade) ou de uso meramente temporal

(como a feacute a esperanccedila e a paciecircncia) virtudes estas que satildeo distintas da proacutepria luz

que ilumina a alma e que lhe revela aquilo que em si mesma ela concebe graccedilas a esta

luz ndash uma luz simultaneamente criadora e possibilitadora de visatildeo Diz o Bispo de

Hipona que esta luz eacute o proacuteprio Deus299

Ainda que a alma soacute consiga suportar na sua

vida terrena meros vislumbres de tal luz eacute a ela que deve a compreensatildeo verdadeira das

coisas que estatildeo ao seu alcance Natildeo eacute possiacutevel que na sua existecircncia temporal a alma

veja face a face tal esplendor300

O julgamento das percepccedilotildees sensiacuteveis e das imagens que delas guardamos na

memoacuteria soacute pode ser da alccedilada da visatildeo espiritual pois eacute um juiacutezo ainda sujeito ao erro

poreacutem Santo Agostinho diz que se tal juiacutezo eacute justo ele eacute-o em virtude de regras

imutaacuteveis e superiores agrave nossa alma racional (regulis supra mentem nostram

incommutabiliter manentibus)301

pelo que o juiacutezo das percepccedilotildees sensiacuteveis e das suas

imagens na memoacuteria deve ser reportado agrave visatildeo intelectual A actividade judicativa

deveria ultrapassar a visatildeo corpoacuterea e a visatildeo espiritual norteando-se pelas regras da

verdade eterna soacute assim poderia existir uma correspondecircncia directa entre percepccedilatildeo

sensiacutevel e conhecimento

Conhecer algo em si mesmo eacute conhecer de acordo com a verdade eterna por

conseguinte qualquer juiacutezo sobre as coisas sensiacuteveis deveria exercer-se tambeacutem em

funccedilatildeo das regras da verdade eterna O juiacutezo esteacutetico natildeo escapa a esta loacutegica e natildeo eacute

por acaso que Santo Agostinho associa o reconhecimento da beleza agraves percepccedilotildees dos

nuacutemeros inteligiacuteveis (numeri) que presidem a todas as coisas criadas por Deus302

299

Cf De Gen ad litt XII 31 59 Sol I 1 3 (CSEL 89 p 5) laquoDeus intellegibilis lux in quo et a quo et

per quem intellegibiliter lucent quae intellegibiliter lucent omniaraquo

300 Na beatitude manter-se-atildeo as trecircs visotildees mas com um caraacutecter muito mais unitaacuterio ndash seraacute uma tripla

visatildeo em nenhuma das suas valecircncias sujeita ao erro ou agrave ilusatildeo uma vez que a visatildeo intelectual seraacute

muito mais viacutevida e evidente do que alguma vez a visatildeo sensiacutevel o foi na Terra Continuaraacute a haver

imagens e siacutembolos mas a imaginaccedilatildeo humana ajudada pelos anjos assumi-las-aacute como revelaccedilotildees Soacute a

evidecircncia reinaraacute com uma ordem luminosa sobre as visotildees sensiacuteveis espirituais e intelectuais Cf De

Gen ad litt XII 36 69

301 De Trin IX 6 10

302 Esta questatildeo seraacute desenvolvida ao longo do proacuteximo subcapiacutetulo

106

Muitas vezes o homem eacute demasiado fraco para ver as leis ou regras da

verdade303

Como primeiro patamar dos trecircs niacuteveis de visatildeo a percepccedilatildeo sensiacutevel eacute

ainda algo apartada do conhecimento e pouco contribui para o fortalecimento

ontoloacutegico daiacute que o homem tenha dificuldade em guindar-se dos seus meandros para

ascender ateacute agrave visatildeo intelectual iluminada pela luz da verdade As imagens corpoacutereas

apresentam-se como uma trama confusa (quasi quodam nubilo subtexitur)304

mas que

por si soacute natildeo obstaculiza a visatildeo espiritual ou a visatildeo intelectual Esta uacuteltima eacute

totalmente distinta da visatildeo corpoacuterea e de modo algum se confunde com ela (non

tamen involvitur atque confunditur)305

O ser humano ao contraacuterio dos restantes

animais natildeo eacute refeacutem de tal trama confusa assim o parece explicar o Bispo de

Hipona ao equacionar que tal como no cume de uma montanha podemos ver abaixo

de noacutes nuvens tenebrosas e acima de noacutes a luz sem nuvens tambeacutem na nossa relaccedilatildeo

com as coisas sensiacuteveis ndash quer seja pelo acto perceptivo quer seja pela memoacuteria ou

pela imaginaccedilatildeo ndash podemos por um lado figurar na nossa alma imagens corpoacutereas

ou limitarmo-nos agrave visatildeo corpoacuterea e podemos por outro lado captar (capiens) pela

inteligecircncia (intellegentia) as razotildees e o tipo inefavelmente belo de tais figuras que

estatildeo acima do olhar da mente (super aciem mentis)306

Os trecircs tipos de visatildeo estatildeo longe de ser modalidades perceptivas estanques entre

si e isto tanto vale para o facto da visatildeo intelectual poder ser exercida sobre os objectos

da visatildeo corporal como para o facto de a visatildeo corpoacuterea ser em termos relativos

importante para a visatildeo intelectual A este propoacutesito Carol Harrison afirma que ldquoeacute pelas

percepccedilotildees sensiacuteveis corpoacutereas mediadas pelas imagens espirituais ou recordadas que

o intelecto ou razatildeo tendo caiacutedo da sua contemplaccedilatildeo intuitiva iluminada consegue

ultrapassar a visatildeordquo307

e cita uma passagem onde Santo Agostinho em De Trinitate XI 1 1

refere que devemos tomar como exemplos de semelhanccedila (similitudinem documenta) as

303

Cf Sol I 13 23 e I 6 12

304 De Trin IX 6 10

305 Ibid

306 De Trin IX 6 11

307 Carol Harrison Beauty and Revelation in the Thought of Saint Augustine p 64-65 laquo[hellip] by corporeal

sensible perceptions mediated by spiritual or remembered images the intellect or reason which has

fallen from its illuminated intuitive contemplation is able to move towards visionraquo

107

coisas exteriores e materiais de modo a tentarmos distinguir mais precisamente e

destacar melhor as coisas interiores e espirituais308

Embora a afirmaccedilatildeo de Harrison

ilustre perfeitamente a nossa linha argumentativa natildeo eacute possiacutevel referi-la sem notar a

aparente incongruecircncia entre a expressatildeo ldquointelecto caiacutedo da sua contemplaccedilatildeo

intuitivardquo e aquilo que a autora subscreve criticando as conclusotildees de OrsquoConnell sobre a

presenccedila da teoria da preexistecircncia da alma na perspectiva agostiniana e sobre a ecircnfase

na teoria da ldquoalma caiacutedardquo309

Com efeito tal celeuma remete-nos para a teoria agostiniana da iluminaccedilatildeo e

mais concretamente para a questatildeo da rejeiccedilatildeo da teoria platoacutenica da reminiscecircncia por

parte do Bispo de Hipona Natildeo haacute qualquer duacutevida quanto agrave extraordinaacuteria importacircncia

do dualismo mundo inteligiacutevel mundo sensiacutevel que o platonismo lega ao filoacutesofo

africano As formas platoacutenicas ou ideias enquanto realidades eternas e imutaacuteveis

constituem-se como os objectos do verdadeiro conhecimento a que Santo Agostinho se

refere como rationes aeternae A perspectivaccedilatildeo do modo como acedemos a tais razotildees

eternas estabelece a grande diferenccedila entre a gnosiologia platoacutenica e a gnosiologia

agostiniana ainda que esta uacuteltima natildeo deixe de estar inscrita na matriz neoplatoacutenica

Para Santo Agostinho as ideias ndash ou razotildees310

ndash estatildeo contidas na inteligecircncia divina

(divina intellegentia continentur) Natildeo tendo sido formadas eacute de acordo com elas que

tudo aquilo que nasce e morre foi formado ou seja tudo o que existe qualquer que seja

a sua forma de existecircncia deve-a agrave participaccedilatildeo nas razotildees eternas imutaacuteveis e

verdadeiras A contemplaccedilatildeo de tais razotildees eacute um privileacutegio exclusivo da alma racional

308

A citaccedilatildeo exacta e completa eacute a seguinte laquo[hellip] tamen ut dixi tanta facta est in corporibus consuetudo

et ita in haec miro modo relabens foras se nostra proicit intentio ut cum ab incerto corporum ablata fuerit

ut in spiritu multo certiore ac stabiliore cognitione figatur refugiat ad ista et ibi appetat requiem unde

traxit infirmitatem Cuius aegritudini congruendum est ut si quando interiora spiritualia accommodatius

distinguere atque facilius insinuare conamur de corporalibus exterioribus similitudinum documenta

capiamusraquo laquo[hellip] como o disse estabelecemos uma tal familiaridade com os corpos que a nossa atenccedilatildeo

se projecta para fora de si em direcccedilatildeo a eles de modo tatildeo extraordinaacuterio e que tendo ela sido afastada da

incerteza das coisas corpoacutereas para encontrar no espiacuterito noccedilotildees mais exactas e firmes ela lanccedila-se

novamente em direcccedilatildeo aos objectos sensiacuteveis e aiacute mesmo de onde tirou a sua fraqueza procura refuacutegio

Eacute suposto ser congruente em relaccedilatildeo a este mal de modo que se quisermos discernir mais precisamente e

destacar melhor as coisas interiores e espirituais tomemos exemplos de semelhanccedila a partir das coisas

exteriores e corporaisraquo De Trin XI 1 1

309 Carol Harrison Beauty and revelation in the thought of Saint Augustine p 35

310 Em De div quaest 83 46 2 Santo Agostinho refere que eacute indiferente a nomenclatura ideias formas

espeacutecies ou razotildees A expressatildeo razotildees eternas eacute no entanto bastante mais agostiniana do que qualquer

um dos outros termos

108

pela parte mais excelsa do seu ser Poreacutem nem todas as almas racionais conseguem

aceder a tal contemplaccedilatildeo soacute uma alma santa e pura possui um olho interior ldquosatildeo

sincero sereno e semelhante agraves proacuteprias coisas deseja verrdquo311

estando habilitada para

aceder agraves razotildees

Cada criatura tem de acordo com a sua espeacutecie312

uma razatildeo divina proacutepria que

existe na mente do Criador (in ipsa mente Creatoris) e segundo a qual (secundum id) ele

a constituiu As razotildees podem portanto considerar-se causas exemplares de tudo o que

existe Tal como Platatildeo tambeacutem Santo Agostinho considera que a percepccedilatildeo sensiacutevel

natildeo eacute suficiente para o conhecimento dos universais Platatildeo defendia que a nossa

relaccedilatildeo sensiacutevel com as coisas materiais proporcionaria o reconhecimento a partir da

recordaccedilatildeo das ideias sobrejacentes a tais objectos corpoacutereos Tal reminiscecircncia seria

possiacutevel em virtude de a alma ter preexistido numa regiatildeo divina e aiacute ter contemplado as

ideias mantendo vestiacutegios de tal contacto mesmo apoacutes a sua uniatildeo ao corpo terreno

Gilson afirma que numa fase inicial o filoacutesofo africano teria aceitado a teoria da

preexistecircncia da alma juntamente com o seu ldquocomplemento natural a doutrina da

reminiscecircncia platoacutenicardquo313

Orsquo Connell argumenta que tal aceitaccedilatildeo se manteacutem mesmo

apoacutes o baptismo de Santo Agostinho Segundo este investigador o filoacutesofo africano

segue a via do neoplatonismo ora para Plotino natildeo haveria qualquer oposiccedilatildeo entre a

reminiscecircncia da visatildeo fruiacuteda na preexistecircncia e a iluminaccedilatildeo gozada pela alma na sua

vida terrena Apesar de caiacuteda a alma recorda-se do mundo inteligiacutevel onde habitou

antes da queda natildeo significando tal queda um corte radical com a realidade inteligiacutevel

como se a alma natildeo fosse afinal totalmente caiacuteda314

Assim OrsquoConnell defende a

presenccedila da doutrina da iluminaccedilatildeo em Soliloquiorum e argumenta a favor da

possibilidade de que as teorias da reminiscecircncia e da preexistecircncia da alma se possam

manter de modo natildeo contraditoacuterio no pensamento agostiniano a par da teoria da

iluminaccedilatildeo divina Haacute no entanto que considerar certos trechos em que Santo Agostinho

311

Ibid (CCL 44A p 72) laquo[hellip] sanum et sincerum et serenum et similem his rebus quas videre intendit [hellip]raquo

312 Por exemplo Santo Agostinho diz que a razatildeo de ser de um cavalo natildeo eacute a mesma que a de um

homem Cf Ibid

313 Cf Gilson Introduction agrave leacutetude de saint Augustin p 95

314 Robert J OrsquoConnell ldquoPre-existence in Augustine Seventh Letterrdquo in REAug 15 1-2 1996 p 69

109

parece evidenciar a recusa da teoria da reminiscecircncia315

Em Retractationum natildeo soacute

estaacute manifesto um claro arrependimento pelas consideraccedilotildees elogiosas feitas a Platatildeo e

aos platoacutenicos316

como haacute a condenaccedilatildeo de uma frase presente em Soliloquiorum que

poderia remeter para a possibilidade do acesso ao conhecimento atraveacutes da anamnese317

laquoTais satildeo os espiacuteritos bem formados nos conhecimentos liberais

retiram-nos certamente de si mesmos pelo estudo como se estivessem

enterrados no esquecimento e daiacute de algum modo os desenterram [hellip]raquo

Santo Agostinho afirma ser mais criacutevel que o facto de as mentes quando bem

interrogadas poderem proferir respostas verdadeiras sobre certas mateacuterias que natildeo

estudaram se deva agrave presenccedila da luz da razatildeo eterna em si pela qual vecircem tais verdades

imutaacuteveis e natildeo a um conhecimento preacutevio que tivessem obliterado agrave semelhanccedila do

que Platatildeo e ldquoalguns outrosrdquo pensavam Acrescenta que se insurgiu contra tal opiniatildeo

platoacutenica jaacute no livro deacutecimo segundo de De Trinitate318

Com efeito nesse livro319

Santo Agostinho refere por alto o famoso episoacutedio reportado por Platatildeo no Meacutenon em

que Soacutecrates interroga o escravo conduzindo-o a uma demonstraccedilatildeo geomeacutetrica do

teorema de Pitaacutegoras com o fito de ilustrar a possibilidade de se alcanccedilar um

conhecimento absoluto e irrefutaacutevel atraveacutes de um meacutetodo capaz de reavivar a

bagagem com que a alma viria jaacute munida para esta vida concluindo que aprender eacute

mais recordar conhecimentos passados do que adquirir conhecimentos novos

Santo Agostinho ironiza com tal conclusatildeo platoacutenica dizendo que nem todos

fomos geoacutemetras na vida anterior pelo que ao inveacutes de considerar a extraordinaacuteria

coincidecircncia de Soacutecrates se ter deparado com um mais sensato seraacute considerar que a

315

Como vimos no capiacutetulo 12 do presente ensaio Santo Agostinho nunca chega a admitir nem a negar

a preexistecircncia da alma equacionando-a sempre em termos meramente hipoteacuteticos e frisando a sua

incapacidade para solucionar tal questatildeo

316 Cf Retr I 1 4 Aleacutem de referir tal arrependimento o Bispo de Hipona alerta ainda para a necessidade

de defender a doutrina cristatilde contra os erros destes filoacutesofos

317 Cf Retr I 4 4 A frase em questatildeo pertence a Sol II 20 35 (CSEL 89 p 95) laquoTales sunt qui bene

disciplinis liberalibus eruditi siquidem illas sine dubio in se oblivione obrutas eruunt discendo et

quodammodo refodiunt [hellip]raquo

318 Cf Retr I 4 4

319 Mais concretamente em De Trin XII 15 24-25

110

natureza da alma inteligente eacute tal que de acordo com os desiacutegnios do Criador ela

descobre tudo o que naturalmente estaacute ligado agraves coisas intelectuais atraveacutes de uma

certa luz imaterial do mesmo modo que o olho da carne vecirc o que o cerca com a

ajuda da luz material que eacute apto a receber e para a qual foi concebido Santo

Agostinho refere-se ainda agraves sensaccedilotildees de deacutejagrave vu condenando quem considere que

satildeo reminiscecircncias de situaccedilotildees experienciadas pela alma numa vida anterior num

outro corpo Explica que se trata de falsas memorias semelhantes agraves que se

experienciam durante os sonhos quando nos parece que recordamos coisas que

jamais fizemos ou vimos e aventa ainda a possibilidade de se deverem agrave influecircncia

de espiacuteritos maus e enganadores (instintctu spirituum malignorum atque fallacium)

dedicados a lograr os homens criando ideias falsas acerca de regressos das almas320

Muito antes de ter escrito as suas retractaccedilotildees e um pouco antes de De

Trinitate jaacute na carta de 415 a Jeroacutenimo eacute possiacutevel reconhecer a relutacircncia

agostiniana em relaccedilatildeo agrave preexistecircncia da alma quando aponta a incongruecircncia

daqueles que postulam que a alma jaacute teria existido algures sem pecado tendo sido

enviada por Deus para o corpo terreno e o facto de as almas sem pecado

obedecerem descendo aos corpos ficando algumas sujeitas ao castigo divino em

virtude dos seus corpos falecerem ainda na primeira infacircncia sem baptismo Santo

Agostinho vecirc na preexistecircncia da alma uma incompatibilidade com a maacutecula do

pecado adamita eacute heresia considerar que Deus castiga almas sem maacutecula pelo

pecado de Adatildeo321

Sem que a teoria da preexistecircncia da alma pudesse servir ao Bispo de Hipona

como fundamento para a aquisiccedilatildeo do conhecimento sobre as ideias a teoria da

reminiscecircncia platoacutenica perde pertinecircncia pelo que Santo Agostinho lhe contrapotildee a

sua teoria da iluminaccedilatildeo divina muito mais de acordo com os conteuacutedos

veterotestamentaacuterios A gnosiologia agostiniana passa pela consideraccedilatildeo de que em

virtude de ter sido criada agrave imagem de Deus a alma humana pode granjear

inatamente o acesso agraves ideias Natildeo eacute pela reminiscecircncia nem pela experiecircncia e

nem mesmo pela aprendizagem que acedemos agraves realidades inteligiacuteveis

320

Cf De Trin XII 15 24

321 Cf Ep 166 9 27

111

O papel da memoacuteria manteacutem-se como um elo relativamente ao processo de

conhecimento professado pelo platonismo mas agora como possibilitadora da

lembranccedila com base na presenccedila da luz divina em noacutes a activaccedilatildeo dos conhecimentos

latentes eacute em uacuteltima instacircncia devida ao Mestre interior Cristo O Verbo divino estaacute na

origem do fiat lux ndash criaccedilatildeo e iluminaccedilatildeo convergem e repercutem-se na incarnaccedilatildeo do

proacuteprio Deus que vem agrave Terra para o apelo caridoso ao reconhecimento da via interior

que a Si conduz

A iluminaccedilatildeo divina natildeo deveraacute considerar-se como uma impressatildeo das formas

inteligiacuteveis na mente humana pois isso faria de noacutes receptores passivos da actividade

intelectual divina Quer para Gilson quer para Copleston a iluminaccedilatildeo divina natildeo dota

propriamente a mente humana com conteuacutedos mas com estruturas puramente formais

de modo a que em cada acto judicativo a mente entra em contacto com algo imutaacutevel e

eterno322

A existecircncia de verdades eternas e imutaacuteveis na mente humana eacute por si uma

prova da existecircncia de Deus323

A preocupaccedilatildeo do Bispo de Hipona relativamente agrave iluminaccedilatildeo divina natildeo

contempla meramente a questatildeo da origem do conhecimento das formas mas tambeacutem a

questatildeo da necessidade de certezas e da validade dos nossos juiacutezos e conhecimentos

Certas ideias satildeo necessaacuterias e imutaacuteveis e em relaccedilatildeo a elas o nosso intelecto eacute

simultaneamente passivo e activo passivo no sentido em que o nosso conhecimento de

tais formas ideias eacute-nos doado pela graccedila divina e activo porque essa daacutediva se

manteacutem latente em noacutes e soacute eacute activada se intencionalmente nos prepararmos para a

utilizar subordinando as nossas experiecircncias a uma espeacutecie de autoridade reguladora

que tais formas podem exercer enquanto regra (regula) A actividade da mente a este

niacutevel da aplicaccedilatildeo normativa das formas deve prolongar-se no campo da percepccedilatildeo

sensiacutevel pois todos os objectos que percepcionamos devem ser ajuizados de acordo

com tais formas324

Natildeo eacute por acaso que em De musica quando Santo Agostinho

322

Note-se por exemplo em De libero arbitrio III V 13 (CCL 29 p 282) a passagem que refere que a

alma humana estaacute naturalmente unida agraves ideias eternas das quais depende e a partir das quais ajuiacuteza as

restantes realidades com que se depara laquoHumana quippe anima naturaliter divinis ex quibus pendet

connexa rationibus cum dicit melius hoc fieret quam illud si verum dicit et videt quod dicit in illis

quibus connexa est rationibus videtraquo

323 Cf Gilson History of Christian Philosophy in the Middle Ages NY Random House 1954 p 76 e

Copleston A History of Philosophy vol 2 Westminster Newman Press 1962 p 64

324 Cf De vera relig 32 57-58 Conf VII 17 23

112

descreve o reconhecimento do primeiro verso do hino ambrosiano Deus creator

omnium se assiste a um escalonamento de processos que clarifica o papel do homem

interior em relaccedilatildeo agrave sensibilidade e que enfatiza as implicaccedilotildees numeacutericas presentes em

qualquer percepccedilatildeo325

Em De Trinitate o Bispo de Hipona clarifica que as razotildees eternas natildeo estatildeo

sujeitas agrave mesma mutabilidade que caracteriza a razatildeo humana326

por aqui se pode

inferir que as razotildees natildeo se confundem com a mente independem dela e apesar de lhe

terem sido doadas e de estarem nela subsistem acima de tudo na mente de Deus Soacute de

modo derivativo ndash porque o homem eacute agrave imagem de Deus ndash eacute que se encontram na mente

humana A estrutura racional humana tem sempre acesso agraves ideias mesmo que o

homem nunca as reconheccedila como predisposiccedilatildeo racional para a verdade e erradamente a

procure por vias iacutempias327

Essa procura errante fora de si significa que o homem se

queda ao niacutevel ratio inferior Soacute fazendo uso da faculdade da ratio superior pode haver

o reconhecimento dos nuacutemeros presentes em todas as coisas e da luz inteligiacutevel que daacute a

ver as ideias

325

Cf De mus VI 9 23

326 Cf De Trin XII 2 2

327 A via para a verdade passa sobretudo pela feacute enquanto forma de conhecimento que antessente as

razotildees eternas mas natildeo deveremos considerar que a feacute precede as condiccedilotildees de conhecimento pelo

contraacuterio eacute tal estrutura racional que permite a liberdade para a feacute ndash liberdade que pode ou natildeo ser

usufruiacuteda ainda que todos a tenham Cf De lib arb II 14 37-38 Na captaccedilatildeo das ideias a mente faz

uso de uma capacidade intuitiva aleacutem da discursividade e do raciociacutenio

113

212 ndash A propedecircutica do olhar e a aprendizagem da razatildeo com vista agrave beata vita

A distinccedilatildeo agostiniana entre ratio superior e ratio inferior eacute feita em De

Trinitate natildeo sem que o filoacutesofo advirta para o facto de a ratio inferior ser um princiacutepio

que natildeo cinde a unidade racional328

A distinccedilatildeo em causa natildeo eacute portanto substancial

mas relacional uma vez que diz respeito a duas modalidades de relaccedilatildeo que a alma

humana pode encetar ndash ora constituindo como objecto de relaccedilatildeo os dados da percepccedilatildeo

sensiacutevel e as realidades materiais ora reconhecendo-se ela proacutepria como objecto da luz

divina capaz de reconhecer as razotildees eternas e relacionar-se com tudo o mais em

funccedilatildeo delas

Agrave ratio superior cabe-lhe especificamente direccionar a alma para a

contemplaccedilatildeo das coisas eternas discernindo a realidade inteligiacutevel a sua fonte e a sua

proacutepria condiccedilatildeo de acesso a tal conhecimento como alma divinamente iluminada329

Nesta senda apesar de contemplativo e independente do conhecimento das realidades

sensiacuteveis (scientia) este conhecimento das realidades inteligiacuteveis (sapientia) tem uma

aplicaccedilatildeo concreta no norteamento da vida terrena dos homens ao facultar um modo

normativo que estes satildeo livres de atender ou ignorar A visatildeo intelectual eacute pois uma

funccedilatildeo da ratio superior que permite o mais elevado niacutevel de conhecimento no qual

natildeo interveacutem a sensaccedilatildeo

A ratio inferior possibilitando a visatildeo espiritual diz respeito ao conhecimento

racional das coisas temporais Eacute a partir dela que eacute feito o juiacutezo dos dados da percepccedilatildeo

sensiacutevel A actividade da razatildeo inferior deve por isso procurar esclarecer-se pela

atenccedilatildeo e fortalecimento da ratio superior da qual aliaacutes deriva e em relaccedilatildeo agrave qual natildeo

328

Cf De Trin XII 3 3

329 Quase como se a alma reconhecesse na sua condiccedilatildeo de iluminada uma estrutura a priori de

conhecimento

114

pressupotildee um divoacutercio podendo inclusivamente ser considerada como uma auxiliar

subordinada330

Uma eacute inteligecircncia (intellectum) e conselho (consilium) ao passo que a

outra eacute acccedilatildeo (actio) e execuccedilatildeo (exsecutio)

Natildeo eacute evidente que haja uma correspondecircncia entre homem interior homem

exterior e razatildeo superior razatildeo inferior apesar de Santo Agostinho afirmar que laquoonde

comeccedila a surgir qualquer coisa que natildeo nos seja comum com os animais aiacute comeccedila a

razatildeo e aiacute pode ser reconhecido o homem interiorraquo331

De acordo com tal

afirmaccedilatildeo entende-se que ao homem exterior correspondem apenas capacidades

sub-racionais ndash como a do sentido interior ndash partilhadas pelos animais A ratio inferior

natildeo pode portanto corresponder ao homem exterior uma vez que jaacute natildeo eacute uma funccedilatildeo

da alma que tenhamos em comum com os animais

Soacute o homem acede ao conhecimento elevando-se do plano dos sentidos para o da

verdade O conhecimento eacute uma funccedilatildeo (officium) da razatildeo se for adquirido atraveacutes das

estruturas humanas constitui-se como scientia se for adquirido atraveacutes das estruturas

supra-racionais (Ideias) constitui-se como sapientia Para o Bispo de Hipona a ratio

deve tambeacutem empenhar-se no bom uso das coisas temporais o que aliado ao facto de

ser atraveacutes dos sentidos corpoacutereos que tais coisas materiais se fazem sentir leva o

filoacutesofo a apelidar o conhecimento de scientia actionis e a referir-lhe a capacidade da

ratiocinatio Agrave sapientia que eacute da ordem da contemplaccedilatildeo tambeacutem eacute dado o nome de

noccedilatildeo da sabedoria (ratio sapientiae) e Santo Agostinho refere-lhe a capacidade da

intellegentia332

Eacute possiacutevel considerar a vera ratio a que Santo Agostinho alude por diversas

vezes333

como a articulaccedilatildeo entre a ratio inferior e a ratio superior que permite a

330

Cf De Trin XII 3 3 (CCL 50 357-8) em especial laquo[hellip] in auxilium societatis quasi derivatumraquo

331 De Trin XII 8 13 (CCL 50 368) laquo[hellip] unde incipit aliquid occurrere quod non sit nobis commune

cum bestiis indeincipit ratio ubi iam homo interior possit agnosciraquo Note-se igualmente a afirmaccedilatildeo

expliacutecita de De Trin XII 1 1 (CCL 50 p 356) em que eacute dito que tudo o que temos na alma de comum

com os animais eacute ainda com razatildeo atribuiacutedo ao homem exterior laquoQuidquid enim habemus in animo

commune cum pecore recte adhuc dicitur ad exteriorem hominem pertinereraquo

332 De Trin XII 12 17 (CCL 50 pp 371-2) laquoQuandoquidem de ipsis corporalibus quae sensu corporis

sentiuntur ratiocionatur ea quae scientia dicitur actionis [hellip] sensu quippe corporis corporalia sentiuntur

aeterna vero et incommutabilia spiritalia ratione sapientiae intellegunturraquo

333 Sobretudo em De lib arb III 5 13-17

115

rectidatildeo do acto cognitivo relativamente a qualquer realidade percepcionada334

Essa

rectidatildeo traduzir-se-aacute portanto no uso natildeo isolado da ratio inferior ou por outras

palavras no condicionamento da scientia pela ratio superior O conhecimento de uma

qualquer realidade temporal eacute devido ao exerciacutecio da ratio inferior e pode quedar-se por

aiacute o processo de agniccedilatildeo das espeacutecies sensiacuteveis no entanto o facto de o proacuteprio Bispo

de Hipona salientar que a dicotomia ratio inferior ratio superior natildeo pressupotildee uma

cisatildeo na unidade racional335

parece autorizar que se perspective uma fluidez natural

entre os niacuteveis de cogniccedilatildeo A sapientia ou o exerciacutecio da ratio superior parece ter

efectivamente uma aplicaccedilatildeo mais abrangente natildeo se limitando ao conhecimento de

realidades inteligiacuteveis como os numeri ou as virtudes Tal conhecimento natildeo eacute esteacuteril

relativamente agrave ratio inferior que dele colhe precisamente a possibilidade de fundar o

seu niacutevel cognitivo num ordo rerum A vera ratio natildeo equivale apenas agrave ratio superior

como agrave primeira vista poderia parecer ela resulta desse conuacutebio entre ambos os

princiacutepios racionais e eacute por isso usada por Santo Agostinho tambeacutem relativamente agrave

recta judicaccedilatildeo das naturezas sensiacuteveis O proacuteprio facto de o homem ser capaz de

hierarquizar correctamente qualquer realidade qualificando-a natildeo do ponto de vista da

utilidade mas de acordo com a luz da verdade parece comprovar esta ideia336

Na vera

ratio estaacute pois impliacutecito um processo de afericcedilatildeo em que as diversas realidades

inferiores satildeo escalonadas subordinando-se ordenadamente agraves realidades superiores e

em uacuteltima instacircncia agrave verdade A conformidade do nosso conhecimento com a verdade

depende de uma elevaccedilatildeo da ratio em si mesma uma vez que a recta consideraccedilatildeo dos

objectos cognosciacuteveis implica que o sujeito atenda agraves rationes aeternae que estatildeo para

laacute de si e dos objectos cognosciacuteveis Ora respeitando e descobrindo em si mesma essa

ordenaccedilatildeo ou estrutura veritativa a razatildeo percebe-se iluminada e apta a aferir qualquer

realidade relativamente agraves ideias eternas O conhecimento de si o conhecimento das

coisas e o conhecimento de Deus relacionam-se intimamente e salvaguardando as

devidas especificidades podem reportar-se agrave famosa trilogia esse nosse velle

apresentada pelo Bispo de Hipona em Confessionum337

334

Nessa articulaccedilatildeo a feacute tem um papel fundamental que adiante explicitaremos

335 Cf De Trin XII 3 3

336 Cf De lib arb III 5 17

337 Conf XIII 11 12 (CCL 27 p 247) laquo[hellip] Dico autem haec tria esse nosse velle Sum enim et scio et

volo sum sciens et volens et scio esse me et velle et volo esse et scire In his igitur tribus quas sit

116

O conhecimento das realidades sensiacuteveis pela ratio inferior limita-se a uma

compreensatildeo articulada das coisas que permite o seu perfeito reconhecimento e permite

estabelecer analogias e relaccedilotildees de causalidade338

orientando a acccedilatildeo humana de um

modo que poderaacute considerar-se loacutegico e pragmaticamente eficaz poreacutem sem que haja

um conuacutebio entre acccedilatildeo e contemplaccedilatildeo ndash entre ciecircncia e sabedoria ndash a conduta humana

vecirc-se desprovida dos verdadeiros criteacuterios normativos que correctamente a podem

nortear Soacute pela sapientia eacute possiacutevel aferir as realidades corporais em funccedilatildeo das razotildees

eternas ajuizando as primeiras relativamente agrave distacircncia qualitativa que as separa das

segundas A distinccedilatildeo entre ratio superior e ratio inferior como que determina o acesso

a uma espeacutecie de visatildeo binocular da realidade pois salvaguardando sempre a unidade

da ratio possibilita que qualquer relaccedilatildeo com os sensibilia possa manter um viacutenculo

com a esfera inteligiacutevel e possa reconhecer e minorar o erro de paralaxe a que o homem

estaacute sujeito dada a sua situaccedilatildeo no mundo terreno Por outras palavras nesta distinccedilatildeo

parece estar impliacutecita a ideia de que haacute um aperfeiccediloamento a fazer a partir da nossa

relaccedilatildeo com as coisas temporais

Conforme anteriormente expusemos natildeo haacute uma descontinuidade entre homem

exterior e homem interior na antropologia agostiniana339

facto que tambeacutem contribui

para apoiar o argumento de que a razatildeo pode encontrar na experiecircncia sensiacutevel uma

propedecircutica para o aperfeiccediloamento da alma Haacute uma conversatildeo do olhar340

mais do

que um abandono dos sentidos no percurso ateacute agrave Verdade e como natildeo poderia deixar de

ser a esse percurso natildeo eacute alheia a dimensatildeo esteacutetica O olhar interior ndash razatildeo ndash nutre-se

tambeacutem das belezas inferiores que a visatildeo sensiacutevel lhe reporta e que assume como

indiacutecios de uma beleza maior Haacute um exercitamento da razatildeo per corporalia ad

incorporalia que o Bispo de Hipona abordaraacute em relaccedilatildeo agrave temaacutetica das artes liberais

mas que poderaacute tambeacutem ser perspectivado na esteira da matriz neoplatoacutenica pela qual a

contemplaccedilatildeo da esfera da Verdade ou do Bem exige uma preparaccedilatildeo do olhar

inseparabilis vita et una vita et una mens et una essentia quam denique inseparabilis distinctio et tamen

distinctio videat qui potestraquo

338 A previsibilidade natildeo eacute portanto de se descartar da scientia

339 Vide subcapiacutetulo I14 da presente tese

340 Esta eacute aliaacutes a tese de Luiacutes Evandro Hinrichsen A conversatildeo do olhar um estudo do ato estimativo

esteacutetico segundo Agostinho de Hipona Porto Alegre Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do

Sul 2007

117

Para Platatildeo o poder da alma capaz de suportar a luz que ilumina todas as

realidades eacute a razatildeo341

a alegoria da caverna descreve como a activaccedilatildeo da plena

visualidade exige um adestramento do olhar que sumariamente consiste na mudanccedila

gradual das realidades a contemplar342

e que no retorno ao contexto original

predisporia a uma nova perspectiva sobre o visiacutevel Ligando a simboacutelica da visatildeo agrave

temaacutetica do conhecimento e da ascese esta alegoria pode ajudar a explicitar o modo

aparentemente ambivalente como Santo Agostinho se refere agraves naturezas sensiacuteveis pois

com efeito quando em algumas das suas obras haacute a advertecircncia para que o homem

deixe para traacutes tais realidades que os sentidos corpoacutereos nos reportam tal posiccedilatildeo

agostiniana visa sobretudo apelar a uma mudanccedila do niacutevel cognitivo do sujeito face a

essas realidades Quanto mais capacitada estiver a ratio menos preso se estaraacute a uma

visatildeo parcial do mundo O olho interior deve sobrepor-se ao olhar exterior

subordinando-o e considerando os seus objectos sempre para aleacutem de si mesmos

Tal perspectiva que assume as realidades sensiacuteveis como imagens do inteligiacutevel

e como indiacutecios capazes de guiar o sujeito para a esfera superior desde que bem

ajuizados tem como principal fonte Plotino ainda que a perspectiva deste autor seja

bastante mais ambivalente Tambeacutem nas Eneacuteadas haacute passagens que atestam a

possibilidade da conversatildeo do olhar exterior em olhar interior atraveacutes da contemplaccedilatildeo

esteacutetica em que da beleza sensiacutevel a alma eacute conduzida ateacute agrave beleza inteligiacutevel e desta

ateacute ao Uno No tratado Acerca do Belo o Licopolitano esclarece que o olhar percebe o

belo e que a alma o reconhece recordando-o a partir de um antigo conhecimento Nesse

processo a alma entra em consonacircncia com a beleza identificando-se com ela As

341

Cf Platatildeo Repuacuteblica VII 518c-518d

342 Primeiro deveraacute comeccedilar por distinguir as sombras depois as imagens dos homens e dos outros

objectos reflectidos nas aacuteguas seguidamente os proacuteprios objectos a claridade dos astros durante a noite e

soacute por fim o proacuteprio Sol Sem tal processo gradativo a visatildeo ficaria comprometida pelo ofuscamento e

pela dor Em Soliloquiorum I 13 23 Santo Agostinho exemplifica de modo muito semelhante que a

preparaccedilatildeo do olhar interior para alcanccedilar a sapientia se processa de um modo gradativo anaacutelogo agrave

preparaccedilatildeo dos olhos exteriores para ver o sol Diz o Bispo de Hipona que estes deveratildeo comeccedilar por

observar as coisas que natildeo brilham por si mesmas e que precisam de uma luz que lhes eacute alheia para

poderem ser vistas como por exemplo uma parede depois deveratildeo dirigir-se para as coisas que reflectem

com maior vivacidade tal luz exterior como o ouro ou a prata cujo brilho natildeo fere os olhos

seguidamente poderatildeo contemplar o brilho do fogo terrestre o brilho dos astros como a lua e o brilho das

auroras e do nascer do dia soacute depois poderatildeo contemplar o sol sem se ferirem

118

realidades materiais devem a sua beleza agrave comunhatildeo com uma forma ideal343

pelo que

a beleza das coisas corpoacutereas remete para a beleza das coisas incorporais e a alma atinge

a beleza inteligiacutevel tambeacutem por meio das belezas sensiacuteveis344

Tais belezas participadas

cativam a atenccedilatildeo do homem ndash se a alma se preparar devidamente purificando-se

poderaacute ascender ateacute agrave beleza primordial que na henologia plotiniana se identifica com

o Ser reportando-se ao Intelecto

O facto de a alma ser cativada pelas belezas materiais pode supor duas

interpretaccedilotildees que natildeo satildeo totalmente contraditoacuterias nem inconciliaacuteveis a primeira eacute a

de que haacute uma espeacutecie de dimensatildeo propagandiacutestica nas belezas terrenas que promove o

encontro com a beleza superior e por extensatildeo com o plano inteligiacutevel a segunda eacute a

de que a alma arrisca ficar presa a essas realidades materiais onde encontra espelhadas

imagens fugidias da verdadeira beleza confundindo-as com esta e natildeo se esforccedilando

por encetar o processo de purificaccedilatildeo e ascese de retorno agrave origem345

Plotino apresenta

ambas as perspectivas embora a segunda acabe por evidenciar maior preponderacircncia

nas Eneacuteadas346

De qualquer modo ambas as consideraccedilotildees supotildeem a ideia de que a

alma pode e deve esforccedilar-se por substituir o modo de visatildeo exterior pelo modo da

visatildeo interior347

e para tal precisa de uma habituaccedilatildeo que passa pela consciecircncia de que

haacute uma ordem e uma hierarquizaccedilatildeo cujo niacutevel inferior eacute ocupado pelas belezas

materiais seguido pelas belas ocupaccedilotildees depois pelas belas obras da moral e pelas

343

Mais concretamente Plotino afirma que a beleza das coisas materiais proveacutem da sua comunhatildeo com o

pensamento (razatildeo logos) que emana dos deuses En I 6 2

344 Cf En I 6 3

345 Cf En I 6 8

346 A perspectiva que consigna um papel mais positivo nunciativo agraves belezas materiais por norma

cumpre na filosofia plotiniana propoacutesitos antignoacutesticos O gnosticismo estaraacute para Plotino como o

estoicismo para Santo Agostinho Apesar de algumas vezes integrar elementos da filosofia estoacuteica o

Bispo de Hipona viu-se na necessidade de refutar vaacuterios pressupostos do estoicismo por exemplo

acusando os seus aspectos contraditoacuterios ndash como o que ocorre na promoccedilatildeo da felicidade e na aceitaccedilatildeo

do suiciacutedio ndash ou problematizando o conceito de apatheia Em termos gerais a suas refutaccedilotildees acabam por

predispor a uma consideraccedilatildeo menos negativa das realidades sensiacuteveis e dos sentidos O mesmo se

verifica no caso plotiniano em relaccedilatildeo aos gnoacutesticos contra os quais escreve um tratado que em virtude

da organizaccedilatildeo feita por Porfiacuterio acaba por ser desmembrado e disperso nas Eneacuteadas Cf Vincenzo

Cilento Paideia antignostica Ricostruzione di un unico scritto da Enneadi III8 V8 V5 II9 Firenze

Monnier 1971

347 Cf En I 6 9

119

almas daqueles que realizam as belas obras348

O reconhecimento desta escala de

belezas culmina na semelhanccedila do olhar com o objecto da contemplaccedilatildeo Diz Plotino

que a alma soacute pode contemplar a beleza primordial se antes se tornar bela

Mas se tentares contemplar com um olhar sujo pelo viacutecio e impuro incapaz

de sustentar a visatildeo de objectos muito brilhantes ele entatildeo natildeo veraacute nada [hellip] Eacute

necessaacuterio tornar o oacutergatildeo da visatildeo afim e similar agrave coisa que contempla Nenhum

olho na verdade jaacute viu o sol sem se tornar semelhante ao sol nem a alma pode

ver a beleza sem se tornar bela349

Em suma para Plotino a beleza coincide com o inteligiacutevel e a sua busca

coincide com aquela que leva a alma ao conhecimento do Intelecto A perspectiva de

Santo Agostinho eacute anaacuteloga podendo inferir-se a conversatildeo do olhar pela educaccedilatildeo da

razatildeo na qual estaacute impliacutecito o tracircnsito do sensiacutevel ao inteligiacutevel e o estiacutemulo que a

estese das realidades sensiacuteveis exerce sobre a alma Toda a criaccedilatildeo exalta o criador350

e

nela haacute traccedilos (vestigia) da unidade agrave qual remonta a sua origem Basta utilizar os olhos

da alma e indagar as razotildees do prazer resultante da contemplaccedilatildeo de uma bela simetria

para poder encontrar o plano superior Essa eacute a ideia presente em De vera religione

quando o Bispo de Hipona refere que se perguntasse a um trabalhador a razatildeo de querer

edificar um arco em face de outro que acabara de construir este natildeo saberia dar-lhe

outra justificaccedilatildeo para aleacutem da necessidade de estabelecer uma simetria capaz de

agradar ao olhar Tratando-se de um homem capaz de usar os seus olhos interiores

certamente que correctamente instigado compreenderia que as coisas belas agradam

porque satildeo belas contrariamente agrave ideia de que satildeo belas porque agradam e

compreenderia ainda que tais belezas advecircm de uma unidade que lhes eacute superior a qual

de certo modo apenas simulam (eam quodammodo mentiantur) Essa unidade eacute

tambeacutem o iacutendice de referecircncia operante na correcta judicaccedilatildeo dos corpos351

Haacute

portanto uma via esteacutetica que atraveacutes da experiecircncia sensorial promove o

348

Cf En I 6 9

349 Ibid laquoἘὰν δὲ ἴῃ ἐπὶ τὴν θέαν λημῶν κακίαις καὶ οὐ κεκαθαρμένος ἢ ἀσθενής ἀνανδρίᾳ οὐ δυνάμενος

τὰ πάνυ λαμπρὰ βλέπειν οὐδὲν βλέπει [hellip] Τὸ γὰρ ὁρῶν πρὸς τὸ ὁρώμενον συγγενὲς καὶ ὅμοιον

ποιησάμενον δεῖ ἐπιβάλλειν τῇ θέᾳ Οὐ γὰρ ἂν πώποτε εἶδεν ὀφθαλμὸς ἥλιον ἡλιοειδὴς μὴ γεγενημένος

οὐδὲ τὸ καλὸν ἂν ἴδοι ψυχὴ μὴ καλὴ γενομένηraquo

350 Conf XI 4 7 (CCL 27 197) laquoTe laudant haec omnia creatorem omniumraquo

351 De vera relig 32 59- 60

120

conhecimento da realidade inteligiacutevel e consequentemente revela agrave ratio a chave da

hierarquizaccedilatildeo qualitativa do real Eacute no reconhecimento de tal hierarquizaccedilatildeo que se

funda a possibilidade de um compromisso mais adequado com as naturezas sensiacuteveis e

em uacuteltima instacircncia que se funda o exerciacutecio das virtudes

A celeuma sobre o primado da razatildeo ou da feacute na perspectiva agostiniana

encontra aqui um bom terreno de exploraccedilatildeo A bem conhecida formulaccedilatildeo agostiniana

crede ut intellegas352

natildeo promoveu interpretaccedilotildees consensuais acerca da relaccedilatildeo entre

feacute e razatildeo A vera ratio revela-se com efeito uma expressatildeo sinoacutenima de vera religio

traduzindo ambas ldquoa relaccedilatildeo ontoloacutegica entre a mente e a Verdaderdquo353

e sugerindo uma

convergecircncia de tal ordem entre a feacute e a razatildeo que leva ao seu entendimento como uma

unidade orgacircnica em peacute de igualdade mais do que em termos de relaccedilatildeo hieraacuterquica A

exploraccedilatildeo das diversas matizes da suposta hierarquia entre razatildeo e feacute natildeo deixa no

entanto de propiciar o esclarecimento de ambos os termos

Nem a razatildeo sem a feacute eacute legiacutetima ndash como bem ilustra a criacutetica agostiniana agrave

soberba dos filoacutesofos neoplatoacutenicos354

ndash nem a feacute cega (nulla fides) eacute desejaacutevel ou

verdadeira 355

O aforismo de Isaiacuteas Nisi credideritis non intelligetis (Is 7 9) eacute amiuacutede

citado por Santo Agostinho a propoacutesito desta questatildeo parecendo outorgar primazia agrave feacute

No entanto poder-se-aacute legitimamente objectar que a feacute encontra as condiccedilotildees da sua

possibilidade no conhecimento racional ndash natildeo eacute por acaso que a feacute se assume como uma

352

Sermo XLIII 4 (CCL 41 p 509) laquoDicit mihi homo Intellegam ut credam Respondeo Crede ut

intellegas Cum ergo nata inter nos sit controversia talis quodam modo ut ille mihi dicat Intellegam ut

credam ego ei respondeam Immo crede ut intellegas [hellip]raquo 7 laquoTu dicebas Intellegam ut credam Ego

dicebam Ut intellegas crede Nata est controversia veniamus ad iudicem iudicet Propheta immo vero

Deus iudicet per Prophetam Ambo taceamus Quid ambo dixerimus auditum est Intellegam inquis ut

credam Crede inquam ut intellegas Respondeat Propheta Nisi credideritis non intellegetisraquo Sermo

CXVIII 1 (PL 38 c 672) laquoSi non potes intellegere crede ut intellegas Praecedit fides sequitur

intellectus quoniam propheta dicit Nisi credideritis non intellegetisraquo In Iohan Evang tract XXIX 6

(CCL 36 p 287) laquoSi non intellexisti inquam crede Intellectus enim merces est fidei Ergo noli quaerere

intellegere ut credas sed crede ut intellegas quoniam nisi credideritis non intellegetisraquo

353 Assim o constata Paula Oliveira e Silva em Ordem e Ser Ontologia da Relaccedilatildeo em Santo Agostinho

Lisboa CFUL 2007 pp 354-355 ecoando uma passagem de Gilson em Introduction agrave leacutetude de Saint

Augustin p 46

354 Cf Conf VII 9 13 VII 20 26 -21 27

355 Cf Sermo XLIII 8

121

capacidade exclusiva dos seres racionais 356

ndash o que inverte a vantagem hieraacuterquica mais

comummente associada agrave perspectiva agostiniana357

Ambas feacute e razatildeo natildeo satildeo mais do que meios para o alcance de algo para laacute de

si mesmas ou seja natildeo se constituem como um fim mas como vias complementares A

razatildeo natildeo deve ser confundida com o conhecimento da Verdade Quando o Bispo de

Hipona afirma que a feacute procura e o intelecto encontra358

natildeo estaacute a supor dois processos

distintos embora o acto de feacute seja referido em separado e como que precedendo o

processo intelectual a verdade eacute que este natildeo pode senatildeo ser o resultado da actividade

conjunta da feacute e da razatildeo Santo Agostinho argumenta claramente que os filoacutesofos e os

hereges que prometem a possibilidade do conhecimento sem o auxiacutelio da feacute natildeo

poderatildeo nunca atingi-lo A feacute eacute um grau salutar e indispensaacutevel para nos guindar ateacute

uma certeza cuja finalidade soacute pode ser constituiacuteda pelas realidades eternas359

Ainda

que por vezes a feacute chegue mesmo a ser vista como uma alternativa agrave razatildeo na

preparaccedilatildeo para o conhecimento360

natildeo haacute como ignorar que a razatildeo eacute uma estrutura

basilar do conhecimento e o Bispo de Hipona chega tambeacutem a firmar que haacute um quase

nada de razatildeo (quantulacumque ratio) que nos persuade agrave feacute e por isso a precede361

Haacute primazia da feacute sobre a razatildeo se tivermos em conta a fase preacute-intelectiva do

processo cognitivo em que a feacute se assume como forccedila motriz e condiccedilatildeo sine qua non

da inteligecircncia mas haacute tambeacutem primazia da razatildeo sobre a feacute se tivermos em conta que

356

Ep 120 1 3 (CSEL 34 2 p 719) laquo[hellip] cum etiam credere non possemus nisi rationales animas

haberemusraquo

357 Sobre a defesa do primado da razatildeo em Santo Agostinho cf Maria Leonor Xavier Questotildees de

Filosofia na Idade Meacutedia Lisboa Ediccedilotildees Colibri 2007 pp 82-83 Sobre a defesa do primado da feacute e do

caraacutecter instrumental da razatildeo cf Andreacute Mandouze Saint Augustin lrsquoaventure de la raison et de la gracircce

Paris Eacutetudes Augustiniennes 1968 pp 283-285

358 De Trin XV 2 2 (CCL 50A p 461) laquoFides quaerit intellectus invenit [hellip]raquo Cf De lib arb II 2 5-6

359 En PsaVIII 6 (PL 36 c 111) laquo[hellip] quod gradum saluberrimum et necessarium fidei neglegendum

putant per quem in aliquid certum quod esse nisi aeternum non potest oportet ascendiraquo

360 De doct christ II 12 17 (CCL 32 p 43) laquo[hellip] per fidem ambulamus non per speciem nisi autem

per fidem ambulaverimus ad speciem pervenire non possumus quae non transit sed permanet per

intellectum purgatum nobis cohaerentibus veritati propterea ille ait Nisi credideritis non permanebitis

ille autem Nisi credideritis non intellegetisraquo cf De div quaest 83 81 2

361 Ep 120 1 3 (CSEL 34 2 p 719) laquoSi igitur rationabile est ut ad magna quaedam quae capi nondum

possunt fides praecedat rationem procul dubio quantulacumque ratio quae hoc persuadet etiam ipsa

antecedit fidemraquo

122

a feacute soacute eacute possiacutevel graccedilas ao alicerce da condiccedilatildeo racional Apesar de natildeo haver qualquer

confusatildeo entre estes dois termos para Santo Agostinho percebe-se de imediato que natildeo

haacute feacute sem razatildeo e ainda que possa haver razatildeo sem feacute esta nunca seraacute uma verdadeira

razatildeo nem poderaacute culminar na inteligecircncia362

Na carta escrita por Santo Agostinho a

Consecircncio em 410 haacute uma passagem que ilustra particularmente bem a

complementaridade entre a feacute e a razatildeo

Que outro motivo poderia evitar que ouviacutessemos de forma vatilde

coisas que satildeo verdadeiras senatildeo o da actividade da razatildeo [hellip] ser precedida

no nosso coraccedilatildeo pela feacute que nos reveste de piedade Eacute porque a feacute

empreende a parte que lhe compete neste processo que a razatildeo encontra de

modo subsequente alguns esclarecimentos para o que demandava Assim agrave

falsa razatildeo eacute de preferir sem duacutevida natildeo apenas a verdadeira razatildeo com a

qual compreendemos a verdade na qual acreditamos mas tambeacutem a feacute na

verdade que ainda natildeo compreendemos Mais vale crer no que eacute verdadeiro

ainda que natildeo o tenhamos visto do que pensar ver o verdadeiro naquilo que

eacute falso Com efeito a feacute tem os seus olhos pelos quais de certo modo vecirc que

eacute verdadeiro aquilo que ainda natildeo pode ver e com os quais vecirc com absoluta

certeza que ainda natildeo vecirc aquilo em que crecirc Aleacutem disso quem mediante a

verdadeira razatildeo compreende o que apenas acreditava deve certamente estar

adiante de quem desejar ainda a compreender aquilo em que crecirc se [tal

pessoa] nem sequer deseja e considera que basta acreditar naquilo que pode

entender natildeo sabe de que trata a feacute pois a feacute pia natildeo quer ser sem a

esperanccedila e sem a caridade Assim o homem de feacute deve crer no que ainda

natildeo vecirc de modo a esperar e a amar a visatildeo futura363

Neste excerto Santo Agostinho liga a ratio ao particiacutepio presente subsequens

evidenciando o caraacutecter impreteriacutevel da feacute no processo de descoberta da verdade Por

outro lado o Bispo de Hipona natildeo deixa de salientar o papel da razatildeo sobre os

362

Sobre a distinccedilatildeo entre razatildeo e inteligecircncia vide subcapiacutetulo anterior

363 Ep 120 2 8 (CSEL 34 2 p 711) laquoQuamobrem nisi rationem disputationis [hellip] fides in corde nostro

antecessisset quae nos indueret pietate nonne incassum quae vera sunt audiremus Ac per hoc quoniam

id quod ad eam pertinebat fides egit ideo subsequens ratio aliquid eorum quae inquirebat invenit Falsae

itaque rationi non solum ratio vera qua id quod credimus intellegimus verum etiam fides ipsa rerum

nondum intellectarum sine dubio praeferenda est Melius est enim quamvis nondum visum credere quod

verum est quam putare te verum videre quod falsum est Habet namque fides oculos suos quibus

quodammodo videt verum esse quod nondum videt et quibus certissime videt nondum se videre quod

credit Porro autem qui vera ratione iam quod tantummodo credebat intellegit profecto praeponendus est

ei qui cupit adhuc intellegere quod credit si autem nec cupit et ea quae intellegenda sunt credenda

tantummodo existimat cui rei fides prosit ignorat nam pia fides sine spe et sine caritate esse non vult Sic

igitur homo fidelis debet credere quod nondum videt ut visionem et speret et ametraquo

123

conteuacutedos da feacute uma vez que estaraacute em situaccedilatildeo privilegiada aquele que compreende

aquilo em que crecirc relativamente agravequele que crecirc sem compreender

De certo modo a feacute eacute o dispositivo que permite integrar o significado das

vivecircncias e das realidades terrenas no acircmbito da ordenaccedilatildeo concertada do universo

(carmen universitatis) e logo no plano divino Por outras palavras a feacute eacute o elo que

possibilita reconhecer o caraacutecter anagoacutegico de tudo o que existe no mundo sensiacutevel

impedindo que o homem fique preso agrave parcialidade que naturalmente caracteriza a sua

mundividecircncia e se ela ndash a feacute ndash eacute a convicccedilatildeo das coisas que natildeo vemos364

poderemos

entatildeo dizer que eacute tambeacutem um modo de visatildeo interior capaz de activar as funccedilotildees

superiores da mente e que tambeacutem ela pode ser aperfeiccediloada dada a sua natureza

temporal e mutaacutevel365

Ela natildeo eacute aquilo em que se crecirc mas aquilo pelo qual se crecirc366

ora a feacute natildeo eacute portanto alheia agrave conversatildeo do olhar ainda que diga jaacute respeito ao olhar

interior e embora se refira agrave invisibilidade ndash porque aquilo que se constitui como seu

objecto eacute de ordem inteligiacutevel ndash a feacute parte inevitavelmente de uma base racional ainda

situada sobretudo ao niacutevel da ratio inferior Dizer que a feacute ocorre sobretudo ao niacutevel da

ratio inferior natildeo significa que natildeo haja implicaccedilatildeo da feacute relativamente agrave ratio

superior Na verdade estamos a tentar clarificar um estaacutedio inicial em que o homem

encontra a feacute no seu interior a partir de estiacutemulos que natildeo podem senatildeo ser exteriores e

que se devem agrave interacccedilatildeo do sujeito com a natureza que o contextualiza ndash logo ao

conhecimento das realidades sensiacuteveis (scientia) Conforme se constata a partir do

comentaacuterio agostiniano a propoacutesito do evangelho joanino a feacute eacute adventiacutecia367

No

entanto a feacute tambeacutem exige que haja na alma a capacidade de esta se direccionar para a

dimensatildeo inteligiacutevel havendo portanto lugar agrave actividade da ratio superior mesmo

que aquilo em que se crecirc possa nunca vir a ser objecto de conhecimento368

364

De Trin XIII 1 3 laquo[hellip] convictionem rerum quae non videnturraquo cf Heb 11 1

365 A feacute pode inclusivamente perecer Cf De Trin XIII 1 3

366 De Trin XIV 8 11 laquoFides enim non est quod creditur sed qua creditur et illud creditur illa

conspiciturraquo

367 De Trin XIII 1 3 laquo [hellip] et ipsa tamen temporaliter fit in cordibus hominumraquo

368 O domiacutenio dos inteligiacuteveis estaacute subsumido no dos crediacuteveis mas o inverso natildeo eacute verdadeiro O facto

de haver crediacuteveis que ficam para laacute do alcance da inteligecircncia (como a histoacuteria) natildeo parece constituir um

problema para o Bispo de Hipona talvez porque crer seja tambeacutem uma certa forma de saber conforme

expressa Gilson laquoDe toute faccedilon croire est encore une certaine maniegravere de savoir crsquoest une

124

Aleacutem de ser uma procura e uma promessa a feacute eacute tambeacutem uma espeacutecie de guia

que orienta a alma em direcccedilatildeo ao estado de catarse necessaacuterio para a contemplaccedilatildeo do

inefaacutevel Diz o Bispo de Hipona que eacute a feacute que orienta e nutre a visatildeo beatiacutefica enquanto

esta natildeo eacute ainda alcanccedilada e faacute-lo tornando o percurso mais brando e o homem mais

habilitado para essa inteligibilidade do misteacuterio369

Embora de natureza temporal a feacute

descrita em De Trinitate aponta para uma relaccedilatildeo privilegiada com a luz inteligiacutevel e de

facto pela caracterizaccedilatildeo presente em In Evangelium Ioannis tractatus a feacute parece

funcionar como uma espeacutecie de antevisatildeo de tal luz Natildeo eacute pois de estranhar que apesar

do homem a encontrar no mais iacutentimo de si a feacute seja tambeacutem um fruto da bondade e da

gratuitidade divina ela eacute uma graccedila a primeira com a qual Deus nos presenteia370

O tema do conhecimento na perspectiva agostiniana deveraacute ser situado no

contexto mais lato da beata vita A alma aspira a sobrepujar as suas limitaccedilotildees natildeo

podendo deixar de reconhecer que haacute um ser mais perfeito absolutamente perfeito soacute

ele capaz de mitigar a sua acircnsia conferindo-lhe paz e felicidade O conhecimento natildeo

tem um valor intriacutenseco pois subordina-se a um fim alcanccedilar a Verdade beatificante

identificada com Deus daiacute que o percurso de re-conformaccedilatildeo a Deus pressuponha

tambeacutem uma via cognitiva

Todos os homens aspiram agrave felicidade371

Esta premissa cedo entra no

pensamento agostiniano pela leitura do diaacutelogo perdido de Ciacutecero Hortensius ndash o

mesmo diaacutelogo que desperta o Bispo de Hipona para a filosofia372

Diz Santo Agostinho

connaissance de la penseacutee comme lrsquoest la science proprement dite dont elle ne diffegravere drsquoailleurs que par

son origineraquo in Introduction agrave leacutetude de Saint Augustin p 33

369 De Trin I 1 3 - 2 4 laquo[hellip] Et ideo est necessaria purgatio mentis nostrae qua illud ineffabile

ineffabiliter videri possit qua nondum praediti fide nutrimur et per quaedam tolerabiliora ut ad illud

capiendum apti et habiles efficiamur itinera ducimur [hellip] et a se propterea cerni comprehendique non

posse quia mentis humanae acies invalida in tam excellenti luce non figitur nisi per iustitiam fidei nutrita

vegeteturraquo Cf Sol I 6 12 - 14 onde o Bispo de Hipona explica o papel da trindade de virtudes

constituiacuteda pela feacute (fides) pela esperanccedila (spes) e pelo amor (caritas) na purificaccedilatildeo e preparaccedilatildeo dos

olhos da alma Destas trecircs virtudes soacute a caritas permaneceraacute actuante na beata vita

370 In Iohan EvangTract III 8 laquoQuam gratiam primo accepimus Fidemraquo

371 Cf De beata vita 2 10

372 Cf De Trin XIII 4 7 e De beata vita 2 10 (CCL 29 p 70) onde Santo Agostinho cita uma passagem

dessa obra ciceroniana que natildeo chegou aos nossos dias laquoEcce autem ait non philosophi quidem sed

prompti tamen ad disputandum omnes aiunt esse beatos qui vivant ut ipsi velint Falsum id quidem Velle

enim quod non deceat id est ipsum miserrimum Nec tam miserum est non adipisci quod velis quam

adipisci velle quod non oporteat Plus enim mali pravitas voluntatis affert quam fortuna cuiquam boniraquo

125

que todos aqueles que satildeo felizes tecircm o que desejam mas nem todos os que possuem o

que desejam satildeo felizes em virtude disso Por outro lado aqueles que natildeo tecircm o que

desejam satildeo necessariamente infelizes tal como o satildeo aqueles que possuem o que natildeo

lhes conveacutem desejar Conclui o Bispo de Hipona que soacute pode ser feliz quem

simultaneamente possui aquilo que deseja e deseja aquilo que lhe natildeo eacute pernicioso

possuir373

Tal eacute a dupla condiccedilatildeo da felicidade Quando natildeo se consegue reunir estas

duas condiccedilotildees os homens tendem a centrar a sua atenccedilatildeo em possuir aquilo que

desejam independentemente de desejarem o que lhes conveacutem e assim acabam por

subverter a loacutegica da obtenccedilatildeo da felicidade uma vez que seria preferiacutevel o esforccedilo de

ter bons desejos independentemente da posse

Estaacute mais distante da felicidade aquele que possui objectos de desejo iliacutecitos

do que aquele que natildeo possui qualquer objecto dos seus desejos e no entanto apesar

de todos desejarem a felicidade muitos acabam por preferir aquilo que os afasta da

vida feliz por uma defecccedilatildeo da vontade A boa vontade eacute jaacute um bem de grande valor

no caminho para a felicidade374

mas mais importante ainda eacute a feacute na imortalidade e na

incarnaccedilatildeo A vida para ser feliz tem necessariamente de ser eterna e querer a

imortalidade natildeo eacute querer nada de mal pelo contraacuterio o desejo de imortalidade aliado

agrave feacute faz com que todos os homens vivam de modo a poder merececirc-la A feacute na

incarnaccedilatildeo permite reconhecer em Cristo quer a ciecircncia quer a sabedoria reunidas

Daiacute que Cristo seja ldquoa nossa ciecircncia e tambeacutem a nossa sabedoria Eacute ele que nos daacute a feacute

a partir das coisas temporais e eacute ele que nos ensina a verdade sobre as coisas eternas

Por ele vamos ateacute ele pela ciecircncia tendemos agrave sabedoria e no entanto natildeo nos

afastamos deste mesmo e uacutenico Cristo em quem todos os tesouros da sabedoria e da

ciecircncia estatildeo escondidosrdquo375

O desejo de felicidade corresponde portanto ao desejo de Deus e da posse da

verdade absoluta Ao encontrar Deus encontra-se a felicidade Este eacute aliaacutes o aforismo a

que pode ser resumido o diaacutelogo De beata vita A felicidade eacute o culminar de um

373

Cf De Trin XIII 5 8

374 Cf De Trin XIII 6 9

375 De Trin XIII 19 24 (CCL 50A p 416) laquoScientia ergo nostra Christus est sapientia quoque nostra

idem Christus est Ipse nobis fidem de rebus temporalibus inserit ipse de sempiternis exhibet veritatem

Per ipsum pergimus ad ipsum tendimus per scientiam ad sapientiam ab uno tamen eodemque Christo

non recedimus in quo sunt omnes thesauri sapientiae et scientiae absconditiraquo Cf 1 Cor 12 8 Col 2 3

126

percurso fundado na constataccedilatildeo da equivalecircncia entre a suma Beleza e a suma Verdade ndash um

percurso gradativo da visatildeo que passa pelo adestramento da alma com vista agrave

subjugaccedilatildeo dos sentidos corpoacutereos e por um certo conluio entre a ratio inferior e a ratio

superior ou seja entre o conhecimento racional e o conhecimento intelectual

22 ndash Uma esteacutetica expressa em termos matemaacuteticos

2 2 1 Numerus pondus e mensura

Foi jaacute evidenciado no primeiro subcapiacutetulo desta tese o modo como a esteacutetica

agostiniana ampliou o conceito de beleza legado pela tradiccedilatildeo neoplatoacutenica ao

pressupor que a natureza inteligiacutevel do belo natildeo obsta a que as suas manifestaccedilotildees

possam tambeacutem ser concebidas de um modo formalista O proacuteprio conceito de forma

atesta tal despreconceito acerca das feiccedilotildees que o belo assume na sua desmultiplicaccedilatildeo

pelo universo As configuraccedilotildees dos corpos natildeo deixam de significar a beleza superior

da qual provecircm ndash satildeo dela imagens parcelares nebulosas que podem no entanto

promover o reconhecimento de tal superioridade desde que bem ajuizadas pela alma

humana Aleacutem da forma haacute um outro conceito fulcral para a esteacutetica agostiniana que se

constitui como um iacutendice qualitativo servindo agrave clarificaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre o todo e as

partes e contribuindo para que melhor se perceba a valorizaccedilatildeo das naturezas corpoacutereas

pelo elo que mantecircm com a dimensatildeo inteligiacutevel Trata-se do conceito de numerus

O sobrepujar da acepccedilatildeo quantitativa de numerus natildeo se constituiacutea como uma

novidade na eacutepoca de Santo Agostinho Quase dez seacuteculos antes ao estabelecer uma

relaccedilatildeo entre a ordem dos nuacutemeros e a frequecircncia dos sons Pitaacutegoras havia jaacute lanccedilado

as bases para tal etologia meta-matemaacutetica A perspectiva de que a evoluccedilatildeo do mundo

eacute paralela agrave evoluccedilatildeo dos nuacutemeros resultou natildeo soacute da constataccedilatildeo de que as duraccedilotildees

relativas das vibraccedilotildees na harmonia musical eram passiacuteveis de ser reconhecidas em

todas as coisas ndash concluindo-se que qualquer coisa podia ser exprimida em termos

127

numeacutericos ndash mas tambeacutem da observaccedilatildeo dos movimentos regulares dos astros e da ideia

de uma harmonia concertada das esferas A noccedilatildeo de ordem e a perspectiva de um

caraacutecter esteacutetico associados aos nuacutemeros marcavam presenccedila desde entatildeo 376

Os pressupostos pitagoacutericos da temaacutetica do nuacutemero chegam a Santo Agostinho

pela via neoplatoacutenica uma via por seu turno jaacute informada pelas consideraccedilotildees gnoacutesticas

acerca do nuacutemero como entidade significante capaz de mediar entre o divino e o criado

Para os gnoacutesticos os nuacutemeros determinavam o caraacutecter das coisas por si ordenadas e

impregnavam-nas de um significado metafiacutesico reconheciacutevel pelo homem377

Plotino

que apesar das criacuteticas que tecia aos gnoacutesticos natildeo deixava de simpatizar com algumas

das suas ideias dedica o seu trigeacutesimo quarto tratado precisamente agrave temaacutetica do

nuacutemero378

Na esteira de Moderato o nuacutemero eacute abordado em termos de movimento de

egresso e regresso da multiplicidade relativamente ao Uno Refutando a criacutetica de

Aristoacuteteles agrave concepccedilatildeo de nuacutemero presente no Parmeacutenides de Platatildeo Plotino rejeita

qualquer valor quantitativo no que toca ao nuacutemero inteligiacutevel ou substancial (ἀριθμός

οὐσιώδης) Este o nuacutemero inteligiacutevel eacute a actividade (ἐνέργεια) da substacircncia primeira

(οὐσία) bem como o poder (δύναμις) que cinde a dimensatildeo do ser inteligiacutevel no

nuacutemero limitado de formas Presidindo como causa de todos os nuacutemeros estaacute o Uno

376

Natildeo nos interessa aqui entrar na celeuma sobre a veracidade das descobertas atribuiacutedas a Pitaacutegoras

pelo que partimos apenas das evidecircncias acerca daquilo que era considerado ser o legado pitagoacuterico agrave

eacutepoca de Santo Agostinho Para tal natildeo satildeo de descartar os comentaacuterios de Ciacutecero em Tusculanae

Quaestiones I 17 (sobre Pitaacutegoras e a disposiccedilatildeo da terra e das regiotildees celestes de acordo com o peso e a

igualdade de acircngulos) I 10 (sobre o poder do nuacutemero para Pitaacutegoras) IV 2 (sobre a influecircncia pitagoacuterica

na muacutesica e na poesia de entatildeo) Muito antes de Ciacutecero jaacute Platatildeo no livro VII da Repuacuteblica (530d) havia

testemunhado a iacutentima relaccedilatildeo existente nas teorias do pitagorismo entre a astronomia e a harmonia e que

aliaacutes Platatildeo assume subscrever Ao reportar a harmonia agrave audiccedilatildeo reitera a afinidade entre o movimento

dos astros e o movimento harmoacutenico sonoro (muacutesica) Assumindo uma perspectiva criacutetica Aristoacuteteles

refere muito claramente esta concordacircncia pitagoacuterica entre os fenoacutemenos celestes os nuacutemeros existentes

na muacutesica e a ordem do universo no primeiro livro da Metafiacutesica e no segundo livro de Do Ceacuteu Cf

Metafiacutesica I 5 985b-986a e Do Ceacuteu II 9 290b Sobre as referecircncias que Santo Agostinho faz nas suas

obras a Pitaacutegoras cf Christiane L Joost-Gaugier ldquoPythagoras remembered in the Fifth and Sixth

Centuriesrdquo in Measuring heaven Pythagoras and his influence on art in Antiquity and the Middle Ages

Cornell University Press 2006 pp 58-59

377 Sobre a questatildeo do nuacutemero no gnosticismo cf Michel Onfray ldquoLa numeacuterologie gnostiquerdquo in La

reacutesistence au Christianisme Contre Histoire De La Philosophie Vol 3 (partie 1) Vincennes Fremeaux amp

Associes 2006 cd 4 faixa 5 (audiolivro) e Vincent Foster Hopper ldquoThe Gnosticsrdquo in Medieval number

symbolism its sources meaning and influence on thought and expression NY Dover 2000 pp 50-68

378 Cf En VI 6 [34] Sobre a abordagem plotiniana do nuacutemero talvez a melhor perspectiva seja dada por

Svetla Slaveva-Griffin no ensaio Plotinus on Number Oxford University Press 2009 Eacute a esta obra que

devemos a maioria das consideraccedilotildees aqui tecidas sobre o nuacutemero nas Eneacuteadas

128

que assim precede o nuacutemero inteligiacutevel que eacute do domiacutenio da segunda hipoacutestase

Plotino refere a incapacidade de Aristoacuteteles compreender a moacutenada e a diacuteade indefinida

como princiacutepios da criaccedilatildeo e da ordem do intelecto e explica a relaccedilatildeo entre o nuacutemero

substancial natildeo quantitativo com o nuacutemero monaacutedico (ἀριθμός μοναδικός)

quantitativo em termos de paradigma inteligiacutevel e sua coacutepia material379

Enquanto o

nuacutemero substancial actualiza a existecircncia daquilo que separou do Uno no inteligiacutevel o

nuacutemero monaacutedico exprime quantitativamente aquilo que jaacute foi definido pelo nuacutemero

substancial O nuacutemero monaacutedico tem um papel importante ao niacutevel da cosmologia

plotiniana uma vez que salvaguarda a multiplicidade sensiacutevel de se dissipar no infinito

O nuacutemero substancial eacute tambeacutem considerado por Plotino sob o prisma dos cinco

geacuteneros platoacutenicos presentes no Sofista o repouso corresponderia ao nuacutemero unificado

(ἀριθμὸς ἡνωμένος) o movimento ao nuacutemero movendo-se a si mesmo (ἀριθμὸς ἐν

ἑαυτῷ κινούμενος) o outro ao nuacutemero desmultiplicado (ἀριθμός ἐξεληλιγμένος) e o

mesmo ao nuacutemero englobante (ἀριθμὸς περιέχων)380

As propriedades do nuacutemero

substancial traduzem os quatro primeiros geacuteneros ao passo que o quinto ndash o do ser ndash se

constitui como o denominador comum que representa todos os outros Fica assim

elucidada a relaccedilatildeo entre o nuacutemero substancial com o Uno e com a Alma uma vez que

Plotino natildeo os identifica com nenhuma propriedade particular do nuacutemero As

propriedades do nuacutemero substancial ordenam o Intelecto a partir do seu interior ora

tanto o Uno quanto a Alma estatildeo fora do Intelecto pelo que natildeo herdam qualquer

propriedade particular do nuacutemero No entanto sendo uma emanaccedilatildeo do Intelecto e logo

uma imagem sua a Alma possui todas as propriedades do nuacutemero substancial A alma

individual exprime os nuacutemeros substanciais em nuacutemeros monaacutedicos sendo que a

matemaacutetica e a contabilizaccedilatildeo das coisas individuais assenta no nuacutemero monaacutedico O

nuacutemero substancial eacute uma expressatildeo ontoloacutegica do Uno que estaacute para laacute do Ser e natildeo

possui qualquer caracteriacutestica particular

Do mesmo modo que o conceito de forma na teoria agostiniana permitia uma

siacutentese entre a ultimidade e o imediato tambeacutem o conceito de numerus parece conservar

a articulaccedilatildeo entre unidade e multiplicidade tornando algo obsoleta a distinccedilatildeo entre

nuacutemero inteligiacutevel e nuacutemero monaacutedico que marca toda a abordagem plotiniana Ainda

379

Cf En VI 6 9

380 Cf Ibid

129

assim natildeo a descarta totalmente Do conjunto formado pelas principais obras a partir

das quais se revela mais profiacutecuo o estudo do conceito de numerus em Santo Agostinho

eacute sobretudo em De musica e em De libero arbitrio que os ecos de tal distinccedilatildeo satildeo ainda

fortes381

Nos cinco primeiros livros de De musica o filoacutesofo comeccedila por proceder agrave

anaacutelise dos vestiacutegios sensiacuteveis da muacutesica ndash definida como ciecircncia de bem modular ndash e

das relaccedilotildees que fixam a duraccedilatildeo dos tempos passando no sexto livro para os lugares

espirituais onde a muacutesica natildeo assume um corpo especiacutefico382

Assim nos primeiros

cinco livros o acircmbito da aritmeacutetica e da quantificaccedilatildeo ocupa um lugar central

lembrando os nuacutemeros monaacutedicos plotinianos ao passo que no uacuteltimo livro eacute dado

destaque agravequilo que para Plotino seria o acircmbito do nuacutemero substancial

Santo Agostinho refere-se nesta obra aos numeri corporales que natildeo devem ser

interpretados como equivalentes imediatos dos nuacutemeros monaacutedicos ainda que numa

transposiccedilatildeo grosseira da terminologia plotiniana para a terminologia agostiniana

pudeacutessemos considerar que os numeri corporales abarcam os nuacutemeros monaacutedicos O

filoacutesofo africano refere-se aos numeri corporales como sinoacutenimos dos numeri

sonantes383

Estes satildeo os nuacutemeros que se manifestam nos sons na danccedila e em qualquer

outro movimento visiacutevel Santo Agostinho coloca-os na base da hierarquia numeacuterica

passiacutevel de ser reconhecida em qualquer processo ligado agrave sensibilidade Tal hierarquia

integra tambeacutem os nuacutemeros de reacccedilatildeo (numeri occursores) que resultam da impressatildeo

sensiacutevel produzida quando o sentido exterior eacute afectado pelas realidades sensiacuteveis

Note-se que natildeo haacute na obra agostiniana mateacuteria que permita concluir uma

intermutabilidade entre o conceito de numeri corporales e o de sensibilia Na verdade

Santo Agostinho parece apenas perspectivar que os sensibilia ndash enquanto coisas que

381

Este conjunto eacute constituiacutedo pelas seguintes obras De ordine escrita em 386 De musica escrita em

388 estando Santo Agostinho ainda em Milatildeo De libero arbitrio e De Genesi contra Manichaeos que

datam desse mesmo ano mas satildeo jaacute escritas em Roma apoacutes a morte de Moacutenica De vera religione

redigida em 390 De Trinitate em 400 De Genesi ad litteram principiada em 393 e terminada por volta

de 415 De doctrina christiana redigida entre 397 e 426 e De civitate Dei redigida entre 41213 e 426

382 De mus I 2 2 (PL 32 c 1083) laquoMusica est scientia bene modulandiraquo No primeiro livro de De

musica eacute analisada a natureza dos nuacutemeros e das relaccedilotildees impliacutecitas nas principais sequecircncias do sistema

decimal No segundo livro as consideraccedilotildees numeacutericas recaem sobre a meacutetrica nos livros III e IV sobre o

ritmo no livro V sobre o verso e por fim no livro VI a abordagem eacute reconduzida para os lugares

espirituais salientando o papel dos nuacutemeros na universalidade da ordem e sublinhando a superioridade da

alma em relaccedilatildeo ao corpo

383 Cf De mus VI 4 7 e VI 9 24

130

podem ser objecto de percepccedilatildeo sensiacutevel ndash integram o movimento contiacutenuo da criaccedilatildeo

divina (que natildeo soacute os originou como os manteacutem) e em virtude disso podem eles

proacuteprios ser considerados em funccedilatildeo de um dinamismo expressivo intriacutenseco que

permite o reconhecimento dos nuacutemeros neles presentes Eacute ao reconhecimento de tal

presenccedila nas coisas sensiacuteveis que o conceito de numeri corporales deve ser associado

pois se os reportaacutessemos exclusivamente aos objectos sensiacuteveis em si mais dificilmente

se perspectivaria a sua ligaccedilatildeo ao nuacutemero superno ou o seu papel no carmen

universitatis como efectivamente ocorre na obra agostiniana384

Eacute por si mesmos que os nuacutemeros causam impressotildees na nossa alma e natildeo

por constituiacuterem imagens de coisas visiacuteveis385

Haacute que natildeo esquecer que a

hierarquizaccedilatildeo presente em De musica eacute elaborada de acordo com a percepccedilatildeo

musical e eacute transponiacutevel para qualquer outro processo perceptivo em todo o caso

estaacute-se sempre no acircmbito da sensibilidade ou seja dos movimentos que a alma

empreende face agraves impressotildees do corpo pelo exterior sensiacutevel o que natildeo significa

que os nuacutemeros natildeo existam independentemente da alma ndash eles estatildeo na alma nos

corpos e na esfera divina (estatildeo para caacute e para laacute da alma aleacutem de tambeacutem estarem

nela) ndash mas sim que desempenham a funccedilatildeo de iacutendices de reconhecimento de

relaccedilatildeo Quando em Confessionum o Bispo de Hipona parece hesitar quanto agrave

legitimidade do prazer com os cacircnticos religiosos386

poderiacuteamos argumentar a

partir das proacuteprias consideraccedilotildees agostinianas sobre a natureza do nuacutemero que a

legitimidade de tal prazer eacute relativa ao reconhecimento dos nuacutemeros implicados na

percepccedilatildeo de tais cacircnticos Soacute haacute prazer desde logo porque os nuacutemeros sonoros

(ou corporais) foram experienciados esse prazer seraacute legiacutetimo se natildeo houver

qualquer dificuldade em reconhecer que os nuacutemeros fazem parte da grandeza

infinita divina seraacute um prazer ilegiacutetimo se pelo contraacuterio os nuacutemeros forem

tomados como uma pluralidade de unidades vaacutelidas em si ou no seu conjunto

restrito sem qualquer reconhecimento da referecircncia ao plano divino Atente-se a

seguinte passagem

384

Cf De mus VI 11 29

385 Cf De lib arb II 8 20-24

386 Cf Conf X 33 49

131

Portanto o que polui a alma natildeo satildeo os nuacutemeros inferiores agrave razatildeo belos no seu

geacutenero mas o amor agrave beleza inferior Se nela [a alma] ama natildeo apenas a igualdade da

qual jaacute suficientemente falaacutemos no acircmbito do nosso assunto mas ama-a tambeacutem

como fim a alma ter-se-aacute perdido do seu proacuteprio fim todavia ela natildeo sai da ordem das

coisas uma vez que tem uma posiccedilatildeo e uma dignidade tais que lhe outorgam uma

ordenaccedilatildeo perfeita Uma coisa eacute sujeitar-se agrave ordem outra coisa eacute estar sujeito agrave

ordem A alma sujeita-se agrave ordem quando ama plenamente aquilo que estaacute acima dela

isto eacute Deus e quando ama como a si mesma as almas suas semelhantes Pela forccedila

deste amor ela ordena as coisas inferiores sem ser corrompida Aquilo que corrompe a

alma natildeo eacute mau pois tambeacutem o corpo eacute uma criatura de Deus e eacute adornado por uma

beleza iacutenfima mas que soacute relativamente agrave dignidade da alma pode ser menosprezada

tal como a qualidade do ouro eacute maculada pela uniatildeo com a mais fina prata Portanto

natildeo excluamos da obra da divina providecircncia os nuacutemeros que satildeo formados na nossa

sujeiccedilatildeo agrave morte pena do pecado pois no seu geacutenero satildeo belos Mas tambeacutem natildeo os

amemos como se encontraacutessemos a felicidade fruindo deles Uma vez que satildeo

temporais aproveitemo-los como a uma taacutebua num naufraacutegio natildeo devemos rejeitaacute-los

como um fardo nem abraccedilaacute-los como se natildeo soccedilobrassem mas devemos usaacute-los

bem e assim os ultrapassaremos387

Neste trecho Santo Agostinho comeccedila precisamente por advertir que natildeo eacute liacutecito amar na

beleza inferior ndash ou seja nas belezas corpoacutereas ndash o seu aspecto puramente formal que nos deteria

nesse amor como se ele fosse um fim em si mesmo e limitaria o reconhecimento dos nuacutemeros agrave

dimensatildeo sensiacutevel Usar os nuacutemeros inferiores e ultrapassaacute-los significa partir do indiacutecio para o

reconhecimento do proacuteprio iacutendice ou por outras palavras descobrir a relaccedilatildeo de

proporcionalidade entre as coisas e o divino a partir daquilo que nos corpos (nuacutemeros formados

na nossa sujeiccedilatildeo agrave morte) lhes eacute anterior e em razatildeo do proacuteprio ser

Aleacutem dos nuacutemeros de reacccedilatildeo que ocupam o segundo patamar da hierarquia da

sensibilidade distinguem-se ainda os nuacutemeros de desenvolvimento (numeri

progressores) que mesmo na ausecircncia de um objecto ou movimento exterior resultam

387

De mus VI 14 46 (PL 32 c 1187) laquoNon igitur numeri qui sunt infra rationem et in suo genere

pulchri sunt sed amor inferioris pulchritudinis animam polluit quae cum in illa non modo aequalitatem

de qua pro suscepto opere satis dictum est sed etiam ordinem diligat amisit ipsa ordinem suum nec

tamen excessit ordinem rerum quandoquidem ibi est et ita est ubi esse et quomodo esse tales

ordinatissimum est Aliud enim est tenere ordinem aliud ordine teneri Tenet ordinem seipsa tota

diligens quod supra se est id est Deum socias autem animas tamquam seipsam Hac quippe dilectionis

virtute inferiora ordinat nec ab inferioribus sordidatur Quod autem illam sordidat non est malum quia

etiam corpus creatura Dei est et specie sua quamvis infima decoratur sed prae animae dignitate

contemnitur sicuti auri dignitas etiam purgatissimi argenti commixtione sordescit Quapropter

quicumque de nostra quoque poenali mortalitate numeri facti sunt non eos abdicemus a fabricatione

divinae providentiae cum sint in genere suo pulchri Neque amemus eos ut quasi perfruendo talibus beati

efficiamur His etenim quoniam temporales sunt tamquam tabula in fluctibus neque abiciendo quasi

onerosos neque amplectendo quasi fundatos sed bene utendo carebimusraquo

132

da acccedilatildeo da alma sobre o corpo Estes nuacutemeros encontram-se por exemplo no acto de

pronunciar o primeiro verso do hino de Santo Ambroacutesio Deus creator omnium ou

simplesmente em casos de percepccedilotildees anoacutemalas como as que ocorrem durante as

alucinaccedilotildees A estes nuacutemeros seguem-se os nuacutemeros da memoacuteria (numeri recordabiles)

graccedilas aos quais podemos reconhecer coisas que vimos ou ouvimos anteriormente

Estes nuacutemeros funcionam como uma espeacutecie de arquivo e servem de mediadores entre

os nuacutemeros de reacccedilatildeo e os nuacutemeros de desenvolvimento Santo Agostinho refere ainda

os nuacutemeros sensiacuteveis (numeri sensuales) respeitantes ao prazer ou ao desprazer

provocados pelos movimentos da alma face agraves modificaccedilotildees do corpo desencadeadas

pela sensaccedilatildeo No topo da hierarquia do processo de percepccedilatildeo sensiacutevel estatildeo os

nuacutemeros de julgamento (numeri iudiciales) que concernem ao acto de ajuizar sobre a

legitimidade de tal prazer ou desprazer Eacute quando os nuacutemeros do julgamento se

desencadeiam que haacute possibilidade de reconhecer a amplitude das implicaccedilotildees

numeacutericas O processo racional do qual depende tal reconhecimento implica uma

preparaccedilatildeo ndash uma via gradativa que a razatildeo deve empreender e que numa primeira fase

Santo Agostinho perspectiva atraveacutes das artes liberais O diaacutelogo De musica fazia parte

de um conjunto de obras que Santo Agostinho projectara escrever precisamente para

contemplar as especificidades de cada arte liberal atraveacutes um tratado respectivo

Embora em De musica a proacutepria estrutura da obra e as referecircncias aos nuacutemeros

corporais ou aos nuacutemeros inferiores promovam a analogia entre a distinccedilatildeo numeacuterica

plotiniana de nuacutemero inteligiacutevel e nuacutemero monaacutedico a verdade eacute que um estudo mais

aprofundado acerca do conceito de numerus em Santo Agostinho revela que natildeo haacute

propriamente diferenccedila para laacute do acto perceptivo ndash ou seja para o filoacutesofo africano o

nuacutemero eacute sempre substancial natildeo estando sujeito agraves mutaccedilotildees dos corpos Ele eacute

simultaneamente imanente e transcendente agraves coisas bem como agrave alma racional388

Mesmo nos aspectos meramente formais e quantitativos haacute uma proporcionalidade que

388

De libarb II 11 31 (CCL 29 p 258) laquoSed quia dedit numeros omnibus rebus etiam infimis et in

fine rerum locatis et corpora enim omnia quamvis in rebus extrema sint habent numeros suos sapere

autem non dedit corporibus neque animis omnibus sed tantum rationalibus tamquam in eis sibi sedem

locaverit de qua disponat omnia illa etiam infima quibus numeros dedit itaque quoniam de corporibus

facile iudicamus tamquam de rebus quae infra nos ordinatae sunt quibus impressos numeros infra nos

esse cernimus et eos propterea vilius habemus Sed cum coeperimus tamquam sursum versus recurrere

invenimus eos etiam nostras mentes transcendere atque incommutabiles in ipsa manere veritateraquo

133

reflecte a ordem divina e cuja significaccedilatildeo pode ser interpretada como se de uma

codificaccedilatildeo metafiacutesica se tratasse389

O nuacutemero tal como a beleza eacute como o brilho da luz divina nas coisas quanto

maior for a distacircncia ontoloacutegica das criaturas ao criador mais paacutelido seraacute esse brilho no

entanto ele natildeo eacute substancialmente distinto da sua fonte de luz Talvez por isso em De

libero arbitrio Santo Agostinho diga que o nuacutemero e a sabedoria satildeo como uma e a

mesma coisa e citando uma passagem biacuteblica ndash Ela [a sabedoria] estende o seu vigor de

uma extremidade agrave outra e governa todas as coisas com suavidade (Sab 81) ndash demonstra

considerar que o vigor (potentia) pelo qual a sabedoria se espraia corresponde ao

nuacutemero enquanto que a capacidade pela qual tudo eacute disposto com suavidade

corresponde agrave sabedoria propriamente dita sendo que ambas as operaccedilotildees satildeo a mesma

sabedoria390

Para melhor se explicar Santo Agostinho estabelece uma analogia entre o

par sabedoria nuacutemero e o par calor luz referindo que mesmo sendo consubstanciais

haacute uma diferenccedila na sua percepccedilatildeo os sentidos soacute percebem o calor quando se

aproximam da sua fonte ao passo que a luz irradia por todo o lado A sabedoria eacute como

o calor e implica olhos capazes de a ver olhos ontologicamente mais proacuteximos daquilo

que pretendem ver Tudo o que estiver mais proacuteximo desse fogo uacutenico (unus ignis) que

emana calor e luz exaltar-se-aacute dada a proximidade ora o que estaacute mais proacuteximo dessa

389

Natildeo eacute por acaso que se constata ser comum aos autores deste periacuteodo fazerem divisotildees formais nas

suas obras que traduzissem o significado miacutestico dos nuacutemeros A este propoacutesito Annemarie Schimmel

nota que os vinte e dois livros de De civitate Dei corresponderiam agraves vinte e duas letras do alfabeto

hebraico e que por duas vezes estatildeo divididos em cinco refutaccedilotildees exprimindo os mandamentos

enunciados na negativa (2x5=10) e por trecircs vezes em quatro ensinamentos afirmativos que

correspondem aos doze apoacutestolos e tambeacutem agrave Trindade proclamada nos quatro Evangelhos (3x4=12) Cf

Annemarie Schimmel The mystery of numbers N Y Oxford Oxford University Press 1993 p 20 Para

o mesmo tipo de abordagem formal em relaccedilatildeo a Confessionum cf Fernando Afonso Andrade Lemos As

Confissotildees de Santo Agostinho 1600 Anos Depois Presenccedila e Actualidade Lisboa Universidade

Catoacutelica Editora 2001 p 671-696 Na mesma senda Svetla Slaveva-Griffin explica o arranjo temaacutetico

das Eneacuteadas por Porfiacuterio referindo que para a tradiccedilatildeo neopitagoacuterica o nuacutemero seis eacute considerado o

primeiro nuacutemero perfeito e eacute identificado com o nuacutemero da Alma A criaccedilatildeo do universo eacute representada

pelo nuacutemero nove (ἐννεάς) como se fosse uma hendiacuteadis por derivaccedilatildeo do Uno Os cinquenta e quatro

tratados das Eneacuteadas estatildeo agrupados em novenas encerrando assim a essecircncia numeacuterica do universo

desde o Uno (ἐν) ateacute agrave eneacuteada O arranjo porfiriano codifica assim numericamente a perfeita unidade do

universo plotiniano Cf Svetla Slaveva-Griffin op cit pp 131 - 140

390 De lib arb II 11 30 (CCL 29 p 258) laquo[hellip] [numerus et sapientia] una quaedam eademque res est

verumtamen quoniam nihilominus in divinis Libris de sapientia dicitur quod attingit a fine usque ad

finem fortiter et disponit omnia suaviter ea potentia qua fortiter a fine usque ad finem attingit numerus

fortasse dicitur ea vero qua disponit omnia suaviter sapientia proprie iam vocatur cum sit utrumque

unius eiusdemque sapientiaeraquo Haacute aqui uma proximidade entre o nuacutemero como potentia em De libero

arbitrio e o nuacutemero como ἐνέργεια ou δύναμις presente nas Eneacuteadas

134

fonte satildeo as almas racionais Jaacute os corpos mais distantes natildeo satildeo atingidos pelo seu

calor mas apenas pela sua luz ndash a luz dos nuacutemeros (lumen numerorum) Santo

Agostinho salienta que nem a sabedoria deveraacute ser considerada superior ao nuacutemero

nem o nuacutemero superior agrave sabedoria pois satildeo a mesma coisa e contrariamente a Plotino

resiste a considerar que a sabedoria subsista por si e que o nuacutemero subsista na

sabedoria salientando que ambos satildeo verdadeiros e ambos tecircm na verdade imutaacutevel a

sua morada391

Mais adiante neste tratado Santo Agostinho diz que a sabedoria faz com

que se empreenda a via interior e se reconheccedila como repleto de nuacutemeros tudo aquilo

que deleita nos corpos e tudo aquilo que cativa os sentidos corpoacutereos convidando a que

se perscrute a sua origem e a que se reconheccedila que haacute certas regras do belo perto do

sujeito que experiencia as belezas sensiacuteveis Satildeo estas regras que lhe permitem aprovar

ou desaprovar (probare aut improbare) tais sentimentos esteacuteticos392

Numa primeira

leitura poderaacute parecer estranho que seja a sabedoria a permitir o reconhecimento dos

nuacutemeros e natildeo o inverso mas haacute que ter em conta que os nuacutemeros satildeo como vestiacutegios

da sabedoria presentes nos corpos e em tudo o que existe Diferentemente de um

siacutembolo que a partir de si remeteria para outra realidade distinta os vestiacutegios ou indiacutecios

soacute satildeo reconhecidos como tal por se subsumirem na realidade a que se referem e com a

qual consequentemente partilham caracteriacutesticas de natureza comum Assim os

siacutembolos funcionam de modo metoniacutemico pois envolvem duas entidades distintas em

que uma remete para a outra atraveacutes de uma relaccedilatildeo culturalmente determinada ao

passo que os indiacutecios ou vestiacutegios satildeo da ordem da sineacutedoque permitindo que o todo

seja tomado a partir da parte ou a parte a partir do todo Enquanto aspecto parcial de

uma totalidade os vestiacutegios satildeo dela manifestaccedilotildees Ainda que tudo esteja repleto de

nuacutemeros estes soacute satildeo reconhecidos para laacute da estese que suscitam quando a alma

racional se reconhece a si mesma dotada de sabedoria daiacute que embora natildeo seja possiacutevel

estabelecer uma ordem de precedecircncia entre a sabedoria e os nuacutemeros haacute pelo menos

ao niacutevel da percepccedilatildeo intelectual uma ordem de procedecircncia em que a sabedoria eacute

391

Cf De lib arb II 11 32

392 Cf De lib arb II 16 41 (CCL 29 p 266) onde falando da sapiecircncia Santo Agostinho diz laquoQuoquo

enim te verteris vestigiis quibusdam quae operibus suis impressit loquitur tibi et te in exteriora

relabentem ipsis exteriorum formis intro revocat ut quidquid te delectat in corpore et per corporeos

illicit sensus videas esse numerosum et quaeras unde sit et in teipsum redeas atque intellegas te id quod

attingis sensibus corporis probare aut improbare non posse nisi apud te habeas quasdam pulchritudinis

leges ad quas referas quaeque pulchra sentis exteriusraquo

135

considerada primeira em relaccedilatildeo ao nuacutemero jaacute que possibilita o reconhecimento dos

nuacutemeros Ora se os nuacutemeros funcionam eles proacuteprios como iacutendices de relaccedilatildeo e

pressupotildeem que haja um conhecimento preacutevio mesmo que parcelar daquilo que

indiciam eacute natural que o seu reconhecimento promova tambeacutem a compreensatildeo de tais

regras do belo que existem algures perto do sujeito e que natildeo satildeo outras senatildeo as regras

da verdade eterna393

Essas regras satildeo as Formas imutaacuteveis que natildeo tecircm qualquer

extensatildeo no espaccedilo ou no tempo mas a partir das quais tudo o que existe eacute formado de

acordo com o seu geacutenero para ocupar os nuacutemeros do espaccedilo e do tempo394

Os nuacutemeros

natildeo deixam de ser um elo entre as formas corpoacutereas ndash elas proacuteprias resultantes de uma

ordenaccedilatildeo da mateacuteria imposta pelos nuacutemeros ndash e as Formas exemplares que lhes

correspondem no plano inteligiacutevel mais concretamente na mente de Deus Daiacute que a

presenccedila de nuacutemeros seja proporcional agrave presenccedila de ser e que sem nuacutemeros os corpos

nada seriam395

O mais iacutenfimo grau de forma que subsiste num ser ainda que este tenda

ao perecimento e ao natildeo-ser adveacutem da Forma inteligiacutevel que eacute impereciacutevel e que

impede que os proacuteprios movimentos das coisas mutaacuteveis e mortais saiam do acircmbito

numeacuterico ndash da lei dos nuacutemeros (lex numerorum) Assim tudo o que de admiraacutevel as

criaturas suscitem qualquer que seja o seu grau de beleza deveraacute ser reportado ao

elogio do Criador A legitimidade das esteses eacute sempre uma questatildeo teleoloacutegica

Observa o ceacuteu e a terra e o mar e todas as coisas que brilham na esfera

superior ou que na inferior rastejam voam ou nadam eles tecircm formas

porque tecircm nuacutemeros retira-os e nada seratildeo De quem recebem ser senatildeo de

quem recebe ser o nuacutemero pois tecircm tanto mais ser quanto mais nuacutemero

Tambeacutem os artiacutefices que trabalham coisas corpoacutereas tecircm em tal arte nuacutemeros

que harmonizam a sua obra movem as suas matildeos e manuseiam instrumentos

nesse fabrico e quando a obra ndash que recebe do exterior a forma relacionada

com a luz luminosa que tem no interior pelos nuacutemeros ndash recebe tanto quanto

possiacutevel a completude e atraveacutes dos sentidos agrada ao juiz interior que

atende aos nuacutemeros superiores Procura de seguida aquilo que move os

393

Vide subcapiacutetulo 21 p 105

394 Cf De lib arb II 16 44

395 Cf Ibid Arthur Hilary Armstrong diz que todas as coisas existem na medida em que satildeo imagens das

Formas na mente divina satildeo coacutepias mais ou menos imperfeitas da perfeiccedilatildeo divina O que faz delas

imagens e o que lhes confere tal grau de ser eacute a posse do nuacutemero Arthur Hilary Armstrong An

Introduction to Ancient Philosophy Totowa Rowman amp Littlefield 1981 pp 213-214

136

membros do artiacutefice seraacute o nuacutemero pois tambeacutem ele se move segundo uma

medida numeral E se subtrai das matildeos a obra e da alma a intenccedilatildeo de

produzi-la e o movimento dos membros for relativo ao prazer esta acccedilatildeo

chamar-se-aacute danccedila Procura entatildeo o que daacute prazer na danccedila responder-te-aacute

o nuacutemero sou eu Vecirc agora a beleza da forma sensiacutevel satildeo os nuacutemeros

tomando lugar Vecirc a beleza do movimento sensiacutevel satildeo os nuacutemeros

povoando o tempo Penetra na arte de onde procedem procura nela o tempo

e o lugar natildeo encontraraacutes tempo nem lugar algum no entanto nela vive o

nuacutemero mas a sua regiatildeo natildeo eacute a dos espaccedilo nem a sua duraccedilatildeo a dos dias

no entanto aqueles que optam por se tornar artiacutefices quando se dispotildeem a

aprender a arte movem o seu corpo no espaccedilo e no tempo e a alma apenas

no tempo pois eacute com o passar do tempo que se tornam peritos Eleva-te

ainda para laacute da alma do artiacutefice para ver o nuacutemero sempiterno entatildeo a

sapiecircncia brilharaacute para ti da sua sede interior e do proacuteprio santuaacuterio da

verdade e se encandeia o teu olhar ainda deacutebil torna a volver o olho da

mente para aquela via onde se mostrava afaacutevel Recorda-te poreacutem que

afastaste de ti a visatildeo e que retornaraacutes a ela quando o teu olhar for mais satildeo e

forte396

Esta passagem permite compreender como o itineraacuterio per corporalia ad

incorporalia tem um pendor marcadamente esteacutetico Tal como acontece em De musica

tambeacutem em De libero arbitrio se mantecircm ecos da distinccedilatildeo plotiniana entre nuacutemeros

monaacutedicos e nuacutemero substancial agora com um certo escalonamento das realidades de

acordo com os nuacutemeros poreacutem uma vez mais haacute que referir que tal escalonamento eacute

sobretudo uma estrateacutegia com o fito de elucidar a permeabilidade que o nuacutemero faculta

396

Lib arb II 16 42 (CCL 29 p 266) laquoIntuere coelum et terram et mare et quaecumque in eis vel

desuper fulgent vel deorsum repunt vel volant vel natant formas habent quia numeros habent adime

illis haec nihil erunt A quo ergo sunt nisi a quo numerus quandoquidem in tantum illis est esse in

quantum numerosa esse Et omnium quidem formarum corporearum artifices homines in arte habent

numeros quibus coaptant opera sua et tamdiu manus atque instrumenta in fabricando movent donec

illud quod formatur foris ad eam quae intus est lucem numerorum relatum quantum potest impetret

absolutionem placeatque per interpretem sensum interno iudici supernos numeros intuenti Quaere deinde

artificis ipsius membra quis moveat numerus erit nam moventur etiam illa numerose Et si detrahas de

manibus opus et de animo intentionem fabricandi motusque ille membrorum ad delectationem referatur

saltatio vocabitur Quaere ergo quid in saltatione delectet respondebit tibi numerus Ecce sum Inspice

iam pulchritudinem formati corporis numeri tenentur in loco Inspice pulchritudinem mobilitatis in

corpore numeri versantur in tempore Intra ad artem unde isti procedunt quaere in ea tempus et locum

nunquam erit nusquam erit vivit in ea tamen numerus nec eius regio spatiorum est nec aetas dierum et

discendae arti tamen cum se accommodant qui se artifices fieri volunt corpus suum per locos et tempora

movent animum vero per tempora accessu quippe temporis peritiores fiunt Transcende ergo et animum

artificis ut numerum sempiternum videas iam tibi sapientia de ipsa interiore sede fulgebit et de ipso

secretario veritatis quae si adhuc languidiorem aspectum tuum reverberat refer oculum mentis in illam

viam ubi se ostendebat hilariter Memento sane distulisse te visionem quam fortior saniorque repetasraquo

137

entre a esfera superior e o mundo terreno e que de certo modo explica tambeacutem a

articulaccedilatildeo entre a sensaccedilatildeo o conhecimento e a sapiecircncia

Ao niacutevel dos sensibilia os nuacutemeros manifestam-se sobretudo como species397

conceito praticamente idecircntico ao de forma natildeo fora o uso mais especiacutefico que o Bispo

de Hipona lhe consigna ao utilizaacute-lo preferencialmente quando quer sublinhar a

dimensatildeo esteacutetica da forma na sua abertura agrave percepccedilatildeo sensiacutevel Nesta senda o nuacutemero

natildeo deixa de ser sinoacutenimo de beleza398

Em De ordine Santo Agostinho diz que soacute a

beleza agrada agrave razatildeo e que em uacuteltima instacircncia por traacutes desta beleza estaacute o nuacutemero399

Os nuacutemeros podem ser progressivamente menos belos pela distacircncia face ao Criador

mas natildeo podem ser totalmente desprovidos de beleza400

A species eacute de certo modo o caraacutecter manifestativo da forma pela atracccedilatildeo que

exerce sobre os sentidos A uma alma jaacute capacitada e fortalecida para perscrutar as

realidades superiores a species revela facilmente as relaccedilotildees numeacutericas que a

constituem mas se a species fala agrave sensibilidade o numerus natildeo eacute percebido pelos

sentidos corpoacutereos mas pela luz da razatildeo401

A ratio inferior poderaacute permitir a

proficiecircncia matemaacutetica e a mestria daqueles que trabalham as coisas corpoacutereas mas soacute

a ratio superior permite alcanccedilar a lei imutaacutevel que preside a todos os nuacutemeros e que

apenas eacute visiacutevel ao olho da inteligecircncia A este niacutevel eacute jaacute indiferente falar em nuacutemeros

ou em sabedoria Os nuacutemeros satildeo pois a forma da sabedoria divina presente no mundo

e que pode ser perscrutada pela mente humana naturalmente agradada e atraiacuteda por tal

presenccedila qualitativa

397

Cf Gen ad litt IV 3 7 (CSEL 281 p 99) laquo[hellip] et numerous omni rei speciem praebetraquo Sobre o

conceito de species consultar a p 49 da presente tese

398 Jaacute anteriormente referimos como por exemplo a beleza do corpo eacute expressa em termos de

congruentia numerosa (De civ Dei XXII 24) Vide p 39 da presente dissertaccedilatildeo

399 Cf De ord II 15 42 (CCL 29 p 130) laquoHinc est profecta in oculorum opes et terram coelumque

collustrans sensit nihil aliud quam pulchritudinem sibi placere et in pulchritudine figuras in figuris

dimensiones in dimensionibus numerosraquo Esta formulaccedilatildeo repete jaacute a ideia expressa em De lib arb II

16 41 (CCL 29 p 266) laquo[hellip] ut quidquid te delectat in corpore et per corporeos illicit sensus videas

esse numerosum [hellip]raquo que citaacutemos na nota 392 do presente subcapiacutetulo

400 De mus VI 17 56 (PL 32 c 1191) laquo[hellip] qui certe numeri minus minusque pulchri esse possunt

penitus vero carere pulchritudine non possunt [hellip]raquo

401 Cf De lib arb II 8 21 ndash 24

138

A originalidade da filosofia do nuacutemero em Santo Agostinho face agrave tradiccedilatildeo

plotiniana leva-nos a aventar a possibilidade de fontes retoacutericas como Varratildeo e Ciacutecero

terem a este niacutevel desempenhado um importante papel Ambos os autores satildeo citados

e encomiados por Santo Agostinho402

o primeiro natildeo tanto pelos meacuteritos do seu

estilo ndash que aliaacutes o Bispo de Hipona considerava bastante desagradaacutevel ndash mas pela

riqueza de doutrina e pensamento sobretudo no que concerne as ordens do saber liberal

Com efeito entre as muitas obras que Varratildeo escreveu conta-se o compecircndio

conhecido por Disciplinarum libri IX que Santo Agostinho teraacute natildeo soacute utilizado

enquanto aluno mas tambeacutem como professor403

Nesta obra que se supotildee ter

desaparecido entre os seacuteculos VI e VII Varratildeo propunha nove disciplinas para o

curriacuteculo romano a partir das quais mais tarde nasceriam as sete artes liberais

Infelizmente natildeo haacute como saber o teor destes tratados que certamente influenciaram a

via gradativa da razatildeo atraveacutes das artes liberais desenvolvida por Santo Agostinho em

De ordine no entanto haacute um poema epistolar da autoria de Licecircncio404

que nos autoriza

a colocar a hipoacutetese de que os Disciplinarum libri IX estariam imbuiacutedos de uma

matemaacutetica miacutestica que apesar de natildeo ter encontrado seguimento no neoplatonismo

plotiniano poderaacute ter estado na base das consideraccedilotildees agostinianas sobre o nuacutemero

Na epiacutestola em verso que Licecircncio remete a Santo Agostinho o jovem expotildee as

suas preocupaccedilotildees intelectuais e solicita uma coacutepia de De musica Os primeiros versos

da sua carta que se crecirc ter sido escrita por volta de 395 testemunham a leitura dos

nouem libri disciplinarum de Varratildeo ndash indiciando de que se tratava de uma obra

402

Relativamente a Varratildeo cf De civ Dei VI 2 et seq XIX 1 1 et seq De De ord II 12 35 para

Ciacutecero a mais famosa passagem eacute a de Conf III 4 7 onde Santo Agostinho refere a importacircncia desta

obra na sua adesatildeo agrave filosofia e no caminho que o leva agrave conversatildeo

403 Acerca de outras obras de Varratildeo que Santo Agostinho teraacute utilizado cf Allan D Fitzgerald (ed)

Augustine Through the Ages An Encyclopedia Cambridge Wm B Eerdmans Publishing 1999 p 863

Sobre a existecircncia em concreto do compecircndio Disciplinarum libri IX que tem encontrado alguns

resistentes ao longo da histoacuteria da filosofia cf Vitruacutevio De architectura VII 14 laquo[hellip] item Terentius

Varro de novem disciplinis unum de architectura [hellip]raquo Os fragmentos das obras varronianas foram

compilados traduzidos e publicados em Pietro Canal Federico Brunetti (eds) M Terenti Varronis Libri

De Lingua et Fragmenta Quae Supersunt Ominia Veneza Giuseppe Antonelli 1874 Fragmentos que se

supotildeem ser da obra perdida De novem disciplinis foram analisados por Friedrich Wilhelm Ritschl em De

M Terentii Varronis disciplinarum libris commentarius Bonn 1845 (texto reeditado em F Ritschl

Opuscula philologica Vol III Leipzig Teubner 1877 pp 353-402)

404 Licecircncio era um jovem disciacutepulo de Santo Agostinho que o acompanhou durante o retiro de

Cassiciacuteaco logo apoacutes a sua conversatildeo O filoacutesofo refere-se ao seu talento poeacutetico em De ord I 5

139

estudada pelos disciacutepulos de Santo Agostinho sobre sua orientaccedilatildeo ndash e revelam ecos de

um pitagorismo onde a miacutestica e o nuacutemero satildeo inseparaacuteveis

Ao estudar a via misteriosa e profunda de Varratildeo a minha mente

desinteressa-se e foge aterrorizada da luz natildeo admira pois colapsa toda a

minha atenccedilatildeo face agrave leitura quando natildeo me estaacutes dando a matildeo e [a minha

mente] teme elevar-se sozinha logo que sobre os densos livros do grande

homem o teu afecto me exorta a debruccedilar e a alcanccedilar os sacros sentidos

que consignou agraves harmonias dos nuacutemeros e com que expocircs que o universo

canta em honra do Troante e potildee em marcha os movimentos regulares o

meu peito fica envolto por um nevoeiro instaacutevel e a aspereza dos assuntos

[aiacute tratados] conduz uma nuvem ao meu espiacuterito procuro qual insensato as

formas essenciais das figuras desenhadas na areia e colido com outras trevas

ainda mais densas em suma com a questatildeo sobre as causas das estrelas e

dos seus claros meatos cujas posiccedilotildees obscuras ele aponta atraveacutes das

nuvens 405

A via misteriosa e profunda de Varratildeo diz respeito aos Disciplinarum libri onde

entre outros estavam contemplados tratados acerca da geometria da aritmeacutetica da

astrologia e da muacutesica Eacute curioso notar que a resistecircncia de Licecircncio ante tal cosmologia

matemaacutetica herdeira directa do pitagorismo parece assentar sobretudo no caraacutecter

miacutestico de tal abordagem Ora pela resposta agostiniana a esta missiva compreende-se

que o mestre hiponense se preocupa precisamente com a incapacidade de Licecircncio

perceber a ligaccedilatildeo entre a esfera sensiacutevel e a esfera superior enredando-se nas

voluptuosidades da primeira e desprezando o caminho que a razatildeo pode empreender ateacute

405

laquoArcanum Varronis iter scrutando profundi mens hebet adversamque fugit conterrita lucem nec

mirum iacet omnis enim mea cura legendi te non dante manum et consurgere sola veretur nam simul ut

perplexa viri compendia tanti volvere suasit amor sacrosque attingere sensus quis numerum dedit ille

tonos mundumque Tonanti disseruit canere et pariles agitare choreas implicuit varia nostrum caligine

pectus induxitque animo rerum violentia nubem inde figurarum positas in pulvere formas posco amens

aliasque graves offendo tenebras ad summam astrorum causas clarosque meatus obscuros quorum ille

situs per nubila monstratraquo A transcriccedilatildeo completa deste texto do qual aqui soacute traduzimos um fragmento

encontra-se em Ep 26 (CSEL 341 pp 89-95) onde se percebe a reacccedilatildeo negativa de Santo Agostinho

face agraves dificuldades de Licecircncio Para uma exegese desta carta-poema cf Danuta Shanzer ldquolsquoArcanum

Varronis iterrsquo Licentiusrsquos Verse Epistle to Augustinerdquo in REAug 37 1991 pp 110-143 Neste artigo

Danuta Shanzer contraria a posiccedilatildeo de Ilsetraut Hadot acerca da influecircncia dos Disciplinarum libri de

Varratildeo em Santo Agostinho e fundamenta a sua perspectiva de que a via de Varratildeo a que o poema de

Licecircncio se refere corresponde efectivamente a esta obra perdida

140

agrave segunda406

Santo Agostinho natildeo chega a enviar o seu De musica talvez por recear

confundir ainda mais o espiacuterito atormentado de Licecircncio

A anaacutelise ao conceito de nuacutemero em Santo Agostinho natildeo fica no entanto

completa sem uma abordagem que o integre na famosa triacuteade biacuteblica Deus dispocircs tudo

com medida nuacutemero e peso (Sab 11 20) Na exegese desta passagem Santo Agostinho

adverte para que natildeo se vejam estas ideias apenas nas naturezas fiacutesicas sob pena de

ficarmos escravos dos sentidos e exorta ao conhecimento das relaccedilotildees que ligam as

verdades contingentes agraves verdades absolutas407

Natildeo quer com isto dizer que Deus tenha

feito uso de outros princiacutepios superiores para dispor estas mesmas relaccedilotildees segundo as

quais o mundo foi ordenado mas sim que elas estatildeo para laacute do mundo Em Deus a

medida o nuacutemero e o peso subsistem independentemente de quaisquer medidas

nuacutemeros e pesos408

isto porque se constituem como perfeiccedilotildees divinas

Eacute a unidade de Deus que determina toda a medida eacute a sua sabedoria que produz

toda a beleza e a sua lei que estabelece toda a ordem409

A terminologia agostiniana

por vezes muda falando do corpo efectivamente refere a unidade concertada dos

membros e dos oacutergatildeos dispostos segundo uma moderaccedilatildeo da medida uma igualdade

do nuacutemero e uma ordem do peso410

mas desde logo se percebe que a triacuteade se assume

tambeacutem como modus species e ordo em De natura boni contra Manichaeos Santo

Agostinho refere-se-lhe como uma triacuteade de bens gerais que podemos encontrar em

todas as coisas criadas por Deus sejam elas espirituais ou corporais411

406

Ep 26 2 (CSEL 341 p 84) laquoMi Licenti etiam atque etiam recusantem et formidantem compedes

sapientiae timeo te rebus mortalibus validissime et perniciosissime compediriraquo

407 Gen ad litt IV 4 9 (CSEL 281 p 101) laquo Scire oportet tamen cuiusmodi similitudo est inferiorum ad

superiora Non enim aliter recte hinc illuc ratio tendit et nititurraquo Contra Faust XXI 6

408 Gen ad litt IV 4 8 (CSEL 281 p 100) laquoMensura autem sine mensura est cui aequatur quod de illa

est nec aliunde ipsa est numerus sine numero est quo formantur omnia nec formatur ipse pondus sine

pondere est quo referuntur ut quiescant quorum quies purum gaudium est nec illud iam refertur ad

aliudraquo

409 Cf Contra Faust XXI 6

410 Ibid (CSEL 251 p 575) laquoQuid in ipsa carne vitalia viscera totius formae convenientia membra

operandi vasa sentiendi locis atque officiis suis cuncta distincta et concordi unitate contexta

moderatione mensurarum parilitate numerorum ordine ponderum nonne indicant artificem suum Deum

verum cui vere dictum est Omnia in mensura et numero et pondere disposuistiraquo

411 De nat boni 3 (CSEL 25 p 856) laquo[hellip] haec ergo tria modus species ordo tamquam generalia bona

sunt in rebus a Deo factis sive in spiritu sive in corporeraquo

141

De acordo com Hans Urs von Balthasar na articulaccedilatildeo de ambas as triacuteades

resulta que pelo par mensura modus o modo de ser se torna medida do ser ordenado

por Deus e corresponde agrave unidade e agrave causa eficiente pelo par numerus species a

forma do ser e do conhecimento faculta a esta essecircncia a sua verdade e a sua posiccedilatildeo no

conjunto das coisas assumindo sobretudo o aspecto da beleza (species) e corresponde agrave

causa exemplar pelo par pondus ordo a ordem permite a atracccedilatildeo para Deus e para as

outras criaturas correspondendo ao bem e agrave causa final412

Aleacutem de constituintes da realidade existente no mundo sensiacutevel a medida o

nuacutemero e o peso de certo modo parecem fazer tambeacutem parte da virtualidade das razotildees

seminais pois em De Trinitate o Bispo de Hipona referindo-se agraves causas segundas e

contingentes (accedentes causae) diz que elas favorecem o desenvolvimento raacutepido e

suacutebito de certos seres que repousam escondidos nas profundezas da natureza tais seres

satildeo criados graccedilas agrave irrupccedilatildeo das suas forccedilas vitais isto eacute ao desenvolvimento das suas

proacuteprias medidas nuacutemeros e pesos que Deus secretamente lhes outorgou segundo

medida nuacutemero e peso413

A repeticcedilatildeo da triacuteade natildeo eacute tautoloacutegica pois reporta-se em

primeiro lugar agraves caracteriacutesticas das criaturas e em segundo lugar agrave natureza do

criador Eacute graccedilas agraves medidas aos nuacutemeros e agrave bela ordem que as criaturas apresentam

que elas merecem louvor quando tomadas individualmente no seio da criaccedilatildeo414

No

fundo a louvaacutevel beleza da individualidade das criaturas eacute sempre relativa ao Criador

pelo que acaba por ser sempre Ele a razatildeo e o alvo dos encoacutemios A benevolecircncia e a

abertura agostinianas para com todas as formas de existecircncia colhem aqui a sua

justificaccedilatildeo Mesmo ignorando que finalidade cumprem os ratos as ratildes as moscas ou os

vermes Santo Agostinho reconhece que no seu geacutenero eles satildeo bons os membros dos

seus corpos natildeo deixam de estabelecer relaccedilotildees de medida e de proporcionalidade

equivalentes agraves das coisas belas pois reportam-se de um modo exacto agrave unidade do

conjunto e radicam na suma medida no nuacutemero e na suma ordem que subsistem na

imutaacutevel e eterna perfeiccedilatildeo de Deus Mesmo que existam espeacutecies que nos pareccedilam

412

Hans Urs von Balthasar op cit p 336

413 Cf De Trin III 9 16 (CCL 50 p 146) laquoAdhibere autem forinsecus accedentes causas quae tametsi

non sunt naturales tamen secundum naturam adhibentur ut ea quae secreto naturae sinu abdita continentur

erumpant quodam modo et foris creentur explicando mensuras et numeros et pondera sua quae in occulto

acceperunt ab illo qui omnia in mensura et numero et pondere disposuitraquo

414 Cf De Gen cont Man I 21 32

142

nocivas e outras que nos pareccedilam supeacuterfluas elas fazem parte da integridade do

universo que eacute bem superior agrave casa que noacutes habitamos415

O filoacutesofo quer com isto

dizer que a nossa situaccedilatildeo no mundo soacute nos permite uma visatildeo e uma compreensatildeo

parcial do que nos rodeia mas tal limitaccedilatildeo de perspectiva pode ser superada se

atendermos agrave medida ao nuacutemero e agrave ordem que nas criaturas remetem para o Criador Eacute

notoriamente um apelo agrave assunccedilatildeo de uma perspectiva eacutetico-esteacutetica que segundo Santo

Agostinho eacute frutuosa

Certamente todos os animais satildeo para noacutes uacuteteis nocivos ou supeacuterfluos

Contra aqueles que satildeo uacuteteis eles [os maniqueiacutestas] nada tecircm a dizer Os

animais nocivos servem para nos punir ou para colocar agrave prova a nossa

virtude ou para nos assustar de modo a que procuremos com o meacuterito da

obra inspirada na feacute amar e desejar natildeo a vida presente sujeita a muitos

perigos e trabalhos mas uma outra melhor onde haacute soberana seguranccedila

Quanto aos animais supeacuterfluos de que havemos de nos queixar Se te

desagrada que natildeo sejam vantajosos apraz-te que natildeo sejam nocivos mesmo

que natildeo sejam necessaacuterios para a nossa casa servem para completar a

integridade deste universo que eacute muito maior e muito melhor do que a nossa

casa Com efeito Deus governa o universo muito melhor do que cada um de

noacutes governa a sua proacutepria casa Serve-te entatildeo dos [animais] que satildeo uacuteteis

evita os nocivos e ignora os supeacuterfluos Natildeo obstante ao veres em todos os

seres a medida o nuacutemero e a ordem procura o criador Natildeo encontraraacutes

nenhum outro senatildeo aquele no qual estaacute a suma medida e o sumo nuacutemero e

a suma ordem isto eacute Deus de quem eacute dito com absoluta verdade que tudo

dispocircs com medida nuacutemero e peso Assim talvez possas colher melhor o

fruto quando louvas a Deus na pequenez da formiga do que quando

atravessas o rio sobre o dorso de qualquer jumento416

415

Cf De Gen cont Man I 16 26

416 Ibid (CSEL 91 pp 93-94) laquoEt certe omnia animalia aut utilia nobis sunt aut perniciosa aut

superflua Adversus utilia non habent quid dicant De perniciosis autem vel punimur vel exercemur vel

terremur ut non vitam istam multis periculis et laboribus subditam sed aliam meliorem ubi securitas

summa est diligamus et desideremus et eam nobis pietatis meritis comparemus De superfluis vero quid

nobis est quaerere Si tibi displicet quod non prosunt placeat quod non obsunt quia etsi domui nostrae

non sunt necessaria eis tamen completur huius universitatis integritas quae multo maior est quam domus

nostra et multo melior Hanc enim multo melius administrat Deus quam unusquisque nostrum domum

suam Usurpa ergo utilia cave perniciosa relinque superflua In omnibus tamen cum mensuras et

numeros et ordinem vides artificem quaere Nec alium invenies nisi ubi summa mensura et summus

numerus et summus ordo est id est Deum de quo verissime dictum est quod omnia in mensura et

numero et pondere disposuerit Sic fortasse uberiorem capies fructum cum Deum laudas in humilitate

formicae quam cum transis fluvium in alicuius iumenti altitudineraquo

143

A dimensatildeo trinitaacuteria da realidade criada eacute modelada pela Trindade divina417

Deus que outorga a tudo o que existe uma medida e um limite eacute mensura sine

mensura418

e summus modus o que natildeo soacute equivale a dizer que Deus eacute o sumo bem

como tambeacutem que o seu reino natildeo tem fim (Luc 1 33)419

A medida reporta-se ao Pai

por ser um princiacutepio que predetermina os termos sequentes

Deus eacute tambeacutem o numerus sine numero e o summus numerus420

e a este niacutevel o

Bispo de Hipona depara-se com a questatildeo de que apesar de Deus ser infinitude para

noacutes para si mesmo ele de algum modo tem de ser determinado na forma como entende

a sua proacutepria eternidade uma vez que mesmo sendo os nuacutemeros infinitos eles natildeo

escapam na sua infinitude ao conhecimento de Deus Ateacute a infinitude e a

indeterminaccedilatildeo satildeo finitas e determinadas em Deus421

Haacute uma associaccedilatildeo do par

numerus species agrave segunda pessoa da Santiacutessima Trindade ndash o Filho422

ndash que era jaacute

expectaacutevel dada a identificaccedilatildeo entre a sabedoria e o nuacutemero

Deus eacute o peso absoluto ndash o pondus sine pondere ou centro gravitacional para

onde tudo converge para aiacute encontrar o equiliacutebrio e o repouso423

O peso eacute a fonte da

stabilitas e da quies por isso encontra par com o ordo Em De Trinitate o Espiacuterito

Santo eacute precisamente apresentado como o doce lugar daquele que gera e daquele que eacute

gerado e que se dissemina com generosidade e abundacircncia sobre todas as criaturas

ordenando-as424

Possibilitado pelo amor ele eacute o dom (donum)425

onde apaziguamos as

417

Cf De mus VI 17 56 e De Trin VI 10 12

418 Cf De Gen ad litt IV 4 8

419 Cf De nat boni 22

420 Cf De Gen ad litt IV 4 8 De Gen cont Man I 16 26 En in Ps CXLVI 2

421 Cf De civ Dei XII 18 O mesmo parece dizer Plotino em En VI 6 3 quando refere que no mundo

inteligiacutevel o infinito eacute determinado mas natildeo eacute menos infinito jaacute que essa determinaccedilatildeo se reporta agrave

infinitude e natildeo ao termo e que entre ambos natildeo haacute qualquer mediaccedilatildeo nem determinaccedilatildeo ou em En VI

6 18 quando eacute dito que no mundo inteligiacutevel qualquer nuacutemero eacute finito jaacute que eacute impossiacutevel conceber um

nuacutemero maior do que o Nuacutemero superior ao qual nenhum outro falta nem nenhum outro poderaacute ser

acrescido

422 Cf De mus VI 17 56 De Trin VI 10 11

423 Cf De Gen ad litt IV 4 8

424 De Trin VI 10 11 (CCL 50 p 241) laquo[hellip] et est in Trinitate Spiritus Sanctus non genitus sed

genitoris genitique suavitas ingenti largitate atque ubertate perfundens omnes creaturas pro captu earum

ut ordinem suum teneant et locis suis acquiescantraquo

144

nossas almas refere o Bispo de Hipona em Confessionum426

Ordem estabilidade e amor

marcam pois o discurso agostiniano sobre a terceira pessoa da Santiacutessima Trindade

reflectindo-se nas criaturas que ocupam um lugar especiacutefico na ordem universal de

acordo com o seu peso Minus ordinata inquieta sunt ordinantur et quiescunt Pondus

meum amor meus427

Para as almas racionais o peso eacute a ponderaccedilatildeo expressa nos actos

morais na justa medida dos sentimentos eacute como uma balanccedila para a vontade e para o

amor evitando que a desordem se instale pelas paixotildees e equilibrando a intensidade dos

desejos e do verdadeiro amor (caritas) cuja fonte eacute precisamente o Espiacuterito Santo

(Rom 55)428

425

Cf De Trin V 15 16

426 Conf XIII 9 10 (CCL 27 p 246-247) laquoCur ergo tantum de spiritu tuo dictum est hoc Cur de illo

tantum dictum est quasi locus ubi esset qui non est locus de quo solo dictum est quod sit donum tuum

In dono tuo requiescimus ibi te fruimur Requies nostra locus nosterraquo

427 Ibid

428 Cf Ibid e De Trin XV 21 41

145

2 2 2 Unidade multiplicidade e ordem

Os nuacutemeros soacute existem porque haacute multiplicidade O Deus cristatildeo que Santo

Agostinho descreve eacute devedor do legado neoplatoacutenico natildeo apenas quanto ao conceito de

substacircncia espiritual mas tambeacutem quanto ao seu cariz uno e simples O Bispo de

Hipona vai no entanto mais longe ao compreender que a unidade divina natildeo obsta a

que o primeiro princiacutepio possa ser concebido de modo trinitaacuterio integrando assim a

multiplicidade de pessoas divinas na essecircncia una de Deus

Fora do esquema emanacionista plotiniano a trindade cristatilde natildeo pressupotildee

degradaccedilatildeo de hipoacutestase para hipoacutestase uma vez que a diferenccedila eacute equacionada em

termos relacionais sem gorar a identidade essencial429

O Pai gera o Filho por pura

gratuitidade ou bondade surgindo a alteridade natildeo como uma diferenccedila ontoloacutegica mas

como uma semelhanccedila perfeita eternamente subsistente Este espelhamento de si mesmo

que ocorre a partir do Pai no Filho imediatamente gera dois modos de relaccedilatildeo o da

paternidade e o da filiaccedilatildeo O Pai eacute ingeacutenito e eacute o ipsum esse (Ex 3 14) deum non ex

deo430

ex ipso (Rom 11 36)431

principium sine principio432

tambeacutem biblicamente

identificado como caritas (1 Jo 4 16) O Filho per ipsum433

eacute o outro do Pai embora

consubstancial434

pode reconhecer a sua identidade no Pai pois manteacutem com ele uma

429

De Trin VII 6 11 (CCL 50 p 265) laquoAt in Deo non ita est non enim maior essentia est Pater et

Filius simul quam solus Pater aut solus Filius sed tres simul illae substantiae sive Personae si ita

dicendae sunt aequales sunt singulis [hellip]raquo

430 Cf De grat et lib arb 19 40

431 Cf De Trin I 6 12

432 Cf De ord II 5 16

433 Cf De Trin I 6 9

434 Na verdade como Santo Agostinho rejeita que a compreensatildeo da natureza de Deus possa assentar no

quadro categorial aristoteacutelico a utilizaccedilatildeo do conceito de consubstancialidade natildeo eacute preferiacutevel agrave de

146

comunidade de essecircncia que enquanto tal eacute reciacuteproca contrariamente ao processo de

geraccedilatildeo A reciprocidade da relaccedilatildeo entre Pai e Filho desde logo acrescenta uma terceira

dinacircmica ndash a da doaccedilatildeo ndash e uma terceira singularidade tambeacutem ela eternamente

subsistente ndash o Espiacuterito Santo A doaccedilatildeo eterna e reciacuteproca entre Pai e Filho eacute a proacutepria

relaccedilatildeo da essecircncia divina que se exprime pelos termos donum dilectio ou caritas

assim o Espiacuterito Santo eacute uma singularidade comum agraves duas outras pessoas divinas que

tem por caracteriacutestica distintiva ou identidade proacutepria a unidade que resulta da muacutetua

doaccedilatildeo de dois diferentes ndash do Pai e do Filho435

A comunhatildeo entre Pai e Filho eacute

diferente do Pai e diferente do Filho resultando pois numa terceira pessoa

essencialmente idecircntica agraves anteriores e como elas eternamente subsistente

Dizer que Deus eacute o summus numerus e o numerus sine numero436

significa

tambeacutem que a sua unidade eacute lugar de relaccedilatildeo e logo de multiplicidade Deus Uno-

Trino abre-se ao mundo da contingecircncia humana como Ser Verdade Beleza e Bem

agregando num uacutenico princiacutepio o que a henologia plotiniana cindia pelas duas primeiras

hipoacutestases e determinando contrariamente a Plotino que o primeiro princiacutepio possa ser

acessiacutevel ao conhecimento Tambeacutem em desacordo com a perspectiva necessitarista

neoplatoacutenica da emanaccedilatildeo Santo Agostinho concebe a multiplicidade como uma

expressatildeo da gratuita benevolecircncia de Deus pelo que natildeo deve ser considerada como

tendencialmente maacute Ao inveacutes se a multiplicidade manifesta a bondade de Deus ela

proacutepria estaacute imbuiacuteda desse caraacutecter O Deus Uno-Trino repercute-se na estrutura triaacutedica

das criaturas por si dispostas segundo medida nuacutemero e peso que por isso indiciam a

sua origem constituindo-se como vestiacutegios Tambeacutem as criaturas satildeo boas muito boas

coessencialidade Para o Bispo de Hipona agrave luz dos predicamentos de substacircncia e de acidentes eacute

impossiacutevel explicar a essecircncia simplex et multiplex de Deus sem cair na heresia ariana ou sem gorar a

dinacircmica relacional da unidade que no interior de si mesma se comunica e doa Eacute precisamente por

constatar tal limitaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo das categorias aristoteacutelicas ao entendimento de Deus pelo homem que

Santo Agostinho propotildee a par da predicaccedilatildeo secundum substantia a predicaccedilatildeo secundum relatiuum ndash a

primeira presta-se agrave concepccedilatildeo relacional de Deus como Unidade e a segunda como Trindade sendo

impossiacutevel dadas as limitaccedilotildees naturais da razatildeo humana compreender em simultacircneo ambas as

dimensotildees da essecircncia divina Para um melhor entendimento destas questotildees cf Paula Oliveira e Silva

laquoSimplex et Multiplex A essecircncia de Deus como ordem supremaraquo in Maria Leonor Xavier (coord) A

Questatildeo de Deus na Histoacuteria da Filosofia vol 1 Sintra Zeacutefiro 2008 pp 405-423 e Joseacute Rosa ldquoO

Primado da Relaccedilatildeo Da Intencionalidade trinitaacuteria da Filosofiardquo in Didaskalia 36 2006 pp 139-170

435 De Trin VI 5 7 (CCL 50 p 235) laquoSpiritus ergo sanctus commune aliquid est Patris et Filii quidquid

illud estraquo

436 Vide nota 408

147

segundo o relato biacuteblico da proacutepria consideraccedilatildeo divina acerca do que havia criado (Gn

1 31) natildeo sendo de estranhar que Deus as abenccediloe dizendo-lhes ldquoCrescei e

multiplicai-vosrdquo (Gn 1 22)

Natildeo soacute a criaccedilatildeo eacute plural como cada criatura tomada individualmente revela natildeo

possuir uma verdadeira unidade Apesar de ser possiacutevel encontrar em todos os corpos

traccedilos de unidade natildeo eacute possiacutevel por mais belo que um corpo seja considerar que nele

se concretiza uma unidade perfeita ndash se assim fosse natildeo estariacuteamos face a um corpo437

A sua natureza espaacutecio-temporal implica que os corpos acusem invariavelmente a

multiplicidade em si mesmos eles tecircm sempre uma pluralidade de partes e por menores

que sejam pode reconhecer-se neles uma parte direita e uma parte esquerda uma parte

superior opondo-se agrave inferior uma parte posterior a par da anterior Todos os corpos

tecircm um centro e extremidades o que torna desadequado considerar que sejam

verdadeiramente unos438

A constataccedilatildeo de tal ausecircncia de unidade pura nas criaturas

implica no entanto que haja um conhecimento da unidade pois soacute assim haacute certeza de

que os corpos natildeo a possuem Diz Santo Agostinho que ao saber que ela natildeo existe

num corpo sabe o que eacute a unidade439

Tal como sucedia com a percepccedilatildeo dos nuacutemeros

inacessiacuteveis aos sentidos exteriores esse reconhecimento da ausecircncia de unidade nada

tem que ver com a sensaccedilatildeo

Os nuacutemeros como anteriormente referimos satildeo tambeacutem iacutendices de relaccedilatildeo entre

a unidade e a multiplicidade e embora soacute a razatildeo os perceba enquanto tais eles

promovem para os sentidos exteriores uma seacuterie de qualidades esteacuteticas que natildeo soacute

acusam a proacutepria presenccedila como remetem para a unidade que os originou440

Tais

qualidades satildeo exprimidas em conceitos como modulatio proportio coaptatio

congruentia convenientia consonantia rhythmus integritas aequalitas ou mesmo

ordo Todos eles situam a questatildeo do belo ao niacutevel da articulaccedilatildeo entre os pares

437

Cf De ver relig XXXII 60

438 cf De lib arb II 8 22

439 Ibid (CCl 29 p251) laquoCum enim quaero unum in corpore et me non invenire non dubito novi utique

quid ibi quaeram et quid ibi non inveniam et non posse inveniri vel potius omnino ibi non esse Ubi

ergo novi quod non est corpus unum Unum enim si non nossem multa in corpore numerare non

possemraquo

440 De mus VI 17 56 (PL 32 c 1191) laquoNumerus autem et ab uno incipit et aequalitate ac similitudine

pulcher est et ordine copulaturraquo

148

dicotoacutemicos todo partes e unidade multiplicidade convergindo no universo do

numerus e orientando-se para a ideia de ordem

A modulatio implica as noccedilotildees de medida e de duraccedilatildeo de fluxos441

podendo

considerar-se como a ordenaccedilatildeo racional escandida do movimento Em De musica

Santo Agostinho emprega o conceito de modulatio para referir a presenccedila de uma

medida fixa nos movimentos da voz que canta ou do corpo que danccedila442

No fundo

trata-se de submeter o movimento ao numerus com vista a uma proporcionalidade que

harmoniza as suas partes e que contribui para uma percepccedilatildeo mais integrada da forma

em questatildeo Tal coerecircncia que os trechos partilham pela modulatio faz com que o seu

conjunto se configure mais unificado dada a possibilidade de perceber as relaccedilotildees entre

as partes sejam elas estruturas riacutetmicas ou movimentos cadenciados dos corpos O

objectivo da modulatio eacute causar deleite por si443

Ao dizer que agrada por si Santo

Agostinho alude no entanto agrave harmonia da relaccedilatildeo das partes nos movimentos ainda

que tidos independentemente de qualquer subordinaccedilatildeo a uma realidade final A

conveniecircncia das partes natildeo eacute alheia a uma espeacutecie de beleza moral interna ndash a um

decoro ndash pelo que tambeacutem natildeo se limita ao caraacutecter utilitaacuterio ou agrave linear relatividade da

adequaccedilatildeo das partes em relaccedilatildeo ao todo que compotildeem entre si A conveniecircncia das

partes pode portanto ser reportada a uma dimensatildeo interna em que cada parte no seio

do conjunto orgacircnico que constitui realiza a sua beleza singular ndash e a este niacutevel a

conveniecircncia assume-se como decor ou decus ndash ou pode reportar-se a uma dimensatildeo

externa em que o conjunto de partes demonstra uma conformidade desse organismo

composto por partes relativamente a todos os demais ndash a este niacutevel a conveniecircncia eacute

mais geralmente assumida como aptum Note-se que um elemento pode considerar-se

aptum reconhecendo-se-lhe certa beleza na adequaccedilatildeo que manteacutem com os seus pares

sem necessariamente lhe ser reconhecido um decus ou vice-versa Por exemplo em De

musica Santo Agostinho diz que um canto belo poder ser desadequado ou inconveniente

quando provoca alegria num contexto que exigiria grande solenidade ou gravidade444

441

Note-se que o verbo modulor natildeo soacute significa marcar o ritmo compor versos ou tocar mas tambeacutem

medir regular

442 Cf De mus I 2 2

443 De mus I 2 3 (PL 32 c 1084) laquoErgo scientiam modulandi iam probabile est esse scientiam bene

movendi ita ut motus per se ipse appetatur atque ob hoc per se ipse delectetraquo

444 Cf De mus I 3 4

149

Neste caso haacute decus sem aptum Um exemplo de aptum sem decus eacute dado pelo Bispo

de Hipona quando explica que as almas pecadoras perdem o seu decus sem no entanto

deixarem de ser boas no conjunto e na totalidade da obra da criaccedilatildeo jaacute que satildeo

ordenadas com rectitude445

Quer em relaccedilatildeo agrave conveniecircncia interna quer em relaccedilatildeo agrave conveniecircncia externa

eacute sempre a adaptaccedilatildeo das partes (coaptatio ou congruentia) que estaacute em jogo Com

efeito estes satildeo os termos a que o Bispo de Hipona mais recorre para definir a beleza do

corpo humano em De civitate Dei Omnis enim corporis pulchritudo est partium

congruentia cum quadam coloris suavitate446

Mais adiante nesta obra o filoacutesofo

explica as implicaccedilotildees da congruentia e da coaptatio na beleza do corpo

[hellip] a proporccedilatildeo (congruentia numerosa) de todas as partes eacute tatildeo

harmoniosa e corresponde a tatildeo bela paridade que natildeo poderemos saber se

aquando da sua criaccedilatildeo foi tida mais em conta a razatildeo da utilidade ou a da

beleza Efectivamente eacute certo que nada vemos ter sido criado no corpo por

causa da utilidade que natildeo tenha tambeacutem beleza Tal seria ainda mais

evidente para noacutes se conhececircssemos os nuacutemeros das medidas pelos quais

todas as partes satildeo ligadas e ajustadas entre si [hellip] todavia estes nuacutemeros

de que falo e pelos quais se compotildee dentro e fora de todo o corpo o acordo

(coaptatio) a que os gregos chamam ἁρμονία como se fosse um instrumento

musical terei eu de confessar que ningueacutem os pocircde encontrar que ningueacutem

se atreveu a procuraacute-los [hellip]447

Eacute com frequecircncia que Santo Agostinho recorre ao termo harmonia ndash sinoacutenimo

de coaptatio ndash ateacute porque se trata de um substantivo que se presta particularmente bem

ao cariz musical com que as suas descriccedilotildees da beleza estatildeo eivadas448

Dois outros

445

Cf De Gen ad litt III 24 37

446 De civ Dei XXII 19 (CCL 48 p 840) Ep 3 4 (CSEL 341 p 8) laquoQuid est corporis pulchritudo

Congruentia partium cum quadam coloris suavitateraquo

447 De civ Dei XXII 24 (CCL 48 p 850) laquo[hellip] omnium partium congruentia numerosa sit et pulchra

sibi parilitate respondeat ut nescias utrum in eo condendo maior sit utilitatis habita ratio quam decoris

Certe enim nihil videmus creatum in corpore utilitatis causa quod non habeat etiam decoris locum Plus

autem nobis id appareret si numeros mensurarum quibus inter se cuncta connexa sunt et coaptata [hellip]

numeros tamen de quibus loquor quibus coaptatio quae ἁρμονία Graece dicitur tamquam cuiusdam

organi extrinsecus atque intrinsecus totius corporis constat quid dicam nemo valuit invenire quos nemo

ausus est quaerereraquo

448 A tiacutetulo de exemplo para aleacutem da uacuteltima periacutecope cf De imm an 2 2 De civ Dei II 21 XXII 19

XXII 30 De Trin IV 2 4 De Gen ad litt X 21 37 (nestas duas uacuteltimas obras tal como no trecho

citado Santo Agostinho usa o termo grego fazendo-o explicitamente equivaler agrave coaptatio)

150

termos que a esteacutetica agostiniana partilha com o universo da muacutesica satildeo o rhythmus e a

consonantia Este uacuteltimo serve sobretudo agrave descriccedilatildeo da proporccedilatildeo 21449

O primeiro

reporta-se a uma sequencialidade de peacutes (pedes) ou seja a um sistema de tempos

comportando uma ratio450

Esta ratio eacute determinada pela relaccedilatildeo de dois tempos que

podem ser marcados pela levatio e pela positio agraves quais Santo Agostinho faz referecircncia

em De musica como sendo o levantar e o baixar da matildeo de acordo com a particcedilatildeo dos

peacutes451

Os peacutes satildeo assim chamados pois na realidade a levatio e a positio correspondem

agrave ἄρσις e agrave θέσις com que os gregos mediam os tempos musicais levantando ou

baixando natildeo a matildeo mas o peacute Esta marcaccedilatildeo dos tempos de relaxamento e dos tempos

de tensatildeo diz respeito agrave cadecircncia quer em termos de pausas quer em termos de intensidade

podendo indicar por exemplo um aumento ou uma diminuiccedilatildeo no tom de voz

A proportio eacute a proacutepria relaccedilatildeo existente entre as diversas partes de um todo e

entre cada parte relativamente ao todo Assim por exemplo na numeraccedilatildeo o homem

estabeleceu certas divisotildees (articuli)452

nas quais a unidade eacute repetida um determinado

nuacutemero de vezes453

e as principais sequecircncias de nuacutemeros inteiros satildeo definidas de

acordo com determinadas regularidades sempre relativas agraves unidades que cada nuacutemero

conteacutem e que cada nuacutemero eacute ndash uma unidade repetida determinado nuacutemero de vezes e

cujo conjunto de vezes forma tambeacutem uma totalidade especiacutefica de unidades A

449

De Trin IV 2 4 (CCL 50 p 164) laquoMerito quippe mors peccatoris veniens ex damnationis necessitate

soluta est per mortem iusti venientem ex misericordiae voluntate dum simplum eius congruit duplo

nostro Haec enim congruentia sive convenientia vel concinentia vel consonantia commodius dicitur

quod est unum ad duo in omni compaginatione vel si melius dicitur coaptatione creaturae valet

plurimum Hanc enim coaptationem sicut mihi nunc occurrit dicere volui quam graeci αρμονία vocant

Neque nunc locus est ut ostendam quantum valeat consonantia simpli ad duplum quae maxima in nobis

reperitur et sic nobis insita naturaliter (a quo utique nisi ab eo qui nos creavit) ut nec imperiti possint

eam non sentire sive ipsi cantantes sive alios audientesraquo Cf De civ Dei XV 10

450 Cf De mus III 1 2 - III 2 4 Eacute frequente vermos nas traduccedilotildees das obras agostinianas a palavra

ritmo surgir como traduccedilatildeo de numerus o que dada proximidade semacircntica dos termos gregos ἀριθμός e

ρυθμός natildeo eacute despropositado no entanto e tal como aqui se demonstra dado que Santo Agostinho usa

diferentemente os conceitos de numerus e de rhythmus consideramos ser mais correcto evitar fazer

equivaler a palavra ritmo agrave de numerus Especificamente sobre o conceito de pes cf De mus II 4 4 II

5 7 II 6 10 II 7 14 II 9 16 II 11 21 e II 13 24

451 Cf De mus II 10 18

452 Cf De mus I 11 19

453 Cf De lib arb II 8 22-24

151

proportio surge portanto como equivalente da correlationalitas e da analogia454

Vitruacutevio em De architectura explica-a dizendo que consiste na comensurabilidade de

cada parte entre si e com o todo455

e Aristoacuteteles no quinto livro da Eacutetica a Nicoacutemaco

refere-se agrave justiccedila recorrendo ao conceito de analogia (ἀναλογία) e define-a como uma

espeacutecie de proporccedilatildeo ou igualdade de razotildees onde AB equivale a BC456

Tal como a

equivalecircncia agrave corrationalitas jaacute o indiciava a proportio implica certas rationes que

devem ser fixas por uma regra e ser submetidas a um modo e a uma forma concreta457

Aristoacuteteles refere-lhes as λόγων Entendida como analogia a proportio eacute uma qualidade

unificadora jaacute que estabelece uma paridade entre elementos distintos ou como

Aristoacuteteles notava estabelece uma relaccedilatildeo de igualdade que pode por isso reportar-se

ao conceito de justiccedila458

O proacuteprio Santo Agostinho identifica-a ainda com a consentio

e reconhece-lhe um inegaacutevel elo com a concordia e com a amizade459

A proportio eacute uma razatildeo de semelhanccedila entre dois termos pelo que articula

tambeacutem qualidades como a aequalitas a parilitas e a similitudo O emprego destes

qualificativos revela muitas vezes uma certa sinoniacutemia mas a este propoacutesito Fontanier

cita uma passagem de In Epistolam Johannis ad Parthos atraveacutes da qual distingue uma

coerecircncia terminoloacutegica Segundo este autor a aequalitas designa a identidade

quantificaacutevel de dois elementos considerados no espaccedilo ou no tempo se for relativa a

um eixo de divisatildeo a aequalitas assume-se como parilitas Quando a aequalitas apenas

revela uma certa igualdade (quaedam aequalitas) ela eacute mais propriamente dita pelo

termo similitudo e aplicaacutevel a realidades formalmente comparaacuteveis ou

454

Cf De mus VI 17 57

455 Cf Vitruacutevio De architectura III 1 1 laquoProportio est ratae partis membrorum in omni opere totiusque

commodulatio ex qua ratio efficitur symmetriarumraquo

456 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicoacutemaco V 6 1131a [30] laquoτὸ γὰρ ἀνάλογον οὐ μόνον ἐστὶ μοναδικοῦ ἀριθμοῦ

ἴδιον ἀλλ ὅλως ἀριθμοῦ ἡ γὰρ ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγων καὶ ἐν τέτταρσιν ἐλαχίστοις ἡ μὲν οὖν

διῃρημένη ὅτι ἐν τέτταρσι δῆλονraquo

457 De mus I 11 18 (PL 32 c 1094) laquoCerta ratio coercuerit et ad quamdam modum formamque revocaveritraquo

458 Cf Aristoacuteteles Eacutetica a Nicoacutemaco V 6 1131a

459 A este propoacutesito cf Maria Manuela Brito Martins ldquoAmicitia nostra vera ac sempiterna erit As fontes da

amizade espiritual em Agostinho de Hiponardquo in Revista Portuguesa de Filosofia vol 64 2008 p 215

152

quantitativamente comensuraacuteveis460

Em De vera religione Santo Agostinho diz que a

conveniecircncia das partes tende agrave igualdade e agrave unidade seja pela similitude que as partes

idecircnticas naturalmente gozam entre si seja pela gradaccedilatildeo das partes sem paridade461

Similitudo e gradatio surgem aqui como duas espeacutecies de igualdade ndash a primeira

relativa a elementos comensuraacuteveis (parium) a segunda relativa a elementos

quantitativamente desiguais (disparium) A similitudo pode assim ver-se como

equivalente agrave simetria462

como relaccedilatildeo de tamanho ou disposiccedilatildeo de partes entre si e

no fundo eacute uma parilitas que em vez de assentar em aspectos quantitativos assenta em

aspectos qualitativos ainda que em ambos os casos esteja pressuposta uma relaccedilatildeo

numeacuterica A gradatio refere-se a uma comparabilidade de elementos quantitativamente

diferentes entre si ndash natildeo tem portanto qualquer relaccedilatildeo agrave parilitas ndash mas cuja disposiccedilatildeo

promove uma espeacutecie de progressatildeo matemaacutetica em que cada termo sequente eacute maior

ou mais intenso do que aquele que o antecede Mesmo sem uma comensurabilidade ao

niacutevel dos elementos ou partes que constituem a gradatio reconhece-se uma igualdade

ou uma regularidade entre eles como se os intervalos que determinam entre si

contribuiacutessem para promover a sua unidade

Todos estes termos bem como o contexto no qual o Bispo de Hipona os insere

contribuem para estruturar uma esteacutetica assente na ideia de ordem Nihil est ordinatum

quod non sit pulchrum463

afirma Santo Agostinho O filosofema da ordem eacute

fundamental para a compreensatildeo da relaccedilatildeo entre unidade e multiplicidade na

460 Cf Jean Michel Fontanier La beauteacute selon Saint Augustin Rennes Presses Universitaires de Rennes

1998 p 51 A citaccedilatildeo a que se refere eacute a seguinte laquoQuomodo verbi gratia visa basilica ista ampla si

velit facere aliquis minorem sed tamen proportione ad mensuras eius ut verbi gratia si lata est ista

simplum et longa duplum faciat et ille latam simplum et longam duplum videtur sic fecisse sicut est

ista Sed ista habet verbi gratia centum cubitos illa triginta et sic est et impar est Videtis quia non

semper sicut ad parilitatem et aequalitatem refertur Verbi gratia videte quantum sit inter faciem

hominis et imaginem de speculo facies in imagine facies in corpore imago in imitatione corpus in

veritate Et quid dicimus Nam sicut hic oculi ita et ibi sicut hic aures ita et ibi aures sunt Dispar est

res sed sicut ad similitudinem diciturraquo In Iohan ep Parthos IV 9 (PL 35 c 2010)

461 De vera relig 30 55 (CCL 32 p 223) laquoSed cum in omnibus artibus convenientia placeat qua una

salva et pulchra sunt omnia ipsa vero convenientia aequalitatem unitatemque appetat vel similitudine

parium partium vel gradatione disparium [hellip]raquo

462 Vide capiacutetulo I11 p 39 da presente dissertaccedilatildeo acerca da reformulaccedilatildeo da tradicional definiccedilatildeo de

beleza assente na simetria atraveacutes da congruentia numerosa

463 De vera relig 41 77

153

perspectiva agostiniana464

uma perspectiva que de certo modo rompe com o

neoplatonismo e ostensivamente com o maniqueiacutesmo pois permite integrar de modo

positivo a diferenccedila e a diversidade abrindo o plano divino agrave relaccedilatildeo A ordum rerum

significa que tudo o que existe e tudo o que afecta a existecircncia tem o seu lugar proacuteprio e

encontra uma justificaccedilatildeo no seio da racionalidade divina ndash a questatildeo do mal que tanto

atormentava o jovem Agostinho encontra aqui um solo propiacutecio de exploraccedilatildeo Como

privaccedilatildeo do bem o mal natildeo tem existecircncia proacutepria positiva ele natildeo procede da mateacuteria

nem pode portanto ser imputado a Deus Eacute fruto de uma defecccedilatildeo da vontade do homem

que pelo livre arbiacutetrio com que Deus dotou as almas racionais tem a faculdade de optar

livremente pela conformidade agrave sua essecircncia e pela reconduccedilatildeo agrave sua origem ou pelo

contraacuterio pode optar por renunciar ao bem Contrariamente agraves teses defendidas pelos

maniqueus Santo Agostinho conclui pela negaccedilatildeo da substancialidade do mal e encara-o

como um natildeo-ser Em Confessionum explica a linha de raciociacutenio que o conduz a tal

conclusatildeo tudo o que eacute bom estaacute sujeito agrave corrupccedilatildeo exceptuando aquilo que eacute

supremamente bom e aquilo a que radicalmente falta bondade A corrupccedilatildeo eacute

precisamente a carecircncia de bem ora o bem marca presenccedila na natureza criada pelo

simples facto de ser obra de Deus mas comparado agrave suma bondade divina eacute um bem

inferior sujeito agrave corrupccedilatildeo Se no entanto as criaturas perdessem radicalmente a sua

bondade e continuassem a existir isso significaria que eram incorruptiacuteveis tal como

Deus Eacute no entanto uma monstruosidade absurda concluir que as criaturas se tornariam

melhores pela perda A privaccedilatildeo radical de bem implica a privaccedilatildeo radical de ser se as

criaturas tecircm uma existecircncia positiva entatildeo satildeo necessariamente boas Eacute impossiacutevel que

o mal seja uma substacircncia pois isso significaria paradoxalmente que o mal fosse bom

A ser substacircncia o mal soacute poderia ser incorruptiacutevel ndash um sumo bem ndash ou corruptiacutevel

mas natildeo poderia corromper-se a menos que fosse bom Como nenhuma destas hipoacuteteses

procede resta concluir pela natildeo substancialidade do mal ou seja pela sua

inexistecircncia465

464

A tese de mestrado de Joseacute Silva Rosa e a tese de doutoramento de Paula Oliveira e Silva exploram

precisamente a centralidade da temaacutetica da ordem no pensamento agostiniano Joseacute Maria Silva Rosa Em

busca do centro Investigaccedilotildees sobre a noccedilatildeo de ordem na obra de Santo Agostinho Periodo de

Cassiciacuteaco Lisboa UCP 1999 Paula Oliveira e Silva Ordem e Ser Ontologia da Relaccedilatildeo em Santo

Agostinho Lisboa CFUL 2007

465 Conf VII 12 18 (CCL 27 p 224) laquoEt manifestatum est mihi quoniam bona sunt quae

corrumpuntur quae neque si summa bona essent neque nisi bona essent corrumpi possent quia si

summa bona essent incorruptibilia essent si autem nulla bona essent quid in eis corrumperetur non

154

O mal natildeo existe nem para Deus nem para a totalidade da criaccedilatildeo porque nada

pode atalhar ou destruir a ordem divina Tal natildeo significa poreacutem que certas partes da

criaccedilatildeo natildeo possam ser consideradas maacutes dado o modo inconveniente com que se

relacionam com outras determinadas partes Mas a ordem abarca bens e males (que soacute

assim poderatildeo ser considerados em funccedilatildeo da sua relatividade e parcialidade) daiacute que

ateacute mesmo uma alma pecadora natildeo fique fora da escala de belezas466 Ora se a ordem eacute

afim da beleza e se integra aspectos que em termos parciais parecem natildeo se coadunar

entre si contribuindo assim mesmo para a harmonia e para a perfeiccedilatildeo do todo isso

abre caminho para a consideraccedilatildeo de que a beleza se nutre ela proacutepria de aspectos que o

homem pela sua incapacidade de ter uma perspectiva totalizadora assume como

contraditoacuterios

Em De natura boni percebe-se tal articulaccedilatildeo de contraacuterios no acircmbito da

esteacutetica quando o Bispo de Hipona elogia a bela variedade contemplada na ordenaccedilatildeo

de bens exemplificando que ao privar certas zonas terrestres de luz em determinadas

horas Deus fez com que as trevas fossem tatildeo graciosas quanto os dias467

Todos os

esset Nocet enim corruptio et nisi bonum minueret non noceret Aut igitur nihil nocet corruptio quod

fieri non potest aut quod certissimum est omnia quae corrumpuntur privantur bono Si autem omni

bono privabuntur omnino non erunt Si enim erunt et corrumpi iam non poterunt meliora erunt quia

incorruptibiliter permanebunt Et quid monstrosius quam ea dicere omni bono amisso facta meliora Ergo

si omni bono privabuntur omnino nulla erunt ergo quandiu sunt bona sunt Ergo quaecumque sunt bona

sunt malumque illud quod quaerebam unde esset non est substantia quia si substantia esset bonum

esset Aut enim esset incorruptibilis substantia magnum utique bonum aut substantia corruptibilis esset

quae nisi bona esset corrumpi non posset Itaque vidi et manifestatum est mihi quia omnia bona tu fecisti

et prorsus nullae substantiae sunt quas tu non fecisti Et quoniam non aequalia omnia fecisti ideo sunt

omnia quia singula bona sunt et simul omnia valde bona quoniam fecit Deus noster omnia bona valde

Nec in Deo nec in universa creatura eius est malumraquo

466 De mus VI 17 56 (PL 32 c 1191) laquoNos tantum meminerimus quod ad susceptam praesentem

disputationem maxime pertinet id agi per providentiam Dei per quam cuncta creavit et regit ut etiam

peccatrix et aerumnosa anima numeris agatur et numeros agat usque ad infimam carnis corruptionem qui

certe numeri minus minusque pulchri esse possunt penitus vero carere pulchritudine non possunt Deus

autem summe bonus et summe iustus nulli invidet pulchritudini quae sive damnatione animae sive

regressione sive permansione fabricaturraquo

467 De nat boni 16 (CSEL 25 p 861) laquoQuae tamen etiam privationes rerum sic ordinantur in universitate

naturae ut sapienter considerantibus non indecenter vices suas habeant Nam et Deus certa loca et

tempora non illuminando tenebras fecit tam decenter quam dies Si enim nos continendo vocem decenter

interponimus in loquendo silentium quanto magis ille quarumdam rerum privationes decenter facit sicut

rerum omnium perfectus artifex Unde et in hymno trium puerorum etiam lux et tenebrae laudant Deum id

est eius laudem in bene considerantium cordibus pariunt Natura in quantum natura est nulla malaraquo Santo

Agostinho usa o adveacuterbio decenter enfatizando a conveniecircncia ou adequaccedilatildeo das trevas e dos silecircncios mas

pelo contexto facilmente se percebe o pendor esteacutetico de que o termo estaacute eivado O particiacutepio decens

integra portanto o universo semacircntico dos substantivos decus e decor Cf De vera relig 40 75

155

detalhes que nos desagradam harmonizam-se perfeitamente na ordem geral do

universo A beleza do conjunto pode ser constituiacuteda por partes imperfeitas Tambeacutem as

obras humanas e a finalidade de todas as criaturas concorrem para essa beleza

universal468

Mas mesmo a um niacutevel natildeo geral haacute evidecircncias dessa harmoniosa

integraccedilatildeo de contraacuterios por exemplo quando entrecortamos adequadamente um

discurso ou um canto com silecircncios realccedilando-o469

ou quando numa pintura a cor

negra abrilhanta pelo seu contraste as tonalidades circunvizinhas470

Em De Genesi ad litteram imperfectus liber iniciado doze anos antes de De

natura boni jaacute Santo Agostinho havia clarificado que as privaccedilotildees (sejam elas de luz de

som ou de bem) natildeo satildeo obra de Deus ndash Ele nunca ordenou ldquoFaccedilam-se as trevasrdquo ndash no

entanto ateacute elas satildeo contempladas na sua ordenaccedilatildeo do universo o que se comprova

biblicamente quando eacute dito que Deus separou a luz das trevas (Gn14) Este eacute o

primeiriacutessimo indiacutecio da ordem divina em que eacute dado um lugar agrave privaccedilatildeo de luz apoacutes a

luz (e soacute ela) ter sido positivamente criada Em relaccedilatildeo agraves positividades Deus eacute

simultaneamente o criador e o ordenador em relaccedilatildeo agraves privaccedilotildees eacute apenas o ordenador

Todas as coisas por si criadas satildeo belas tal como o satildeo todas aquelas que ordena471

Anne Isabelle Bouton-Touboulic nota como em obras posteriores o Bispo de

Hipona estabelece uma analogia expliacutecita entre a actividade ordenadora de Deus e a

mestria de um pintor472

A imagem do Deus pictor ndash natildeo tatildeo comum nas obras

agostinianas ndash serve para ilustrar a presciecircncia divina face agrave realidade dos pecadores O

pecador equivale agrave cor negra que pela matildeo de Deus eacute integrada no conjunto da

disposiccedilatildeo de todas as outras cores colocando-a na devida ordem e fazendo com que

468

Cf De vera relig 40 76

469 Cf De nat boni 16

470 Cf De vera relig 40 76

471 Cf De Gen ad litt imp V 25 (CSEL 281 p 475-476) laquoIta species naturasque ipsas et facit et

ordinat privationes autem specierum defectusque naturarum non facit sed ordinat tantum Dixit itaque

Fiat lux et facta est lux Non dixit Fiant tenebrae et factae sunt tenebrae Horum ergo unum fecit

alterum non fecit utrumque tamen ordinavit cum divisit Deus inter lucem et tenebras Ita et ipso faciente

pulchra sunt singula et ipso ordinante pulchra sunt omniaraquo

472 Anne-Isabelle Bouton-Touboulic laquoLrsquoestheacutetique de lrsquoordre chez saint Augustin les images du discours

et du tableauraquo in Maurice F Wiles E J Yarnold Saint Augustine and his Opponents Other Latin

Writers Studia Patristica vol 38 Leuven Peeters Publishers 2001 p 22

156

tenha o seu papel na pintura que eacute o universo473

contribuindo tambeacutem ela para a beleza

do conjunto Eacute com a cor negra que se pintam os cabelos as barbas e as sobrancelhas

ou seja os ornamenta do corpo474

Em De ordine Santo Agostinho refere-se agrave percepccedilatildeo de um mosaico cuja

harmonia e beleza do desenho soacute poderaacute ser fruiacuteda por aqueles que natildeo limitarem a sua

atenccedilatildeo a uma tessela mas pelo contraacuterio atenderem agrave totalidade que o conjunto de

moacutedulos perfaz475

Com tal imagem O Bispo de Hipona pretende exemplificar que o

ponto de vista parcial a que a condiccedilatildeo humana naturalmente nos condena impede que

percebamos facilmente a ordem que configura o desenho divino do universo Por

natureza e mediante os sentidos tendemos a perceber uma desordem e uma ausecircncia de

harmonia no mundo muito graccedilas agrave incompreensatildeo da origem do mal ou do papel que

os contraacuterios esteticamente assumem Mas tal eacute apenas o fruto da nossa incapacidade

em assumir um ponto de vista totalitaacuterio Por outro lado a nossa tendecircncia natural para

a unidade possibilita que possamos entender a dependecircncia das formas existentes em

relaccedilatildeo a uma razatildeo universal A ordem eacute hierarquia conveniecircncia das partes harmonia

subsistente e omnipresente mas tambeacutem eacute uma construccedilatildeo mental elaborada face agrave

diversidade das formas existentes na estrutura cosmoloacutegica476

agrave qual natildeo eacute alheia a

dialeacutectica entre aptidatildeo e beleza

473

De civ Dei XI 23 (CCL 48 p 342) laquo[hellip]quoniam sicut pictura cum colore nigro loco suo posito ita

universitas rerum si quis possit intueri etiam cum peccatoribus pulchra est quamvis per se ipsos

consideratos sua deformitas turpetraquo Muito mais comum do que a imagem do universo como pintura eacute a

do universo como cacircntico ou poema ndash carmen universitatis Cf De mus VI 11 29 De civ Dei XI 18

474 Sermo 125 5 (PL 38 cols 692-693) laquoCerte peccator niger color esse voluit ideo nescit ordo artificis

ubi cum ponat Quanta ordinat de nigro colore Quanta ornamenta facit pictor Facit inde capillos facit

barbam facit supercilia non facit frontem nisi de alboraquo Cf Sermo 301 5 4

475 Cf De ord I 1 2

476 Cf Paula Oliveira e Silva Ordem e ser Ontologia da relaccedilatildeo em Santo Agostinho Lisboa CFUL

2007 p 122

157

3 Gradaccedilotildees de ser de beleza e dos efeitos da percepccedilatildeo do belo

31 - Do pulchrum aptum ao par conceptual uti frui

O interesse agostiniano no que respeita agrave articulaccedilatildeo entre as partes e o todo ndash ou

por outras palavras no que respeita agrave relaccedilatildeo que a multiplicidade manteacutem com a

unidade ndash estava jaacute presente nos dois ou trecircs livros que integrariam aquela que foi a sua

primeiriacutessima obra o tratado perdido De pulchro et apto escrito entre 380 e 381 Aos

44 anos por altura da redacccedilatildeo de Confessionum jaacute esta obra havia sido excluiacuteda da

biblioteca de Santo Agostinho e da possibilidade de chegar aos nossos dias Talvez o

forte pendor maniqueiacutesta tenha ditado a sua destruiccedilatildeo477

Natildeo haacute registo da argumentaccedilatildeo aiacute desenvolvida mas conforme Santo

Agostinho daacute conta em Confessionum enquanto o pulchrum concerne agrave conveniecircncia

da totalidade o aptum eacute aquilo que agrada pela sua acomodaccedilatildeo a alguma coisa Apesar

de distintos os conceitos natildeo satildeo antinoacutemicos e pressupotildeem-se mutuamente no que

respeita agrave beleza dos corpos Estaacute aqui presente o problema da conveniecircncia das partes

relativamente ao todo e o problema da conveniecircncia do todo graccedilas agrave adaptaccedilatildeo das

partes No pequeno resumo que nos lega sobre este ensaio mais do que uma definiccedilatildeo

de beleza Santo Agostinho estabelece dois pontos de vista a partir dos quais a beleza

477

Acerca das provaacuteveis influecircncias maniqueias nesta obra cf Takeshi Katocirc laquoMelodia Interior Sur le

traiteacute De pulchro et aptoraquo in REAug 12 1966 pp 229-240 Aleacutem desta influecircncia haacute ainda a referir o

pendor pitagoacuterico notado por Solignac e por Svoboda bem como o pendor estoacuteico referido por Alfaric e

Guitton cf respectivamente A Solignac laquoDoxographies et manuels chez Saint Augustinraquo Recherches

augustiniennes vol 1 Paris 1960 pp 113-148 K Svoboda La esteacutetica de San Agustiacuten y sus fuentes

Luis Rey Altuna (versioacuten y proacutelogo) Madrid Libreriacutea Editorial Augustinus 1958 p 15 P Alfaric

Leacutevolution intellectuelle de Saint Augustin Paris Eacutemile Nourry 1918 pp 225 e 232 J Guitton Le

temps et leacuteterniteacute chez Plotin et Saint Augustin Paris Vrin 2004 p 189

158

corpoacuterea pode ser considerada um ponto de vista autoacutenomo pelo qual a beleza eacute tida

como um todo e um ponto de vista relativo pelo qual a beleza eacute reportada a uma

totalidade O primeiro ponto de vista eacute-nos sintetizado na questatildeo Quid est ergo

pulchrum O segundo na questatildeo et quid est pulchritudo478

As duas questotildees natildeo satildeo

redundantes como agrave primeira vista poderiam deixar supor mas marcam uma gradaccedilatildeo

na caracterizaccedilatildeo da beleza enquanto harmonia da relaccedilatildeo das partes entre si e

relativamente a um conjunto

Haacute a tendecircncia em associar a distinccedilatildeo entre pulchrum e aptum ao binoacutemio uti-frui

como se Santo Agostinho reportasse linearmente a pulcritude das coisas corpoacutereas (que

eacute uma propriedade das formas) agrave sua adequaccedilatildeo no contexto da finalidade da acccedilatildeo

humana mas na verdade ainda que a articulaccedilatildeo entre o pulchrum e a fruiccedilatildeo per se

resulte correcta479

jaacute o paralelo entre uti e aptum natildeo colhe o mesmo resultado pois

pressuporia que agrave congruecircncia entre as partes e o todo estivesse associada a categoria de

bonum utile em vez da coaptatio O pulchrum eacute o que agrada por si e o aptum eacute o que

agrada pela sua acomodaccedilatildeo a alguma coisa sendo que ambos independem da esfera da

acccedilatildeo humana Talvez tenha sido tambeacutem essa autonomia da beleza das coisas

corpoacutereas uma outra razatildeo para o desagrado que esta primeira obra inspirou em Santo

Agostinho A dimensatildeo moral das belezas corpoacutereas parecia natildeo ter lugar numa tal

perspectiva alheia agrave esfera da acccedilatildeo humana Nas obras posteriores seraacute o numerus a

salvaguardar a ordem universal determinando a articulaccedilatildeo do belo temporal com o

modo de apreensatildeo e valoraccedilatildeo que o sujeito faz das coisas belas e integrando assim ao

niacutevel das estesias a dimensatildeo utilitaacuteria que teria sido descartada nesta primeira obra

Uma caracteriacutestica tiacutepica da abordagem maniqueiacutesta eacute a valorizaccedilatildeo da beleza

sensiacutevel vir a par de um certo pessimismo quanto agrave sua harmonizaccedilatildeo face ao todo

abrindo deste modo caminho para a substancializaccedilatildeo dualista480

Ou seja apesar de a

esfera sensiacutevel intrinsecamente promover uma compreensatildeo harmoniosa em termos

estruturais pelo reconhecimento das relaccedilotildees de conveniecircncia entre as diversas

unidades orgacircnicas e as partes que as constituem jaacute o modo como ela (esfera sensiacutevel)

478

Conf IV 13 20 (CCL 27 p 51)

479 Pelo menos neste niacutevel restrito Se pensarmos o pulchrum ao niacutevel da perspectiva que o fruidor deve

assumir face agraves belezas corpoacutereas jaacute o paralelo com a fruitio resulta incorrecto

480 Para uma perspectiva natildeo acadeacutemica mas extremamente sugestiva e bem fundamentada acerca da

esteacutetica maniqueiacutesta cf Amin Maalouf Os jardins de luz Lisboa Puacuteblico 2003 passim

159

tida na sua multiplicidade de formas se harmoniza com o todo coacutesmico revela-se

problemaacutetico A relaccedilatildeo entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel natildeo predispotildee a um

reconhecimento da ordem como na tradiccedilatildeo neoplatoacutenica mas sim da desordem Natildeo

significa isto que Santo Agostinho negasse a beleza inteligiacutevel ndash e nem Mani nem os

seus disciacutepulos o faziam ndash pelo contraacuterio ele pressentia-a e desejava-a apesar de natildeo

ser capaz de a perspectivar convenientemente481

A beleza divina teria um pendor

formalista adoptado a partir das coisas corpoacutereas e o seu equacionamento em termos de

ordem estava comprometido pela distinccedilatildeo que Santo Agostinho entatildeo fazia entre

moacutenade e diacuteade482

A moacutenade era como uma mente assexuada483

uma unidade onde

estaria subsumida a alma racional bem como a natureza da verdade e do bem

superiores A diacuteade opondo-se desde sempre agrave moacutenade seria um mal substancial e

natural caracterizado pela discoacuterdia e pela irracionalidade As formas sensiacuteveis

possuindo traccedilos de unidade tenderiam naturalmente para ela pela carecircncia que dela

sentiam poreacutem pertencendo agrave mateacuteria estavam presas agrave mutabilidade e ao caraacutecter

diverso que caracterizaria a esfera da diacuteade A tensatildeo entre bem e mal preponderava

sobre a ideia de ordem na eacutepoca em que Santo Agostinho escreveu o De pulchro et

apto Na verdade parecia ser precisamente essa preponderacircncia que dificultava a

concertaccedilatildeo entre os elementos formalistas da sua teoria esteacutetica e os elementos eacuteticos e

metafiacutesicos que viriam mais tarde a caracterizar o discurso agostiniano sobre o belo e

481

Cf Conf IV 15 27

482 Conf IV 15 24 (CCL 27 p 52) laquo[hellip] ibat animus per formas corporeas et pulchrum quod per se

ipsum aptum autem quod ad aliquid accommodatum deceret definiebam et distinguebam et exemplis

corporeis astruebam Et converti me ad animi naturam et non me sinebat falsa opinio quam de

spiritualibus habebam verum cernere Et irruebat in oculos ipsa vis veri et avertebam palpitantem

mentem ab incorporea re ad lineamenta et colores et tumentes magnitudines et quia non poteram ea

videre in animo putabam me non posse videre animum Et cum in virtute pacem amarem in vitiositate

autem odissem discordiam in illa unitatem in ista quamdam divisionem notabam inque illa unitate mens

rationalis et natura veritatis ac summi boni mihi esse videbatur in ista vero divisione irrationalis vitae

nescio quam substantiam et naturam summi mali quae non solum esset substantia sed omnino vita esset

et tamen abs te non esset Deus meus ex quo sunt omnia miser opinabar Et illam monadem appellabam

tamquam sine ullo sexu mentem hanc vero dyadem iram in facinoribus libidinem in flagitiis nesciens

quid loquerer Non enim noveram neque didiceram nec ullam substantiam malum esse nec ipsam mentem

nostram summum atque incommutabile bonumraquo Poucos anos mais tarde com a leitura dos libri

platonicorum Santo Agostinho teria oportunidade natildeo soacute de rever os seus conceitos de moacutenade e diacuteade

como tambeacutem o problema do mal e ainda de estruturar a sua original teoria do nuacutemero combinando agrave luz

das Sagradas Escrituras tais leituras que teraacute feito de Plotino e de Porfiacuterio com as de Ciacutecero e Varratildeo

483 Este caraacutecter assexual da moacutenade que Santo Agostinho refere estaraacute porventura associado agrave

caracterizaccedilatildeo pitagoacuterica da moacutenade como sendo um princiacutepio que natildeo eacute nem par nem iacutempar

160

sobre a sensibilidade O belo estaria jaacute equacionado com o bem pelo que mesmo as

belezas corpoacutereas por serem uma aparecircncia fragmentaacuteria da unidade eram tidas

positivamente falhava poreacutem ao jovem Agostinho uma perspectiva capaz de articular

tal qualidade esteacutetica das criaturas com as implicaccedilotildees da valoraccedilatildeo e da utilizaccedilatildeo a

que deveria ser sujeita Faltava-lhe relativizar o belo sensiacutevel associando-o a um valor

instrumental que desencorajasse a fruiccedilatildeo per se de tal beleza Como iacutendice de relaccedilatildeo

o numerus imporia tal relatividade entre o belo sensiacutevel face ao belo inteligiacutevel

deslocando sem constriccedilotildees a fonte do prazer esteacutetico entatildeo vista a partir das qualidades

formais para a congruentia numerosa ou para a ordem e daiacute para Deus pulchritudo

pulchrorum omnium484

Faltava-lhe tambeacutem situar positivamente as marcas da

multiplicidade como o contrastante o diferente ndash coisa que viria a acontecer com a

esteacutetica dos opostos ou da totalidade antiteacutetica como vimos no final do subcapiacutetulo

anterior A dialeacutectica entre aptidatildeo e beleza manter-se-aacute no pensamento esteacutetico

agostiniano sem os constrangimentos com que a perspectiva maniqueia eivara o tratado

De pulchro et apto

Os filosofemas agostinianos de nuacutemero e de ordem fazem com que a teoria

esteacutetica do Bispo de Hipona seja indissociaacutevel de uma visatildeo hieraacuterquica do real muito

distinta da maniqueia de acordo com a qual os seres vegetais estavam acima dos seres

humanos485

Com efeito os seres ordenam-se segundo graus de perfeiccedilatildeo distintos que

se reflectem na sua beleza daiacute que por exemplo um homem seja mais belo do que um

siacutemio486

A ordem das coisas parece resultar da dialeacutectica entre aptidatildeo e beleza num

plano natildeo tatildeo limitado agrave percepccedilatildeo sensiacutevel mas muito mais racional com o

reconhecimento dos nuacutemeros

[hellip] a proacutepria beleza pela qual a terra se distingue dos outros elementos natildeo

ostenta o uno tanto quanto o recebeu Com efeito a nenhuma das suas partes

falta proporccedilatildeo com o todo e pelo conjunto das suas partes ocupa no seu

geacutenero a esfera mais baixa mas tambeacutem mais propiacutecia agrave sua conservaccedilatildeo

Sobre si estende-se o elemento da aacutegua que tende tambeacutem para essa

unidade pois eacute mais belo e mais diaacutefano graccedilas agrave maior proporccedilatildeo das partes

e porque ocupa o lugar mais conveniente agrave sua ordem e conservaccedilatildeo O que

484

Conf III 6 10 (CCL 27 p 31)

485 Cf Conf III 10 18

486 Cf De nat boni 14 De Gen cont Man II 29 43

161

dizer do elemento ar que tende agrave unidade mediante uma organicidade muito

mais faacutecil que eacute tatildeo mais belo do que a aacutegua quatildeo esta o eacute do que terra e

superior em termos de autoconservaccedilatildeo O que dizer por fim da esfera

superior do ceacuteu na qual termina todo o universo dos corpos visiacuteveis a mais

bela neste geacutenero e que ocupa o lugar excelso em termos de

autoconservaccedilatildeo Certamente os elementos que percebemos atraveacutes dos

nossos sentidos corpoacutereos com tudo aquilo que neles existe natildeo podem

admitir nem conservar esses nuacutemeros no espaccedilo que parecem existir num

outro estado sem uma influecircncia anterior interior e silenciosa da sucessatildeo

de nuacutemeros que existem no movimento Do mesmo modo um movimento

vital precede e modifica estes nuacutemeros que se movem nos intervalos dos

tempos este movimento servindo ao Senhor criador de todas as coisas natildeo

tem em si intervalos de tempo que regulem os seus nuacutemeros mas recebe do

poder divino o benefiacutecio dos tempos Acima deste poder estatildeo os nuacutemeros

intelectuais e racionais das almas santas e bem-aventuradas que transmitem

sem intermediaacuterios a lei a que obedecem as coisas terrenas e os infernos a

proacutepria lei de Deus sem a qual a folha natildeo cai da aacutervore e pela qual os

nossos cabelos estatildeo contados487

Denotando a influecircncia neoplatoacutenica satildeo inuacutemeras as passagens onde Santo

Agostinho faz hierarquizaccedilotildees ontoloacutegicas ou descreve escalas de realidades e de

actividades Tal ordenamento evidencia em muitos casos a interpenetraccedilatildeo das esferas

do belo e do bem mais acentuadamente do que aquilo que ocorre com os exemplos das

Eneacuteadas488

Desde logo estaacute subjacente agrave hierarquia esse-vivere-intellegere o modo

como os seres se relacionam com os corporalia traduzido na capacidade de reconhecer

487

De mus VI 17 58 (PL 32 cols 1192-1193) laquo[hellip] ipsa species qua item a caeteris elementis terra

discernitur nonne et unum aliquid quantum accepit ostentat et nulla pars eius a toto est dissimilis et

earumdem partium connexione atque concordia suo genere saluberrimam sedem infimam tenet Cui

superfunditur aquarum natura nitens et ipsa ad unitatem speciosior et perlucidior propter maiorem

similitudinem partium et custodiens locum ordinis et salutis suae Quid de aeris natura dicam multo

faciliore complexu ad unitatem nitente et tanto speciosiore aquis quam illae terris sunt tantoque

superiore ad salutem Quid de coeli supremo ambitu quo tota universitas visibilium corporum terminatur

et summa in hoc genere species ac saluberrima loci excellentia Ista certe omnia quae carnalis sensus

ministerio numeramus et quaecumque in eis sunt locales numeros qui videntur esse in aliquo statu nisi

praecedentibus intimis et in silentio temporalibus numeris qui sunt in motu nec accipere illos possunt

nec habere Illos itidem temporum intervallis agiles praecedit et modificat vitalis motus serviens Domino

rerum omnium non temporalia habens digesta intervalla numerorum suorum sed tempora ministrante

potentia supra quam rationales et intellectuales numeri beatarum animarum atque sanctarum legem

ipsam Dei sine qua folium de arbore non cadit et cui nostri capilli numerati sunt nulla interposita natura

excipientes usque ad terrena et inferna iura transmittuntraquo

488 Haacute que natildeo esquecer que para Plotino no plano inteligiacutevel o Bem estaacute acima do Belo podendo

considerar-se como um super-belo pois eacute dele que nasce a beleza das Ideias Cf En VI 7 18 e En V 5 12

acerca da superioridade e da anterioridade do Bem relativamente ao Belo Para Santo Agostinho tanto o

Bem quanto o Belo podem ser identificados com Deus

162

os nuacutemeros ou as leis que governam o universo Diz o Bispo de Hipona que entre os

seres satildeo superiores aqueles que tecircm vida aos que natildeo a tecircm e desses deveratildeo preferir-se

os que tecircm capacidade generativa ou apetitiva diz ainda que os sencientes ndash como os

animais ndash satildeo superiores aos natildeo sencientes ndash como as aacutervores ndash entre os sencientes

satildeo superiores os que tecircm inteligecircncia ndash como os homens ndash aos que natildeo tecircm

inteligecircncia ndash como os outros animais ndash entre os que tecircm inteligecircncia satildeo superiores

os imortais ndash como os anjos ndash aos mortais489

O homem ocupa um lugar intermeacutedio nos

graus de ser definidos por Santo Agostinho diferenciando-se dos outros animais pela

racionalidade da sua alma que lhe permite contemplar a realidade superior e aceder agrave

verdade Tambeacutem o seu corpo eacute superior ao dos animais e eacute belo mas mais bela eacute a

alma pois eacute dela que o corpo retira a sua beleza A beleza do corpo portanto natildeo se

limita agrave harmonia da disposiccedilatildeo dos membros natildeo eacute uma beleza meramente formal eacute

tambeacutem uma beleza moral que natildeo deixa de ser visiacutevel ao transparecer na postura e na

atitude490

Eacute interessante notar que haacute uma recusa em estabelecer um cacircnone formal fixo para

a beleza do corpo embora a mais famosa definiccedilatildeo agostiniana de beleza corpoacuterea ndash corporis

pulchritudo est partium congruentia cum quadam coloris suavitate 491

ndash assim o pareccedila

anunciar como vimos anteriormente a congruecircncia das partes tambeacutem enunciada

como congruentia numerorum eacute uma reformulaccedilatildeo da definiccedilatildeo estoacuteica da beleza

baseada na simetria que natildeo descarta o caraacutecter imaterial da beleza

A beleza da alma proveacutem de Deus que eacute a suma Beleza e em comparaccedilatildeo com a

qual as demais belezas nada satildeo492

Assim o ornamento do corpo eacute a alma ao passo

que o ornamento da alma eacute Deus493

Um corpo mais belo do que o mortal eacute aquele que

489

Cf De civ Dei XI 16

490 Cf De Gen ad litt VI 12 22 De div Quaest 83 51 3

491 De civ Dei XXII 19 (CCL 48 p 838) Tambeacutem para Ciacutecero este tipo de formulaccedilatildeo formal da beleza

natildeo exclui o cariz moral laquoEt ut corporis est quaedam apta figura membrorum cum coloris quadam

suavitate eaque dicitur pulchritudo sic in animo opinionum iudiciorumque aequabilitas et constantia cum

firmitate quadam et stabilitate virtutem subsequens aut virtutis vim ipsam continens pulchritudo vocaturraquo

(Tusculanae Disputationes IV 31)

492Cf Conf XI 4 6 (CCL 27 p 197) onde falando da beleza dos ceacuteus e da terra Santo Agostinho diz

laquoTu ergo Domine fecisti ea qui pulcher es pulchra sunt enim qui bonus es bona sunt enim qui es sunt

enim Nec ita pulchra sunt nec ita bona sunt nec ita sunt sicut tu Conditor eorum quo comparato nec

pulchra sunt nec bona sunt nec suntraquo

493 In Iohan Evang tract XXXII 3 (CCL 36 p 301) laquoDecus ergo corporis animus decus animi Deusraquo

163

as almas bem-aventuradas assumiratildeo no dia do Juiacutezo Final Trata-se de um corpo

ainda carnal apesar de celestial resultante da renovaccedilatildeo da mateacuteria humana

aquando da ressurreiccedilatildeo A sua beleza eacute maior em virtude da redistribuiccedilatildeo

optimizada das quantidades corpoacutereas que a par de um maior transparecimento da

alma e da adquirida imutabilidade resulta numa superioridade qualitativa

relativamente ao corpo temporal terreno494

Em De quantitate animae encontramos hierarquizadas as proacuteprias actividades e

estadios da alma495

A um niacutevel baacutesico a alma vivifica o corpo a que estaacute unida

conferindo e mantendo a sua unidade permitindo que decorra uma distribuiccedilatildeo

uniforme de alimento pelos seus membros conservando as suas proporccedilotildees e tudo isto

natildeo apenas para efeitos de beleza mas tambeacutem para efeitos de crescimento e de

reproduccedilatildeo Natildeo haacute neste niacutevel nada que distinga o homem dos vegetais pois tambeacutem

destes se pode dizer que vivem que cada qual se conserva na sua espeacutecie que se

alimentam crescem e reproduzem

O segundo patamar de actividade aniacutemica diz respeito agrave percepccedilatildeo sensiacutevel e ao

seu papel no funcionamento motor do corpo Apesar de distinguir jaacute os homens dos

vegetais este grau natildeo o distingue ainda dos restantes animais A memoacuteria interveacutem jaacute

nas funccedilotildees que entatildeo tecircm lugar e que satildeo por exemplo relativas agrave alimentaccedilatildeo agrave

protecccedilatildeo agrave imitaccedilatildeo e ateacute mesmo agrave reproduccedilatildeo ndash trata-se do niacutevel instintivo da alma

Passando para um terceiro patamar de actividade da alma a memoacuteria permite

executar uma seacuterie de ofiacutecios ou artesanias (ars) de que satildeo exemplo a cultura dos

campos a edificaccedilatildeo de cidades a invenccedilatildeo e o uso de signos como sejam as palavras

os gestos a muacutesica a pintura e a escultura Tecircm aqui lugar as instituiccedilotildees humanas as

invenccedilotildees a preocupaccedilatildeo com o legado para a posteridade as hierarquias de poder de

honra (seja no acircmbito familiar seja no acircmbito estatal) a guerra a paz as cerimoacutenias

profanas ou sagradas a capacidade de raciociacutenio a criatividade o entretenimento a

mestria a precisatildeo as convenccedilotildees as previsotildeeshellip enfim tudo o que peculiarmente

494

Cf De civ Dei XXII 19 Vide p 58 da presente tese A beleza do corpo acompanha portanto a beleza

da alma mas podemos objectar que apesar de contemplar a integraccedilatildeo positiva de exemplos menos

convencionais no que toca agrave beleza fiacutesica ndash como eacute o caso das cicatrizes dos maacutertires cristatildeos ndash Santo

Agostinho eacute suficientemente cauteloso para distinguir aquilo que manifestando-se no corpo eacute da alma e

para natildeo cortar abruptamente com o cacircnone greco-romano da beleza juvenil ou natildeo situasse o corpo

ressurrecto na pujanccedila fiacutesica dos vinte e poucos anos A serenidade madura que acompanha a senescecircncia

de um homem virtuoso por exemplo parece natildeo ter lugar nas perfeiccedilotildees da beata vita

495 Cf De quant an 33 70 - 36 81

164

caracteriza o ser humano Santo Agostinho nota poreacutem que nada disto distingue ainda

os saacutebios dos ignorantes ou as boas pessoas das vis

A virtude comeccedila apenas no quarto grau ousando a alma preferir-se aos corpos

olhando com desapego os bens temporais e percebendo que a relatividade a que estatildeo

sujeitos os faz inferior a si mesma quer em termos de forccedila (potentia) quer em termos

de beleza (pulchritudo) Quanto mais se purifica e se arma contra aquilo que obstaculiza

o seu derradeiro desiderato mais bela ela se torna Uma alma capaz de aceder a este

niacutevel eacute tambeacutem capaz de amar a grande comunidade humana natildeo desejando para os

outros aquilo que natildeo deseja para si proacutepria Natildeo se trata de patamar faacutecil pois implica

renunciar ao apelo das seduccedilotildees temporais e lidar ainda com um certo medo da morte

Face a isto sabe poreacutem que pode contar com a palavra timoneira da autoridade e dos

saacutebios e sobretudo que pode contar com a ajuda de Deus pela justiccedila com que criou e

com que dirige o universo

No quinto niacutevel jaacute purificada alma apraz-se portanto por si mesma ao

compreender a sua grandeza O facto de se ter purificado e redimido as suas faltas natildeo eacute

poreacutem garante de que natildeo possa voltar a reincidir Soacute neste patamar eacute que a alma

consolida a pureza que foi granjeando no niacutevel anterior Pode voltar-se para Deus com

maior confianccedila encaminhando-se para a sublime e misteriosa recompensa para a qual

tanto se esforccedilou

Em relaccedilatildeo ao sexto degrau evolutivo da alma Santo Agostinho refere que uma

coisa eacute purificar o olho da alma evitando abri-lo em vatildeo ou levianamente e evitando

pousaacute-lo sobre coisas perversas (como ocorria no quarto niacutevel) outra coisa eacute conservar

e reforccedilar a sanidade desse olhar (como acontecia no quinto niacutevel) e outra coisa ainda eacute

direccionar para aquilo que deve ser contemplado esse olhar tornado justo e sereno Em

sintonia com aquilo que Platatildeo diz na Alegoria da Caverna Santo Agostinho explica

que se o quarto e o quinto niacutevel fossem saltados pela alma ao chegar ao sexto a luz

divina cegaria o seu olhar e ela seria incapaz de lhe reconhecer algo de bom e de admitir

que estaria face agrave verdade Soacute pela ascensatildeo gradual da alma atraveacutes destes niacuteveis ela

poderaacute elevar-se acima das paixotildees e de tudo o que a suja para singrar sem desvios ou

retrocessos ateacute agrave verdade reconhecendo-a e desejando-a

O uacuteltimo patamar da grandeza da alma natildeo eacute verdadeiramente um degrau diz

Santo Agostinho eacute antes a morada (mansio) para onde todos os outros niacuteveis conduzem

a alma Aqui a alma viveraacute o bem supremo e verdadeiro alcanccedilando a causa soberana

(summa causa) e o princiacutepio soberano (summum principium) que eacute Deus

165

Compreenderaacute entatildeo como as realidades temporais nada satildeo em comparaccedilatildeo com os

bens eternos ainda que consideradas em si mesmas sejam belas e admiraacuteveis

Alguns anos mais tarde em De doctrina christinana Santo Agostinho volta a

estruturar setes degraus para a ascensatildeo da alma em termos de timor pietas scientia

fortitudo consilium purgatio cordis e sapientia496

Assim nesta obra o primeiro

patamar concerne agrave crenccedila em Deus e agrave sua capacidade em predispor a alma para o

conhecimento da sua vontade no segundo patamar entra em jogo a piedade que torna a

alma doacutecil de modo a receber os ensinamentos da Sagrada Escritura o terceiro niacutevel eacute

do conhecimento (scientia) e nele estatildeo todos aqueles que se dedicam ao estudo

aprofundado da Sagrada Escritura cuja doutrina pode resumir-se no preceito de amar

Deus de todo o coraccedilatildeo e amar o proacuteximo como a si mesmo no quarto patamar tendo o

conhecimento aberto caminho para a esperanccedila haacute um fortalecimento da alma

exercitado na pretericcedilatildeo dos bens materiais em prol dos bens espirituais no quinto

patamar a alma purifica-se em obras misericordiosas e aperfeiccediloa-se no amor ao proacuteximo

chegando mesmo a amar os seus inimigos entrando no sexto niacutevel o homem purifica de tal

modo o seu coraccedilatildeo ndash vivendo menos para este mundo e mais para Deus ndash que a luz

infinita comeccedila a tornar-se menos ofuscante ainda assim o homem vecirc-a apenas em

enigma e por espelho (II Cor 13 12) O seacutetimo e uacuteltimo patamar eacute o da contemplaccedilatildeo

onde a alma frui da sabedoria (sapientia) no seio da mais profunda paz

Agrave medida que a alma ascende pelos sete patamares vai-se tornando cada vez

mais bela pois purifica-se e despoja-se de tudo aquilo que lhe eacute alheio que a suja e a

deforma O seu aperfeiccediloamento esteacutetico eacute directamente proporcional ao

aperfeiccediloamento eacutetico pela praacutetica das virtudes Assim o teraacute aprendido Santo

Agostinho atraveacutes da leitura das Eneacuteadas onde em contraste com outras passagens da

mesma obra eacute afirmada a identidade entre o belo e o bem497

496

Cf De doct christ II 7 9 - 11 Para um esquema de complementaridade entre os sete degraus descritos

em De quant an e em De doct christ cf E Gilson Introduction agrave lrsquoeacutetude de saint Augustin p 160

Importa referir que entre De quant an e De doct christ Santo Agostinho escreveu algumas obras onde o

esquema vertical de aperfeiccediloamento da alma parece dar lugar a um esquema horizontal baseado na

hierarquizaccedilatildeo temporal e histoacuterica que todavia natildeo nos parece incompatiacutevel com esta perspectiva

ascensional de que aqui damos conta A tiacutetulo de exemplo cf De Gen cont Man I 23 35 - I 25 43

497 En I 6 6 [1] laquoΔιὸ καὶ λέγεται ὀρθῶς τὸ ἀγαθὸν καὶ καλὸν τὴν ψυχὴν γίνεσθαι ὁμοιωθῆναι εἶναι θεῷ

ὅτι ἐκεῖθεν τὸ καλὸν καὶ ἡ μοῖρα ἡ ἑτέρα τῶν ὄντων Μᾶλλον δὲ τὰ ὄντα ἡ καλλονή ἐστιν ἡ δacute ἑτέρα

φύσις τὸ αἰσχρόν τὸ δacute αὐτὸ καὶ πρῶτον κακόν ὥστε κἀκείνῳ ταὐτὸν ἀγαθόν τε καὶ καλόν ἢ τἀγαθόν τε

καὶ καλλονή Ὁμοίως οὖν ζητητέον καλόν τε καὶ ἀγαθὸν καὶ αἰσχρόν τε καὶ κακόν Καὶ τὸ πρῶτον θετέον

τὴν καλλονήν ὅπερ καὶ τἀγαθόν ἀφacute οὗ νοῦς εὐθὺς τὸ καλόν ψυχὴ δὲ νῷ καλόνraquo

166

A proacutepria percepccedilatildeo da beleza por parte do sujeito acompanha tal evoluccedilatildeo

pois se ateacute ao terceiro niacutevel a alma natildeo discerne a relatividade das belezas sensiacuteveis jaacute

a partir do quarto ela comeccedila a perceber que a identificaccedilatildeo entre a beleza reconheciacutevel

nas realidades temporais e o bem soacute pode ser metafiacutesica significando que o belo natildeo eacute

uma propriedade inerente a tais realidades mas um vestiacutegio que nelas fulge da beleza

superior Esta suma beleza soacute pode ser contemplada desveladamente no uacuteltimo patamar

quando a alma jaacute eacute de tal modo pura e bela que se confunde com a natureza e com a

beleza daquilo que aspirava contemplar A alma natildeo saberia encontrar a beleza se antes

natildeo se tornasse ela proacutepria bela O seu aperfeiccediloamento natildeo implica que haja uma

progressiva insensibilidade face agraves expressotildees do belo no mundo sensiacutevel implica sim

um ultrapassar gradual da opacidade que as coisas temporais encerram para o

homem498

a beleza vai sendo percebida cada vez mais nitidamente e cada vez mais vai

sendo valorizada As coisas satildeo ultrapassadas na sua opacidade mas a beleza essa vai

sendo progressivamente ganha

Interessa no entanto questionar se para Santo Agostinho a beleza reconhecida

nas coisas corpoacutereas eacute sempre esse rasto do belo superior que pode ser seguido ateacute agrave sua

origem ou se efectivamente haacute uma beleza fiacutesica sem qualquer referecircncia agrave

inteligibilidade divina e por consequecircncia ao bem A beleza do corpo nem sempre eacute

proporcional agrave beleza no corpo e isso leva-nos a interrogar se o que estaacute por traacutes dessa

beleza corpoacuterea (do corpo) natildeo se resume a um acordo meramente formal A resposta eacute

negativa ndash ateacute mesmo essa beleza do corpo eacute resultado da ordenaccedilatildeo providencial de

Deus sendo por isso indissociaacutevel do bem Os nuacutemeros que subjazem a essa beleza natildeo

satildeo menos gloriosos Por exemplo em De civitate Dei Santo Agostinho afirma que a

beleza eacute um dom de Deus e eacute um bem mas ela pode ser atribuiacuteda tambeacutem a quem eacute

mau precisamente para que aqueles que satildeo bons mais claramente percebam que essa

beleza sensiacutevel natildeo eacute um bem maior499

O Bispo de Hipona quer com isto salientar a

498

A opacidade natildeo deve ser encarada como um castigo divino mas como um dispositivo necessaacuterio para

o aperfeiccediloamento da alma que seria gorado pela ofuscaccedilatildeo provocada pelo brilho da luz divina numa

alma natildeo preparada para a receber Trata-se pois de uma protecccedilatildeo

499 De civ Dei XV 22 (CCL 48 p 488) laquo[hellip] sed ab initio quae pravis moribus fuerant in terrena

civitate id est in terrigenarum societate amatae sunt a filiis Dei civibus scilicet peregrinantis in hoc

saeculo alterius civitatis propter pulchritudinem corporis Quod bonum Dei quidem donum est sed

propterea id largitur etiam malis ne magnum bonum videatur bonis Deserto itaque bono magno et

bonorum proprio lapsus est factus ad bonum minimum non bonis proprium sed bonis malisque

commune ac sic filii Dei filiarum hominum amore sunt capti atque ut eis coniugibus fruerentur in mores

societatis terrigenae defluxerunt deserta pietate quam in sancta societate servabant Sic enim corporis

167

inferioridade da beleza corpoacuterea e defender o desapego que face a ela o homem deve

assumir por um lado evitando que ele tome tal qualidade como um fim em si e por

outro lado evitando que a beleza perca a fluidez que a caracteriza na permeaccedilatildeo entre as

esferas do sensiacutevel e do inteligiacutevel A proacutepria fugacidade dessa beleza corpoacuterea vem

precisamente relembrar que natildeo eacute mais do que um veiacuteculo e do que um traccedilo de algo

superior e perene em relaccedilatildeo ao qual deve ser radicalmente preterida Atender agrave escala

de belezas eacute jaacute mapear o caminho ateacute Deus A beleza relativa dos corpos eacute

incomensuravelmente inferior agrave beleza absoluta divina Entre ambas haacute a beleza da alma

racional alma que eacute capaz de julgar as belezas sensiacuteveis e prever o deleite que a

aguarda pela contemplaccedilatildeo da suma Beleza

Importa ainda perceber se a beleza natildeo se descaracteriza pela confluecircncia no

bem Com efeito a um niacutevel primaacuterio o bem parece carecer de um poder de atracccedilatildeo

sem o belo ndash eacute o belo que atrai eacute ele que faz com que a alma deseje esse bem e bens

cada vez maiores ndash mas natildeo haacute bens sem beleza haacute apenas falhas no processo de

valoraccedilatildeo por parte do homem A beleza de um bem eacute o reconhecimento que a alma faz

desse bem Nesse sentido funciona tanto como um preacutemio porque deleita quanto como

um incentivo porque atrai Tambeacutem poderaacute funcionar como uma armadilha se por

exemplo o seu reconhecimento num bem menor impedir que a alma deseje bens

superiores e ascenda ateacute ao sumo Bem Aqui sim ocorreria uma indistinccedilatildeo entre bem e

belo ndash o belo seria erradamente tomado como o bem e perderia a sua capacidade de

remeter para o que estaacute mais aleacutem de si e que eacute a sua origem cativando a alma num

plano inferior Quando a alma percebe que haacute diferenccedila entre o belo que a atrai e o bem

que lhe diz respeito ela natildeo tem por que se deixar aprisionar e eacute livre para ascender

sem renunciar a nenhum dos dois

Se a alma escolhe seguir o bem automaticamente estaraacute a seguir a beleza poreacutem

se escolhe apenas a beleza que a atrai nos corpos estaraacute a subverter o princiacutepio da boa

ordem tomando o indiacutecio por aquilo que eacute indiciado tomando a via pela meta A beleza

sensiacutevel eacute para ser utilizada reconhecendo-se-lhe o elo com a beleza divina ndash soacute esta

poderaacute ser legitimamente fruiacuteda Em De doctrina christiana clarificam-se as

especificidades entre a utilizaccedilatildeo e a fruiccedilatildeo a primeira supotildee que algo seja

pulchritudo a Deo quidem factum sed temporale carnale infimum bonum male amatur postposito Deo

aeterno interno sempiterno bono quemadmodum iustitia deserta et aurum amatur ab avaris nullo peccato

auri sed hominisraquo

168

pragmaticamente colocado ao serviccedilo da obtenccedilatildeo de um objecto visado ao passo que a

segunda pressupotildee um liame afectivo (amor) entre o sujeito e um objecto valorizado

por si mesmo Santo Agostinho recorre agrave metaacutefora da viagem para explicar que o amor

pelas belezas inferiores atrasa o nosso percurso ateacute agrave paacutetria almejada essa sim digna de

ser fruiacuteda

Fruir eacute ligar-se por amor a uma coisa tida em si mesma Por outro lado

utilizar eacute referir aquilo que se usa agrave obtenccedilatildeo daquilo que se ama desde que

deva ser amado Assim uma utilizaccedilatildeo iliacutecita eacute chamada abuso ou de uso

abusivo Tomemos entatildeo como hipoacutetese que somos viajantes e que natildeo

podemos ser felizes senatildeo na paacutetria miacuteseros por tal exiacutelio e desejosos de sair

da miseacuteria queremos regressar agrave paacutetria e para conseguir regressar agrave paacutetria

de que queremos fruir precisamos de nos servir de veiacuteculos de transporte

mariacutetimos ou terrestres mas se as belezas da viagem ou os proacuteprios embalos

dos veiacuteculos nos deleitarem iremos virar-nos para a fruiccedilatildeo daquilo que

apenas deviacuteamos utilizar entatildeo natildeo desejaremos que a viagem finde em

breve e imersos num deleite perverso distanciar-nos-emos da paacutetria cujas

doccediluras nos tornariam plenamente felizes Por conseguinte se nesta vida

mortal em que somos viajantes longe do Senhor queremos tornar agrave paacutetria

onde poderemos ser plenamente felizes deveremos servir-nos deste mundo e

natildeo fruiacute-lo atraveacutes das coisas criadas e com o intelecto procuraremos

desvendar as perfeiccedilotildees invisiacuteveis de Deus ou seja por meio das coisas

corpoacutereas e temporais alcanccedilaremos as coisas eternas e espirituais500

As realidades temporais natildeo tecircm mais do que um valor instrumental pelo que

apesar de podermos encontrar algum deleite na sua fruiccedilatildeo deveremos reservar tal gozo

para a contemplaccedilatildeo da verdade eterna em relaccedilatildeo agrave qual qualquer encanto eacute paacutelido O

uso a que deveratildeo ser subordinadas tais realidades sensiacuteveis consiste na verdade em

assumi-las como objecto de conhecimento natildeo sendo por isso de estranhar a proposta

500

De doct christ I 4 4 (CCL 32 p 8) laquoFrui est enim amore inhaerere alicui rei propter seipsam Uti

autem quod in usum venerit ad id quod amas obtinendum referre si tamen amandum est Nam usus

illicitus abusus potius vel abusio nominandus est Quomodo ergo si essemus peregrini qui beate vivere

nisi in patria non possemus eaque peregrinatione utique miseri et miseriam finire cupientes in patriam

redire vellemus opus esset vel terrestribus vel marinis vehiculis quibus utendum esset ut ad patriam qua

fruendum erat pervenire valeremus quod si amoenitates itineris et ipsa gestatio vehiculorum nos

delectaret conversi ad fruendum his quibus uti debuimus nollemus cito viam finire et perversa suavitate

implicati alienaremur a patria cuius suavitas faceret beatos sic in huius mortalitatis vita peregrinantes a

Domino si redire in patriam volumus ubi beati esse possimus utendum est hoc mundo non fruendum ut

invisibilia Dei per ea quae facta sunt intellecta conspiciantur hoc est ut de corporalibus

temporalibusque rebus aeterna et spiritalia capiamusraquo Cf De civ Dei XI 25 (CCL 48 p 344) laquo[hellip] re

frui dicimur quae nos non ad aliud referenda per se ipsa delectat uti vero ea re quam propter aliud

quaerimus [hellip]raquo

169

da via ascensional atraveacutes das artes ou disciplinas liberais que examinaremos na segunda

parte desta dissertaccedilatildeo Santo Agostinho acrescentaraacute no entanto que se o conhecimento

natildeo estiver associado ao amor pelo criador ele natildeo passaraacute de uma zona obscura501

32 - Na raia do erotismo ndash da philocalia agrave philosophia

O tema do amor no pensamento agostiniano conflui no do conhecimento com a

vantagem de que a sua anaacutelise permite abordar a relaccedilatildeo entre o sujeito e o mundo sem

cair na dicotomia entre racionabilidade e sensibilidade ou pelo menos permitindo uma

visatildeo mais integrada de ambas as dimensotildees ndash uma visatildeo bastante mais adequada ao

pensamento agostiniano onde como jaacute vimos natildeo haacute uma verdadeira cisatildeo entre

homem exterior e homem interior502

O modo como cada homem vecirc o mundo eacute o resultado de um mecanismo

selectivo baseado em sensaccedilotildees de atracccedilatildeo e repulsa que reflecte uma

hierarquia pessoal de valores Eacute nesta senda que Max Scheler considera que

para o Bispo de Hipona todos os actos intelectuais e todos os conteuacutedos

imaginativos e significativos que lhes correspondem ndash desde a percepccedilatildeo

sensiacutevel mais simples ateacute agraves mais complicadas criaccedilotildees representativas e

conceptuais ndash natildeo apenas estatildeo vinculados agrave existecircncia de objectos exteriores

e aos estiacutemulos sensiacuteveis que deles provecircm (ou estiacutemulos reprodutores de que

eacute exemplo o recordar) como estatildeo sobretudo vinculados essencial e

necessariamente a actos de tomada de interesse e atenccedilatildeo e em uacuteltima instacircncia

501

Cf De civ Dei XI 29

502 Vide p 87 da presente dissertaccedilatildeo

170

a actos de amor e oacutedio503

Segundo Scheler o amor eacute no pensamento agostiniano quase

uma categoria a priori do conhecimento e eacute o acto mais primaacuterio sobre o qual todos os

outros se alicerccedilam Sem haver um interesse em algo natildeo pode ocorrer nenhuma

sensaccedilatildeo nenhuma representaccedilatildeo nenhum juiacutezo nenhuma recordaccedilatildeo nem nenhuma

intenccedilatildeo As direcccedilotildees dos nossos actos perceptivos e representativos seguem as

direcccedilotildees do nosso amor do mesmo modo o nosso desejo ou necessidade de

aprofundar o conhecimento sobre aquilo que nos rodeia e que nos move eacute uma

manifestaccedilatildeo da profundidade desse amor

Ordo amoris eacute como o filoacutesofo alematildeo designa a hierarquia de valores impliacutecita

na forma como cada homem vecirc o mundo de acordo com a leitura que faz dos escritos

agostinianos504

Por exemplo em De civitate Dei o Bispo de Hipona diz que a definiccedilatildeo

mais sucinta e verdadeira da virtude eacute precisamente a ordem do amor505

O destino e o mundo circundante satildeo determinados pelo ordo amoris Esta ideia

reflecte obviamente um problema de natureza moral a que Santo Agostinho se refere

em De doctrina christiana quando escreve

De acordo com a justiccedila e a santidade vive aquele que sabe estimar

integramente as coisas Por possuir um amor bem ordenado evita amar o

que natildeo deve ser amado natildeo amar o que deve ser amado amar demais o que

natildeo deve ser demasiado amado amar equitativamente aquilo que deve ser

mais ou menos amado Nenhum pecador enquanto tal deve ser amado e

todo o homem enquanto tal deve ser amado por amor a Deus no entanto

Deus deve ser amado por si E se Deus deve ser amado mais do que qualquer

homem cada um deve amar Deus mais do que a si mesmo Do mesmo

modo devemos amar o proacuteximo mais do que ao nosso corpo pois todas as

coisas devem ser amadas relativamente a Deus e o proacuteximo pode partilhar

connosco a fruiccedilatildeo de Deus coisa que natildeo eacute consentida ao corpo que

enquanto tal vive graccedilas agrave alma e eacute graccedilas a ela que fruiacutemos de Deus506

503

Cf Max Scheler Amor y conocimiento y otros escritos Sergio Saacutenchez-Migalloacuten (trad) Madrid

Palabra 2010 p 44

504 Cf Max Scheler Ordo amoris Xavier Zubiri (trad) 3ordf Ed Madrid Caparroacutes 2008 Hannah Arendt

categoriza este aspecto como ordinata dilectio e considera-o como uma das vertentes do amor sui a par

do amor enquanto desejo (appetitus) Cf Hanna Arendt O conceito de amor em Santo Agostinho Alberto

Pereira Dinis (trad) Lisboa Instituto Piaget 1997 p 39

505 De civ Dei XV 22 (CCL 48 p 488) laquo[hellip] quod definitio brevis et vera virtutis ordo est amoris [hellip]raquo

506 De doct christ I 27 28 (CCL 32 p 22) laquoIlle autem iuste et sancte vivit qui rerum integer aestimator

est Ipse est autem qui ordinatam habet dilectionem ne aut diligat quod non est diligendum aut non

diligat quod diligendum est aut amplius diligat quod minus diligendum est aut aeque diligat quod vel

171

A adequaccedilatildeo do amor quanto ao seu objecto e intensidade eacute sempre relativa a

Deus ldquoAmar natildeo eacute mais do que desejar uma coisa por si mesmardquo diz o Bispo de

Hipona em De diversis quaestionibus octoginta tribus507

ora soacute Deus deve ser desejado

por si mesmo (propter se) e tudo o resto em funccedilatildeo dele Quando tal natildeo ocorre o amor

assume a forma de cupiditas e a sua forccedila motriz ao inveacutes de elevar o homem prende-o

agraves coisas mundanas e impede-o de aceder ao conhecimento da verdadeira realidade

Dada a natureza impermanente do objecto de amor atraveacutes do qual se espera encontrar a

felicidade a alma jamais encontraraacute descanso nesse amor agraves coisas materiais temendo

constantemente perdecirc-las contra a sua vontade A cupiditas ocorre portanto quando se

ama o mundo por si esquecendo a prioridade absoluta do Criador em relaccedilatildeo agrave criaccedilatildeo

Por seu turno a caritas promove a liberdade autonomizando o homem em relaccedilatildeo

agravequilo que na verdade sempre escapa ao seu alcance por lhe ser exterior e por estar

sujeito agrave mutabilidade Atraveacutes do exerciacutecio da caritas o medo de perder ou de natildeo ter

domiacutenio sobre aquilo que eacute arrebatado pela morte deixa de fazer sentido A caritas eacute

entatildeo o amor justo que ndash citando a grande teoacuterica do amor agostiniano ndash ldquoconcede

pertenccedila agrave eternidaderdquo508

No amor a Deus o homem ama-se de modo justo (recte)

a si proacuteprio e soacute assim pode alcanccedilar a plenitude do seu ser que natildeo eacute imanente agrave

vida mundana

Eacute a escolha do objecto de amor e forma como se ama que distinguem a caritas

da cupiditas Tal natildeo significa que natildeo deva existir um exerciacutecio de amor dirigido para

as demais criaturas mas que esse amor deve contemplar um certo esquecimento de si

por parte do sujeito e deve ser auto-reflexivo O amor ao proacuteximo eacute particularmente

elucidativo jaacute que Santo Agostinho o refere como um amor em que natildeo eacute propriamente

o proacuteximo que eacute amado mas o proacuteprio amor Ora quem ama o amor ama Deus que eacute o

minus vel amplius diligendum est Omnis peccator in quantum peccator est non est diligendus et omnis

homo in quantum homo est diligendus est propter Deum Deus vero propter seipsum Et si Deus omni

homine amplius diligendus est amplius quisque Deum debet diligere quam seipsum Item amplius alius

homo diligendus est quam corpus nostrum quia propter Deum omnia ista diligenda sunt et potest

nobiscum alius homo Deo perfrui quod non potest corpus quia corpus per animam vivit qua fruimur

Deoraquo

507 Div quaest 83 35 1 (CCL 44A p50) laquoNihil enim aliud est amare quam propter se ipsam rem

aliquam appetereraquo

508 Hannah Arendt O conceito de amor em Santo Agostinho p 29

172

proacuteprio amor509

Eacute desejaacutevel amar Deus em todas as criaturas relativizando-as e

reencontrando o seu sentido como daacutediva amorosa de Deus

Esta circularidade da dilecccedilatildeo pode inclusivamente ser reconhecida a partir da

temaacutetica da percepccedilatildeo sensiacutevel Quando no subcapiacutetulo I 1 3 frisaacutemos que na

percepccedilatildeo o princiacutepio activo jamais eacute o corpo distinguimos dois processos que

concorrem para o fenoacutemeno sensiacutevel a acccedilatildeo do objecto externo sobre o corpo do

sujeito que percebe e a acccedilatildeo da alma sobre o corpo em resposta agrave impressatildeo causada

pelo objecto Assim natildeo restam duacutevidas de que no acto perceptivo o encontro do

sujeito com o objecto integra tambeacutem a dimensatildeo activa desse objecto o que manifesta

explicitamente a bondade divina pela daacutediva do mundo ao homem Os objectos

sensiacuteveis datildeo-se e revelam-se ao homem com a mesma gratuitidade com que Cristo

veio ao mundo Haacute uma revelaccedilatildeo natural a par da revelaccedilatildeo de Cristo e ambas satildeo

revelaccedilotildees do amor divino Os proacuteprios sensibilia tecircm o seu valor e plenitude ontoloacutegica

associados agrave sua revelaccedilatildeo e fazem parte do diaacutelogo amoroso entre Deus e o homem

Nesta senda haacute que problematizar a adequaccedilatildeo da resposta amorosa do sujeito ao ldquodar-

se ao conhecimentordquo por parte dos sensibilia que nos reconduz uma vez mais agrave

questatildeo uti-frui

Todo o amor eacute uma tensatildeo para a fruiccedilatildeo para a tranquilidade (quies) de estar

perto daquilo que se deseja A realizaccedilatildeo do amor eacute a beatitude e segue uma via que tem

de passar pelo uso (uti) ateacute dar lugar agrave permanecircncia da fruiccedilatildeo (frui) O amor a Deus eacute

incompatiacutevel com o amor que procura a quietude da felicidade nas criaturas mas natildeo

com o amor devidamente ordenado pelas criaturas que atraveacutes delas procura Deus O

homem eacute neste mundo como um peregrino em Sua demanda que soacute teraacute descanso

quando conseguir o desapego relativo agrave felicidade enganosa e efeacutemera que lhe concede

o amor desordenado (cupiditas) Se no acto de amar as coisas deste mundo estiver

impliacutecito o desejo de alcanccedilar Deus entatildeo esse amor eacute uma via para a beatitude Se ao

amar as coisas deste mundo o homem pretender encontrar nelas a fonte da sua

felicidade natildeo gozaraacute o tatildeo almejado descanso contemplativo Diz Santo Agostinho

509

In Iohan Ep Tract IX 10 (CCL 36 p 96) laquoNumquid potest diligere fratrem et non diligere

dilectionem Necesse est ut diligat dilectionem [hellip] Diligendo dilectionem Deum diligit [hellip] Necesse est

qui diligis fratrem diligas ipsam dilectionem dilectio autem Deus est necesse est ergo ut Deum diligat

quisquis diligit fratremraquo

173

Deus natildeo te proiacutebe de amar estas coisas mas de [lhes] devotares o teu

amor com o propoacutesito de alcanccedilar a felicidade todavia [natildeo eacute proibido]

aceitar e louvar [as criaturas] ao amares o Criador 510

O processo de salvaccedilatildeo alicerccedila-se no amor divino e o amor a Deus natildeo exclui o

amor ao proacuteximo nem agraves demais criaturas Significa isto que a caritas e a cupiditas natildeo

correspondem linearmente ao amor a Deus e ao amor agraves criaturas a caritas integra

tambeacutem o recto amor pelas criaturas que eacute aquele que natildeo as tem por finalidade e que

natildeo espera delas fruir ainda que uma certa fruiccedilatildeo natildeo esteja delas totalmente excluiacuteda

Este recto amor eacute portanto baseado no uso A distinccedilatildeo uti-frui permite ao Bispo de

Hipona defender um amor especiacutefico pelo mundo temporal

Por seu turno Deus pode ser amado como uma luz como voz como odor

todavia natildeo como um estiacutemulo sensiacutevel ndash porque esta luz voz e odor estatildeo no homem

interior e natildeo no mundo dos sensibilia ndash mas como beleza Em Confessionum haacute duas

famosas passagens que se destacam por ilustrarem a transcendentalizaccedilatildeo da memoacuteria

de certos prazeres sensiacuteveis atraveacutes de uma espeacutecie de projecccedilatildeo no amor a Deus

Mas que amo eu quando te amo Natildeo a beleza do corpo nem a gloacuteria

do tempo nem esta claridade da luz tatildeo amaacutevel a meus olhos natildeo as doces

melodias de todo o geacutenero de canccedilotildees natildeo a fragracircncia das flores e dos

perfumes e dos aromas natildeo o manaacute e o mel natildeo os membros agradaacuteveis aos

abraccedilos da carne Natildeo eacute isto o que eu amo quando amo o meu Deus E no

entanto amo uma certa luz e uma certa voz e um certo perfume e um certo

alimento e um certo abraccedilo quando amo o meu Deus luz voz perfume

alimento abraccedilo do homem interior que haacute em mim onde brilha para a

minha alma o que natildeo ocupa lugar e onde ressoa o que o tempo natildeo rouba e

onde exala perfume o que o vento natildeo dissipa e onde daacute sabor o que a

sofreguidatildeo natildeo diminui e onde se une o que a saciedade natildeo separa Isto eacute o

que eu amo quando amo o meu Deus511

510

In Iohan Ep TractII 11 (CCL 36 p 16) laquoNon te prohibet Deus amare ista sed non diligere ad

beatitudinem sed approbare et laudare ut ames creatoremraquo

511 Conf X 6 8 (CCL 27 p 158) laquoQuid autem amo cum te amo Non speciem corporis nec decus

temporis non candorem lucis ecce istis amicum oculis non dulces melodias cantilenarum omnimodarum

non florum et unguentorum et aromatum suaviolentiam non manna et mella non membra acceptabilia

carnis amplexibus non haec amo cum amo Deum meum Et tamen amo quamdam lucem et quamdam

vocem et quemdam odorem et quemdam cibum et quemdam amplexum cum amo Deum meum lucem

vocem odorem cibum amplexum interioris hominis mei ubi fulget animae meae quod non capit locus

et ubi sonat quod non rapit tempus et ubi olet quod non spargit flatus et ubi sapit quod non minuit

edacitas et ubi haeret quod non divellit satietas Hoc est quod amo cum Deum meum amoraquo A traduccedilatildeo

presente no corpo do texto eacute de Arnaldo Espiacuterito Santo Joatildeo Beato e Maria Cristina Castro Maia de

Sousa Pimentel in Confissotildees Lisboa IN-CM 2001

174

Tarde te amei beleza tatildeo antiga e tatildeo nova tarde te amei E eis que

estavas dentro de mim e eu fora e aiacute te procurava e eu sem beleza

precipitava-me nessas coisas belas que tu fizeste Tu estavas comigo e eu

natildeo estava contigo Retinham-me longe de ti aquelas coisas que natildeo seriam

se em ti natildeo fossem Chamaste e clamaste e rompeste a minha surdez

brilhaste cintilaste e afastaste a minha cegueira exalaste o teu perfume e

eu respirei e suspiro por ti saboreei-te e tenho fome e sede tocaste-me e

inflamei-me no desejo da tua paz512

Para o homem jaacute desperto para a sua interioridade os prazeres gozados atraveacutes

dos diversos sentidos corporais prognosticam e descrevem a experiecircncia do amor a

Deus Natildeo haacute qualquer hesitaccedilatildeo por parte do Bispo de Hipona em considerar Deus

como a beleza originaacuteria e final contrariamente ao que Plotino defendia a beleza eacute

directa e plenamente atribuiacuteda agrave divindade A recta dedicaccedilatildeo amorosa natildeo soacute permite

impulsionar o percurso esteacutetico ndash um percurso legiacutetimo dada a continuidade entre

beleza inteligiacutevel e beleza participada que o numerus confere ndash como determina a

possibilidade de uma hermenecircutica atraveacutes das belezas sensiacuteveis

A vertente emocional do homem natildeo eacute destacada da razatildeo sendo que o

reconhecimento deste enlace entre amor beleza e razatildeo remonta a Platatildeo No Banquete

Soacutecrates coloca na boca de Diotima de Maniteacuteia a afirmaccedilatildeo de que o amor eacute amor pelo

belo e que uma das coisas mais belas eacute a sabedoria513

A estrangeira teraacute ainda descrito a

Soacutecrates uma espeacutecie de pedagogia do amor ou via ascensional que atraveacutes da recta

consideraccedilatildeo das belezas sensiacuteveis e inteligiacuteveis conduz gradualmente o homem ateacute agrave

eterna fonte do belo514

Tal via encontra eco nas Eneacuteadas de Plotino sobretudo quando

haacute a enumeraccedilatildeo das realidades que o olho interior deve atender para progressivamente

512

Conf X 27 38 (CCL 27 p 175) laquoSero te amavi pulchritudo tam antiqua et tam nova sero te amavi

Et ecce intus eras et ego foris et ibi te quaerebam et in ista formosa quae fecisti deformis irruebam

Mecum eras et tecum non eram Ea me tenebant longe a te quae si in te non essent non essent Vocasti

et clamasti et rupisti surdidatem meam coruscasti splenduisti et fugasti caecitatem meam fragrasti et

duxi spiritum et anhelo tibi gustavi et esurio et sitio tetigisti me et exarsi in pacem tuamraquo A traduccedilatildeo

presente no corpo do texto eacute de Arnaldo Espiacuterito Santo Joatildeo Beato e Maria Cristina Castro Maia de

Sousa Pimentel in Confissotildees Lisboa IN-CM 2001

513 CF Platatildeo O banquete 204b

514 Ibid 210a - 212a O primeiro patamar da dialeacutectica amorosa eacute o amor pelos corpos os dois seguintes

patamares satildeo respeitantes ao amor pela beleza da alma pelas actividades e leis humanas o quarto

patamar refere-se ao amor pela beleza do conhecimento e o uacuteltimo patamar da escala amorosa

corresponde agrave visatildeo da beleza enquanto Forma ideal

175

conseguir uma habituaccedilatildeo que lhe permita suportar a visatildeo da beleza primordial515

Esse

mesmo eco pode igualmente ser reconhecido nas gradaccedilotildees agostinianas descritas no

subcapiacutetulo anterior

Entre amor e conhecimento haacute uma relaccedilatildeo de muacutetuo benefiacutecio sendo difiacutecil

estabelecer uma hierarquia embora Santo Agostinho testemunhe considerar o amor

como a forccedila motriz mais originaacuteria da mente quer divina 516

quer humana A isto

acrescenta que o amor eacute mais do que qualquer razatildeo fonte de bem-aventuranccedila A

razatildeo permite ordenar o amor promovendo a sua eficaacutecia no processo de

transcendecircncia mas eacute o amor que a impulsiona e que faz com que a alma franqueie as

portas do divino ao tornar-se ela mesma bela Diz o filoacutesofo que a caritas eacute ela proacutepria

a beleza da alma517

e a alma eacute tanto mais bela e mais amaacutevel quanto melhor uso fizer da

sua vertente racional518

Em Contra Academicos Santo Agostinho apresenta em jeito de faacutebula a

distinccedilatildeo entre philosophia ndash que eacute o nome dado ao amor pela sabedoria (amor

sapientiae) ndash e philocalia ndash que eacute o amor pela beleza (amor pulchritudinis)

Perspectivando-as como duas aves diz que satildeo como irmatildes uma poreacutem tendo descido

do ceacuteu cativada pela voluptuosidade manteacutem-se presa dentro da gaiola que eacute o mundo

terreno ao passo que a outra adeja livremente pelos ceacuteus Em liberdade a philosophia

reconhece a sua irmatilde cativa mas raramente a liberta Soacute ela sabe a origem da philocalia

que partilha consigo o mesmo progenitor519

Cerca de 40 anos mais tarde Santo Agostinho testemunha em Retractationum

que esta faacutebula eacute desadequada e ridiacutecula pois na verdade tomando a philocalia numa

acepccedilatildeo mais corriqueira ela natildeo eacute digna de ser considerada como pertencendo agrave

mesma linhagem que a philosophia por outro prisma tomando a philocalia como amor

pelo belo e havendo uma verdadeira beleza na sabedoria natildeo haacute razatildeo para a distinguir

515

Cf En I 6 9

516 O amor de Deus manifesta-se no proacuteprio acto criador e no acto redentor de Cristo

517 In Iohan Ep TractIX 9 (CCL 36 p 95) laquo[hellip] ipsa caritas est animae pulchritudoraquo

518 Sol I 2 7 (CSEL 89 p 12) laquoLicet enim mihi in quovis amare rationem cum illum iure oderim qui

male utitur eo quod amo Itaque tanto magis amo amicos meos quanto magis bene utuntur anima

rationali vel certe quantum desiderant ea bene utiraquo

519 Cf Contra Acad II 3 7

176

da philosophia Neste caso natildeo satildeo como irmatildes uma vez que coincidem perfeitamente

na esfera incorpoacuterea elas satildeo portanto uma e a mesma coisa520

Santo Agostinho teraacute tomado conhecimento da palavra φιλοκαλία no Fedro de

Platatildeo onde eacute usada na sua forma adjectivante para qualificar aquele cuja alma

contemplou a verdade Diz Platatildeo que a alma que mais tiver contemplado a verdade

deveraacute dar origem a um homem que seraacute um filoacutesofo amante da beleza e muacutesico521

A

tradiccedilatildeo platoacutenica faz portanto corresponder o esteta ao filoacutesofo jaacute que ambos visam

retornar agrave beleza da verdade Para o Bispo de Hipona a filosofia eacute tambeacutem o amor pela

verdadeira beleza pelo que a designaccedilatildeo philocalia acaba por se tornar redundante e

perde razatildeo de ser Em ambos os conceitos estava em causa o amor pela idealidade e

pela verdade A proacutepria filosofia eacute considerada como um caminho para a vera

pulchritudo por pressupor a aspiraccedilatildeo e o amor agrave sabedoria Todavia eacute preciso natildeo

esquecer que Santo Agostinho nem sempre se refere agrave filosofia de um modo generalista

e muitas vezes critica escolas de pensamento especiacuteficas ou filoacutesofos concretos522

o

que natildeo invalida que reconheccedila o valor intriacutenseco da atitude filosoacutefica Renunciar agrave

filosofia seria renunciar ao amor pela sabedoria e tal eacute naturalmente sacriacutelego

Gilson refere duas acepccedilotildees para o conceito agostiniano de filosofia em certas

obras o termo filosofia refere-se simplesmente agrave especulaccedilatildeo racional em geral e neste

caso qualquer procura pela verdade eacute considerada filosoacutefica noutras obras a filosofia

surge como uma busca pela verdade especificamente classificaacutevel de acordo com a

capacidade e eficaacutecia relativas ao alcance da finalidade a que se propotildee Neste caso por

exemplo Santo Agostinho considera os filoacutesofos platoacutenicos ndash nomeadamente Platatildeo e

520

Retr I 1 3 (CCL 57 p 9) laquoIn secundo autem libro prorsus inepta est et insulsa illa quasi fabula de

philocalia et philosophia quod sint germanae et eodem parente procreatae Aut enim philocalia quae

dicitur nonnisi in nugis est et ob hoc philosophiae nulla ratione germana aut si propterea est hoc nomen

honorandum quia Latine interpretatum amorem significat pulchritudinis et est vera ac summa sapientiae

pulchritudo eadem ipsa est in rebus incorporalibus atque summis philocalia quae philosophia neque ullo

modo sunt quasi sorores duaeraquo

521 Platatildeo Fedro 248d

522 Aliaacutes em Contra Jul IV 14 72 (PL 44 c 774) afirma que a uacutenica filosofia verdadeira eacute a cristatilde

laquoObsecro te non sit honestior philosophia Gentium quam nostra Christiana quae una est vera

philosophiaraquo

177

Plotino ndash como aqueles que mais se aproximam da verdadeira filosofia por

reconhecerem na divindade a primeira causa do universo e a fonte da felicidade523

De acordo com Eacutemile Saisset524

para Santo Agostinho a filosofia interessa como

exerciacutecio intelectual profiacutecuo que procura abordar trecircs grandes questotildees Qual eacute a causa

primeira de tudo o que existe Onde reside a fonte de conhecimento e da verdade Qual

eacute a finalidade uacuteltima da existecircncia Estas questotildees correspondem precisamente agrave

triparticcedilatildeo da filosofia proposta pelos filoacutesofos platoacutenicos e que eacute inteiramente subscrita

pelo Bispo de Hipona em De civitate Dei por conceptualizar ordenadamente o Ser a

Verdade e o Bem Nessa triparticcedilatildeo os filoacutesofos gregos teriam pressentido a Santiacutessima

Trindade o Pai no Ser dos seres o Filho como Verdade jaacute que eacute o Verbo ou luz

inteligiacutevel o Espiacuterito Santo como princiacutepio de toda a acccedilatildeo e morada do amor A

divisatildeo platoacutenica da filosofia referida pelo Bispo de Hipona contempla portanto a

Fiacutesica ou ciecircncia natural a Loacutegica ou ciecircncia do entendimento e a Eacutetica ou ciecircncia da

moral525

Como tal os platoacutenicos estavam no caminho daquilo que Santo Agostinho diz

ser a genuiacutena filosofia aquela que tem precisamente por objectivo ensinar a existecircncia

sempiterna de um princiacutepio universal a grandeza da inteligecircncia nele presente e o valor

que dele dimana para a nossa salvaccedilatildeo sem que caia no devir526

A filosofia natildeo eacute a proacutepria sabedoria mas apenas o seu estudo ou meacutetodo

propiciador Assim sendo tambeacutem o filoacutesofo natildeo eacute automaticamente um saacutebio por seguir

a via do amor ao conhecimento A sabedoria encontra-se em Deus que natildeo eacute

directamente acessiacutevel ao conhecimento humano Para o conhecer o homem tem primeiro

de conhecer a sua proacutepria alma e ao fazecirc-lo descobre que natildeo eacute um ser auto-suficiente ou

independente A felicidade a que almeja estaacute para laacute de si pelo que tal constataccedilatildeo surge

acompanhada pela consciecircncia da situaccedilatildeo precaacuteria que caracteriza a condiccedilatildeo humana

Soacute amando e possuindo o que eacute bom para si a alma poderaacute ser feliz No percurso para a

felicidade o amor eacute como um peso capaz de equilibrar e orientar cada passo do

523

Gilson Introduction agrave lrsquoeacutetude de Saint Agustin p 41 Cf De civ Dei I 8 para a afirmaccedilatildeo agostiniana

da proximidade entre os filoacutesofos platoacutenicos e a crenccedila cristatilde

524 Eacutemile Edmond Saisset Introduction agrave La citeacute de Dieu de Saint Augustin Paris Charpentier 1855 p lii

525 Cf De civ Dei VIII 4 e XI 25

526 De ord II 5 16 (CCL 29 p 116) laquo[hellip] germana philosophia est quam ut doceat quod sit omnium

rerum principium sine principio quantusque in eo maneat intellectus quidve inde in nostram salutem sine

ulla degeneratione manaverit [hellip]raquo

178

homem527

Esse percurso constroacutei-se portanto amando correctamente tudo aquilo que

conveacutem agrave alma Por detraacutes do amor estaacute no entanto a nossa capacidade de escolha e um

conhecimento preacutevio da ordem e do valor relativo ao plano divino pelos quais se

deveratildeo reger as nossas escolhas Tal como vimos o conhecimento depende do amor

mas para ser genuiacuteno e ordenado tambeacutem o amor tem de ter uma base racional

Satildeo diversas as passagens onde o Bispo de Hipona defende que natildeo eacute possiacutevel

amar aquilo que natildeo se conhece528

Os limites do amor correspondem de certo modo aos

limites da nossa capacidade intelectual O amor a Deus levanta com maior acutilacircncia a

questatildeo da interdependecircncia entre amor e conhecimento conhecer Deus implica amaacute-lo

e o amor a Deus pressupotildee um certo conhecimento preacutevio Dele O amor ao proacuteximo e

o amor a si funcionam como um meacutetodo amoroso que conduz a Deus e que parece

fundar-se numa espeacutecie de preacute-conhecimento subconsciente da divindade que permite

entatildeo a consciecircncia do amor a Deus

A circularidade impliacutecita neste esquema amoroso natildeo eacute tautoloacutegica o amor

votado ao proacuteximo e a si eacute jaacute o amor a Deus pois eacute jaacute o amor em si que eacute amado Haacute um

amor preacutevio a Deus do qual soacute se adquire consciecircncia pelo amor ao proacuteximo e a si A

consciecircncia de que Deus pode ser mediatamente conheciacutevel tambeacutem soacute surge pela

consciecircncia do amor a Deus que impulsiona tal esforccedilo intelectual de procura da

divindade poreacutem um certo conhecimento de Deus estaacute jaacute impresso na alma pela

imagem trinitaacuteria presente na mente Este preacute-conhecimento eacute convocado pela memoacuteria

natildeo como uma lembranccedila de algo passado mas como rememoraccedilatildeo presente529

Uma

527

Conf XIII 9 10 (CCL 27 p 246) laquoPondus meum amor meus eo feror quocumque feror Dono tuo

accendimur et sursum ferimur inardescimus et imusraquo

528 Cf De Trin VIII 4 6 X 1 1 XIII 4 7 XIV 14 18

529 Cf De Trin XIV 15 21 Natildeo se trata da lembranccedila de uma vivecircncia anterior nem atraveacutes de qualquer

legado adacircmico mas da recordaccedilatildeo de Deus que estaacute desde sempre presente em todo o lado por onde o

homem se mova Na verdade eacute Nele que a mente se move e tem o seu fundamento ontoloacutegico pelo que

natildeo eacute de estranhar que a memoacuteria possa rememoraacute-lo enquanto presenccedila e natildeo como algo passado A

memoacuteria de Deus radica na dependecircncia da alma em relaccedilatildeo a Si Mais uma vez se nota a tendecircncia

agostiniana de se desviar da teoria platoacutenica da reminiscecircncia ainda que ela tenha servido de base agrave sua

teoria da iluminaccedilatildeo divina A possibilidade da memoacuteria ter consciecircncia de algo que natildeo eacute preteacuterito surge

enfatizada pelo Bispo de Hipona quando cita Virgiacutelio e a lembranccedila que Ulisses teraacute de si mesmo (Eneida

III 5) Se a memoacuteria soacute se reportasse a coisas passadas Ulisses natildeo poderia lembrar-se de si mesmo jaacute

que foi sempre presente para si proacuteprio Por conseguinte a memoacuteria eacute tambeacutem a faculdade da auto-

consciecircncia ou seja eacute a faculdade de se presentificar a si mesma de modo a poder ser abarcada pelo seu

proacuteprio pensamento e a unir-se pelo amor a esse pensamento A memoacuteria pode portanto constituir-se

como objecto da sua proacutepria consciecircncia De Trin XIV 11 14 (CCL 50A p 442) laquoVergilius enim cum

sui non oblitum diceret Ulixem quid aliud intellegi voluit nisi quod meminerit sui Cum ergo sibi

179

rememoraccedilatildeo que eacute impulsionada pela feacute no redentor e na salvaccedilatildeo A humanidade de

Cristo convoca a feacute para a sua dimensatildeo divina que natildeo pode ser percebida pelo olho

carnal mas pelo olho interior ndash para a maioria dos homens o amor que ele inspira e

exemplifica eacute o primeiro passo para a via da interioridade

Subscrevemos inteiramente a posiccedilatildeo de Carol Harrison segundo a qual Cristo

suscita tal amor atraveacutes de uma estrateacutegia esteacutetica a fealdade que a incarnaccedilatildeo

comporta promove precisamente a reformaccedilatildeo da beleza humana530

Harrison afirma

que ldquoapesar de possuir a suprema beleza e forma de Deus Cristo o Noivo assumiu a

forma da Sua amada [a humanidade] a forma da mortalidade e pecaminosidade de

modo a revelar-lhe o Seu amor e restaurar a sua beleza evocando a sua confissatildeo de

pecado e amor [hellip] A disformidade de Cristo evoca portanto um amor no sujeito da

percepccedilatildeo que natildeo eacute propriamente dirigido agrave Sua beleza fiacutesica jaacute que esta foi destruiacuteda

mas agrave sua lsquobeleza interiorrsquo que [hellip] reside no Seu amorrdquo531

O amor a Deus granjeado pelo homem eacute possiacutevel graccedilas ao amor de Deus

expresso na exemplaridade do Redentor ao qual o homem eacute receptivo e responde

porque Deus o presenteou com o Espiacuterito Santo que eacute amor O amor de Deus e o amor

a Deus satildeo assim um soacute

praesens esset nullo modo sui meminisset nisi ad res praesentes memoria pertineret Quapropter sicut in

rebus praeteritis ea memoria dicitur qua fit ut valeant recoli et recordari sic in re praesenti quod sibi est

mens memoria sine absurditate dicenda est qua sibi praesto est ut sua cogitatione possit intellegi et

utrumque sui amore coniungiraquo

530 Carol Harrison Beauty and Revelation in the Thought of Saint Augustine p 233

531 Id op cit pp 236-237 laquoThough He possessed the supreme beauty and form of God Christ the

Bridegroom assumed the form of His beloved the form of her mortality and sinfulness in order to reveal

to her His love and restore her beauty by evoking her confession of sin and love [] The deformity of

Christ therefore evokes a love in the beholder which is not so much directed towards His physical beauty

for that has been destroyed but towards His inner beauty which [hellip] dwells in His love

180

33 - Atitude esteacutetica como processo relacional introspectivo e intencional

Haacute uma propedecircutica para a via da interioridade no proacuteprio questionamento

sobre a percepccedilatildeo sensiacutevel e sobre tudo o que cativa a atenccedilatildeo do sujeito causando-lhe

prazer ou admiraccedilatildeo O deleite esteacutetico natildeo eacute tanto o agrado dos sentidos mas sim a

proacutepria percepccedilatildeo da inteligibilidade como intuiccedilatildeo directa dos numeri que codificam

toda a realidade sensiacutevel incluindo os proacuteprios processos perceptivo e judicativo

Quando o Bispo de Hipona se debruccedila especificamente sobre o belo procura

esclarecer o que estaacute por detraacutes da beleza das coisas sensiacuteveis e de que modos podemos

ser tocados por ela Desde logo constata na senda de Plotino que a alma eacute em si

mesma bela e que a ela devemos o reconhecimento da beleza A interioridade eacute pois a

sede do belo e natildeo haacute beleza sensiacutevel que natildeo passe pelo crivo judicativo do animus532

Assim a beleza exterior eacute percebida interiormente e aferida de acordo com leis

imutaacuteveis533

leis estas que satildeo necessariamente superiores agrave alma racional que habitam

As pulchritudinis leges natildeo podem ser outras senatildeo as proacuteprias Formas ou leis da

verdade eterna534

O reconhecimento da beleza convoca pela via interior a procura do

plano inteligiacutevel e em uacuteltima instacircncia de Deus

A interioridade judicativa conforme estabelecida por exemplo em De musica

demonstra que Santo Agostinha aprova a compreensatildeo do mundo e da existecircncia a

532

De civ Dei VIII 6 (CCL 47 p 222) laquoNulla est enim pulchritudo corporalis sive in statu corporis

sicut est figura sive in motu sicut est cantilena de qua non animus iudicetraquo

533 De Trin XII 2 2 (CCL 50 p 357) laquoSed sublimioris rationis est iudicare de istis corporalibus

secundum rationes incorporales et sempiternas quae nisi supra mentem humanam essent incommutabiles

profecto non essent atque his nisi subiungeretur aliquid nostrum non secundum eas possemus de

corporalibus iudicare Iudicamus autem de corporalibus ex ratione dimensionum atque figurarum quam

incommutabiliter manere mens nouitraquo

534 Vide subcapiacutetulo 21 p 105

181

partir da esteacutetica O divino parece ser qualificaacutevel a partir do mundo sensiacutevel dada a sua

especularidade e dimensatildeo vestigial mas acabamos por perceber que na verdade

ocorre o inverso ao serem submetidos a leis imutaacuteveis e inteligiacuteveis satildeo os objectos da

sensibilidade que se paragonam ao divino Natildeo eacute o divino que desponta do sensiacutevel

mas o sensiacutevel do divino embora soacute nessa ordem o ser humano consiga inferir uma

realidade da outra Cocircnscio dessa sua limitaccedilatildeo perspeacutectica o homem pode integrar

positivamente o apreccedilo pela beleza presente no mundo temporal de modo a cumprir o

desiacutegnio que partilha com Deus acerca da felicidade eterna que natildeo eacute mais do que a

posse amorosa do Bem

Os aspectos qualitativos do mundo temporal correspondem a princiacutepios anaacutelogos

contudo absolutamente superiores na eternidade Sem a influecircncia preacutevia dos nuacutemeros

sequer haveria possibilidade de reconhecer qualidades nas coisas sensiacuteveis pois sequer

estas poderiam admitir ou conservar as relaccedilotildees espacio-temporais em aparecircncias

relativamente estaacuteveis535

Aleacutem de concessor de forma e species (beleza) ndash portanto de

ser e de qualidade ndash o nuacutemero eacute como vimos um iacutendice de relaccedilatildeo O homem interior

pode mapear o seu percurso ateacute Deus percebendo tal aspecto relacional e as suas leis

pois deixa desse modo de estar preso agraves realidades temporais O seu universo amplia-se

tal como a sua liberdade ao perceber que o mundo sensiacutevel eacute um mundo subordinado e

dependente da realidade superior agrave qual acede pela alma racional

A praacutetica da interioridade natildeo eacute portanto uma forma de egotismo mas de

relaccedilatildeo pela qual o sujeito percebe que a sua mente eacute feita agrave imagem de Deus e longe

de assumir tal semelhanccedila de modo estaacutetico eacute impelido a renovar e a aperfeiccediloar essa

imagem desfigurada pelo pecado O homem interior descobre-se imperfeito mas capaz

de se aperfeiccediloar com a ajuda de Deus A feacute no mediador a transferecircncia do amor pelas

coisas sensiacuteveis para as coisas eternas ndash que natildeo eacute necessariamente uma transferecircncia de

amor entre belezas ndash e a atitude caritativa para com o proacuteximo satildeo os passos a tomar

para esse aperfeiccediloamento536

Trata-se de uma vivecircncia segundo a razatildeo que estaacute

associada a um destacamento do sujeito face agrave realidade sensiacutevel Este aspecto eacute

sobretudo enfatizado nos diaacutelogos de Cassiciacuteaco poreacutem em obras posteriores Santo

Agostinho reconsidera tal desapego mais de acordo com a ideia de uma reconversatildeo do

535

Cf De mus VI 17 58

536 Cf De Trin XIV 17 23

182

olhar conforme explicitaacutemos no subcapiacutetulo I 2 2537

Associar a via interior a uma

aversatildeo ao mundo temporal eacute desconsiderar as muitas passagens nas quais Santo

Agostinho louva as naturezas sensiacuteveis e exorta ao reconhecimento da bondade e da

beleza nelas presentes Tal como o proacuteprio filoacutesofo demonstrou atraveacutes de descriccedilotildees

plenas de sensibilidade e poesia o mundo terreno pode servir ao sujeito de inspiraccedilatildeo e

de nuntius se este exercitar a sua iacutendole de esteta estaraacute certamente no caminho certo

para a interioridade contemplativa

John Peter Kenney em laquoSaint Augustine and the limits of contemplationraquo538

argumenta que a teoria agostiniana da contemplaccedilatildeo subsume e ultrapassa aquela que eacute

desenvolvida pelos teoacutelogos do neoplatonismo pagatildeo Para Plotino por exemplo a

contemplaccedilatildeo funcionava como uma ampliaccedilatildeo da relaccedilatildeo ontoloacutegica onde natildeo haacute

propriamente uma transformaccedilatildeo da alma mas uma revelaccedilatildeo da sua grandeza e do seu

alcance Pela contemplaccedilatildeo a alma descobre a sua origem no Uno descobre a sua

transcendentalidade A contemplaccedilatildeo em causa eacute uma contemplaccedilatildeo filosoacutefica ndash eacute uma

especial atenccedilatildeo ao questionamento introspectivo e agrave busca das causas primeiras que

neles colhe determinado comprazimento ndash ora por tudo o que anteriormente vimos esta

forma contemplativa natildeo eacute desligada da esteacutetica Mas se para Plotino haacute uma maior

estaticidade na alma contemplativa (o seu aperfeiccediloamento eacute mais um desvelamento do

que uma transformaccedilatildeo) jaacute para o Bispo de Hipona haacute um acentuar do esforccedilo salviacutefico

atraveacutes do qual a alma se engrandece e aperfeiccediloa mais dinamicamente A este

propoacutesito Kenney refere que o misticismo agostiniano parece indiciar apenas a

possibilidade do conhecimento imediato de Deus mas natildeo da salvaccedilatildeo o que leva a

questionar e a relativizar a eficaacutecia da contemplaccedilatildeo miacutestica no caso agostiniano539

A

experiecircncia da verdade eacute alcanccedilaacutevel na vida terrena ainda que momentaneamente mas

natildeo eacute suficiente Natildeo obstante da sua memoacuteria fica como que um alimento para a

intentio animi que aliado agrave crenccedila no Salvador permite agrave alma descobrir a luz interior

que entatildeo a guiaraacute no processo ascensional

A profundidade transcendente da alma revela-se nesse processo de iacutentima

ligaccedilatildeo com a divindade atraveacutes do Mestre interior Em virtude desta figura mediadora

537

Vide p 116

538 J P Kenney laquoSaint Augustine and the limits of contemplationraquo in M F Wiles e E J Yarnold (eds)

Studia Patristica XXXVIII Peeters Leuven 2001 pp 199 - 218

539 J P Kenney op cit p 204

183

a interioridade proposta pelo Bispo de Hipona eacute assim necessariamente distinta daquela

que Plotino jaacute havia enunciado nas Eneacuteadas540

Ambos os filoacutesofos partem da ideia de

que o homem tem no universo uma posiccedilatildeo pouco abonada e ambos concordam que o

seu desiderato seja a contemplaccedilatildeo de Deus fonte de eterna felicidade Tanto Plotino

como Santo Agostinho apontam a via da interioridade como modo de alcanccedilar tal

objectivo Para este uacuteltimo poreacutem a via da interioridade soacute eacute possiacutevel porque o homem

foi criado agrave imagem e semelhanccedila de Deus ndash criatura e criador diferem

substancialmente na perspectiva cristatilde Pela imersatildeo interior haacute uma consciecircncia do

plano matricial que espontaneamente desperta no homem a necessidade contemplativa

qual busca de uma auto-divinizaccedilatildeo ou seja de alcanccedilar a mais perfeita semelhanccedila

com Deus e assim alcanccedilar a plenitude do ser Em momento algum estaacute pressuposta

uma dissoluccedilatildeo das personalidades individuais como ocorre na perspectiva do

neoplatonismo pagatildeo Para Plotino a alma e o mundo satildeo resultado natildeo da criaccedilatildeo mas

da processatildeo mantendo-se um viacutenculo aparentemente mais estreito entre estes e a

divindade Pela via interior a alma descobre-se a si mesma como parte do divino e a

reconduccedilatildeo que empreende ateacute si equivale a uma perda de consciecircncia identitaacuteria jaacute que

se subsume na unidade primordial O retorno da alma ao Uno faz com que esta se dilua

indistintamente no seu seio Tambeacutem por ser uma parte esparsa da divindade a alma na

perspectiva plotiniana pode empreender esse percurso interior ascensional sem qualquer

auxiacutelio ou mediaccedilatildeo Jaacute para Santo Agostinho tal natildeo ocorre

A pretensatildeo de ser capaz de alcanccedilar sozinho a visatildeo de Deus eacute severamente

criticada pelo filoacutesofo africano que considera preferiacutevel a humildade de um crente com

uma mentalidade mais limitada do que a orgulhosa presunccedilatildeo de um saacutebio que

conseguindo elevar-se pela sua inteligecircncia acima deste mundo grosseiro e ver um teacutenue

raio da verdade inefaacutevel se recusa a embarcar no uacutenico navio capaz de o conduzir agrave

paacutetria que vislumbra ao longe541

Esse navio (lignum) eacute a feacute no Mediador que nos foi

enviado por Deus Pai

Sabedoria Verbo ou esplendor da luz eterna satildeo alguns nomes que

correctamente se podem atribuir ao Mediador Sendo coeterno agrave luz da qual eacute esplendor

540

Cf En I 6 2

541 Cf De Trin IV 15 20

184

(candor) ele eacute essa mesma luz542

pois natildeo haacute diferenccedila entre o que emana e o que eacute

emanado Tendo-se feito carne e habitando entre os homens (I Cor 1 21) o Verbo

cumpre a missatildeo de se dar a conhecer e de exortar a que se encontre a luz interior que

habita dentro de noacutes Ao dar-se a conhecer o Filho daacute a conhecer o Pai

Santo Agostinho esforccedila-se por explicar a afirmaccedilatildeo de Cristo que diz ldquoAquele

que crecirc em mim natildeo crecirc em mim mas Naquele que me enviourdquo (Jo 12 44) semelhante

a uma outra pela qual afirma ldquoQuem me vecirc a mim vecirc Aquele que me enviourdquo (Jo

1245) Para o Bispo de Hipona tais frases parecem confirmar que a visibilidade de

Cristo funciona na verdade como uma transparecircncia que natildeo chama a atenccedilatildeo para si

enquanto forma criada mas para o seu ser divino natildeo perceptiacutevel aos olhos humanos A

feacute no Mediador acaba sempre por manifestar a presenccedila das trecircs pessoas divinas a do

Pai que mesmo na revelaccedilatildeo permanece escondido a do Filho que medeia e revela a

verdade de Deus e a do Espiacuterito Santo que permite ao crente perceber a verdade da

revelaccedilatildeo O Espiacuterito Santo tem um papel fundamental na mediaccedilatildeo de Cristo e no

processo introspectivo poreacutem poucas vezes salientado pelos comentadores

agostinianos Ele permite o auto-conhecimento e a humildade necessaacuteria agrave direcccedilatildeo

ascensional e transcendente que a via interior deve assumir sobretudo porque eacute graccedilas

a si que Cristo pode ser reconhecido como o recto objecto de feacute Santo Agostinho diz

em De Trinitate que a alma se lembra de Deus apoacutes Dele ter recebido o Seu Espiacuterito

e escutado o Mestre interior543

o que parece atestar a ideia de que o Espiacuterito Santo

faz parte da agraciaccedilatildeo pela qual Deus capacitou o homem para o alcance da

Verdade A via para Deus atraveacutes de Cristo soacute eacute possiacutevel graccedilas ao Espiacuterito Santo

cuja acccedilatildeo corresponde em noacutes agrave aquisiccedilatildeo da feacute na incarnaccedilatildeo A feacute alavanca a

transiccedilatildeo do conhecimento para a sabedoria pois sendo Cristo a incarnaccedilatildeo da

verdade divina ele constitui-se temporalmente como objecto de feacute primeiro como

542

De Trin IV 20 27 (CCL 50 p 195) laquoNam quod dictum est Candor est enim lucis aeternae quid

aliud dictum est quam Lux est lucis aeternae Candor quippe lucis quid nisi lux est Et ideo coaeterna

luci de qua lux est Maluit autem dicere Candor lucis quam Lux lucis ne obscurior putaretur ista quae

manat quam illa de qua manat Cum enim auditur candor eius esse ista facilius est ut per hanc lucere illa

quam haec minus lucere credaturraquo

543 Cf De Trin XIV 15 21

185

scientia mas tambeacutem sempre-jaacute como sapientia544

O mero conhecimento da

incarnaccedilatildeo eacute jaacute uma proto-sabedoria

A via interior granjeada atraveacutes de Cristo pode no entanto natildeo ser dependente da

sua mediaccedilatildeo como Verbo incarnado para ser encetada Como mero esteta o homem

consegue perceber que a interioridade eacute o caminho para o conhecimento de Deus Assim

o atesta a seguinte passagem de Confessionum

E que eacute isto Interroguei o conjunto do universo acerca do meu Deus e

ele respondeu-me lsquoNatildeo sou eu mas foi ele mesmo que me fezrsquo Interroguei

a terra e ela disse lsquoNatildeo sou eursquo e todas as coisas que nela existem

responderam-me o mesmo Interroguei o mar e os abismos e os seres vivos

que rastejam e eles responderam-me lsquoNatildeo somos o teu Deus procura acima

de noacutesrsquo Interroguei as brisas que sopram e o ar todo com os seus habitantes

disse-me lsquoAnaxiacutemenes estaacute enganado eu natildeo sou Deusrsquo Interroguei o ceacuteu

o sol alua as estrelas e dizem-me lsquoNoacutes tambeacutem natildeo somos o Deus que

tuprocurasrsquo E disse a todas as coisas que rodeiam as portas da minha carne

lsquoFalai-me do meu Deus jaacute que natildeo sois voacutes dizei-me algumacoisa a seu

respeitorsquo E elas exclamaram com voz forte lsquoFoi ele que nos fezrsquo

Contemplaacute-las era a minha pergunta e a resposta era a sua beleza Dirigi-me

entatildeo a mim mesmo e a mim mesmo disse lsquoTu quem eacutesrsquo545

A beleza da criaccedilatildeo remete para o criador e qualquer experiecircncia sensiacutevel pode

ser encarada como um chamamento para a transcendecircncia desde que o processo

contemplativo esteja jaacute norteado pela finalidade concreta de perscrutar a razatildeo de tal

beleza A impossibilidade de obter uma resposta satisfatoacuteria na realidade exterior impotildee

a interioridade como uacutenica via de acesso agrave Verdade Na invocaccedilatildeo com que abre a sua

obra Confessionum Santo Agostinho diz que o nosso coraccedilatildeo estaacute inquieto ateacute

544

De Trin XIII 19 24 (CCL 50A p 416) laquoScientia ergo nostra Christus est sapientia quoque nostra

idem Christus est Ipse nobis fidem de rebus temporalibus inserit ipse de sempiternis exhibet veritatem

Per ipsum pergimus ad ipsum tendimus per scientiam ad sapientiam ab uno tamen eodemque Christo

non recedimus in quo sunt omnes thesauri sapientiae et scientiae absconditiraquo

545 Conf X 6 9 (CCL 27 p 159) laquo Et quid est hoc Interrogavi terram et dixit Non sum et

quaecumque in eadem sunt idem confessa sunt Interrogavi mare et abyssos et reptilia animarum

vivarum et responderunt Non sumus Deus tuus quaere super nos Interrogavi auras flabiles et inquit

universus aer cum incolis suis Fallitur Anaximenes non sum Deus Interrogavi caelum solem lunam

stellas Neque nos sumus Deus quem quaeris inquiunt Et dixi omnibus his quae circumstant fores

carnis meae Dicite mihi de Deo meo quod vos non estis dicite mihi de illo aliquid Et exclamaverunt

voce magna Ipse fecit nos Interrogatio mea intentio mea et responsio eorum species eorum Et direxi

me ad me et dixi mihi Tu quis esraquo A traduccedilatildeo presente no corpo do texto eacute de Arnaldo Espiacuterito Santo

Joatildeo Beato e Maria Cristina Castro Maia de Sousa Pimentel in Confissotildees Lisboa IN-CM 2001

186

encontrar descanso em Deus pois Ele criou-nos para si546

A inquietude humana faz

com que haja uma intencionalidade natural dirigida para o Criador que pode ser

despertada pelo mero reconhecimento de qualidades nas coisas corpoacutereas cuja

familiaridade convoca a atenccedilatildeo da alma Ainda que para ser encetada a via interior

possa dispensar o Cristo Redentor ela seraacute poreacutem esteacuteril sem Cristo Mediador pelo que

a centralidade do Verbo natildeo estaacute nunca posta em causa A dimensatildeo qualitativa dos

objectos corpoacutereos ultrapassa-os e ultrapassa a proacutepria alma que estaacute capacitada pela

Graccedila para seguir o rasto de tais qualidades ateacute agrave sua fonte Eacute sempre a Graccedila que em

uacuteltima instacircncia prepara a vontade humana para se direccionar para Deus

Embora nas suas uacuteltimas obras Santo Agostinho decirc um rumo diferente agrave questatildeo

da vontade547

a maioria dos seus escritos testemunha que ela natildeo apenas eacute actuante ndash e

necessaacuteria ndash no processo do conhecimento sensiacutevel (enquanto attentio ou intentio)

como no direccionamento de qualquer actividade intelectual (como voluntas)

inclusivamente no conhecimento de si e na dedicaccedilatildeo amorosa548

A atenccedilatildeo voluntaacuteria

da alma face ao que a rodeia eacute pois a primeira manifestaccedilatildeo da vontade que se prolonga

em qualquer acto de consciencializaccedilatildeo sobre a realidade exterior ou interior e que

assim comporta tambeacutem uma dimensatildeo salviacutefica549

546

Conf I 1 1 (CCL 27 p 1) laquoTu excitas ut laudare te delectet quia fecisti nos ad te et inquietum est

cor nostrum donec requiescat in teraquo

547 Assumindo o proacuteprio Bispo de Hipona a sua incapacidade para compreender plenamente os desiacutegnios

divinos numa obra publicada quatro anos antes da sua morte diz que a vontade humana apenas tem

liberdade para escolher o recto caminho de Deus pelo dom da Graccedila sendo que esta soacute eacute atribuiacuteda por

Deus a alguns predestinados Significa isto que a vontade humana eacute na realidade impotente para por si

soacute agir em conformidade com a vontade de Deus Cf De corr grat 8 17 Antes das suas obras estarem

marcadas pela controveacutersia pelagiana haacute uma notoacuteria autonomia da vontade em relaccedilatildeo agrave Graccedila e mais

importante do que isso estaacute ausente esta ideia de que alguns homens estatildeo fadados desde sempre ao

Juiacutezo sem que Deus lhes conceda a Graccedila Esta teoria tardia da selectividade de Deus natildeo coloca nunca

em causa a Sua justiccedila uma vez que todos os homens estatildeo maculados pelo pecado original e todos estatildeo

jaacute condenados a Graccedila eacute uma expressatildeo gratuita da bondade divina que natildeo depende de qualquer meacuterito

humano Santo Agostinho confessa natildeo saber explicar porque eacute que alguns homens satildeo agraciados e

outros natildeo mas defende que tal situaccedilatildeo certamente se enquadra numa perspectiva globalizante que natildeo

estamos em posiccedilatildeo de entender Cf Ibid

548 De Trin X 8 11 (CCL 50 p 325) laquoCognoscat ergo semetipsam nec quasi absentem se quaerat sed

intentionem voluntatis qua per alia vagabatur statuat in se ipsa et se cogitet Ita videbit quod numquam se

non amaverit numquam nescierit sed aliud secum amando cum eo se confudit et concrevit quodam

modo atque ita dum sicut unum diversa complectitur unum putavit esse quae diversa suntraquo

549 Cf De lib arb I 12 25

187

Para o Bispo de Hipona a experiecircncia esteacutetica certamente seria o processo

racional e objectivo de reconhecimento dos numeri que estatildeo por detraacutes das qualidades

das coisas e das nossas proacuteprias sensaccedilotildees Processo este que obviamente incluiria

tambeacutem as sensaccedilotildees mas sem se lhes limitar ateacute porque a actividade judicativa

igualmente impliacutecita neste decurso comporta uma alteraccedilatildeo dessas sensaccedilotildees primaacuterias

como que originando sobre estas uma espeacutecie de sensaccedilotildees secundaacuterias que as refreiam

ou amplificam consoante a sua adequaccedilatildeo Desta feita como processo racional que eacute a

atitude esteacutetica face ao mundo tambeacutem a voluntas tem aiacute um papel activo natildeo apenas

pela intencionalidade necessaacuteria agrave perscrutaccedilatildeo das razotildees que desencadearam o agrado

ou desagrado sentido mas tambeacutem pela proacutepria capacidade de refrear por exemplo uma

sensaccedilatildeo de agrado se ao ser ajuizada esta se revelar desadequada Uma vez que a sua

adequaccedilatildeo eacute aferida de acordo com as leges numerorum estaacute tambeacutem impliacutecita a

intencionalidade de harmonizar as sensaccedilotildees e a visatildeo do mundo que o sujeito tem com

a finalidade de ser eternamente feliz alcanccedilando a Verdade o Bem e a Beleza Ao

ultrapassar a mera teoria do belo e ao acordar o processo sensiacutevel com a razatildeo e com o

conhecimento (quer na acepccedilatildeo de scientia quer de sapientia) a esteacutetica agostiniana

desenvolve-se em total paralelismo com a eacutetica

Em De libero arbitrio Santo Agostinho aborda a vontade e a liberdade de

escolha em relaccedilatildeo agrave questatildeo do mal podendo tambeacutem aiacute assinalar-se-lhe uma certa

perspectivaccedilatildeo esteacutetica Conforme refere Weismann ao inclinar-se para o mal o livre

arbiacutetrio denota indigecircncia e imperfeiccedilatildeo e pelo contraacuterio ao inclinar-se para o bem

revela as qualidades inerentes agrave essecircncia da pessoa e o seu grau de excelecircncia550

Sendo a proacutepria liberdade realizada no autocontrolo da vontade ela eacute fortalecida pelas

escolhas correctas e o homem perde algo de si sempre que natildeo opta a favor da

sapiecircncia Esta perda de liberdade (libertas) pelo pecado natildeo corresponde no entanto

agrave perda de livre arbiacutetrio (liberum arbitrium) mas agrave facilidade em responder mais

adequadamente ao convite que Deus lhe faz para o bem551

A liberdade eacute portanto uma

capacidade com a qual a vontade eacute agraciada para agir intencional e conscientemente

de acordo com o bem

550

F J Weismann laquoThe problematic of freedom in St Augustine Towards a new hermeneuticsraquo REAug

35 1989 p 105

551 Cf Contra Jul op imp VI 11

188

A vontade existe para a acccedilatildeo natildeo apenas como um querer livre mas como um

poder da alma552

o poder de se votar a si mesma ao bem A acccedilatildeo eacute uma iniciativa face

agrave inquietude natural do homem e embora possamos correctamente pressupor que se

opotildee agrave contemplaccedilatildeo como se esta fosse da ordem da fruiccedilatildeo e a primeira da ordem da

utilidade a verdade eacute que Santo Agostinho chega a defender uma certa

complementaridade entre acccedilatildeo e contemplaccedilatildeo ultrapassando a ideia de que a uacuteltima

apenas concerne ao eterno descanso em Deus Claro que nesta perspectiva a

contemplatio acaba por entrar tambeacutem no do domiacutenio da utilidade e confunde-se com o

conhecimento (cognitio) Em De civitate Dei o Bispo de Hipona diz que a paz da alma

racional corresponde precisamente a um acordo ordenado entre a acccedilatildeo e a cogniccedilatildeo553

mas eacute sobretudo pelo conceito de totus Christus554

que ocorre o encontro entre a

dimensatildeo contemplativa e acccedilatildeo A este propoacutesito Bernard McGinn defende que como

figura hiacutebrida de mediaccedilatildeo entre Deus e a Igreja Cristo permite que os seus crentes

possam incorporar o seu corpo pela participaccedilatildeo na sua vida determinando que a acccedilatildeo

da Igreja seja a acccedilatildeo de Cristo555

Significa isto que a experiecircncia da vida temporal eacute

alterada pela acccedilatildeo de Cristo transformando-se no proacuteprio contexto processual de

conformaccedilatildeo dos homens com o Redentor

Tal encontro entre acccedilatildeo e contemplaccedilatildeo consiste pois na tentativa de

harmonizar a via interior de dedicaccedilatildeo a Deus com a nossa vivecircncia exterior temporal e

servil As acccedilotildees praticadas no acircmbito da temporalidade natildeo apenas reflectem a vida

interior de quem as pratica como contribuem para a enriquecer De certo modo a acccedilatildeo

pode ampliar a experiecircncia contemplativa a partir da exteriorizaccedilatildeo das virtudes

Assim a contemplaccedilatildeo natildeo diz apenas respeito agrave vida futura eterna de convivecircncia

com Deus mas tambeacutem ao encaminhamento da vida presente temporal para tal

552

De lib arb III 3 7 (CCL 29 p 278) laquoQuapropter nihil tam in nostra potestate quam ipsa voluntas estraquo

553 Cf De civ Dei XIX 13

554 O Cristo total consiste na sua consideraccedilatildeo como Cabeccedila sendo o Corpo a Igreja Pelos sacramentos

os fieacuteis continuam a receber a identidade de Cristo pelo que tal identificaccedilatildeo com o seu corpo continua a

vigorar mesmo apoacutes a ascensatildeo de Cristo incarnado Cf por exemplo In Iohan ep I 2 Sermo 341 9 11

De civ Dei X 6 En Ps XC 2 XXX 2 5

555 Bernard McGinn The Foundations of Mysticism Origins to the Fifth Century New York Crossroads

1991 p 250-251

189

eternidade na qual a contemplaccedilatildeo seraacute uma visatildeo sempre presente e natildeo mais uma

antecipaccedilatildeo de contornos miacutesticos ou uma propedecircutica intelectual virada para o futuro

O Bispo de Hipona serve-se de vaacuterias duplas biacuteblicas para explicar o acordo

entre acccedilatildeo e contemplaccedilatildeo e entre presente temporal e presente eterno

Marta e Maria ou Pedro e Joatildeo satildeo exemplos dessas duplas mas eacute sobretudo

com as duas mulheres de Jacob Raquel e Lia que Santo Agostinho melhor ilustra tal

afinidade Lia representa a acccedilatildeo presente vivida com feacute ao passo que Raquel

personifica a esperanccedila da visatildeo eterna de Deus Cada qual tem o seu modo de vida

distinto mas nem por isso opostos jaacute que ambos encontram em Cristo um elo comum

Portanto a acccedilatildeo da vida humana e mortal na qual vivemos pela feacute

fazendo muitas coisas laboriosas incertas quanto agraves vantagens que se podem

tirar da sua utilidade para aqueles que se querem beneficiar eacute Lia a primeira

mulher de Jacob [] Mas a esperanccedila da contemplaccedilatildeo eterna de Deus que

inclui o entendimento certo e deleitaacutevel da verdade eacute Raquel556

A feacute de Lia e a esperanccedila de Raquel aproximam ambos os modos de vida ateacute

porque nem Lia representa todo o tipo de acccedilatildeo nem Raquel pressupotildee a pura

contemplaccedilatildeo que soacute seria legiacutetima no conviacutevio presencial com Deus Tal como Lia e

Raquel tecircm fortes laccedilos familiares como irmatildes e esposas do mesmo marido tambeacutem a

acccedilatildeo (norteada pela feacute) e a contemplaccedilatildeo (natildeo como finalidade mas como esperanccedila)

tecircm entre si uma forte afinidade As duas filhas de Labatildeo fazem parte da Igreja que eacute o

Corpo de Cristo diz Santo Agostinho notando que tambeacutem em Cristo coexistem

precisamente dois modos de vida o temporal do labor e o eterno de contemplaccedilatildeo a

Deus557

Ampliando o paralelismo entre estas figuras biacuteblicas e o par acccedilatildeo contemplaccedilatildeo

o Bispo de Hipona lembra que Jacob primeiro trabalhou para Lia e depois para Raquel e

adverte que quem quiser Raquel (a contemplaccedilatildeo) teraacute primeiro de ter Lia (a acccedilatildeo) Na

realidade temporal que contextualiza o homem natildeo eacute possiacutevel aceder ao conhecimento

sem primeiro laborar para tal fim Raquel poderaacute ser a preferida mas natildeo eacute a primeira

esposa Natildeo se passa da contemplaccedilatildeo para a acccedilatildeo mas da acccedilatildeo para a contemplaccedilatildeo

556

Contra Faust XXII 52 (CSEL 25 I p 645) laquoActio ergo humanae mortalisque vitae in qua vivimus

ex fide multa laboriosa opera facientes incerti quo exitu proveniant ad utilitatem eorum quibus consulere

volumus ipsa est Lia prior uxor Iacob [hellip] Spes vero aeternae contemplationis Dei habens certam et

delectabilem intellegentiam veritatis ipsa est Rachelraquo

557 Cf Ibid

190

Acrescente-se ainda que Jacob deve amar Lia aleacutem de amar Raquel o que pelo

paralelismo traccedilado indicia que haacute um valor dilectivo importante associado ao valor

instrumental da acccedilatildeo558

Para Santo Agostinho a vida quotidiana na variedade de todas as suas expressotildees

natildeo deve ser negligenciada ou desvalorizada mas sim revestida de um novo significado

porque haacute uma continuidade entre o presente temporal e o presente eterno ndashcontinuidade

esta que a figura de Cristo vem realccedilar e que determina um prestiacutegio inusitado agrave vida

temporal O caminho para a contemplaccedilatildeo de Deus face a face eacute sobretudo marcado

pelo encontro com Cristo e pelo consequente chamamento para a relaccedilatildeo de amor que

deve ser encetada atraveacutes de si com o proacuteximo e com o proacuteprio

Como vimos a contemplaccedilatildeo pode ter tambeacutem uma dimensatildeo temporal presente

e neste caso eacute um auto-conhecimento que assume contornos divinos e que segundo o

mestre hiponense natildeo deixa de ser uma visatildeo reciacuteproca

Mas naqueles que vecircem as tuas obras atraveacutes do teu espiacuterito eacutes tu quem

as vecirc neles Portanto ao vermos que satildeo boas tu vecircs que satildeo boas aquilo que

nos agrada pela tua pessoa eacutes tu que nos agradas e se algo nos agrada pelo

teu espiacuterito agrada-te em noacutes559

Tal como quem vecirc Cristo vecirc Deus tambeacutem quem cultiva a visatildeo interior

aplicando-a ao criado estaraacute a sintonizar esse mesmo modo visivo com Deus

relacionando-se com o mundo exterior de acordo com a divindade como se houvesse

um circuito visual que culminasse no encontro diferido entre o sujeito que vecirc atraveacutes de

Deus e o proacuteprio Deus Ver algo atraveacutes do espiacuterito de Deus eacute ver no objecto o reflexo

de Deus como soacute pelo lado do sujeito eacute que tal visatildeo eacute mediada Deus natildeo soacute vecirc o

sujeito directamente como vecirc o objecto e a reflexividade da visatildeo do sujeito atraveacutes de

si mesmo enquanto espiacuterito no sujeito A visatildeo que o sujeito tiver do mundo atraveacutes do

espiacuterito coincidiraacute necessariamente com aquela que Deus tem O agrado que o sujeito

possa sentir atraveacutes do espiacuterito estaraacute portanto Deus a senti-lo em si A presenccedila do

Espiacuterito Santo no homem significa que Deus se revela sempre em uacuteltima instacircncia a

partir de Si proacuteprio mesmo que o sujeito soacute possa aceder a essa revelaccedilatildeo atraveacutes da

558

Cf Contra Faust XXII 53

559 Conf XIII 31 46 (CCL 27 p 269) laquoQui autem per spiritum tuum vident ea tu vides in eis Ergo cum

vident quia bona sunt tu vides quia bona sunt et quaecumque propter te placent tu in eis places et quae

per spiritum tuum placent nobis tibi placent in nobisraquo

191

interioridade pela qual recebe os vestiacutegios ou reflexos reconheciacuteveis no mundo exterior

e pela qual se relaciona com Cristo

Graccedilas ao Espiacuterito Santo o homem pode ver atraveacutes de Deus e amar pelo seu

amor560

estando capacitado para interagir correctamente com o que o rodeia e para tirar

o justo proveito do seu percurso pelo mundo temporal A abordagem que o Bispo de

Hipona faz relativamente agrave dicotomia acccedilatildeo contemplaccedilatildeo como modos de vida

distintos poreacutem natildeo antagoacutenicos permite reforccedilar a ideia de que as especificidades da

experiecircncia temporal satildeo necessaacuterias ao aperfeiccediloamento da alma racional A

visualidade e o amor confluem no acircmbito da esteacutetica e da eacutetica e do mesmo modo que

haacute uma intencionalidade no amor aos outros561

haacute tambeacutem uma intencionalidade no

modo como o olhar eacute dirigido agraves coisas que nos rodeiam Talvez por isso a associaccedilatildeo

natural do labor agrave vida terrena natildeo corresponda propriamente a uma mortificaccedilatildeo

voluntaacuteria do sujeito mas sim agrave percepccedilatildeo das afinidades e da diferenccedila que haacute entre a

esfera corpoacuterea e a divina Santo Agostinho natildeo exorta a uma vida de sofrimento esse

sofrimento e os trabalhos a ele associados estatildeo naturalmente presentes em virtude da

consciecircncia da distacircncia ontoloacutegica que separa as criaturas do Criador Contudo haacute uma

aprazibilidade passiacutevel de ser experienciada na constataccedilatildeo das afinidades entre criaccedilatildeo

e Criador sem que qualquer laivo de culpabilidade ou de ilegitimidade a macule desde

que o deleite natildeo constitua em si mesmo um fim Se a finalidade da atitude esteacutetica face

ao mundo estiver correctamente alicerccedilada em Deus entatildeo natildeo haacute por que refreaacute-la

Aquilo que nos agradar pelo Espiacuterito agradaraacute tambeacutem a Deus

560

No subcapiacutetulo precedente viu-se como o amor a Deus coincidia com o amor de Deus

561 Natildeo para o sujeito tirar proveito do outro mas do proacuteprio amor que por ele nutre Haacute poreacutem que

clarificar que Santo Agostinho defende que o proacuteximo tem um valor instrumental e que na vida terrena

devemos utilizar os outros em prol do alcance de Deus Soacute na vida ressurrecta o amor ao proacuteximo seraacute

um amor totalmente desinteressado A utilidade de que os outros se devem revestir para o sujeito eacute

relativa agrave praacutetica caritativa e nunca tem que ver com uma atitude de domiacutenio sobre eles por parte do

sujeito

193

4 A relaccedilatildeo entre beleza e verdade

41 - Acccedilatildeo perceptiva e juiacutezo racional

Em inuacutemeras passagens ao longo das suas obras Santo Agostinho daacute provas da

sua enorme sensibilidade face agrave beleza de tudo o que o rodeia O caraacutecter expressivo da

sua proacutepria escrita por vezes chega a contrastar com uma certa austeridade em relaccedilatildeo

ao modo como se refere a determinadas formas de expressatildeo artiacutestica Essa austeridade

estaacute longe de resultar de uma faceta filistina por parte do filoacutesofo muito pelo contraacuterio

eacute por reconhecer a vibrante atracccedilatildeo que tais formas artiacutesticas exercem sobre os homens

que Santo Agostinho se vecirc a braccedilos com a necessidade de criticar ou pelo menos de

refrear elogios a determinados produtos da criatividade humana Quer critique o teatro

quer elogie a muacutesica Santo Agostinho tem sempre como premissa uma subordinaccedilatildeo da

dimensatildeo esteacutetica agrave dimensatildeo moral o que natildeo significa que os sentimentos esteacuteticos

que entrem em confronto com o posicionamento moral sejam de algum modo

escamoteados e deles se perca o rasto Pressentindo o descalabro de possiacuteveis desencontros

entre o prazer esteacutetico e o juiacutezo moral Santo Agostinho imediatamente submete a um

elaborado trabalho de anaacutelise as qualidades esteacuteticas que reconhece na natureza ou nos

produtos da actividade humana O prazer que deles tira antes dessa anaacutelise eacute ainda um

prejuiacutezo a verdadeira judicaccedilatildeo esteacutetica eacute para o Bispo de Hipona posterior a esse

primeiro prazer e jaacute fruto do processo racional que determina a legitimidade de tal

sensaccedilatildeo Natildeo haacute uma separaccedilatildeo entre eacutetica e esteacutetica no pensamento agostiniano ainda

que seja possiacutevel diferenciar entre um primeiro momento no qual a dimensatildeo esteacutetica

parece gozar uma certa autonomia ndash eacute o momento anterior agrave judicaccedilatildeo ndash poreacutem na

verdade o juiacutezo eacute que inaugura a dimensatildeo esteacutetica e ele corresponde a um outro

momento da experiecircncia e eacute sempre um juiacutezo acerca da adequaccedilatildeo de uma resposta

194

natural da sensibilidade em relaccedilatildeo natildeo apenas ao seu contexto mais imediato como

tambeacutem agrave sua determinaccedilatildeo final

Assim em De musica vemo-lo chamar a atenccedilatildeo para o facto da muacutesica ndash por si

definida como a ciecircncia de bem modular ndash poder resultar numa maacute interpretaccedilatildeo ou maacute

performance musical mesmo que o seu inteacuterprete tenha sabido modulaacute-la bem Santo

Agostinho daacute o exemplo dos cantores que fazem um uso abusivo da modulaccedilatildeo das

palavras e dos sons ao empregaacute-los contra as conveniecircncias Por vezes haacute contextos que

exigem uma certa solenidade que poderaacute ser posta em causa se entatildeo soar uma muacutesica

que suscite uma alegria desmesurada nos seus auditores562

Mesmo que tal muacutesica seja

perfeita na sua cadecircncia a desadequaccedilatildeo da reacccedilatildeo que provoca torna despreziacutevel a

sua interpretaccedilatildeo Haacute determinadas qualidades esteacuteticas que agradam por si mesmas

podendo o seu enquadramento tornar esse prazer desagradaacutevel O desagrado natildeo anula

necessariamente a consciecircncia das qualidades esteacuteticas experienciadas mas eacute jaacute fruto de

um posicionamento moral sobre o prazer

Vale aqui a pena retomar a perspectiva agostiniana sobre o processo da sensaccedilatildeo

para compreender melhor o sentimento esteacutetico e a sua inseparabilidade em relaccedilatildeo agrave

eacutetica Sendo a sensaccedilatildeo uma actividade do domiacutenio exclusivo da alma que sente atraveacutes

do corpo e no corpo o prazer ou o desprazer satildeo em primeira instacircncia resultantes da

harmonizaccedilatildeo ou inconveniecircncia entre os oacutergatildeos sensoacuterios e o corpo exterior que eacute

objecto da sensaccedilatildeo Significa isto que a alma reconhece que o corpo exterior se

relaciona de um modo conveniente ou natildeo com o proacuteprio corpo que ela anima Natildeo eacute

ainda em relaccedilatildeo a si mesma que a alma perspectiva tal conveniecircncia do corpo exterior

natildeo havendo ainda juiacutezo mas apenas consciecircncia de um estado corporal O juiacutezo

esteacutetico seraacute para o Bispo de Hipona uma avaliaccedilatildeo do prazer ou desprazer sentidos e

ele proacuteprio ocasionaraacute um novo prazer (talvez seja mais correcto falar neste caso de uma

ampliaccedilatildeo transformaccedilatildeo do prazer primeiro) ou uma coibiccedilatildeo do prazer resultante da

harmonia entre os oacutergatildeos sensoacuterios e o objecto percebido Nesta fase a alma jaacute natildeo

perspectiva a conveniecircncia do objecto exterior face ao corpo mas a conveniecircncia do

resultado da afecccedilatildeo do corpo em relaccedilatildeo a si mesma

O prazer sexual por exemplo contempla a relaccedilatildeo harmoniosa entre o corpo

com outro poreacutem eacute condenaacutevel na perspectiva agostiniana por se desadequar agrave natureza

562

Cf De mus I 3 4

195

da alma563

Uma alma ordenada natildeo sentiria prazer nesse tipo de conveniecircncia entre o

seu corpo com outro Embora Santo Agostinho natildeo explique nestes termos a relaccedilatildeo

entre a sensaccedilatildeo primaacuteria e a sensaccedilatildeo poacutes-judicativa nem tatildeo pouco as distinga de

modo expliacutecito eacute possiacutevel perceber que a consciecircncia dos estados corporais eacute sentida

corporalmente como um prazer ou desprazer primaacuterio mas a estes sobrepotildee-se sempre

o prazer ou desprazer jaacute resultantes da actividade judicativa Tudo indica que estas

sensaccedilotildees de prazer e de desprazer resultantes do posicionamento moral tambeacutem se

fazem sentir no corpo elas parecem traduzir-se ora numa ampliaccedilatildeo ora num

enfraquecimento da sensaccedilatildeo primaacuteria O facto de haver uma desarmonia entre os

oacutergatildeos dos sentidos e o objecto externo ndash resultante numa sensaccedilatildeo primaacuteria de

desprazer ndash pode natildeo obstar a que a alma sinta prazer ao considerar a existecircncia de uma

conveniecircncia entre essa afecccedilatildeo negativa do corpo e a sua proacutepria natureza projectando

no corpo tal estado aniacutemico e assim minimizando a dor resultante da consciecircncia da

afecccedilatildeo Este seria por exemplo o caso daqueles que foram supliciados devido agrave sua feacute

Santo Agostinho refere-se-lhes relativamente agrave beleza das suas cicatrizes564

que eacute uma

marca da virtude da alma e podemos inferir que consideraria que na ponderaccedilatildeo das

razotildees de tais seviacutecias a alma projectaria no corpo a certeza da rectidatildeo da sua postura

lenindo-lhe de certa forma a sensaccedilatildeo de dor

As sensaccedilotildees secundaacuterias poacutes-judicativas funcionam portanto como um

reforccedilo ou como um contrapeso das sensaccedilotildees primaacuterias Ambas satildeo sentidas pela

alma no corpo as primeiras satildeo relativas agrave conformidade entre corpo sensitivo e os

sensibilia as segundas satildeo relativas agrave conformidade entre a sensaccedilatildeo e a alma na

sua natureza finalidade e grau de perfeiccedilatildeo No fundo a actividade judicativa acaba

por ser uma avaliaccedilatildeo da alma em relaccedilatildeo a si mesma Se for correctamente

efectuada essa avaliaccedilatildeo baseia-se num criteacuterio que ultrapassa a alma e natildeo deixa de

ter uma base moral Os erros de judicaccedilatildeo ocorrem quando a alma fica aprisionada agrave

sua temporalidade e assume como norma de valoraccedilatildeo certos criteacuterios que natildeo lhe

satildeo superiores

563

O prazer sexual (delectatio carnalis) em si eacute condenaacutevel tal como a sua procura poreacutem se ele for o

resultado inevitaacutevel da intenccedilatildeo de procriar Santo Agostinho revela-se muito mais tolerante e afirma que

tal como o prazer que acompanha outros actos naturais e necessaacuterios agrave preservaccedilatildeo da vida ele eacute

aceitaacutevel desde que contido em certos limites Cf De bono con 16 18

564 Cf De civ Dei XXII 19

196

Esta proposta abre-se a duas questotildees fundamentais a) perspectivado deste

modo o que distingue o juiacutezo esteacutetico de outro qualquer juiacutezo de valor b) O que seraacute

para Santo Agostinho o prazer esteacutetico Comeccedilando por esta uacuteltima questatildeo impotildee-se

perceber se haacute nas obras agostinianas alguma distinccedilatildeo que permita diferenciar o prazer

esteacutetico de outras quaisquer formas de prazer agrave semelhanccedila por exemplo da distinccedilatildeo

que Kant faz entre o prazer do bom o prazer do agradaacutevel e o prazer do belo565

Santo

Agostinho diz que o que provoca prazer eacute a beleza566

ela eacute o que atrai e o que deleita e

nela os nuacutemeros567

Ora os nuacutemeros soacute satildeo perceptiacuteveis pela mente ou alma racional o

que desde logo coloca o prazer esteacutetico na esfera do conhecimento ou melhor da

sabedoria com a qual inclusivamente os nuacutemeros se identificam568

Agradando por

meio da razatildeo os nuacutemeros pressupotildeem ateacute que haja uma certa preparaccedilatildeo intelectual

para o seu reconhecimento Utilizando a terminologia kantiana conclui-se que o prazer

esteacutetico na perspectiva de Santo Agostinho natildeo poderaacute ser um prazer desinteressado em

primeiro lugar porque lida com conceitos jaacute que os nuacutemeros funcionam como um elo

565

Segundo Kant o prazer pode ser experienciado de trecircs formas distintas a) atraveacutes da satisfaccedilatildeo de um

desejo ou da inclinaccedilatildeo natural dos nossos sentidos A esta primeira forma de prazer corresponde a

experiecircncia do agradaacutevel (das Angenehme) que eacute o resultado directo da estimulaccedilatildeo dos sentidos e natildeo

pressupotildee qualquer dimensatildeo cognitiva ou intersubjectiva significante Diz meramente respeito a uma

resposta pessoal que se traduz na atracccedilatildeo ou repulsa face ao objecto ou situaccedilatildeo que estaacute na base do

estiacutemulo O prazer do agradaacutevel natildeo eacute mais do que a gratificaccedilatildeo pessoal natildeo independe por isso de um

interesse b) O segundo modo de experienciar prazer concerne agrave satisfaccedilatildeo de uma necessidade praacutetica ndash eacute

o deleite do bom (das Wohlgefallen am Guten) Neste caso o prazer natildeo resulta da estimulaccedilatildeo dos

sentidos mas da realizaccedilatildeo de um propoacutesito sem que essa realizaccedilatildeo constitua um fim em si mesmo

Embora tambeacutem possa haver um sentimento de prazer associado agrave motivaccedilatildeo que compele o sujeito para

a concretizaccedilatildeo do propoacutesito a verdadeira finalidade natildeo eacute o prazer que se possa obter nesse processo de

concretizaccedilatildeo mas no proacuteprio propoacutesito alcanccedilado Haacute aqui uma inegaacutevel dimensatildeo funcional utilitaacuteria

que tal como acontecia no primeiro modo torna esse prazer dependente de um interesse c) O uacuteltimo tipo

de prazer diz entatildeo respeito agrave experiecircncia esteacutetica ndash eacute o prazer do belo (das Wohlgefallen am Schoumlnen)

Para que este prazer seja originado natildeo eacute sequer necessaacuteria a existecircncia efectiva do objecto jaacute que a

percepccedilatildeo que o sujeito tem do objecto natildeo coincide obrigatoriamente com as suas propriedades

intriacutensecas Na verdade o nosso interesse natildeo eacute tanto pelo objecto mas pelo que ele provoca em noacutes ndash o

objecto da experiecircncia esteacutetica vale sobretudo como aparecircncia ou representaccedilatildeo Para Kant o juiacutezo soacute eacute

esteacutetico em virtude da sua determinaccedilatildeo por um prazer desinteressado Ora se o juiacutezo eacute determinado pelo

prazer desinteressado isto eacute por um sentimento e natildeo por um objecto ele soacute pode ser um juiacutezo

subjectivo que natildeo eacute assegurado por regras mas cujo sentimento que o determina pode ser comunicado

O juiacutezo esteacutetico reflecte a capacidade de se pensar o particular contido no universal Cf Kant Criacutetica da

Faculdade de Julgar sect3-sect5

566 Cf De vera relig 32 59

567 Cf De ord II 15 42 De mus VI 11 29-30 e VI 13 38

568 Vide p 133 da presente tese

197

de relaccedilatildeo com as Formas em segundo lugar porque o prazer esteacutetico suscita um desejo

de posse identificaccedilatildeo ou no miacutenimo de ir ao encontro da qualidade Soacute numa certa

acepccedilatildeo shaftesburiana de desinteresse eacute que o prazer esteacutetico perspectivado pelo Bispo

de Hipona poderia ser desinteressado Para Shaftesbury o desinteresse opotildee-se ao

egotismo e ao amor excessivo por si mesmo que impede a acccedilatildeo virtuosa569

ora

tambeacutem para Santo Agostinho o prazer esteacutetico se situa na esfera da virtude ao impor a

reflexatildeo acerca da lex numerorum e mesmo do ordo amoris Ultrapassando a mera

consciecircncia dos estados corporais e implicando a percepccedilatildeo dos nuacutemeros o prazer

esteacutetico assim perspectivado implica um certo esquecimento de si Ao ponderar sobre o

prazer a alma automaticamente percebe que natildeo eacute dele que estaacute dependente a qualidade

esteacutetica dos objectos pelo contraacuterio eacute a qualidade (ou nas palavras de Santo Agostinho

o belo) que suscita prazer e que o torna dependente de si570

Tal implica que se deva

procurar a qualidade e natildeo o prazer ndash ele seraacute uma consequecircncia natural mas natildeo a

finalidade Se o prazer era subjectivo jaacute a qualidade acaba por revelar-se objectiva

porque se destacada quer do objecto quer da razatildeo que a perscruta ainda que em ambos

ela marque presenccedila atraveacutes dos nuacutemeros Nesta senda ao reconhecer que algo suscita

prazer num objecto e ao ponderar a razatildeo de tal prazer natildeo haacute um interesse pelo objecto

em si nem tatildeo pouco pelo sentimento que se constitui no sujeito mas sim pela

qualidade que estaacute acima quer do sujeito quer do objecto e que vale por si soacute Soacute assim

se pode falar em desinteresse na perspectiva esteacutetica agostiniana O desejo de posse ou

alcance da qualidade natildeo eacute de ordem materialista uma vez que natildeo diz respeito ao

objecto mas agrave qualidade em si (agrave suma beleza diria o Bispo de Hipona) sem a

subordinar a qualquer outra finalidade Claro que assim delineado o prazer esteacutetico soacute

uma alma superior o poderaacute sentir Quanto menor for o grau de aperfeiccediloamento da

alma menor seraacute o desinteresse e menor seraacute o prazer que essa alma eacute capaz de fruir

Em todo o caso natildeo haacute prazer esteacutetico sem uma percepccedilatildeo consciente dos numeri ndash a

mera consciecircncia dos estados corporais ainda que possa ser prazerosa natildeo eacute suficiente

para ser considerada de acircmbito esteacutetico A atitude esteacutetica eacute sempre afim da

contemplaccedilatildeo e exige um trabalho intelectual mais aprofundado do que o da ratio

569

Cf Shaftesbury Characteristics of Men Manners Opinions Times vol II treat V Whitefish

Kessinger Publishing 2004 passim

570 Cf De vera relig 32 59

198

inferior571

Fica assim feita a distinccedilatildeo entre o prazer esteacutetico e o prazer resultante da

consciecircncia dos estados corporais que eacute um prazer primaacuterio resta portanto perceber se

ao niacutevel daquilo que designaacutemos por prazeres secundaacuterios haveraacute alguma especificidade

que diferencie o prazer esteacutetico

Sem o trabalho intelectual que integre a consciecircncia da alma face a si mesma e

ao seu fim qualquer prazer experienciado ou natildeo passa de uma sensaccedilatildeo primaacuteria ou eacute

um prazer egoiacutesta porque inconsequente Por exemplo o sujeito que exerccedila domiacutenio

sobre os seus proacuteximos poderaacute sentir prazer nessa atitude e nos benefiacutecios materiais daiacute

decorrentes mas estaraacute a subverter a ordem do amor que o poderia conduzir agrave felicidade

eterna Se a sua alma se prestasse a um exame interior certamente encontraria o

contrapeso que faria desse prazer um pau de dois bicos impedindo a plenitude da

agradabilidade e promovendo a sua procura noutros modos de relaccedilatildeo Os prazeres

egoiacutestas satildeo naturalmente fruto de um deacutefice ou de um erro de judicaccedilatildeo eles estatildeo

associados ao amor desordenado (ou cupiditas)

A praacutetica de uma boa acccedilatildeo em que por exemplo o amor ao proacuteximo eacute

exteriorizado provoca no sujeito que a exerce uma sensaccedilatildeo de prazer mesmo que

possa implicar um sacrifiacutecio para o corpo Essa sensaccedilatildeo de prazer seria o resultado da

conformidade da acccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave natureza da alma e ao seu almejado regresso agrave

origem Seraacute portanto um prazer de ordem moral no entanto natildeo parece haver qualquer

diferenccedila significativa entre este tipo de prazer e o prazer esteacutetico jaacute que ambos se

desencadeiam a partir da consciecircncia da conformaccedilatildeo agrave ordem moral e ambos acabam

por ser actuantes sobre o prazer ou desprazer primaacuterios A consciecircncia da conformaccedilatildeo

ou natildeo agrave ordem acaba por corresponder a determinados estados de espiacuterito e estes quer

sejam ou natildeo motivados por factores externos tecircm sempre um reflexo fiacutesico que pode ir

desde a mera sensaccedilatildeo de relaxamento ateacute agrave dor fiacutesica ou mesmo agrave doenccedila passando por

uma vasta gama de sensaccedilotildees intermeacutedias e por manifestaccedilotildees externas de sintomas572

A alma sente o prazer esteacutetico do mesmo modo que experiencia o prazer moral em si

571

Sobre a ratio inferior vide subcapiacutetulo I 22 da presente tese

572 Em De Genesis ad litteram Santo Agostinho diz que a palidez o rubor os tremores e as doenccedilas tanto

podem ser desencadeadas por factores como a alimentaccedilatildeo ou como as condiccedilotildees exteriores que afectem

o corpo como tambeacutem pelas emoccedilotildees a que alma estaacute sujeita e que comunica ao corpo por meio de um

impulso quanto mais violentas forem tais emoccedilotildees mais veemente seraacute esse impulso que a alma

transmite ao corpo Cf De Gen ad litt XII 19 41 Em vaacuterias outras passagens explica que a alma

controla o ritmo respiratoacuterio e a pulsaccedilatildeo (cf Mus VI 3 4) controla os movimentos espontacircneos (cf De

quant an 22 38) e as funccedilotildees automaacuteticas do corpo (cf De Gen ad littVII 20 26)

199

enquanto estado de espiacuterito como uma conformidade ordenada e no corpo como

manifestaccedilatildeo sintomaacutetica desse estado de espiacuterito Natildeo eacute portanto de estranhar que

possa haver uma recorrecircncia ao vocabulaacuterio sensual para descrever o prazer ou o

desprazer de ordem moral Por exemplo face a uma situaccedilatildeo de injusticcedila na qual nos foi

impossiacutevel intervir dizemos que a sua lembranccedila nos deixa um ldquoamargo de bocardquo ou

pelo contraacuterio face a uma situaccedilatildeo em que testemunhamos algueacutem a praticar uma boa

acccedilatildeo dizemos que estaacute a ter uma ldquoatitude bonitardquo Mais uma vez conveacutem chamar a

atenccedilatildeo para o facto de a percepccedilatildeo das qualidades esteacuteticas natildeo se confundir com a

percepccedilatildeo do bem573

Apesar de defendermos que na perspectiva agostiniana o prazer

desencadeado por ambos os tipos de percepccedilatildeo eacute equivalente uma vez que se processa

do mesmo modo natildeo somos levados a crer que haja necessariamente uma indistinccedilatildeo

entre as qualidades esteacuteticas e morais presentes em determinada experiecircncia Na

verdade a ocorrer tal indistinccedilatildeo seraacute tambeacutem fruto de um juiacutezo de valor errado

Apesar de natildeo haver uma diferenccedila fundamental entre prazer esteacutetico e prazer

moral574

haveraacute no entanto algo que distinga entre um juiacutezo esteacutetico e um juiacutezo moral

ou entre um juiacutezo esteacutetico e um juiacutezo cognitivo Quando julgamos um objecto ou

situaccedilatildeo fazemo-lo atraveacutes de um criteacuterio de beleza de bondade ou de verdade de

acordo com o qual predicamos esse objecto ou situaccedilatildeo Para Santo Agostinho haacute uma

equivalecircncia entre estes trecircs criteacuterios jaacute que todos satildeo imutaacuteveis e se reportam a Deus575

e portanto todos satildeo superiores ao sujeito Tal como a divindade se triparte em trecircs

pessoas que apesar de se equivalerem mantecircm as suas caracteriacutesticas distintivas

tambeacutem na triacuteade de criteacuterios seraacute possiacutevel determinar uma especificidade que os

singularize natildeo quanto agrave sua natureza mas quanto agraves afinidades a que predispotildeem e aos

caminhos que iluminam para conduzir o sujeito ateacute si Com efeito cada um dos

criteacuterios parece corresponder a um modo distinto de relacionamento que o homem pode

encetar com aquilo que o rodeia

O juiacutezo moral implica uma resposta emocional adequada ndash Santo Agostinho

diria uma resposta de amor ndash que empenha o sujeito de modo prescritivo e que nunca eacute

dependente do contexto Eacute sempre um juiacutezo virado para a acccedilatildeo pois quer se reporte a

573

Este toacutepico foi jaacute clarificado no subcapiacutetulo I 3 1 Vide p 167

574 Eacute precisamente a capacidade de distinguir as qualidades esteacuteticas das morais que permite falar em

prazer esteacutetico e em prazer de ordem moral embora natildeo estes natildeo sejam experienciados distintamente

575 Por se identificarem com Ele e por Ele ser a sua causa

200

algo jaacute ocorrido quer se reporte a meras intenccedilotildees acaba sempre por revelar ao sujeito

como deve ou natildeo comportar-se Em termos morais a adequaccedilatildeo do comportamento eacute

sobretudo relativa ao outro embora em determinadas situaccedilotildees possa reportar-se ao

proacuteprio ndash por exemplo em relaccedilatildeo ao suiciacutedio Todavia os comportamentos que visam o

proacuteprio acabam por reflectir a postura do sujeito face ao proacuteximo576

Um juiacutezo moral eacute

em uacuteltima instacircncia uma constataccedilatildeo acerca de um modo de agir que leva o outro em

consideraccedilatildeo e que assim potildee em marcha o amor ao proacuteximo

O juiacutezo cognitivo regido pelo criteacuterio da Verdade natildeo eacute uma mera constataccedilatildeo

factual que apenas descreveria a realidade sensiacutevel e permitiria uma certa

previsibilidade ou antecipaccedilatildeo das implicaccedilotildees associadas ao modo como o sujeito se

relaciona com os objectos temporais O juiacutezo cognitivo diz respeito agrave constataccedilatildeo do

grau de consistecircncia ontoloacutegica dos objectos que percebemos Eacute portanto um juiacutezo

descritivo tal como o juiacutezo esteacutetico destacando-se deste por natildeo motivar directamente

uma resposta em termos de prazer577

Como tal falta-lhe a reflexividade impliacutecita no

modo como a alma revecirc o produto da sua proacutepria atenccedilatildeo ao corpo

Pelo juiacutezo esteacutetico apesar de o sujeito natildeo se estar a eximir de uma avaliaccedilatildeo ou

conteuacutedo proposicional que implica a cogniccedilatildeo e que implica um posicionamento

moral pressupotildee-se que o foco da atenccedilatildeo estaacute nas razotildees do seu poder de atracccedilatildeo ou

do modo inesperado como o processo sensiacutevel convoca a razatildeo predispondo a uma

nova compreensatildeo do sentido das coisas ou situaccedilotildees a partir da consciecircncia que o

576

Santo Agostinho condena o suiciacutedio dizendo que eacute errado e natildeo deve ser praticado uma vez que ao

matar-se o sujeito mata um homem De civ Dei I 20 (CCL 47 p 22) laquoNeque enim qui se occidit

aliud quam hominem occiditraquo O sujeito natildeo eacute portanto visto na sua individualidade mas na sua

generalidade ndash quase como um outro de si mesmo Santo Agostinho eacute expliacutecito ao dizer que o suiciacutedio

viola um mandamento da lei de Deus o sexto que diz ldquonatildeo mataraacutesrdquo e o preceito biacuteblico ldquoamaraacutes o teu

proacuteximo como a ti mesmordquo (Mat 2239) pois ao pressupor a falta de amor-proacuteprio o suiciacutedio revela

tambeacutem a falta de amor pelo proacuteximo

577 Cf De vera relig 49 95 Naturalmente o conhecimento de Deus suscitaraacute prazer mas como a relaccedilatildeo

alma-corpo entatildeo se altera a questatildeo da judicaccedilatildeo deixa de fazer sentido adquirindo aiacute o prazer uma

autonomia singular Como o corpo se submeteraacute inteiramente agrave alma esta natildeo precisa de lhe dedicar a

atenccedilatildeo que dedicava antes da ressurreiccedilatildeo e sequer precisa ajuizar acerca da adequaccedilatildeo da sua resposta agrave

sensaccedilatildeo O homem ressurrecto teve um percurso temporal que o conduziu ateacute agrave felicidade eterna e natildeo

corre o risco de voltar a pecar Os ecircxtases como aquele que Santo Agostinho experiencia pela visatildeo de

Oacutestia satildeo uma excepccedilatildeo nesta questatildeo do prazer motivado pelo vislumbre da Verdade ainda no mundo

terreno todavia eacute um prazer destacado da actividade judicativa jaacute com a mesma autonomia que

caracterizaraacute o prazer experienciado pelo homem ressurrecto Ainda que excepcional as caracteriacutesticas do

prazer extaacutetico vatildeo no sentido de confirmar que todo o prazer se faz sentir no corpo tal como Bernini tatildeo

exemplarmente demonstrou com a sua famosa escultura

201

sujeito tem dos seus estados corporais A sensaccedilatildeo investe imediatamente o objecto de

um sentido determinado pela fisicalidade da experiecircncia que eacute reiterado ou alterado pela

avaliaccedilatildeo da alma com base na adequaccedilatildeo da sua proacutepria resposta no corpo

relativamente ao criteacuterio que encontra em si mesma mas que a ultrapassa

Relativamente ao juiacutezo cognitivo o juiacutezo esteacutetico parece natildeo se distinguir para laacute

dessa integraccedilatildeo da fisicalidade que contempla Ele eacute como uma variaccedilatildeo do juiacutezo

cognitivo pela qual eacute levada em conta a reacccedilatildeo do sujeito ao estiacutemulo exterior quanto

ao seu estado corporal e quanto agrave conformidade desse estado ponderada em relaccedilatildeo agrave

natureza do estiacutemulo e em relaccedilatildeo agraves especificidades da natureza ascensional da alma

Daiacute que os nuacutemeros ndash cujo reconhecimento fundamenta o juiacutezo esteacutetico e estaacute

dependente do grau de evoluccedilatildeo da alma ndash sejam equivalentes agrave sabedoria

Dependendo do contexto um juiacutezo esteacutetico pode variar578

No entanto para

Santo Agostinho e contrariamente a Kant trata-se de um juiacutezo objectivo porque se

refere a relaccedilotildees numeacutericas meta-formais e tem por base um criteacuterio imutaacutevel e eterno

ao qual outras almas tecircm acesso pelas respectivas interioridades Natildeo esqueccedilamos que

para o Bispo de Hipona a interioridade pressupotildee conhecimento e iluminaccedilatildeo Natildeo

esqueccedilamos ainda que o juiacutezo esteacutetico de certo modo eacute tambeacutem um juiacutezo moral porque

tal como vimos avalia a adequaccedilatildeo da resposta sensiacutevel ao contexto imediato e ao

desiacutegnio da alma retornar agrave sua origem Ainda assim trata-se de um juiacutezo meramente

descritivo e natildeo prescritivo ele natildeo eacute prescritivo porque natildeo visa concretamente uma

acccedilatildeo e porque varia quanto ao contexto mas qualifica o objecto e eacute indicativo quanto agrave

proacutepria perfeiccedilatildeo da alma ndash uma alma incapaz de reconhecer qualidades esteacuteticas nas

coisas que a rodeiam natildeo eacute ela proacutepria bela uma vez que se revela inepta para perceber

e seguir os numeri Assim sendo o juiacutezo esteacutetico natildeo coloca a toacutenica no relacionamento

do sujeito com o outro como ocorria no caso do juiacutezo moral mas no relacionamento do

sujeito com as realidades sensiacutevel (a sua proacutepria) e inteligiacutevel Contrariamente ao juiacutezo

cognitivo simples o juiacutezo esteacutetico revela sobretudo a relaccedilatildeo do sujeito consigo mesmo

na sua natureza compoacutesita de corpo e alma Ainda assim o juiacutezo esteacutetico na perspectiva

agostiniana natildeo deveraacute considerar-se um juiacutezo de gosto pois sequer eacute subjectivo579

578

Eacute o caso do exemplo jaacute citado na p 194 de uma boa interpretaccedilatildeo musical que realizada num contexto

solene pode despertar sentimentos vexantes impedindo um apreccedilo pela muacutesica que noutro contexto

possivelmente se revelaria pleno

579 Na verdade o juiacutezo esteacutetico agostiniano quase corresponde ao juiacutezo cognitivo kantiano Para Kant o

juiacutezo cognitivo eacute determinado pela uniatildeo de um conceito a uma intuiccedilatildeo empiacuterica ou seja a percepccedilatildeo de

202

Para uma alma preparada o mesmo objecto pode ser alvo de um juiacutezo esteacutetico

de um juiacutezo moral eou de um juiacutezo cognitivo Os trecircs satildeo juiacutezos racionais fruto da

liberdade de escolha580

e os trecircs desde que correctamente formulados permitem

ordenar o objecto a que se referem numa mesma escala hieraacuterquica de perfeiccedilotildees Isto eacute

se o objecto em causa for correctamente ajuizado ele ocuparaacute sempre o mesmo lugar

hieraacuterquico quer o criteacuterio usado seja o da beleza o da bondade ou o da verdade

Todavia parece haver para o Bispo de Hipona uma certa ordem natildeo de importacircncia

mas de sucessividade entre os trecircs modos de relacionamento a que os trecircs juiacutezos

correspondem A relaccedilatildeo esteacutetica do sujeito com o mundo natildeo eacute condenaacutevel muito pelo

contraacuterio eacute desejaacutevel poreacutem natildeo deveraacute sobrepor-se preponderantemente agrave relaccedilatildeo

amorosa ordenada ndash o amor ao proacuteximo eacute o primeiro passo para o percurso ascensional

interior e natildeo pode ser uma etapa negligenciada em prol de um modo de estar mais

contemplativo que natildeo tenha tido por base tal posicionamento eacutetico Assim mesmo que

a ordem de valores eacuteticos corresponda agrave de valores esteacuteticos os nossos juiacutezos morais

deveratildeo ter prioridade face aos juiacutezos esteacuteticos caso sejam simultaneamente

convocados jaacute que a orientaccedilatildeo das nossas acccedilotildees eacute feita a partir de tais juiacutezos de valor

Eacute com base neles que estabelecemos as nossas prioridades e afinidades e que definimos

o nosso modo de estar no mundo

Os diferentes tipos de juiacutezos que fazemos sobre os objectos determinaratildeo

diferentes modos de agir e Santo Agostinho como que defende um certo protocolo de

actuaccedilatildeo Segundo o Bispo de Hipona a verdade deve ser procurada tal como fizeram

os filoacutesofos gregos poreacutem natildeo eacute suficiente e pode redundar em soberba A beleza deve

ser reconhecida contudo dadas as limitaccedilotildees do sujeito esse seu reconhecimento

facilmente ocasiona erros de valor que podem restringir o sujeito agrave sensibilidade

prendendo-o a prazeres inferiores O amor ao proacuteximo eacute a via segura a ser empreendida

e soacute ela parece dispensar o complemento inicial de algum dos outros modos de relaccedilatildeo

De qualquer modo por esta via o acesso agrave verdade e ao prazer do belo acabam por ser

um dado objecto eacute posta em relaccedilatildeo com uma ideia ou representaccedilatildeo mental abstracta e geral Para o

Bispo de Hipona o juiacutezo esteacutetico relaciona a percepccedilatildeo com uma ideia que ultrapassa a mente ndash natildeo eacute

uma representaccedilatildeo mas uma realidade concreta com existecircncia no plano inteligiacutevel agrave qual a mente acede

pela iluminaccedilatildeo divina

580 No sentido em que a prioridade dada a cada um desses juiacutezos em relaccedilatildeo aos outros eacute estabelecida

por uma escolha consciente do sujeito

203

sempre propiciados mas agora com a seguranccedila de um ordo amoris capaz de os

adequar quanto ao seu alcance e determinaccedilatildeo

A procura da verdade e a procura da beleza equivalem-se daiacute que em

Retractationum o Bispo de Hipona tenha escrito que a philosophia e a philocalia satildeo

uma e a mesma coisa581

Eacute como desejo (appetitus ou voluntas) que o amor se articula agrave

procura da beleza e da verdade mas eacute como caritas que estaacute impliacutecito na demanda da

bondade Eacute essa particularidade que determina o caraacutecter prioritaacuterio da eacutetica na ordem

do amor Todavia como os criteacuterios de bondade beleza e verdade no fundo se

correspondem todos eles acabam por estar implicados nos diversos tipos de relaccedilatildeo que

o sujeito estabelece com aquilo que o rodeia Na relaccedilatildeo esteacutetica que eacute aquela que nos

ocupa o criteacuterio da bondade marca presenccedila na afericcedilatildeo moral a que a alma sujeita a

sensaccedilatildeo ajuizando acerca da adequaccedilatildeo da sua resposta agrave impressatildeo no corpo o

criteacuterio da verdade acaba por ser tambeacutem a base dessa avaliaccedilatildeo pois ela implica uma

consciecircncia do estatuto ontoloacutegico dos elementos com os quais joga o processo

judicativo estatuto este que o criteacuterio da verdade eacute o mais apto a facultar

581

Cf Retr I 1 3 e vide p 175 da presente tese

204

42 - A verdade como criteacuterio do juiacutezo esteacutetico

De acordo com a perspectiva agostiniana o prazer que tem lugar na experiecircncia

esteacutetica eacute suscitado pela percepccedilatildeo de algo mais para laacute do objecto a partir do qual essa

mesma experiecircncia eacute desencadeada O objecto desperta no sujeito a sensaccedilatildeo primaacuteria

de prazer atraveacutes de propriedades sensiacuteveis como a simetria ou a suavidade poreacutem soacute

haacute experiecircncia esteacutetica pela recta avaliaccedilatildeo da sensaccedilatildeo e nessa altura a alma acede

necessariamente aos criteacuterios judicativos que lhe revelam natildeo ser predicado do objecto a

qualidade que apraz atraveacutes das suas propriedades sensiacuteveis Essa constataccedilatildeo desde

logo situa a experiecircncia esteacutetica na via da verdade Ao compreender o caraacutecter

transcendente daquilo que atrai e provoca prazer atraveacutes do objecto o sujeito

perspectiva a relaccedilatildeo entre duas realidades distintas uma inferior que o contextualiza

fisicamente e cujos indiacutecios lhe revelam uma outra realidade superior seguramente

mais viacutevida e verdadeira por natildeo estar sujeita agrave mutabilidade que caracteriza a sua

existecircncia terrena Como eacute a esta realidade superior que a alma aspira a sua relaccedilatildeo

com a esfera sensiacutevel eacute perspectivada segundo paracircmetros comparativos que lhe

permitem perceber o grau de proximidade ao plano inteligiacutevel que o seu modo de estar

no mundo determina Tais paracircmetros comparativos natildeo satildeo mais do que os criteacuterios

aos quais a alma recorre no processo de judicaccedilatildeo

Santo Agostinho diz que natildeo haacute nada de mais admiraacutevel e de mais belo do que a

verdade582

Mas natildeo soacute a verdade eacute bela como tambeacutem a beleza eacute verdadeira Sabendo

que no pensamento agostiniano a verdade se identifica com Deus583

ndash tal como o sumo

582

De vera relig 49 94 (CCL 32 p 249) laquoQuid ergo admirabilius quid speciosius ipsa veritate [hellip]raquo

583 Cf De lib arb II 15 39

205

bem ou o sumo belo ndash natildeo deveraacute suscitar estranheza a existecircncia de uma certa

comutabilidade entre os criteacuterios pelos quais se rege a actividade judicativa Do mesmo

modo que o bem eacute assumido como um dos criteacuterios do juiacutezo esteacutetico relativamente agrave

constataccedilatildeo da legitimidade da sensaccedilatildeo tambeacutem a verdade aiacute marca presenccedila de um

modo talvez ainda mais enfaacutetico do que o bem A desejaacutevel preeminecircncia inicial da

relaccedilatildeo eacutetica natildeo obsta a que o criteacuterio da verdade seja considerado a lei de qualquer

acto judicativo584

lei essa identificada com o Filho585

O acto judicativo eacute no fundo uma estrateacutegia natural e muitas vezes

inconsciente de direccionar a alma para a unidade jaacute que ela procura estabelecer e

colmatar a razatildeo do distanciamento entre o objecto alvo do juiacutezo e o criteacuterio judicativo

que eacute superior agrave alma e natildeo pode ser por seu turno ajuizado A procura de unidade

submete o sujeito e o objecto ao modelo arquetiacutepico do qual receberam o seu ser daiacute

que o homem seja tambeacutem ele julgado pela proacutepria lei segundo a qual julga aquilo que o

rodeia Ora as Sagradas Escrituras dizem que todos os homens deveratildeo comparecer ao

tribunal de Jesus Cristo (II Cor 5 10) pelo que eacute atraveacutes da sua lei a da Sabedoria que

qualquer juiacutezo deveraacute ser empreendido O Filho eacute a verdade que daacute a conhecer a

medida suprema586

Como tal ele preside interiormente e eacute a ele que a alma racional

consulta sempre que se interroga

Esta temaacutetica eacute clarificada em De Magistro onde Santo Agostinho explica a

Adeodato que Cristo eacute o uacutenico mestre capaz de ensinar algo ao homem a sua palavra

exterior adverte para que seja escutada a sua palavra interior587

que eacute a verdade

Qualquer outro suposto mestre nada pode ensinar uma vez que as palavras por si

utilizadas se limitam a referenciar coisas das quais o disciacutepulo jaacute tem conhecimento

preacutevio Sem esse conhecimento preacutevio o disciacutepulo sequer perceberia o significado das

palavras proferidas pelo mestre Haacute naturalmente comunicaccedilatildeo de ideias entre

interlocutores mas ao escutar o que o outro diz o sujeito manteacutem-se no acircmbito da

584

Cf De vera relig 30 56

585 Cf De vera relig 31 58

586 De beata vita 4 34 (CCL 29 p 84) laquoSed etiam summus modus necesse est ut verus modus sit Ut

igitur veritas modo gignitur ita modus veritate cognoscitur Neque igitur veritas sine modo neque modus

sine veritate unquam fuit Quis est Dei Filius Dictum est Veritasraquo

587 Cf De Mag 11 38 14 46

206

crenccedila e do plausiacutevel (probabilis)588

a menos que alcance pela proacutepria mente a verdade

daquilo que ouve Neste tipo de relaccedilatildeo pedagoacutegica natildeo haacute portanto um veicular de

verdades mas uma orientaccedilatildeo por parte do mestre que permite lembrar aquilo que o

disciacutepulo jaacute sabe Quase uma deacutecada volvida sobre o diaacutelogo De Magistro o Bispo de

Hipona reitera esta sua teoria em Contra epistulam Manichaei quam vocant fundamenti

referindo que por meio das palavras os homens podem despertar lembranccedilas uns nos

outros mas soacute aquele que realmente ensina eacute o mestre por excelecircncia o uacutenico Mestre

interior ndash tambeacutem epitetado por Santo Agostinho de Verdade incorruptiacutevel ndash que se fez

de mestre exterior para chamar o homem agrave sua interioridade589

A revelaccedilatildeo da verdade ocorre exclusivamente pela auscultaccedilatildeo do Mestre

interior que habita dentro de cada um e que ilumina a alma mediando a percepccedilatildeo das

verdades eternas domiciliadas em Deus O homem acede portanto agraves verdades eternas

imutaacuteveis e universais graccedilas agrave luz inteligiacutevel que lhe possibilita a visatildeo intelectual

Esta luz eacute Cristo que habita no homem interior e que permite passar da crenccedila para o

conhecimento da verdade Tal conhecimento da verdade natildeo eacute uma visatildeo directa da

Verdade transcendente identificada com Deus eacute sim uma percepccedilatildeo intelectual das

verdades fundamentais que manifestam a acccedilatildeo superior da Verdade divina590

Eacute nesta

relaccedilatildeo entre verdades fundamentais e Verdade pura transcendente que assenta o

caraacutecter simultaneamente imanente e transcendente da divindade em relaccedilatildeo ao homem

Ao aceder agraves verdades eternas o homem acede agrave derradeira Verdade (Deus) poreacutem natildeo

a vecirc ainda face a face mas sim como uma inteligibilidade de tudo o que existe591

Haacute entatildeo uma diferenciaccedilatildeo entre a Verdade eterna e verdades eternas sendo

que estas uacuteltimas correspondem agraves ideias ou razotildees existentes na mente de Deus que a

588

Cf Sol I 8 15

589 Contra ep fund 36 41 (CSEL 251 p 241) laquoPer homines enim commemoratio aliqua signis

verborum fieri potest docet autem unus verus magister ipsa incorruptibilis Veritas solus magister

interior qui etiam exterior factus est ut nos ab exterioribus ad interiora revocaret [hellip]raquo

590 Cf Dominique Doucet Augustin lexpeacuterience du verbe Paris Vrin 2004 p 83

591 Eacute assim que em Soliloquiorum Santo Agostinho estabelece um paralelo entre as trecircs propriedades que

podem ser distinguidas no sol corpoacutereo ndash que ele existe brilha e ilumina ndash e trecircs atributos divinos

segundo os quais Deus eacute Deus eacute inteligiacutevel e torna tudo o resto inteligiacutevel Sol I 8 15 (CSEL 89 p 23)

laquoErgo quomodo in hoc sole tria quaedam licet animadvertere quod est quod fulget quod illuminat ita in

illo secretissimo Deo quem vis intellegere tria quaedam sunt quod est quod intellegitur et quod caetera

facit intellegiraquo

207

mente humana intui592

As verdades eternas constituem-se como paradigmas e leis de

tudo o que existe natildeo se reduzindo a meras proposiccedilotildees loacutegicas ndash elas natildeo satildeo

abstracccedilotildees mas realidades com um estatuto infinitamente superior agraves coisas terrenas

Santo Agostinho natildeo eacute constante na terminologia que utiliza pelo que eacute possiacutevel

encontrarmos nas suas obras vaacuterias alusotildees distintas agraves leis pelas quais se rege a

actividade judicativa As verdades eternas satildeo leis593

como tambeacutem o satildeo as noccedilotildees

(notiones)594

e os princiacutepios racionais (rationes)595

Esta indeterminaccedilatildeo parece no

entanto delinear uma espeacutecie de ordem de derivaccedilatildeo pela qual se processa a aplicaccedilatildeo

do criteacuterio judicativo596

jaacute que os princiacutepios racionais tecircm um emprego mais concreto

em relaccedilatildeo ao objecto sobre o qual incide o juiacutezo da alma articulando a imagem mental

resultante da experiecircncia sensiacutevel com as notiones que satildeo por seu turno realidades

impressas na memoacuteria As rationes estatildeo inatamente presentes na memoacuteria597

e parecem

constituir-se como uma espeacutecie de estruturas mentais capazes de relacionar

caracteriacutesticas espaacutecio-temporais em termos de proporccedilotildees satildeo naturalmente de

natureza matemaacutetica no sentido em que aferem medidas e padrotildees mas ultrapassam os

esquemas algeacutebricos uma vez que o seu caraacutecter numeacuterico eacute consistente com o

reconhecimento da dimensatildeo qualitativa caracteriacutestica dos numeri598

Como tal os

princiacutepios racionais satildeo uma espeacutecie de funccedilatildeo da alma que permite estabelecer uma

referecircncia entre a percepccedilatildeo das caracteriacutesticas espaacutecio-temporais dos objectos e os

criteacuterios judicativos Assim Santo Agostinho diz que

Eacute segundo a lei da quadratura que se julgaraacute uma praccedila quadrada uma

pedra quadrada um quadro e uma joacuteia quadrada eacute segundo toda a lei da

igualdade que se julgaraacute harmoniosa a marcha de uma formiga bem como a

592

Cf De div quaest 83 46 2

593 Cf De lib arb II 10 29

594 Cf De Trin VIII 3 4

595 Cf Conf X 19 12 e De vera relig 30 56

596 Gilson nota que a iluminaccedilatildeo divina e os dispositivos mentais que lhe dizem respeito satildeo

essencialmente normativos o que corrobora esta nossa teoria acerca do papel das razotildees eternas das

noccedilotildees e dos princiacutepios racionais no processo judicativo Gilson op cit pp 119-124

597 Cf Conf X 19 12

598 Vide subcapiacutetulo I221 do presente ensaio

208

de um elefante [hellip] Uma vez que esta lei de todas as artes eacute absolutamente

imutaacutevel [hellip] parece evidente que haacute acima da nossa alma uma lei que eacute

chamada Verdade599

A Verdade parece poreacutem articular-se mais directamente com as notiones do que

com os princiacutepios racionais Santo Agostinho fala por exemplo da noccedilatildeo de

felicidade600

de justiccedila601

de bondade602

de sabedoria e de tudo o que nela se

subsume603

ndash cuja funccedilatildeo tanto parece ir no sentido da formulaccedilatildeo da lei judicativa

como no sentido do alcance cognoscitivo As noccedilotildees satildeo presenccedilas natildeo satildeo imagens e

funcionam como conceitos No caso da notio impressa constituiacuteda pela bem-aventuranccedila

tal como eacute exposta em De libero arbitrio Santo Agostinho iraacute referir-se-lhe tambeacutem em

Confessionum ao explicar que o homem deseja a felicidade eterna dado existir na

memoacuteria uma noccedilatildeo de felicidade que antecede tal desejo e que eacute projectiva pois

inscreve-se no tempo A origem de tal noccedilatildeo eacute contudo uma incoacutegnita para Santo

Agostinho mas estaacute associada agrave iluminaccedilatildeo da alma e o caraacutecter desiderativo que tal

noccedilatildeo assume corresponde agrave proacutepria acircnsia da Verdade e de Deus604

A noccedilatildeo natildeo eacute a

ideia ou verdade eterna mas uma espeacutecie de elo que liga a mente humana agrave mente

599

De vera relig 30 56 (CCL 32 p 224) laquoNunc vero cum secundum totam quadraturae legem iudicetur

et forum quadratum et lapis quadratus et tabella et gemma quadrata rursus secundum totam aequalitatis

legem iudicentur convenire sibi motus pedum currentis formicae et secundum eam gradientis elephanti

[hellip] Haec autem lex omnium artium cum sit omnino incommutabilis [hellip] satis apparet supra mentem

nostram esse legem quae veritas diciturraquo

600 De lib arb II 9 26 (CCL 29 p 254) laquoSicut ergo antequam beati simus mentibus tamen nostris

impressa est notio beatitatis per hanc enim scimus fidenterque et sine ulla dubitatione dicimus beatos

nos esse velleraquo

601 De lib arb I 13 27 (CCL 29 p 230) laquoNulla mihi alia iustitiae notio estraquo

602 De Trin VIII 3 4 (CCL 50 p 272) laquoNeque enim in his omnibus bonis vel quae commemoravi vel

quae alia cernuntur sive cogitantur diceremus aliud alio melius cum vere iudicamus nisi esset nobis

impressa notio ipsius boni secundum quod et probaremus aliquid et aliud alii praeponeremusraquo

603 De lib arb II 15 40 (CCL 29 p 264) laquoovit ergo insipiens sapientiam Non enim sicut iam dictum

est certus esset velle se esse sapientem idque oportere nisi notio sapientiae menti eius inhaereret sicut

earum rerum de quibus singillatim interrogatus respondisti quae ad ipsam sapientiam pertinent quorum

cognitione laetatus esraquo

604 Cf Conf X 20 29-30

209

divina605

e que permite ao homem ajuizar e desejar de acordo com as verdades eternas

A presenccedila das noccedilotildees faz-se notar na memoacuteria a partir das funccedilotildees que a reacccedilatildeo da

proacutepria alma aos estiacutemulos sensiacuteveis nela fez activar A simetria que por exemplo a

alma afere pela acccedilatildeo aferidora das rationes a partir de um estiacutemulo visual inicial seraacute

directamente reportadas agraves notiones e desta agraves verdades eternas numa coerecircncia que

permite integrar a multiplicidade na totalidade una e que possibilita a compreensatildeo da

infinitude no finito

A mesma loacutegica de intermediaccedilatildeo entre as dimensotildees humana e divina que este

esquema interior pressupotildee permite de certo modo estabelecer um paralelo com a acccedilatildeo

salviacutefica e mediadora de Cristo Eacute com efeito no Filho que a relaccedilatildeo entre beleza e

verdade melhor se compreende Sendo a mais perfeita imagem da beleza de todas as

belezas606

ou a semelhanccedila sem deformidade Cristo incarna no corpo terreno sem nada

perder desse seu atributo divino

Para aqueles que compreendem o Verbo feito carne eacute de uma suprema

beleza [hellip] belo eacute Deus o Verbo de Deus ele eacute belo no seio da Virgem

onde natildeo perdeu a divindade e assumiu a humanidade eacute belo o Verbo

nascido crianccedila pois enquanto crianccedila enquanto sugava o leite e era levado

nos braccedilos os ceacuteus falaram os anjos cantaram loas a estrela guiou o

caminho dos Magos foi adorado no preseacutepio ele que eacute o alimento dos

mansos Portanto eacute belo no ceacuteu belo na terra belo no uacutetero belo nos braccedilos

de seus pais belo nos milagres belo nos supliacutecios belo no convite agrave vida

belo no desinteresse pela morte belo no abandono da vida belo no

retomaacute-la belo na cruz belo no sepulcro belo no ceacuteu Escutai o canto no

intelecto e a enfermidade da carne natildeo desviaraacute os vossos olhos do esplendor

da sua beleza607

605 Haacute comentadores que natildeo partilham esta posiccedilatildeo Feacutelix Nourrisson por exemplo considera que as

notiones concernem ao intelecto divino e correspondem directamente agraves ideae formae ou species

Nourrisson La philosophie de Saint Augustin vol 2 2 ed Paris Didier et cie 1866 p 131

606 Conf III 6 10 (CCL 27 p 31) laquo[hellip] pulchritudo pulchrorum omniumraquo

607 En Ps 44 3 (CCL 38 p 495) laquoIntellegentibus autem et Verbum caro factum est magna pulchritudo

est [hellip] Pulcher Deus Verbum apud Deum pulcher in utero virginis ubi non amisit divinitatem et

sumpsit humanitatem pulcher natus infans Verbum quia et cum esset infans cum sugeret cum manibus

portaretur coeli locuti sunt Angeli laudes dixerunt Magos stella direxit adoratus est in praesepi cibaria

mansuetorum Pulcher ergo in coelo pulcher in terra pulcher in utero pulcher in manibus parentum

pulcher in miraculis pulcher in flagellis pulcher invitans ad vitam pulcher non curans mortem pulcher

deponens animam pulcher recipiens pulcher in ligno pulcher in sepulcro pulcher in coelo In

intellectum audite Canticum neque oculos vestros a splendore pulchritudinis illius avertat carnis

infirmitasraquo

210

Ainda que para os olhos sensiacuteveis a beleza do Verbo incarnado surja velada a

ponto de suscitar repulsa608

jaacute para os olhos da alma ela brilha em todo o seu

esplendor Significa isto que natildeo haacute acesso agrave beleza enquanto propriedade que

ultrapassa as propriedades sensiacuteveis dos corpos a menos que se atente agrave verdade

interior Cristo indica a via da humildade e do amor para o reconhecimento da

verdade a fealdade do seu corpo fustigado e crucificado comove suscitando

paradoxalmente a visatildeo da sua beleza ndash a verdadeira beleza Embora a Sagrada

Escritura se refira a Cristo como o mais formoso entre os filhos dos homens (Sl 453)

a sua beleza natildeo estaacute no seu corpo terreno mas no alcance iluminado da alma

humana que ele proacuteprio assegura Ao chamar o homem para a beleza o Filho natildeo soacute

mostra as leis da verdade eterna como embeleza a alma humana Cristo ama a

humanidade mesmo sendo ela ainda feia mas natildeo a ama na sua fealdade pois se

assim fosse tecirc-la-ia conservado Pelo contraacuterio ele vem precisamente para restaurar a

beleza609

Eacute assim que tambeacutem a beleza entra na dimensatildeo salviacutefica Citando Joseph

Ratzinger o Cristo crucificado atinge-nos ldquocom a seta da sua beleza paradoxal e soacute

entatildeo aprendemos a conhececirc-lo verdadeiramente sem intermediaacuterios Deste modo

encontramos a beleza da Verdade da Verdade que redimerdquo610

Fora do acircmbito concreto da Paixatildeo poderaacute ser um aspecto qualitativo a

determinar a esteticidade da experiecircncia mas tambeacutem natildeo eacute apenas o belo a ser

convocado como criteacuterio

608

Isaiacuteas diz que ldquoJesus natildeo tinha uma figura atraente nem formosura e olhando para Ele natildeo havia

beleza para que O contemplaacutessemosrdquo (Is 532) No versiacuteculo seguinte eacute referida a repulsa que suscitava

fazendo com que as pessoas dele desviassem o olhar

609 En Psa XLIV 3 (CCL 38 p 495) laquoIn principio erat Verbum et Verbum erat apud Deum et Deus

erat Verbum Gaudeat sponsa amata a Deo Quando amata Dum adhuc foeda Omnes enim peccaverunt

ait Apostolus et egent gloria Dei Et iterum Etenim Christus pro impiis mortuus est Amata est foeda ne

remaneret foeda Non enim vere foeda amata est quia non foeditas amata est nam si hoc amaret hoc

servaret evertit foeditatem formavit pulchritudinemraquo

610 Joseph Ratzinger Caminos de Jesucristo Madrid Ediciones Cristiandad 2004 p 41 Pouco mais agrave

frente desta passagem Ratzinger cita um famoso aforismo do romance O idiota de Dostoievski que diz

ldquoA beleza salvaraacute o mundordquo Cf Dostoievski O Idiota Lisboa Presenccedila 2001 p 396

211

[hellip] o juiacutezo da verdade surge e brilha sobranceiro firmado pelas regras

incorruptiacuteveis da sua lei e mesmo quase velado por uma nuvem de imagens

corporais ele natildeo se envolve nem se confunde com elas611

A verdade eterna entra necessariamente na judicaccedilatildeo da beleza das coisas

temporais sendo percebida pela intuiccedilatildeo da mente racional612

que adquire consciecircncia da

sua proacutepria probidade ndash logo do alcance da sua capacidade legisladora ndash precisamente

pela visatildeo da beleza ideal Este ponto de situaccedilatildeo que a beleza proporciona ao homem

em relaccedilatildeo a si mesmo eacute reportada agrave proacutepria inteligecircncia do transcendental daiacute que

Santo Agostinho diga que qual meacutedica a beleza ideal diagnostica a sanidade da alma e

determina quando se lhe deveraacute mostrar613

A beleza estaacute poreacutem sempre presente jaacute que

todas as coisas satildeo belas no seu geacutenero a alma eacute que soacute consegue perceber os diferentes

graus de perfeiccedilatildeo de acordo com a sua proacutepria beleza proporcional agrave grandeza que vai

adquirindo ao longo do processo evolutivo que eacute norteado em direcccedilatildeo agrave verdade

Assim a recorrecircncia ao criteacuterio do belo permite uma certa autoavaliaccedilatildeo da alma

coincidente com a proacutepria racionalidade impliacutecita nas condiccedilotildees de acesso a esse

criteacuterio a alma acederaacute a tanto mais beleza quanto maior for a sua capacidade para

reconhecer que a verdade natildeo estaacute na sua relaccedilatildeo sensiacutevel com o mundo jaacute que esse

reconhecimento eacute pressuposto pelo processo gradual de revelaccedilatildeo do proacuteprio criteacuterio de

beleza As coisas satildeo belas na medida em que espelham a sua origem divina

manifestando portanto a beleza suprema de Deus fundada no seu caraacutecter trinitaacuterio614

Apesar dessa beleza se revelar objectivamente para todos os homens natildeo eacute possiacutevel

afirmar que todos a vejam do mesmo modo As diferenccedilas na consideraccedilatildeo da beleza soacute

podem encontrar justificaccedilatildeo no erro da mente jaacute que nem todas as almas satildeo

suficientemente satildes para ver as leis da verdade615

Haacute uma espeacutecie de cegueira nas

611

De Trin IX 6 10 (CCL 50 p 301) laquoViget et claret desuper iudicium veritatis ac sui iuris

incorruptissimis regulis firmum est et si corporalium imaginum quasi quodam nubilo subtexitur non

tamen involvitur atque confunditurraquo

612 Ibid laquoItaque de istis secundum illam iudicamus et illam cernimus rationalis mentis intuituraquo

613 Cf Sol I 14 25-26

614 De Trin VI 10 12 (CCL 50 p 178) laquoIn illa enim Trinitate summa origo est rerum omnium et

perfectissima pulchritudo et beatissima delectatioraquo

615 Cf Sol I 13 23

212

almas impuras que as impede de reconhecer a presenccedila de Deus ainda que Ele esteja

em toda a parte616

Para estas as leis da verdade satildeo inuacuteteis e a beleza eacute vatilde

A beleza assenta num contexto relacional quer no que concerne agraves suas

manifestaccedilotildees temporais (como qualidade que marca presenccedila atraveacutes das formas

sensiacuteveis) quer no que concerne ao seu reconhecimento como lei que tambeacutem pode ser

traccedilado atraveacutes do nuacutemero617

Ainda que todos os corpos sejam verdadeiros eles satildeo

igualmente uma falsa unidade ou uma unidade relativa que o juiacutezo esteacutetico leva em

conta cotejando a unidade das pessoas divinas com a estrutura triaacutedica dos corpos (peso

nuacutemero e medida) que eacute um vestiacutegio dessa unidade primordial Nesta relaccedilatildeo

comparativa a beleza eacute aferida em termos de verdade quatildeo maior for a consciecircncia de

que eacute falsa a unidade dos corpos melhor se poderaacute fruir a sua beleza618

pois soacute assim

haveraacute condiccedilotildees para compreender a remissatildeo do objecto para a qualidade que

ultrapassa as suas caracteriacutesticas fiacutesicas Assim a beleza de algo eacute proporcional ao

reconhecimento que propiciar do seu arqueacutetipo

A presenccedila da verdade divina na realidade criada daacute-se tal como anteriormente

vimos atraveacutes dos nuacutemeros e eacute em virtude do poder de significaccedilatildeo da sua beleza que

os homens podem atender a tal revelaccedilatildeo da verdade no criado Embora se destinem agrave

razatildeo os nuacutemeros atraem tambeacutem pelo apelo aos sentidos corpoacutereos eacute na sua aparecircncia

ou exterioridade que a verdade convoca o homem mas eacute pela interioridade da alma que

ela se daacute a conhecer como sendo a razatildeo de tal atracccedilatildeo A escala de belezas eacute como

uma orientaccedilatildeo de percurso que direcciona ascendentemente a alma e que amplia a sua

capacidade de fruiccedilatildeo a cada patamar A alma atenta e virtuosa percebe que a beleza do

percurso eacute providenciada pela sabedoria (sapientia) que deseja alcanccedilar e natildeo se prende

agraves belezas inferiores jaacute que tal providecircncia pela diferenciaccedilatildeo impliacutecita na hierarquia

faz com que a alma aspire sempre ao que estaacute para laacute dessas belezas sucessivamente de

modo que o proacuteprio percurso seja assumido na urgecircncia da sua transitoriedade619

Eacute a

diferenciaccedilatildeo entre graus de beleza que permite evitar que a alma fique presa aos

prazeres que deles colhe

616

Cf De div quaest 83 12

617 Cf Carol Harrison Beauty and revelation in the thought of Saint Augustine p 22 onde Harrison nota

que o numerus eacute sinoacutenimo da verdade e tambeacutem da beleza

618 Cf De vera relig 34 64

619 Cf De lib arb II 17 45

213

A proacutepria temporalidade e a mutabilidade podem ser consideradas uma

caracteriacutestica da manifestaccedilatildeo do belo jaacute que numa perspectiva totalizadora apontam

para a necessidade de progressatildeo e cumprem o papel admonitoacuterio que efectivamente

cabe agraves belezas corpoacutereas A verdadeira realidade que eacute invisiacutevel aos olhos carnais eacute

tornada visiacutevel para os olhos da alma a partir da convocaccedilatildeo que os sensibilia fazem

natildeo soacute positivamente como vestiacutegios ou traccedilos do divino que os originou mas tambeacutem

como exemplos negativos ou admonitiones620

Ambos os modos de perspectivar as

belezas temporais tecircm por horizonte a verdade no primeiro caso permitindo o seu

vislumbre pela similitudo e no segundo caso advertindo para o facto de essa semelhanccedila

implicar tambeacutem distanciamento e diferenccedila face agrave verdade Se a realidade sensiacutevel eacute

um indicador da beleza e da verdade da esfera inteligiacutevel ela eacute simultaneamente um

indicador da natureza participada e deficitaacuteria das belezas temporais621

A beleza soacute eacute

verdadeira na alma622

logo soacute eacute verdadeira quando posta em relaccedilatildeo com o seu criteacuterio

A beleza eacute verdade tambeacutem no sentido em que indica a existecircncia de uma

inteligecircncia na organizaccedilatildeo do mundo talvez seja nesse sentido que Joseph Ratzinger

fala da beleza como coerecircncia da criaccedilatildeo e da recepccedilatildeo que o homem faz da obra

divina623

ou que Tina Manferdini refere que na perspectiva agostiniana a beleza eacute

como uma ldquoqualidade unificante do universordquo que a alma apreende quando unificada e

centrada em si mesma624

Nessa mesma senda Hans Urs von Balthasar nota que para o

Bispo de Hipona o modo como Deus se torna manifesto aos homens parece pressupor

ldquoa capacidade esteacutetica de reconhecimento da qualidade do eterno e do divino na verdade

(hellip) caso contraacuterio [a mente] pode falhar a real experiecircncia da verdaderdquo625

A real

620

O mesmo constata Joseacute Rosa que escreve laquo[] o exterior eacute uma admoniccedilatildeo constante para a alma a

realidade estaacute cheia de sinais assim a alma os saiba lerraquo Joseacute Silva Rosa Em busca do centro

Investigaccedilotildees sobre a noccedilatildeo de ordem na obra de Santo Agostinho Periacuteodo de Cassiciacuteaco Lisboa UCP

1999 p 171

621 Cf Conf XI 4 6

622 Cf Ep 3 4

623 Joseph Ratzinger Introduzione allo spirito della liturgia San Paolo Cinisello Balsamo 2001 p 149

624 Tina Manferdini Bologna Comunicazione ed estetica in SantAgostino Edizioni Studio Domenicano

2005 p 102

625 Hans Urs von Balthasar The glory of the Lord Studies in theological style clerical styles Andrew Louth

Francis McDonagh and Brian McNeil (trans) John Riches (ed) EdinburghT amp T Clark 1985 p 111

214

experiecircncia da verdade implicaraacute assim um elemento aglutinador que lhe aponha

caracteriacutesticas qualitativas de outro modo ausentes e que dela fariam um mero exerciacutecio

de loacutegica Esse elemento aglutinador que daacute consistecircncia qualitativa agrave verdade eacute a

esteacutetica Quando von Balthasar fala na qualidade do eterno e do divino estaacute a apontar

para aquilo que entre os seus atributos provoca uma especial comoccedilatildeo A experiecircncia de

Deus eacute um modo de estar qualitativo beatiacutefico que poderaacute ser considerado como

correspondente a um cliacutemace infindo e sereno do prazer Conforme vimos no

subcapiacutetulo anterior natildeo haacute diferenccedilas fundamentais entre o prazer esteacutetico e os outros

prazeres que envolvam reflexatildeo pelo que qualquer prazer pode ser um prazer esteacutetico

A felicidade eterna eacute de ordem esteacutetica precisamente porque do alcance congregado do

bem da verdade e do belo resulta uma disposiccedilatildeo de harmonia no composto alma-corpo

cujo prazer eacute a caracteriacutestica que mais ressalta O corpo ressurrecto com os seus oacutergatildeos

da sensibilidade activos na esfera da pura inteligibilidade indicia precisamente a

possibilidade da autonomia da experiecircncia esteacutetica face a Deus os sentidos corpoacutereos

satildeo desnecessaacuterios e poreacutem mantecircm-se como um boacutenus extra da contemplaccedilatildeo divina

Natildeo haacute outra finalidade no seu uso que natildeo seja a do prazer

Na existecircncia terrena a real experiecircncia da verdade tem de ser anagoacutegica aleacutem

de apofacircntica caso contraacuterio tambeacutem ela seria de certo modo vatilde porque apontaria

apenas para o caminho e natildeo para a finalidade A dimensatildeo qualitativa necessaacuteria

implica obviamente a feacute no Redentor A iluminaccedilatildeo divina eacute uma participaccedilatildeo no

Verbo626

onde a verdade e a beleza satildeo uma soacute Na teoria agostiniana a verdade

convoca o homem pela beleza e a beleza convoca o homem para a verdade pelo que

desconsiderar a beleza equivale a negligenciar a verdade

626

De Trin IV 2 4 (CCL 50 p 163) laquoIlluminatio quippe nostra participatio Verbi est illius scilicet

vitae quae lux est hominumraquo

215

43 - Imagem signo e alegoria

As imagens tecircm por constante o facto de obedecerem a um modelo face ao qual

mantecircm uma semelhanccedila mais ou menos acentuada Delas parece assim fazer parte uma

falsidade constitutiva jaacute que vivem da remissatildeo ao modelo graccedilas a atributos comuns

ou anaacutelogos que podem induzir o sujeito a relacionar-se com elas tal como se

relacionaria com o modelo sem levar em consideraccedilatildeo o estatuto secundaacuterio ndash porque

procedente ndash das imagens Para o Bispo de Hipona a questatildeo da falsidade e do caraacutecter

secundaacuterio da imagem natildeo parece no entanto perspectivar-se de um modo assim

depreciativo Santo Agostinho utiliza o termo imago em contextos vaacuterios e com

diferentes acepccedilotildees que vatildeo desde as representaccedilotildees materiais (como o satildeo as pinturas

ou os iacutedolos) passando pelas representaccedilotildees mentais ateacute agrave relaccedilatildeo de semelhanccedila entre

o homem e Deus e de igualdade entre Cristo e Deus Pai

Desde logo em relaccedilatildeo ao Filho como imagem de Deus seria um contra-senso

perspectivar negativamente a imagem sabendo que o Filho eacute tido como via de acesso agrave

Verdade Em De diversis quaestionibus octoginta tribus tal problema eacute esclarecido

precisamente atraveacutes da distinccedilatildeo entre imagem igualdade e semelhanccedila

[hellip] onde haacute imagem haacute por conseguinte semelhanccedila natildeo necessariamente

igualdade onde haacute igualdade haacute tambeacutem semelhanccedila natildeo necessariamente

imagem onde haacute semelhanccedila natildeo haacute necessariamente imagem nem haacute

necessariamente igualdade Onde haacute imagem haacute por conseguinte

semelhanccedila natildeo necessariamente igualdade assim no espelho haacute a imagem

do homem porque a partir dele se manifesta haacute tambeacutem necessariamente

semelhanccedila mas natildeo igualdade pois faltam agrave imagem muitos elementos que

pertencem agrave coisa da qual eacute expressatildeo Onde haacute igualdade haacute por

conseguinte semelhanccedila natildeo necessariamente imagem tal como em dois

ovos iguais haacute igualdade e haacute semelhanccedila Tudo aquilo que estaacute presente

num estaacute presente no outro natildeo haacute poreacutem imagem porque um natildeo eacute

216

expressatildeo do outro Onde haacute semelhanccedila natildeo haacute necessariamente imagem

nem igualdade cada ovo com efeito enquanto ovo eacute semelhante a outro

ovo mas o ovo da perdiz ainda que semelhante ao ovo da galinha natildeo eacute

contudo sua imagem pois natildeo se manifesta a partir dele nem eacute igual pois eacute

mais pequeno e de outra espeacutecie animal Mas quando eacute dito natildeo

necessariamente entende-se que tal pode ocorrer agraves vezes Pode portanto

haver uma imagem naquilo que tambeacutem eacute igualdade tal como entre pais e

filhos seria encontrada imagem igualdade e semelhanccedila se natildeo houvesse

intervalo de tempo com efeito a semelhanccedila do filho eacute expressa a partir do

pai pelo que eacute correctamente chamada imagem e [essa semelhanccedila] pode

ser tal a ponto de ser correctamente chamada igualdade se natildeo houver

precedecircncia temporal do pai Daqui se percebe que por vezes a igualdade

comporta natildeo apenas semelhanccedila mas tambeacutem imagem tal como ficou

claro no exemplo acima Por vezes tambeacutem pode haver semelhanccedila e

igualdade sem que haja imagem tal como se disse dos ovos iguais Pode

ainda haver semelhanccedila e imagem ainda que natildeo haja igualdade como

mostraacutemos no caso do espelho Pode ainda haver semelhanccedila onde haacute

igualdade e imagem como notaacutemos nos filhos desde que natildeo haja

precedecircncia temporal dos pais [hellip] Mas em virtude de em Deus se excluir a

condiccedilatildeo temporal natildeo se pode considerar que Deus tenha gerado no tempo

o Filho atraveacutes do qual fundou os tempos por conseguinte Ele natildeo eacute apenas

a imagem do Pai porque Dele procede e semelhanccedila porque eacute Sua imagem

mas tambeacutem notaacutevel igualdade a ponto de nem mesmo haver o

impedimento do intervalo temporal 627

627

De div quaest 83 74 (CCL 44A p 213) laquoImago et aequalitas et similitudo distinguenda sunt quia

ubi imago continuo similitudo non continuo aequalitas ubi aequalitas continuo similitudo non continuo

imago ubi similitudo non continuo imago non continuo aequalitas Ubi imago continuo similitudo non

continuo aequalitas ut in speculo est imago hominis quia de illo expressa est est etiam necessario

similitudo non tamen aequalitas quia multa desunt imagini quae insunt illi rei de qua expressa est Ubi

aequalitas continuo similitudo non continuo imago velut in duobus ovis paribus quia inest aequalitas

inest et similitudo quaecumque enim adsunt uni adsunt et alteri imago tamen non est quia neutrum de

altero expressum est Ubi similitudo non continuo imago non continuo aequalitas omne quippe ovum

omni ovo in quantum ovum est simile est sed ovum perdicis quamvis in quantum ovum est simile sit

ovo gallinae nec imago tamen eius est quia non de illo expressum est nec aequale quia et brevius est et

alterius generis animantium Sed ubi dicitur non continuo utique intellegitur quia esse aliquando potest

Potest ergo esse aliqua imago in qua sit etiam aequalitas ut in parentibus et filiis inveniretur imago et

aequalitas et similitudo si intervallum temporis defuisset nam et de parente expressa est similitudo filii

ut recte imago dicatur et potest esse tanta ut recte etiam dicatur aequalitas nisi quod parens tempore

praecedit Ex quo intellegitur et aequalitatem aliquando non solum similitudinem habere sed etiam

imaginem quod in superiore exemplo manifestatum est Potest etiam aliquando esse similitudo et

aequalitas quamvis non sit imago ut de ovis paribus diximus Potest et similitudo et imago esse quamvis

non sit aequalitas ut in speculo ostendimus Potest et similitudo esse ubi et aequalitas et imago sit sicut

de filiis commemoravimus excepto tempore quo praecedunt parentes [hellip] In Deo autem quia conditio

temporis vacat non enim potest recte videri Deus in tempore generasse Filium per quem condidit

tempora consequens est ut non solum imago eius sit quia de illo est et similitudo quia imago est sed

etiam aequalitas tanta ut nec temporis intervallum impedimento sitraquo

217

O facto do Filho se constituir como imagem do Pai em nada o afasta ou

diferencia da Verdade Eles satildeo tidos como iguais uma vez que natildeo haacute precedecircncia

temporal de um sobre o outro e que a sua semelhanccedila eacute perfeita A imagem configura-se

como um tipo especial de semelhanccedila e neste caso ela ocorre por uma ordem de

procedecircncia que natildeo implica a precedecircncia do Pai nem a superioridade do modelo em

relaccedilatildeo agrave coacutepia jaacute que Deus Pai natildeo eacute mais do que Deus Filho

O Espiacuterito Santo apesar de manifestar todos os atributos da deidade natildeo eacute

considerado como a imagem do Pai pois natildeo procede unicamente Dele mas da Sua

relaccedilatildeo com o Filho O Espiacuterito Santo eacute o Dom comum e eacute espiacuterito de ambos628

ele natildeo

eacute portanto imagem mas afinidade amorosa Como terceira pessoa da Trindade Ele estaacute

no entanto impliacutecito na imago Dei presente no homem629

Nas suas obras mais tardias Santo Agostinho afirma que o homem pode ser

correctamente tido como imagem de Deus contrastando com a sua posiccedilatildeo inicial de

que soacute o Filho assim deve ser considerado Ateacute cerca de 396 Santo Agostinho

cautelosamente afirmava apenas que o homem era feito agrave imagem e semelhanccedila de

Deus (ad imaginem et similitudinem)630

tal como eacute dito em Gn 1 26 As leituras

paulinas631

que entretanto faz e que salientam o facto de o homem ser imagem e natildeo

apenas ser agrave imagem de Deus determinam uma inflexatildeo no seu pensamento O Bispo

de Hipona parece a partir de entatildeo cortar com a tradiccedilatildeo da patriacutestica grega segundo a

qual a semelhanccedila revela um estatuto mais depurado do que a imagem632

Ireneu por

exemplo considerava que o homem nascia agrave imagem de Deus mas a semelhanccedila soacute era

adquirida apoacutes o percurso de aperfeiccediloamento e reformaccedilatildeo pela graccedila de Cristo A sua

concepccedilatildeo de imagem era assim bem mais abrangente do que a de semelhanccedila como se

628

De Trin XV 17 29 (CCL 50 p 504) laquoSic ergo eum genuit ut etiam de illo Donum commune

procederet et Spiritus Sanctus spiritus esset amborumraquo

629 De Gen ad litt imp XVI 61 (CSEL 28 p 502) laquoIlle autem sensus est potius in his divinis verbis

eligendos ut ideo non dictum intellegamus singulariter sed pluraliter Faciamus hominem ad imaginem

et similitudinem nostram quia non ad solius Patris aut solius Filii aut solius Spiritus sancti sed ad ipsius

Trinitatis imaginem factus est homo (hellip) ita dictum est Fecit Deus hominem ad imaginem Dei tamquam

diceretur ad imaginem suam quod est ipsa Trinitasraquo

630 Cf De div quaest 83 51 4

631 Por exemplo I Cor 11 7 que Santo Agostinho cita em De Trin VII 6 12 e em Retr I 26

632 Cf Quaest Hept V 4

218

esta uacuteltima fosse um refinamento posterior da primeira633

Para Santo Agostinho a

semelhanccedila natildeo deveria no entanto acrescentar nada agrave imagem pois natildeo eacute uma meta

para laacute dessa imagem de Deus no homem nem se adquire posteriormente Ela tem um

caraacutecter mais geral do que a imagem e eacute dita por exemplo em relaccedilatildeo a uma estaacutetua ou

agrave representaccedilatildeo de um qualquer homem ao passo que a imagem se refere a um sujeito

particular cujos traccedilos satildeo reproduzidos por um pintor ou estatuaacuterio634

Em termos salviacuteficos a semelhanccedila parece constituir-se como o caraacutecter

dinacircmico do processo de retorno da alma agrave sua proacutepria natureza A reformaccedilatildeo que

implica a saiacuteda da regiatildeo da dissemelhanccedila635

tem sempre a imagem de Deus como

horizonte A imagem de Deus no homem natildeo eacute coeterna nem consubstancial ao seu

modelo como ocorre no caso da imagem de Deus no Filho onde estaacute impliacutecita a

igualdade assim a imagem no homem precisa de ser reformada para se assemelhar

mais ao modelo636

Contrariamente agrave tradiccedilatildeo patriacutestica grega natildeo significa isto que a

semelhanccedila natildeo estivesse jaacute presente no homem desde o iniacutecio a par da imagem ndash a

imagem continua a implicar semelhanccedila tal como o Bispo de Hipona o testemunha em

De diversis quaestionibus octoginta tribus 51 4 ndash mas sim que ela tem diversos graus

sendo o mais alto deles a igualdade apenas predicaacutevel ao Filho Eacute graccedilas a esta

perspectiva que Santo Agostinho pode sem hesitaccedilatildeo defender a tese paulina de que o

homem eacute imagem de Deus aleacutem de ser agrave imagem de Deus Mais do que a semelhanccedila

passiacutevel de ser granjeada haacute na alma a presenccedila efectiva de Deus Deus estaacute presente na

imagem e ao encontrar a imagem o homem pode encontrar Deus ainda que se trate de

um encontro enigmaacutetico e obscuro jaacute que se daacute como por um espelho (I Cor 13 12)637

Natildeo eacute na sua integridade que o homem eacute imagem de Deus uma vez que o corpo

fica de fora de tal relaccedilatildeo especular Soacute a mente por ser iluminada possui uma estrutura

ontoloacutegica na qual pode ser reconhecida a reverberaccedilatildeo da divindade Vaacuterios niacuteveis

trinitaacuterios satildeo apontados pelo Bispo de Hipona na anaacutelise que faz da mente humana com

633

Sobre este assunto cf R A Markus laquoldquoImagordquo and ldquoSimilituderdquo in Augustineraquo REAug Vol 10 nordm

2-3 1964 p 126

634 Cf Quaest Hept IV 16

635 Cf Conf VII 10 16

636 Cf De civ Dei XI 26

637 Cf De Trin XV 8 14 XV 9 16 XV 10 20 XV 24 44

219

o intuito de nela encontrar a imagem de Deus No nono livro de De Trinitate Santo

Agostinho refere a trindade constituiacuteda pela mens notitia e amor638

ou seja constituiacuteda

pela mente pelo conhecimento que tem de si mesma e pelo amor que ela tem por si e

pelo seu proacuteprio conhecimento Os elementos desta triacuteade satildeo iguais e de uma soacute

essecircncia No deacutecimo livro a anaacutelise levada a cabo por Santo Agostinho condu-lo a uma

trindade da alma mais evidente que eacute constituiacuteda pela memoria pela intellegentia e

pela voluntas No deacutecimo quinto livro esta mesma triacuteade surge como memoria

intellectus e amor e eacute explicitado que os seus elementos satildeo como actos da alma atraveacutes

dos quais o homem se lembra compreende e ama pelo que pertencem ao homem ainda

que ele natildeo seja essas coisas639

Isso diferencia a trindade da alma da Trindade divina

que na simplicidade da sua natureza eacute Deus uni-trino possui e eacute trecircs pessoas (o Pai o

Filho e o Espiacuterito Santo) numa soacute substacircncia Aleacutem disso contrariamente agrave Trindade

divina cujas pessoas permanecem imutaacuteveis e eternamente iguais a si mesmas os

elementos da trindade da alma diferem entre si ao longo da vida de uma pessoa e cada

um deles tem um alcance distinto de pessoa para pessoa640

O filoacutesofo africano salienta a importacircncia da consciecircncia de si (notitia sui) que a

alma possui na mente e que lhe permite estar certa da sua proacutepria existecircncia e desejar

conhecer-se Na relaccedilatildeo consigo mesma essa consciecircncia eacute portanto memoacuteria

inteligecircncia e vontade delineando assim uma imagem permanente e essencial a que o

homem acede quando se conhece (nosse se) Com base na interpretaccedilatildeo que faz dos

capiacutetulos 13 a 15 do uacuteltimo livro de De Trinitate H Somers defende que ao pensar-se

de modo particular (cogitare se) a mente apresenta uma outra imagem contingente e

actual determinada pela estrutura mens verbum e dilectio Para Somers eacute somente

nesta uacuteltima triacuteade que Santo Agostinho consideraria estar a verdadeira imagem de Deus

na alma641

A ecircnfase dada pelo Bispo de Hipona agrave trindade que o noscere se

determina parece todavia contrariar esta posiccedilatildeo indo sim totalmente de encontro agrave

638

Cf De Trin IX passim Cf igualmente De Trin XV 6 10 onde esta triacuteade eacute apresentada como mens

notitia e dilectio

639 Cf De Trin XV 22 42

640 Cf De Trin XV 23 43

641 H Somers laquoLa gnose augustinienne sens et valeur de la doctrine de lrsquoimageraquo REAug vol 7 nordm1

1961 p 5

220

perspectiva que desenvolvemos a este propoacutesito no subcapiacutetulo dedicado ao sentido

interior e agrave memoacuteria642

Tal como a consideraccedilatildeo agostiniana do Filho como imagem do Pai natildeo

pressupunha qualquer caraacutecter falaz em relaccedilatildeo agrave imagem tambeacutem o reconhecimento da

imago Dei na mente natildeo coloca a toacutenica na diferenccedila ou no afastamento entre a

Trindade divina e a trindade da alma ainda que esta seja uma imagem imperfeita e sem

a plenitude da semelhanccedila ou igualdade que a imagem do Filho possui em relaccedilatildeo ao

Pai Com efeito Santo Agostinho estava sobretudo interessado em explorar a

possibilidade de uma aptidatildeo especular da alma que permitisse o vislumbre de Deus A

imago Dei funciona como um espelho no qual Deus se reflecte e se mostra agrave criatura

atraveacutes dela mesma A imagem eacute a proacutepria mente e ela daacute a ver pela semelhanccedila ndash ou

seja como que por um espelho ndash o Criador643

Apesar de actuar como um medium o espelho traduz o funcionamento de um

dispositivo de proximidade tal como Santo Agostinho enfatiza ao clarificar o

versiacuteculo de S Paulo presente em I Cor 1312 Porque agora vemos por espelho em

enigma mas entatildeo veremos face a face agora conheccedilo em parte mas entatildeo

conhecerei como tambeacutem sou conhecido644

O Bispo de Hipona estabelece um paralelo

entre este versiacuteculo e uma outra passagem paulina ndash E todos noacutes com o rosto

desvendado contemplando (speculantes) como por espelho a gloacuteria do Senhor somos

transformados de gloacuteria em gloacuteria na sua proacutepria imagem (II Cor 318) ndash para

salientar que o espelho (speculum) natildeo tem aqui o sentido de ponto de vista

diferenciando-se portanto da palavra specula que significa um lugar elevado onde a

nossa vista pode ter maior alcance645

Assim ver por espelho descarta a ideia de uma

visatildeo agrave distacircncia e indicia que natildeo eacute o homem que se posiciona num qualquer ponto

conveniente para por si alcanccedilar a visatildeo de Deus mas que eacute Deus que faculta ao

homem a perspectiva necessaacuteria para a sua visatildeo atraveacutes da imagem

642

Vide p 89 do presente ensaio

643 Cf De Trin XV 8 14

644 Videmus nunc per speculum in aegnigmate tuc autem facie ad faciem Nunc cognosco ex parte tunc

autem cognoscam sicut et cognitus sum

645 Cf De Trin XV 8 14

221

O ofuscamento que a visatildeo directa de Deus poderia provocar eacute resolvido atraveacutes

do espelho Na eacutepoca em que S Paulo escreveu as suas epiacutestolas um espelho era uma

superfiacutecie metaacutelica polida com uma capacidade de reflexatildeo diferente da dos espelhos

hodiernos A imagem reflectida seria bastante menos luminosa e definida daiacute que

quando eacute dito que a visatildeo eacute in aenigmate eacute a dimensatildeo alegoacuterica da imagem que estaacute a

ser enfatizada Deus que eacute luz (Jo 1 5) eacute vislumbrado atraveacutes da obscuridade Santo

Agostinho afirma que todo o enigma eacute uma alegoria obscura embora nem todas as

alegorias sejam enigmas e explica que o versiacuteculo paulino significa que vemos Deus

atraveacutes de uma imagem cuja semelhanccedila obscura com o modelo eacute difiacutecil de alcanccedilar646

Deus esconde-se para que o homem o possa vislumbrar sem se ofuscar portanto Deus

esconde-se natildeo para se ocultar mas precisamente para melhor se revelar Eacute na imagem

o seu esconderijo e a imagem de Deus eacute a proacutepria mente humana Por um lado o mestre

hiponense salienta atraveacutes do enigma a dificuldade impliacutecita no alcance de Deus e647

por outro lado atraveacutes do espelho reporta a visatildeo da divindade ao proacuteprio pensamento

ou visatildeo da alma pelo olho interior salientando paralelamente a sua capacidade para

alcanccedilar Deus pelo simples facto de se alcanccedilar a si mesmo Deus eacute difiacutecil poreacutem

acessiacutevel ao homem cuja perspectiva pouco favoraacutevel implica que a revelaccedilatildeo se

processe paradoxalmente por uma certa obscuridade providencial ou enigma que a

iluminaccedilatildeo permite desvelar

Tambeacutem a palavra humana reflecte per speculum et in aenigmate a inefaacutevel

palavra de Deus648

Ao conhecer algo o homem forma dentro de si uma palavra que eacute

na verdade uma visatildeo da visatildeo do conhecimento tal como o satildeo os pensamentos

verdadeiros649

A palavra e a visatildeo satildeo uma soacute coisa no interior do homem poreacutem

quando o pensamento se exterioriza a palavra e a visatildeo satildeo naturalmente distintas

Aquele que for capaz de escutar a palavra antes que ela ressoe e antes mesmo de o

pensamento se ocupar das imagens dos seus sons eacute tambeacutem capaz de ver jaacute ndash atraveacutes do

tal espelho e em enigma ndash certa semelhanccedila do Verbo supremo que eacute o Verbo presente

646

Cf De Trin XV 9 15 e 16

647 De Trin XV 9 16 (CCL 50 p 482) laquoNomen quippe hic non sonaret aenigmatis si esset facilitas

visionisraquo

648 Cf De Trin XV 11 20

649 Cf De Trin XV 10 18

222

no Evangelho Joanino No princiacutepio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo

era Deus (Jo 11)650

O Bispo de Hipona defende que ao dizermos a verdade portanto

ao dizermos aquilo que sabemos a palavra proveacutem da ciecircncia conservada na memoacuteria e

eacute necessariamente de natureza igual agrave da ciecircncia O pensamento formado a partir

daquilo que sabemos eacute a palavra que formamos no nosso coraccedilatildeo651

e que natildeo se

confina a uma qualquer liacutengua Eacute a necessidade de partilhaacute-la de transmiti-la a

terceiros que faz com que recorramos a signos para exprimi-la

A modulaccedilatildeo do som ou os gestos constituem-se como signos que permitem dar

a conhecer aos outros atraveacutes dos seus sentidos corpoacutereos a nossa palavra interior O

acto de se expressar atraveacutes de gestos (innuere) eacute um modo de tornar a palavra visiacutevel

tal como o acto de falar torna a palavra audiacutevel Aleacutem dos signos corporais como o som

ou os gestos haacute ainda os signos escritos que servem para expressar a palavra de um

homem sem que este esteja necessariamente presente A palavra escrita eacute assim o signo

da palavra dita que por seu turno eacute o signo daquilo que pensamos652

ou seja da nossa

palavra interior mais propriamente dita verbo que se exterioriza para se dar a conhecer

aos outros homens tal como o Verbo de Deus se fez carne para se manifestar aos

sentidos dos homens

A palavra que tem origem na nossa ciecircncia eacute obviamente muito distinta da

Palavra nascida da ciecircncia de Deus pois a ciecircncia do homem e a ciecircncia de Deus natildeo

satildeo iguais A ciecircncia de Deus eacute a sua sapiecircncia que eacute tambeacutem a sua proacutepria essecircncia ou

substacircncia (ipsa essentia sive substantia) A ciecircncia humana difere do ser e da

substacircncia do homem pois este pode ser sem saber O Verbo de Deus natildeo apenas

recebe do Pai o seu conhecimento como o seu ser pois em Deus ser e conhecer satildeo

uma e a mesma coisa653

Como que expressando-se o Pai engendrou o Verbo na sua

650

Cf De Trin XV 10 19

651 O verbum cordis eacute tambeacutem chamado por Santo Agostinho verbum mentis Cf Claude Panaccio Le

Discours Inteacuterieur de Platon agrave Guillaume drsquoOckham Paris Seuil 1999 p 94 et seq

652 Ibid (CCL 50A p 485) laquoSed haec atque huiusmodi signa corporalia sive auribus sive oculis

praesentibus quibus loquimur exhibemus inventae sunt autem litterae per quas possemus et cum

absentibus colloqui sed ista signa sunt vocum cum ipsae voces in sermone nostro earum quas cogitamus

signa sint rerumraquo

653 De Trin XV 14 23 (CCL 50A p 496) laquoVerbum ergo Dei Patris unigenitus Filius per omnia Patri

similis et aequalis Deus de Deo lumen de lumine sapientia de sapientia essentia de essentia est hoc

omnino quod Pater non tamen Pater quia iste Filius ille Pater Ac per hoc novit omnia quae novit Pater

sed ei nosse de Patre est sicut esse Nosse enim et esse ibi unum estraquo

223

perfeita igualdade sendo que aquilo que constitui a sua omnisciecircncia estaacute tambeacutem no

Filho que por isso eacute considerado como Verdade de Deus Deus Pai conhece todas as

coisas em si mesmo e conhece-as no Filho em si mesmo como Si e no Filho como

Seu Verbo654

Tambeacutem o Filho conhece portanto todas as coisas em si mesmo como

coisas nascidas daquelas que o Pai conhece em Si e no Pai como coisas de onde

nascem aquelas que o Filho conhece em si Natildeo se trata de coisas diferentes mas das

Ideias que se constituem como Sabedoria divina no Filho O Pai e o Filho sabem

reciprocamente um ao gerar e o outro ao nascer

O Verbo eacute a Verdade ao passo que o verbo humano soacute eacute verdadeiro na medida

em que proveacutem daquilo que conhecemos Quando duvidamos o verbo natildeo nasce do que

conhecemos mas da proacutepria duacutevida e ao sabermos que duvidamos o verbo daiacute

decorrente eacute verdadeiro Quando mentimos eacute porque originamos voluntaacuteria e

conscientemente um verbo falso Ao admitirmos a mentira estamos poreacutem a dizer a

verdade pois sabemos que mentimos e tiramos entatildeo o verbo daquilo que sabemos Haacute

coisas que sabemos de tal modo que nunca as poderemos esquecer ou perder o seu

conhecimento pois pertencem agrave proacutepria natureza da alma ndash por exemplo a proacutepria

certeza da nossa existecircncia Tais coisas nas quais a imagem de Deus pode ser

privilegiadamente encontrada nem sempre satildeo alvo do nosso pensamento assim

embora a alma possua um conhecimento sempiterno (scientia sempiterna) o verbo que

tem origem em tal ciecircncia natildeo eacute sempiterno pois nem sempre a alma pensa naquilo que

conhece Soacute o Verbo de Deus eacute sempiterno e coeterno ao Pai Poderemos considerar que

o olhar do pensamento eacute um verbo perpeacutetuo no sentido em que a alma tem a capacidade

de pensar naquilo que sabe mesmo quando natildeo faz uso desse pensamento Assim

sendo o verbo tem a perpetuidade do proacuteprio conhecimento mas natildeo estaacute ainda

formado pelo olhar do pensamento ele apenas eacute susceptiacutevel de ser formado (hoc

formabile nondumque formatum)655

Portanto mesmo considerando que o verbo

humano possa neste sentido ser perpeacutetuo ainda assim ele difere em muito do Verbo

de Deus pois este estaacute de tal modo na forma de Deus que natildeo poderia ser susceptiacutevel

de passar da natildeo forma agrave forma jaacute que eacute a proacutepria forma e nunca foi sem forma ao ser

coeterno e perfeitamente igual a Deus Santo Agostinho afirma que nem mesmo

654

Ibid laquo[hellip] in se ipso tamquam se ipsum in Filio tamquam Verbum suumraquo

655 Cf De Trin XV 15 25

224

ldquoquando formos semelhantes a Elerdquo vendo-O ldquo face a face tal como eacuterdquo seremos iguais

a Ele pois a natureza criada eacute sempre inferior agravequela que a cria e natildeo poderaacute igualar a

simplicidade onde nada susceptiacutevel de ser formado foi formado ou reformado e que natildeo

sendo nem informe nem formada eacute uma substacircncia imutaacutevel e eterna656

Mesmo natildeo

possuindo os atributos divinos o verbo humano assemelha-se ao Verbo de Deus de um

modo obscuro e tem portanto um papel necessaacuterio ao reflectir per speculum et in

aenigmate aquilo que eacute inefaacutevel ndash que eacute escondido

A possibilidade de se compreender a realidade divina atraveacutes das Sagradas

Escrituras assenta precisamente no facto de os textos aiacute presentes serem muitas vezes de

natureza alegoacuterica daiacute que Santo Agostinho advirta para a necessidade de natildeo se assumir

literalmente determinadas passagens biacuteblicas pois os seus significados estatildeo para laacute das

palavras657

A presenccedila da alegoria na Biacuteblia parece inclusivamente revestir-se de um

certo valor esteacutetico na medida em que funciona como um factor de atracccedilatildeo e desafio

capaz de estimular os leitores pelos seus misteacuterios658

As palavras satildeo signos sendo que um signo eacute uma coisa que para aleacutem daquilo

que eacute percebido pelos sentidos faz surgir na mente uma outra coisa a partir de si 659

Assim um signo estaacute por vez de algo para o sujeito Santo Agostinho estabelece duas

classes de signos os signa propria e os signa translata Os primeiros satildeo aqueles que

empregamos para designar os objectos em relaccedilatildeo aos quais foram directamente

instituiacutedos Os signos pertencem agrave outra classe quando as coisas designadas pelos

termos que lhes satildeo proacuteprios determinam por si outras coisas diferentes660

Assim o

significado de um tal signum acaba por funcionar como significante transpondo a sua

acepccedilatildeo literal Os signa translata concernem portanto ao sentido figurado das

palavras Em De Magistro o filoacutesofo diz que os signos satildeo meios excepcionais para

656

Cf De Trin XV 16 26

657 Sobre a necessidade da leitura alegoacuterica relativa a determinadas passagens biacuteblicas cf De civ Dei

XVII 3 e XVII 5 De doct christ II 10 15-12 17 III 25 35 et seq Sobre como o caraacutecter obscuro de

algumas passagens deve ser encarado como um exerciacutecio para o leitor cf Conf III 5 9 VI 5 8 De doct

christ IV 6 9 IV 7 15 De civ Dei XI 19 XX 17 XX 21

658 Cf Conf VI 5 8

659 De doct christ II 11 (CCL 32 p 32) laquoSignum est enim res praeter speciem quam ingerit sensibus

aliud aliquid ex se faciens in cogitationem venire [hellip]rdquo Por pressupor a sensibilidade esta definiccedilatildeo

deixa de fora o verbum mentis que natildeo eacute signo mas imagem

660 Cf De doct christ II 10 15

225

direccionar a atenccedilatildeo da mente para as coisas que significam Ainda que nada possam

mostrar (ostendere) eles podem advertir (admonere) eficazmente661

Os signos

permitem que a mente compreenda coisas que por seu turno podem tambeacutem

constituir-se como signos de outras coisas662

De acordo com a definiccedilatildeo agostiniana o signo eacute uma realidade sensiacutevel coisa

que a imagem pode natildeo ser Ele distingue-se da imagem tambeacutem por natildeo implicar

semelhanccedila todavia tal como esta remete o sujeito para outra coisa estabelecendo com

ela uma relaccedilatildeo de referencialidade No caso da imagem essa relaccedilatildeo eacute mais linear e

concreta ndash a imagem estaacute por norma dependente de um paradigma que por seu turno

poderaacute ter outras imagens ndash enquanto no caso do signo essa relaccedilatildeo eacute geralmente

pluriacutevoca o que significa que um mesmo signo pode constituir-se como referente de

diversas coisas

Santo Agostinho refere que na memoacuteria haacute tambeacutem imagens que estatildeo laacute em vez

das coisas a que se reportam Estas imagens podem constituir-se como phantasiae ou

phantasmata e para as diferenciar Santo Agostinho descreve o modo como a sua

memoacuteria reconstitui duas cidades ao lembrar-se de Cartago que tatildeo bem conhecia a

imagem da cidade presente na sua memoacuteria constitui-se como uma phantasia que eacute o

verbum da cidade constituiacutedo no interior da sua memoacuteria e para o qual a palavra

Cartago remete mesmo antes de se exteriorizar e constituir como objecto da

sensibilidade663

Por outro lado ao imaginar Alexandria cidade que lhe era

desconhecida a imagem presente na memoacuteria constitui-se como um phantasma664

Este

segundo tipo de imagens implica portanto um trabalho mental de associaccedilatildeo e arranjo

de outras imagens armazenadas na memoacuteria imagens estas que resultam num todo

coerente poreacutem com um estatuto questionaacutevel dada a margem de erro com que figuram

aquilo de que supostamente o phantasma eacute imagem Com efeito um phantasma eacute uma

661

Cf De Mag X - XI

662 Cf De Mag 3 5-6 e 10 29-30

663 Cf De Trin VIII 6 9 e Ep 7 1 1

664 Cf Ibid Em De musica a mesma distinccedilatildeo eacute feita usando o exemplo da imagem que Santo Agostinho

guarda na memoacuteria de seu pai e a imagem que fabrica na memoacuteria do seu avocirc que nunca conheceu A

primeira eacute uma phantasia e a segunda um phantasma Cf De mus VI 11 32

226

imagem de imagem665

a similitudo que apresenta eacute relativa a outras imagens resultantes

da experiecircncia sensiacutevel que se crecirc de algum modo poderem figurar aquilo de que o

phantasma supostamente eacute imagem A sua relaccedilatildeo com a verdade estaacute desde logo

minada pois natildeo havendo garantia da sua efectiva semelhanccedila com aquilo a que se

refere tambeacutem o seu proacuteprio estatuto como imagem eacute questionaacutevel uma vez que para o

Bispo de Hipona toda a imagem implica necessariamente similitudo A imagem que

fazemos da aparecircncia de Cristo ao lermos as Sagradas Escrituras obedece a esta mesma

loacutegica666

Natildeo eacute do acircmbito da feacute mas da opiniatildeo a formulaccedilatildeo de tal imagem para a feacute

importa perspectivar Cristo como o Filho de Deus nascido da Virgem Maria e natildeo se

era magro de barba e cabelo compridos

Em determinadas imagens produzidas na memoacuteria chega mesmo a haver uma

vacuidade na sua estrutura remissiva pela oacutebvia inexistecircncia da realidade a que se

referem ndash eacute o caso da imagem de um paacutessaro com quatro patas667

Curiosamente Santo

Agostinho parece subverter a loacutegica da terminologia que na mesma obra anteriormente

clarificara considerando este produto da imaginaccedilatildeo como uma phantasia e natildeo como

um phantasma A justificaccedilatildeo para tal aparente inversatildeo talvez resida no facto de a

phantasia natildeo estar sujeita a uma relaccedilatildeo arbitraacuteria com a verdade ora porque resulta de

uma efectiva lembranccedila da experiecircncia sensiacutevel ndash como no caso da imagem da cidade

recordada ndash ora por simplesmente a consciecircncia da sua falsidade estar presente agrave

partida como no caso de produtos da imaginaccedilatildeo dos quais satildeo exemplo os paacutessaros de

quatro patas ou as figuras mitoloacutegicas As phantasiae que sabemos serem falsas natildeo satildeo

necessariamente perniciosas elas podem ser falsas no sentido em que natildeo haacute nenhuma

realidade sensiacutevel ou inteligiacutevel agrave qual efectivamente se reportem enquanto imagens

mas podem apesar disso servir como adjuvantes na proacutepria compreensatildeo da verdade de

alguma outra coisa Este eacute por exemplo o caso das alegorias que os saacutebios criaram para

melhor explicar determinada realidade668

665

De mus VI 11 32 (PL 32 c 1180) laquoSed cum sibi isti motus occursant et tamquam diversis et

repugnantibus intentionis flatibus aestuant alios ex aliis motus pariunt non iam eos qui tenentur ex

occursionibus passionum corporis impressi de sensibus similes tamen tamquam imaginum imagines

quae phantasmata dici placuitraquo

666 Cf De Trin VIII 4 7

667 Cf De Trin XI 10 17 e Retr II 15 2

668 Cf Ep 7 2 4 Santo Agostinho natildeo daacute aqui o exemplo das alegorias mas das faacutebulas que tal como

estas satildeo um modo indirecto de representar algo sob a aparecircncia de outra coisa Quando o filoacutesofo

227

Na carta a Nebriacutedio de 389 Santo Agostinho distingue trecircs tipos de phantasiae

no primeiro tipo incluem-se as imagens que nascem das impressotildees das coisas nos

sentidos (por exemplo a recordaccedilatildeo de Cartago ou a face familiar de uma amigo

ausente) no segundo tipo estatildeo compreendidas os produtos da imaginaccedilatildeo (ou seja as

imagens de coisas que nunca experienciaacutemos mas que julgamos ser ou terem sido de

tal ou tal modo)669

por uacuteltimo o terceiro tipo abarca imagens da razatildeo (como os

nuacutemeros670

e as dimensotildees)671

Estas uacuteltimas phantasiae embora sejam verdadeiras

enquanto objecto do entendimento podem facilmente dar origem a imagens falsas por

exemplo ao permitirem ampliar desmesuradamente a dimensatildeo de um objecto

recordado desadequando a imagem que dele guardamos na memoacuteria em relaccedilatildeo agrave

imagem que dele fizemos atraveacutes dos sentidos corpoacutereos672

As imagens que se

constituem na memoacuteria parecem possuir em si uma certa neutralidade moral eacute o uso

que delas se faz que as torna perniciosas ou pelo contraacuterio proveitosas Exceptuando os

casos de alucinaccedilatildeo ou sonho os phantasmata tal como as imagens nascidas da

percepccedilatildeo sensiacutevel dependem sobretudo da nossa vontade (intentio)

Os comentaacuterios que o Bispo de Hipona tece relativamente agrave idolatria satildeo

elucidativos do modo como funciona a imagem enquanto representaccedilatildeo material

significante Apesar de por vezes Santo Agostinho acusar os pagatildeos de adorarem os

africano se refere agrave alegoria eacute sobretudo para descrever o modo como determinadas passagens da Biacuteblia

ao descreverem uma coisa estatildeo a significar outra Apesar de no caso da alegoria a relaccedilatildeo de semelhanccedila

natildeo ser directa mas sim baseada na analogia e na metaacutefora ela poderaacute a nosso ver ser considerada

tambeacutem como um caso especiacutefico da imagem enquadraacutevel na phantasia Santo Agostinho refere-se agrave

similitudo impliacutecita nas formas obscuras e figuradas com que as narrativas biacuteblicas expotildeem a Palavra de

Deus em De doctr christ II 6 8 onde salienta o deleite que tal semelhanccedila em si desperta e o modo

engenhoso como tais passagens permitem evitar o enfado (fastidium) do leitor

669 Santo Agostinho daacute o exemplo das imagens de figuras histoacutericas ou ficcionais modelos coacutesmicos

hipoteacuteticos e visotildees geograacuteficas da mitologia ou do maniqueiacutesmo Cf Ibid

670 Eacute curioso que Santo Agostinho se refira aqui aos nuacutemeros como imagem sendo que uma deacutecada

depois em Confessionum X 9 16 se lhes refira como presenccedilas reais na memoacuteria Seraacute esta uacuteltima

perspectiva a que melhor se enquadra no conjunto do pensamento agostiniano

671 Este tipo de phantasiae inclui portanto imagens de objectos reais mas que dadas as suas dimensotildees

soacute podem ser imaginados e natildeo fisicamente experienciados na sua totalidade dada a limitaccedilatildeo da nossa

percepccedilatildeo sensiacutevel Inclui ainda certos objectos de ciecircncia ou ramos do conhecimento (disciplinae) como

as figuras geomeacutetricas os tempos musicais ou os padrotildees meacutetricos

672 Cf Ibid

228

proacuteprios iacutedolos ao inveacutes da deidade que eles representam673

a sua criacutetica natildeo era

exercida fora da compreensatildeo de que para os pagatildeos a latria ritual dos iacutedolos era

distinta da veneraccedilatildeo consagrada por esse ritual Assim Santo Agostinho estava ciente

de que os pagatildeos natildeo veneravam a imagem mas aquilo que ela figurava Era aos

numina que reverenciavam e natildeo agrave imagem (simulacrum) a que estes presidiam674

A

criacutetica agostiniana assentava no facto de os numina natildeo serem merecedores da

glorificaccedilatildeo que soacute a Deus cabe Na perspectiva agostiniana ao adorarem os numina os

pagatildeos estavam a adorar os demoacutenios (daemonia) seria pois preferiacutevel adorar os

iacutedolos inanimados do que aquilo que eles significam jaacute que tal como as pedras de que

satildeo feitos os iacutedolos os demoacutenios satildeo criaturas natildeo satildeo o Criador Contrariamente agraves

pedras que em nada ajudam mas tambeacutem em nada prejudicam os demoacutenios revestem-se

de grande perigo para os homens que os tecircm por mestres675

Apesar da criacutetica agostiniana ao culto pagatildeo natildeo assentar no uso que estes

faziam das imagens mas no facto de atraveacutes de tais imagens adorarem demoacutenios e natildeo

Deus haacute ainda assim um tom reprovador relativamente agrave natureza dos simulacra

Estas imagens referem-se a qualquer estaacutetua mas mais concretamente agrave representaccedilatildeo de

deuses e demoacutenios tendo portanto uma forma antropomoacuterfica ou zoomoacuterfica que

favorece o desencadear de uma afecccedilatildeo torpe ao reconhecer no iacutedolo os traccedilos familiares

dos seres com vida ndash olhos boca pernas poreacutem olhos que nada vecircem boca que natildeo

respira pernas que natildeo se movem pois natildeo deixam de pertencer a uma estaacutetua ndash o

673

Cf Serm Dolbeau 6 8

674 Cf En Ps XCVI 11

675 Ibid (CCL 39 p 1362-3) Hanc gloriam ipsius cognoverunt populi dimittunt templa currunt ad

ecclesias Confundantur omnes qui adorant sculptilia Adhuc quaerunt adorare sculptilia Noluerunt

deserere idola deserti sunt ab idolis Confundantur omnes qui adorant sculptilia qui gloriantur in

simulacris suis Sed existit nescio quis disputator qui doctus sibi videbatur et ait Non ego illum lapidem

colo nec illud simulacrum quod est sine sensu non enim Propheta vester potuit nosse quia oculos habent

et non vident et ego nescio quia illud simulacrum nec animam habet nec videt oculis nec audit auribus

non ego illud colo sed adoro quod video et servio ei quem non video Quis est iste Numen quoddam

inquit invisibile quod praesidet illi simulacro Hoc modo reddendo rationem de simulacris suis diserti

sibi videntur quia non colunt idola et colunt daemonia Etenim fratres sicut dicit Apostolus Quae

immolant Gentes daemoniis immolant et non Deo Nolo vos inquit socios fieri daemoniorum nam

scimus quia nihil est idolum Ipse hoc dixit Apostolus Scimus quia nihil est idolum sed quae immolant

Gentes daemoniis immolant et non Deo dixit Nolo vos fieri socios daemoniorum Non ergo hinc se

excusent quia quasi idolis insensatis dediti non sunt daemoniis magis dediti sunt quod est periculosius

Nam si tantum idola colerent sicut eos non adiuvarent ita illis nihil nocerent si autem adores et servias

daemonibus erunt domini tuiraquo

229

homem tende a associar a ausecircncia de movimentos vitais agrave possibilidade de encontrar

em tal figura um poder divino (numen) escondido invisiacutevel Tal susceptibilidade

humana convida os demoacutenios a apossarem-se da estaacutetua ampliando infinitamente o erro

do homem que cultua tal imagem676

Os simulacros satildeo na esteira de Platatildeo imagens

destituiacutedas de essecircncia e portanto de real semelhanccedila ndash elas satildeo falsas imagens ou

coacutepias de imagens Santo Agostinho associa-os tambeacutem agraves estaacutetuas das divindades

greco-romanas que representam em uacuteltima instacircncia criaturas ou atributos de criaturas

Assim a estaacutetua de Neptuno eacute tambeacutem um iacutedolo pois representa as aacuteguas e natildeo o

verdadeiro Deus677

Os objectos usados no culto cristatildeo natildeo podem ser considerados simulacros nem

satildeo passiacuteveis de idolatria eles natildeo satildeo instrumentos de um culto vatildeo e inclusivamente

servem de elo capaz de reforccedilar a ligaccedilatildeo dos fieacuteis ao culto do Deus uacutenico678

Mas

mesmo a este niacutevel a opiniatildeo de Santo Agostinho quanto agraves imagens figurativas

manteacutem-se coerente com a ideia de que o antropomorfismo favorece as indesejadas

afecccedilotildees da alma679

Os demais objectos religiosos usados durante a celebraccedilatildeo dos

sacramentos ndash como as taccedilas por exemplo ndash satildeo feitos nos mesmos materiais dos

iacutedolos mas eles satildeo ditos sagrados precisamente porque a sua funccedilatildeo eacute a de honrar

Deus consagrando-se-Lhe Natildeo eacute aos objectos que os fieacuteis rezam nem eacute atraveacutes deles

que rezam a Deus Os cristatildeos natildeo satildeo escravos dos signos pois compreendem o que

significam e sabem utilizar aqueles que satildeo divinamente instituiacutedos para prestar

homenagem aos misteacuterios a que eles se referem Os signos do culto cristatildeo provam a

liberdade do espiacuterito contrariamente aos signos pagatildeos que escravizam e sujeitam os

seus seguidores ao jugo da carne680

As imagens satildeo expressotildees ou representaccedilotildees de algo com o qual mantecircm uma

relaccedilatildeo de semelhanccedila que pode ir ateacute agrave igualdade O alcance que o homem tem da

676

Cf En Ps CXIII 2 3

677 De doct christ III 7 11 (CCL 32 p 38) laquoQuid ergo mihi prodest quod Neptuni simulacrum ad illam

significationem refertur nisi forte ut neutrum colam Tam enim mihi statua quaelibet quam mare

universum non est Deusraquo Cf De doct christ II 17 27 En Ps CXIII 2 5

678 Cf De doct christ III 6 10

679 En Ps CXIII 2 6

680 Cf De doct christ III 9 13

230

esfera divina tem sobretudo por base a imagem desde logo pela proacutepria presenccedila

especular de Deus na mente Exteriormente as marcas da presenccedila de Deus satildeo

apreendidas como signos Eacute assim que a beleza do universo pode ser interpretada como

um signo da magnificecircncia divina O signo eacute afim da imagem no sentido em que remete

para laacute de si mesmo poreacutem como vimos distingue-se da imagem por ser uma realidade

sensiacutevel e por dispensar na relaccedilatildeo de referencialidade a semelhanccedila681

A beleza

presente na criaccedilatildeo natildeo seraacute erradamente considerada como uma imagem que espelha a

beleza do Criador no entanto dada a natureza da estrutura numeral que a compotildee

parece-nos mais correcto consideraacute-la como um iacutendice ou vestiacutegio entrando na ordem

dos signa naturalia682

Os nuacutemeros que constituem a beleza satildeo sempre substanciais

ditando uma continuidade entre a fonte e as suas manifestaccedilotildees Assim a beleza

sensiacutevel parece ser ndash tal como o fumo eacute em relaccedilatildeo ao fogo ndash um elemento parcial e

derivado que indicia a sua matriz

A capacidade imageacutetica da mente humana pelo modo como conjuga relaciona e

redimensiona as imagens resultantes da percepccedilatildeo originando novas imagens revela-se

profiacutecua e mesmo fundamental em determinadas estrateacutegias de aproximaccedilatildeo agrave verdade

A criatividade que permite estabelecer convenccedilotildees simboacutelicas alegorias ou

simplesmente compreender e interpretar tais figuras eacute uma das coisas que possibilita a

atitude transformativa do ser humano no processo salviacutefico Teraacute sido precisamente tal

capacidade da memoacuteria e tal abertura agrave leitura alegoacuterica reconhecida por Santo

Agostinho nas Sagradas Escrituras que o teraacute em definitivo conquistado para a Igreja

Na dimensatildeo imageacutetica que percorre toda a natureza sensiacutevel e que estrutura a

alma humana constituindo-se inclusivamente como um dos modos de relaccedilatildeo entre a

criatura e o criador natildeo soacute o homem pode assumir um novo modo de ver como pode

tambeacutem perspectivar-se a si mesmo na linhagem dessa nova visatildeo reconfigurando o seu

modo de ser Haacute portanto um estamento eacutetico que se desprende da reconstituiccedilatildeo

criativa propiciada pela imagem e que joga com a liberdade interpretativa e com a

681

A percepccedilatildeo pelos sentidos no caso do signo e a exigecircncia de similitudo no caso da imagem satildeo duas

premissas presentes na definiccedilatildeo que o proacuteprio Santo Agostinho estabelece para cada um dos termos

682 Jaacute os siacutembolos pertenceriam agrave classe dos signa data Santo Agostinho estabelece a distinccedilatildeo entre

signa naturalia e signa data em De doct christ II 12-23 Em relaccedilatildeo aos primeiros daacute o exemplo do

fumo que indica o fogo e de uma pegada que indica o trilho de um animal salientando o caraacutecter natildeo

intencional do modo como datildeo a conhecer a realidade que as originou Em relaccedilatildeo aos segundos diz que

dependem de convenccedilotildees estabelecidas pelos seres vivos com o intuito de expressarem o melhor possiacutevel

os seus sentimentos percepccedilotildees e pensamentos

231

premecircncia atraveacutes da qual os indiacutecios facultados pela semelhanccedila apelam agrave feacute Ricoeur

natildeo estaacute muito distante desta leitura quando refere que o ver-como da metaacutefora poderaacute

ser revelador de um ser-como ao niacutevel ontoloacutegico mais profundo683

A temporalidade a

que a criatura natildeo se pode furtar encontra uma espeacutecie de siacutentese estabilizadora e

presentificante na imagem pensada pelo homem enquanto tal cuja referencialidade

conduz ao entendimento da eternidade predispondo a uma atitude mimeacutetica que visa

romper com a dissemelhanccedila e encetar uma construccedilatildeo criativa da proacutepria vivecircncia

temporal com base em duas outras estruturas imageacuteticas por si reconhecidas ndash aquela

que descobre na sua alma e aqueloutra totalmente perfeita que se configura no Filho

683

Cf Ricoeur Temps et Reacutecit III Le temps raconteacute Seuil Paris 2005 p 281

Parte II

235

1 Teraacute Santo Agostinho uma filosofia da arte

11 - As trecircs acepccedilotildees da palavra ldquoarterdquo artes ars e Ars

Santo Agostinho emprega o termo arte de trecircs modos distintos utiliza o plural

artes como conhecimento (scientia) aludindo agraves artes liberais ou disciplinas em que

assentava o sistema educacional do seu tempo atraveacutes da palavra Ars que aqui

capitalizamos684

refere-se ao mundo divino das Formas como modelo transcendente e

utiliza ainda o termo ars na acepccedilatildeo directamente retomada do grego τέχνη como

capacidade habilidade ou teacutecnica

Em Retractationum685

o Doutor da Graccedila refere que durante o periacuteodo em que

aguardava pelo seu baptismo em Milatildeo tinha em vista um projecto consagrado agrave escrita

de um tratado para cada uma das artes liberais gramaacutetica dialeacutectica retoacuterica muacutesica

geometria astronomia aritmeacutetica Tal intento que ficou por cumprir visava propor uma

via gradativa para a razatildeo ascender atraveacutes do conhecimento das coisas corpoacutereas ou

materiais ateacute ao conhecimento das coisas imateriais (per corporalia ad incorporalia)

Neste acircmbito foram escritas as obras De grammatica e De musica sendo que alguns

autores defendem que o tratado De dialectica integraria tambeacutem o projecto poreacutem o

modo fragmentaacuterio com que chegou aos nossos dias e as duacutevidas quanto agrave sua

verdadeira autoria natildeo permitem ter como certa tal afirmaccedilatildeo Com efeito em

Retractationum o Bispo de Hipona testemunha que dos sete tratados planeados apenas

dois foram concluiacutedos o De grammatica que natildeo muito depois da sua redacccedilatildeo

684 Naturalmente a maiuacutescula natildeo eacute utilizada nos textos originais Socorremo-nos dela para distinguir esta

acepccedilatildeo do termo daquela que se refere ao saber fazer

685 Retr I 6 (CCL 57 p17)

236

desapareceu da biblioteca pessoal do autor e o De musica terminado apoacutes o seu

baptismo e cujo uacuteltimo livro se crecirc ser bastante posterior aos restantes cinco que

compotildeem essa obra Ao elencar os tratados que ficaram por escrever Santo Agostinho

menciona a filosofia em vez da astronomia e salienta que escrevera um plano para cada

uma destas obras tambeacutem ele perdido686

Em De ordine eacute no entanto possiacutevel perceber uma espeacutecie de sumarizaccedilatildeo do

conteuacutedo que cada um dos disciplinarum libri desenvolveria jaacute que Santo Agostinho aiacute

traccedila o esquema ascensional da razatildeo atraveacutes das artes ainda com a astronomia a

ocupar o seu tradicional lugar Assim a gramaacutetica eacute a disciplina constituiacuteda pela

atenccedilatildeo sistemaacutetica que a alma daacute a propriedades determinadas pelos numeri e pelas

dimensiones encontrados nas palavras como por exemplo as duraccedilotildees (morae) dos

sons e das siacutelabas que podem ser constituiacutedas por tempos simples ou duplos bem como

as modulaccedilotildees das suas proporccedilotildees que tanto podem ocasionar siacutelabas longas ou

breves687

Santo Agostinho inclui tambeacutem a literatura neste domiacutenio cujo objecto eacute o

estudo de todos os escritos dignos de memoacuteria e que portanto pressupotildee a associaccedilatildeo

da histoacuteria agrave gramaacutetica688

Passando para a dialeacutectica Santo Agostinho diz que esta se constitui como a

disciplina das disciplinas (disciplina disciplinarum) jaacute que faculta o meacutetodo pelo qual a

docecircncia e a discecircncia se empreendem ao estabelecer regras seguras para os exerciacutecios

da razatildeo Se a gramaacutetica implicava um processo de orgacircnico de definiccedilotildees divisotildees e

siacutenteses nada mais loacutegico do que passar para a disciplina capaz de assegurar sobre a

perfeiccedilatildeo e eficaacutecia dos instrumentos e das vias que a razatildeo segue para a elaboraccedilatildeo de

regras salvaguardando-a do erro689

Associada agrave dialeacutectica surge a retoacuterica que tem por objectivo exercitar a razatildeo e

fortalececirc-la de modo a que seja capaz de traduzir para actos concretos os conteuacutedos do

seu raciociacutenio Santo Agostinho nota que eacute bastante frequente os homens natildeo terem a

capacidade para seguir coisas de natureza boa uacutetil e honesta mesmo quando satildeo

persuadidos para tal Satildeo poucos aqueles que conseguem ver os ditames da verdade

686

Ibid

687 Cf De ord II 12 35

688 Cf De ord II 12 36

689 Cf De ord II 13 38

237

pura os demais tendem a seguir o haacutebito e vergar-se agraves exigecircncias da sua existecircncia

carnal A retoacuterica tem a missatildeo de cativar e deleitar o povo atraveacutes de estrateacutegias de

natureza esteacutetica que promovem a elevaccedilatildeo da razatildeo a partir dos nuacutemeros presentes nas

coisas temporais ndash por exemplo no cadenciar harmonioso das palavras ndash ateacute agrave beleza

superior Tais estrateacutegias cativam e fortalecem a alma persuadindo-a a procurar a sua

proacutepria amenidade690

Dado o perigo da atenccedilatildeo reclamada pelas coisas sensiacuteveis Santo Agostinho

determina-lhes um papel uacutetil na via gradativa da razatildeo eacute atraveacutes das coisas corporais

que a alma gradualmente se aperfeiccediloa e ascende Tal como a disciplina retoacuterica em

parte jaacute deixava anunciar a ciecircncia de bem modular ou muacutesica ocupa neste percurso

um lugar de relevo A muacutesica ocupa-se daquilo que apercebemos pelos ouvidos pelo

que na sua alccedilada recaem tambeacutem as palavras a partir das quais nasceram a gramaacutetica

a dialeacutectica e a retoacuterica Sendo a razatildeo capaz de diferenciar entre o som (sonus) e aquilo

do qual ele eacute signo (signum) compreendeu que soacute o som pertenceria agrave alccedilada da muacutesica

e agrupou-os em trecircs classes a que eacute formada pela voz animal integrando os sons

produzidos pelos actores traacutegicos coacutemicos e todos os que cantam com voz proacutepria a

segunda classe de sons diz respeito aos que satildeo produzidos pelo sopro do ar como por

exemplo os sons saiacutedos das flautas e por fim integram a terceira classe todos os sons

produzidos pela percussatildeo do ar seja ao tocar um tambor uma harpa ou uma lira691

Os

sons natildeo tecircm poreacutem qualquer valor se natildeo forem regulados pela duraccedilatildeo e por uma

variedade proporcionada de graves e agudos pelo que de acordo com esta constataccedilatildeo

e com o reconhecimento de valores gramaticais como peacutes e acentos a muacutesica atende a

determinadas divisotildees ndash as cesuras (caesa) e os hemistiacutequios (membra) O versum eacute

estipulado por esta ciecircncia de modo a que natildeo o nuacutemero de peacutes natildeo se multiplique de

tal modo que o juiacutezo natildeo o possa abarcar Os rhythmi por sua vez satildeo as estruturas que

apesar de fluiacuterem com um nuacutemero ordenado de peacutes natildeo possuem uma medida

uniforme Santo Agostinho diz ser desta ciecircncia que nascem os poetas ela honrou-os

outorgando-lhes o poder de compor toda a sorte de fantasias racionais (rationabilia

mendacia) atraveacutes de efeitos que atendem natildeo a penas agrave harmonia dos sons mas

tambeacutem agrave forccedila das palavras e aos contextos (momenta) Como esta ciecircncia se funda na

690

Ibid

691 Cf De ord II 14 39

238

primeira disciplina alcanccedilada e elaborada pela razatildeo cabe aos gramaacuteticos serem os

juiacutezes dos poetas692

A muacutesica eacute uma disciplina simultaneamente sensual e intelectual

que atraveacutes dos sons que se desvanecem no tempo permite que a alma perceba os

numeri que se constituem como objecto de contemplaccedilatildeo do espiacuterito e satildeo imortais693

Passando da disciplina que se ocupa das coisas percebidas atraveacutes dos ouvidos

para a disciplina relativa ao domiacutenio da visualidade a razatildeo percebe que nos ceacuteus e na

terra soacute a beleza lhe agrada e que em uacuteltima instacircncia o motivo desse agrado eacute o

nuacutemero que estaacute na base das figuras e das suas dimensotildees Daiacute que surja entatildeo a

geometria como uma penuacuteltima arte atraveacutes da qual a alma se deve exercitar Pela

geometria o homem pocircde perceber que natildeo eacute possiacutevel agraves figuras sensiacuteveis cotejar

aquelas que satildeo objecto da inteligecircncia694

Ao admirar e estudar diligentemente os movimentos dos ceacuteus a razatildeo percebeu

que tambeacutem aiacute reinavam os nuacutemeros e as regularidades temporais reconhecendo

movimentos fixos e concertados dos astros que ocorrem em distacircncias estaacuteveis Agrave

disciplina encarregue de sistematizar tais conhecimentos deu-se o nome de

astronomia695

Santo Agostinho natildeo se refere especificamente agrave aritmeacutetica nem se

percebe exactamente se a incluiria entre o grupo de disciplinas que durante a Escolaacutestica

tomaria o nome de trivium ou em maior conformidade com esta mesma divisatildeo a

incluiria no quadrivium696

Sendo a muacutesica especificamente assumida como o quarto

patamar697

dificilmente a aritmeacutetica marcaria a transiccedilatildeo entre o trivium e o

quadrividum possivelmente Santo Agostinho enquadraria esta disciplina como uma

ciecircncia transversal a todas as outras uma vez que em qualquer uma delas estaacute impliacutecita

a ideia de uma racionalidade numericamente proporcionada ou mais provavelmente

situaria a aritmeacutetica no final da sua lista Ainda que natildeo haja uma referecircncia expliacutecita a

692

Cf De ord II 14 40

693 Cf De ord II 14 41

694 Cf De ord II 15 42

695 Cf Ibid

696 Trivium e quadrivium satildeo divisotildees disciplinares posteriores agrave eacutepoca de Santo Agostinho pelo que natildeo

eacute de estranhar a hipoacutetese de o filoacutesofo natildeo seguir tal paracircmetro O trivium incluiacutea a gramaacutetica a dialeacutetica

e a retoacuterica ao passo que o quadriacutevium abarcava a aritmeacutetica a geometria a muacutesica e a astronomia

697 De ord II 14 41 (CCL 29 p 129) laquoIn hoc igitur quarto gradu sive in rhythmis sive in ipsa

modulatione intellegebat regnare numeros totumque [hellip]raquo

239

esta disciplina natildeo eacute descabido vecirc-la como o estudo diligente e fortalecedor das

proporccedilotildees numeacutericas que brilham com maior fulgor no reino do pensamento do que no

mundo sensiacutevel estudo este que revela agrave alma ser ela proacutepria nuacutemero capaz de regular

todas as coisas ou pelo menos que deveria tomar tal possibilidade como meta a

atingir698

A escada das artes pressupotildee o entendimento do mundo segundo uma ordem

numeacuterica harmoniosa atraveacutes da qual a razatildeo capta a unidade Na modulatio e na

congruentia que podem ser reconhecidas nas coisas sensiacuteveis haacute uma inteligibilidade

capaz de elevar a razatildeo do temporal ao eterno do corporal ao incorporal Tal itineraacuterio

funciona como um exerciacutecio da alma (exercitatio animi) que emprega proveitosamente

a realidade terrena natildeo apenas para que a alma possa ser capaz de fortalecer a sua

crenccedila na realidade divina mas tambeacutem para poder contemplaacute-la e compreendecirc-la699

O ambicioso projecto agostiniano dos disciplinarum libri natildeo era poreacutem uma

novidade durante o seacuteculo IV A origem das artes liberais remonta agrave παιδεία grega

onde jaacute no seacuteculo VI aC havia a distinccedilatildeo entre γυμναστική ou o treino do corpo e

μουσική ou o treino da alma Eacute a partir deste uacuteltimo nuacutecleo que nascem as disciplinas

liberais No oitavo livro da Poliacutetica Aristoacuteteles refere apenas trecircs disciplinas para aleacutem

da ginaacutestica como sendo as habituais do sistema educacional de entatildeo 1) leitura e

escrita 2) muacutesica e 3) desenho700

Dois seacuteculos depois Vitruacutevio escreve que o aluno

deveria saber geometria e desenho ter conhecimentos de histoacuteria e de filosofia

entender de muacutesica e ter alguns conhecimentos de medicina bem como das leis

Deveria ainda estar a par das proporccedilotildees celestes e ser entendido em astronomia701

698

De ord II 15 43 (CCL 29 p 130) laquoIn his igitur omnibus disciplinis occurrebant ei omnia numerosa

quae tamen in illis dimensionibus manifestius eminebant quas in seipsa cogitando atque volvendo

intuebatur verissimas in his autem quae sentiuntur umbras earum potius atque vestigia recolebat Hic se

multum erexit multumque praesumpsit ausa est immortalem animam comprobare Tractavit omnia

diligenter percepit prorsus se plurimum posse et quidquid posset numeris posse Movit eam quoddam

miraculum et suspicari coepit seipsam fortasse numerum esse eum ipsum quo cuncta numerarentur aut si

id non esset ibi tamen eum esse quo pervenire satageretraquo

699 Cf De ord II 16 44

700 Cf Aristoacuteteles Poliacutetica VIII 3 1338a Acerca das artes liberais na cultura antiga cf H-I Marrou

ldquoLes Arts Libeacuteraux dans lrsquoAntiquiteacute Classiquerdquo in Arts Libeacuteraux et Philosophie au Moyen Acircge Actes du

Quatriegraveme Congregraves International de Philosophie Meacutedieacutevale Montreacuteal ndash Paris Institut drsquoEacutetudes

Meacutedieacutevales Vrin 1969 pp5-27 Id Saint Augustin et la Fin de la Culture Antique Paris E de

Boccard 1938

701 Cf Vitruacutevio De architectura I 1 3 10

240

Varratildeo que eacute talvez o primeiro autor a escrever especificamente sobre cada uma das

disciplinas ou artes liberais distingue nove daiacute o tiacutetulo da sua obra Libri novem

disciplinarum Segundo Ritschl essas disciplinas eram a gramaacutetica a dialeacutectica a

retoacuterica a geometria a aritmeacutetica a astronomia a muacutesica a medicina e arquitectura702

Eacute bastante provaacutevel que Santo Agostinho tenha usado esta obra como manual

de estudo com os seus alunos Em De ordine quando inicia a descriccedilatildeo da escada

das artes mais concretamente ao escrever sobre a gramaacutetica o filoacutesofo refere

Varratildeo703

e volta a citaacute-lo pouco apoacutes ter terminado tal descriccedilatildeo a propoacutesito de um

aforismo de Pitaacutegoras704

Tambeacutem no poema epistolar que Licecircncio remete a

Agostinho em 395 ndash e que traduzimos a propoacutesito da temaacutetica dos numeri 705

ndash haacute

uma referecircncia agrave via misteriosa e profunda de Varratildeo que reforccedila a ideia de que a

leitura dos nouem libri disciplinarum faria parte do programa curricular proposto

por Santo Agostinho em Cassiciacuteaco

Em De vera religione obra concluiacuteda cinco anos apoacutes De ordine Santo

Agostinho afirma que a alma seraacute tanto mais capacitada para ajuizar quanto mais

dotada (peritior) for e que ela eacute tanto mais dotada quanto maior for o seu envolvimento

em alguma arte disciplina ou saber706

Neste seguimento clarifica que entende por arte

natildeo aquilo que deveacutem da experiecircncia mas aquilo que eacute formado pelo raciociacutenio Santo

Agostinho diz que o que qualifica um muacutesico na verdadeira acepccedilatildeo da palavra eacute a sua

capacidade para entender as relaccedilotildees numeacutericas Por exemplo um flautista amador pode

ouvir e reproduzir uma melodia mas a sua muacutesica natildeo passaraacute de uma mera imitaccedilatildeo707

Tal como um rouxinol que canta sem nada saber acerca dessa sua acccedilatildeo esse flautista

702

Ritschl Opusc iii 419-505 citado em John Edwin Sandys A History of Classical Scholarship

From the End of the Sixth Century BC to the End of the Middle Ages NYCambridge University

Press 2011 p 174

703 De ord II 12 35 (CCL 29 p 127) laquoQuibus duobus repertis nata est illa librariorum et calculonum

professio velut quaedam grammaticae infantia quam Varro litterationem vocat [hellip]raquo

704 Cf De ord II 20 54

705 Vide p 139

706 De vera relig 30 54 (CCL 32 p 222) laquoSed quia clarum est eam esse mutabilem quando nunc perita

nunc imperita invenitur tanto autem melius iudicat quanto est peritior et tanto est peritior quanto

alicuius artis vel disciplinae vel sapientiae particeps estraquo

707 Cf De mus I 4 6

241

natildeo eacute um verdadeiro muacutesico pois apesar de numerosa faciendo non numeros

cognoscendo708

O verdadeiro muacutesico eacute necessariamente um erudito

Em relaccedilatildeo agrave arquitectura o meacuterito de saber edificar elegantemente de modo a colocar

no centro um elemento singular e nos lados elementos pares correspondentes ndash portanto

jogando com a simetria ndash natildeo estaacute na repeticcedilatildeo acriacutetica de um trabalho oficinal ainda

que lhe subjaza uma espeacutecie de sentido (sensus) das proporccedilotildees ligado agrave razatildeo e agrave

verdade Eacute como se a proacutepria natureza impelisse o homem para a simetria No sentido

vulgar a arte natildeo eacute mais do que a lembranccedila das coisas que exercitaacutemos e que nos

deram prazer ligada a alguma destreza do corpo na sua execuccedilatildeo709

Mas natildeo eacute na

acepccedilatildeo vulgar de ars que Santo Agostinho quer prosseguir o seu raciociacutenio Desde

logo o filoacutesofo refere que quem natildeo possui a destreza necessaacuteria para a execuccedilatildeo de tais

obras pode todavia ajuizar sobre elas o que na perspectiva agostiniana eacute uma

actividade por si soacute bastante superior Neste sentido a formulaccedilatildeo de um juiacutezo esteacutetico

em relaccedilatildeo a uma obra arquitectoacutenica por exemplo tem mais meacuterito do que o trabalho

dos responsaacuteveis pela sua edificaccedilatildeo Poder-se-ia argumentar que o trabalho de

planeamento natildeo eacute correctamente contextualizado entre o trabalho dos pedreiros que

realizam a obra distinguindo assim a criatividade do autor ou mentor da ideia Conveacutem

poreacutem natildeo esquecer que tal tipo de raciociacutenio natildeo encontra enquadramento no modo

oficinal como entatildeo funcionavam as actividades que hoje tomamos por criativas A

aprendizagem era bastante praacutetica feita com mestres-de-obras experientes pelo que o

caraacutecter altamente normativo e a sujeiccedilatildeo a um nuacutemero de variaacuteveis relativamente

limitado natildeo permitiam aos arquitectos verdadeiras inovaccedilotildees ou marcas de estilo

Apesar de ser uma referecircncia capital durante vaacuterios seacuteculos mesmo Vitruacutevio com o seu

tratado De architectura natildeo fez mais do que elencar e explicar enciclopedicamente uma

seacuterie de variaacuteveis como materiais coordenadas e tipos de construccedilatildeo elementos e

detalhes decorativos etc dando exemplos que natildeo chegam a definir uma qualquer

linhagem autoral ateacute por eles proacuteprios resultarem de uma espeacutecie de compilaccedilatildeo de

casos observados por Vitruacutevio nas obras de vaacuterios mestres como Hermoacutegenes

Mnesthes Quersifratildeo ou Muacutecio entre outros710

708

Cf De ord II 19 49

709 Ibid laquoIta reperitur nihil esse aliud artem vulgarem nisi rerum expertarum placitarumque memoriam

usu quodam corporis atque operationis adiuncto [hellip]raquo

710 Os nomes citados satildeo referidos por Vitruacutevio no segundo capiacutetulo do terceiro livro de De architectura

242

A acepccedilatildeo que Santo Agostinho pretende enfatizar para a arte eacute pois a de

disciplina enquanto conhecimento alcanccedilado e sistematizado pela razatildeo A relaccedilatildeo das

artes neste sentido com a verdade eacute quase imediata daiacute que em Soliloquiorum Santo

Agostinho diga que as figuras empregues pela geometria pertencem agrave verdade ou que

essa verdade estaacute nelas contrariamente agraves figuras exibidas pelos objectos materiais que

natildeo passam de imitaccedilotildees dessa verdade (imitationes veritatis)711

Clarificando e

cultivando a mente as artes liberais permitem corrigir as falsas impressotildees que a mente

recebe da vida quotidiana712

Santo Agostinho acaba por lamentar a atenccedilatildeo que deu em De ordine agraves artes

liberais A via ascensional que atraveacutes delas propunha fundava-se na erudiccedilatildeo e o

Bispo de Hipona viria a reconhecer que ela natildeo era garante de santidade Poderiam

encontrar-se muitos exemplos de santos que o eram sem dominarem nenhuma das

disciplinas tal como poderiam ser encontrados muitos exemplos de homens versados

em tais artes que nunca chegariam a alcanccedilar a verdade dada a sua impiedade713

Em

Confessionum Santo Agostinho diz que ele proacuteprio na altura em que havia lido tudo o

que pocircde dos livros sobre as artes liberais714

virava ainda as costas agrave luz para se

concentrar nos objectos por ela iluminados715

A continuidade entre o raciociacutenio matemaacutetico e o alcance da beleza

transcendente natildeo eacute tatildeo imediata e autoacutenoma quanto a escada das artes deixa pressupor

Uma alma que singre atraveacutes destas disciplinas estaraacute cada vez mais apta a compreender

o caraacutecter substancial dos nuacutemeros que constituem o universo mas tal compreensatildeo natildeo

chega a ser uma contemplaccedilatildeo genuiacutena Haacute a exigecircncia de que a alma que contempla a

711

Cf Sol II 18 32

712 Cf De ord II 16 44

713 Cf Retr I 3 2 Ep 101 2

714 Possivelmente os jaacute citados nouem libri disciplinarum de Varratildeo

715 Conf IV 16 30 (CCL 27 p55) laquoEt quid mihi proderat quod omnes libros artium quas liberales

vocant tunc nequissimus malarum cupiditatum servus per me ipsum legi et intellexi quoscumque legere

potui Et gaudebam in eis et nesciebam unde esset quidquid ibi verum et certum esset Dorsum enim

habebam ad lumen et ad ea quae illuminantur faciem unde ipsa facies mea qua illuminata cernebam

non illuminabatur Quidquid de arte loquendi et disserendi quidquid de dimensionibus figurarum et de

musicis et de numeris sine magna difficultate nullo hominum tradente intellexi scis tu Domine Deus

meus quia et celeritas intellegendi et dispiciendi acumen donum tuum est Sed non inde sacrificabam

tibiraquo

243

beleza seja tambeacutem ela bela coisa que natildeo eacute assegurada pela eruditio mas por Cristo

Redentor Haacute efectivamente uma coincidecircncia entre a aproximaccedilatildeo agrave beleza e a

aproximaccedilatildeo agrave verdade que a escada das artes traduz ela natildeo contempla poreacutem o facto

de que essa aproximaccedilatildeo teraacute sempre por base a restauraccedilatildeo da imagem de Deus no

homem cuja beleza foi deformada pelo pecado

O singular ars eacute naturalmente aplicado a cada uma das disciplinas liberais716

mas eacute sobretudo utilizado por Santo Agostinho como competecircncia ou aptidatildeo no fazer

ou conduzir algo Assim em De civitate Dei vemo-lo referir-se agrave ars vivendi e agrave ars

agendae vitae717

O termo surge tambeacutem com a acepccedilatildeo de periacutecia ou meacutetodo em

relaccedilatildeo a uma qualquer actividade particular como refere OrsquoConnell citando os

exemplos da ars bene loquendi e da ars gubernandi718

Trata-se do saber fazer que

poderaacute efectivamente ser reconhecido tambeacutem nos trabalhos oficinais como eram agrave

eacutepoca a pintura ou a escultura Mas este saber fazer natildeo eacute tanto uma habilidade manual

ou uma mera destreza teacutecnica ele eacute a capacidade em exteriorizar a imagem presente na

mente humana Mesmo natildeo sendo a productio caracterizada pela intelectualidade

pressuposta nas artes liberais haacute ainda assim que assinalar o facto de Santo Agostinho

lhe reconhecer a subordinaccedilatildeo agrave ideia a ponto de estabelecer uma analogia entre o

trabalho de um artiacutefice e a creatio com base na Ars divina

Um artiacutefice faz um cofre Desde logo esse cofre jaacute se encontra na

sua arte pois se natildeo estivesse tal cofre na sua arte de onde o tiraria ao

fabricaacute-lo Mas o cofre natildeo estaacute na arte como quando eacute visto pelos olhos

Na arte eacute invisiacutevel em obra seraacute visiacutevel Ei-lo feito na obra teraacute cessado de

ser na arte Por um lado haacute o cofre que foi feito por outro lado haacute aquele

que permanece o mesmo na arte assim o primeiro pode corromper-se e de

novo outros cofres poderiam ser fabricados a partir daquele que estaacute na arte

Considere-se entatildeo tanto o cofre na arte como o cofre na obra O cofre na

obra natildeo eacute vida o cofre na arte eacute vida pois vive na alma do artiacutefice onde

existem todas as coisas antes que sejam produzidas no exterior Tambeacutem

assim cariacutessimos irmatildeos a Sabedoria de Deus graccedilas agrave qual todas as coisas

satildeo feitas possui em si a arte de todas as coisas antes de as fabricar pelo que

716

Como por exemplo quando o Bispo de Hipona se refere agrave ars rethorica em De doct christ IV 2 3

717 De civ Dei XIX 3 IV 21

718 OrsquoConnel S J Robert Art and the Christian Intelligence in St Augustine Oxford Basil Blackwell

1978 p 30

244

todas as coisas que satildeo feitas atraveacutes desta mesma arte natildeo satildeo por

conseguinte vida mas o que quer que seja feito eacute Nele vida719

Santo Agostinho quer assim clarificar que todas as coisas feitas por Deus satildeo

Nele vida pois Nele satildeo feitas primeiramente como ideia ou ars Por exemplo a terra

que foi criada natildeo eacute vida em si mesma mas eacute vida em Deus no seio da Sua Sabedoria

como arqueacutetipo imaterial a partir do qual a terra corpoacuterea foi criada720

A explicaccedilatildeo

de Santo Agostinho socorre-se da analogia com o processo de labor do artiacutefice

humano que para fabricar um objecto concreto tambeacutem se baseia em primeiro lugar

numa ideia Neste sentido a ars impliacutecita na produccedilatildeo humana eacute com efeito essa

ideia ou verbum mentis

A Ars divina eacute a proacutepria Sabedoria de Deus de onde tudo foi tirado do nada721

ela identifica-se portanto com o logos do evangelho joanino e estaacute na base do

exemplarismo que Santo Agostinho quase sempre perspectiva tendo por base a

dimensatildeo esteacutetica Eacute o que ocorre em De Trinitate quando diz que todas as coisas

criadas pela arte divina exibem caracteriacutesticas como a unidade a beleza e a ordem722

caracteriacutesticas estas que permitem compreender o criador pelas suas obras (I Rom

1 20) encontrando em cada criatura os traccedilos da Trindade que eacute a fonte de todas as

coisas e onde residem a beleza mais perfeita e a felicidade mais completa (perfectissima

pulchritudo et beatissima delectatio)723

Se a ars humana numa das suas acepccedilotildees mais

particulares se reportava ao verbum mentis tambeacutem a Ars divina eacute explicitamente

719

In Iohan Ev Tract I 17 (CCL 36 p 10) laquoFaber facit arcam Primo in arte habet arcam si enim in

arte arcam non haberet unde illam fabricando proferret Sed arca sic est in arte ut non ipsa arca sit quae

videtur oculis In arte invisibiliter est in opere visibiliter erit Ecce facta est in opere numquid destitit

esse in arte Et illa in opere facta est et illa manet quae in arte est nam potest illa arca putrescere et

iterum ex illa quae in arte est alia fabricari Attendite ergo arcam in arte et arcam in opere Arca in opere

non est vita arca in arte vita est quia vivit anima artificis ubi sunt ista omnia antequam proferantur Sic

ergo fratres carissimi quia Sapientia Dei per quam facta sunt omnia secundum artem continet omnia

antequam fabricet omnia hinc quae fiunt per ipsam artem non continuo vita sunt sed quidquid factum

est vita in illo estraquo

720 Cf In Iohan Ev Tract I 16

721 Cf De div quaest 83 78

722 De Trin VI 10 12 (CCL 50 p 242) laquoHaec igitur omnia quae arte divina facta sunt et unitatem

quamdam in se ostendunt et speciem et ordinemraquo

723 Ibid

245

reportada por Santo Agostinho ao Verbum perfectum o Verbo do princiacutepio de todas as

coisas onde estatildeo as razotildees eternas e imutaacuteveis de tudo o que existe724

A Ars divina eacute o modelo transcendental normativo da proacutepria arte humana

(agora entendida como productio) jaacute que para executar qualquer coisa o homem tem

de recorrer a materiais preexistentes pois natildeo tem a capacidade de criar ex nihilo e a sua

acccedilatildeo produtiva adveacutem ela proacutepria da ideia que nasce na mente a partir daquilo que

percebe na natureza Santo Agostinho perspectiva assim uma continuidade entre a arte

divina e a arte humana

Esta arte soberana proacutepria de Deus todo-poderoso pela qual tudo foi tirado

do nada e da qual tambeacutem dizemos ser a Sua Sabedoria eacute ela proacutepria que

opera atraveacutes dos artiacutefices fazendo-os produzir obras belas e harmoniosas

ainda que natildeo operem a partir do nada mas de algumas mateacuterias como a

madeira ou o maacutermore ou o marfim ou outros materiais afins dominados

pelas matildeos dos artiacutefices A razatildeo pela qual natildeo podem fabricar a partir do

nada eacute por operarem atraveacutes do corpo mas as proporccedilotildees e a harmonia que

imprimem na mateacuteria pelo seu corpo recebem-nas na sua alma da suma

Sabedoria cujos nuacutemeros e proporccedilotildees imprimiu com muito mais admiraacutevel

engenho em todo o universo corpoacutereo que foi criado do nada Neste

universo estatildeo tambeacutem os corpos dos animais que satildeo tirados de alguma

coisa isto eacute dos elementos do mundo de um modo muito mais portentoso e

perfeito do que as mesmas figuras e imitaccedilotildees dos corpos que os artiacutefices

reproduzem nas suas obras Com efeito na estaacutetua natildeo se encontra toda a

variedade de detalhes do corpo humano no entanto tudo o que aiacute

encontramos surge pela matildeo do artiacutefice daquela sabedoria que forma o

proacuteprio corpo humano naturalmente Natildeo se deve portanto ter em grande

conta aqueles que produzem ou estimam tais obras pois a sua alma

atendendo agraves coisas inferiores que faz materialmente por meio do corpo

tende menos para a suma Sabedoria da qual tira estas suas capacidades

Delas faz um mau uso exercendo-as no exterior pois estimando as coisas

nas quais se exercita perde de vista a sua forma interior e imutaacutevel e assim

se torna mais deacutebil e vatilde725

724

Cf De Trin VI 10 11

725 De div quaest 83 78 (CCL 44A p 224) laquoSed ideo non possunt isti de nihilo aliquid fabricare quia

per corpus operantur cum tamen eos numeros et convenientiam liniamentorum quos per corpus corpori

imprimunt in animo accipiant ab illa summa sapientia quae ipsos numeros et ipsam convenientiam longe

artificiosius universo mundi corpori impressit quod de nihilo fabricata est In quo sunt etiam corpora

animalium quae iam de aliquo id est de elementis mundi fabricantur sed longe potentius et excellentius

quam cum artifices homines easdem figuras corporum et formas in suis operibus imitantur Non enim

omnis numerositas humani corporis invenitur in statua sed tamen quaecumque ibi invenitur ab illa

sapientia per artificis animum traicitur quae ipsum corpus humanum naturaliter fabricatur Nec ideo

tamen pro magno habendi sunt qui talia opera fabricantur aut diligunt quia minoribus rebus intenta

anima quas per corpus corporaliter facit minus inhaeret ipsi summae sapientiae unde istas potentias

246

Mesmo com as flagrantes limitaccedilotildees e perigos que o Bispo de Hipona reconhece

aos objectos da arte humana ele natildeo pode deixar de admitir que ao prolongar de certo

modo o seu acircmbito neles a arte divina como que contamina tudo com a beleza que a

caracteriza e que imprime atraveacutes dos nuacutemeros nas coisas corpoacutereas Essa beleza estaacute

presente de dois modos nas obras humanas por um lado por participaccedilatildeo jaacute que os

materiais usados pelo homem na execuccedilatildeo dos objectos satildeo fruto da actividade criadora

divina e por transposiccedilatildeo porque a mente humana para formar a ideia que guiaraacute o

artesatildeo na execuccedilatildeo da obra serve-se de processos ligados agrave memoacuteria quer seja ao

imitar as formas que percebeu na natureza quer seja ao imaginar formas que nunca

observou mas que resultam de um trabalho de conjugaccedilatildeo eou redimensionamento de

elementos parciais retirados das lembranccedilas de coisas percebidas Esse trabalho da

memoacuteria eacute sempre feito portanto sobre imagens resultantes da percepccedilatildeo que reportam

ao homem os traccedilos da beleza divina presentes na natureza O processo de

exteriorizaccedilatildeo da ideia a partir da qual o homem executa materialmente o objecto

manteacutem certas analogias com o modo como a Ars divina opera ainda que natildeo se lhe

possa atribuir a originalidade impliacutecita no ex nihilo A proacutepria capacidade de formaccedilatildeo

da ideia na mente humana eacute devida agrave forccedila reguladora dessa arte divina fazendo com

que o homem a tenha tambeacutem presente como modelo prescritivo A ars humana eacute ainda

que de um modo bastante limitado subsidiaacuteria da Ars divina no sentido em que

prolonga e tambeacutem ela cumpre os nuacutemeros da criaccedilatildeo

habet Quibus male utitur dum foris eas exercet illa enim in quibus eas exercet diligens interiorem

earum formam stabilem neglegit et inanior infirmiorque efficiturraquo

247

12 - Santo Agostinho e as artes como hoje as entendemos

Em pleno seacuteculo XXI o termo belas-artes parece-nos jaacute algo obsoleto para

designar a pintura e a escultura e mais ainda para abarcar toda a panoacuteplia de expressotildees

artiacutesticas hiacutebridas cuja inclusatildeo numa aacuterea estanque se revela problemaacutetica A proacutepria

categoria esteacutetica que serve de mote agrave designaccedilatildeo ldquobelas-artesrdquo contribui para a

desadequaccedilatildeo do termo e poucos satildeo os criadores artiacutesticos que revecircem as suas obras agrave

luz de tal designaccedilatildeo preferindo expressotildees como ldquoartes-plaacutesticasrdquo ou ldquoartes-visuaisrdquo

Natildeo entrando em tal celeuma passaremos a referir-nos a todo o conjunto de expressotildees

artiacutesticas apenas pelo nome de ldquoartesrdquo

O que sobretudo distingue as artes hodiernas das artes oficinais e da muacutesica

(que como vimos era uma arte liberal) no tempo de Santo Agostinho eacute o caraacutecter

criativo que desde o Renascimento passaacutemos a reconhecer-lhes A criatividade eacute a

capacidade de idealizar e de exteriorizar atraveacutes de algum modo expressivo algo

supostamente original e significativo No tempo de Santo Agostinho a criatividade soacute

poderia ser apanaacutegio divino Eacute portanto pela religiatildeo que o conceito de criaccedilatildeo e por

conseguinte de criatividade entra na esfera da cultura Elevaacutemos a productio a creatio

transferindo para o acircmbito humano essa capacidade de idealizar e expressar coisas tidas

por originais ainda que o proacuteprio conceito de originalidade seja tantas vezes posto em

causa e seja problematizado plasticamente pelos proacuteprios artistas Para Santo Agostinho

era mais estranho pensar a arte (entatildeo oficinal) como criaccedilatildeo no sentido hodierno do

termo do que utilizar a analogia do Criador como artifex726

726

Que aliaacutes o que ocorre no exemplo citado no subcapiacutetulo anterior do artiacutefice que fabrica um cofre

Com este exemplo o Bispo de Hipona pretendia clarificar melhor a criaccedilatildeo divina e socorre-se para tal da

imagem da produccedilatildeo humana

248

Natildeo eacute portanto a beleza que estaacute na base da distinccedilatildeo entre as artes de hoje e as

artesanias do seacuteculo IV ateacute porque se por um lado essa categoria esteacutetica natildeo eacute

actualmente reconhecida como caracteriacutestica sine qua non da arte727

tambeacutem por outro

lado Santo Agostinho natildeo a descartava das consideraccedilotildees acerca dos objectos

produzidos pelos artiacutefices apesar de lhe relativizar a importacircncia a este niacutevel Natildeo deixa

de ser essencial ressaltar esse aspecto e desmistificar a ideia de que eacute soacute no

Renascimento que a pintura e a escultura passam a ser reconhecidas como loci da

beleza Jaacute Santo Agostinho e antes dele Plotino viam a arte como lugar do belo e viam

a beleza como sendo algo da ordem da ideia portanto cosa mentale conforme Da

Vinci muito mais tarde atestaraacute a propoacutesito da pintura

Em De libero arbitrio Santo Agostinho diz que os artesatildeos que trabalham sobre

as formas corpoacutereas possuem nuacutemeros na sua arte para organizar as obras que

fabricam Ao manejarem as suas ferramentas para harmonizar o melhor possiacutevel a

forma exterior sobre a qual trabalham tentam que esta corresponda agrave visatildeo luminosa

que interiormente tecircm dos nuacutemeros Tal harmonizaccedilatildeo consiste em agradar por

intermeacutedio dos sentidos ao juiacutez que intui os nuacutemeros superiores portanto agrave razatildeo728

O

727

Roger Scruton eacute talvez o principal criacutetico do notoacuterio afastamento verificado entre a arte e a categoria

do belo Este filoacutesofo contemporacircneo tem uma perspectiva marcadamente neoplatoacutenica acerca da beleza

considerando que se trata de um valor universal ancorado na estrutura racional humana e que constitui

uma das vias de comunicaccedilatildeo com o divino Segundo Scruton o reconhecimento do belo permite-nos

olhar o mundo de forma reverente predispondo assim para um posicionamento eacutetico que se estaacute a perder

com o afastamento da beleza das nossas vidas e que leva o autor a defender a necessidade da redescoberta

do belo Natildeo subscrevemos a posiccedilatildeo deste filoacutesofo no que toca ao menosprezo a que vota inuacutemeras obras

de arte revelando uma profunda incompreensatildeo acerca das temaacuteticas e formas de expressatildeo artiacutestica

contemporacircneas Scruton parece condenar agrave fealdade qualquer exemplo de cariz natildeo classicista com a

agravante de ver tal categoria esteacutetica como um sinoacutenimo linear do ofensivo e da falta de qualidade

esteacutetica Ainda mais discutiacutevel eacute o criteacuterio pelo qual se pauta para distinguir entre a obra de arte bela e a

obra de arte feia e que resulta numa perspectiva maniqueiacutesta (na pior acepccedilatildeo do termo) cuja incoerecircncia

eacute gritante por exemplo pela inclusatildeo de Rothko na categoria dos artistas propensos agrave fealdade A criacutetica

que este filoacutesofo faz em relaccedilatildeo agrave arbitrariedade do criteacuterio artiacutestico institucional eacute ainda assim bastante

pertinente Arthur Danto tem uma perspectiva bastante mais moderada no que toca ao hiato entre arte e

beleza constatando que natildeo se trata de um fenoacutemeno tatildeo recente quanto habitualmente se supotildee mas sim

de uma tendecircncia haacute muito escamoteada pela confusatildeo entre o apreciar do bom artiacutestico (artistic

goodness) e a percepccedilatildeo esteacutetica do belo Para Danto haacute uma beleza artiacutestica que eacute distinta da beleza

esteacutetica sendo esta esta uacuteltima de caraacutecter universal e apreendida de modo baacutesico pelo nosso aparato

sensorial jaacute a primeira exige discernimento e inteligecircncia criacutetica para ser reconhecida Cf Roger

Scruton Beauty Oxford UP 2009 Arthur C Danto The Abuse of Beauty Aesthetics and the concept of

art Chicago ndash La Salle Illinois Open Court 2003

728 De lib arb II 16 42 (CCL 29 p 266) laquoEt omnium quidem formarum corporearum artifices homines

in arte habent numeros quibus coaptant opera sua et tamdiu manus atque instrumenta in fabricando

movent donec illud quod formatur foris ad eam quae intus est lucem numerorum relatum quantum

249

filoacutesofo estaraacute a referir-se aos pintores e aos escultores dizendo que aquilo que move os

braccedilos de tais homens eacute o nuacutemero e que se subtrairmos ao artiacutefice a obra e a intenccedilatildeo de

a produzir mantendo os movimentos que faria pelo prazer e natildeo pelo produto

estariacuteamos na presenccedila da danccedila729

Ao trazer a danccedila para o contexto das artes a que anteriormente se referia e ao

enfatizar a questatildeo dos movimentos implicados na produccedilatildeo Santo Agostinho parece

reconhecer-lhes um aspecto performativo que natildeo seria menos importante do que a

obra730

Com efeito essa questatildeo do descentramento da obra faz com que o pensamento

agostiniano se aproxime de autores contemporacircneos como Umberto Eco que atraveacutes

do conceito de opera aperta abriu caminho para os movimentos que assumiram as

diversas variantes da desmaterializaccedilatildeo da obra de arte e que preconizaram a

valorizaccedilatildeo quer da atitude que leva agrave sua produccedilatildeo quer da sua completude atraveacutes da

recepccedilatildeo dando um papel mais participativo ao fruidor731

O descentramento da obra

coloca a toacutenica no processo mas eacute sobretudo na sua capacidade significante que a obra

encontra justificaccedilatildeo e se abre aos juiacutezos de valor Os criacuteticos e os teoacutericos da arte

deixaram necessariamente de atender a questotildees meramente formais ou de mestria

teacutecnica que melhor se adequavam agrave preeminecircncia da categoria esteacutetica do belo para

se debruccedilarem sobre a obra como se de um ensaio teoacuterico se tratasse Haacute que

reconhecer-lhe a linhagem com base em referecircncias anaacutelogas retiradas da histoacuteria da

arte e interpretar pelas suas coordenadas formais e contextuais os possiacuteveis nuacutecleos

de leitura O objecto artiacutestico vale por aquilo que pode significar e pelo modo como

o faz O belo natildeo fica necessariamente de fora de tal mecanismo mas tambeacutem natildeo

potest impetret absolutionem placeatque per interpretem sensum interno iudici supernos numeros

intuentiraquo

729 Ibid Cf De mus I 2 3

730 Eacute interessante notar que a performatividade nas formas de expressatildeo artiacutestica como a pintura e a

escultura tem sido apontada por diversos autores em relaccedilatildeo a periacuteodos histoacutericos bastante anteriores ao

do nosso autor contrariando a ideia do vanguardismo associado agrave performance Note-se a tiacutetulo de

exemplo como em Lascaux ou la naissance de lart Bataille chama a atenccedilatildeo para o facto da presenccedila

constante do fenoacutemeno da sobreposiccedilatildeo na arte paleoliacutetica sugerir que o essencial desta praacutetica seria o

processo e natildeo o produto subordinando o resultado final agrave performatividade que o gera Georges Bataille

La peinture preacutehistorique Lascaux ou la naissance de lart Les grands siegravecles de la peinture Genegraveve

Skira 1955 passim

731 Como a Arte Conceptual o Minimalismo ou a Arte Povera Cf Lucy Lippard Six years the

dematerialization of the art object from 1966 to 1972 New York Praeger 1973 e Umberto Eco Opera

aperta Milano Bompiani 1962

250

encontra a sua relevacircncia no impacto perceptivo que o objecto de arte teraacute sobre o

fruidor Se assim fosse a beleza poderia ser ldquodes-subjectivadardquo e codificada em

cacircnones que rapidamente se esgotariam Essa eacute aliaacutes uma liccedilatildeo que facilmente

poderaacute ser retirada da histoacuteria da arte

Quando presente o sentimento do belo suscitado por um objecto de arte parece

estar hodiernamente associado agrave experiecircncia esteacutetica natildeo por uma qualquer harmonia

formalista mas atraveacutes da conformaccedilatildeo idiossincraacutesica do fruidor com os possiacuteveis

significados da obra percebidos como reconhecimento ou como descoberta Tal natildeo eacute

particularmente distinto da perspectiva agostiniana ainda que nesta a beleza esteja

sempre subordinada agrave Verdade Para aceder ao fulgor da Verdade o homem tem de

elevar-se para laacute da mente do artiacutefice pois soacute assim consegue ver o nuacutemero eterno732

Santo Agostinho admite que as imagens possam ser simultaneamente

verdadeiras e falsas o que aliaacutes se aplica natildeo apenas aos produtos da pintura e da

escultura mas tambeacutem a todas as imagens que afectam a nossa percepccedilatildeo sensiacutevel733

Uma pedra pode ser uma verdadeira pedra mas se for percebida como um pau logo eacute

um falso pau Em linha com a concepccedilatildeo platoacutenica qualquer coisa que eacute pelo facto de

ser eacute tambeacutem verdadeira mas simultaneamente pode ser falsa se mal ajuizada Se tudo

o que eacute eacute verdadeiro o falso eacute aquilo que parece diferente do que eacute mas que como tal

eacute privado de existecircncia pois soacute o que existe eacute verdadeiro Natildeo existem portanto

realidades falsas mas juiacutezos errados sobre coisas verdadeiras

Eacute nesta linhagem que se funda a estrutura biacutefida da pintura e da escultura para

Santo Agostinho ndash apesar de verdadeiras em si ao remeterem para outra coisa originam

a falsidade na sua interpretaccedilatildeo Tal como em qualquer outra coisa a falsidade da obra

de arte eacute assim dita em virtude da sua similitude com o verdadeiro Tal como no Sofista

o falso eacute para Santo Agostinho aquilo que parece sem ser articula-se pois com a

mimesis mas enquanto que para Platatildeo as obras dos pintores e dos escultores estavam

trecircs graus afastadas da verdade ndash jaacute que eram coacutepias incompletas dos objectos sensiacuteveis

que por seu turno eram coacutepias das Ideias ndash para Santo Agostinho essa distacircncia eacute

encurtada em um grau natildeo havendo qualquer diferenccedila entre arte e artefacto

732

De lib arb II 16 42 (CCL 29 p 266) laquoTranscende ergo et animum artificis ut numerum

sempiternum videas iam tibi sapientia de ipsa interiore sede fulgebit et de ipso secretario veritatisraquo

733 Cf Sol II 5 7 - II 10 18

251

Em De libero arbitrio o Bispo de Hipona diz que o artiacutefice faz sinal (innuere)

ao espectador que contempla a beleza da sua obra para que natildeo se detenha nela e

percorra com o olhar o objecto reportando-o com sentimento (affectus) agravequele que o

fabricou734

Esta passagem quase parece lenir a associaccedilatildeo que o proacuteprio Santo

Agostinho mais comummente faz entre os produtores de imagens e a falsidade O

artiacutefice pode apelar a um sentimento que ao remeter para si mesmo indica ao fruidor o

caraacutecter significante da obra ou seja indica que a obra funciona como uma janela para

outra realidade para laacute de si mesma O modo afectivo como o faz natildeo eacute totalmente

clarificado por Santo Agostinho mas estaacute indubitavelmente relacionado com a

possibilidade de reconhecimento por parte do fruidor da beleza que o artiacutefice dispotildee

atraveacutes dos nuacutemeros no objecto que produz Como qualquer outra beleza tambeacutem esta eacute

um sinal (nutus) de Deus se ela atrai e deleita naturalmente remete para a esfera

luminosa da divindade ainda que nem todos sejam capazes de interpretar como sinal a

obra e permaneccedilam na sombra da sua concretude

A beleza confere uma dimensatildeo positiva agrave pintura e agrave escultura mas eacute bastante

mais comum encontrarmos na obra agostiniana passagens que salientam a dimensatildeo

negativa deste tipo de obras pelo caraacutecter desigual que estaacute na base da sua

verosimilhanccedila (verisimilitudo) Nesta senda a similitudo eacute a matildee da falsidade735

O

filoacutesofo chega inclusivamente a dizer que a pintura e as representaccedilotildees (figmenta) afins

pertencem agrave mesma ordem de coisas que os demoacutenios fazem caso faccedilam eles alguma

coisa736

Mas se o falso eacute aquilo que tem alguma semelhanccedila com aquilo que eacute

verdadeiro tambeacutem as coisas ditas falsas o satildeo por diferirem daquilo que eacute verdadeiro

assim se concluindo que eacute a dissimilitude que estaacute na origem da falsidade737

o que

734

Cf De lib arb II 16 43 (CCL 29 p 266) laquoEt artifex enim quodammodo innuit spectatori operis sui

de ipsa operis pulchritudine ne ibi totus haereat sed speciem corporis fabricati sic percurrat oculis ut in

eum qui fabricaverit recurrat affectu Similes autem sunt hominibus qui ea quae facis pro te amant qui

cum audiunt aliquem facundum sapientem dum nimis suavitatem vocis eius et structuras syllabarum apte

locatarum avide audiunt amittunt sententiarum principatum cuius illa verba tamquam signa sonuerunt

Vae qui se avertunt a lumine tuo et obscuritati suae dulciter inhaerent Tamquam enim dorsum ad te

ponentes in carnali opere velut in umbra sua defiguntur et tamen etiam ibi quod eos delectat adhuc

habent de circumfulgentia lucis tuaeraquo

735 Cf Sol II 6 10

736 Sol II 6 11 (CSEL 89 p 47) laquoIam vero animantium opera sunt in picturis et huiuscemodi quibusque

figmentis in quo genere includi etiam illa possunt si tamen fiunt quae daemones faciuntraquo

737 Cf Sol II 8 15

252

contraria a ideia de que a semelhanccedila eacute a mater falsitatis Santo Agostinho demonstra o

seu embaraccedilo ao hesitar entre considerar a semelhanccedila ou pelo contraacuterio a

dissemelhanccedila como responsaacutevel pela falsidade A razatildeo diz-lhe que o falso eacute aquilo

que oferece aos sentidos a semelhanccedila de outra coisa sem ser efectivamente essa

coisa a que se assemelha Todavia a razatildeo lembra-lhe ainda que o falso eacute tambeacutem

aquilo que estaacute longe de se assemelhar ao verdadeiro mas que dele implica uma

imitaccedilatildeo (imitatio)738

Para Santo Agostinho os pintores e os escultores fazem uso da mentira pois

enganam intencionalmente atraveacutes da semelhanccedila desigual que imprimem nas suas

obras ao figurarem coisas que na verdade natildeo passam de representaccedilotildees739

Tais

representaccedilotildees tecircm o propoacutesito de imitar aparecircncias daquilo que verdadeiramente eacute o que

aparenta ser Os objectos assim executados apelam mais aos sentidos ndash enganando-os

estrategicamente ndash do que agrave razatildeo Os objectos que natildeo satildeo fruto da capacidade

mimeacutetica dos artiacutefices podem enganar mas natildeo mentem pois natildeo tecircm qualquer

intenccedilatildeo de aparentar aquilo que natildeo satildeo

A falsidade natildeo eacute apenas da responsabilidade daqueles que mentem ou

enganam ela eacute tambeacutem uma consequecircncia do mau uso dos sentidos corpoacutereos por

parte da alma e dos erros de juiacutezo que esta comete Os olhos da carne natildeo podem ser

usados para tentar ver as coisas espirituais tal como o espiacuterito natildeo deve tentar

compreender os corpos porque nada haacute neles que valha por si740

Quando a alma

procura o que eacute verdadeiro e belo deixando de lado a verdade e a beleza ela prefere

as obras ao artiacutefice e agrave sua arte tomando-as pela proacutepria arte e por Aquele que a

criou741

Contudo se a alma se debruccedilar sobre as similitudines corporais jaacute com o

intuito de se elevar agraves verdades espirituais figuradas por essas similitudines o seu

movimento de elevaccedilatildeo cresce em vigor742

738

Cf Sol II 15 29

739 Cf De vera relig 33 61

740 De vera relig 34 62 (CCL 32 p 228) laquo Ille autem vult mentem convertere ad corpora oculos ad

Deum Quaerit enim intellegere carnalia et videre spiritalia quod fieri non potestraquo

741 Cf De vera relig 36 67

742 Ep 55 11 21 (CSEL 341 p 192) laquo[hellip] si vero feratur ad similitudines corporales et inde referatur

ad spiritalia quae illis similitudinibus figurantur ipso quasi transitu vegetatur et tanquam in facula ignis

agitatus accenditur et ardentiore dilectione rapitur ad quietemraquo

253

No uacuteltimo livro de De civitate Dei Santo Agostinho refere que graccedilas agrave

bondade e providecircncia de Deus o engenho humano foi capaz de inventar e aperfeiccediloar

uma infinidade de artes que demonstram o vigor e o alcance da sua mente e assim

servem tambeacutem para reiterar a magnificecircncia do Criador Entre as coisas de tais artes

mesmo as que satildeo supeacuterfluas ou perigosas atestam o extraordinaacuterio bem existente na

natureza a partir da qual o homem pocircde encontrar aprender e exercer tal variedade de

coisas

Mesmo que a alma nada consiga fazer destes bens esta capacidade de

adquirir tais bens divinamente inserida na natureza racional ndash quem poderaacute

convenientemente dizer ou compreeender quatildeo grande bem eacute quatildeo

admiraacutevel obra do Omnipotente eacute ela Aleacutem das artes de bem viver e de

chegar agrave imortal felicidade (agraves quais se daacute o nome de virtudes e que apenas

aos filhos da promessa e do reino satildeo dadas pela graccedila de Deus que estaacute em

Cristo) ndash natildeo foram inventadas e praticadas pelo geacutenio humano outras artes

numerosas e grandiosas umas necessaacuterias voluptaacuterias outras E uma tatildeo

excelente forccedila da mente e da razatildeo natildeo daacute testemunho mesmo nessas coisas

supeacuterfluas e ateacute perigosas e supersticiosas que deseja da quantidade de bens

existentes na natureza que lhe permitem descobrir aprender e praticar tais

artes A espantosa arguacutecia humana permitiu alcanccedilar maravilhosas obras de

vestuaacuterio e edificaccedilotildees progrediu na agricultura e na navegaccedilatildeo no fabrico

tanto de vasos estaacutetuas ou pinturas que com variedade idealizou e

concretizou nos teatros fez espectaacuteculos admiraacuteveis que exibiu a audiecircncias

estupefactas fez uso de vaacuterios e espantosos recursos para apanhar matar ou

domar os animais irracionais inventou toda a sorte de venenos armas e

maacutequinas contra os proacuteprios homens inventou remeacutedios e auxiacutelios para

defender e recuparar a sauacutede descobriu condimentos e estiacutemulos da gula

para o prazer da boca para expressar e inculcar os pensamentos inventou

uma multitude e variedade de signos dos quais se destacam as palavras e a

escrita para deleitar as almas magniacuteficos ornamentos do discurso e uma

grande diversidade de composiccedilotildees poeacuteticas para encantar o ouvido

inventou uma seacuterie de instrumentos musicais e magniacuteficos modos de canto

expocircs com grande periacutecia o conhecimento das dimensotildees e dos nuacutemeros

com sagacidade compreendeu os caminhos e as ordens das estrelas [hellip]743

743

De civ Dei XXII 24 (CCL 48 p 851) laquoQuod etsi non faciat ipsa talium bonorum capacitas in natura

rationali divinitus instituta quantum sit boni quam mirabileOmnipotentis opus quis competenter effatur

aut cogitat Praeter enim artes bene vivendi et ad immortalem perveniendi felicitatem quae virtutes

vocantur et sola Dei gratia quae in Christo est filiis promissionis regnique donantur nonne humano

ingenio tot tantaeque artes sunt inventae et exercitae partim necessariae partim voluptariae ut tam

excellens vis mentis atque rationis in his etiam rebus quas superfluas immo et periculosas perniciosasque

appetit quantum bonum habeat in natura unde ista potuit vel invenire vel discere vel exercere testetur

Vestimentorum et aedificiorum ad opera quam mirabilia quam stupenda industria humana pervenerit

quo in agricultura quo in navigatione profecerit quae in fabricatione quorumque vasorum vel etiam

statuarum et picturarum varietate excogitaverit et impleverit quae in theatris mirabilia spectantibus

254

Nesta periacutecope percebe-se que o Bispo de Hipona coloca as artes oficinais lado

a lado com as as artes liberais combinando-as com vista ao mesmo objectivo de louvar

a sabedoria suprema pela qual Deus conduz e dispotildee todas as coisas Como fruto do

engenho humano que eacute daacutediva de Deus ateacute mesmo certos produtos e aspectos culturais

menos dignos de estima contribuem para que se perceba o quatildeo extraordinaacuteria eacute a

natureza humana e por conseguinte o quatildeo extraordinaacuterio eacute Aquele que assim a criou

Vaacuterios anos antes em De doctrina christinana falando nas instituiccedilotildees humanas

(institutiones hominum) Santo Agostinho ressalta o seu caacuteracter convencional e

distingue aquelas que satildeo uacuteteis daquelas que satildeo supeacuterfluas Desde logo comeccedila a sua

abordagem falando nos signos que os histriotildees integram nas suas danccedilas Se estes

signos fossem naturais diz o Bispo de Hipona natildeo teria havido necessidade de

incumbir um arauto de explicar aos cidadatildeos de Cartago aquilo que o pantomimeiro

queria veicular aos espectadores com a sua danccedila A apresentaccedilatildeo feita pelos arautos

das intenccedilotildees codificadas nos signos pantomimados pelos histriotildees seria portanto uma

praacutetica antiga comum da qual Santo Agostinho diz haver ainda no seu tempo alguns

anciatildeos que tendo testemunhado tal praacutetica a costumavam descrever nos seus relatos

de tempos passados A mesma necessidade de um inteacuterprete eacute verificada quando algueacutem

natildeo acostumado ao teatro assiste a uma representaccedilatildeo inutilmente essa pessoa poderaacute

dedicar toda a sua atenccedilatildeo ao que estaacute a decorrer em cena pois natildeo iraacute compreender os

seus signos a menos que outra pessoa lhos explique744

Passando para as pinturas para

as estaacutetuas e outros objectos figurativos afins o Bispo de Hipona diz que natildeo haacute

margem de erro ndash sobretudo se tais objectos tiverem sido executados por artesatildeos

experientes ndash pois eacute faacutecil reconhecer o que representam observando a semelhanccedila entre

a coisa e a sua representaccedilatildeo745

Tanto a danccedila dos histriotildees quanto os objectos

audientibus incredibilia facienda et exhibenda molita sit in capiendis occidendis domandis

irrationabilibus animantibus quae et quanta reppererit adversus ipsos homines tot genera venenorum tot

armorum tot machinamentorum et pro salute mortali tuenda atque reparanda quot medicamenta atque

adiumenta comprehenderit pro voluptate faucium quot condimenta et gulae irritamenta reppererit ad

indicandas et suadendas cogitationes quam multitudinem varietatemque signorum ubi praecipuum locum

verba et litterae tenent ad delectandos animos quos elocutionis ornatus quam diversorum carminum

copiam ad mulcendas aures quot organa musica quos cantilenae modos excogitaverit quantam peritiam

dimensionum atque numerorum meatusque et ordines siderum quanta sagacitate comprehenderit (hellip)raquo

744 Cf De doct christ II 25 38

745 Cf De doct christ II 25 39

255

figurativos feitos pelos artesatildeos satildeo considerados pelo filoacutesofo como instituiccedilotildees

supeacuterfluas a menos que tais signos se revistam de algum interesse no que toca agrave sua

razatildeo de ser ao seu contexto espacial e temporal ou agrave autoridade que promoveu a sua

execuccedilatildeo A mesma natureza eacute assinalada por Santo Agostinho relativamente agraves faacutebulas

e agraves ficccedilotildees mentirosas que tanto atraiem os homens Com efeito eacute proacuteprio das obras

humanas possuirem uma natureza fundamentalmente falsa e mentirosa746

Por oposiccedilatildeo agrave danccedila agrave pintura e agrave escultura surgem as instituiccedilotildees humanas

consideradas uacuteteis e necessaacuterias como satildeo exemplo as vestes e os ornamentos

exteriores que servem para distinguir os sexos e as dignidades Como estes tambeacutem satildeo

contemplados nesta categoria todos os signos que possibilitam ou pelo menos

facilitam as relaccedilotildees sociais Assim Santo Agostinho cita os pesos as medidas bem

como a efiacutegie e o valor das moedas proacuteprias a cada povo Se natildeo houvesse convenccedilotildees

deste geacutenero nada seria distinto entre um povo nem nada tornaria cada povo singular

Todas as instituiccedilotildees humanas que servem utilmente ou necessariamente um

povo merecem a atenccedilatildeo dos cristatildeos e devem ser retidas na memoacuteria Pelo contraacuterio

deveratildeo rejeitar-se todas aquelas que servem para pactuar com os demoacutenios

Relativamente agraves instituiccedilotildees que tecircm por objecto as relaccedilotildees dos homens entre si eacute

possiacutevel usaacute-las naquilo que natildeo tecircm nem de supeacuterfluo nem de excessivo eacute o caso das

letras sem as quais natildeo poderiacuteamos ler ou o conhecimento de diversos idiomas na

medida da sua utilidade Santo Agostinho cita ainda o exemplo das notas a partir das

quais foi dado o nome de notaacuterios agravequeles que se lhes dedicam Jaacute que natildeo se baseiam

em nenhuma supersticcedilatildeo nem debilitam com o luxo estas instituiccedilotildees satildeo uacuteteis e natildeo eacute

desaconselhado que o homem nelas se instrua desde que a atenccedilatildeo que lhes dedique

natildeo constitua um obstaacuteculo aos fins mais importantes para os quais elas concorrem747

Nesta mesma obra o Bispo de Hipona diz que entre as diversas artes haacute

algumas cujo propoacutesito eacute de fabricar algo de relativamente duraacutevel como uma casa um

moacutevel ou um vaso outras como a agricultura a medicina ou o governo servem como

uma espeacutecie de instrumento da acccedilatildeo divina haacute outras ainda cujo efeito se exaure na

proacutepria acccedilatildeo eacute o caso da danccedila do atletismo ou da luta Em qualquer uma destas artes

a experiecircncia passada serve para conjecturar o futuro pois todos aqueles que nelas se

746

Ibid (CCL 32 p 61) laquoEt nulla magis hominum propria quae a seipsis habent existimanda sunt

quam quaeque falsa atque mendaciaraquo

747 Cf De doct christ II 26 40

256

exercem baseiam o seu trabalho na relaccedilatildeo entre a lembranccedila dos efeitos passados e a

esperanccedila de resultados similares no futuro748

Este exerciacutecio de previsatildeo inerente a

qualquer praacutetica artiacutestica seja ela mecacircnica ou liberal pode de algum modo reiterar um

aspecto positivo jaacute aqui apontado em relaccedilatildeo agraves artes como a pintura e a escultura o de

que a presciecircncia e por extensatildeo a intuiccedilatildeo das realidades eternas podem ser

exercitadas a partir do trabalho da memoacuteria nelas impliacutecito seja no acircmbito da

recordaccedilatildeo seja no da imaginaccedilatildeo

Em relaccedilatildeo agraves artes na sua acepccedilatildeo geral Santo Agostinho diz ainda que eacute bom

durante o curso da vida terrena que o homem se dedique um pouco e quase de fugida ao

conhecimento delas natildeo para as exercer a menos que uma profissatildeo particular a isso

obrigue mas meramente para as poder julgar e para natildeo ignorar aquilo que a Escritura quer

dar a entender quando emprega locuccedilotildees figuradas que tecircm origem neste tipo de fontes749

Eacute bastante clara a ambivalecircncia com que o Bispo de Hipona se refere agraves artes

como a pintura e a escultura ora distinguindo-as enfaticamente das actividades humanas

que tem por mais elevadas ora incluindo todas no mesmo acircmbito e assinalando

caracteriacutesticas comuns Natildeo eacute portanto estranho vecirc-lo elogiar estas artes em determinados

contextos para logo de seguida lhes apontar severas criacuteticas Haacute que ter em conta que os

elogios natildeo satildeo direccionados para o produto artiacutestico em si mas para a inteligibilidade

que envolvem na sua produccedilatildeo e para a qual podem remeter se durante a sua recepccedilatildeo

por parte do fruidor forem bem ajuizadas Mais frequentes do que os elogios as criacuteticas

dizem sobretudo respeito ao facto de apelarem muito directamente aos sentidos corpoacutereos

e de a relaccedilatildeo de semelhanccedila nelas cultivada se reportar aos corpos que jaacute por si satildeo

semelhanccedilas distantes de realidades inteligiacuteveis Por razotildees jaacute aqui referidas750

Santo

Agostinho tem a arte figurativa em baixa estima Talvez se nos objectos artiacutesticos do seu

tempo pudesse ter encontrado exemplos abstraccionistas as suas consideraccedilotildees sobre as

artes visuais se aproximassem mais daquilo que diz acerca da muacutesica

Em De quantitate animae751

a muacutesica surge como uma invenccedilatildeo humana a par

da arquitectura da pintura da escultura e da poesia mas para o filoacutesofo a muacutesica

748

Cf De doct christ II 30 47

749 Cf Ibid

750 Vide pp 228-229 do presente ensaio

751 Cf De quant an 33 72 Vide p 163

257

destaca-se de todas as outras invenccedilotildees da razatildeo ligadas aos signos e agraves imagens Com

efeito a muacutesica pode figurar coisas miacutesticas dignas de serem consagradas a Deus

assim o diz Santo Agostinho a propoacutesito das composiccedilotildees musicais do rei David752

Como ciecircncia de bem modular e de bem mover753

a muacutesica dirige-se agrave razatildeo e eacute um dos

domiacutenios onde o nuacutemero marca maior presenccedila A ordenaccedilatildeo e a justa medida dos

movimentos implicados nos sons traduzem as implicaccedilotildees numeacutericas que organizam

todo o universo A muacutesica natildeo soacute se distingue das artes oficinais como tambeacutem se

distingue das demais artes liberais pelo modo quase directo com que permite agrave razatildeo

constatar a perfeiccedilatildeo da beleza Apelando simultaneamente aos sentidos e agrave razatildeo ela

torna perceptiacutevel a continuidade existente entre a beleza superior e as suas

manifestaccedilotildees sensiacuteveis A muacutesica presta-se a tal entendimento jaacute que o proacuteprio ser

humano possui um ritmo interior que natildeo eacute alheio agrave capacidade de sentir prazer face aos

ritmos sensiacuteveis e que eacute ele mesmo afim dos nuacutemeros superiores754

No polo oposto da posiccedilatildeo ocupada pela muacutesica na escala agostiniana de

consideraccedilatildeo pelos produtos culturais estatildeo todas as artes ligadas aos espectaacuteculos de

entretenimento como o teatro a danccedila as lutas de arena ou os jogos circenses Em

Confessionum Santo Agostinho relata como os espectaacuteculos teatrais o arrebatavam ao

devolverem uma imagem das suas proacuteprias miseacuterias e ao alimentarem as afecccedilotildees da

sua alma755

O condoimento experimentado face a tais espectaacuteculos estaacute na base de um

752

De civ Dei XVII 14 (CCL 48 p 570) laquoErat autem David vir in canticis eruditus qui harmoniam

musicam non vulgari voluptate sed fideli voluntate dilexerit eaque Deo suo qui verus est Deus mystica

rei magnae figuratione servierit Diversorum enim sonorum rationabilis moderatusque concentus concordi

varietate compactam bene ordinatae civitatis insinuat unitatemraquo

753 Cf De mus I 2 2 e I 3 4

754 Santo Agostinho fala especificamente nos movimentos da alma que ocorrem na sensaccedilatildeo na acccedilatildeo na

lembranccedila e no julgamento Cf De mus VI 9 24 (PL 321176-1177) laquoNos ergo in istis generibus

numerandis et distinguendis unius naturae id est animae motus affectiones que dispicimus Quare si ut

aliud est ad ea quae corpus patitur moveri quod fit in sentiendo aliud movere se ad corpus quod fit in

operando aliud quod ex his motibus in anima factum est continere quod est meminisse ita est aliud

annuere vel renuere his motibus aut cum primitus exseruntur aut cum recordatione resuscitantur quod

fit in delectatione convenientiae et offensione absurditatis talium motionum sive affectionum et aliud est

aestimare utrum recte an secus ista delectent quod fit ratiocinando necesse est fateamur ita haec esse duo

genera ut illa sunt trio Et si recte nobis visum est nisi quibusdam numeris esset ipse delectationis sensus

imbutus nullo modo eum potuisse annuere paribus intervallis et perturbata respuere recte etiam videri

potest ratio quae huic delectationi superimponitur nullo modo sine quibusdam numeris vivacioribus de

numeris quos infra se habet posse iudicareraquo

755 Cf Conf III 2 2

258

prazer doentio que natildeo se baseia na compaixatildeo mas numa curiosidade torpe Ora a

curiosidade eacute fonte de perversatildeo sobretudo ao niacutevel deste tipo de fruiccedilatildeo (voluptas) em

que o espectador tanto se compraz com o gozo como com as dores que os personagens

parecem sentir O proacuteprio Bispo de Hipona descreve como em tempos passados

compartilhava no teatro da satisfaccedilatildeo dos amantes que mutuamente se gozavam pela

torpeza e como piedosamente se contristava quando se desgraccedilavam Tal piedade era

poreacutem falsa pois provinha de um comprazimento egoiacutesta por natildeo ser o proacuteprio a sofrer

tais provaccedilotildees Contrariamente agrave teoria aristoteacutelica da catarse associada ao teatro Santo

Agostinho considera que quanto mais algueacutem se deixar influenciar pelas emoccedilotildees de

tais espectaacuteculos menos livre eacute de semelhantes paixotildees como se escarafunchasse uma

ferida provocando a sua inflamaccedilatildeo e supuraccedilatildeo756

Eacute salutar sentir compaixatildeo desde que tal atitude conduza ao auxiacutelio daquele que

padece Natildeo eacute o caso das sensaccedilotildees despertadas pelo teatro que levam o espectador a

ansiar assistir a cada vez mais padecimentos para se comprazer e que paradoxalmente

fomentam uma postura de indiferenccedila jaacute que nunca estaacute em causa acorrer agraves

necessidades do personagem sofredor Santo Agostinho afirma que a pessoa

verdadeiramente misericordiosa preferiria que nenhuma dor houvesse de que se

compadecesse757

Aqueles que se deixam dominar pela curiosidade acabam por procurar

o prazer em toda a sorte de coisas ndash inclusivamente nas mais soacuterdidas ndash e subvertem

assim a natureza do sentimento esteacutetico e o ordo amoris no qual se alicerccedila o

posicionamento moral O prazer deixa de correr atraacutes do belo do harmonioso do suave

do saboroso do brando e passa a procurar os seus contraacuterios natildeo sendo de estranhar

haver quem se compraza ante a visatildeo horriacutevel de um cadaacutever dilacerado758

Eacute por isto

756

Conf III 2 2 (CCL 27 p 27) laquoNam eo magis eis movetur quisque quo minus a talibus affectibus

sanus est [hellip]raquo e III 2 4 (p 28) laquoAt ego tunc miser dolere amabam et quaerebam ut esset quod dolerem

quando mihi in aerumna aliena et falsa et saltatoria ea magis placebat actio histrionis meque alliciebat

vehementius qua mihi lacrimae excutiebantur Quid autem mirum cum infelix pecus aberrans a grege tuo

et impatiens custodiae tuae turpi scabie foedarer Et inde erant dolorum amores non quibus altius

penetrarer (non enim amabam talia perpeti qualia spectare) sed quibus auditis et fictis tamquam in

superficie raderer quos tamen quasi ungues scalpentium fervidus tumor et tabes et sanies horrida

consequebaturraquo

757 Cf Conf III 2 3

758 Conf X 35 55 (CCL 27 p 185) laquoEx hoc autem evidentius discernitur quid voluptatis quid

curiositatis agatur per sensus quod voluptas pulchra canora suavia sapida lenia sectatur curiositas

autem etiam his contraria temptandi causa non ad subeundam molestiam sed experiendi noscendique

libidineraquo

259

que as cenas monstruosas nascidas de supersticcedilotildees tanto agradam ao puacuteblico nos

espectaacuteculos teatrais A exibiccedilatildeo de tais cenas incentiva os homens a que se debrucem

sobre os assuntos preternaturais que nada de proveitoso podem dar a conhecer

enleando-os na viciosidade do saber soacute por saber

No tempo de Santo Agostinho era ainda comum levar-se agrave cena espectaacuteculos

teatrais como trageacutedias ou comeacutedias de acordo com a tradiccedilatildeo claacutessica poreacutem agrave

medida que se acentua o decliacutenio do impeacuterio romano os teatros anfiteatros e circos

servem sobretudo de palco a espectaacuteculos violentos de lutas de gladiadores e animais

onde quase sempre ocorriam mortes Eacute a este tipo de entretenimento que o Bispo de

Hipona se refere para criticar o apego do seu aluno Aliacutepio aos espectaacuteculos759

A

descriccedilatildeo que faz da reacccedilatildeo de Aliacutepio ao clamor do puacuteblico e agrave visatildeo do sangue do

gladiador demonstra como a sua criacutetica vai precisamente de encontro aos problemas

apontados para o teatro claacutessico Na leitura de Santo Agostinho ambos satildeo exemplo da

perversatildeo da amizade que natildeo daacute lugar a uma real comunidade mas a uma resposta

egoiacutesta por parte do espectador Corrompendo a piedade transforma-a em crueldade

evidenciando precisamente o processo inverso agravequele que Cristo empreende ao sofrer e

morrer pela humanidade Se os espectadores dos espectaacuteculos teatrais granjeiam a

curisosidade (curisositas) Cristo pelo inveacutes fomenta a caridade (caritas) A

incapacidade de Aliacutepio se abstrair de todo o contexto conforme inicialmente era a sua

vontade revela ainda como este tipo de espectaacuteculos desvia a alma da sua interioridade

Quando se refere agrave danccedila Santo Agostinho tem em mente os histriotildees Segundo

Tito Liacutevio estas figuras ligadas ao entretenimento teratildeo nascido a partir de uma

variaccedilatildeo das danccedilas etruscas imitadas pelos jovens que lhes foram integrando ditos

burlescos e modificando os movimentos que eram acompanhados pelo som de uma

flauta Uma segunda variaccedilatildeo de tais danccedilas aproximou-as mais daquilo que hoje satildeo

os espectaacuteculos de bailado e muacutesica jaacute que os histriotildees foram abandonando os ditos

jocosos e rudes que iam improvisando agrave desgarrada para encenarem saacutetiras plenas de

melodia com um canto entoado de acordo com as modulaccedilotildees da flauta e com gestos

ordenados que tambeacutem seguiam tal medida760

759

Cf Conf VI 8 13

760 Tito Liacutevio Ab Urbe Condita VII 2 Segundo este autor a proacutepria origem do teatro remonta agrave figura dos

histriotildees que foram delegando o canto para outras pessoas ndash que mais tarde viriam a constituir o coro ndash e

que ao adequarem as suas danccedilas a intrigas cada vez mais complexas comeccedilaram a integrar diaacutelogos nas

suas actuaccedilotildees

260

O Bispo de Hipona condena os histriotildees com base nos seus cantos e posturas

obscenas761

chega inclusivamente a equiparaacute-los agraves meretrizes afirmando que estes

dois grupos de pessoas bem como todos aqueles que tambeacutem professam publicamente o

deboche (turpitudo) natildeo satildeo dignos de aceder aos sacramentos cristatildeos a menos que se

libertem de todo e qualquer viacutenculo com tais actividades762

Apesar de conseguirem

cativar o ouvido da audiecircncia com os seus cantos os histriotildees satildeo incapazes de

conhecer os segredos da muacutesica Logo no primeiro livro de De musica Santo Agostinho

demonstra como o facto de terem em vista a recompensa monetaacuteria no final das suas

actuaccedilotildees prova que os histriotildees natildeo tecircm conhecimento da arte que apenas mimetizam

Os histriotildees valorizam mais as gratificaccedilotildees que recebem pelo seu desempenho do que a

arte que estaacute por traacutes dele pelo que soacute pode concluir-se que desconhecem tal arte

Aquele que toma por inferior uma coisa superior natildeo pode dela ter scientia763

Tanto nos cantos como nos movimentos dos histriotildees haacute vulgariadades (vilia) que

natildeo poderatildeo considerar-se modulationes sem rebaixar a muacutesica que eacute uma arte quase

divina764

O domiacutenio que o histriatildeo tem da muacutesica eacute semelhante ao do rouxinol que apesar

de modular bem o seu trinado desconhece os nuacutemeros que estatildeo na base das harmonias e

dos intervalos entre os sons graves e os agudos765

A muacutesica que ocorra por instinto ou

imitaccedilatildeo natildeo merece tal nome de acordo com a perspectiva agostiniana Sem intervenccedilatildeo

iluminada da razatildeo natildeo haacute portanto arte Muitos satildeo aqueles que natildeo percebem a regra

(approbandi modus) que lhes permite criar obras belas apesar de recorrerem quase

instintivamente agrave sua luz invisiacutevel para fabricar as belezas exteriores que deleitam766

761

Cf De civ Dei II 6

762 Cf De fide et op 18 33

763 Cf De mus I 6 11-12

764 Cf De mus I 2 3

765 cf De mus I 4 5

766 Conf X 34 53 laquoQuam innumerabilia variis artibus et opificiis in vestibus calceamentis vasis et

cuiuscemodi fabricationibus picturis etiam diversisque figmentis atque his usum necessarium atque

moderatum et piam significationem longe transgredientibus addiderunt homines ad illecebras oculorum

foras sequentes quod faciunt intus relinquentes a quo facti sunt et exterminantes quod facti sunt At ego

Deus meus et decus meum etiam hinc tibi dico hymnum et sacrifico laudem sanctificatori meo quoniam

pulchra traiecta per animas in manus artificiosas ab illa pulchritudine veniunt quae super animas est cui

suspirat anima mea die ac nocte Sed pulchritudinum exteriorum operatores et sectatores inde trahunt

approbandi modum non autem inde trahunt utendi modum Et ibi est et non vident eum ut non eant

longius et fortitudinem suam ad te custodiant nec eam spargant in deliciosas lassitudinesraquo

261

Apesar de serem vaacuterias as passagens sobre as artes que podemos encontrar nas

obras de Santo Agostinho natildeo cremos poreacutem que haja mateacuteria suficiente para reconhecer

uma filosofia da arte no seu pensamento esteacutetico Para que tal ocorresse seria necessaacuterio

encontrarmos uma reflexatildeo mais autoacutenoma e mais centrada na natureza dos objectos

artiacutesticos que nem mesmo no caso da muacutesica se verifica Como ciecircncia ou disciplina as

consideraccedilotildees tecidas acerca da muacutesica satildeo sobretudo respeitantes ao modo como a razatildeo

lida com as harmonias e como o seu conhecimento lhe permite progredir atraveacutes delas

incidindo mais na natureza ordenada do cosmo do que na muacutesica como objecto artiacutestico

Mais do que uma filosofia da arte haacute um percurso que vai da epistemologia

fenomenoloacutegica ateacute agrave metafiacutesica e que estaacute eivado de consideraccedilotildees sobre a beleza Haacute

sem sombra de duacutevidas uma teoria do belo fundada no conceito de numerus A temaacutetica

da beleza eacute de forccedila maior na esteacutetica agostinina mas natildeo se reveste de importacircncia

fulcral no que toca agrave atenccedilatildeo parcimoniosa que o Bispo de Hipona dedica aos objectos

artiacutesticos e natildeo chega para definir uma filosofia da arte

263

2 Um sistema esteacutetico agostiniano

21 - Por que razatildeo se deve falar sem medo numa esteacutetica agostiniana

Natildeo cremos que as consideraccedilotildees tecidas por Santo Agostinho a propoacutesito das

artes sejam suficientes para definir um nuacutecleo de abordagem proacuteprio da filosofia da arte

como hoje a entendemos mas enfatizamos a importacircncia da teoria do belo ao longo de

todo o seu pensamento filosoacutefico Ainda que nos nossos dias a teoria do belo natildeo

assuma no seio da filosofia da arte a relevacircncia de outrora ela manteacutem-se parcialmente

como um dos seus subnuacutecleos constituintes e nesse acircmbito poderaacute ateacute reconhecer-se

uma entrada parcimoniosa de Santo Agostinho em tal domiacutenio767

Ainda assim seria um

erro considerar que a beleza perspectivada pelo Bispo de Hipona relativamente agraves obras

humanas as faz coincidir directamente com os objectos que tomamos por artiacutesticos em

pleno seacuteculo XXI

Haacute ainda a ter em conta que a teoria do belo natildeo estaacute totalmente confinada agrave

alccedilada da filosofia da arte Na verdade haacute uma interpenetraccedilatildeo de esferas ou

sobreposiccedilatildeo parcial destes domiacutenios que faz com que ambas partilhem um nuacutecleo

comum natildeo obstante fora de tal nuacutecleo tanto o belo como a arte seguem os seus

proacuteprios caminhos com total independecircncia um do outro

Natildeo eacute por deixar de contemplar uma filosofia da arte que se deixa de poder

reconhecer no pensamento agostiniano uma forte dimensatildeo esteacutetica Por outro lado

mesmo anuindo quanto agrave importacircncia que a teoria do belo assume na reflexatildeo do Bispo

de Hipona tambeacutem natildeo consideramos que ela seja indispensaacutevel para podermos falar de

uma esteacutetica agostiniana A abrangecircncia da dimensatildeo esteacutetica eacute mais lata do que o

acircmbito da teoria do belo e da filosofia da arte nela subsumidas

Para Santo Agostinho as obras satildeo belas porque satildeo bem feitas porque revelam

mestria na teacutecnica porque as suas partes se conjugam convenientemente e porque satildeo

767

Ao escrevermos ldquoteoria do belordquo e ldquofilosofia da arterdquo estamos meramente a usar expressotildees com base

na sua utilizaccedilatildeo mais comum a este niacutevel natildeo fazemos qualquer distinccedilatildeo entre ldquofilosofiardquo e ldquoteoriardquo

pelo que teria sido equivalente usarmos expressotildees como ldquoteoria da arterdquo e ldquofilosofia do belordquo

264

adequadas na sua utilidade material conceptual e moral mas sobretudo satildeo belas por

participarem atraveacutes dos numeri na natureza divina A categoria do belo no

pensamento agostiniano desvia por um lado a atenccedilatildeo da obra para o Criador mas por

outro lado natildeo o faz sem antes abrir a porta para uma dimensatildeo mais vasta que eacute a da

esteacutetica propriamente dita ndash a esteacutetica no seu sentido mais lato Essa abertura propiciada

pela beleza conforme Santo Agostinho a perspectiva baseia-se no facto de esta

categoria natildeo estar limitada a cacircnones formais e de implicar uma noccedilatildeo de ordem que

escapa tambeacutem ela a uma loacutegica matemaacutetica ndash natildeo esqueccedilamos que se trata sobretudo

de um ordo amoris ndash a dimensatildeo afectiva nela impliacutecita canaliza o belo para uma eacutetica

englobante e anuncia outras dimensotildees onde tal categoria natildeo marca presenccedila directa

O belo natildeo estaacute necessariamente presente quando entram em cena as

consideraccedilotildees acerca da sensaccedilatildeo acerca do modo como eacute feita a valoraccedilatildeo das

impressotildees sensiacuteveis acerca do funcionamento mnemoacutenico da imaginaccedilatildeo ou dos

mecanismos remissivos das imagens Tambeacutem natildeo tem papel particularmente relevante

no modo significativo e expressivo como certos aspectos do quotidiano deixam marca

no sujeito Os proacuteprios relatos com que Santo Agostinho nos presenteia em

Confessionum ora mesclados de uma aura melancoacutelica ora de vibrante paixatildeo

convidam como que a um mergulho em dimensotildees subjectivas onde a voz do autor

deixa espaccedilo de encaixe agrave personalidade do seu leitor e que apesar de natildeo explorar

filosoficamente o funcionamento de tais relatos tecircm pelo seu estro uma presenccedila muito

importante e significativa na obra agostiniana O mecanismo de projecccedilatildeo que decorre

de certas descriccedilotildees revela-se quase ao jeito de uma madalena proustiana Haacute algo mais

do que uma liccedilatildeo de moral no relato do roubo das peras por exemplo A forma como

essa descriccedilatildeo convoca impressotildees e lembranccedilas associadas a sentimentos ambiacuteguos de

culpa e inocecircncia fazendo com que o leitor partilhe efectivamente do estado

confessional e da catarse do autor obedece a um mecanismo expressivo de sugestatildeo

que eacute do acircmbito da esteacutetica Poderia aqui ser considerada mais uma entrada indirecta

no domiacutenio da filosofia da arte todavia Santo Agostinho natildeo demonstra qualquer

interesse em explorar tal via filosoficamente ndash ainda que sem essa intenccedilatildeo a sua

entrada eacute na produccedilatildeo da arte propriamente dita como literato que faz uso de uma

expressividade requintada e quase dramaacutetica natildeo eacute de todo uma entrada na teorizaccedilatildeo

de tal estrateacutegia expressiva

A esteacutetica contempla todas as dimensotildees que a mera teoria do belo deixa de fora

ultrapassando-a sem deixar de a integrar A sua abordagem mais transversal permite

265

reduzir a preeminecircncia da beleza o que aliado agrave demarcaccedilatildeo relativamente agrave filosofia

da arte lhe consente uma liberdade pouco usual nos outros modos de ver o mundo Tal

como a podemos reconhecer no pensamento agostiniano a esteacutetica natildeo eacute meramente

teoloacutegica ainda que esse seja o seu cariz dominante Ela manifesta a profundidade da

experiecircncia humana no mundo ao mesmo tempo que a reporta agrave vocaccedilatildeo religiosa do

encontro com Deus Mesmo estando o seu horizonte uacuteltimo sempre na divindade o

homem eacute considerado na sua dimensatildeo sensiacutevel como sendo esta a que mais

especificamente o define

Eacute bastante curioso perceber que para Santo Agostinho nem mesmo no corpo

celestial os sentidos exteriores satildeo descartados O seu funcionamento eacute idecircntico ao que

ocorria no corpo terreno com a particularidade de os sentidos natildeo serem jaacute necessaacuterios

A alma do homem ressurrecto contempla Deus e relaciona-se com as demais almas e

com o que a rodeia atraveacutes de uma clarissima perspicuitas768

os sentidos satildeo totalmente

supeacuterfluos e no entanto permanecem activos como se o homem pudesse escolher fazer

uso deles pelo mero prazer que essa sensibilidade lhe pode conferir Natildeo haacute outra

explicaccedilatildeo para o papel activo dos sentidos corpoacutereos na esfera celestial

Na sua existecircncia terrena o homem precisava da sensibilidade para se relacionar

com as coisas como se tal imposiccedilatildeo tivesse resultado de um castigo decorrente da

expulsatildeo do Paraiacuteso Nessa condiccedilatildeo mortal os sentidos exteriores eram o interface

entre a alma e o mundo ao mesmo tempo que permitiam a vivecircncia normal do homem

tambeacutem limitavam de certo modo a sua alma pois faziam da experiecircncia terrena uma

experiecircncia indirecta e sujeita ao erro Na existecircncia superior a alma como que eacute tocada

directamente pelas realidades aiacute existentes e a possibilidade de fazer uso dos sentidos

externos como a visatildeo ou a audiccedilatildeo parece ser agora uma recompensa extra do seu

estado contemplativo O proacuteprio facto de haver uma dimensatildeo paradisiacuteaca que se presta

agraves sensaccedilotildees concorre como prova disso

O homem vivia entatildeo em conformidade com Deus no paraiacuteso corporal e

espiritual Natildeo havia com efeito um paraiacuteso corporal especiacutefico para os bens

do corpo e um paraiacuteso espiritual para os bens do espiacuterito do mesmo modo

um paraiacuteso espiritual para que o homem pudesse fruir atraveacutes da faculdade

interior natildeo poderia existir sem um paraiacuteso corporal para que desfrutasse

768

Cf De civ Dei XX 29

266

atraveacutes dos sentidos exteriores Havia claramente um paraiacuteso dual para o

bem de ambos769

Apesar de Santo Agostinho soacute se referir explicitamente agrave dualidade paradisiacuteaca

em relaccedilatildeo agrave vivecircncia de Adatildeo e de Eva antes do pecado original natildeo haacute razatildeo para

deixar de a considerar relativamente agrave vivecircncia do homem ressurrecto afinal de

contas eacute certo que esta nova vivecircncia eacute bastante mais rica do que qualquer outra e que

a total conformidade do corpo celestial agrave alma permite que o homem se possa

relacionar com todo o tipo de realidades deleitaacuteveis sem que a sua alma seja

acometida por qualquer perturbaccedilatildeo

Natildeo haacute outra finalidade para o aparente contra-senso que satildeo as realidades

sensiacuteveis celestiais do que o puro prazer Natildeo haacute nenhum estaacutedio mais elevado que o

homem possa alcanccedilar pelo que tambeacutem natildeo haacute mais nenhum aperfeiccediloamento ou

aprendizagem a que a alma possa aspirar Se na existecircncia terrena a relaccedilatildeo com os

sensibilia deveria estar sempre vinculada a uma finalidade condenando a sua fruiccedilatildeo e

enfatizando o seu caraacutecter utilitaacuterio jaacute na experiecircncia contemplativa do homem

ressurrecto as realidades que se prestam aos sentidos podem ser licitamente fruiacutedas O

prazer desinteressado isto eacute o prazer pelo prazer parece assim constituir-se como uma

das caracteriacutesticas da vida eterna Talvez seja ele que impeccedila que a contemplaccedilatildeo da

eternidade natildeo seja um lago estagnado afinal de contas tal como nota Peter Brown o

Bispo de Hipona jaacute havia perspectivado o prazer como o uacutenico motor da acccedilatildeo770

Claro

que a acccedilatildeo tinha por meta a contemplaccedilatildeo alcanccedilando-a ela eacute transformada em

relaccedilatildeo pura Contrariamente a Plotino que perspectivava para a alma uma eternidade

em total identificaccedilatildeo com a sua origem uacuteltima Santo Agostinho defende que o homem

ressurrecto manteacutem todos os traccedilos da sua individualidade inclusivamente os

fisionoacutemicos mas numa versatildeo aperfeiccediloada Essa manutenccedilatildeo da identidade no plano

divino natildeo sendo de todo impeditiva da quietude enquanto serenidade eacute oposta ao

cessar o homem natildeo deixa de sentir e natildeo deixa de se relacionar

769

De civ Dei XIV 11 (CCL 48 p 433) laquoVivebat itaque homo secundum Deum in paradiso et corporali

et spiritali Neque enim erat paradisus corporalis propter corporis bona et propter mentis non erat

spiritalis aut vero erat spiritalis quo per interiores et non erat corporalis quo per exteriores sensus homo

frueretur Erat plane utrumque propter utrumqueraquo

770 Cf Peter Brown Augustine of Hippo A Biography A New Edition with an Epilogue Berkeley and L

A University of California Press 2000 p 148

267

Se pudeacutessemos resumir o pensamento agostiniano a um uacutenico toacutepico diriacuteamos

que ele tematiza a incessante busca da felicidade humana Mas que felicidade humana eacute

esta que soacute se alcanccedila com a imortalidade Natildeo seraacute ela um estado fundamentalmente

esteacutetico cujas vias de acesso jaacute por si mobilizam dimensotildees e categorias esteacuteticas A

compreensatildeo das coisas para laacute da sua experiecircncia fenomeacutenica para laacute da proacutepria

sensiecircncia ultrapassa os limites da subjectividade para alcanccedilar o domiacutenio da verdade

comum partilhaacutevel permitindo portanto a relaccedilatildeo ao mais alto niacutevel da sua

possibilidade A base ontoloacutegica para a relaccedilatildeo durante a experiecircncia terrena eacute o

nuacutemero mas se sensivelmente ele era traduzido pela multiplicidade jaacute pela beatitudo

o homem acede agrave sua irredutiacutevel unidade e ao modo de relaccedilatildeo puramente qualitativo O

aspecto universal daquilo que funda os diferentes modos dos seres humanos

experienciarem sensivelmente o que os rodeia eacute precisamente o que estaacute em causa na

contemplaccedilatildeo da realidade divina

O Deus cristatildeo que o homem ressurrecto contempla e que eacute summus

numerus ou medida qualitativa de tudo o que existe pode ser perspectivado como

um super-quale transcendental Se os numeri funcionavam como disposiccedilotildees

relacionais pelas quais as formas corpoacutereas remetiam qualitativamente (atraveacutes da sua

beleza) para o plano inteligiacutevel entatildeo a contemplaccedilatildeo do nuacutemero supremo seraacute jaacute a

consciecircncia englobante do funcionamento de tais qualia fazendo equivaler o alcance da

sabedoria agrave estese plena do carmen universitatis Natildeo significa isto que Deus seja

percebido como qualidade (qualitas) mas como consciecircncia qualitativa coacutesmica e

simultaneamente como substacircncia espiritual exterior determinante causal dessa

consciecircncia qualitativa Por um lado Ele constitui-se como disposiccedilatildeo relacional

exterior ao sujeito e por outro lado como conteuacutedo mental de um estado perceptivo

directamente equivalente agrave consciecircncia de tal disposiccedilatildeo A contemplaccedilatildeo divina

articula em simultacircneo uma interioridade pela qual Deus faz presente no homem e uma

exterioridade que permite ao homem tornar-se presente em Deus mantendo a sua

identidade sem cair na indiferenciaccedilatildeo que por exemplo Plotino advogava como

caracteriacutestica do regresso ao Uno Sem esta dimensatildeo exterior o homem transformar-

se-ia na divindade coisa que jamais ocorre relativamente ao Deus cristatildeo

268

O homem no seio da esfera divina percebe Deus dentro si em sintonia perfeita

com Deus exterior como uma extimidade771

Quando Plotino dizia que a alma tinha de

ser bela para poder contemplar a beleza natildeo estava longe desta perspectiva que natildeo

podendo transformar o homem em Deus aposta na reformaccedilatildeo da imagem de Deus no

homem a um grau de semelhanccedila que raia a igualdade e que culmina com um estado

qualitativo de identificaccedilatildeo entre a consciecircncia de tal estado e a sua causa O sujeito natildeo

passa a coincidir com Deus mas a consciecircncia que tem da sua relaccedilatildeo com a divindade

passa a fazer equivaler as qualidades percebidas com a substacircncia Mais do que uma

percepccedilatildeo directa de atributos divinos a beatitude eacute a divinizaccedilatildeo do prazer pela

reconduccedilatildeo da experiecircncia do nuacutemero agrave sua substancialidade pura Ainda assim natildeo

seria correcto concluir que Santo Agostinho perspectiva um hedonismo escatoloacutegico

pois a beatitude eacute pressuposta como uma recompensa ela eacute o resultado do

posicionamento virtuoso do homem que na vida terrena sempre instrumentalizava o

prazer em prol da elevaccedilatildeo da sua alma ateacute Deus Alcanccedilado tal ideal o prazer deixa de

ter outra finalidade para laacute de si mesmo todavia ele eacute experienciado como um resultado

do amor a Deus e soacute nesse sentido eacute que eacute um bem supremo A beatitude agostiniana

corresponde portanto a um eudemonismo e natildeo a um hedonismo pois natildeo faz do prazer

o objecto da existecircncia nem pressupotildee a anteposiccedilatildeo do prazer ao amor a Deus772

Na esfera sensiacutevel a causa do prazer eacute o nuacutemero que conforme vimos actua

como um iacutendice relacional773

nessa esfera portanto os numeri funcionam para o sujeito

como qualia dimanados do sumo nuacutemero tambeacutem eles satildeo uma consciecircncia da

experiecircncia das propriedades qualitativas fisicamente existentes nos objectos Ao niacutevel

da ontologia dos qualia Santo Agostinho poderia agrave primeira vista considerar-se um

771

Ateacute porque a distinccedilatildeo entre interioridade e exterioridade deixa de fazer sentido O conceito de

extimidade eacute aqui retomado de Lacan que o define como sendo aquilo que nos eacute mais proacuteximo e iacutentimo

estando no exterior uma exterioridade iacutentima O ecircxtimo eacute o ponto onde a mais iacutentima interioridade

coincide com o exterior natildeo sendo descabida a analogia com a formulaccedilatildeo agostiniana presente em Conf

III 6 11 (CCL 27 p 33) Tu autem eras interior intimo meo et superior summo meo Cf Jacques Lacan

Seacuteminaire XVI Paris Seuil 2006 p 249 Idem Le Seacuteminaire VII LlsquoEthique de la Psychanalyse Paris

Editions du Seuil 1960 p 167

772 Daiacute que a felicidade eterna seja ldquotrabalhosa na caminhada e exija canseirasrdquo conforme constata Maria

Manuela Brito Martins em ldquoDeus como beatitude e outras felicidadesrdquo in Actas do coloacutequio Santo

Agostinho ndash O Homem Deus e a Cidade Leiria Centro de Formacatildeo e Cultura 2004 p 193 Neste texto

eacute ainda relembrado como o proacuteprio Santo Agostinho em De civ Dei IX 11-12 alude agrave origem filosoacutefica

grega do termo beatos designando-o por εὐδαίμονες Cf id op cit p 181

773 Vide p 160 do presente ensaio

269

objectivista774

tal como parece indiciar a consideraccedilatildeo acerca das propriedades

secundaacuterias presente na seguinte passagem de De Trinitate

Tal como somos persuadidos se pudermos ver na medida do

possiacutevel que estas coisas [o amor e o conhecimento] existem na alma que

elas aiacute estatildeo de modo impliacutecito e se desenvolvem de maneira a serem

sentidas e especificadas como pertencendo agrave substacircncia ou por assim dizer

agrave sua essecircncia natildeo como existindo num objecto a cor ou a figura num corpo

ou outra qualidade ou quantidade Pois tudo o que assim eacute natildeo ultrapassa o

objecto no qual eacute Com efeito esta cor ou a forma deste corpo natildeo podem ser

tambeacutem as de um outro corpo Mas a mente pode amar qualquer outra coisa

para laacute de si com o mesmo amor pelo qual se ama Aleacutem disso a mente natildeo

soacute se conhece a si mesma como tambeacutem conhece muitas outras coisas

Assim o amor e o conhecimento natildeo estatildeo na mente como num objecto mas

existem de modo substancial como a proacutepria mente pois mesmo que os

digamos mutuamente relativos eles ainda assim existem singularmente na

sua proacutepria substacircncia A sua relaccedilatildeo natildeo eacute como aquela que existe entre a

cor e o objecto colorido estando a cor no objecto colorido natildeo tendo em si

mesma nenhuma substacircncia proacutepria jaacute que o corpo colorido eacute uma

substacircncia ao passo que a cor eacute na substacircncia pelo contraacuterio [esta relaccedilatildeo

eacute] como a que existe entre dois amigos que tambeacutem satildeo dois homens e por

conseguinte [duas] substacircncias como homens natildeo satildeo ditos em termos

relativos poreacutem como amigos jaacute o satildeo775

774

Usamos a terminologia proposta por Gary Hatfield acerca dos trecircs modos possiacuteveis de considerar um

quale o modo objectivista defende que o quale eacute uma propriedade fiacutesica dos objectos independente da

mente o modo subjectivista defende que os qualia satildeo estados internos do sujeito que percebe o modo

disposicionista considera que os qualia satildeo definidos pela sua experiecircncia perceptiva ainda que existam

como propriedade dos objectos em virtude da relaccedilatildeo entre estes uacuteltimos e a experiecircncia qualitativa que

produzem Nesta perspectiva um quale como propriedade dos objectos eacute uma disposiccedilatildeo relacional Eacute

uma propriedade dos objectos que causa experiecircncias de caraacutecter fenomenal nos sujeitos Cf Gary

Hatfield laquoThe reality of qualiaraquo in Erkenntnis 66 2007 pp 133-168

775 De Trin IX 4 5 (CCL 50 p297) laquoSimul etiam admonemur si utcumque videre possumus haec in

anima exsistere et tamquam involuta evolvi ut sentiantur et dinumerentur substantialiter vel ut ita

dicam essentialiter non tamquam in subiecto ut color aut figura in corpore aut ulla alia qualitas aut

quantitas Quidquid enim tale est non excedit subiectum in quo est Non enim color iste aut figura huius

corporis potest esse et alterius corporis Mens autem amore quo se amat potest amare et aliud praeter se

Item non se solam cognoscit mens sed et alia multa Quamobrem non amor et cognitio tamquam in

subiecto insunt menti sed substantialiter etiam ista sunt sicut ipsa mens quia et si relative dicuntur ad

invicem in sua tamen sunt singula quaeque substantia Non sicut color et coloratum relative ita dicuntur

ad invicem ut color in subiecto colorato sit non habens in se ipso propriam substantiam quoniam

coloratum corpus substantia est ille autem in substantia sed sicut duo amici etiam duo sunt homines

quae sunt substantiae cum homines non relative dicantur amici autem relativeraquo

270

Natildeo haacute duacutevida de que as propriedades secundaacuterias dos objectos tecircm para Santo

Agostinho uma existecircncia material concreta todavia haacute que considerar o facto de que

essas propriedades fiacutesicas traduzem uma ordenaccedilatildeo pelo nuacutemero que a mente reconhece

se atender agrave consciecircncia da proacutepria estesia ou seja a partir de uma espeacutecie de sensaccedilatildeo

da sensaccedilatildeo e natildeo imediatamente ao niacutevel da percepccedilatildeo sensiacutevel como a perspectiva

objectivista pressuporia Esta sensaccedilatildeo da sensaccedilatildeo estaacute entre as sensaccedilotildees primaacuterias e

as sensaccedilotildees secundaacuterias776

jaacute natildeo depende apenas da consciecircncia da alma em relaccedilatildeo agrave

afecccedilatildeo do corpo nem da acccedilatildeo do sentido interior mas eacute ainda preacutevia a qualquer juiacutezo

esteacutetico apesar de ser jaacute de ordem racional Tal reconhecimento numeacuterico que eacute sempre

qualitativo e que alicerccedila a possibilidade de uma relaccedilatildeo com o real para laacute da proacutepria

subjectividade (sendo tambeacutem esta uma forma de transcendecircncia) evidencia um

posicionamento mais afim da perspectiva disposicionista do que da perspectiva

objectivista

Eacute a experiecircncia qualitativa do real nas suas muacuteltiplas dimensotildees que funda

quaisquer consideraccedilotildees esteacuteticas e determina a abrangecircncia ilimitada do domiacutenio

esteacutetico O caraacutecter esparso e transversal que assume tal dimensatildeo filosoacutefica nas obras

de Santo Agostinho ndash tal como nas dos demais autores medievos e claacutessicos ndash soacute vem

reiterar a amplitude desta mundivisatildeo que viria a tornar-se uma aacuterea disciplinar apenas

no seacuteculo XVIII Apesar de ser tatildeo tardia tal atenccedilatildeo que autonomizou este ramo

filosoacutefico natildeo parece correcto situar o Bispo de Hipona numa espeacutecie de preacute-histoacuteria da

esteacutetica pois se nos debruccedilarmos atentamente sobre este acircmbito da sua filosofia

poderemos facilmente concluir que nele se abordam muitas das questotildees sobre as quais

a esteacutetica contemporacircnea voltou a dirigir o seu foco Na verdade parece haver uma

maior proximidade entre a esteacutetica agostiniana e a esteacutetica contemporacircnea do que entre

esta uacuteltima e aquela que se praticou durante o periacuteodo imediatamente sequente agrave sua

instauraccedilatildeo disciplinar ateacute agrave primeira metade do seacuteculo XX

Natildeo haacute qualquer heresia na consideraccedilatildeo de que existe uma esteacutetica

propriamente dita na obra de autores que precederam a linhagem inaugurada por

Baumgarten nem tatildeo pouco nos esforccedilos de fazer uma leitura contemporacircnea dos seus

pressupostos mesmo que por vezes se arrisque incorrer em sobreinterpretaccedilotildees As

abordagens historicistas que se limitam a considerar os textos medievos e antigos agrave luz

daquilo que se supotildee ser o sistema conceptual do seu tempo pecam por limitar as

776

Vide subcapiacutetulo I41

271

valecircncias de tais textos a um quadro de interpretaccedilatildeo demasiado restrito e nem por isso

mais seguro quanto agrave legitimidade das suas conclusotildees acerca dos sentidos de que esses

textos ou os seus conceitos se revestiriam na eacutepoca que os viu nascer

Se as obras seculares chegam ateacute aos nossos dias eacute porque elas permanecem

significantes para noacutes por isso mesmo seria insensato descartarmos os nossos proacuteprios

quadros categoriais na sua consideraccedilatildeo Claro que eacute indispensaacutevel situar o texto no seu

tempo atendendo agraves fontes agrave natureza dos debates coevos e agraves especificidades do

contexto histoacuterico mas as leituras que podemos fazer deste tipo de textos mais os honra

e enriquece se for capaz de actualizar os seus sentidos e para tal basta natildeo esquecer

artificialmente o tempo em que tal hermenecircutica se situa e os leitores que visa Natildeo haacute

como ultrapassar o hiato entre a eacutepoca em que os textos agostinianos foram escritos e o

seacuteculo XXI A compreensatildeo de tal obstaacuteculo e a assunccedilatildeo da nossa proacutepria baliza

temporal eacute a forma mais honesta de propor uma leitura dos seus textos que em todo o

caso natildeo seria nunca uma leitura alheia agrave natureza das obras agostinianas porque elas

fazem parte inalienaacutevel de um cacircnone conceptual basilar onde estatildeo filiados os nossos

modos de ver o mundo e os quadros categoriais de que hoje nos servimos satildeo herdeiros

desse passado sobre o qual nos debruccedilamos Apesar do hiato que a distacircncia de

dezasseis seacuteculos impotildee natildeo deixa de haver uma certa continuidade entre o objecto do

nosso lance hermenecircutico e os moldes em que tal lance eacute feito777

Ao afirmarmos a proximidade da esteacutetica agostiniana em relaccedilatildeo agrave esteacutetica

contemporacircnea estamos sobretudo a basear-nos no facto de as consideraccedilotildees hodiernas

mobilizadas por este ramo disciplinar estarem indubitavelmente a encaminhar-se para o

alargamento do seu campo de estudo e para a transversalidade da sua abordagem

Quando foi cunhada como tal a esteacutetica precisou de apoiar-se na delimitaccedilatildeo

consensual do acircmbito e dos objectos de estudo de modo a salvaguardar o seu estatuto

disciplinar e a sua autonomia relativamente aos demais ramos filosoacuteficos Agrave luz dessa

tendecircncia inicial de constriccedilatildeo e de sistematizaccedilatildeo o pensamento de Santo Agostinho

teria certamente um lugar bastante limitado e perifeacuterico na aacuterea da esteacutetica Hoje em dia

poreacutem a esteacutetica segue um movimento oposto expandindo-se e promovendo

abordagens interdisciplinares que paralelizam com a transversalidade da esteacutetica

777

Esta eacute aliaacutes a posiccedilatildeo que Gadamer subscreve em Verdade e Meacutetodo a propoacutesito do entendimento de

qualquer obra do passado Cf Hans-Georg Gadamer Verdade e meacutetodo traccedilos fundamentais de uma

hermenecircutica filosoacutefica Flaacutevio Paulo Meurer (trad) 3ordf ed Petroacutepolis Ed Vozes 1999 passim mas

sobretudo p 436

272

medieva e antiga A inexistecircncia da designaccedilatildeo aglutinadora natildeo significa a

inexistecircncia do universo que ficaraacute sob sua alccedilada pelo que natildeo faz sentido considerar

que soacute a partir do seacuteculo XVIII eacute que haacute a possibilidade de encontrarmos filoacutesofos que

se tenham dedicado agrave esteacutetica A auto-referencialidade natildeo eacute um preacute-requisito

impreteriacutevel da disciplina ainda que presentemente sobressaia a tendecircncia de reflectir

acerca da proacutepria dinacircmica da esteacutetica enquanto aacuterea disciplinar ateacute para questionar a jaacute

referida contenccedilatildeo das suas valecircncias e fronteiras imposta a partir do periacuteodo iluminista

Eacute possiacutevel encontrar na esteacutetica agostiniana o mesmo nuacutecleo de questotildees acerca

do funcionamento mental da sensaccedilatildeo e das estesias a que os mais recentes estudos em

esteacutetica neuroloacutegica ou neuroesteacutetica778

ainda aspiram responder Tal como Santo

Agostinho avanccedilou a este niacutevel com propostas coerentes com os conhecimentos

cientiacuteficos da sua eacutepoca tambeacutem os neurologistas psicoacutelogos e filoacutesofos

contemporacircneos tecircm apresentado teorias acerca dos mecanismos fisioloacutegicos e

psicoloacutegicos implicados nas experiecircncias esteacuteticas Eacute extraordinaacuteria a proximidade que

a abordagem sobre os mecanismos da sensaccedilatildeo desenvolvida por Santo Agostinho em

De libero arbitrio manteacutem por exemplo com a descriccedilatildeo dos diversos patamares da

consciecircncia apresentada por Antoacutenio Damaacutesio em O livro da consciecircncia779

Parece

inclusivamente haver uma correspondecircncia entre o sentido interior agostiniano e o

conceito de sentimento primordial tal como Damaacutesio o descreve

Conforme demonstraacutemos no subcapiacutetulo 13 da primeira parte deste ensaio

encontramos nos escritos agostinianos elementos pertinentes para o nuacutecleo que hoje

constitui a esteacutetica somaacutetica780

encontramos um vasto conjunto de consideraccedilotildees do

acircmbito da semiologia781

consideraccedilotildees acerca do funcionamento das imagens

metafoacutericas acerca do processo diferenciado da valoraccedilatildeo das sensaccedilotildees e dos objectos

778

Embora em portuguecircs a designaccedilatildeo natildeo seja ainda familiar a esteacutetica neuroloacutegica (neuroaesthetics ou

neuroesthetics) tem vindo a ganhar bastante importacircncia na abordagem empiacuterica da esteacutetica que envolve

testes e experiecircncias efectuados atraveacutes da tecnologia imageacutetica da ressonacircncia magneacutetica levados a cabo

por neurocientistas e obviamente natildeo descarta a traduccedilatildeo conceptual das suas descobertas por parte dos

filoacutesofos O trabalho colaborativo entre investigadores de aacutereas cientiacuteficas e humanas tem sido

implementado em vaacuterios centros de pesquisa universitaacuterios Patricia Churchland foi uma das pioneiras da

neurofilosofia em relaccedilatildeo agrave qual a neuroesteacutetica se constitui como um dos mais recentes subnuacutecleos

779 Cf Antoacutenio Damaacutesio O livro da consciecircncia A construccedilatildeo do ceacuterebro consciente Lisboa Ciacuterculo de

Leitores 2010

780 Vide p 70

781 Sobretudo em De Mag e em De doct christ Acerca deste assunto vide subcapiacutetulo I43

273

que predispotildeem o sujeito a essas sensaccedilotildees Todas estas satildeo temaacuteticas que mobilizam

diversas aacutereas da esteacutetica contemporacircnea e cujo salutar natildeo confinamento ao proacuteprio ramo

filosoacutefico comeccedila a ser assumido sem preconceitos atraveacutes de estudos interdisciplinares

22 - Sistematicidade e esteacutetica agostiniana

Assim como natildeo haacute uma filosofia da arte no pensamento agostiniano tambeacutem

natildeo eacute possiacutevel encontrarmos um sistema esteacutetico propriamente dito Obviamente tal

natildeo pressupotildee a ausecircncia de um pensamento esteacutetico perfeitamente reconheciacutevel nas

obras do filoacutesofo africano significa apenas que esse pensamento natildeo assume a forma

que as disciplinas filosoacuteficas tecircm historicamente reclamado como especificamente

sua a do sistema

Dada a sua natureza e vocaccedilatildeo o presente ensaio natildeo pocircde deixar de estruturar

artificialmente as diversas abordagens com pertinecircncia esteacutetica encontradas nas obras

agostinianas A forma como os conteuacutedos foram agrupados e trabalhados poderaacute

resultar na falsa sensaccedilatildeo de que haacute um pensamento linear acerca desta temaacutetica coisa

que natildeo ocorre nem mesmo em relaccedilatildeo a qualquer outro nuacutecleo filosoacutefico que se

queira estudar a partir de Santo Agostinho

Vaacuterios satildeo os factores que impedem a sistematicidade do pensamento

agostiniano desde logo natildeo podem deixar de assinalar-se as mudanccedilas de

posicionamento intelectual ditadas pelo percurso biograacutefico do autor que por vaacuterias

vezes foi atraiacutedo para o cepticismo acadeacutemico fez uma incursatildeo de mais de nove anos

no maniqueiacutesmo foi influenciado pelo estoicismo e que se converteu ao Cristianismo

sob influecircncia do neoplatonismo O seu percurso biograacutefico bem como a predisposiccedilatildeo

da eacutepoca em que viveu conduziram o seu pensamento a uma siacutentese teoacuterica de

raciociacutenios filosoficamente herdados por vezes com nuacutecleos de abordagem

antagoacutenicos Tambeacutem as especificidades da submissatildeo agrave feacute levaram a determinados

274

posicionamentos contextualmente divergentes que impedem o reconhecimento de um

pensamento sistemaacutetico Como resultado destes factores eacute comum na leitura das obras

agostinianas perceber-se uma ausecircncia de rigor loacutegico uma justaposiccedilatildeo de reflexotildees

variaccedilotildees terminoloacutegicas bem como abordagens onde haacute referecircncia a um fundamento

objectivamente comum que eacute enunciado segundo pontos de vista heterogeacuteneos

Assim no pensamento agostiniano natildeo haacute caminhos de reflexatildeo lineares mas

percursos sinuosos muacuteltiplos e labiriacutenticos

Em muitas situaccedilotildees natildeo eacute sequer correcto falar num jovem Agostinho em

contraposiccedilatildeo ao Agostinho da maturidade pois as alteraccedilotildees de posicionamento natildeo

obedecem a uma diacronia evolutiva Carol Harrison escreveu um ensaio em que

contraria precisamente a tendecircncia dos investigadores agostinianos para considerar

uma inflexatildeo no posicionamento intelectual do filoacutesofo em 396782

por altura em que eacute

nomeado Bispo Harrison defende uma continuidade desde o momento da conversatildeo

de Santo Agostinho ao Cristianismo em 386 ateacute ao final da sua vida Segundo esta

autora o Bispo de Hipona permanece tatildeo neoplatoacutenico quanto o era na juventude e

tudo aquilo que faz de Santo Agostinho um teoacutelogo cristatildeo ortodoxo estaacute jaacute presente

nas primeiras obras (como por exemplo nos diaacutelogos de Cassiciacuteaco em De libero

arbitrio De Magistro De vera religione entre outras)783

Concordamos inteiramente com os argumentos a favor da continuidade e

consideramos que as diferenccedilas de abordagem nas obras de Santo Agostinho satildeo

essencialmente contextuais Nos escritos do filoacutesofo africano tanto eacute possiacutevel

encontrar passagens que exaltam e ilibam o papel dos sentidos corpoacutereos e dos

sensibilia como passagens que contrariam tal visatildeo positiva acerca da dimensatildeo

sensiacutevel Natildeo nos parece todavia que haja qualquer hesitaccedilatildeo por parte do autor tais

diferenccedilas tecircm origem na necessidade de enfatizar determinadas particularidades em

detrimento de outras Por norma a valorizaccedilatildeo do sensiacutevel radica na exaltaccedilatildeo da sua

782

Esta tendecircncia foi iniciada por Peter Brown segundo o qual a obra Ad Simplicianum escrita em 396 marca

uma ruptura no pensamento filosoacutefico de Santo Agostinho Peter Brown Augustine of Hippo A Biography A

New Edition with an Epilogue Berkeley and L A University of California Press 2000 p 490

783 Carol Harrison Rethinking Augustinersquos Early Theology An Argument for Continuity Oxford Oxford

University Press 2006 Na senda do mesmo argumento estaacute Joseacute Rosa que escreve laquo[hellip] em Cassiciacuteaco

estatildeo jaacute esboccedilados os conotrnos fundamentais e as grandes linhas que nortearatildeo o pensamento de

Agostinho O desenvolvimento posterior as inflexotildees e correcccedilotildees e mesmo as autocriacuteticas no que diz

respeito a algumas concessotildees agrave eacutetica estoacuteica e ao neoplatonismo natildeo invalidam o princiacutepio geralraquo Joseacute

Silva Rosa op cit p 23

275

origem ndash sendo obra do Criador ndash e da possibilidade de reconduzir ateacute ela por seu

turno a sua abordagem depreciativa encontra justificaccedilatildeo na necessidade de sublinhar

os efeitos punitivos que acompanharam a queda do Paraiacuteso e as especificidades de

uma vivecircncia incapaz de contrariar tal condiccedilatildeo caiacuteda Quando Santo Agostinho alerta

sobre os perigos das imagens dos sentidos ou sobre a atracccedilatildeo perniciosa das belezas

sensiacuteveis ele natildeo estaacute a invalidar a possibilidade de um relacionamento justo e

frutuoso entre o homem e o seu mundo nem a invalidar o reconhecimento de tais

belezas ou da sua legitimidade A leitura dos pressupostos agostinianos deveraacute ser

sempre feita agrave luz da relatividade contextual

Para melhor responder ao argumento daqueles que negam a existecircncia de uma

esteacutetica agostiniana com base na sua assistematicidade urge problematizar o proacuteprio

conceito de sistema ao niacutevel da filosofia Embora os sistemas filosoacuteficos tenham por

princiacutepios fundamentais a objectividade e a coerecircncia eles natildeo satildeo estruturas

completas e absolutamente iacutentegras como agrave partida parecem pressupor A pluralidade

de sistemas filosoacuteficos prova tal asserccedilatildeo e torna evidente o caraacutecter mutuamente

exclusivo parcial e mesmo arbitraacuterio dos sistemas Eles satildeo arbitraacuterios porque

assentam em escolhas livres que natildeo comportam possibilidade de demonstraccedilatildeo ou de

refutaccedilatildeo

No livro Neacutecessiteacute ou Contingence ndash Lrsquoaporie de Diodore et les systegravemes

philosophiques784

Jules Vuillemin aborda a questatildeo dos sistemas filosoacuteficos a partir

da aporia de Deodoro tambeacutem conhecida por argumento dominador ou argumento

mestre785

O argumento estabelece o dilema da inconsistecircncia e da falta de coerecircncia

Deodoro evidenciou a incompatibilidade entre quatro premissas tidas como presentes

nas condiccedilotildees de um acto livre e que satildeo geralmente aceites como verdadeiras a) o

passado eacute irrevogaacutevel b) do impossiacutevel para o possiacutevel a consequecircncia natildeo eacute boa c)

o possiacutevel eacute o que foi o que eacute e o que estaacute prestes a ser d) aquilo que eacute natildeo pode natildeo

ser enquanto eacute (princiacutepio da necessidade condicional) Estes princiacutepios satildeo na

verdade incompatiacuteveis entre si jaacute que as suas consequecircncias se goram mutuamente

Natildeo haacute forma de salvar a coerecircncia loacutegica do raciociacutenio sem sacrificar um dos

784

Jules Vuillemin Neacutecessiteacute ou contingence Lrsquoaporie de Diodore et les systegravemes philosophiques Paris

Minuit 1984

785 A aporia de Deodoro eacute reportada por Epicteto e foi formulada por um filoacutesofo grego quase

contemporacircneo de Aristoacuteteles chamado Deodoro de Kronos

276

princiacutepios ndash poreacutem acede-se a sistemas completamente diferentes segundo a escolha

do princiacutepio rejeitado A aporia de Deodoro constitui pois um princiacutepio de divisatildeo

que obriga os filoacutesofos a fazer escolhas que satildeo incompatiacuteveis entre si Segundo

Vuillemin eacute o argumento dominador que organiza a filosofia grega estando na

origem das divisotildees irredutiacuteveis dentro da filosofia ndash ou seja estando na origem do

pluralismo filosoacutefico Vuillemin propotildee uma classificaccedilatildeo dos sistemas filosoacuteficos

com base na aporia de Deodoro isto eacute remontando agraves razotildees a priori da distensatildeo

instaurada na filosofia786

A pluralidade filosoacutefica parece indicar que os sistemas satildeo irrefutaacuteveis e natildeo

permitem comparaccedilotildees fundamentais entre si pois se assim fosse haveria

paradigmas filosoacuteficos que ao jeito da ciecircncia ditariam a sua superioridade e

promoveriam um aperfeiccediloamento da aacuterea disciplinar Por norma na ciecircncia as

teorias mais recentes satildeo superiores agraves mais antigas mas esta ideia de progresso natildeo eacute

aplicaacutevel relativamente agrave filosofia ndash o acto de filosofar eacute sempre um acto de origem787

Se no caso da ciecircncia a sua divisatildeo em sistemas estaacute ligada agraves diferenccedilas de

natureza dos problemas cientiacuteficos jaacute no caso da filosofia os sistemas nascem do

conflito face a um mesmo problema filosoacutefico A pluralidade filosoacutefica relaciona-se

directamente com a indeterminaccedilatildeo e por seu turno a indeterminaccedilatildeo constitui outro

dos factores que parecem salvaguardar a independecircncia da filosofia face agrave ciecircncia A

filosofia natildeo comporta refutaccedilatildeo ou demonstraccedilatildeo como no caso da ciecircncia o que

significa que natildeo haacute um criteacuterio objectivo para discernir entre os sistemas filosoacuteficos

786

Para este autor haacute um uso filosoacutefico das asserccedilotildees e modalidades fundamentais que permitem

classificar as filosofias remontando ao princiacutepio que estaacute na origem da sua unidade da sua limitaccedilatildeo A

maioria das tentativas de classificaccedilatildeo dos sistemas filosoacuteficos satildeo ex datis ao passo que a de Vuillemin eacute

ex principis pois determina a priori o espaccedilo loacutegico de possibilidade de respostas filosoacuteficas em que

qualquer sistema encontraraacute lugar Significa isto que se trata de uma classificaccedilatildeo que natildeo determina

sistemas particulares (ilimitados) determina sim classes possiacuteveis de sistemas (classes limitadas) Em

Vuillemin as classes de sistemas filosoacuteficos estruturam-se de acordo com os diferentes tipos possiacuteveis de

proposiccedilotildees elementares Cada sistema apoia-se na escolha de uma ou mais proposiccedilotildees como forma

fundamental Assim Vuillemin divide os sistemas filosoacuteficos em duas grandes classes os sistemas

dogmaacuteticos (realismo conceptualismo nominalismo das coisas e nominalismo dos acontecimentos) e os

sistemas de exame (intuicionismo e cepticismo)

787 Jean-Luc Nancy diz que filosofar eacute recomeccedilar do zero na ordem da significaccedilatildeo Mesmo quando se eacute

influenciado por outros filoacutesofos e por outros pensamentos filosofar pressupotildee sempre um recomeccedilo

Natildeo haacute significados absolutos nem saberes adquiridos em filosofia Cf Sylviane Agacinski Carole

Diamant Yves Michaud et Jean-Luc Nancy ldquoDialogue Pour quoi philosophent-ils rdquo in Philosophie

Magazine ndeg 7 Paris Paris Philo eacuteditions 2007

277

aqueles que satildeo os melhores ndash ou seja natildeo haacute um criteacuterio racional para escolher entre

sistemas e natildeo haacute uma melhor escolha possiacutevel

A histoacuteria da filosofia eacute uma histoacuteria das escolhas pessoais feitas pelos

filoacutesofos ndash escolhas pessoais livres e sempre exclusivas Na leitura de Vuillemin a

aporia de Deodoro ilustra a exclusividade dessa escolha jaacute que demonstra a

impossibilidade de resolver o problema filosoacutefico sem renunciar a um dos

princiacutepios Os esforccedilos da filosofia tecircm sido no sentido de pocircr o real em sistema

poreacutem sistematizar o real significa recriaacute-lo sem qualquer garantia de que essa

ideia de real corresponda a um real autecircntico sequer sem a garantia da existecircncia de

um real autecircntico ou de verdades Em filosofia o real e a verdade natildeo satildeo mais do

que os discursos que deles se fazem satildeo pretensotildees daquilo que se supotildeem ser Eacute a

determinaccedilatildeo da fronteira entre a aparecircncia e a realidade que estaacute na base das

principais diferenccedilas entre sistemas filosoacuteficos Cada sistema implica uma decisatildeo

face ao real Pretensatildeo e decisatildeo satildeo dois conceitos chave relativamente aos sistemas

filosoacuteficos jaacute que cada um decide a sua lei de coerecircncia na construccedilatildeo do real e cada

um pretende que o discurso por si construiacutedo em torno do real seja o verdadeiro real

Para Vuillemin o facto de os sistemas serem mutuamente exclusivos e de

darem imagens de refutaccedilatildeo uns dos outros (por exemplo ao considerarem que o real

de um outro sistema natildeo passa de uma ilusatildeo) natildeo impede a sua complementaridade

Cada um dos sistemas entra necessariamente no requisito para descrever

completamente a realidade poreacutem natildeo sabemos conjugaacute-los de forma apropriada para

tal ou natildeo podemos porque isso corresponderia agrave descoberta de um meta-sistema e de

uma verdade absoluta ou de uma realidade para laacute de toda a aparecircncia Deus A razatildeo

leva-nos sempre a escolher um sistema e a excluir os outros Pela razatildeo sabemos que

a escolha que fizemos eacute incompatiacutevel com outras escolhas que poderiacuteamos ter feito e

que a nossa escolha apenas nos daraacute um fragmento do real ndash ou da verdade ou da

totalidade ndash e que os restantes fragmentos nos satildeo interditos sendo acessiacuteveis a outros

que fizeram escolhas diferentes da nossa mas a esses faltar-lhes-aacute sempre o

fragmento que ganhaacutemos com a nossa escolha entre outros Em suma para

Vuillemin os sistemas filosoacuteficos possuem a propriedade singular da

complementaridade sem que saibamos qual escolher e sem que os saibamos conciliar

Natildeo se deve esperar que a classificaccedilatildeo dos sistemas filosoacuteficos permita ou

facilite a escolha entre sistemas A classificaccedilatildeo deveraacute sim tornar-nos mais tolerantes

e mais abertos quanto aos sistemas filosoacuteficos que natildeo seriacuteamos atreitos a escolher Ela

278

eacute uacutetil ao clarificar a nossa situaccedilatildeo face aos outros e face agraves razotildees que os levaram a

escolher sistemas filosoacuteficos com os quais natildeo nos identificamos Natildeo haacute criteacuterio que

permita determinar se as razotildees dos outros satildeo preferiacuteveis agraves nossas nem eacute possiacutevel

comparar objectivamente os diferentes sistemas possiacuteveis pois a avaliaccedilatildeo comparativa

em filosofia implica que se tenha agrave partida um ponto de vista intriacutenseco a um qualquer

sistema Para que os sistemas filosoacuteficos fossem compatiacuteveis eles teriam que ser

traduziacuteveis uns para os outros ora natildeo haacute garantias que os valores de significaccedilatildeo

sejam conservados na imagem de refutaccedilatildeo que os sistemas rivais constroem uns sobre

os outros As traduccedilotildees filosoacuteficas comportam sempre um elevado grau de

indeterminaccedilatildeo jaacute que se comparam elementos previamente separados

descontextualizados A significaccedilatildeo de um elemento pode mudar radicalmente quando

se passa de um sistema para outro Os sistemas tecircm que ser entendidos como um todo e

soacute globalmente podem ser confrontados uns com os outros Para se chegar a uma

decisatildeo racional entre sistemas filosoacuteficos seria necessaacuterio possuir uma base linguiacutestica

comum para a qual todos os sistemas filosoacuteficos pudessem ser traduzidos e a partir daiacute

comparados Isso eacute impossiacutevel e tambeacutem isso eacute responsaacutevel pela independecircncia relativa

dos sistemas filosoacuteficos face agrave ciecircncia Natildeo eacute possiacutevel comparar sistemas filosoacuteficos

entre si nem entre eles e a ciecircncia

A escolha entre sistemas eacute uma escolha livre ndash a liberdade eacute condiccedilatildeo necessaacuteria

do conhecimento ndash eivada de subjectividade o que natildeo significa que seja uma escolha

cega mas uma escolha dirigida por interesses da razatildeo e por idiossincrasias Haacute na

filosofia um impasse que impede que se transite completamente de um estado de

opiniatildeo e de crenccedila para o estado da verdade impessoal ndash universal Haacute diferenccedilas entre

crenccedila e saber entre opiniatildeo e certeza eacute a ruptura com a opiniatildeo que marca a passagem

para a verdade Persiste uma ligaccedilatildeo com a crenccedila e ateacute mesmo com a feacute no acto da

escolha assim as proposiccedilotildees filosoacuteficas que satildeo as expressotildees desta escolha natildeo

podem ser verdadeiras nem falsas uma vez que satildeo expressotildees de actos livres

A paradoxal funccedilatildeo unificadora que estaacute na essecircncia do sistema filosoacutefico

implica um parcelamento artificial do absoluto Essa parcialidade jaacute Heidegger a havia

referido acrescentando-lhe tambeacutem caracteriacutesticas como a incompletude e um certo

grau de subjectividade a que o sistema natildeo se pode furtar788

Heidegger refere trecircs

788

A subjectividade no entender de Heidegger eacute inevitaacutevel pois para que o sistema exista eacute preciso que

o mundo possa ser concebido na sua totalidade e que haja um sujeito para o alcanccedilar Ainda assim para

este autor o sistema eacute sempre necessariamente um sistema matemaacutetico da razatildeo Cf Martin Heidegger

279

modos de se entender a palavra sistema um primeiro modo em que se entende uma

ordenaccedilatildeo de elementos segundo uma grelha previamente construiacuteda e que implica um

trabalho preacutevio de projecccedilatildeo desses elementos de acordo com a grelha onde se vatildeo

inserir Essa grelha eacute um espaccedilo aberto (em projecto) no qual a unidade da disposiccedilatildeo

torna visiacutevel a ordem Eacute um ajuntamento no qual se determina um conteuacutedo orgacircnico

Um segundo modo de se entender a palavra sistema consiste em ver nele uma simples

acumulaccedilatildeo de pedaccedilos mesmo na ausecircncia de uma moldura previamente traccedilada

Entre estas acepccedilotildees opostas ndash uma que se reporta ao caraacutecter interno do acto de reunir

outra que se reporta ao caraacutecter externo agrave mera configuraccedilatildeo do ajuntamento de

elementos ndash haacute uma terceira forma de entender pela qual chamamos sistema a um

quadro geral que natildeo eacute questatildeo de mera ordenaccedilatildeo interna nem simples acumulaccedilatildeo de

partes eacute um quadro geral que molda o ser-em-comum ou seja a composiccedilatildeo externa eacute

comandada por uma concepccedilatildeo e um dispositivo (interno) previamente determinados

Muito explicitamente Heidegger diz que apesar de toda a filosofia ser

sistemaacutetica nem toda a filosofia eacute sistema789

e que ldquoo sistema eacute a conjunccedilatildeo agrave

medida do saber do ajuntamento e da junccedilatildeo do proacuteprio serrdquo790

Por outras palavras

o sistema eacute o agrupamento interno daquilo que eacute o objecto possiacutevel de um saber e eacute a

configuraccedilatildeo que o funda De acordo com a ideia heideggeriana de sistema este visa

um saber absoluto e estaacute subdividido em vaacuterios subsistemas cuja autonomia natildeo os

desvincula do contexto conceptual a que pertencem de modo a salvaguardar a

validade da pretensatildeo ao tal saber absoluto

Um sistema filosoacutefico pressupotildee que os conteuacutedos sejam estruturados de modo a

que cada nuacutecleo conceptual tenha jaacute de conter os pressupostos loacutegicos dos outros

nuacutecleos e de ver os seus pressupostos neles contidos ndash ou seja o sistema filosoacutefico tem

que compreender as diferentes relaccedilotildees passiacuteveis de estabelecer entre os diferentes

nuacutecleos conceptuais Essa eacute uma exigecircncia da sistematicidade filosoacutefica natildeo apenas a

um niacutevel mais lato relativo agrave articulaccedilatildeo entre diferentes ramos do sistema (esteacutetico

metafiacutesico epistemoloacutegico eacuteticohellip) ndash e neste caso o sistema diz respeito ao corpo

filosoacutefico estruturado por um autor conjunto de autores (como por exemplo o sistema

Quest ce qu un systegraveme Comment la philosophie en vient-elle agrave construire des systegravemes in Schelling

le traiteacute de 1809 sur lessence de la liberteacute humaine Hildegard Feick Paris Gallimard 1993 p 66

789 Cf Ib p 59

790 laquoDas System ist die Wissensmaumlsige Fuumlgung des Gefuumlges und der Fuge des Seyns selbstraquo Ib p 58

280

platoacutenico ou o sistema marxista) ou a uma perspectiva filosoacutefica (como por exemplo a

realista ou a nominalista) ndash mas tambeacutem num sentido mais estrito pois a consequecircncia

loacutegica desta mesma caracteriacutestica da sistematicidade filosoacutefica eacute que o sistema pode ser

compreendido apenas com base num soacute nuacutecleo estruturado de conceitos

Tanto Heidegger como Vuillemin subscrevem a convicccedilatildeo de que o sistema natildeo se

impotildee necessariamente na filosofia A grande prova disso eacute precisamente a possibilidade de

escolha Vuillemin vecirc a divisatildeo da filosofia em sistemas a partir de Deodoro o que demonstra

que o sistema tem uma determinaccedilatildeo histoacuterica A filosofia precede a sistematicidade e natildeo

depende necessariamente dela Segundo Heidegger sempre houve orientaccedilatildeo para o sistema e

sempre houve pensamento sistemaacutetico em filosofia mas o sistema propriamente dito soacute

surge pela primeira vez na histoacuteria da filosofia com o idealismo alematildeo Heidegger diz

mesmo que actualmente o sistema natildeo eacute mais uma necessidade Por ldquoactualmenterdquo refere-se

ao periacuteodo de transiccedilatildeo do seacuteculo XIX para o seacuteculo XX e reporta a queda do sistema ao

niilismo Para o autor Nietzsche ultrapassou a questatildeo do sistema e ela jaacute natildeo se coloca791

Seria muito coacutemodo limitarmos a nossa abordagem agrave perspectiva heideggeriana de sistema

poreacutem a questatildeo da criacutetica agrave esteacutetica de Santo Agostinho com base na ausecircncia de sistema

permaneceria sem resposta Aleacutem disso a concepccedilatildeo que Heidegger tem do sistema eacute

bastante particular uma vez que o situa na convergecircncia da ordenaccedilatildeo interna de elementos

com a configuraccedilatildeo externa sendo esse ponto de convergecircncia extremamente especiacutefico e de

equiliacutebrio precaacuterio para a existecircncia do sistema que nesta concepccedilatildeo arrisca sempre ruir face

agrave simples orientaccedilatildeo para o sistema ou face ao pensamento sistemaacutetico A nosso ver esta

acepccedilatildeo do sistema eacute portanto demasiado inflexiacutevel e limitada ndash no sentido em que soacute ocorre

em condiccedilotildees muito particulares Concordariacuteamos com ela se Heidegger tivesse conferido ao

sistema a possibilidade de oscilar entre a configuraccedilatildeo externa e a projecccedilatildeo interna sem

perder o seu estatuto Esta flexibilidade das fronteiras do sistema teria como consequecircncia a

natural variaccedilatildeo do seu grau de coesatildeo ndash o que para Heidegger seria impensaacutevel mas a nosso

ver encontra perfeita justificaccedilatildeo

A questatildeo da totalidade e da ordenaccedilatildeo dos seus constituintes eacute precisamente o que

estaacute na base da primeira utilizaccedilatildeo do conceito sistema na filosofia ndash para os estoacuteicos o

sistema (σύστημα) designava a ldquoordem coacutesmicardquo Ao longo da histoacuteria da filosofia a questatildeo

da sistematicidade foi posta ao niacutevel da articulaccedilatildeo de uma determinada ordem do real com

791

Heidegger op cit p 48

281

uma determinada ordem do pensamento sobre esse real792

Por outras palavras a questatildeo do

sistema filosoacutefico eacute a da relaccedilatildeo entre um suposto sistema real e um sistema conceptual cuja

forma de expressatildeo pode assumir ela proacutepria caracteriacutesticas expressivas de tal modo

ilustrativas do conteuacutedo que veiculam que tambeacutem essa forma eacute dita sistemaacutetica A questatildeo

que se coloca eacute portanto a da relaccedilatildeo entre a forma e o conteuacutedo da conceptualizaccedilatildeo

filosoacutefica A forma eacute jaacute o conteuacutedo e o medium da mensagem793

Eacute preciso atender ao facto de que o sistema eacute uma forma de exposiccedilatildeo filosoacutefica que

pode perfeitamente integrar diversos modos expressivos natildeo se limitando ao ensaio

acadeacutemico tradicional Haacute no entanto formatos de exposiccedilatildeo filosoacutefica que propiciam as

posiccedilotildees anti-sistemaacuteticas dos filoacutesofos A fuga ao sistema eacute com efeito uma fuga agrave forma

que eacute dada ao pensamento filosoacutefico e agrave relaccedilatildeo que tradicionalmente a filosofia manteacutem com

a ideia de totalidade Eacute portanto tambeacutem uma questatildeo de expressatildeo e de exposiccedilatildeo do

pensamento filosoacutefico A este niacutevel a fuga ao sistema assume-se sobretudo como uma

estrateacutegia contra o fechamento que privilegia articulaccedilotildees criativas muacuteltiplas inserccedilotildees e

dinacircmicas livres O sistema eacute tido como uma forma que aprisiona e condena ao fechamento

dos conceitos o pensamento coarctando-o em termos de potencial

Ao niacutevel da histoacuteria da filosofia haacute toda uma seacuterie de exemplos passiacuteveis de ilustrar

formas de dar ao pensamento novos meios de expressatildeo para laacute do sistema que vatildeo desde a

procura da anulaccedilatildeo das diferenccedilas que estatildeo na base da cisatildeo da filosofia em vaacuterios sistemas

(ecletismo e sincretismo)794

passando pela renuacutencia de qualquer possibilidade de uma

792

A relaccedilatildeo entre sistema real e sistema conceptual pode ser assumida de modo a que o segundo (o

sistema conceptual) seja reflexo do primeiro (sistema real) ou de modo a que o primeiro seja apenas uma

construccedilatildeo do segundo ou pode ainda ser considerada uma relaccedilatildeo de paralelismo e mesmo de

isomorfismo entre a ordem do real e a ordem da conceptualizaccedilatildeo do real

793 Contra esta posiccedilatildeo parece seguir a teoria bergsoniana da intuiccedilatildeo filosoacutefica ao supor uma autonomia

da expressatildeo relativamente agrave intuiccedilatildeo (ideia) e justificando assim a possibilidade de uma mesma ideia

poder expressar-se segundo formas distintas Cf Bergson La penseacutee et le mouvant Paris PUF 2005 pp

117-142

794 O ecletismo toma em consideraccedilatildeo a histoacuteria da filosofia na sua continuidade e pretende elevar-se ao

ponto de convergecircncia das verdades parciais O ecletismo visa a reuniatildeo de teorias conciliaacuteveis tomadas

de diferentes sistemas filosoacuteficos que satildeo justapostas negligenciando pura e simplesmente as partes natildeo

conciliaacuteveis desses sistemas Foi Leibniz o primeiro filoacutesofo a definir o ecletismo diferenciando-o do

sincretismo que consiste na grande confrontaccedilatildeo dos sistemas da qual resulta uma ideia geral enquanto

que o ecletismo consiste em excluir de cada sistema aquilo que eacute negativo contraditoacuterio e natildeo essencial

para os fundir no que tecircm de positivo e verdadeiro Na realidade ambos parecem conduzir a uma espeacutecie

de meta-sistema No fundo o ecletismo e o sincretismo consideram positivamente a pluralidade de

sistemas e mais do que contradiccedilotildees reconhecem-lhes a riqueza entrando numa loacutegica aditiva e

multiplicadora que faz da filosofia o sistema dos sistemas

282

estruturaccedilatildeo e de um discurso vaacutelido sobre a verdade (cepticismo)795

ou sobre o real

(natildeo-filosofia por exemplo) ateacute agraves formas conversacionais ou agraves formas filosoacuteficas do

fragmento796

Santo Agostinho experimentou todas estas formas mas a sua

assistematicidade caracteriza-se sobretudo por uma exposiccedilatildeo de conteuacutedos com

contornos muito proacuteximos da ideia de dispositivo conforme ela nos eacute apresentada por

Deleuze

[hellip] um dispositivo eacute antes de mais uma meada um conjunto multilinear

composto por linhas de natureza diferente E nos dispositivos as linhas

natildeo delimitam ou envolvem sistemas homogeacuteneos por sua proacutepria conta

[hellip] mas seguem direcccedilotildees traccedilam processos que estatildeo sempre em

desequiliacutebrio e que ora se aproximam ora se afastam umas das outras797

Eacute partindo de Foucault que Deleuze clarifica esta noccedilatildeo de dispositivo que tatildeo

adequadamente parece descrever o modo como a filosofia agostiniana surge ao leitor O

Bispo de Hipona natildeo estava preocupado em estruturar um corpo teoacuterico desligado da

realidade798

nem as suas teorias satildeo meros exerciacutecios de abstracccedilatildeo intelectual com

propoacutesitos generalistas A reflexatildeo filosoacutefica de Santo Agostinho gira em torno de questotildees

muito concretas que ocupavam os demais teoacutericos do seu tempo questotildees sobretudo relativas

795

O cepticismo estaacute no outro extremo da atitude ecleacutetica e sincreacutetica advogando a recusa da noccedilatildeo de

verdade e consequentemente defendendo que nenhum sistema pode ser verdadeiro ou conter verdades O

cepticismo eacute portanto avesso ao sectarismo que parece estar impliacutecito na pluralidade filosoacutefica em que

cada sistema se proclama a si mesmo como o verdadeiro refutando a verdade dos outros Claro que tal

posiccedilatildeo do cepticismo natildeo o salvaguarda do estatuto de reacuteu face ao seu proacuteprio libelo Ao condenar todos

os sistemas filosoacuteficos agrave impossibilidade da verdade e ao sectarismo condena-se a si mesmo Toda a

argumentaccedilatildeo desencadeada pelo cepticismo contra a noccedilatildeo de verdade eacute aplicaacutevel agrave ideia de sistema

796 A construccedilatildeo em peccedilas eacute uma das estrateacutegias adoptadas para contrariar a articulaccedilatildeo linear e uniacutevoca

da estruturaccedilatildeo conceptual em sistema Muitos satildeo os exemplos que podem ser citados a este niacutevel desde

Parmeacutedines com os seus poemas passando pelos aforismos de Bacon Wittgenstein ou Nietzsche pelos

diaacuterios de Kierkegaard ou Gabriel Marcel ou pelos fragmentos de Barthes Mesmo o sistema mais

acabado natildeo constitui senatildeo um fragmento da realidade total pelo que natildeo haacute por que considerar o

fragmento como um modo de expressatildeo filosoacutefica menor Tanto mais que a fragmentaccedilatildeo natildeo significa

necessariamente a renuacutencia agrave totalidade natildeo havendo entre fragmento e totalidade uma antinomia

necessaacuteria

797 G Deleuze ldquoQuest-ce quun dispositifrdquo in David Lapoujade (org) Deux reacutegimes de fous Textes et

entretiens 1975ndash1995 Paris Les Editions de Minuit 2003 p 319

798 Assim o notam Marcos Roberto Nunes Costa e Marlesson Castelo Branco do Recircgo em laquoO estatuto

epistemoloacutegico da verdade em Santo Agostinhoraquo in Revista de Teologia e Ciecircncias da Religiatildeo 5 Dez

2006 p 241

283

agrave posiccedilatildeo da Igreja face agrave diversidade de correntes teoloacutegicas que entatildeo grassavam ou mesmo

face a dimensotildees bastante pragmaacuteticas da vida social poliacutetica educacional e domeacutestica

Frequentemente a resposta a tais questotildees era solicitada pelos seus disciacutepulos e amigos em

cartas agraves quais Santo Agostinho respondia assiduamente ou pelos seus diocesanos que

podiam contar com uma clarificaccedilatildeo dos assuntos nos sermotildees do seu pastor O

pensamento agostiniano eacute portanto ldquoum pensamento essencialmente relacional e

diferencialrdquo799

Ora esta forma situada de desenvolver e expor a especulaccedilatildeo intelectual

faz com que qualquer perspectiva sobre a filosofia agostiniana se depare com esta

estrutura pluriacutevoca que por oposiccedilatildeo ao sistema caracteriza o dispositivo A

extraordinaacuteria riqueza do real soacute pode ser abordada de acordo com uma estrateacutegia que

natildeo lhe coarcte tal complexidade nem comprometa a natureza misteriosa que

determinadas dimensotildees efectivamente comportam

O dispositivo propicia uma articulaccedilatildeo bastante mais dinacircmica dos conceitos e

dos pressupostos filosoacuteficos sem anular um nexo estaacutevel capaz de promover

disposiccedilotildees de leitura e interpretaccedilatildeo que mesmo apontando para direcccedilotildees por vezes

contraditoacuterias conduzem a um mesmo fundo de coerecircncia Eacute assim que ao niacutevel

concreto da esteacutetica podem ser observadas duas grandes vias no pensamento

agostiniano cujas diferenccedilas tecircm contribuiacutedo para interpretaccedilotildees contraditoacuterias por

parte dos investigadores que se debruccedilam sobre a obra de Santo Agostinho sem que

seja possiacutevel determinar qual eacute a mais especificamente agostiniana Por um lado

deparamo-nos com uma esteacutetica da totalidade antiteacutetica que eacute retomada dos estoacuteicos e

tem por objectivo reconciliar a alma com o mal aparente do mundo sensiacutevel ndash como

um todo o mundo sensiacutevel eacute belo e a sua beleza tem que ser presumida como

verdadeira ndash por outro lado eacute inegaacutevel a presenccedila de uma esteacutetica ascensional que

relativiza e desvaloriza esse mundo sensiacutevel incitando a alma a libertar-se das suas

imagens falazes elevando-se para um mundo superior onde habita a verdadeira beleza

Ambas as vias satildeo coevas ao longo do conjunto da obra agostiniana poreacutem haacute contextos

em que uma surge mais enfatizada do que a outra O grande nuacutecleo de coerecircncia que

viabiliza a justaposiccedilatildeo destas perspectivas eacute obviamente Deus ndash em termos

finaliacutesticos ambas promovem a reconduccedilatildeo a Deus em termos apofacircnticos ambas

provam a verdade da Sua beleza

799

Joseacute Rosa Em busca do Centro p 23

284

A resposta ao argumento que incide sobre a ausecircncia de sistematicidade para

negar a pertinecircncia de uma esteacutetica propriamente dita no pensamento agostiniano

passa portanto por clarificar em primeiro lugar que essa assistematicidade eacute uma

caracteriacutestica constante de toda a filosofia de Santo Agostinho ndash as demais vertentes

da sua filosofia satildeo igualmente caracterizadas por tal ausecircncia e natildeo satildeo por isso

postas em causa ndash em segundo lugar passa por mostrar que ela natildeo eacute um sinoacutenimo de

ausecircncia de articulaccedilatildeo ou coerecircncia teoacuterica Ainda que as muitas passagens com

pertinecircncia esteacutetica estejam disseminadas por diversos conjuntos temaacuteticos ao longo

da obra agostiniana em nada tal coerecircncia eacute afectada Na verdade a transversalidade

da esteacutetica de Santo Agostinho pode mesmo funcionar como uma via coesa para uma

leitura integrada das vaacuterias dimensotildees conceptuais do pensamento agostiniano de

certo modo recriando uma estrutura com caracteriacutesticas similares agraves de um sistema

Aleacutem disso conforme vimos nem mesmo o sistema escapa a uma certa dose de

incompletude de parcialidade e de arbitrariedade caracteriacutesticas estas que tornam

questionaacutevel a ideia de uma supremacia de tal estrutura conceptual o que

consequentemente gora a desvalorizaccedilatildeo da esteacutetica de Santo Agostinho argumentada

com base na ausecircncia de sistema

285

3 De que modo Santo Agostinho nos leva a repensar a esteacutetica

31 - O que foi e o que eacute a esteacutetica

A definiccedilatildeo de esteacutetica estaacute longe de gerar consenso e por norma natildeo escapa agrave

circularidade de conceitos tornando a definiccedilatildeo bastante vaga Como estudo filosoacutefico

das experiecircncias esteacuteticas dos objectos esteacuteticos das disposiccedilotildees mentais que

possibilitam e que resultam de tais experiecircncias e da semacircntica associada agrave sua

expressatildeo a esteacutetica confronta-se com a questatildeo da abrangecircncia do seu campo de estudo

e com a questatildeo das fronteiras que manteacutem relativamente a outros domiacutenios ou aacutereas

disciplinares Natildeo haacute como abordar tais questotildees sem levar em consideraccedilatildeo uma

perspectiva histoacuterica acerca da fundaccedilatildeo da disciplina

Baumgarten utilizou pela primeira vez o termo lsquoesteacuteticarsquo na sua obra de 1735

Mediataccedilotildees filosoacuteficas acerca de algumas caracteriacutesticas da poesia800

para designar a

ciecircncia do conhecimento sensiacutevel que a par da loacutegica constituiacutea segundo o autor a

gnoseologia Assim defende que as coisas conhecidas concernem agrave faculdade superior

sendo objecto da loacutegica e as coisas percebidas satildeo conhecidas pela faculdade inferior

sendo objecto do conhecimento sensiacutevel ou esteacutetica Note-se que o uso da expressatildeo

lsquofaculdade inferiorrsquo natildeo parece neste contexto condenar a percepccedilatildeo sensiacutevel a uma

real inferioridade jaacute que Baumgarten a irmana agrave loacutegica advogando-lhe valor cognitivo

e mais do que isso atribuindo-lhe um papel relevante no aperfeiccediloamento dos modos

de pensar e dos modos de vida

800 A G Baumgarten Karl Aschenbrenner William Benjamin Holther (eds) Reflections on poetry

Alexander Gottlieb Baumgartenrsquos Meditationes philosophicae de nonnullis ad poema pertinentibus

University of California Press 1954 sectsect 115-116 p78

286

Quatro anos apoacutes as Meditaccedilotildees Baumgarten publica a obra Metaphysica801

onde faz referecircncia agrave classe das coisas apercebidas ou aistheta dizendo que esta classe

eacute muito mais abrangente do que a classe de coisas apreendidas pela visatildeo e pela

audiccedilatildeo jaacute que inclui pensamentos e imagens Na segunda metade do seacuteculo XVIII

surge entatildeo o tratado que consolida a posiccedilatildeo baumgartiana acerca da esteacutetica A

primeira parte (da sua Aesthetica) eacute publicada em 1750 e em 1758 vem a puacuteblico uma

segunda parte bastante menos extensa No primeiro paraacutegrafo do tratado Baumgarten

reitera a definiccedilatildeo da esteacutetica que havia apresentado nas Meditaccedilotildees de 1735 como

sendo a ciecircncia do conhecimento sensiacutevel ndash ciecircncia esta que compreende a teoria das

artes liberais da cogniccedilatildeo inferior a arte do pensamento belo e a arte da razatildeo

analoacutegica802

Baumgarten preconiza o aperfeiccediloamento da cogniccedilatildeo sensiacutevel ou

lsquoesteacutetica artificialrsquo a par da actividade inata das nossas faculdades cognitivas sensiacuteveis

ou lsquoesteacutetica naturalrsquo cabendo agraves faculdades superiores do entendimento e da razatildeo

norteaacute-las803

Esse aperfeiccediloamento deveria ser intentado por duas vertentes

complementares ndash pela akesis ou exercitatio aesthetica e pela mathesis ou disciplina

aesthetica A primeira vertente consistia num programa praacutetico de treinamento que

incluiacutea actividades como a improvisaccedilatildeo certos jogos ou exerciacutecios relacionados com

as artes eruditas804

Estas actividades promoveriam a capacidade da mente lidar

harmoniosamente com um dado assunto ou pensamento805

A segunda vertente

compreendia a pulchra eruditio constituiacuteda pelo estudo das ciecircncias de Deus do

universo e do homem (a moral a histoacuteria sem esquecer a mitologia as culturas antigas

e os exemplos da genialidade humana)806

Esta vertente contemplava ainda uma teoria

da forma da bela cogniccedilatildeo (theoria de forma pulchrae cognitionis) que complementava

as regras de disciplinas especificamente esteacuteticas como a oratoacuteria a poesia a muacutesica

801

Alexander Gottlieb Baumgarten Metaphysica ed VI Halle C Hermann Hemmerde 1768 sect 533 p 187

802 Idem Aesthetica Impens I C Kleyb 1750 sect 1 p1 laquoAesthetica (theoria liberalium artium

gnoseologia inferior ars pulcre cogitandi ars analogi rationis) est scientia cognitionis sensitivaeraquo

803 Cf Ibidem sectsect 30-38 pp 12-16

804 Cf Ibid sectsect 52 55 58 pp 21 23 24

805 Cf Ibid sect 47 p19

806 Cf Ibid sectsect 62-64 pp 26-27

287

etc807

Em suma o projecto disciplinar baumgartiano preconizava uma esteacutetica

interdisciplinar natildeo meramente teoacuterica que contemplava uma filosofia da arte sem lhe

determinar um estatuto de preponderacircncia e que tinha como propoacutesito o

aperfeiccediloamento da capacidade cognitiva humana para uma efectiva melhoria da

qualidade de vida A esteacutetica exaltava o papel e o potencial da percepccedilatildeo sensiacutevel em

termos gnoseoloacutegicos de tal modo que se lhe poderia associar o mote melhor pensar

para melhor viver Baumgarten descreve inclusivamente o felix aestheticus ndash o esteta

feliz ndash como sendo um homem de sensibilidade com capacidades cognitivas e

perceptivas bastante desenvolvidas O aperfeiccediloamento da percepccedilatildeo sensiacutevel por meio

do estudo esteacutetico conferia ao sujeito uma vantagem sobre os demais 808

Assim mais do que uma filosofia da arte ou do belo o tratado fundador da

esteacutetica descrevia uma disciplina que com base na experiecircncia sensiacutevel apresentava um

modo especiacutefico de lidar com a realidade O conhecimento das coisas que nos rodeiam

dado pelas faculdades superiores natildeo esgota o que delas podemos conhecer A

faculdade cognitiva inferior ndash inferior porque natildeo se sobrepotildee ao entendimento ou agrave

razatildeo mas complementa-os ndash eacute a prova da perene insatisfaccedilatildeo do homem na relaccedilatildeo que

estabelece com as coisas e poderaacute ver-se tambeacutem como um modo de ir para aleacutem desse

conhecimento veiculado pelas faculdades superiores que por si natildeo nos satisfaz

O produto da percepccedilatildeo esteacutetica eacute na perspectiva de Baumgarten uma articulaccedilatildeo

de representaccedilotildees sensiacuteveis a niacutevel particular paralela agrave articulaccedilatildeo conceptual que se

processa a um niacutevel abstracto A verdade esteacutetica baseia-se na articulaccedilatildeo de tais

representaccedilotildees sensiacuteveis (articulaccedilatildeo esta que no fundo eacute um nexo de relaccedilotildees entre

sensaccedilotildees) com a razatildeo e com os seus objectos mas sendo sensivelmente reconhecida

pelo sujeito809

As representaccedilotildees sensiacuteveis possuem uma integridade e uma totalidade

que a mera abstracccedilatildeo conceptual natildeo consegue alcanccedilar e que define um modo

caracteriacutestico de pensar que eacute o modo esteacutetico propriamente dito

A esteacutetica lida com o particular e com o concreto eacute aiacute que a sua verdade pode

ser encontrada pelo que o esteta natildeo eacute uma apologista de generalizaccedilotildees mas de

807

Cf Ibid sectsect 68-69 pp 28-29

808 Cf Ibid sect 3 p2

809 Cf Ibid sect 437 p 278

288

verdades menos abstractas que faccedilam parte de uma verdade metafiacutesica810

Natildeo significa

isto que a esteacutetica natildeo possa passar dos objectos reais para os objectos hipoteacuteticos

ficcionais ou virtuais que aliaacutes satildeo uma parte importante do seu domiacutenio O esteta eacute em

suma aquele que pensa o mundo e a experiecircncia humana de uma forma bela uma

forma mais holiacutestica que natildeo descarta a dimensatildeo sensiacutevel e particular e que as integra

de modo anaacutelogo ao racional no proacuteprio desenvolvimento da sua estrutura intelectual

aprimorando progressivamente a cadeia de sensaccedilotildees passiacutevel de se estabelecer a cada

reflexatildeo sobre si e sobre o mundo sem a condicionar ao fechamento dos conceitos A

estrutura e a clareza do raciociacutenio loacutegico natildeo satildeo alcanccedilaacuteveis senatildeo agrave custa de um

empobrecimento do real e de uma amputaccedilatildeo artificial da sua natureza englobante e

multidimensional Eacute como alternativa a tal sistematizaccedilatildeo do real que surge a

esteacutetica ndash no fundo como um modo adequado de aceder agrave complexidade integrada

do todo a partir do particular

O conceito de analogon rationis que entra na definiccedilatildeo de esteacutetica e que surge

por variadiacutessimas vezes na obra de Baumgarten811

tanto se refere agrave razatildeo anaacuteloga

paralela agrave razatildeo que lida com a loacutegica como ao pensamento analoacutegico ou raciociacutenio

por analogia desde que este uacuteltimo seja entendido por oposiccedilatildeo ao raciociacutenio que liga

os dados da sensibilidade aos conceitos ou seja desde que seja entendido como o

raciociacutenio que liga as percepccedilotildees sensiacuteveis agravequilo que Baumgarten designa de

perceptiones obscurae e que constituem confusamente o fundus animae812

Para

Baumgarten a confusatildeo eacute uma condiccedilatildeo sine qua non para a descoberta da verdade uma

vez que a natureza natildeo apresenta hiatos entre a obscuridade e a distinccedilatildeo813

A

abstracccedilatildeo essa sim eacute que instaura uma fractura no real814

O conceito de analogon

rationis refere-se portanto a uma faculdade paralela agrave razatildeo que permite estabelecer um

nexo de similaridade (analogia) entre a estrutura basilar mental (ou fundus animae) e a

sensaccedilatildeo do proacuteprio real daiacute que a cogniccedilatildeo por esta via ndash a cogniccedilatildeo esteacutetica ndash seja

imediata

810

Cf Ibid sect 440 e 441 p 280-281

811 Cf por exemplo Ibid sect 74 p 32 sect 437 p 278 sect 468 p 299 sect 608 p 397 entre outras

812 Cf Id Metaphysica sect 511 p 176 e Aesthetica sect 80 p36

813 Cf Id Aesthetica sect 7 p 3

814 Cf Ibid sect 560 p 363

289

Ainda no final do seacuteculo XVIII a esteacutetica entra nos curriacuteculos das universidades

alematildes como disciplina mas sem a amplitude que Baumgarten lhe advogava Na

verdade mais do que uma esteacutetica a disciplina comeccedila a tomar a forma de uma

kalologia A acepccedilatildeo da aisthesis ndash ou percepccedilatildeo sensiacutevel ndash que estaacute na origem do nome

da disciplina vai perdendo forccedila no sentido em que a sensibilidade e a sensaccedilatildeo

comeccedilam a ser relegadas para um plano secundaacuterio

Kant Schiller Schelling e Hegel815

seratildeo os verdadeiros pais da esteacutetica que

hoje em dia se pratica nas universidades Se constrangeram o projecto disciplinar

baumgartiano tambeacutem lhe conferiram um acreacutescimo de credibilidade filosoacutefica ndash uma

credibilidade que natildeo voltaacutemos a reencontrar Kant desvaloriza a perspectiva de

Baumgarten por considerar improcedente a analogia entre a experiecircncia esteacutetica e o

conhecimento racional A nova orientaccedilatildeo que o filoacutesofo de Koumlnigsberg daacute agrave

problemaacutetica da esteacutetica condu-la a um enfoque sobretudo direccionado para as

questotildees do belo e do prazer nas quais o conceito de desinteresse assume protagonismo

Em 1790 eacute publicada a Criacutetica da Faculdade de Julgar cuja primeira parte eacute dedicada

ao juiacutezo esteacutetico tido como a resposta que imediatamente procede a representaccedilatildeo de

um objecto esteacutetico sem se basear num conceito determinado mas ainda assim com

validade universal

A representaccedilatildeo resultante da experiecircncia de um objecto belo produz um estado

anaacutelogo agravequele que precede a formaccedilatildeo de um conceito promovendo um prazer

intelectual especiacutefico pelo livre jogo entre as faculdades cognitivas (imaginaccedilatildeo e

entendimento) Este prazer eacute o que constitui a sensaccedilatildeo do belo Portanto na

experiecircncia do belo o juiacutezo esteacutetico eacute subjectivo natildeo podendo nunca considerar-se um

juiacutezo de conhecimento e eacute desinteressado Ainda assim de um modo distinto agravequele

que se observava na perspectiva baumgartiana tambeacutem para Kant parece haver na

815

Tambeacutem Shaftesbury (1671-1713) Hutcheson (1694-1746) Hume (1711-1776) e Burke (1729-1797)

satildeo tambeacutem nomes incontornaacuteveis poreacutem natildeo os abordaremos visto ser nosso propoacutesito salientar os

autores com contributo paradigmaacutetico quanto agrave orientaccedilatildeo que a disciplina foi tomando apoacutes a proposta

baumgartiana e natildeo fazer um resumo abrangente da histoacuteria da esteacutetica Shaftesbury e Hutcheson

centram as suas reflexotildees na analogia entre a beleza e a virtude que encontraraacute fortes ecos na perspectiva

de Schiller Hume eacute bastante influenciado pela proposta de Hutcheson acerca do fundamento emocional

dos juiacutezos morais e pela teoria do gosto e da imaginaccedilatildeo de Joseph Addison (1672-1719) este uacuteltimo

influenciaraacute Burke e Kant relativamente agrave temaacutetica do sublime Por seu turno Hume influencia Kant no

que toca agrave defesa da independecircncia dos juiacutezos esteacuteticos O contributo de Burke eacute fundamental para a

questatildeo do sublime quanto aos aspectos fisioloacutegicos da sua percepccedilatildeo e quanto ao caraacutecter mutuamente

exclusivo em relaccedilatildeo agrave beleza A sua perspectiva distancia-se da de Kant no que toca ao sentido moral ou

transcendente da experiecircncia do sublime

290

experiecircncia esteacutetica uma certa sensaccedilatildeo de relaccedilatildeo entre a realidade exterior e os

sentidos internos do sujeito como se a realidade exterior presentificasse de imediato

essa validade universal que natildeo eacute alheia ao domiacutenio da moral e que mais intensamente

se faz sentir com a experiecircncia do sublime Na experiecircncia da beleza a relaccedilatildeo em

causa eacute de harmonia enquanto que na experiecircncia do sublime eacute de desproporccedilatildeo e de

revelaccedilatildeo imediata dos limites da imaginaccedilatildeo acabando por intervir tambeacutem a razatildeo816

Kant interessa-se tambeacutem pela arte e pelas ideias esteacuteticas que subjazem agrave sua

produccedilatildeo Estas ideias natildeo satildeo traduziacuteveis por conceitos pois resultam da faculdade da

imaginaccedilatildeo elas satildeo apenas traduziacuteveis nas formas que as materializaratildeo artisticamente

e que seratildeo objecto dos juiacutezos esteacuteticos pelo que as suas caracteriacutesticas correspondem

tambeacutem agrave possibilidade de garantir que tais juiacutezos sejam livres de quaisquer conceitos

ou interesse817

O geacutenio eacute precisamente a faculdade associada agraves ideias esteacuteticas que

certos indiviacuteduos privilegiados possuem por dom da natureza ou seja ldquoeacute a disposiccedilatildeo

inata do acircnimo (ingenium) pela qual a natureza confere regras agrave arterdquo818

Com Kant a esteacutetica viu a proposta baumgartiana ser relegada para um plano de

mera curiosidade histoacuterica e consolidou como aacutereas centrais de enfoque a questatildeo do

belo na arte e na natureza e as formulaccedilotildees de juiacutezo esteacutetico prazer esteacutetico e

desinteresse A temaacutetica do geacutenio e da sublimidade abriram as portas para o

romantismo que foi tambeacutem uma eacutepoca crucial para a consolidaccedilatildeo da esteacutetica

sobretudo atraveacutes dos contributos de Schiller e de Schelling

Schiller publica em 1795 o livro Sobre a educaccedilatildeo esteacutetica do homem numa

seacuterie de cartas819

onde segundo o proacuteprio testemunha ao seu mecenas

Augustenburg820

intenta completar a perspectiva kantiana presente na Criacutetica da

Faculdade de Julgar Tal propoacutesito visava em concreto ultrapassar a ideia de que o

reconhecimento do belo assentava num mero jogo entre o entendimento e a imaginaccedilatildeo

816

Eacute na relaccedilatildeo tensional entre a imaginaccedilatildeo e a razatildeo que se gera um prazer negativo

817 Kant CFJ sect 46

818 Id op cit sect 46

819 O tiacutetulo original eacute Uumlber die aumlsthetische Erziehung des Menschen in einer Reihe von Briefen

820 Carta de 9 de Feveiro de 1793 citada por Maacutercio Suzuki em laquoO belo como imperativoraquo in Schiller

Sobre a educaccedilatildeo esteacutetica do homem R Schwarz (trad) S Paulo Iluminuras 2002 p 8

291

de modo a libertar a disciplina esteacutetica do jugo da subjectividade Para tal havia que

propor um elo entre o juiacutezo esteacutetico e os princiacutepios da razatildeo praacutetica

Schiller defende uma dualidade da natureza humana como razatildeo e sensibilidade

pelo que qualquer elevaccedilatildeo moral deveraacute contemplar tambeacutem a dimensatildeo sensiacutevel O

homem nobre ndash aquele que cultiva a sensibilidade quer pela criaccedilatildeo de obras belas quer

pela sua mera contemplaccedilatildeo ndash vai para aleacutem do imperativo categoacuterico no sentido em

que natildeo apenas vecirc o sujeito racional autonomamente enquanto fim em si mesmo como

espraia essa autonomia a tudo o que estaacute em seu redor 821

O homem educado pelo belo

seraacute portanto um homem virtuoso para o qual a felicidade equivale agrave dignidade o

prazer ao dever numa unificaccedilatildeo ideal sem preeminecircncia de um sobre o outro Tal

dualismo ideal seria o pleno desenvolvimento da proacutepria estrutura humana na livre

harmonia da sua orientaccedilatildeo formal ou Formtrieb (proveniente do seu cariz racional)

com a orientaccedilatildeo sensiacutevel ou Sinnestrieb harmonia esta que Schiller traduz pelo

conceito Spieltrieb enfatizando a ideia de impulso luacutedico que une estas duas dimensotildees

antropoloacutegicas tensionais822

Schiller escreve

O objecto do impulso luacutedico representado num esquema geral poderaacute

ser chamado forma viva um conceito que serve para designar todas as

qualidades esteacuteticas dos fenoacutemenos tudo o que em resumo entendemos no

sentido mais amplo por belo823

A experiecircncia do belo eacute afim da liberdade permitindo uma continuidade entre a

dimensatildeo sensiacutevel e da razatildeo que Kant enfaticamente negara Embora excessivamente

centrado na questatildeo artiacutestica e no conceito de belo Schiller oscila ainda para uma

perspectiva da disciplina esteacutetica onde podem ser reconhecidos alguns ecos da proposta

baumgartiana por exemplo atraveacutes de uma correspondecircncia entre o homem virtuoso e o

felix aestheticus ndash ambos traduzem um saber viver potenciado pelo aperfeiccediloamento da

sensibilidade

821

Cf Schiller Sobre a educaccedilatildeo esteacutetica do homem carta XXIII [R Schwarz (trad) S Paulo

Iluminuras 2002 p 117-120]

822 Eacute oacutebvio o paralelo com a ideia kantiana de prazer esteacutetico como jogo livre entre a imaginaccedilatildeo e o

entendimento que Schiller retoma de um modo muito mais abrangente e mesmo radical Cf Ibid carta

XV pp 77-82

823 Ibid carta XV pp 77

292

Para Schelling a esteacutetica surge no acircmbito da tentativa em encontrar um fundo

comum entre o ideal e a realidade soacute a arte como produto de uma actividade

simultaneamente consciente e inconsciente permite a unificaccedilatildeo entre a subjectividade

e a objectividade A arte tange simultaneamente a necessidade e a liberdade e a

identificaccedilatildeo da actividade inconsciente com a actividade consciente daacute-se no eu intuiacutedo

em si mesmo isto eacute no eu consciente de tal identidade A inteligecircncia como

subjectividade racional reconhece em si os princiacutepios dessa identidade que natildeo eacute mais

do que uma manifestaccedilatildeo do absoluto Agrave filosofia cabe articular o absoluto poreacutem soacute a

arte consegue objectivaacute-lo como expressatildeo da consciecircncia universal da intuiccedilatildeo

intelectual824

A intuiccedilatildeo esteacutetica eacute precisamente a objectivaccedilatildeo da intuiccedilatildeo

intelectual825

Aleacutem daquilo que com manifesta intenccedilatildeo coloca na sua obra o artista parece

instintivamente conseguir representar uma infinidade que nenhum entendimento finito eacute

capaz de desenvolver integralmente Uma verdadeira obra de arte comporta uma

infinidade de intenccedilotildees e pode ser interpretada ateacute ao infinito sem que possamos jamais

dizer se esta infinidade reside no artista ou simplesmente na obra de arte 826

A arte torna

presente uma beleza superior eterna emanada do absoluto em relaccedilatildeo agrave qual as belezas

sensiacuteveis satildeo uma versatildeo secundaacuteria degradada Natildeo haacute qualquer subordinaccedilatildeo da arte agrave

natureza cuja beleza eacute contingente e incapaz de funcionar como cacircnone para a arte

ainda que o artista deva prestar atenccedilatildeo agrave vida que subjaz agrave natureza

Segundo o filoacutesofo se subtrairmos a objectividade da arte ela deveacutem filosofia e

se conseguirmos garantir objectividade agrave filosofia ela cessa de ser aquilo que eacute e deveacutem

arte827

Foi precisamente com Schelling e com Hegel que a filosofia da arte consolidou a

sua posiccedilatildeo central no seio da esteacutetica a ponto de ainda hoje muitos filoacutesofos

considerarem sinoacutenimas as designaccedilotildees lsquoesteacutetica filosoacuteficarsquo e lsquofilosofia da artersquo

824

Cf Schelling The System of Transcendental Idealism Peter Heath (trans) Charlottesville University

of Virginia Press 1993 p 232

825 Cf Id op cit p 229

826 Cf Id op cit p 225

827 Cf Id op cit p 233

293

A consideraccedilatildeo da esteacutetica como intermediaacuteria entre a dimensatildeo transcendente e

a dimensatildeo imanente eacute abandonada por Hegel cuja obra poacutestuma Cursos de Esteacutetica828

constitui a primeira grande sistematizaccedilatildeo teoacuterica acerca da natureza da obra de arte

Para este autor a esteacutetica deixa de ter uma capacidade reveladora na acepccedilatildeo que os

seus antecessores lhe atribuiacuteam e deixa tambeacutem de fazer sentido como ciecircncia da

sensaccedilatildeo Soacute a filosofia da arte concerne a esteacutetica natildeo sendo de estranhar a exclusatildeo da

beleza natural do acircmbito disciplinar esteacutetico A esteacutetica teoloacutegica tambeacutem natildeo tem aiacute

lugar uma vez que o que ocupa agora a disciplina satildeo os aspectos formais e estiliacutesticos

da arte que natildeo encontram adequada aplicaccedilatildeo na consideraccedilatildeo da experiecircncia esteacutetica

ao niacutevel religioso Natildeo sendo a arte uma forma elevada de expressatildeo ndash como para Hegel

o satildeo a religiatildeo e a filosofia ndash ela eacute esteacuteril quanto ao alcance do tipo de verdades com as

quais lidam a religiatildeo e a filosofia Eacute neste seguimento que surge o seu mais famoso

aforismo acerca da arte

A arte eacute e permanece para noacutes quanto agrave sua mais elevada vocaccedilatildeo algo

do passado Assim ela perdeu tambeacutem para noacutes a sua verdade e a sua vida

autecircnticas e foi transferida para as nossas ideias ao inveacutes de manter a sua

anterior necessidade na realidade e aiacute ocupar o seu posto superior829

Esta sua afirmaccedilatildeo sobre o fim da arte iria influenciar toda uma seacuterie de

pensadores como Adorno Heidegger Lukaacutecs Derrida ou Danto A especulaccedilatildeo

hegeliana natildeo soacute rompe com a perspectiva de que a esteacutetica eacute holiacutestica e pode

manifestar ao homem a transcendecircncia como rompe tambeacutem com a tradiccedilatildeo fundada na

ideia de gosto cuja anaacutelise se centrava nas condiccedilotildees do juiacutezo esteacutetico Ainda assim o

filoacutesofo natildeo nega totalmente o caraacutecter revelador da experiecircncia esteacutetica da obra de arte

considerando que ela promove uma aproximaccedilatildeo da aparecircncia das ideias mais elevadas

aos sentidos e aos sentimentos830

A forma sensual como a arte presentifica tais ideias

impede poreacutem que se tomem como regra ou maacutexima universal

828

No original Vorlesungen uumlber die Aumlsthetik Esta obra eacute resultante dos cursos sobre esteacutetica

ministrados por Hegel nas Universidades de Heidelberg (1918) e de Berlim (182021 1823 1826 e

182829) A publicaccedilatildeo em 1835 resulta da compilaccedilatildeo de notas a partir dos proacuteprios manuscritos de

preparaccedilatildeo das aulas de Hegel e das anotaccedilotildees registadas pelos alunos durante os cursos

829 G W F Hegel Aesthetics Lectures on Fine Art T M Knox (trad) vol 1 Oxford Clarendon Press

1998 p 11

830 Id op cit p 10

294

Eacute tambeacutem Hegel quem mais notoriamente pressupotildee a ideia da necessidade de um

sistema de amplitude teoacuterica englobante ndash do qual a esteacutetica faz parte ndash caracterizado pela

ausecircncia de dualismos e orientado para o fito de alcanccedilar uma realizaccedilatildeo absoluta do

saber filosoacutefico que faria da filosofia uma verdadeira ciecircncia

O contributo para a esteacutetica de Schopenhauer Nietzsche Heidegger e de tantos

outros filoacutesofos que se seguiram mereceria uma anaacutelise que aqui natildeo faremos por

ultrapassar jaacute a problemaacutetica do momento fundacional da esteacutetica A originalidade das

suas propostas natildeo deixa de ser enquadraacutevel na moldura jaacute definida durante o periacuteodo

do Idealismo alematildeo831

Eacute esta moldura que ainda hoje aprisiona a ideia que temos da

esteacutetica a um modelo ultrapassado que por um lado natildeo eacute capaz de integrar plenamente

o contributo dos autores antigos e medievos por exemplo e por outro lado nem

sempre consegue acompanhar as diversas tendecircncias e problemaacuteticas que tecircm surgido

nas uacuteltimas deacutecadas acerca do modo como o sujeito se relaciona sensualmente com o

mundo e acerca das articulaccedilotildees que a sensibilidade pode manter com a razatildeo

A esteacutetica contemporacircnea ao debruccedilar-se sobre si mesma parece ter-se

apercebido que a credibilidade e a importacircncia gozadas no dealbar da sua constituiccedilatildeo

como disciplina filosoacutefica se esbateram transformando-a numa espeacutecie de filha espuacuteria

da filosofia sempre em vias de escorregar para famiacutelias do conhecimento que natildeo a

filosoacutefica ou mesmo em risco de perder toda a viabilidade nas esferas do saber O

esbatimento da sua relevacircncia no seio da filosofia prende-se precisamente com uma

certa petrificaccedilatildeo do seu campo de estudo e com a limitaccedilatildeo dos seus quadros

categoriais que acabam por se revelar insuficientes mesmo em relaccedilatildeo agraves tradicionais

aacutereas de aplicaccedilatildeo A categoria esteacutetica do belo em relaccedilatildeo agrave arte eacute disso o exemplo

mais gritante mas poder-se-aacute tambeacutem pensar no caso da teorizaccedilatildeo da experiecircncia

esteacutetica da natureza e da paisagem que ainda hoje luta por se livrar das perspectivas

pitorescas e do jargatildeo da filosofia da arte

831

Por exemplo Heidegger retoma o entendimento schellinguiano da arte como reveladora da natureza do

real ao atribuir-lhe um papel importante no domiacutenio da verdade como desvelamento No caso de

Nietzsche apesar da sua ruptura com as perspectivas tradicionais e da radicalidade da sua teoria natildeo

deixa de trilhar a esteira de Schelling considerando a arte como a manifestaccedilatildeo esteacutetica por excelecircncia e

determinando-lhe superioridade em relaccedilatildeo ao conhecimento conceptual Tambeacutem como Schelling

Schopenhauer incide na capacidade de objectivaccedilatildeo da arte e retomando a terminologia kantiana do

sublime matemaacutetico e dinacircmico estabelece uma relaccedilatildeo entre a dimensatildeo moral e a disposiccedilatildeo mental

que o sublime convoca

295

Na constataccedilatildeo de uma certa marginalidade e desprestiacutegio a esteacutetica tem

procurado contrariar esse estatuto pela estrateacutegia expansionista da interdisciplinaridade

e da esteticizaccedilatildeo consistindo esta uacuteltima na promoccedilatildeo a lugar esteacutetico conferida agraves

mais variadas paisagens experiecircncias objectos e situaccedilotildees e pelo esbatimento da

fronteira entre a esteacutetica e o quotidiano Poreacutem essa tendecircncia que promove o espraiar

da experiecircncia esteacutetica para laacute do confinamento da arte poderaacute parecer tambeacutem

condenaacute-la filosoficamente ndash perspectiva que natildeo subscrevemos A pluralizaccedilatildeo dos

lugares esteacuteticos eacute injustamente tida como uma ameaccedila agrave proacutepria sensibilidade e agrave

dimensatildeo eacutetica das nossas vivecircncias A resposta a tais receios passa pela rejeiccedilatildeo do

caraacutecter uniacutevoco e desinteressado da experiecircncia esteacutetica e pela assunccedilatildeo de que o

esteacutetico nunca eacute um predicado exaustivo e irreversiacutevel que outorgamos a determinadas

coisas ou situaccedilotildees

A noccedilatildeo kantiana de desinteresse marcou profundamente a esteacutetica

contemporacircnea e embora ateacute pudesse ter sido reencaminhada para interpretaccedilotildees que

sublinhassem a possibilidade de estender a experiecircncia esteacutetica a outros lugares que natildeo

a arte ou a natureza a verdade eacute que tal natildeo ocorreu O desinteresse associado agrave

experiecircncia esteacutetica constitui um dos principais argumentos contra a esteticizaccedilatildeo do

quotidiano Esta forma de descentralizar a filosofia da arte da experiecircncia esteacutetica

embora tenha vindo a ganhar terreno na uacuteltima deacutecada tem tambeacutem sido alvo de

inuacutemeras criacuteticas A pluralizaccedilatildeo dos lugares esteacuteticos eacute tida como uma ameaccedila agrave

proacutepria sensibilidade de dois modos por um lado teme-se uma anestesia por excesso e

por outro lado teme-se uma desequilibrada subjectivizaccedilatildeo das experiecircncias com

consequecircncias ao niacutevel do nosso relacionamento com os outros O prazer desinteressado

pressuposto na experiecircncia esteacutetica eacute tido como um prazer exclusivo um prazer em si e

por si que no contexto das situaccedilotildees e das relaccedilotildees do dia-a-dia poderaacute comprometer

um envolvimento seacuterio do sujeito e mesmo condicionar por exemplo a sua capacidade

de agir segundo convenccedilotildees morais A passagem do contexto artiacutestico para o contexto

da vida quotidiana seja nas suas trivialidades seja nas suas trageacutedias configura-se

problemaacutetica A esteticizaccedilatildeo das situaccedilotildees do dia-a-dia eacute a esteticizaccedilatildeo do mundo e

pode reduzi-lo a um lugar de prazer subjectivo desinteressado A contemplaccedilatildeo esteacutetica

pode parecer descabida em determinados contextos pois arrisca transformar-se numa

indiferenccedila ao sofrimento dos outros

A resposta a esta criacutetica passa por se rejeitar a impreteribilidade do divoacutercio

entre o prazer esteacutetico e outras dimensotildees da experiecircncia como por exemplo a

296

consciecircncia eacutetica ndash os objectos ou as situaccedilotildees natildeo satildeo territoacuterios de experiecircncia

lineares pois implicam que nos relacionemos com eles a um niacutevel multidimensional

Uma laacutegrima no rosto de algueacutem natildeo se resume a H2O+NaCl e sabemos interpretaacute-la

como uma manifestaccedilatildeo de tristeza ou de felicidade consoante o contexto Do mesmo

modo sabemos quando devemos ser sensiacuteveis e solidaacuterios antes de qualquer outro tipo

de resposta agrave visatildeo da laacutegrima ou se podemos ter a liberdade de a tomar no seu brilho

diaacutefano e atender placidamente agrave sinuosidade da linha huacutemida que desenha na pele pela

sua escorrecircncia Natildeo satildeo os objectos ou as situaccedilotildees que fazem a relaccedilatildeo esteacutetica eacute a

relaccedilatildeo que faz com que assumamos esteticamente os objectos ou as situaccedilotildees Essa

assunccedilatildeo resulta de uma escolha livre por parte do sujeito supostamente assente no

bom senso

Quaisquer objectos e situaccedilotildees podem ser assumidos esteticamente ndash o

quotidiano pode ser um lugar esteacutetico ndash natildeo significando isso que o esteacutetico seja um

predicado exaustivo e irreversiacutevel A experiecircncia de um prazer puro absolutamente

inebriante a tal ponto de se tornar irreprimiacutevel e exclusivo parece descrever melhor um

orgasmo do que um encontro esteacutetico A palavra lsquoencontrorsquo natildeo seraacute aqui fortuita ndash a

experiecircncia esteacutetica pode ser expressamente procurada e haacute lugares onde mais

facilmente a encontramos como num museu de arte onde os objectos e o contexto se

predispotildeem a tal encontro e nos quais haacute uma maior margem de liberdade para que o

desinteresse aconteccedila mas fora da redoma que a categoria lsquoartersquo confere aos objectos e

agraves situaccedilotildees o encontro esteacutetico pode ocorrer inesperadamente e em contextos que

exigem uma escolha por parte do sujeito ou melhor uma decisatildeo acerca das prioridades

relativas agraves diferentes dimensotildees da experiecircncia sendo que estas dimensotildees natildeo

compartimentam rigidamente a experiecircncia nem se circunjazem de forma estanque A

dimensatildeo esteacutetica natildeo inviabiliza de todo a dimensatildeo moral coisa que aliaacutes era jaacute

perfeitamente reconhecida pelos filoacutesofos do Idealismo alematildeo

Relativamente ao argumento que vecirc na esteticizaccedilatildeo do quotidiano uma via para

a anestesia por excesso ele assenta na ideia absolutamente correcta de que seriacuteamos

incapazes de viver num estado de perene encantamento com o mundo Poreacutem essa

impossibilidade natildeo significa que realmente ocorra uma espeacutecie de sobrecarga esteacutetica

ou uma intoxicaccedilatildeo da sensibilidade de tal ordem que nos pudesse conduzir a um

estado de lsquofilistinismorsquo total e abrangente Esta anestesia soacute seria possiacutevel se natildeo

tiveacutessemos a liberdade e a capacidade de nos relacionarmos de uma forma multiacutevoca

com os objectos que constituem a nossa experiecircncia do mundo Mais uma vez

297

deparamo-nos com o mito do desinteresse e com a consequente exclusividade do prazer

esteacutetico que goraria a nossa capacidade natural de experienciar os objectos e as

situaccedilotildees de forma multidimensional e integrada Por norma essa nossa capacidade faz

com que sejamos livres para determinarmos previamente o grau de arrebatamento que

estamos dispostos a sentir ante um objecto ou situaccedilatildeo num determinado contexto As

outras dimensotildees da experiecircncia podem mesmo funcionar como factores de equiliacutebrio

na gestatildeo do sentimento esteacutetico ao apresentarem alternativas ou complementos ao

nosso empenho relativamente a essa dimensatildeo esteacutetica Temos autonomia suficiente

para natildeo confundir o ilimitado potencial esteacutetico da experiecircncia das coisas que nos

rodeiam com a efectiva experiecircncia esteacutetica que delas fazemos

O reconhecimento de que qualquer coisa ou situaccedilatildeo pode ser um lugar esteacutetico

natildeo implica portanto que se tema a anestesia relativamente a outras dimensotildees da

experiecircncia nem a anestesia que eacute expressa na foacutermula se tudo eacute esteacutetico nada eacute

esteacutetico Coloca-se entatildeo a questatildeo sobre as razotildees que levam ao constrangimento por

parte da filosofia em dar aos lugares quotidianos o mesmo estatuto esteacutetico que daacute agrave arte

e que felizmente recomeccedila a dar agrave natureza Por outras palavras porque eacute que a

pluralizaccedilatildeo dos lugares esteacuteticos e a descentralizaccedilatildeo da filosofia da arte ameaccedilam

filosoficamente a esteacutetica Por um lado parece haver um receio de contaminaccedilatildeo

interdisciplinar que como jaacute vimos fragilizaria o estatuto filosoacutefico da esteacutetica pela

diluiccedilatildeo das suas fronteiras Por outro lado porque se trata de uma disciplina que desde

cedo se virou para a arte e que encontrou na categoria artiacutestica um porto seguro para o

discurso do prazer desinteressado

A noccedilatildeo de desinteresse desadequa-se agraves questotildees do quotidiano ateacute porque o

facto de nos relacionarmos desinteressadamente com algo eacute tido como uma libertaccedilatildeo

das pressotildees do dia-a-dia A experiecircncia esteacutetica assume essa desvinculaccedilatildeo das

preocupaccedilotildees de natureza praacutetica que maioritariamente caracterizam o quotidiano pelo

que se supotildee mais coerente com as excepccedilotildees com as coisas ou situaccedilotildees especiais A

arte eacute talvez o melhor territoacuterio para o confronto entre o sujeito e aquilo que natildeo lhe eacute

familiar e enquanto territoacuterio de novidade e estranheza o seu potencial esteacutetico eacute

enorme Em contextos que nos satildeo familiares tendemos a ver as coisas na sua dimensatildeo

praacutetica e a desvalorizar a sua dimensatildeo esteacutetica natildeo eacute portanto de se estranhar o

298

casamento automaticamente feito entre esteacutetica e arte e a negligecircncia a que a disciplina

condena o quotidiano832

Pela arte a experiecircncia esteacutetica tem uma distinccedilatildeo muito mais clara e quase

imediata de outros tipos de experiecircncia ndash as fronteiras entre o que eacute esteacutetico e o que natildeo

o eacute satildeo menos problemaacuteticas Aleacutem disso a arte faculta uma espeacutecie de moldura ou

enquadramento que torna aceitaacutevel e coerente o tal prazer desinteressado O contexto da

arte atraveacutes dessa moldura delimita o espaccedilo de exterioridade em que nos podemos

quedar na seguranccedila da contemplaccedilatildeo supostamente sem nos obrigar a estabelecer

prioridades quanto a certas dimensotildees da experiecircncia Eacute graccedilas a essa exterioridade que

automaticamente assumimos face agrave arte que ela ocasiona situaccedilotildees como a morte do

catildeo que fazia parte da instalaccedilatildeo do costa-riquenho Guillermo Vargas Assumimos que

se eacute arte entatildeo eacute suposto contemplarmos natildeo eacute suposto agirmos assumimos portanto

que natildeo nos devemos posicionar inter-esse Aleacutem do desinteresse a arte contemporacircnea

veio ditar a desadequaccedilatildeo de outros pressupostos esteacuteticos como o belo mas mais do

que isso veio demonstrar que as categorias artiacutesticas natildeo correspondem

necessariamente agraves categorias esteacuteticas Significa isto que a esteacutetica enquanto disciplina

pode alargar-se filosoficamente a outros lugares que natildeo a arte sem necessariamente

adoptar os modelos da arte ao campo esteacutetico desses outros lugares

Nos uacuteltimos anos a reabilitaccedilatildeo da esteacutetica da natureza tem contribuiacutedo bastante

para esta perspectiva ao defender o natildeo confinamento da experiecircncia esteacutetica da

natureza agraves categorias artiacutesticas e ao propor a sua integraccedilatildeo no processo activo do

relacionamento entre o sujeito e os seus ambientes A esteacutetica somaacutetica de Richard

Shusterman comeccedila tambeacutem a ganhar alguma credibilidade no meio filosoacutefico

inclusivamente tecircm surgido propostas para sub-nuacutecleos desse lugar esteacutetico ndash eacute o caso

da lsquoesteacutetica da digestatildeorsquo desenvolvida por Christian Denker (Universidade de Viena)

Com a esteacutetica somaacutetica apercebemo-nos que o prazer esteacutetico pode natildeo resultar

exclusivamente das experiecircncias que nos satildeo facultadas pelos cinco sentidos ou pela

imaginaccedilatildeo A propriocepccedilatildeo por exemplo poderaacute abrir caminho a novas categorias

esteacuteticas A esteacutetica somaacutetica posiciona-se na tradiccedilatildeo que assume a experiecircncia esteacutetica

natildeo numa dimensatildeo exterior superficial baseada na contemplaccedilatildeo e no prazer

desinteressado mas na dimensatildeo criacutetica e auto-reflexiva do encontro em que o prazer

se assume como um ganho como um enriquecimento pessoal O prazer esteacutetico do

832

O tiacutetulo de Arthur Danto The transfiguration of de Commonplace eacute disto ilustrativo

299

ganho que se opotildee ao prazer desinteressado eacute relativo agrave experiecircncia de qualquer lugar

esteacutetico e obviamente estaacute tambeacutem presente na relaccedilatildeo do sujeito com uma obra de

arte Eacute a este lsquoprazer-ganhorsquo que Steiner se parece referir quando diz que o encontro

com uma obra de arte propotildee uma mudanccedila ao impor uma questatildeo ao fruidor ldquoComo

sentes e o que pensas das possibilidades da vida das formas alternativas do ser que

estatildeo impliacutecitas na tua experiecircncia de mim no nosso encontrordquo833

A esteacutetica somaacutetica consiste no estudo criacutetico e melhorativo das experiecircncias e

dos usos do corpo como lugar de apreciaccedilatildeo sensoacuteria e da proacutepria praacutetica criativa Ou

seja ela baseia-se no aperfeiccediloamento da consciecircncia dos nossos estaacutedios e sensaccedilotildees

corpoacutereas A atenccedilatildeo dada a este funcionamento do corpo permite por exemplo

controlar e evitar estados de maacute disposiccedilatildeo ou mesmo de doenccedila que natildeo soacute limitam o

prazer e desencadeiam dor como enfraquecem os sentidos diminuindo a nossa

capacidade der atender agraves dimensotildees esteacuteticas que nos rodeiam A esteacutetica somaacutetica natildeo

se limita a aplicar categorias artiacutesticas ao corpo natildeo o trata como um mero objecto de

valor de contemplaccedilatildeo e de criaccedilatildeo esteacutetica mas sobretudo como um medium sensoacuterio

por si e pela sua capacidade em lidar com outros lugares esteacuteticos Ao incluir tambeacutem

uma vertente praacutetica e interdisciplinar surge na senda da proposta esteacutetica

baumgartiana

Assim a pluralizaccedilatildeo dos lugares esteacuteticos e o descentramento da filosofia da

arte no seio da esteacutetica natildeo ameaccedilam filosoficamente a disciplina se esta for

perspectivada no seio desta tradiccedilatildeo que tem sido negligenciada pela filosofia mais do

que isso a abertura e a abrangecircncia que caracteriza tal visatildeo da esteacutetica eacute talvez a

soluccedilatildeo para o lugar cada vez mais marginal que a esteacutetica aufere no seio da filosofia

Quanto agrave esteacutetica do quotidiano talvez ainda seja um lugar esteacutetico demasiado amplo e

heteroacuteclito que precise ser cindido em vaacuterios nuacutecleos constituintes de modo a

predispor-se agrave estruturaccedilatildeo de um corpo de estudo com a coerecircncia que a esteacutetica da

natureza jaacute tem e que a esteacutetica somaacutetica comeccedila a ter

Sendo um ramo tatildeo recente da filosofia a esteacutetica parece querer garantir a

validade do seu estatuto filosoacutefico de modo ambivalente por um lado sublinhando a

833

George Steiner Real Presences University of Chicago Press 1991 p 142 laquo What do you feel what

do you think of the possibilities of life of the alternative shapes of being which are implicit in your

experience of me in our encounterraquo

300

distinccedilatildeo e as fronteiras relativamente aos restantes ramos filosoacuteficos e por outro lado

mediando os departamentos artificiais dos quais ela proacutepria faz parte na esfera do saber

Esta ambivalecircncia levou a que se equacionasse a possibilidade de uma esteacutetica

interdisciplinar que natildeo tem sido bem-vinda no seio da filosofia A esteacutetica

interdisciplinar natildeo deve ser entendida como uma permeabilizaccedilatildeo exacerbada da

esteacutetica relativamente agraves outras disciplinas filosoacuteficas a ponto de nelas se diluir e perder

o estatuto diferenciado que alcanccedilou no seacuteculo XVIII nem como um mero canal de

interacccedilatildeo entre as diferentes disciplinas e formas de expressatildeo artiacutestica ndash como as artes

plaacutesticas cinema muacutesica literatura ou ateacute mesmo o design ndash e os discursos teoacutericos que

sobre elas versam sob o risco de perder a sua pertinecircncia filosoacutefica A esteacutetica

interdisciplinar deveraacute recuperar de algum modo o programa baumgartiano que tinha a

virtude de natildeo estabelecer uma antinomia entre o raciociacutenio loacutegico e a experiecircncia do

conhecimento sensiacutevel e que consignava uma vertente praacutetica que aliada agrave teoria

assumia o propoacutesito do aperfeiccediloamento do potencial cognitivo humano e da forma de

vida ndash ou seja da forma de lidar com as situaccedilotildees do quotidiano

Como um exemplo paradigmaacutetico de esteacutetica interdisciplinar destacamos o

projecto de investigaccedilatildeo da Universidade de Aarhus (Dinamarca) coordenado pelo

Professor Morten Kyndrup834

e intitulado Contemporary Aesthetic Theory Current

Functional Transformations of the Aesthetic Este projecto implementado haacute mais

de 15 anos resultou na criaccedilatildeo de um programa de estudos em esteacutetica

interdisciplinar (Interdisciplinary Aesthetic Studies Program) e num centro de

estudos homoacutenimo Segundo Kyndrup a esteacutetica interdisciplinar eacute um campo

relativamente novo cuja internacionalizaccedilatildeo soacute agora comeccedila a emergir e que exige

uma perspectiva biacutefida da esteacutetica por um lado o reconhecimento da diluiccedilatildeo de

fronteiras entre as artes e entre a arte e todos os outros campos disciplinares

implicando por outro lado o reconhecimento de que a esteacutetica natildeo se confina agrave ar te

e que os fenoacutemenos esteacuteticos bem como as formas esteacuteticas de articular fenoacutemenos

834

Destacamos as seguintes publicaccedilotildees de Kyndrup Aesthetics and Border Lines in Nordisk Estetisk

Tidsskrift nordm 35 Aarhus Aarhus Universitet 2008 pp 24-31 Art Theory versus Aesthetics in C

Entzenberg S Saumlaumltela (eds) Perspectives on Aesthetics Art and Culture Stockholm Thales 2005 pp

175-182 ldquoExplanation and Extinction - the Dilemma of Aesthetic Sciences in ACTS 3 Aarhus Aarhus

Universitet 1988 Art and the Enunciative Paradigm Todays Objectual De-differentiation and its

Impact on Aesthetics in Nordisk estetisk tidskrift nordm 25-26 Aarhus Aarhus Universitet 2002 pp26-38

301

satildeo incontornaacuteveis no dia-a-dia835

Sem constituir uma fuga agrave filosofia a esteticizaccedilatildeo

do quotidiano implica o alargamento das tradicionais fronteiras da esteacutetica e o

estreitamento do fosso entre conhecimento esteacutetico e sociedade contemporacircnea A

esteacutetica interdisciplinar surge na senda da viragem cultural esteacutetica que por seu turno

encontra raiacutezes no criticismo inglecircs do seacutec XVIII e na recusa do conceito de

ldquodesinteresserdquo que tradicionalmente se reporta agrave atitude esteacutetica

No acircmbito deste projecto tecircm sido organizados vaacuterios cursos e vaacuterias

conferecircncias internacionais apoiadas pela NOS-H (Nordic Research Councilsrsquo

Cooperation) e pela Nordic Society of Aesthetics das quais destacamos ldquoThe

Borderlines of Aestheticsrdquo (2003) e ldquoThe Limits of Aestheticsrdquo (2007) Outras

instituiccedilotildees noacuterdicas tecircm seguido este tipo de investigaccedilatildeo inaugurado pela

Universidade de Aarhus eacute o caso da Universidade de Uppsala (Sueacutecia) ndash que acolheu

conferecircncias como ldquoThe Aesthetic Turnrdquo (2001) ou ldquoAesthetics and the aestheticrdquo

(2008) ndash e da Universidade de Trondheim (Noruega) que em 2009 foi palco do

simpoacutesio ldquoThe future of aestheticsrdquo

Aleacutem de Kyndrup integram esta corrente noacuterdica investigadores como Lars-Olof

Aahlberg836

(mais criacutetico quando ao descentramento da filosofia da arte no seio da

esteacutetica) Arto Haapala Malte Lyneborg Carsten Friberg Jacob Lund Pedersen ou Arne

Melberg837

ndash estes uacuteltimos mais ligados agrave questatildeo da incorporaccedilatildeo e da relevacircncia da

dimensatildeo esteacutetica na vida quotidiana Fora da corrente noacuterdica esta questatildeo da

pertinecircncia filosoacutefica da estetizaccedilatildeo do quotidiano tem sido abordada por autores como

835

Cf Kyndrup citado no site oficial do Ministeacuterio dos Negoacutecios Estrangeiros da Dinamarca ndash

DenmarkDK ndash no artigo anoacutenimo ldquoArt without Boundariesrdquo Consultado em 2 de Marccedilo de 2009 in

httpwwwdenmarkdkenmenuAbout-DenmarkScience-ResearchResearch-AreasInterdisciplinary-

Aesthetic-StudiesArtWithoutBoundaries

836 Aahlberg ldquoThe Nature and Limits of Analytic Aestheticsrdquo in The British journal of aesthetics v 33

nordm 1 Oxford Oxford University Press 1993 p5-16 ldquoNotions of the Aesthetic and of Aestheticsrdquo in

Sharon Rider amp Paumlr Segerdahl (eds) Tankar Tillaumlgnade Soumlren Stenlund vol 54 Uppsala Uppsala

Universitet 2008 ldquoIs Aesthetics Possiblerdquo in Peter Keplec (ed) Filozofski vestnik vol 18 nordm1

Ljubljana Znanstvenoraziskovalni center SAZU 1997 pp 153-157

837 Haapala ldquoOn the Aesthetics of the Everyday Familiarity Strangeness and the Meaning of Placerdquo in

Andrew Light amp Jonathan M Smith (eds) The Aesthetics of Everyday Life New York Columbia

University Press 2005 pp 39-55 Malte Lyneborg ldquoFuzzy Aesthetics as an Interdisciplinary fieldrdquo in

Surveys of the Conference The Limitis of Aesthetics Aarhus University 2007 consultado em Junho de 2008 in

wwwaestetikaudkgrpapersmalte_chr_lyneborg J Lund Pedersen ldquoAn Art Afterrdquo in Ekman amp Tygstrup (eds)

Witness Koslashbenhavn Museum Tusculanums Forlag 2008 pp 282-288 Arne Melberg (ed) Aesthetics at

work Oslo Oslo Academic Press 2007

302

Katya Mandoki Yuriko Saito Crispin Sartwell838

entre outros Filoacutesofos como Dewey

ou mesmo Heidegger satildeo apontados como os precursores deste movimento que advoga

a possibilidade da experiecircncia esteacutetica face a objectos ou situaccedilotildees natildeo relacionados

com a arte e que problematiza a distinccedilatildeo entre as belas-artes e as artes populares No

fundo este tipo de abordagem eacute relevante pela perspectivaccedilatildeo do alargamento das

fronteiras tradicionalmente convencionadas para a esteacutetica Sem trilhar a senda da

estetizaccedilatildeo do quotidiano autores como Frank Sibley Wolfgang Welsh Arnold

Berleant e Richard Shusterman839

satildeo outros dos nomes cujo contributo para o espraiar

do campo da esteacutetica natildeo poderaacute ser ignorado

A descentralizaccedilatildeo do belo e da filosofia da arte natildeo constitui uma ameaccedila ao

estatuto filosoacutefico da esteacutetica e haacute caminhos jaacute trilhados pelos filoacutesofos anteriores agrave

delimitaccedilatildeo disciplinar da esteacutetica que podem ser retomados na contemporaneidade

sem o medo de que a dispersatildeo ou a transversalidade lhes retire valor ou pertinecircncia no

seio deste ramo filosoacutefico No fundo natildeo haacute uma extraordinaacuteria novidade nas propostas

que visam o alargamento das fronteiras da esteacutetica pois eacute possiacutevel reconhecer as suas

bases em muitas obras anteriores ao seacuteculo XVIII A consolidaccedilatildeo filosoacutefica de tais

propostas deveraacute inclusivamente levar em conta esse legado do passado sem se quedar

numa espeacutecie de justificaccedilatildeo historicista das mesmas mas percebendo por exemplo de

que modo os autores do passado articulavam as temaacuteticas constitutivas de tais nuacutecleos

que hoje podemos considerar esteacuteticos e qual o nexo que tais nuacutecleos podem assumir

no presente no seio da esteacutetica

A indefiniccedilatildeo do objecto da esteacutetica e as variantes interdisciplinares poderatildeo

fazer da esteacutetica um campo de estudos desconfortaacutevel pela falta de unidade implicada

mas talvez esse desconforto seja ainda o fruto da ideia preconceituosa da imposiccedilatildeo

necessaacuteria do sistema Nada impede que os objectos esteacuteticos sejam de natureza

disjuntiva nem nada exige que a esteacutetica seja um campo de estudos unificado

838

Katya Mandoki Everyday aesthetics Prosaics the Play of Culture and Social Identities Aldershot

Ashgate 2007 Yuriko Saito Everyday aesthetics Oxford Oxford University Press 2007 Crispin

Sartwell ldquoAesthetics of the everydayrdquo in Jerrold Levinson (ed) The Oxford handbook of aesthetics

Oxford Oxford University Press 2005 pp 761-770

839 Sibley Approach to Aesthetics Collected papers on philosophical Aesthetics Oxford J Benson

2001 Welsh Undoing Aesthetics London Thousand Oaks New Delhi SAGE 1997 Berleant Re-

thinking Aesthetics Rogue Essays in Aesthetics and the Arts Aldershot Ashgate 2005 Shusterman

Body Consciousness A Philosophy of Mindfulness and Somaesthetics Cambridge Cambridge University

Press 2008

303

32 ndash Repensando a esteacutetica a partir de Santo Agostinho

A clarificaccedilatildeo da esteacutetica e das suas valecircncias passa tambeacutem pela anaacutelise de

conceitos como experiecircncia esteacutetica emoccedilotildees esteacuteticas e valor esteacutetico A abordagem

relativa a estas formulaccedilotildees parece comeccedilar a substituir a atenccedilatildeo que anteriormente era

sobretudo dada aos conceitos de juiacutezo esteacutetico prazer ou beleza natildeo que o domiacutenio da

anaacutelise conceptual esteacutetica tenha abandonado estes conceitos poreacutem eles comeccedilaram a

revelar-se demasiado restritivos e pouco eficazes quanto a uma aplicaccedilatildeo mais

abrangente como aquela que eacute exigida pelas novas aacutereas do ramo disciplinar em

questatildeo Mesmo no que toca agrave esfera da filosofia da arte os desafios que a produccedilatildeo

artiacutestica contemporacircnea veio trazer resultaram tambeacutem na constataccedilatildeo de uma certa

obsolescecircncia das questotildees do gosto do prazer e da beleza Haacute obras que nos tocam de

um modo significativo e que natildeo podemos deixar de considerar esteacutetico mesmo que

natildeo possamos dizer que gostamos delas que satildeo belas ou que a sua contemplaccedilatildeo nos

provoca prazer As formulaccedilotildees ldquoexperiecircncia esteacuteticardquo ldquoemoccedilatildeo esteacuteticardquo e ldquovalor

esteacuteticordquo espraiam o acircmbito dos conceitos que ocuparam os filoacutesofos nos primeiros

seacuteculos da disciplina esteacutetica revelando-se mais adequados aos novos sub-nuacutecleos

disciplinares e agraves questotildees levantadas pela arte contemporacircnea

Santo Agostinho natildeo utilizou nenhum destes conceitos nos termos em que

actualmente eles se exprimem mas natildeo haacute duacutevida que eacute possiacutevel encontrar nas suas

obras articulaccedilotildees de temas e de ideias que concorrem para o mesmo universo

conceptual implicado nestas formulaccedilotildees da disciplina e que poderatildeo de algum modo

apontar para direcccedilotildees ainda insatisfatoriamente exploradas pela esteacutetica contemporacircnea

acerca da sua proacutepria especificidade Natildeo significa isto que a esteacutetica deva ter no

pensamento agostiniano uma espeacutecie de manual de normas capaz de traccedilar o seu perfil

como conceito e aacuterea disciplinar Um uacutenico autor natildeo eacute representativo da abrangecircncia

304

de um campo de estudos Conveacutem ainda salientar que o modo como Santo Agostinho

nos leva a repensar a esteacutetica natildeo implica necessariamente que com ele partilhemos

pontos de vista acerca das temaacuteticas que constituem o seu pensamento esteacutetico todavia

essas temaacuteticas e a forma como se articulam convocam-nos um entendimento pessoal

sobre o que eacute a esteacutetica

Para Santo Agostinho a experiecircncia sensiacutevel tem um papel no processo de

purificaccedilatildeo da alma o que implica uma certa integridade entre os mecanismos sensuais

e a racionalidade que trabalha sobre os seus dados traduziacutevel para o idiolecto

agostiniano como uma continuidade entre o homem exterior e o homem interior A

experiecircncia sensiacutevel por si soacute natildeo eacute suficiente para desencadear uma experiecircncia

esteacutetica a menos que ela seja acompanhada pela consciecircncia do estado emocional que

desencadeia no sujeito e pelo seu juiacutezo Haacute certos autores que contestam a noccedilatildeo de

experiecircncia esteacutetica com base na ideia de que natildeo haacute uma diferenccedila significativa entre a

resposta esteacutetica e qualquer outro processo mental de reacccedilatildeo840

Mas haacute diferenccedila natildeo podemos olhar para uma foacutermula matemaacutetica e obter um

resultado correcto diferente daquele que obtemos sempre que a resolvemos Pelo

contraacuterio podemos olhar para um mesmo filme ou ler um mesmo poema841

muitas

vezes e a cada visualizaccedilatildeo ou leitura sentir uma nova descoberta Natildeo eacute que o poema

ou filme tenham mudado mas algo em noacutes muda seja pelo simples facto de nos

confrontarmos com esses objectos seja pelo acumular de novas experiecircncias relativas a

outros objectos que entretanto tivemos A mudanccedila que provocam em noacutes eacute reflectida

no objecto e seu ldquoprodutordquo eacute permanentemente actualizado O produto de uma resoluccedilatildeo

matemaacutetica nunca poderaacute variar em funccedilatildeo do nosso enriquecimento pessoal mas ateacute

ele pode ser um objecto esteacutetico ndash qualquer coisa pode constituir-se como um objecto da

experiecircncia esteacutetica ndash se ultrapassarmos a sua natureza matemaacutetica e nele projectarmos

as nossas idiossincrasias prestando atenccedilatildeo ao desencadear de emoccedilotildees que desperta

em noacutes a sua resoluccedilatildeo A possibilidade de encontrar formas alternativas para a sua

resoluccedilatildeo pode tambeacutem mesmo sem alterar o resultado final predispor agrave experiecircncia

esteacutetica e muitas vezes a escolha entre diferentes formulaccedilotildees de um mesmo problema

840

Este eacute por exemplo o caso de Ivor Armstrong Richards em ldquoThe phantom aesthetic staterdquo Principles

of literary criticism London Routledge and Kegan Paul 1967 p 6-11

841 Utilizamos estes exemplos pela neutralidade que em geral apresentam em relaccedilatildeo ao contexto mas o

que eacute dito eacute vaacutelido para qualquer outro objecto que se constitua como esteacutetico

305

cientiacutefico eacute feita com base em razotildees comummente consideradas esteacuteticas por exemplo

tendo em consideraccedilatildeo a simplicidade e a elegacircncia dos seus termos Neste caso o

objecto da experiecircncia esteacutetica natildeo eacute a foacutermula em si ou o seu resultado final mas o

processo de descoberta e de racionalizaccedilatildeo das suas variantes

Poderemos mesmo considerar como uma expressatildeo de um sentimento emocional

esteacutetico a famosa interjeiccedilatildeo que ficou para a histoacuteria como a transliteraccedilatildeo da palavra

usada por Arquimedes ao perceber que um corpo mergulhado num fluido em repouso

sofre por parte do fluido uma forccedila vertical para cima cuja intensidade eacute igual ao peso

do fluido deslocado pelo corpo Esse sentimento emocional poderaacute ser relembrado

quando nos deparamos novamente com o problema matemaacutetico (ou fiacutesico) tal como

podemos sempre relembrar a experiecircncia esteacutetica que tivemos com um filme ou com um

poema mas a mera lembranccedila natildeo desencadeia por si uma nova experiecircncia esteacutetica

pois natildeo reactiva o estado emocional na sua plenitude A lembranccedila eacute praticamente

destituiacuteda de qualia842

a menos que possa funcionar por transposiccedilatildeo como no caso da

madalena proustiana Mas este eacute um caso excepcional de epifania mnemoacutenica e sensoacuteria

relativo agrave memoacuteria involuntaacuteria que pressupotildee uma certa densidade de referentes reais

e portanto funciona como uma redescoberta ao permitir o acesso a lugares da memoacuteria

interditos pela rememoraccedilatildeo sistemaacutetica daiacute que Blanchot a tenha definido como a

experiecircncia do tempo puro843

A experiecircncia esteacutetica eacute sobretudo uma experiecircncia de descoberta ou encontro

que contrariamente agraves demais envolve um estado mental capaz de reflectir a abertura da

sua natureza no proacuteprio objecto que por isso deveacutem esteacutetico ndash actualizaacutevel quanto aos

significados que pode adquirir para o sujeito A descoberta em causa natildeo implica sequer

a soluccedilatildeo de algo mas pressupotildee sempre uma problematizaccedilatildeo um posicionamento

criacutetico avaliativo que pode nada ter que ver com as categorias de belo ou de feio mas

que em uacuteltima instacircncia coloca em causa aquilo que o sujeito tem como adquirido tem

como certo ou natildeo problemaacutetico para si promovendo por essa mera abertura do sujeito

uma mudanccedila qualitativa

842

Sobre a diferenccedila de intensidade dos qualia presentes nos diversos estados de consciecircncia e de relaccedilatildeo

com o real Cf V S Ramachandran and William Hirstein laquoThree Laws of Qualia What Neurology Tells

Us about the Biological Functions of Consciousness Qualia and the Selfraquo in Journal of Consciousness

Studies 4 No 5-6 1997 pp 429ndash58

843 Maurice Blanchot Le livre agrave venir Paris Gallimard 1999 p 24

306

Se na relaccedilatildeo matemaacutetica a descoberta de uma soluccedilatildeo ou de foacutermulas

alternativas para a soluccedilatildeo de um problema natildeo significar para o sujeito a abertura ao

seu proacuteprio questionamento entatildeo natildeo haacute experiecircncia esteacutetica Em geral natildeo significa e

eacute por isso mesmo que o posicionamento cientiacutefico se costuma constituir quase como um

oposto do posicionamento esteacutetico Um cientista por norma natildeo tem os seus progressos

como um impulso de revisatildeo do corpo teoacuterico que acaba de constituir ndash esse eacute dado por

certo e comprovaacutevel ndash ainda que possa atraveacutes dele colocar em causa anteriores

paradigmas O facto de assentar na formulaccedilatildeo de hipoacuteteses jaacute faz da ciecircncia mais uma

comprovaccedilatildeo do que uma problematizaccedilatildeo O encontro do cientista com a ldquoverdaderdquo

impotildee um trabalho metoacutedico de reificaccedilatildeo de pressupostos e princiacutepios que natildeo tanto

dizem respeito a uma descoberta mas a uma confirmaccedilatildeo A descoberta do cientista ou

do matemaacutetico eacute-o mais para os outros do que para si mesmo Se ela for suficientemente

importante para implicar uma mudanccedila de paradigma o cientista pensaraacute ldquoagora tudo

muda para os outrosrdquo A interjeiccedilatildeo ldquoheurecardquo parece no entanto prenunciar um estado

esteacutetico pelo caraacutecter inesperado e ateacute algo ingeacutenuo de um novo entendimento das

coisas eacute um ldquoagora tudo muda para mimrdquo No entanto como acabaacutemos de ver o

posicionamento que a desencadeia como expressatildeo da verdadeira descoberta raramente

eacute assumido pelos praticantes das ciecircncias exactas O entusiasmo presente em tais

momentos de descoberta raramente estaacute associado a uma mudanccedila ou a um alargamento

de perspectiva no sujeito

A esteacutetica agostiniana aponta precisamente para a possibilidade e desiderato de

uma mudanccedila qualitativa no sujeito fruidor844

que passa pelo seu auto-questionamento

e pela revisatildeo daquilo que sabe sobre o mundo e sobre si Tudo o que rodeia o homem

pode activar a experiecircncia esteacutetica Santo Agostinho fala na beleza das coisas para

aludir agrave presenccedila constante dessa possibilidade nada pode ser totalmente desprovido de

beleza pois tudo tem uma species que resulta da sua disposiccedilatildeo temporal pelos numeri

A beleza das montanhas dos ceacuteus e das aacuteguas pode ser interrogada qual constataccedilatildeo

das valecircncias de tal experiecircncia As propriedades formais dos objectos satildeo meras

disposiccedilotildees a que nem todos os sujeitos aderem pelo que natildeo deveratildeo ser consideradas

844

O sujeito da experiecircncia esteacutetica eacute sempre um fruidor e natildeo um mero espectador pois o seu modo de

ver implica a impossibilidade da indiferenccedila O fruidor deixa-se tocar pelo objecto da experiecircncia e abre-

se agrave mudanccedila nesse sentido mesmo que natildeo haja necessariamente um desencadear da sensaccedilatildeo de

prazer haacute todavia um ganho nem que seja tatildeo-somente pelo acreacutescimo de um novo sentido entrevisto

pelo sujeito no objecto da sua experiecircncia que eacute portanto sempre frutuosa

307

como propriedades esteacuteticas A existirem propriedades esteacuteticas nos objectos elas

dizem respeito ao numerus e natildeo se constituem portanto como propriedades

secundaacuterias mas como disposiccedilotildees relacionais A experiecircncia esteacutetica eacute uma espeacutecie de

descoberta da natildeo conformaccedilatildeo agrave imediaticidade ndash agrave qual Santo Agostinho

expressivamente se refere como regio dissimilitudinis845

ndash que poreacutem natildeo prescinde da

valorizaccedilatildeo como aparecircncia dessa dimensatildeo existencial Ainda que o neoplatonismo

agostiniano seja totalmente afecto a uma perspectiva que desvaloriza o mundo sensiacutevel

em prol da verdadeira realidade situada no mundo das ideias a dimensatildeo cristatilde da sua

reflexatildeo leva-o a considerar positivamente o valor de todas as coisas apreensiacuteveis pelos

sentidos846

A necessidade em estabelecer a fronteira entre a aparecircncia e a realidade para noacutes

proacuteprios e em perceber ateacute que ponto ela poderaacute divergir relativamente agrave que eacute

estabelecida pelos outros sujeitos eacute um dos problemas fulcrais da filosofia em relaccedilatildeo ao

qual a esteacutetica poderaacute dar um importante contributo Diferentemente de outras

abordagens filosoacuteficas a esteacutetica interessa-se por essa cisatildeo entre real e aparente

assumindo que a relevacircncia do aparente eacute equiparaacutevel agrave do real847

O aparente diz por

si muito de noacutes Mas as coisas tambeacutem existem para laacute daquilo que satildeo para noacutes pois

podem ser em si ou ser para os outros elas podem ser mais do que aparentam e essa

845

Cf Conf VII 10 16

846 Natildeo temos qualquer reticecircncia em considerar Santo Agostinho como um filoacutesofo neoplatoacutenico apesar

das inflexotildees com que o Cristianismo marca o seu pensamento em relaccedilatildeo agrave matriz plotiniana

Concordamos com Heidegger quando este afirma que Santo Agostinho eacute um filoacutesofo do ocaso da

Antiguidade mais do que um filoacutesofo inaugural da Idade Meacutedia Cf Heidegger ldquoAugustine and Neo-

Platonisme Summer Semester 1921rdquo The Phenomenology of Religious Life Matthias Fritscht Jennifer

Anna Gosetti-Ferencei (trad) Bloomington Indiana University Press 2004 p 116

847

Bertrand Russell quase parece ter constatado tal natureza da experiecircncia esteacutetica mais propriamente

em relaccedilatildeo agrave produccedilatildeo artiacutestica laquo[hellip] the painter has to unlearn the habit of thinking that things seem to

have the colour which common sense says they really have and to learn the habit of seeing things as

they appear Here we have already the beginning of one of the distinctions that cause most trouble in

philosophy - the distinction between appearance and reality between what things seem to be and what

they are The painter wants to know what things seem to be the practical man and the philosopher want to

know what they are but the philosophers wish to know this is stronger than the practical mans and is

more troubled by knowledge as to the difficulties of answering the questionraquo Cf Bertrand Russell

laquoAppearance and reallity and the existence of matterraquo in Joel Feinberg Russ Shafer-Landau (org)

Reason and responsibility readings in some basic problems of philosophy Belmont Cengage Learning

2008 p 158 Curiosamente a esteacutetica foi talvez a uacutenica aacuterea filosoacutefica sobre a qual Russell jamais

escreveu se o tivesse feito provavelmente concluiria que a perspectiva esteacutetica reuacutene esse modo de ver

artiacutestico especialmente empenhado com o aparente com o modo de ver filosoacutefico interessado no real

308

sua natureza eacute permanente portanto instaacutevel Natildeo haacute aqui qualquer paradoxo a

experiecircncia esteacutetica contrariamente a outros tipos de questionamento filosoacutefico ou

cientiacutefico pressupotildee que natildeo haacute modos de ser nem modos de ver que alcancem um

caraacutecter definitivo ou definido848

A sua objectividade consiste precisamente nessa

abertura do sujeito agrave possibilidade pura permanentemente em aberto Como disciplina

a esteacutetica tem de lidar com a explicaccedilatildeo sempre insatisfatoacuteria dessa excessiva

liberdade

848

O proacuteprio conceito de experiecircncia aponta por si soacute para esta perspectiva jaacute que supotildee uma posiccedilatildeo em

que as coisas natildeo satildeo tidas como garantidas Experienciar algo eacute estar atento agraves suas possibilidades A

proacutepria acepccedilatildeo cientiacutefica de experiecircncia implica tal abertura passiacutevel de testar uma hipoacutetese

309

321 - O potencial cognoscitivo da experiecircncia esteacutetica

A experiecircncia esteacutetica eacute um modo de entendimento natildeo tradicional das coisas

porque natildeo se compraz na sua reduccedilatildeo aos conceitos ainda que os empregue Ela eacute

sempre um pensamento situado singular num aqui e num agora em que a dimensatildeo

afectiva se enleia indestrinccedilavelmente agrave cognitiva A necessidade de transpor o ponto de

vista limitado que os nossos sentidos permitem eacute um dos pontos de partida da esteacutetica

Desde logo deixa de ser justificaacutevel a tradicional oposiccedilatildeo entre sensibilidade e razatildeo

tal como Baumgarten defendeu ou como Santo Agostinho entreviu na continuidade

entre homem interior e homem exterior

Para o filoacutesofo africano a proacutepria sensaccedilatildeo implica a consciecircncia da mente

quanto aos estados corporais pela acccedilatildeo do sentido interno Este sentido estaacute entre a

percepccedilatildeo sensoacuteria e o conhecimento Ele natildeo eacute ainda um processo racional para Santo

Agostinho mas parece jaacute permitir uma certa consciecircncia acerca do proacuteprio sujeito ao

niacutevel das suas sensaccedilotildees e dos mecanismos fiacutesicos a partir dos quais elas se datildeo Eacute na

articulaccedilatildeo entre sentido interno e memoacuteria que surge o primeiro indiacutecio da

possibilidade de aquisiccedilatildeo ainda muito baacutesica de conhecimento pelo menos no sentido

restrito de aquisiccedilatildeo de capacidades de resposta adaptaacuteveis agraves situaccedilotildees Eacute tambeacutem nesta

articulaccedilatildeo que assenta possibilidade da experiecircncia esteacutetica849

pela estabilizaccedilatildeo e

integridade das imagens resultantes da percepccedilatildeo

Nem sempre a experiecircncia esteacutetica envolve um sentimento positivo de prazer

Quando o Bispo de Hipona vecirc a beleza natural como um indiacutecio da divindade que lhe

deu origem haacute um paralelo possiacutevel de se estabelecer com aquilo que mais tarde seria

descrito como a experiecircncia do sublime na qual o prazer assume contornos negativos

A inquietaccedilatildeo associada agraves descriccedilotildees agostinianas acerca da remissatildeo predisposta pela

beleza sensiacutevel para a esfera superior diz respeito agrave acircnsia de conhecimento assim

849

Vide subcapiacutetulo I14

310

despertada A esteacutetica como que instaura um corredor para o conhecimento acerca da

natureza profunda das coisas impossiacutevel de aceder de modo iacutentegro por outras formas

de experiecircncia O modo iacutentegro diz respeito agrave possibilidade de natildeo abandonar a nossa

proacutepria identidade nesse processo isto eacute diz respeito agrave possibilidade de manter as

especificidades daquilo que faz de cada pessoa o que ela singularmente eacute Todos os

traccedilos da sua personalidade as suas preferecircncias as suas memoacuterias e os seus anseios

tecircm lugar no modo de consideraccedilatildeo esteacutetico Monroe Beardsley apontou para essa

caracteriacutestica da experiecircncia esteacutetica ao defender que ao sujeito de tal experiecircncia ocorre

ldquoum sentido de integraccedilatildeo como pessoa de ser restituiacutedo a uma totalidade [hellip] e a um

correspondente contentamento ainda que atraveacutes de um sentimento perturbador que

envolve auto-aceitaccedilatildeo e auto-expansatildeordquo850

As demais formas de pensar o que nos rodeia parecem querer des-subjectivar

artificialmente o mundo e o modo de o pensar com vista agrave universalidade ou ao mais

amplo consenso possiacutevel A perspectivaccedilatildeo contemporacircnea do desinteresse esteacutetico

poderaacute por exemplo ser considerada a este niacutevel no qual a ausecircncia de conceito se

assume como indiferenccedila quanto a uma objectividade universal sem no entanto ver

sacrificada a possibilidade de partilha que o sensus communis kantiano salvaguardava

O que se partilha natildeo eacute propriamente a experiecircncia nem as sensaccedilotildees que ela fautoriza

mas sim a estrutura subjectiva aiacute implicada jaacute que se parte do pressuposto que os

processos mentais e os modos de reacccedilatildeo satildeo similares para todos os sujeitos face a uma

mesma experiecircncia Assim sendo a preocupaccedilatildeo com a universalidade da experiecircncia eacute

irrelevante porque ela estaacute subjectivamente garantida pela estrutura mental humana A

experiecircncia esteacutetica natildeo deixa de ser uma experiecircncia conceptual contrariamente agrave

posiccedilatildeo kantiana mas seraacute inuacutetil tentar a sua partilha com base nos conceitos nela

implicados uma vez que a discursividade necessaacuteria anularia o caraacutecter subjectivo que

cimenta a articulaccedilatildeo desses conceitos O modo iacutentegro como a experiecircncia esteacutetica

mobiliza a reacccedilatildeo do sujeito natildeo eacute totalmente partilhaacutevel

A esteacutetica eacute uma dimensatildeo filosoacutefica na plena acepccedilatildeo do seu termo quer como

ramo disciplinar quer como modo de relacionamento criacutetico com o que nos rodeia e

connosco mesmo A filosofia natildeo eacute propriedade inalienaacutevel dos filoacutesofos e embora no

seu dia-a-dia as pessoas comuns natildeo se dediquem a analisar a histoacuteria de um conceito

850

Monroe Beardsley et al (org) The aesthetic point of view selected essays Ithaca Cornell University

Press 1982 p 289

311

nem se decircem ao trabalho de redigir um ensaio sobre um determinado toacutepico que as

intriga a verdade eacute que a maioria das pessoas filosofa para si mesmo Talvez a grande

diferenccedila entre um filoacutesofo e um natildeo-filoacutesofo eacute que o primeiro partilha os conteuacutedos do

seu pensamento criacutetico tendo desenvolvido estrateacutegias argumentativas eficazes para o

efeito Natildeo haacute no entanto qualquer duacutevida de que ao longo da vida todas as pessoas se

cruzaram por diversas vezes com a sua proacutepria dimensatildeo filosoacutefica quer tenha sido em

virtude de um luto de uma crise identitaacuteria ou de um dilema moral O modo esteacutetico de

ver o mundo eacute tambeacutem um modo filosoacutefico de o fazer

A experiecircncia esteacutetica natildeo eacute a mera experiecircncia sensoacuteria ou perceptiva pois a

essa dimensatildeo acresce um reforccedilo da atenccedilatildeo e da reflexatildeo ela consiste num

intensificar da nossa consciecircncia como sujeitos pensantes no mundo mas sem a

fragmentaccedilatildeo que o tradicional pensamento conceptual instaura ao diluir diferenccedilas e

excepccedilotildees em prol de representaccedilotildees gerais A proacutepria dicotomia sujeito-objecto parece

ver as suas arestas lenidas pelo modo de reflexatildeo esteacutetico O seu caraacutecter contemplativo

confere-lhe portanto duas caracteriacutesticas distintivas

a) por um lado favorece a integridade da percepccedilatildeo na qual o detalhe pode

assumir uma relevacircncia que de outra forma passaria despercebida Pelo

modo de reflexatildeo esteacutetico o processo de exclusatildeo de escolha e de

hierarquizaccedilatildeo impliacutecito na conceptualizaccedilatildeo obedece apenas a criteacuterios

subjectivos e essa liberdade parece proporcionar uma menor transgressatildeo

quanto agrave natureza das coisas elas satildeo pensadas de um modo mais iacutentegro

quer na sua singularidade quer na relaccedilatildeo com tudo o mais o que lhes

outorga uma objectividade distinta O reconhecimento das diferenccedilas e das

nuances qualitativas como que determina uma menor intervenccedilatildeo do sujeito

sobre a natureza conceptualizaacutevel do objecto

b) por outro lado ao favorecer a compenetraccedilatildeo esse caraacutecter

contemplativo da esteacutetica promove uma continuidade entre o sujeito e o

objecto que natildeo assenta na internalizaccedilatildeo do objecto por parte do sujeito

indiferenciando-os mas numa correspondecircncia entre os estados mentais

emocionais do sujeito e a compreensatildeo do objecto Significa isto que a

dimensatildeo emocional se constitui como componente do conhecimento

possiacutevel acerca do objecto pelo modo de relaccedilatildeo esteacutetico o conhecimento

312

deixa de assentar apenas numa representaccedilatildeo daquilo que eacute exterior ao

sujeito para integrar nessa representaccedilatildeo a consciecircncia dos proacuteprios estados

emocionais Nesta senda o sujeito tem necessariamente de se constituir

tambeacutem como objecto para si mesmo e a representaccedilatildeo mental que faz de si

enleia-se agrave representaccedilatildeo que faz do objecto

A esteacutetica pode constituir-se como uma mundivisatildeo precisamente pelo caraacutecter

indefinido e pela transversalidade do seu objecto Ela cruza-se com os demais ramos

filosoacuteficos e todavia distingue-se deles por essa mesma extensatildeo transversal pela

abertura que propicia pela objectivaccedilatildeo do sujeito impliacutecita na integraccedilatildeo cognoscitiva

da sua dimensatildeo emocional e pela des-objectivaccedilatildeo851

do objecto na atenccedilatildeo agraves

particularidades por norma negligenciadas durante os processos de abstracccedilatildeo e

generalizaccedilatildeo conceptual O seu modo de interrogar e representar o mundo natildeo parece

quebrar com o posicionamento regular e quotidiano com o qual ordinariamente nos

relacionamos com as coisas o posicionamento esteacutetico natildeo passa na verdade de uma

intensificaccedilatildeo da nossa actividade reflexiva vulgar mas eacute precisamente essa

intensificaccedilatildeo que a faz pertencer ao universo da filosofia

A esteacutetica ou mais propriamente a forma de relaccedilatildeo esteacutetica que podemos

encetar com o que nos rodeia sempre foi algo conotada agrave necedade pela caracteriacutestica

subjectiva da sua validade universal O desinteresse natildeo era uma categoria alheia a esse

caraacutecter supostamente inepto ou esteacuteril do modo de relaccedilatildeo esteacutetico Eacute como se a

fronteira entre o real e o aparente natildeo pudesse ser satisfatoriamente estabelecida a partir

do ponto de vista esteacutetico No entanto as bases de tal desprestiacutegio podem ser tambeacutem

reconhecidas nos juiacutezos morais e mesmo nos juiacutezos cognitivos jaacute que nenhum deles eacute

imune ao erro agrave parcialidade ou totalmente independente de factores subjectivos No

caso da perspectiva esteacutetica a falibilidade natildeo se coloca tradicionalmente em termos de

erro uma vez que a assunccedilatildeo do caraacutecter flutuante do real implica que este natildeo possa

ser considerado em termos apofacircnticos Todavia a seu modo a esteacutetica tem uma

pretensatildeo legiacutetima agrave objectividade porque assume sem constrangimentos que a cisatildeo

entre real e aparecircncia se daacute unicamente no sujeito e a indeterminaccedilatildeo que lhe estaacute

associada equivale agrave proacutepria indeterminaccedilatildeo do sujeito enquanto ser que

permanentemente se vai construindo e desconstruindo A sua objectividade natildeo tem

851

Natildeo se trata propriamente de uma subjectivizaccedilatildeo do objecto

313

propriamente que ver com a fixaccedilatildeo dessa fronteira nem com o discurso analiacutetico

associado agrave procura de um consenso seu partidaacuterio mas com a imediaticidade e

particularidade impliacutecitas no modo de presentificaccedilatildeo da experiecircncia A fronteira entre o

real e o aparente eacute estabelecida mas sem possibilidade de se fixar ela eacute sempre

provisoacuteria

Pelo encontro esteacutetico as coisas surgem como apariccedilotildees envoltas numa aura de

novidade que convoca o sujeito para a construccedilatildeo de sentido na qual ele proacuteprio se situa

a par do objecto numa visatildeo sem distacircncia Soacute nesse instante haacute objectividade A

diferenccedila entre esta objectividade e a que eacute alcanccedilada por outros modos de relaccedilatildeo com

o mundo eacute qualitativa e quantitativa Qualitativamente esta eacute holiacutestica situando o

sujeito na proacutepria fronteira entre o real e o aparente sem o obrigar a tomar partido as

demais satildeo sempre parciais situando o sujeito do lado do aparente num esforccedilo de

alcance do real Quantitativamente esta eacute sempre efeacutemera e momentacircnea

impossibilitando a fixaccedilatildeo da fronteira e a partilha total das suas dimensotildees ao passo

que as demais tecircm uma duraccedilatildeo alargada mas ainda assim natildeo perene (ou de

perenidade apenas situada num contexto especiacutefico e portanto relativa)852

O facto de a cada experiecircncia esteacutetica a fronteira entre o real e o aparente ter

coordenadas diferentes natildeo significa que haja uma total autonomia e um caraacutecter

arbitraacuterio entre cada experiecircncia Na verdade pode considerar-se que haacute uma espeacutecie de

progressatildeo em termos de abertura agraves possibilidades da experiecircncia que resulta de um

enriquecimento pessoal a cada encontro esteacutetico Mesmo sendo totalmente diferente das

anteriores cada nova experiecircncia estaacute nelas filiada ao trazer consigo a abertura que o

conjunto de todas as outras faculta ao sujeito Tal processo eacute bastante claro no acircmbito da

histoacuteria da arte mesmo negando a ideia de progresso quanto ao aspecto qualitativo das

obras consideradas em termos histoacutericos natildeo haacute como negar uma evoluccedilatildeo em termos

de abertura ao niacutevel da recepccedilatildeo dessas obras A aceitaccedilatildeo da pintura futurista por

exemplo eacute bastante devedora da abertura propiciada pelo cubismo que por seu turno

tambeacutem beneficiou das bases lanccediladas pelo fauvismo jaacute por si em diacutevida para com

certos pintores poacutes-impressionistas como Gauguin Os modos de ver e de apreciar satildeo

evolutivos natildeo apenas historicamente como em termos individuais

852

A objectividade cientiacutefica por exemplo soacute faz sentido dentro de uma episteme particular que quando

eacute posta em causa jaacute soacute historicamente encontra pertinecircncia

314

322 - Emoccedilotildees esteacuteticas

A componente emocional envolvida na experiecircncia esteacutetica natildeo tem

necessariamente que ver com a sensaccedilatildeo de prazer e menos ainda com uma questatildeo de

gosto Ela comeccedila por ser um modo de conhecimento primaacuterio que de imediato nos diz

o essencial sobre o nosso encontro com o objecto sem que precisemos de o enquadrar

conceptualmente853

Natildeo significa isto que na experiecircncia esteacutetica natildeo haja recurso aos

conceitos na construccedilatildeo de sentido que a experiecircncia pressupotildee estes enquadram natildeo

soacute o objecto como a proacutepria componente emocional que se presta tambeacutem ela a ser

pensada Poreacutem mesmo antes de um exerciacutecio intelectual acerca das razotildees de tal

estado emocional ou de uma reflexatildeo apreciativa do objecto somos capacitados com

determinadas coordenadas de reacccedilatildeo que resultam do funcionamento conjunto entre

mecanismos bioloacutegicos disposiccedilotildees culturais e traccedilos pessoais como a personalidade e

experiecircncias passadas854

Esse estado emocional condensa uma espeacutecie de inteligecircncia

instantacircnea que alicerccedilaraacute a reflexatildeo acerca do nosso encontro com o objecto

Todas as nossas emoccedilotildees satildeo reacccedilotildees daiacute que etimologicamente a palavra

tenha que ver com movimento Interessa no entanto saber se a reacccedilatildeo esteacutetica implica

853

A emoccedilatildeo envolve uma espeacutecie de conhecimento natildeo conceptual em que o sujeito desenvolve um

pensamento instantacircneo acerca daquilo que lhe estaacute a acontecer sem no entanto ter consciecircncia desse

pensamento Tal consciecircncia soacute surge ao niacutevel do sentimento emocional

854 Os artistas conseguem pelas suas obras condicionar parcialmente a reacccedilatildeo esteacutetica dos fruidores

jogando com os mecanismos bioloacutegicos e com as disposiccedilotildees culturais A recepccedilatildeo da obra de arte nunca

eacute um processo totalmente controlado pelo artista dada a oacutebvia impossibilidade de atender agraves variantes

implicadas na personalidade de cada pessoa poreacutem os temas do pensamento durante a recepccedilatildeo parecem

poder ser parcialmente condicionados por essa induccedilatildeo parcial de estados emocionais que ateacute certo ponto

os artistas controlam Com efeito aleacutem de poderem jogar com as emoccedilotildees os artistas conseguem apelar

directamente a determinados sentimentos atraveacutes de imagens metafoacutericas que melhor os traduzem do que

os proacuteprios nomes que usamos para nos referimos a esses sentimentos

315

um tipo diferente de emoccedilotildees agraves quais tambeacutem possamos chamar esteacuteticas A resposta

parece ser negativa quando algo nos toca temos um leque relativamente pouco variado

emoccedilotildees que podem ser convocadas Eacute difiacutecil que uma emoccedilatildeo surja isoladamente mas

ateacute mesmo entre os conjuntos de emoccedilotildees que compotildeem diferentes estados emocionais

natildeo parece haver um que particularmente se distinga pela sua relaccedilatildeo com a experiecircncia

esteacutetica Podemos sentir nas mesmas proporccedilotildees um misto de respeito atracccedilatildeo

curiosidade e medo face a uma paisagem sublime ou face uma pessoa sem que

consideremos ter uma experiecircncia esteacutetica quando lidamos com ela As mesmas

reacccedilotildees psicossomaacuteticas satildeo activadas ndash aumento do ritmo cardiacuteaco modificaccedilotildees

viscerais atraveacutes de oscilaccedilotildees dos niacuteveis endoacutecrinos reforccedilo da atenccedilatildeo alteraccedilatildeo na

cor da face alteraccedilatildeo na tensatildeo muscular etc ndash e no entanto na primeira situaccedilatildeo haacute

algo que natildeo estaacute presente no nosso encontro com a pessoa que assim admiramos Se o

mesmo agregado de emoccedilotildees pode ser convocado por uma experiecircncia esteacutetica e por

uma experiecircncia natildeo esteacutetica como sabemos que estamos face a uma experiecircncia

esteacutetica

Para Santo Agostinho as emoccedilotildees correspondem sobretudo agraves perturbaccedilotildees da

alma podendo ser positiva ou negativamente consideradas de acordo com a orientaccedilatildeo

que a vontade lhes atribuir A controlabilidade das emoccedilotildees parece no entanto falhar em

contextos onde privilegiadamente ocorrem as experiecircncias esteacuteticas O teatro eacute o

exemplo mais oacutebvio da perspectiva agostiniana855

mas tambeacutem em relaccedilatildeo agrave muacutesica tal

desnorte das emoccedilotildees parece ocorrer daiacute que Santo Agostinho critique o modo como

uma boa interpretaccedilatildeo musical pode desencadear emoccedilotildees desadequadas ao contexto856

As suas consideraccedilotildees concorrem tambeacutem para a ideia de que natildeo haacute emoccedilotildees

especificamente esteacuteticas pois se assim fosse o problema da desadequaccedilatildeo natildeo

ocorreria Independentemente do contexto a emoccedilatildeo esteacutetica seria sempre aceitaacutevel

dada a sua especificidade Mesmo suscitando prazer numa situaccedilatildeo de pesar ela estaria

restringida a um modo de relaccedilatildeo completamente autoacutenomo ndash um modo que Santo

Agostinho soacute teraacute subscrito na sua primeira obra De pulchro et apto

O conceito de emoccedilatildeo esteacutetica harmoniza-se com a ideia da existecircncia de

propriedades esteacuteticas capazes de determinar a esteticidade de um dado objecto Para

855

Vide p 257 et seq da presente tese

856 Vide p 194

316

aqueles que procuram uma definiccedilatildeo estaacutevel da arte as emoccedilotildees esteacuteticas e as

propriedades esteacuteticas seriam foacutermulas coadjuvantes eficazes As contradiccedilotildees que

levantam e a insuficiecircncia que evidenciam face a casos concretos do modernismo e da

arte contemporacircnea demonstram no entanto a inoperacircncia de tais conceitos Natildeo haacute

ainda uma resposta consensual e satisfatoacuteria para a questatildeo da arte857

nem tatildeo pouco se

conseguiram isolar os traccedilos distintivos das emoccedilotildees e das propriedades esteacuteticas Se

existissem as emoccedilotildees esteacuteticas funcionariam como um modo de autonomizar a

experiecircncia esteacutetica relativamente a outras dimensotildees da relaccedilatildeo com o mundo Tal

hipoacutetese revelou-se bastante atractiva para alguns teoacutericos do seacuteculo passado que nela

viram um bom modo de destacar e de salientar a importacircncia do domiacutenio esteacutetico858

Eacute o modo como as emoccedilotildees satildeo pensadas e sentidas no acircmbito de uma

experiecircncia esteacutetica que se revela peculiar Damaacutesio refere que as acccedilotildees fisioloacutegicas

desencadeadas por uma emoccedilatildeo satildeo complementadas por um programa cognitivo que

inclui certas ideias e modos de cogniccedilatildeo859

que por sua vez funcionam como um novo

estiacutemulo responsaacutevel por uma espeacutecie de desdobramento das emoccedilotildees860

que vai

definindo a complexidade do estado emocional ateacute culminar no sentimento da emoccedilatildeo

Damaacutesio explica o ciclo emoccedilatildeo-sentimento em termos neuroloacutegicos como um processo

mensuraacutevel em milissegundos com iniacutecio no ceacuterebro despoletado pela percepccedilatildeo de

857

Face agrave frustraccedilatildeo e confusatildeo em que resultam as tentativas de definiccedilatildeo da arte Nelson Goodman

propocircs num ensaio do final da deacutecada de 70 que a questatildeo Quando eacute arte substituiacutesse a formulaccedilatildeo O

que eacute a arte Cf N Goodman laquoWhen is artraquo in David Perkins Barbara Leondar (eds) The arts and

cognition Baltimore Johns Hopkins University Press 1977 pp 11 - 19

858 O exemplo mais famoso eacute o de Clive Bell que propotildee o conceito de ldquoemoccedilatildeo esteacuteticardquo a par do de

ldquoforma significanterdquo no seu livro de 1914 ndash Art Stolnitz foi o principal criacutetico desta formulaccedilatildeo tendo

apresentado como mais adequado o conceito de ldquoatitude esteacuteticardquo poreacutem nos moldes em que Stolnitz o

apresenta tambeacutem este se revelou um conceito problemaacutetico por implicar a mesma dissociaccedilatildeo artificial

entre os valores esteacuteticos relativamente aos cognitivos e aos morais O primeiro teoacuterico a apontar tais

caracteriacutesticas que tornam implausiacutevel a ideia de ldquoatitude esteacuteticardquo foi George Dickie em 1964 Natildeo

consideramos que a atitude esteacutetica esteja relacionada com um posicionamento desinteressado tal como

Stolnitz defende nem vemos nas criacuteticas efectuadas por Dickie uma refutaccedilatildeo passiacutevel de invalidar a

pertinecircncia do conceito ldquoatitude esteacuteticardquo Cf Clive Bell Art New York Oxford University Press 1987

passim J Stolnitz Aesthetics and Philosophy of Art Criticism A Critical Introduction Boston MA

Houghton Mifflin Co 1960 G Dickie ldquoThe Myth of the Aesthetic Attituderdquo American Philosophical

Quarterly 1 1964 56-65

859 Antoacutenio Damaacutesio O livro da consciecircncia A construccedilatildeo do ceacuterebro consciente Lisboa Ciacuterculo de

Leitores 2010 p 143

860 Damaacutesio fala a este propoacutesito em ldquoreacccedilatildeo emocional em cadeiardquo op cit p 144

317

um estiacutemulo potencialmente capaz de causar uma emoccedilatildeo que se espraia pelo corpo

efectivamente originando a emoccedilatildeo e terminando com o retorno do processo ao ceacuterebro

onde o estado emocional daacute origem ao sentimento jaacute com a intervenccedilatildeo de regiotildees

cerebrais diferentes daquelas com que o ciclo se iniciou861

Em suma as emoccedilotildees

suscitam sentimentos quando reflectimos sobre elas Para a anaacutelise filosoacutefica aqui em

questatildeo interessa perceber se o conceito de ldquoemoccedilatildeo esteacuteticardquo natildeo tem sido confundido

com o de ldquosentimento esteacuteticordquo Seraacute este uacuteltimo uma formulaccedilatildeo vaacutelida e eficaz para o

universo da esteacutetica

Um sentimento eacute um estado mental em que o pensamento se une agrave emoccedilatildeo

assumindo um caraacutecter avaliativo ora porque pressupotildee uma afericcedilatildeo de valor ora

porque o confere a um dado objecto ou experiecircncia862

O sentimento distingue-se da

emoccedilatildeo por ter uma natureza mais estaacutevel duradoura menos vocacionada para a acccedilatildeo

e mais permeaacutevel ao controlo dos estados corporais ele eacute como que uma domesticaccedilatildeo

da emoccedilatildeo Os sentimentos satildeo portanto percepccedilotildees compoacutesitas que nos facultam

representaccedilotildees da nossa relaccedilatildeo com o mundo e que podemos ateacute certo ponto controlar

Com maior ou menor intensidade eles estatildeo sempre presentes na nossa mente

independentemente do tipo de experiecircncia em que nos encontremos ou da atenccedilatildeo que

lhe estejamos a dar863

Na maioria das vezes o sentimento emocional constitui-se como

uma espeacutecie de plano de fundo que cenariza os produtos do nosso pensamento

discursivo e que se vai gradualmente alterando de acordo com o desenrolar dessa acccedilatildeo

podendo em determinadas ocasiotildees influir explicitamente no seu curso Durante uma

qualquer experiecircncia esteacutetica parece ocorrer contrariamente a outros modos de reflexatildeo

uma reverberaccedilatildeo dos sentimentos que entatildeo preenchem a nossa mente Tal como no

caso das emoccedilotildees natildeo haacute um sentimento esteacutetico propriamente dito mas haacute uma

espeacutecie de fenoacutemeno reflexivo ao niacutevel mental que traz para primeiro plano o

sentimento emocional

861

Ibid

862 Nem todo o valor eacute emocional jaacute que muitas vezes avaliamos objectos ou situaccedilotildees

independentemente dos sentimentos que despertam em noacutes

863 Naturalmente haacute certas patologias que constituem uma excepccedilatildeo a esta regra bem como haacute certas

drogas que condicionam a nossa resposta emocional e por conseguinte a formaccedilatildeo de sentimentos

Mesmo em estados alterados de consciecircncia como o que caracteriza a nossa mente durante o sono somos

capazes de experienciar emoccedilotildees e sentimentos jaacute no caso de um coma induzido tal parece natildeo ocorrer

318

Nesse transir o sentimento passa pelo crivo do pensamento discursivo sem

todavia se deixar conceptualizar inteiramente e sem perder aquilo que de si natildeo eacute

conceptualizado O sentimento encerra em si uma espeacutecie de conhecimento imageacutetico

que funciona como uma descriccedilatildeo alusiva do nosso modo de ver o objecto que o suscita

ou sobre o qual incide864

O raciociacutenio vulgar tende a descartar essa dimensatildeo do

sentimento com a consequecircncia de que a representaccedilatildeo em primeiro plano deixa de ser

um reflexo do sentimento emocional em plano de fundo para se constituir meramente

como uma representaccedilatildeo conceptual865

No modo de pensamento que ocorre durante

uma experiecircncia esteacutetica o sentimento emocional que se espelha no primeiro plano eacute jaacute

uma representaccedilatildeo distinta daquela que se encontra em plano de fundo porque eacute

acrescido das valecircncias que o pensamento discursivo lhe outorga mas manteacutem todas as

caracteriacutesticas da sua matriz

A experiecircncia esteacutetica vive desta translocaccedilatildeo do sentimento que o transforma

em algo mais O sentimento jaacute era de ordem racional antes de tal movimento ainda que

a sua racionalidade fosse distinta da que concerne o pensamento conceptual866

Jaacute estava

nele pressuposto um modo de conhecimento relacional que permite ao sujeito

compreender o mundo e a sua posiccedilatildeo nele ou mais especificamente que permite ao

sujeito ter uma noccedilatildeo do que representa para si o objecto fautor do sentimento e que lhe

permite reagir de acordo com esse sentido implicado no encontro entre ambos O

sentimento eacute uma construccedilatildeo de sentido que pode por exemplo articular-se com o

864

Esse conteuacutedo do sentimento faz tambeacutem parte da nossa racionalidade pois jaacute implica uma construccedilatildeo

com base em imagens da memoacuteria e da imaginaccedilatildeo e sobretudo porque eacute uma forma de pensamento

intuitivo assente natildeo em conceitos ou essecircncias mas em representaccedilotildees (que num qualquer outro acircmbito

racional seriam consideradas secundaacuterias ou superficiais) capazes no seu conjunto de emular

alusivamente o objecto ou situaccedilatildeo a que se refere Um sentimento eacute sempre despertado por e dirigido a

algo independentemente da sua presenccedila ou existecircncia factual A emulaccedilatildeo do objecto ou situaccedilatildeo que

integra o sentimento eacute como uma recriaccedilatildeo que aglomera de um modo descritivo alusivo as

caracteriacutesticas que se revelam como mais significativas para noacutes do objecto ou situaccedilatildeo Esse modo

descritivo alusivo implica jaacute as tais dimensotildees da nossa personalidade como a memoacuteria e a imaginaccedilatildeo

pelo que diz tanto do objecto quanto de noacutes Natildeo eacute uma formulaccedilatildeo que represente a essecircncia do objecto

mas a forma como aparece para noacutes A sua aparecircncia natildeo tem que ver com o aspecto meramente

epideacutermico pelo contraacuterio ao enlear-se agrave nossa subjectividade a aparecircncia constitui-se como um

invoacutelucro mais substancial porque mais rico e complexo do que a essecircncia A utilizaccedilatildeo de imagens

metafoacutericas por parte dos artistas funciona do mesmo modo que tais representaccedilotildees alusivas no

sentimento

865 O sentimento manteacutem-se mas apenas como plano de fundo

866 Natildeo estamos longe da perspectiva baumgartiana expressa pelo conceito de analogon rationis

319

raciociacutenio loacutegico influindo numa decisatildeo867

ele natildeo eacute o poacutelo oposto da racionalidade

Pelo modo de relaccedilatildeo esteacutetico haacute uma influecircncia ou complementaridade entre ambos os

modos de pensamento como aliaacutes pode ocorrer noutro qualquer modo de relaccedilatildeo

poreacutem durante a experiecircncia esteacutetica o pensamento conceptual dedica uma atenccedilatildeo

distinta ao sentimento empurrando-o para primeiro plano sem lhe coarctar nenhuma das

suas valecircncias e enriquecendo-o com uma nova imagem acerca de si mesmo868

Nesse

primeiro plano o sentimento continuaraacute a funcionar como uma estrutura pensante

sinteacutetica e continuaraacute a articular-se com o raciociacutenio loacutegico e com os seus conceitos

mas a sua primazia permite ao sujeito assumir uma atitude contemplativa particular que

conferiraacute agrave experiecircncia esteacutetica as duas caracteriacutesticas distintivas que anteriormente

apresentaacutemos

867

Os estudos neuroloacutegicos parecem confirmar que o sentimento emocional tem um papel bastante

relevante no processo de decisatildeo jaacute que permitem estabilizar o curso do raciociacutenio argumentativo

Deficiecircncias na capacidade em desenvolver respostas de cariz emocional condenam o sujeito a um

permanente estado de indecisatildeo face a situaccedilotildees baacutesicas relativamente agraves quais desenvolvem raciociacutenios

loacutegicos complexos prolixos enredando-se numa infindaacutevel teia de causalidades O caso de ldquoElliotrdquo

descrito por Damaacutesio em O erro de Descartes eacute disto ilustrativo jaacute que o paciente revelava nos testes de

inteligecircncia possuir um QI acima da meacutedia natildeo sendo poreacutem capaz de resolver correctamente questotildees

quotidianas concretas O seu deacutefice de sentimentos emocionais deveu-se uma cirurgia a um tumor no

coacutertex preacute-frontal na qual tiveram de lhe retirar tecido cerebral com enorme prejuiacutezo para todos os

campos da sua vida Cf Antoacutenio Damaacutesio ldquo O Phineas Gage modernordquo O erro de Descartes 23ordf ed

Lisboa Publicaccedilotildees Europa-Ameacuterica 2003 pp 54-70

868 Eacute graccedilas a este processo que os artistas satildeo capazes de materializar as suas ideias Natildeo deixa de haver

um processo conceptual subjacente mas tambeacutem natildeo eacute quebrado o modo iacutentegro como as coisas nos

aparecem e o proacuteprio aparecer das coisas eacute traduzido plasticamente com elas tal como com o nosso

modo de visatildeo Talvez seja a isto que corresponde o modo de ver as coisas sub specie aeternitatis referido

por Wittgenstein a partir de um conceito de Espinosa em Notebooks 1914-1916 71016 laquoEach thing

modifies the whole logical world the whole of logical space so to speak (The thought forces itself upon

one) The thing seen sub specie aeternitatis is the thing seen together with the whole of logical spaceraquo

Ludwig Wittgenstein Notebooks 1914-1916 G E M Anscombe (trad) New York Harper 1961 p 83

320

323 - A questatildeo do valor e a afinidade entre os domiacutenios esteacutetico e eacutetico

Na filosofia agostiniana o conceito de ordem assume especial relevacircncia para a

articulaccedilatildeo entre a unidade e a multiplicidade e consequentemente para o modo como a

razatildeo deve estabelecer a importacircncia dos dados da sensibilidade e o grau de atenccedilatildeo que

seraacute correcto dedicar-lhes Atribuir valor a algo eacute determinar-lhe uma posiccedilatildeo ordenada

numa escala que pelo simples facto de implicar uma gradaccedilatildeo de importacircncias

pressupotildee uma ideia de perfeiccedilatildeo de acordo com a qual deveratildeo ser norteadas todas as

acccedilotildees Essa ideia de perfeiccedilatildeo corresponde para Santo Agostinho a Deus que eacute a

medida de todas as coisas poreacutem natildeo eacute directamente a Ele que poderaacute fazer-se

corresponder a noccedilatildeo de valor As Ideias ou Formas existentes na Sua mente adequam-se

melhor a tal correspondecircncia jaacute que o valor eacute assumido como uma espeacutecie de regra

paradigmaacutetica que dita o modo como as coisas deveriam ser Santo Agostinho

subscreveria naturalmente uma perspectiva em que os valores morais e esteacuteticos tecircm

uma natureza absoluta impessoal natildeo dada a relativismos e passiacutevel de determinar

razotildees para a acccedilatildeo No que toca aos valores esteacuteticos as razotildees para a acccedilatildeo dizem

respeito a uma dimensatildeo motivacional relevante que natildeo eacute autoacutenoma da esfera moral

prescritiva do uso (uti)

Apesar da perspectiva agostiniana defender que tudo o que existe no mundo

temporal possui beleza e bondade ela tambeacutem pressupotildee uma concepccedilatildeo metafiacutesica dos

valores Assim a beleza e a bondade que caracterizam a criaccedilatildeo natildeo podem senatildeo ser

expressotildees derivadas de valor mas natildeo os proacuteprios valores Os valores natildeo satildeo

portanto caracteriacutesticas intriacutensecas dos objectos A relaccedilatildeo entre as propriedades

naturais dos objectos associadas agraves expressotildees derivadas de valor e os valores

propriamente ditos eacute estabelecida pelos numeri ndash propriedades relacionais que

funcionam como razotildees para a valorizaccedilatildeo do objecto ou situaccedilatildeo natildeo satildeo apenas

321

razotildees no sentido justificativo do termo mas no de uma proporcionalidade qualitativa

entre as propriedades naturais dos objectos e os valores propriamente ditos

Face agrave intangibilidade dos valores as teorias contemporacircneas tendem

precisamente a deslocar a abordagem para as razotildees869

o que natildeo invalida o

reconhecimento da dimensatildeo subjectiva e a relatividade implicadas no acto de

valoraccedilatildeo Mesmo para a perspectiva agostiniana eacute necessaacuterio que haja um sujeito para

atribuir valor a um objecto ou uma consciecircncia racional que reconheccedila os numeri pelo

que natildeo obstante o caraacutecter absoluto e impessoal do valor haacute sempre a implicaccedilatildeo dos

afectos no processo valorativo essa eacute precisamente a loacutegica do ordo amoris

Por natildeo ser inerente ao objecto ou situaccedilatildeo o valor esteacutetico natildeo pode considerar-se

como sendo aquilo que faz do objecto ou situaccedilatildeo merecedor de ser apreciado por si

mesmo870

Valorizar esteticamente um objecto ou situaccedilatildeo consiste em perceber que ele

eacute ou poderaacute vir a ser significativo para noacutes na medida em que promove uma abertura

no nosso modo de visatildeo correspondente agrave proacutepria abertura de sentidos entrevista no

objecto ou situaccedilatildeo Eacute ingeacutenua a pretensatildeo de que eacute por si mesmo que o objecto eacute

valorizado o seu valor esteacutetico encontra-se dependente do enriquecimento pessoal

cognitivo e sentimental que puder facultar ao sujeito Isto faz com que nem sempre a

beleza possa ser considerada como uma expressatildeo de valor esteacutetico Por vezes a sua

identificaccedilatildeo num qualquer objecto limita-se a assumir um cariz descritivo paralelo ao

de uma propriedade secundaacuteria sem qualquer capacidade para suscitar uma experiecircncia

esteacutetica Se natildeo for interrogativa a beleza constitui-se como uma mera constataccedilatildeo de

caracteriacutesticas convencionadas culturalmente ou de disposiccedilotildees formais que despertam

mecanismos perceptivos e emocionais ligados a processos homeostaacuteticos suscitando

uma sensaccedilatildeo de prazer em nada distinta da que eacute experienciada pela satisfaccedilatildeo de uma

qualquer necessidade baacutesica Contrariamente ao que Kant postularia a sensaccedilatildeo

provocada por um tal reconhecimento da beleza pode ser enquadrada na categoria do

agradaacutevel (das Angenehme) O proacuteprio Santo Agostinho parece reconhecer este duplo

modo de encarar a beleza quando falando acerca da philocalia diz que se a sua

869

Eacute o caso da buck-passing theory defendida por T M Scanlon segundo a qual x tem valor se tiver

outras propriedades natildeo valorativas que facultem razotildees para certas atitudes e acccedilotildees Cf Scanlon What

We Owe to Each Other Cambridge Mass London Belknap 1998 p 96 e 97

870 Esta eacute a definiccedilatildeo de valor esteacutetico proposta por Peter Kivy e por Alan Goldman Cf Peter Kivy

ldquoWhat Makes lsquoAestheticrsquo Terms Aestheticrdquo Philosophy and Phenomeno-logical Research 36 nordm 2

December 1 1975 p 211 Alan H Goldman Aesthetic Value Boulder CO Westview Press 1995 p 20

322

estimaccedilatildeo for tomada num sentido vulgar entatildeo estaraacute longe de poder ser considerada

como pertencendo agrave linhagem da filosofia poreacutem sendo tomada na acepccedilatildeo correcta

ela eacute sinoacutenima de amor ao conhecimento e subsume-se na proacutepria filosofia sem que se

possa considerar qualquer grau de parentesco pois a philocalia e a filosofia satildeo entatildeo

a mesma coisa871

O desejo de conhecimento alicerccedila tambeacutem a esteacutetica

A esteacutetica e a eacutetica constituem-se como dois modos de atribuir sentido ao que

nos rodeia a partir de uma perspectiva natildeo proposicional que tem o mundo como um

todo e natildeo nos situa apenas de um dos lados da fronteira entre o real e o aparente Esta

perspectiva eacute de certa forma uma afirmaccedilatildeo de liberdade e um modo de

transcendecircncia A esteacutetica agostiniana aponta claramente nesta direcccedilatildeo ao pressupor a

possibilidade da via per corporalia ad incorporalia ab inferioribus ad superiora na

qual a beleza assume uma funccedilatildeo reveladora conduzindo ao conhecimento dos numeri

e na qual a experiecircncia sensorial pode constituir um modo de aperfeiccediloamento da alma e

uma esfera de exercitamento das virtudes que por si pressupotildeem a estruturaccedilatildeo

hierarquizada do mundo

A visatildeo hierarquizada obriga-nos a lidar especificamente com dois poacutelos e com

a escala que haacute entre eles obriga-nos portanto a reflectir acerca das divisotildees que haacute no

mundo sem que assumamos uma posiccedilatildeo de neutralidade ndash o que aliaacutes seria impossiacutevel

Pela eacutetica tendemos a adoptar um posicionamento de estabilizaccedilatildeo e de conciliaccedilatildeo

com aquilo que acreditamos ser as diferenccedilas dos outros Pela esteacutetica damos especial

atenccedilatildeo ao nosso proacuteprio modo de ver e de ser propiciando a abertura agrave instabilidade e

agrave relatividade do sentido das coisas aleacutem de uma postura de revisatildeo face ao que temos

por adquirido Eacute para a impossibilidade de perspectivas uniacutevocas que o posicionamento

esteacutetico nos prepara Ambos os modos satildeo assim de caraacutecter altruiacutesta e reveladores da

consciecircncia de pertenccedila a algo maior que noacutes proacuteprios

871

Cf Retract I 1 3 Vide p 175

CONCLUSAtildeO

327

O iniacutecio deste projecto de investigaccedilatildeo previa uma leitura contemporacircnea da

esteacutetica de Santo Agostinho mais audaciosa do aquela que aqui se delineou Tal intento

revelou-se inexequiacutevel sem o suporte de um corpo teoacuterico que servisse de base a

consideraccedilotildees capazes de enquadrar o pensamento agostiniano nas novas linhas de

investigaccedilatildeo que a esteacutetica contemporacircnea tem vindo a desenvolver Esse corpo teoacuterico

eacute o que aqui se apresenta Seria agora possiacutevel fundamentar uma abordagem no acircmbito

da esteacutetica somaacutetica por exemplo partindo da reflexatildeo que Santo Agostinho

desenvolve acerca das sensaccedilotildees que acompanham o processo digestivo ou acerca dos

prazeres salutares de uma vida regrada Articulando as temaacuteticas agostinianas da

judicaccedilatildeo das percepccedilotildees sensiacuteveis e da beleza da criaccedilatildeo poder-se-ia agora extrapolar

a esfera do belo natural e explorar outros toacutepicos constitutivos da esteacutetica

contemporacircnea da natureza a partir da obra agostiniana Poder-se-ia ainda pensar a via

da interioridade como a de uma paisagem psicoloacutegica eivada de referentes passiacuteveis de

ser analisados agrave luz de uma hermenecircutica esteacutetica Qualquer uma destas leituras ficaraacute

em aberto Urdimos antes uma espeacutecie de trama entre diversos conteuacutedos que na obra de

Santo Agostinho se encontravam dispersos para propor uma direcccedilatildeo de leitura ao

longo daquilo que pode ser considerado o seu legado no acircmbito esteacutetico As

coordenadas para tal tessitura foram encontradas no diaacutelogo entre o alargamento

disciplinar que marca a esteacutetica na contemporaneidade e os lindes que a proacutepria

exploraccedilatildeo da filosofia agostiniana nos ia sugerindo Assim a questatildeo dos limites da

esteacutetica permitiu uma visatildeo mais ampla da pertinecircncia do contributo agostiniano no seu

seio na exacta medida em que esse contributo antes mesmo de lhe adivinharmos os

contornos em toda a sua extensatildeo nos ia facultando indiacutecios acerca das valecircncias da

aacuterea disciplinar em questatildeo

O tiacutetulo ldquoDo escondidordquo pretende traduzir as dificuldades associadas agrave esfera da

esteacutetica quer no que toca a claacutessica questatildeo da dificuldade da definiccedilatildeo do belo ndash tal

como conclui Platatildeo no Banquete ndash quer no que diz respeito a todos os meandros que

se delineiam no seio deste ramo filosoacutefico reclamando hoje reconhecimento e

328

pertinecircncia Nos nossos dias o belo parece sobreviver sobretudo enquanto designaccedilatildeo

abrangente que usamos para nos referirmos agravequilo que nos comove pelo enlace que

suscita entre a ponderaccedilatildeo do sensiacutevel e o afecto Esta beleza fundada na comoccedilatildeo e na

razatildeo natildeo eacute necessariamente oposta ao feio podendo ateacute abarcaacute-lo tornando-o como

seu constituinte Santo Agostinho tacteou estas asperezas testemunhando a demora em

alcanccedilar a amplitude da verdadeira beleza que como um discurso escondido da

natureza o exortava a entrar em si mesmo para no seu mais recocircndito a encontrar

Implicada nessa via interior estava a assunccedilatildeo de uma perspectiva capaz de

compreender os aspectos contraditoacuterios ou de aceitar como tal os aspectos misteriosos

da beleza do universo O reconhecimento da infinitude atraveacutes do particular eacute no que

culmina o exerciacutecio da procura da beleza Tal exerciacutecio eacute uma busca de sentido para as

coisas e para o ser e no fundo eacute indistinguiacutevel do exerciacutecio de procura da verdade

Alcanccedilar a beleza eacute alcanccedilar conhecimento daquilo que natildeo eacute dado senatildeo de modo

obscuro e especular Para Santo Agostinho a beleza constitui portanto um liame entre a

dimensatildeo temporal e a divina que espelha esta uacuteltima na primeira e que ao fazecirc-lo

cativa o homem para o seu lado mais puro originaacuterio O tiacutetulo desta tese adequa-se

tambeacutem agrave esteacutetica agostiniana jaacute que apesar de cativado pelo belo o homem soacute o

alcanccedila verdadeiramente apoacutes uma aacuterdua conquista Nesta perspectiva esteacutetica a beleza

eacute um sentido das coisas que se pressente a partir das suas formas e o prazer que lhe estaacute

associado esquiva-se do desejo e da acircnsia inquieta constituindo-se como um preacutemio

beatiacutefico destinado agravequeles que reservarem a fruiccedilatildeo para o que realmente merece ser

amado por si mesmo (se ipsam) votando ao uso tudo o que se presta agrave obtenccedilatildeo daquilo

que legitimamente se ama

O aliar das esteses ao conhecimento verifica-se na filosofia agostiniana quer pela

coincidecircncia entre a procura do belo e a da verdade quer pela funccedilatildeo sublimante dos

numeri que codificam as formas sensiacuteveis permitindo ao homem guindar-se a partir

delas para o plano da verdadeira realidade Os numeri estabelecem um elo entre tais

formas sensiacuteveis e as Formas inteligiacuteveis que satildeo elas proacuteprias seu modelo e que

consequentemente se constituem como dispositivo legislador da beleza materializada

nas configuraccedilotildees das coisas Eacute tambeacutem isto um indicador da continuidade entre as

categorias epistemoloacutegicas agostinianas de homem exterior e homem interior A

possibilidade de reconhecer as pulchritudinis leges cabe exclusivamente ao sujeito do

conhecimento inteligiacutevel mas se natildeo houvesse entre este e o sujeito do conhecimento

sensiacutevel uma transmeabilidade ao niacutevel das formas que satildeo objecto das respectivas

329

actividades cognoscitivas a funccedilatildeo remissiva que Santo Agostinho reconhece na beleza

corpoacuterea relativamente agrave beleza inteligiacutevel natildeo faria qualquer sentido jaacute que o homem

seria incapaz de ajuizar correctamente as belezas sensiacuteveis e de as reportar agrave matriz

inteligiacutevel Aquilo que poderaacute entender-se como uma forma de conhecimento inferior

constitui-se na verdade como uma propedecircutica para o alcance da beleza superior

equacionada de modo sapiencial

Foi nesta mesma senda de reabilitaccedilatildeo do modo de relaccedilatildeo esteacutetico

tradicionalmente tido como oposto ao processo de conhecimento que propusemos uma

anaacutelise do potencial cognoscitivo da experiecircncia esteacutetica capaz de a inserir no domiacutenio

da reflexatildeo filosoacutefica natildeo apenas como objecto mas como modalidade Assim

defendemos que a experiecircncia esteacutetica faculta um conhecimento particular das coisas

que vai para laacute da pura conceptualizaccedilatildeo uma vez que natildeo descarta a dimensatildeo

emocional nela envolvida O pensamento discursivo tende a deixar de lado os

sentimentos que o sujeito experiencia na sua relaccedilatildeo com as coisas e por se pressupor

objectivo tende igualmente a negligenciar os detalhes natildeo essenciais das coisas Numa

experiecircncia esteacutetica pelo contraacuterio haacute uma peculiar atenccedilatildeo aos detalhes e haacute

igualmente o propiciar de uma espeacutecie de autoconhecimento pela objectivaccedilatildeo da nossa

subjectividade ndash convertemos os nossos sentimentos tambeacutem em objecto do nosso

pensamento conceptual Haacute como que uma uniatildeo indiscerniacutevel entre pensar e sentir (um

ldquopensirrdquo) que eacute caracteriacutestico da experiecircncia esteacutetica Esta instaura um modo de reflexatildeo

que poderiacuteamos definir como episteacutesico jaacute que associa ao pensamento loacutegico a

dimensatildeo do pensamento emocional

Uma epistesia designaria portanto esse conhecimento hiacutebrido resultante da

experiecircncia esteacutetica no qual a compreensatildeo do objecto ou situaccedilatildeo integra uma espeacutecie

de introspecccedilatildeo atenta aos sentimentos que acompanham a imagem que construiacutemos

para noacutes desse objecto ou situaccedilatildeo A objectividade de tal forma de conhecimento

limita-se ao seu instante ao seu ldquoaqui e agorardquo poreacutem a epistesia subsistiraacute como uma

abertura na sensibilidade do sujeito capacitando-o cumulativamente para experiecircncias

esteacuteticas cada vez mais sofisticadas ou cada vez mais frequentes Aleacutem disso tal modo

de relacionamento cognoscitivo concorre para que se outorgue ao objecto um estatuto

natildeo-instrumental relativamente duradouro que faz com que o sujeito se sinta de certo

modo responsaacutevel quanto aos usos que lhe poderatildeo ser dados abrindo assim caminho

para uma postura eacutetica em relaccedilatildeo ao mesmo

330

A proacutepria abertura do sujeito agraves especificidades que o objecto pode assumir para

si e a compreensatildeo do caraacutecter cambiante de que a natureza dessa recepccedilatildeo se reveste

adestram-lhe a capacidade de lidar com a diferenccedila a outros niacuteveis da experiecircncia

humana Por exemplo haacute uma maior flexibilidade no reconhecimento da validade de

criteacuterios culturais distintos e consequentemente haacute uma relativizaccedilatildeo das noccedilotildees da

valor e de verdade que predispotildee a uma maior receptividade ao outro A objectivaccedilatildeo da

subjectividade que a experiecircncia esteacutetica propicia implica como que uma exteriorizaccedilatildeo

da mesma promovendo um certo distanciamento ou mesmo um descentramento do

plano individual Ao tornar-se um outro para si mesmo o sujeito deveacutem socialmente

mais cocircnscio O agir moral rege-se sobretudo pela leitura articulada que fazemos das

nossas emoccedilotildees com aquilo que supomos serem as emoccedilotildees dos outros as epistesias

favorecem tal capacidade de introspecccedilatildeo e de articulaccedilatildeo

Tambeacutem para Santo Agostinho a esteacutetica estaacute intimamente ligada a uma postura

eacutetica O reconhecimento dos numeri que compete agrave ratio superior parece pressupor a

disponibilidade do sujeito para assumir as limitaccedilotildees da sua perspectiva Eacute tal atitude de

autoquestionamento que lhe permite aceder aos numeri por detraacutes das coisas

assumindo-os como coordenadas para uma nova visualidade ou modo de compreensatildeo

de si e das coisas que desde logo determina uma nova conduta norteada pela recta

valoraccedilatildeo e recto uso daquilo que o rodeia Na perspectiva agostiniana a

instrumentalizaccedilatildeo das realidades temporais que atraem o sujeito consiste na assunccedilatildeo

de tal entendimento que as toma como expressatildeo de uma realidade superior agrave qual cabe

o meacuterito do poder de atracccedilatildeo e da vocaccedilatildeo significante reconheciacutevel nas coisas

temporais Soacute em relaccedilatildeo a tal matriz eacute correcto haver fruiccedilatildeo Ainda que natildeo abone a

favor da autonomia do objecto esta perspectiva natildeo eacute radicalmente oposta agravequela que

defendemos jaacute que ela presume que o modo de relaccedilatildeo esteacutetico que o sujeito pode

assumir em relaccedilatildeo agraves coisas funciona como uma janela aberta para uma acepccedilatildeo menos

trivial que sobre elas pende e eacute a tal entendimento que Santo Agostinho exorta quando

afirma que as belezas sensiacuteveis devem ser utilizadas ao inveacutes de fruiacutedas

O ordo amoris concorre tambeacutem para o entendimento da indissociabilidade entre

eacutetica e esteacutetica agostinianas uma vez que se funda numa categorizaccedilatildeo das coisas e das

acccedilotildees prescritiva quanto ao modo de relaccedilatildeo que com elas o sujeito deve manter Esse

processo valorativo tem por criteacuterio a relaccedilatildeo de proximidade que cada coisa manteacutem

com Deus e agrave qual cabe um comportamento afectivo especiacutefico por parte do sujeito

Estaacute em causa a interpretaccedilatildeo sentimental que o sujeito constroacutei tambeacutem racionalmente

331

face agraves coisas que o rodeiam e estaacute em causa o tipo de viacutenculo instrumental que com

elas estabelece Haacute um pragmatismo associado agraves possibilidades de deleitaccedilatildeo a

reconhecer nos objectos e nas situaccedilotildees que por um lado adia a plenitude da

fruiccedilatildeo mas que por outro lado permite legitimar uma relaccedilatildeo positiva do sujeito

com tudo aquilo que constitui a esfera sensiacutevel abrindo caminho a uma perspectiva

natildeo condenatoacuteria dos sentidos corpoacutereos e laudatiacutecia quer da beleza quer da

utilidade sui generis constitutivas de tudo o que existe temporalmente Santo

Agostinho procede assim como que a uma distinccedilatildeo entre o deleite dos sentidos e o

deleite pelos sentidos aleacutem de atender agrave ceacutelebre passagem biacuteblica na qual o Criador

constata a bondade da sua obra

Eacute do grego alexandrino καλός que as traduccedilotildees latinas da Septuaginta fizeram

derivar o qualificativo ldquobomrdquo com o qual Deus descreve a sua obra (Gn 1 21 1 25 e

1 31) A acepccedilatildeo claacutessica do termo (em grego aacutetico) estaacute directamente orientada para a

beleza exterior872

derivando deste o καλός biacuteblico (em grego alexandrino) adjectiva o

que eacute inerentemente bom todavia colocando a ecircnfase na beleza que se apresenta ao

olhar Santo Agostinho confessa preferir as traduccedilotildees latinas das Sagradas Escrituras

feitas a partir da Septuaginta agraves que eram feitas a partir dos textos hebraicos ndash assim o

afirma nas epiacutestolas 28 71 e 82 escritas entre 394 e 404 a Jeroacutenimo que nesse periacuteodo

se ocupava precisamente com uma traduccedilatildeo biacuteblica a partir do hebraico A bondade

associada agraves criaturas eacute portanto uma qualidade que traduz o seu valor absoluto

distinguindo-se do ldquobomrdquo que resulta da traduccedilatildeo do grego ἀγαθός Este uacuteltimo chama

a atenccedilatildeo sobretudo para aquilo que eacute bom graccedilas ao efeito positivo que desencadeia

por seu turno o ldquobomrdquo que deriva de καλός concerne mais precisamente agravequilo que eacute

admiraacutevel por ser belo nobre bem formado intriacutenseca e exteriormente Algo pode ser

meramente bom (ἀγαθός) mas se aleacutem de ser bom manifestar exteriormente essa

qualidade a sua bondade pertenceraacute ao acircmbito do καλός Assim natildeo obstante a

distinccedilatildeo que foi feita poderaacute considerar-se que o ἀγαθός estaacute subsumido no καλός

biacuteblico tambeacutem este veiculando um aspecto moral que ressuma da beleza Haacute quase um

caraacutecter intermutaacutevel entre beleza e bondade que eacute perceptiacutevel por exemplo na

derivaccedilatildeo latina do termo bonitas que acabou por perder a acepccedilatildeo de ldquobondaderdquo em

prol daquela de ldquobelezardquo nas formas portuguesas ldquobonitordquo e ldquobonitezardquo

872

Cf H G Liddell Robert Scott A Greek-English lexicon Henry Drisler (ed) NY Harper amp Brothers

1859 p 699 Pierre Chantraine Dictionnaire eacutetymologique de la langue grecque Histoire des mots

Paris Eacuteditions Klincksieck 1977 p 503

332

A iacutentima ligaccedilatildeo que o bom e o belo originalmente tinham no contexto biacuteblico e

que o neoplatonismo jaacute havia tambeacutem reconhecido marca toda a esteacutetica agostiniana

deixando transparecer a imagem de um Deus esteta cujo acto criador natildeo descura a

expressividade das aparecircncias expressividade esta que sempre ecoa a excelecircncia da sua

origem mesmo quando por exemplo a harmonia do corpo natildeo corresponde a um

iacutentimo virtuoso ndash ainda assim eacute a divina providecircncia a manifestar o seu esplendor

exortando a que o homem natildeo se quede pela esfera temporal onde o belo eacute sempre

fugaz e aspire a uma beleza superior agravequela que se configura nas coisas pereciacuteveis e

com elas se esvanece Natildeo se trata pois de um Deus que precisa das criaturas para

nelas se ver mas de um Deus que se oferece tambeacutem como beleza aliando agrave dimensatildeo

teofacircnica do belo as exigecircncias morais a que o homem deve atender para O desocultar

dentro de si mesmo Deus soacute se esconde no interior do homem pois em tudo o mais a

Sua presenccedila eacute declarada pela beleza ainda que natildeo seja imediato o reconhecimento que

o homem pode atraveacutes dela fazer Para O reconhecer tambeacutem a alma precisa de se

embelezar tornando-se virtuosa e auscultando o Mestre interior que a remete para a

beleza exemplar do Redentor Cristo eacute o elo entre o plano interior e o exterior sendo

tambeacutem ele o uacutenico mediador capaz de conduzir o homem da esfera sensiacutevel ateacute ao aacutepex

da esfera inteligiacutevel Natildeo eacute pois de estranhar que haja um papel de destaque para a

beleza nessa mediaccedilatildeo jaacute que o proacuteprio Cristo incarna a beleza de Deus O carmen

universitatis composto pela disposiccedilatildeo esteacutetica de tudo o que existe ndash e que natildeo deixa de

ser uma disposiccedilatildeo racional do sensiacutevel atraveacutes dos numeri ndash eacute como que o resultado de

uma linguagem divina soacute compreensiacutevel na sua plenitude pelo homem graccedilas ao Filho

A especulaccedilatildeo racional revela-se insuficiente e esteacuteril a menos que a feacute intervenha

desvelando atraveacutes do Redentor a forma Dei A auscultaccedilatildeo da beleza das coisas

sensiacuteveis leva o homem a procurar dentro de si o Criador encontrando na memoacuteria uma

imagem Dele ainda aberta agrave conformaccedilatildeo e encontrando a via para tal conformidade na

exortaccedilatildeo do Mestre interior A reformaccedilatildeo da imagem de Deus no homem eacute o

restabelecimento da beleza da alma diminuiacuteda aquando do pecado original e que o

Redentor vem concretizar exemplarmente pelo hibridismo paradoxal da fealdade

humana revelada pelo seu corpo fustigado e da beleza divina que incarna nessa entrega

amorosa agrave humanidade A compunccedilatildeo que assim desperta e o caminho remidor por si

revelado nascem da alianccedila entre a esteacutetica e a moral

A perspectiva esteacutetica de Santo Agostinho natildeo se reduz a uma teofania ainda

que a beleza seja sobretudo revelaccedilatildeo de Deus O modo como o homem lida com as

333

esteses eacute de igual importacircncia e conduz o filoacutesofo a uma concepccedilatildeo quase paradoxal da

transcendentalidade do belo jaacute que se pressuporia que o seu alcance determinaria o

desaparecimento de qualquer uma das suas expressotildees sensiacuteveis e no entanto o

movimento em direcccedilatildeo ao universal que a beleza propicia natildeo faz sentido se implicar a

perda do particular Ao alcance da verdadeira beleza soacute se associa o ganho ora natildeo

podendo haver um empobrecimento do universal nem uma desumanizaccedilatildeo do homem

(este natildeo deveacutem anjo nem Deus) todas as formas sensiacuteveis assumidas pelo belo na

esfera temporal marcaratildeo presenccedila na vida ressurrecta para serem contempladas pelo

homem cujo corpo renovado e embelezado manteacutem o uso dos seus sentidos agora

supeacuterfluos para deles se servir a seu bel-prazer Eacute a Deus que tais belezas satildeo devidas e

eacute como um louvor a Deus que satildeo sentidas pelo homem todavia natildeo deixa de haver

uma espeacutecie de celebraccedilatildeo da dimensatildeo sensiacutevel que se na sua espeacutecie era jaacute

considerada pelo Criador como muito boa tanto mais excelsa o eacute no acircmbito da

contemplaccedilatildeo a que o homem acede ao alcanccedilar a beata vita

Sem qualquer prejuiacutezo para os encontros inesperados e sempre entusiasmantes

que foram surgindo ao longo da tese muitas vezes nos pareceu estar a reorganizar a

teoria agostiniana como se esta fosse um puzzle passiacutevel de ser montado de vaacuterias

formas originando frequentemente a mesma imagem Natildeo nos parece que haja uma

conclusatildeo ou uma descoberta inovadora de uma qualquer parcela agostiniana Pelo

contraacuterio a filosofia agostiniana continua a mesma e ao percorrecirc-la chegaacutemos a

destinos que tantos outros jaacute antes haviam chegado Sentimos poreacutem que trilhaacutemos

percursos paralelos que por vezes iam interceptando as rotas mais habituais com um

misto de decepccedilatildeo por tatildeo trivial desembocadura e de aliacutevio por perceber que estaacutevamos

no bom caminho A esteacutetica permite estes passeios paralelos ao longo do legado dos

autores Mesmo que um autor natildeo pareccedila tecer quaisquer consideraccedilotildees acerca da arte

acerca das formas que a beleza assume ou acerca da sensibilidade mdash e estaacute longe de ser

o caso de Santo Agostinho mdash a nossa relaccedilatildeo com o pensamento desse autor poderaacute

sempre ser ela mesma uma relaccedilatildeo esteacutetica

Para a tese de que o meacuterito da esteacutetica natildeo tem sido suficientemente reconhecido

no meio filosoacutefico poderiacuteamos ter-nos socorrido de um qualquer outro pensador sem

filosofia da arte mas levou-nos a paixatildeo pelas Confissotildees e pelo seu autor Um dos

334

conceitos que sempre ressalta de qualquer perspectiva esteacutetica mais tradicional eacute o de

prazer Pudemos vivecirc-lo por inuacutemeras vezes ao escrever esta tese Natildeo foi uma tese

sofrida foi um prazer a cada percurso temaacutetico que esperamos poder partilhar

BIBLIOGRAFIA

339

Nota preacutevia No ponto I satildeo referidos os textos agostinianos utilizados nesta investigaccedilatildeo

sempre que possiacutevel retirados do Corpus Christianorum Latinorum embora pontualmente

tenham tambeacutem sido utilizadas as ediccedilotildees do Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum e

da Patrologia Latina Para aleacutem destas fontes o ponto I integra ainda uma aliacutenea com todas as

traduccedilotildees consultadas No ponto II encontram-se referenciadas as obras de autores antigos

citadas na presente tese Para o ponto III reservou-se a indicaccedilatildeo da bibliografia especiacutefica

subdividida em dois grupos o dos ensaios votados agrave esteacutetica abrangentemente considerada e o

dos textos que em concreto versam sobre a esteacutetica de Santo Agostinho No ponto IV

elencam-se todos os demais estudos sobre o pensamento e sobre a obra agostinianas que

serviram de suporte agrave nossa investigaccedilatildeo Por fim o ponto V eacute dedicado agrave bibliografia geral

compilando outros textos de cariz instrumental utilizados e citados nesta tese

I

OBRAS DE SANTO AGOSTINHO

a) Fontes

Confessionum libri tredecim L Verheijen CCL 27 Turnhout Brepols 1981

Contra Academicos W M Green CCL 29 Turnhout Brepols 1970 pp 3-61

Contra epistulam Manichaei quam vocant fundamenti J Zycha CSEL 251 Viena F

Tempsky 1891 pp 191-248

Contra Faustum J Zycha CSEL 251 Viena F Tempsky 1891 pp 249-797

Contra Julianum libri sex J-P Migne PL 44 Paris Migne 1845 cols 641-874

Contra Julianum opus imperfectum E Kalinka M Zelzer CSEL 851 Viena Verlag

der Oumlsterreichischen Akademie der Wissenschaften 1974

De anima et ejus origine J Zycha K Urba CSEL 60 Viena F Tempsky 1913 pp 303-419

De beata vita W M Green CCL 29 Turnhout Brepols 1970 pp 65-85

De bono conjugali J Zycha CSEL 41 Viena F Tempsky 1900 pp 187-231

De civitate Dei B Dombart A Kalb CCL 47-48 Turnhout Brepols 1955

De correptione et gratia J-P Migne PL 44 Paris Migne 1845 cols 915-946

De diversis quaestionibus octoginta tribus Almut Mutzenbacher CCL 44A Turnhout

Brepols 1975 pp 11-249

De doctrina christiana J Martin CCL 32 Turnhout Brepols 1962 pp 1-167

340

De fide et operibus J Zycha CSEL 41 Viena F Tempsky 1900 pp 33-97

De gratia et libero arbitrio J-P Migne PL 44 Paris Migne 1845 cols 881-912

De Genesi ad litteram J Zycha CSEL 281 Viena F Tempsky 1894 pp 3-435

De Genesi ad litteram imperfectus liber J Zycha CSEL 281 Viena F Tempsky

1894 pp 459-503

De Genesi contra Manichaeos J-P Migne PL 34 Paris Migne cols 173-220

De immortalitate animae W Houmlrmann CSEL 89 Viena Verlag der Oumlsterreichischen

Akademie der Wissenschaften 1986 pp 99-128

De libero arbitrio W M Green CCL 29 Turnhout Brepols 1970 pp 211-321

De Magistro K-D Daur CCL 29 1970 Turnhout Brepols pp 157-203

De musica J-P Migne PL 32 Paris Migne cols 1079-1194

De natura boni J Zycha CSEL 252 Viena F Tempsky1892 pp 855-889

De ordine W M Green CCL 29 Turnhout Brepols 1970 pp 89-137

De quantitate animae W Houmlrmann CSEL 89 Viena Verlag der Oumlsterreichischen

Akademie der Wissenschaften 1986 pp 129-231

De Trinitate W J Mountain F Glorie CCL 50-50A Turnhout Brepols 1968

De vera religione K-D Daur CCL 32 Turnhout Brepols 1962 pp 187-260

Enarrationes in Psalmos E Dekkers J Fraipont CCL 38-40 Turnhout Brepols 1956

Epistulae I-LV K-D Daur CCL 31 Turnhout Brepols 2004 LVI-C Daur CCL 31A

Turnhout Brepols 2005 CI-CXXXIX Daur CCL 31B Turnhout Brepols 2009

Ep CLXVI A Goldbacher CSEL 44 Viena F Tempsky 1904 pp 545-565

In Iohannis epistulam ad Parthos tractatus J-P Migne PL 35 Paris Migne cols 1977-2062

In Iohannis evangelium tractatus Radbodus Willems CCL 36 Turnhout Brepols 1954

Quaestionum in Heptateuchum libri VII John Fraipont CCL 33 Turnhout Brepols

1958 pp 1-377

Retractationum libri duo Almut Mutzenbecher CCL 57 Turnhout Brepols 1984

Soliloquiorum libri duo W Houmlrmann CSEL 89 Vienna Verlag der Oumlsterreichischen

Akademie der Wissenschaften 1986 pp 3-98

341

b) Traduccedilotildees consultadas

A cidade de Deus J Dias Pereira (trad intr notas) 3 vols 3ordf ed Lisboa FCG 2006

Cartas 1-123 L Cilleruelo (trad intr y notas) Obras completas de Sto Agustiacuten VIII

BAC Madrid Catolica 1986

Cartas 124-187 L Cilleruelo et al (trad) Obras completas de Sto Agustiacuten XIA BAC

Madrid Catolica 1987

Cartas 188-270 L Cilleruelo et al et al (trad) Obras completas de Sto Agustiacuten XIB

BAC Madrid Catolica 1987

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IacuteNDICES

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IacuteNDICE ONOMAacuteSTICO

AAHLBERG Lars-Olof 301

ADEODATO 205

ADORNO Theodor W 293

AGACINSKI Sylviane 276

ALFARIC Prosper 157

ALIacutePIO 259

AMBROacuteSIO (SANTO) 132

ANAXAacuteGORAS 44

ANSCOMBE E M 319

ANTONELLI Giuseppe 138

ARENDT Hannah 29 170 171

ARISTOacuteTELES 44 78ndash79 85 87

127 128 151 239 275

ARMSTRONG Arthur Hilary 135

ARMSTRONG Ivor Richrads 304

ARQUIMEDES 305

ASCHENBRENNER Karl 285

BACON Francis 282

BALTHASAR Hans Urs von 141

213 214

BARTHES Roland 282

BASCHET J 58

BASSOLS Lourdes 54

BATAILLE Georges 249

BAUMGARTEN Alexander Gottlieb

25 33 270 285ndash89 309

BAYER Raymond 32

BEARDSLEY Monroe 310

BEATO Joatildeo 173 174 185 341

BEAUCHESNE Gabriel 42 354

BELL Clive 316

BENSON J 302

BERGSON Henri 281

BERLEANT Arnold 302

BERNINI Lorenzo 200

BLANCHOT Maurice 305

BOURKE Vernon Joseph 88

BOUTON-TOUBOULIC Anne

Isabelle 155 351

BOYER Charles 42 354

BOYER Freacutedeacuteric 48

BRACHTENDORF Johannes 72 354

BRADY Jules 42 354

BROWN Peter 51 266 274 354 361

BRUNETTI Federico 138

BURKE Edmund 289

CANAL Pietro 138

CELSUS Aulus Cornelius 67

CHANTRAINE Pierre 331

CIacuteCERO 26 72 124 127 138 159

162

CILENTO Vincenzo 118

COLISH Marcia L 79

CONSEcircNCIO 122

COPLESTON Frederick 45 111

COSTA Marcos R N 45 282 355

CRISTINA (de Lorena) 98

DA VINCI Leonardo 248

DAMAacuteSIO Antoacutenio 272 282 319

DANTO Arthur 248 293 298

DELEUZE Gilles 33 282

DEMOacuteCRITO 44

372

DENKER Christian 298

DEODORO 275 276 277 280

DERRIDA Jacques 293

DEWEY John 302

DIAMANT Carole 276

DICKIE George 316

DINIS Alberto Pereira 170

DIOTIMA (de Maniteacuteia) 174

DOLBEAU Jean 228

DOSTOIEVSKI Fioacutedor 210

DOUCET Dominique 95 206

DRISLER Henry 331

ECO Umberto 28 249

ELISEU (pers biacuteblica) 76

ENTZENBERG C 300

EPICTETO 275

ERASIacuteSTRATO 67

EVOacuteDIO 65ndash66 79 81

FEINBERG Joel 307

FIacuteLON 44

FITZGERALD Allan D 138

FONTANIER Jean-Michel 49ndash50 151

FOUCAULT Michel 33 282

FRIBERG Carsten 301

GADAMER Hans-Georg 271

GAGE Phineas 319

GALILEU 98

GAUGUIN Paul 313

GILSON Eacutetienne 55 100ndash101 108

111 120 123 165 176ndash77 207

GOLDMAN Alan H 321

GOODMAN Nelson 316

GOUSMETT Chris 44 356

GUITTON J 157

HAAPALA Arto 301

HADOT Ilsetraut 139

HARRISON Carol 41 55 60 61

106ndash7 179 212 274

HATFIELD Gary 269

HEATH Peter 292

HEGEL G W Friedrich 33 289 292ndash

94

HEIDEGGER Martin 278ndash80 293

294 293ndash94 302 307

HELENA (mitologia) 60

HERMOacuteGENES 241

HEROacuteFILO 67

HINRICHSEN Luiacutes Evandro 116

HIRSTEIN William 305

HOLTHER William Benjamin 285

HOMERO 85

HOPPER Vincent Foster 127

HUME David 289

HUTCHESON Francis 289

HYMAN Gavin 46 357

IRENEU 217

ISAIacuteAS 120 210

JACOB (pers biacuteblica) 189ndash90

JEROacuteNIMO (SAtildeO) 52 54 55 110

331

JOAtildeO (SAtildeO) 189

JOB 75

JOOST-GAUGIER Christiane L 127

KANT Immanuel 33 196 201 289ndash

90 291 321

KATOcirc Takeshi 157

KENNEY John Peter 182

KEPLEC Peter 301

KIERKEGAARD Soslashren 282

KIVY Peter 321

KNOX T M 293

KYNDRUP Morten 300ndash301 301

LABAtildeO (pers biacuteblica) 189

LACAN Jacques 268

LAPOUJADE David 282

LEIBNIZ Gottfried Wilhelm 281

LEMOS F A Andrade 133

LEONDAR Barbara 316

LEVINSON Jerrold 302

LIA (pers biacuteblica) 189ndash90

LICEcircNCIO 138 139 140 240

LIDDELL H G 331

LIGHT Andrew 301

LIPPARD Lucy 249

LOUTH Andrew 213

LUCAS (SAtildeO) 59

LUKAacuteCS Georg 293

LYNEBORG Malte 301

MAALOUF Amin 158

MADEC Goulven 54

MANDOKI Katya 302

373

MANDOUZE Andreacute 121

MANFERDINI Tina 213

MANI 98 159

MARCEL Gabriel 282

MARIA (pers biacuteblica) 189

MAacuteRIO VITORINO 78

MARKUS R A 218

MARROU H-I 239

MARTA (pers biacuteblica) 189

MARTINS Maria Manuela Brito 93

151 268

MATTHEWS Gareth B 98

MCDONAGH Francis 213

MCGINN Bernard 188

MCKEOUGH John M 42 358

MCNEIL Brian 213

MELBERG Arne 301

MEURER Flaacutevio Paulo 271

MICHAUD Yves 276

MNEMOacuteSINA (perso mitoloacutegica) 85

MNESTHES 241

MODERATO 127

MONTCHEUIL Yves 54 365

MONTEIL P 49 365

MOREAU M 83 94

MUacuteCIO 241

NANCY Jean-Luc 276

NASCIMENTO Carlos Arthur do 98

NEBRIacuteDIO 227

NEPTUNO (pers mitoloacutegica) 229

NIETZSCHE Friedrich 280 282 294

NOURRISSON Feacutelix 209

OrsquoCONNELL Robert J 54 107ndash9

243

OrsquoCONNOR William P 54

OrsquoDALY Gerard 55 80 84

ONFRAY Michel 127

PANACCIO Claude 222

PARMEacuteDINES 282

PARRET Herman 85

PAULO (SAtildeO) 221

PEDERSEN Jacon Lund 301ndash2

PEDRO (SAtildeO) 189

PEREIRA J Dias 76

PERKINS David 316

PIMENTEL M C C M S 173 174

185 341

PITAacuteGORAS 109 126 127 240

PLATAtildeO 37 55 56 85 108ndash9 117

127 164 174 176 229 250 327

PLOTINO 37ndash39 45 48 57 60 77ndash

79 85ndash86 108 117ndash19 127ndash28

134 143 146 159 161 174 177

180 182ndash83 248 266 267 268

PORFIacuteRIO 37 55 118 133 159

QUERSIFRAtildeO 241

RAMACHANDRAN V S 305

RAQUEL (pers biacuteblica) 189ndash90

RATZINGER Joseph 210 213

REcircGO Marlesson C B do 282

REID Shelley 67

RICHES John 213

RICOEUR Paul 231

RITSCHL Friedrich Wilhelm 138 240

ROSA Joseacute Maria Silva 146 153 213

274 283

ROTHKO Mark 248

RUSSELL Bertrand 307

SAumlAumlTELA S 300

SAISSET Eacutemile 177

SAITO Yuriko 302

SAacuteNCHEZ-MIGALLOacuteN Sergio 170

SANDYS John Edwin 240

SANTO Arnaldo Espiacuterito 173 174

185 341

SARTWELL Crispin 302

SCANLON T M 321

SCHELER Max 169ndash70

SCHELLING Friedrich 33 279 289

290 292 294

SCHILLER Friedrich 33 289 290ndash91

SCHIMMEL Annemarie 133

SCHOPENHAUER Arthur 294

SCHWARZ R 290 291

SCOTT Robert 331

SCRUTON Roger 248

SHAFER-LANDAU Russ 307

SHAFTESBURY Anthony Ashley-

Cooper 197 289

SHANZER Danuta 139

SHUSTERMAN Richard 298 302

SIBLEY Frank 302

SILVA Paula Oliveira e 120 146 153

156

374

SLAVEVA-GRIFFIN Svetla 127 133

SMITH Jonathan M 301

SOacuteCRATES 109 174

SOLIGNAC A 157

SOMERS H 219

SPANNEUT Michel 79

STEINER Georg 299

STOLNITZ Jerome 316

SVOBODA Karel 157

TEOacuteFILO (de Antioquia) 41

TESKE Roland J 54 360

TESTARD M 79

TITO LIacuteVIO 259

TOMAacuteS DE AQUINO (SAtildeO) 28 43

VARGAS Guillermo 298

VARRAtildeO 138ndash40 159 240 242

VICENTE VICTOR 52 54

VIRGIacuteLIO 26 178

VITRUacuteVIO 138 151 239 241 344

VUILLEMIN Jules 275ndash77 280

WEISMANN F J 187

WELSH Wolfgang 302

WILES Maurice F 155 351

WITTGENSTEIN Ludwig 282 319

XAVIER Maria Leonor 121 146

YARNOLD E J 155 351

ZENAtildeO ( de Ciacutetio) 98 99

ZUBIRI Xavier 170

375

IacuteNDICE TEMAacuteTICO

ALMA 186 188 191 197 201 211

240 259 304 __ caiacuteda 108 __

ressurrecta 98 acccedilatildeo da __ na

percepccedilatildeo sensiacutevel 63 67 afecccedilotildees

e paixotildees da __ 71-72 315 anima

animus 100 180 atenccedilatildeo da __ 70

80 beleza da __ 60 166 180 201

210 bondade da __ 52 divinamente

iluminada 113 exercitatio animi

239 fundus animae 288 grandeza

da __ 62 163-65 imagem de Deus

110 imaterialidade da __ 52 62 66

84 imortalidade da __ 53 56

intentio animi 87 94 182 olhar da

__ (acies animi) 89 90 origem da

__ 53-55 parte mais excelsa da __

84 108 preacute-existecircncia da __ 108

110 reformaccedilatildeo da __ 61 relaccedilatildeo __

corpo 57 62 214 spiritus 101

AMOR 168 169 186 190 191 197

198 199 202 322 __ divino 172

173 179 __ pulchritudinis 175 __

sapientiae 175 appetitus 203

caritas 60 124 144 145 146 165

171 173 175 203 259 como

elemento da imagem trinitaacuteria na

alma 88 cupiditas 171 172 198

Espiacuterito Santo 88 179 ordo amoris

170 197 264 321 relaccedilatildeo entre __ e

beleza 175 181 relaccedilatildeo entre __ e

conhecimento 175 178 relaccedilatildeo

entre __ e felicidade 177

ARTE 37 193 241 296 298 316 __

e beleza 248 294 __ e natureza

292 actores 237 arquitectura 241

ars 163 ars (techneacute) 235 241 243

253 Ars divina 235 243 244 246

ars ou ideia 244 artes (scientia)

235 artes liberais 116 132 138

235 238 239 242 235-43 254 286

artes plaacutesticas 247 artes populares

302 artiacutefice 251 belas-artes 247

302 continuidade entre a arte divina

e a arte humana 245 246 danccedila

249 254 257 259 desmaterializaccedilatildeo

da obra de __ 249 diluiccedilatildeo das

fronteiras 300 disciplinas liberais

169 distinccedilatildeo schellinguiana entre

filosofia e __ 292 escultura 163

229 247 248 250 251 252 256

falsidade da obra de __ 250 filosofia

da __ 261 263 264 273 287 geacutenio

290 imagem do Deus pictor 155

lutas de arena e jogos circenses 257

mimesis 250 muacutesica 129 163 193

194 237 240 247 256 260 286

315 na perspectiva de Schelling

292 na perspectiva hegeliana 293

pintura 163 247 248 250 251 252

254 256 313 poesia 286 poetas

237 signo 255 teatro 193 254

257-59 315 valor heuriacutestico da __ 38

BELEZA 118 126 154 187 193 204

210 213 243 244 246 248 250

283 321 327 328 __ artiacutestica 37

251 __ como articulaccedilatildeo entre o todo

376

e as partes 147 __ da alma 60 162

175 180 __ da criaccedilatildeo 185 __ da

totalidade antiteacutetica 156 __ de

Cristo 209 210 __ do corpo 162

166 __ do corpo ressurrecto 162 __

e liberdade 291 __ e verdade 214

__ inteligiacutevel 117 159 211 242 __

sensiacutevel 39 230 292 330 carmen

universitatis 123 130 267 332

como via para Deus ou conversio 40

60 concepccedilatildeo formalista da __ 38

39 159 concepccedilatildeo transcendental da

__ 38 congruentia numerosa 39

criteacuterio ou regra da __ 199 260

descentralizaccedilatildeo do belo no seio da

esteacutetica 302 dialeacutectica entre aptidatildeo

e __ 160 dimensatildeo salviacutefica da __

210 escala de __ 160 167 212

identificada com Deus 174

interioridade como sede da __ 180

kalologia 289 papel admonitoacuterio da

__ corpoacuterea 213 perspectiva estoacuteica

38 perspectivaccedilatildeo moral da __ 93

prazer pela __ 119 pulchritudinis

leges 328 pulchritudo 49 164

relaccedilatildeo entre __ e amor 174 relaccedilatildeo

entre __ e bondade 160 161 167

331 relaccedilatildeo entre __ e sabedoria

175 relaccedilatildeo entre amor e __ 175

species 49 teoria do belo 263 vera

pulchritudo 176

Cf Categorias Esteacuteticas Species

CATEGORIAS ESTEacuteTICAS 31 147

239 aequalitas 151 analogia 151

aptum 69 148 158 coaptatio

congruentia 39 149 162

consonantia 150 correlationalitas

151 decor decus 148 gradatio

152 harmonia 149 245 medida

140 modulatio 148 modus 141

ordem 148 parilitas 151 152

pondus 141 proportio 150 151

pulchrum 69 157 158 rhythmus

150 simetria 119 204 209 241

similitudo 151 unidade 244

CONHECIMENTO 98 105 109 115

124 187 189 223 311 329 __

atraveacutes da experiecircncia esteacutetica 310

__ de Deus pela via da interioridade

185 __ de si noscere se 95 97 219

__ e amor 169 __ sempiterno

(scientia sempiterna) 223 __

sensiacutevel 186 alegoria da caverna

117 autoconhecimento 329

cognitio 188 como conversatildeo do

olhar 123 181 como officium da

razatildeo 114 como sapientia 113 114

115 165 185 196 como scientia

113 114 123 165 185 como

scientia actionis 114 definiccedilatildeo de

Zenatildeo 99 dicotomia homem

interior homem exterior 88 112

114 116 173 181 206 304 309

328 faculdade cognitiva inferior

287 relaccedilatildeo entre __ e amor 175

178 senciecircncia 103

CORPO __ celestial edeacutenico 57 73

__ ressurrecto 58-60 75 163 214

266 afecccedilotildees do __ 64 65 70

beleza do __ 149 157 162 195

como falsa unidade 212 esteacutetica

somaacutetica 70 272 298 299 327

estrutura triaacutedica do __ 212 paixotildees

do __ 85 passibilidade do __ na

percepccedilatildeo sensiacutevel 64 67 per

corporalia ad incorporalia 235 322

relaccedilatildeo alma __ 57 62 214 traccedilos

de unidade nos corpos 147 treino do

__ 239

Cf Sentidos Corpoacutereos

CRIACcedilAtildeO __ ex nihilo 40-47 beleza

da __ 185 bondade das criaturas

146 Demiurgo 40 fiat lux 48

mateacuteria informe 40 41 42 os trecircs

momentos da __ 42 razotildees seminais

42 43-45

CRISTO 125 172 179 184 189 190

191 205 226 259 como beleza de

Deus 61 179 332 como esplendor

da luz eterna 183 como luz

inteligiacutevel 206 Corpo de __ (Igreja)

189 forma servi e forma Dei 61 332

graccedila divina 61 Mediador 52 61

181 183 186 209 Mestre interior

111 182 184 332 Redentor 179

377

186 188 214 243 332 Sabedoria

183 totus Christus 188 tribunal de

__ 205 Verbo 111 183 185 186

209 210 214 222 223

EMOCcedilAtildeO 304 316 a __ na

perspectiva agostiniana 315 acccedilotildees

fisioloacutegicas desencadeadas pela __

316 distinccedilatildeo entre __ e sentimento

317 sentimento emocional 305 316

EXPERIEcircNCIA ESTEacuteTICA 297 304

305 309 313 317 __ do quotidiano

299 301 componente emocional da

__ 314 318 esteacutetica somaacutetica 298

299 no contexto artiacutestico 298 no

contexto da natureza 298 para laacute da

arte 295 pluralizaccedilatildeo da __ 295

299 302

FEacute 123-24 179 181 183 184 214

FELICIDADE 172 177 183 187 198

208 214 244 267 beata vita 124

como posse amorosa do bem 181

eudemonismo 268 relaccedilatildeo entre

amor e __ 171 177

FILOSOFIA 124 176 182 299 310

__ da arte 292 294 295 297 299

302 303 __ e filocalia 175 203

322 distinccedilatildeo entre __ e sabedoria

177 distinccedilatildeo schellinguiana entre __

e arte 292 reserva por parte da __

face agrave pluralizaccedilatildeo esteacutetica 297

FORMA 84 126 181 197 235 320

328 __ Dei 61 332 __ inteligiacutevel

arquetiacutepica 40 108 111 __e beleza

48 __e ser 48 __infabricata 40

__servi 61 aplicaccedilatildeo normativa da

__ 111 135 180 como

configuraccedilatildeo 40 deformaccedilatildeo 60

orientaccedilatildeo formal (Formtrieb) 291

Cf Ideias Razotildees

GRACcedilA 111 124 186

IDEIAS 110 112 115 250

Cf Forma Razotildees

IMAGEM __ de Deus no homem 60

88 95 110 112 181 183 217 218

220 243 332 __ mental 85 97

104 __ pertencente ao homem

exterior 104 alegoria 226 230

antropomorfismo 229 aparecircncias

99 como por um espelho e em

enigma 165 218 220-22 224

conhecimento imageacutetico 318

distinccedilatildeo entre __ e signo 225 230

distinccedilatildeo entre __ igualdade e

semelhanccedila 215 falsas imagens

227 Filho como __ do Pai 215 217

220 imagens corpoacutereas 106

imaginaccedilatildeo 104 phantasia 84 225

226 227 phantasma 225

positivaccedilatildeo de imagens negativas

atraveacutes da memoacuteria 92 questatildeo da

idolatria 227 realidades sensiacuteveis

como __ do inteligiacutevel 117 118

126 relaccedilatildeo de semelhanccedila na __

229 representaccedilotildees (figmenta) 251

simulacrum 228

Cf Semelhanccedila

INTERIORIDADE 174 182 183 184

201 212 327 como modo de

relaccedilatildeo 181 como sede do belo

180 extimidade 268 via da __ 111

180 183 185 188

JUIacuteZO 116 119 187 241 249 __

cognitivo 199 200 201 312 __ da

sensaccedilatildeo de prazer 187 __ das

percepccedilotildees sensiacuteveis 100 105 111

113 115 __ esteacutetico 180 193 194

196 199 201 211 212 289 290

327 __ moral 193 199 201 312

contacto com o inteligiacutevel no acto

judicativo 111 criteacuterio judicativo

105 111 204 205 207 erro de

judicaccedilatildeo 195 198 199 250

pulchritudines leges 180 questatildeo do

gosto 293 regras do belo 134

LUZ 110 173 __ da inteligecircncia 102

__ da verdade 115 __ divina 111

113 164 __ espiritual 101 __

fiacutesica 102 __ inteligiacutevel 112 124

378

206 __ interior 182 __ natildeo

corporal 102 Cristo como esplendor

da __ eterna 183 fiat lux 111

Iluminaccedilatildeo divina 101 108 110

111 208 214 lumen numerorum

134 visatildeo corporal visatildeo espiritual e

visatildeo intelectual 103 106 113

MAL 45 46 153-54 159 no dualismo

maniqueiacutesta 47 relaccedilatildeo com o livre

arbiacutetrio 187 relaccedilatildeo com o nihil 45

MANIQUEIacuteSMO concepccedilatildeo da alma

no __ 51 concepccedilatildeo do mal__ 47

criacuteticas ao Cristianismo 42

MEMOacuteRIA 85 88 89 104 163 173

178 207 227 230 246 256 309 __

involuntaacuteria 305 cogitaccedilatildeo 90

como arquivo de imagens mentais

87 como base da identidade 93

como dispositivo de positivaccedilatildeo de

imagens negativas 92 como venter

animi 93 conteuacutedos da __ 225

falsas memoacuterias 91 110 imagem de

Deus na __ 332 notiones 93 papel da

__ na espiritualizaccedilatildeo das percepccedilotildees

84 papel da __ na percepccedilatildeo sensiacutevel

82 94 papel da __ no conhecimento

111 presentificaccedilatildeo interior 83 94 95

privaccedilatildeo de __ 94 recordaccedilatildeo 92 108

recordaccedilatildeo e imaginaccedilatildeo 91 relaccedilatildeo da

__ com o sentido interior 87

Cf Alma

MENS 109 111 112 218 __ ratio e

intellegentia 101 associaccedilatildeo da __

ao homem interior 101 como parte

mais excelsa da alma 101 os trecircs

aspectos da __ 84 presenccedila

especular de Deus na __ 181 230

Cf Razatildeo

NEOPLATONISMO a memoacuteria na

concepccedilatildeo plotiniana 85 arte 37

beleza e purificaccedilatildeo da alma 60 117

conceito de substacircncia imaterial 52

concepccedilatildeo plotiniana de numerus

127 conversatildeo do olhar 117 criacutetica

agostiniana agrave teoria da reminiscecircncia

109 criacutetica agostiniana ao __ 120

dissenccedilotildees entre o __ pagatildeo e o __

agostiniano 174 183 dissenccedilotildees

entre o ___ pagatildeo e o __ agostiniano

146 emanaccedilatildeo 40 escala de beleza

119 esteacutetica 37 influecircncia do __ no

pensamento agostiniano 145 161

relaccedilatildeo entre beleza e bondade 332

teoria da reminiscecircncia 107 108

teoria neoplatoacutenica da sensaccedilatildeo 77

via esteacutetica do conhecimento 119

NUMERUS 112 115 126 147 148

149 150 158 160 162 166 174

181 187 196 197 201 207 212

227 230 236 237 238 240 242

245 246 248 251 253 257 260

261 264 267 268 306 320 321

322 328 330 332 __ e sabedoria

133 137 143 196 201 __ eterno

250 __ sine numero 143 146 como

brilho da luz divina 133 como

iacutendice de relaccedilatildeo 135 147 como

sinoacutenimo de beleza ou species 136

137 141 concepccedilatildeo plotiniana de

__ 127 congruentia numerosa 39

162 implicaccedilotildees do __ no processo

perceptivo 112 lex numerorum 135

numeri corporales 129 numeri

iudiciales 132 numeri occursores

129 numeri progressores 131

numeri recordabiles 132 numeri

sensuales 132 numeri sonantes

129 nuacutemero monaacutedico 128 129

nuacutemero substancial 128 numerorum

leges 187 197 prazer pela percepccedilatildeo

do __ 68 105 180 197

reconhecimento do __ pela razatildeo 69

summus __ 143 146 267 268

triacuteade medida nuacutemero e peso 140

141 146

Cf Beleza

ORDEM 118 127 140 141 143 148

152 154 158 159 160 178 202

320 __ concertada do universo

(carmen universitatis) 123 130 267

332 hierarquia das actividades e

estadios da alma 163 hierarquia de

seres 162 ordo amoris 7 170 197

379

203 258 264 321 330 ordo rerum

115 sistematicidade e __ 280

Cf Categorias esteacuteticas Beleza

PERCEPCcedilAtildeO SENSIacuteVEL 87 84-87

103 106 108 111 163 172 250

acccedilatildeo da alma na __ 64 71 172

194 aisthesis 289 audiccedilatildeo 67 68

82 83 dor 63 70 impressatildeo 85

papel da memoacuteria na __ 82 papel do

juiacutezo interior na __ 80 prazer 63

70 194 195 propriocepccedilatildeo 69 298

sensaccedilatildeo 62 65 70 73 92 194

201 204 309 sensaccedilotildees primaacuterias

187 195 198 270 sensaccedilotildees

secundaacuterias 187 195 270 sensus

communis 78 sentidos corpoacutereos 61

62 64 vestiacutegios da Trindade na __

89 visatildeo 65-66 68 69 74 75 83

Cf Corpo Sentido Interior Sentidos

Corpoacutereos

PRAZER 197 198 199 212 214 258

268 296 321 328 __ e desinteresse

197 266 290 295 297 __ e dever

291 __ esteacutetico 160 193 196 197

204 295 298 __ resultante da

consciecircncia dos estados corporais

198 __-ganho 299 na perspectiva

kantiana 289

QUALIA 267 268 305

RAZAtildeO 174 175 187 196 197 237

242 248 260 287 290 analogon

rationis 288 celeuma do primado da

__ sobre a feacute 120-24 como juiacutez do

sentido interior 81 dualidade __

sensibilidade 291 dualismo ratio

inferior ratio superior 112 113

114 116 123 126 137 198 330

educaccedilatildeo da __ e conversatildeo do olhar

119 intellectus e intellegentia 101

mens 84 olho interior 116 117

oposiccedilatildeo entre sensibilidade e __

309 papel da __ sobre os conteuacutedos

da feacute 122 percepccedilatildeo dos numeri pela

__ 147 vera ratio 114 115 120

Cf Conhecimento Mens Sapiecircncia

Sabedoria

RAZOtildeES 113 115 causas exemplares

108 imutabilidade das __ 112

Cf Forma Ideias

SABEDORIA SAPIEcircNCIA 97 102

104 177 187 212 222 244 245

Cf Conhecimento Razatildeo

SEMELHANCcedilA 226 230 252 __ de

Deus no homem 61 183 __ e

falsidade 251 __ e igualdade 218

__ e imagem 218 229

dissemelhanccedila 218 regio

dissimilitudinis 307 similitudinem

documenta 106

Cf Imagem

SENTIDO INTERIOR 86 114 309

como consciecircncia sub-racional 80

81 como luz da alma 102 distinccedilatildeo

entre __ e sentidos reflexivos 77

funccedilatildeo do __ na percepccedilatildeo sensiacutevel

80 85 paralelismo entre __ e

sentimento primordial 272 relaccedilatildeo

entre __ e memoacuteria 82 87 sensus

communis 78

Cf Percepccedilatildeo Sensiacutevel

SENTIDOS CORPOacuteREOS 69 114

126 212 227 __ no corpo celestial

edeacutenico 74 __ no corpo ressurrecto

73-76 265 __ superiores (visatildeo e

audiccedilatildeo) 68 69 como escravos da

alma 70 como mensageiros da alma

68 defesa agostiniana dos __ 69 70

99 judicium sensus 69 limitaccedilotildees

dos __ 156 mau uso dos __ 252

natildeo reflexividade dos __ 81

necessidade de sujeiccedilatildeo dos __ agrave

razatildeo 70 papel regulador durante a

infacircncia 70 vestiacutegios da razatildeo nos

__ 68 visatildeo 89

Cf Corpo Percepccedilatildeo Sensiacutevel

SIGNO 224 237 254 como marca da

presenccedila de Deus 230 distinccedilatildeo

entre __ e imagem 225 230 signa

naturalia 230 signa propria 224

signa translata 224

380

SISTEMATICIDADE 294 302 __ e

ordem 280 o dispositivo como

alternativa ao sistema 282

parcialidade dos sistemas 278 281

pluralidade filosoacutefica 275-78 razotildees

da assistematicidade no pensamento

agostiniano 273

SPECIES 137 181 306 __e ser 48

articulaccedilatildeo com pulcher 49 como

aparecircncia no processo de recordaccedilatildeo

90 como especificaccedilatildeo de forma 49-50

Cf Forma Beleza

TRINDADE 145 199 244 diferenccedila

entre a __ da alma e a __ divina 219

220 Espiacuterito Santo 88 89 143 144

146 179 184 190 217 estrutura

triaacutedica esteacutetica das criaturas 146

Filho 88 143 145 205 209 215

217 218 memoria intellegentia e

voluntas 219 mens notitia e amor

219 Pai 88 143 145 217 223

Santiacutessima __ 84 88 143 177 184

vestiacutegios da __ na cogitaccedilatildeo 89 91

vestiacutegios da __ na percepccedilatildeo

sensiacutevel 89

UTI-FRUI 158 167 172-73 191 320

328 330 dicotomia acccedilatildeo

contemplaccedilatildeo 188-91

VIRTUDES 120 164 188 197 322

como conteuacutedos da alma 105 feacute

cristatilde 60

VONTADE 186 187 __ e liberdade

187 como attentio ou intentio 186

227

381

IacuteNDICE DE OBRAS DE SANTO AGOSTINHO

Confessionum 19 41 48 79 93 115

130 133 144 153 157 173 185

208 242 257 264 339

Conf I 1 1 186

Conf I 6 10 95

Conf II 4 9 93

Conf III 2 2 257 258

Conf III 2 3 258

Conf III 4 7 138

Conf III 5 9 224

Conf III 6 10 160 209

Conf III 6 11 268

Conf III 10 18 160

Conf IV 13 20 158

Conf IV 15 24 159

Conf IV 15 27 159

Conf IV 16 28 78

Conf IV 16 30 242

Conf V 3 6 98

Conf V 10 18 51

Conf V 10 20 49

Conf V 11 21 49

Conf VI 5 8 224

Conf VI 8 13 259

Conf VII 1 2 49

Conf VII 10 16 46 61 218 307

Conf VII 12 18 46 153

Conf VII 16 22 46

Conf VII 17 23 79 111

Conf VII 20 26 120

Conf VII 21 27 120

Conf VII 9 13 120

Conf X 6 10 49

Conf X 6 8 173

Conf X 6 9 185

Conf X 12 19 93

Conf X 14 21 93 94

Conf X 14 22 93

Conf X 16 24 94

Conf X 16 25 93 94

Conf X 19 12 207

Conf X 20 29 208

Conf X 27 38 174

Conf X 33 49 130

Conf X 34 53 71 260

Conf X 35 55 71 258

Conf X 43 70 49

Conf XI 4 6 44 162 213

Conf XI 4 7 119

Conf XI 9 11 46

Conf XI 10 12 42

Conf XII 6 6 42 45

Conf XII 7 7 47

Conf XII 8 8 42

Conf XII 15 19 49

Conf XII 20 29 49

Conf XII 21 30 49

Conf XIII 9 10 144 178

Conf XIII 11 12 115

Conf XIII 12 13 60

Conf XIII 13 14 60

Conf XIII 31 46 48 190

Conf XIII 32 47 49

Contra Academicos 19 68 78 98 175

339

Contra Acad I 1 1 51

Contra Acad I 2 5 84

Contra Acad I 4 11 99

Contra Acad II 3 7 175

Contra Acad II 5 11 99

Contra Acad III 9 21 99

Contra Acad III 9 26 99

Contra Acad III 11 26 68 99

382

Contra Acad III 17 37 100

Contra epistulam Manichaei quam

vocant fundamenti 19 339

Contra ep fund 36 41 206

Contra Faustum 19 339

Contra Faust XXI 6 140

Contra Faust XXII 52 189

Contra Faust XXII 53 190

Contra Julianum 19 339

Contra Jul IV 14 72 176

Contra Julianum opus imperfectum 19

339

Contra Jul op imp II 68 53

Contra Jul op imp VI 11 187

De anima et ejus origine 19 53 54

339

De an et orig I 4 52

De an et orig I 21 57

De an et orig I 26 54

De beata vita 339

De beata vita 1 1 53

De beata vita 2 10 124

De beata vita 2 8 46

De beata vita 4 34 205

De beata vita 5 5 53

De bono conjugali 19 339

De bono con 16 18 195

De civitate Dei 19 39 41 59 72 129

133 149 166 177 188 243 253

339

De civ Dei I 8 177

De civ Dei I 20 200

De civ Dei II 6 260

De civ Dei II 21 149

De civ Dei IV 21 243

De civ Dei VI 2 138

De civ Dei VIII 4 177

De civ Dei VIII 5 69

De civ Dei VIII 6 180

De civ Dei VIII 7 69 78

De civ Dei IX 4 73

De civ Dei IX 5 73

De civ Dei X 14 61

De civ Dei X 17 61

De civ Dei X 6 61 188

De civ Dei XI 2 84 101

De civ Dei XI 16 69 162

De civ Dei XI 18 156

De civ Dei XI 19 224

De civ Dei XI 23 156

De civ Dei XI 25 168 177

De civ Dei XI 26 99

De civ Dei XI 27 69 80

De civ Dei XI 29 169

De civ Dei XII 3 104

De civ Dei XII 18 143

De civ Dei XIII 21 74

De civ Dei XIII 23 57

De civ Dei XIV 7 72

De civ Dei XIV 10 72

De civ Dei XIV 11 74 266

De civ Dei XIV 17 74

De civ Dei XV 10 150

De civ Dei XV 22 166 170

De civ Dei XVI 9 73

De civ Dei XVII 3 224

De civ Dei XVII 5 224

De civ Dei XVII 14 257

De civ Dei XIX 3 243

De civ Dei XIX 13 188

De civ Dei XX 17 224

De civ Dei XX 21 224

De civ Dei XX 29 265

De civ Dei XX 30 40

De civ Dei XXII 12 59

De civ Dei XXII 14 59

De civ Dei XXII 15 59

De civ Dei XXII 16 58

De civ Dei XXII 17 76

De civ Dei XXII 19 39 58 59 60 149

162 163 195

De civ Dei XXII 19 41 39

De civ Dei XXII 20 58 59

De civ Dei XXII 24 39 137 149 253

De civ Dei XXII 27 55

De civ Dei XXII 28 55

De civ Dei XXII 29 59 75 76

De civ Dei XXII 30 149

De correptione et gratia 19 339

De corr grat 8 17 186

383

De diversis quaestionibus octoginta

tribus 19 215 218 339

De div quaest 83 7 101

De div quaest 83 12 212

De div quaest 83 19 53

De div quaest 83 46 2 107 108 207

De div quaest 83 51 4 217

De div quaest 83 74 216

De div quaest 83 78 245

De div quaest 83 81 2 121

De doctrina christiana 19 27 129 167

170 272 339

De doct christ I 4 4 168

De doct christ I 27 28 170

De doct christ II 11 224

De doct christ II 1 2 230

De doct christ II 2 3 230

De doct christ II 7 9 165

De doct christ II 7 11 165

De doct christ II 10 15 27 224

De doct christ II 12 17 121 224

De doct christ II 17 27 229

De doct christ II 25 38 254

De doct christ II 25 39 254 255

De doct christ II 26 40 255

De doct christ II 30 47 256

De doct christ III 6 10 229

De doct christ III 7 11 229

De doct christ III 9 13 229

De doct christ III 25 35 224

De doct christ IV 2 3 243

De doct christ IV 6 9 224

De doct christ IV 7 15 224

De fide et operibus 19 340

De fide et op 18 33 260

De Genesi ad litteram 19 41 129 340

De Gen ad litt I 19 38 98

De Gen ad litt I 19 40 98

De Gen ad litt III 24 37 149

De Gen ad littVII 20 26 198

De Gen ad litt IV 4 8 143

De Gen ad litt VI 12 22 162

De Gen ad litt VI 2 2 46

De Gen ad litt VII 28 43 52

De Gen ad litt VII 5 7 46

De Gen ad litt VIII 9 17 43

De Gen ad litt IX 14 25 103

De Gen ad litt X 21 37 149

De Gen ad litt XII 16 32 68

De Gen ad litt XII 16 33 83 87

De Gen ad litt XII 19 41 198

De Gen ad litt XII 24 51 103 104

De Gen ad litt XII 25 52 100 104

De Gen ad litt XII 29 27 103

De Gen ad litt XII 31 59 105

De Gen ad litt XII 36 69 105

De Genesi ad litteram imperfectus liber

19 155 340

De Gen ad litt imp I 3 45

De Gen ad litt imp V 20 102

De Gen ad litt imp V 24 102

De Gen ad litt imp V 25 102 155

De Gen ad litt imp XVI 61 217

De Genesi contra Manichaeos 19 41

129 340

De Gen cont Man I 2 3 42

De Gen cont Man I 2 4 46

De Gen cont Man I 3 5 42

De Gen cont Man I 5 9 42

De Gen cont Man I 6 10 43

De Gen cont Man I 7 11 42

De Gen cont Man I 16 26 142 143

De Gen cont Man I 20 31 70

De Gen cont Man I 21 32 141

De Gen cont Man I 25 43 165

De Gen cont Man II 26 40 71

De Gen cont Man II 29 43 160

De gratia et libero arbitrio 19 340

De grat et lib arb 19 40 145

De immortalitate animae 19 48 56

340

De imm an 1 1 56

De imm an 1 2 56

De imm an 2 2 149

De imm an 4 5 56

De imm an 7 12 56

De imm an 8 13 49 56 60

De imm an 9 16 56

De imm an 12 19 57

De imm an 13 20 56

De imm an 13 21 56

De imm an 15 24 56

384

De imm an 16 25 56

De imm an 17 26 52

De libero arbitrio 19 53 54 68 77 79

80 111 129 133 136 18De lib arb

I 1 137 208 248 251 272 274

340

De lib arb I 12 24 55

De lib arb I 12 25 186

De lib arb I 13 27 208

De lib arb II 2 5 73 121

De lib arb II 2 6 121

De lib arb II 3 8 69 78 81

De lib arb II 3 9 81

De lib arb II 4 5 73

De lib arb II 5 12 69

De lib arb II 5 12 69

De lib arb II 6 13 81 84

De lib arb II 6 14 73

De lib arb II 8 20 130

De lib arb II 8 21 137

De lib arb II 8 22 147 150

De lib arb II 8 23 73

De lib arb II 8 24 130 137 150

De lib arb II 9 26 208

De lib arb II 10 29 207

De lib arb II 11 30 73 133

De lib arb II 11 32 73 134

De lib arb II 14 37 112

De lib arb II 14 38 68 112

De lib arb II 15 39 204

De lib arb II 15 40 208

De lib arb II 16 41 134

De lib arb II 16 42 248 250

De lib arb II 16 43 251

De lib arb II 16 44 135

De lib arb II 17 45 212

De lib arb III 3 7 188

De lib arb III 5 12 80

De lib arb III 5 13 114

De lib arb III 5 17 114 115

De lib arb III 20 55 53

De lib arb III 20 56 53 55

De lib arb III 20 57 54

De lib arb III 20 58 54

De lib arb III 21 59 55

De Magistro 19 27 205 272 274 340

De Mag 3 5 225

De Mag 3 6 225

De Mag 10 29 225

De Mag 10 30 225

De Mag 11 38 205

De Mag 14 46 205

De musica 19 63 64 66 67 69 80 82

111 129 130 132 136 138 140

148 150 180 194 225 235 236

260 340

De mus I 2 2 129 148 257

De mus I 2 3 148 249 260

De mus I 3 4 148 194

De mus I 3 4 257

De mus I 4 5 260

De mus I 4 6 240

De mus I 4 9 66

De mus I 6 11 260

De mus I 6 12 260

De mus I 11 18 151

De mus I 11 19 150

De mus II 4 4 150

De mus II 5 7 150

De mus II 6 10 150

De mus II 7 14 150

De mus II 9 16 150

De mus II 10 18 150

De mus II 11 21 150

De mus II 13 24 150

De mus III 1 2 150

De mus III 2 4 150

De mus V 17 56 61

De mus VI 4 6 64

De mus VI 4 7 64 129

De mus VI 5 10 63 66 80

De mus VI 5 13 58

De mus VI 5 15 64

De mus VI 5 8 62

De mus VI 5 9 63 64 70

De mus VI 7 18 69

De mus VI 8 21 82 83 84

De mus VI 8 22 91

De mus VI 9 23 69 82 112

De mus VI 9 24 129 257

De mus VI 10 27 69

De mus VI 11 29 130 156 196

De mus VI 11 30 196

De mus VI 11 32 225 226

De mus VI 13 38 196

De mus VI 13 39 71

De mus VI 14 46 131

385

De mus VI 17 56 137 143 147 154

De mus VI 17 57 151

De mus VI 17 58 161 181

De natura boni 19 140 154 155 340

De nat boni 3 140

De nat boni 14 160

De nat boni 16 154 155

De nat boni 22 143

De nat boni 25 46

De ordine 19 41 129 137 138 156

236 240 242 340

De ord I 1 2 156

De ord I 2 5 138

De ord II 5 16 145 177

De ord II 11 30 84

De ord II 11 31 62

De ord II 11 32 68

De ord II 11 33 68

De ord II 12 35 138 236 240

De ord II 12 36 236

De ord II 13 38 236

De ord II 14 39 68 237

De ord II 14 40 238

De ord II 14 41 238

De ord II 15 42 68 137 196 238

De ord II 15 43 239

De ord II 16 44 239 242

De ord II 19 49 241

De ord II 20 54 240

De quantitate animae 19 64 65 67

163 165 256 340

De quant an 14 23 57

De quant an 22 38 198

De quant an 23 42 65

De quant an 23 43 66

De quant an 25 47 62

De quant an 25 48 72

De quant an 29 57 70

De quant an 30 59 64

De quant an 30 60 66

De quant an 32 69 62

De quant an 33 70 163

De quant an 33 71 82

De quant an 33 72 256

De quant an 34 77 52

De quant an 36 81 163

De Trinitate 19 68 85 86 87 104

106 109 110 112 113 124 129

141 143 184 219 244 269 340

De Trin I 1 3 124

De Trin I 2 4 124

De Trin I 6 12 145

De Trin I 6 9 145

De Trin II 5 9 61

De Trin III 4 9 43

De Trin III 9 16 141

De Trin IV 2 4 149 150 214

De Trin IV 15 20 183

De Trin IV 16 21 98

De Trin IV 18 24 61

De Trin IV 20 27 184

De Trin V 2 3 78

De Trin V 7 8 78

De Trin V 15 16 144

De Trin VI 5 7 146

De Trin VI 10 11 61 143 245

De Trin VI 10 12 143 211 244

De Trin VII 4 7 62

De Trin VII 6 11 145

De Trin VII 6 12 217

De Trin VIII 3 4 207 208

De Trin VIII 4 5 69

De Trin VIII 4 6 178

De Trin VIII 4 7 226

De Trin VIII 6 9 225

De Trin IX 219

De Trin IX 4 5 269

De Trin IX 5 8 88

De Trin IX 6 10 105 106 211

De Trin IX 6 11 69 106

De Trin IX 12 18 88

De Trin X 1 1 178

De Trin X 5 7 87 98

De Trin X 8 11 97 186

De Trin XI 1 1 107

De Trin XI 2 3 85 86

De Trin XI 2 4 66

De Trin XI 2 5 85 87 88 89

De Trin XI 3 6 89 90

De Trin XI 3 7 89

De Trin XI 5 8 90 93

De Trin XI 5 9 89

De Trin XI 6 10 90

De Trin XI 7 12 94

De Trin XI 8 12 91

De Trin XI 8 15 84

386

De Trin XI 9 16 92

De Trin XI 10 17 91 226

De Trin XII 1 1 104 114

De Trin XII 2 2 69 104 112 180

De Trin XII 3 3 113 114 115

De Trin XII 8 13 114

De Trin XII 12 17 114

De Trin XII 15 24 101 102 109 110

De Trin XII 15 25 109

De Trin XIII 1 3 123

De Trin XIII 4 7 124 178

De Trin XIII 5 8 125

De Trin XIII 5 24 91

De Trin XIII 6 9 125

De Trin XIII 19 24 125 185

De Trin XIV 4 6 60

De Trin XIV 8 11 123

De Trin XIV 11 14 178

De Trin XIV 14 18 178

De Trin XIV 15 21 100 178 184

De Trin XIV 16 22 60

De Trin XIV 17 23 181

De Trin XV 2 2 121

De Trin XV 6 10 219

De Trin XV 7 11 62 84

De Trin XV 8 14 218 220

De Trin XV 9 15 221

De Trin XV 9 16 218 221

De Trin XV 10 18 221

De Trin XV 10 19 222

De Trin XV 10 20 218

De Trin XV 11 20 221

De Trin XV 14 23 222 223

De Trin XV 15 25 223

De Trin XV 16 26 224

De Trin XV 17 29 217

De Trin XV 21 41 144

De Trin XV 22 42 219

De Trin XV 23 43 219

De Trin XV 24 44 218

De vera religione 20 48 119 129 152

240 274 340

De vera relig 11 21 40

De vera relig 17 34 45

De vera relig 18 36 40 45

De vera relig 30 54 240

De vera relig 30 55 152

De vera relig 30 56 205 207 208

De vera relig 31 58 205

De vera relig 32 57 111

De vera relig 32 58 111

De vera relig 32 59 119 196 197

De vera relig 32 60 119

De vera relig 33 61 71 252

De vera relig 33 62 68 71

De vera relig 34 64 212

De vera relig 36 67 70 71 252

De vera relig 40 75 154

De vera relig 40 76 155

De vera relig 41 77 152

De vera relig 49 94 204

De vera relig 49 95 200

De vera relig 34 62 252

De vera relig 54 106 69

Enarrationes in Psalmos 20 340

En Psa XLIV 3 210

En Psa XXXI 9 101

En PsaIII 3 101

En PsaVIII 6 121

Epistulae 20 340

Ep 3 4 149 213

Ep 26 139

Ep 26 2 140

Ep 40 4 7 60

Ep 55 11 21 252

Ep 101 2 242

Ep 120 1 3 121

Ep 120 2 8 122

Ep 137 2 6 66

Ep 137 2 8 66 67

Ep 166 52 54 55

Ep 166 2 4 63

Ep 166 3 7 55

Ep 166 4 8 55

Ep 166 9 27 110

Ep 7 1 1 90 225

Ep 7 2 4 226

Ep 7 3 6 91

Ep 7 5 13 58

In Iohannis epistulam ad Parthos

tractatus 20 340

In Iohan ep Parthos IV 9 152

In Iohannis evangelium tractatus 20

340

In Iohan Evang tract I 13 46

387

In Iohan Evang tract XXIX 6 120

In Iohan Evang tract XXXII 3 162

Quaestionum in Heptateuchum 20 340

Quaest Hept IV 16 218

Quaest Hept V 4 217

Retractationum 20 109 175 203 235

340

Retr I 1 2 80

Retr I 1 3 176 203

Retr I 1 4 109

Retr I 3 2 242

Retr I 4 4 109

Retr I 6 235

Retr I 26 217

Retr II 15 2 226

Soliloquiorum 20 108 109 206 242

340

Sol I 1 3 105

Sol I 2 7 175

Sol I 4 12 84

Sol I 6 12 80 106 124

Sol I 8 15 206

Sol I 12 21 67

Sol I 13 23 106 117 211

Sol I 14 25 211

Sol I 14 26 211

Sol II 5 7 250

Sol II 6 10 251

Sol II 6 11 251

Sol II 8 15 251

Sol II 10 18 250

Sol II 15 29 252

Sol II 18 32 242

Sol II 20 35 109

Page 2: DO ESCONDIDO Santo Agostinho e os limites da estéticasintomática não de uma limitação do pensamento estético de Santo Agostinho, mas de uma visão aprisionada no tempo da estética

UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

DO ESCONDIDO

Santo Agostinho e os limites da esteacutetica

Tese orientada pela Professora Doutora Maria Leonor Lamas Xavier

e pelo Professor Doutor Carlos Joatildeo Correia

Ana Rita de Almeida Arauacutejo Francisco Ferreira

DOUTORAMENTO EM FILOSOFIA

ESTEacuteTICA E FILOSOFIA DA ARTE

2012

Esta tese foi realizada com o apoio da Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e Tecnologia e da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian

Resumo

O tema desta dissertaccedilatildeo eacute a esteacutetica agostiniana e a abordagem que proponho

parte do problema da secundarizaccedilatildeo deste autor na aacuterea da esteacutetica com base nas

criacuteticas agrave ausecircncia de sistema ao caraacutecter esparso das consideraccedilotildees sobre a beleza e ao

natildeo desenvolvimento de uma filosofia da arte Essa marginalizaccedilatildeo a meu ver eacute

sintomaacutetica natildeo de uma limitaccedilatildeo do pensamento esteacutetico de Santo Agostinho mas de

uma visatildeo aprisionada no tempo da esteacutetica ndash enquanto disciplina enquanto ramo

autoacutenomo da filosofia institucionalmente reconhecido Nesta senda procedo a uma

anaacutelise dos eixos teoacutericos que no pensamento agostiniano estruturam a sua

mundividecircncia esteacutetica e que natildeo apenas se enquadram numa perspectiva alargada deste

ramo disciplinar como contribuem para clarificar as suas valecircncias A visatildeo tradicional

do universo da anaacutelise conceptual esteacutetica eacute assim problematizada atraveacutes de uma

revisitaccedilatildeo agrave esteacutetica agostiniana para laacute das consideraccedilotildees acerca da arte e da mera

teofania atraveacutes do belo

Pelo conceito de numerus Santo Agostinho demonstra subscrever uma

concepccedilatildeo racional da apreciaccedilatildeo esteacutetica que todavia natildeo lhe predetermina um caraacutecter

objectivo O seu neoplatonismo cristatildeo permite-lhe perspectivar a relaccedilatildeo sensiacutevel como

uma propedecircutica para o reconhecimento da inteligibilidade divina que ordena o criado

e portanto para o alcance contemplativo do Criador - Beleza tatildeo antiga e tatildeo nova O

aperfeiccediloamento da sensibilidade enquanto modo de relaccedilatildeo e de valoraccedilatildeo eacute

traduziacutevel na justeza do ordo amoris cujo caraacutecter criterioso ancora a liberdade

individual agraves leis da verdade eterna revelando quer um paralelismo entre as esteses e o

conhecimento intelectual quer um enlace entre a esfera da acccedilatildeo humana e os juiacutezos das

percepccedilotildees sensiacuteveis ou por outras palavras entre a eacutetica e a esteacutetica

No seio do pensamento agostiniano a transversalidade da esteacutetica e o tipo de

estamento a que a experiecircncia sensiacutevel deve predispor parecem tornar mais proacuteximo das

actuais correntes esteacuteticas o filoacutesofo africano do que os filoacutesofos iluministas aos quais

devemos o desenvolvimento da aacuterea disciplinar em questatildeo

Palavras-chave

Belo Esteacutetica Filosofia Numerus Santo Agostinho

Reacutesumeacute

Le thegraveme de la preacutesente dissertation est lrsquoestheacutetique augustinienne et lrsquoangle

drsquoapproche que je propose a pour point de deacutepart le problegraveme de la mise au second plan de

cet auteur dans le domaine de lrsquoestheacutetique en prenant appui sur les critiques de lrsquoabsence de

systegraveme et du non deacuteveloppement drsquoune philosophie de lrsquoart Cette marginalisation est

selon moi symptomatique non pas drsquoune limitation de la penseacutee estheacutetique de Saint

Augustin mais drsquoune vision prisonniegravere de lrsquohistoire de lrsquoestheacutetique ndash en tant que

discipline en tant que branche autonome de la philosophie institutionnellement

reconnue En empruntant cette voie je procegravede agrave une analyse des axes theacuteoriques qui

dans la penseacutee augustinienne structurent sa vision estheacutetique du monde et qui nrsquoentrent

pas seulement dans le cadre drsquoune perspective eacutelargie de cette branche disciplinaire

mais qui contribuent eacutegalement agrave clarifier leurs validiteacutes La vision traditionnelle de

lrsquounivers de lrsquoanalyse conceptuelle estheacutetique est ainsi probleacutematiseacutee en revisitant

lrsquoestheacutetique augustinienne par-delagrave les consideacuterations autour de lrsquoart et drsquoune simple

theacuteophanie agrave travers le beau

Par le concept de numerus Saint Augustin reacutevegravele son adheacutesion agrave une conception

rationnelle de lrsquoappreacuteciation estheacutetique qui ne lui confegravere pas toutefois un caractegravere

objectif Son neacuteoplatonisme chreacutetien lui permet drsquoenvisager la relation sensible comme

propeacutedeutique pour la reconnaissance de lrsquointelligibiliteacute divine qui ordonne le creacuteeacute et par

conseacutequent pour aboutir agrave la contemplation du Creacuteateur ndash Beauteacute si ancienne et si nouvelle

Le perfectionnement de la sensibiliteacute en tant que mode de relation et de valorisation se

traduit par la justesse de lrsquoordo amoris dont le caractegravere pertinent ancre la liberteacute

individuelle dans les lois de la veacuteriteacute inteacuterieure reacuteveacutelant tantocirct un paralleacutelisme entre les

estheacutetismes et le savoir intellectuel tantocirct un lien entre la sphegravere de lrsquoaction humaine et les

jugements des perceptions sensibles ou en drsquoautres mots entre lrsquoeacutethique et lrsquoestheacutetique

Au sein de la penseacutee augustinienne la transversaliteacute de lrsquoestheacutetique et le mode

existentiel auquel lrsquoexpeacuterience sensible doit preacutedisposer semblent rapprocher davantage

des actuels courants estheacutetiques le philosophe africain que les philosophes des Lumiegraveres

auxquels nous devons le deacuteveloppement du champ disciplinaire dont il est ici question

Mots-cleacutes

Beau Estheacutetique Philosophie Numerus Saint Augustin

IacuteNDICE GERAL

Agradecimentos 15

Abreviaturas 19

Introduccedilatildeo 23

Parte I

A esteacutetica de Santo Agostinho

1 Os corpos e os sentidos

11 ndash Materia moles e forma species 37

12 ndash Os fundamentos antropoloacutegicos da esteacutetica agostiniana 51

13 ndash A alma e os sentidos corpoacutereos 62

14 ndash O sentido interior e a memoacuteria 77

2 O potencial cognoscitivo da experiecircncia esteacutetica

21 ndash Os fundamentos gnosioloacutegicos da atitude esteacutetica 97

211 ndash O papel da razatildeo na percepccedilatildeo sensiacutevel 97

212 ndash A propedecircutica do olhar e a aprendizagem da razatildeo com vista agrave beata vita 113

22 ndash Uma esteacutetica expressa em termos matemaacuteticos 126

2 2 1 ndash Numerus pondus e mensura 126

2 2 2 ndash Unidade multiplicidade e ordem 145

3 Gradaccedilotildees de ser de beleza e dos efeitos da percepccedilatildeo do belo

31 ndash Do pulchrum aptum ao par conceptual uti frui 157

32 ndash Na raia do erotismo ndash da philocalia agrave philosophia 169

33 ndash Atitude esteacutetica como processo relacional introspectivo e intencional 180

4 A relaccedilatildeo entre beleza e verdade

41 ndash Acccedilatildeo perceptiva e juiacutezo racional 193

42 ndash A verdade como criteacuterio do juiacutezo esteacutetico 204

43 ndash Imagem signo e alegoria 215

Parte II

O lugar da esteacutetica agostiniana na esteacutetica contemporacircnea

1 Teraacute Santo Agostinho uma filosofia da arte

11 ndash As trecircs acepccedilotildees da palavra ldquoarterdquo artes ars e ars 235

12 ndash Santo Agostinho e as artes como hoje as entendemos 247

2 Um sistema esteacutetico agostiniano

21 ndash Por que razatildeo se deve falar sem medo numa esteacutetica agostiniana 263

22 ndash Sistematicidade e esteacutetica agostiniana 273

3 De que modo Santo Agostinho nos leva a repensar a esteacutetica

31 ndash O que foi e o que eacute a esteacutetica 285

32 ndash Repensando a esteacutetica a partir de Santo Agostinho 303

321 ndash O potencial cognoscitivo da experiecircncia esteacutetica 309

322 ndash Emoccedilotildees esteacuteticas 314

323 ndash A questatildeo do valor e a afinidade entre os domiacutenios esteacutetico e eacutetico 320

Conclusatildeo 325

Bibliografia

I Obras de Santo Agostinho 339

II Textos antigos referidos 343

III Bibliografia especiacutefica 345

IV Outros estudos sobre Santo Agostinho 353

V Bibliografia geral 361

Iacutendices

Iacutendice onomaacutestico 371

Iacutendice temaacutetico 375

Iacutendice de obras de Santo Agostinho 381

15

AGRADECIMENTOS

A originalidade pressuposta numa tese de doutoramento natildeo significa que seja

fruto de um trabalho autoacutenomo e isolado do seu autor A aparente auto-suficiecircncia por

detraacutes do meu projecto de investigaccedilatildeo doutoral nutriu-se do acompanhamento que

ambos os meus orientadores foram dedicando ao que escrevi das conversas informais

que mantive com outros Professores das opiniotildees e incentivos dos colegas e da

compreensatildeo e suporte que a estrutura familiar sempre me proporcionou Seria

indelicado e mesmo injusto natildeo agradecer a todas as pessoas que fizeram parte desta

fase do meu percurso acadeacutemico e que a seu modo contribuiacuteram para os conteuacutedos da

minha tese A responsabilidade pelas incorrecccedilotildees e incompletude cabe-me

exclusivamente mas o meacuterito por aquilo que de novo e de interessante esta tese trouxer

ultrapassa-me havendo que reconhecer o papel de cada amigo ou mentor

Desde logo tenho de expressar a mais profunda gratidatildeo agrave Professora Doutora

Maria Leonor Xavier que meticulosamente seguiu o desenvolvimento de cada

subcapiacutetulo da dissertaccedilatildeo sugerindo novas abordagens apontando incongruecircncias ou

imprecisotildees norteando leituras e sempre evidenciando um justo equiliacutebrio entre as

palavras de estiacutemulo e as de criacutetica A preocupaccedilatildeo que teve em integrar a minha

contribuiccedilatildeo acadeacutemica para laacute do acircmbito da tese foi de grande importacircncia e permitiu-

-me crescer como investigadora Eacute sobretudo o seu exemplo de seriedade competecircncia

e dedicaccedilatildeo profissional que reterei como meta a atingir

Ao Professor Doutor Carlos Joatildeo Correia agradeccedilo a preocupaccedilatildeo e o interesse

com que sempre segue o percurso dos seus orientandos A constante disponibilidade e

generosidade demonstradas ao longo destes anos de trabalho ultrapassaram o tradicional

acompanhamento de um orientador permitindo-me beneficiar de uma rara combinaccedilatildeo

entre a exigecircncia em termos cientiacuteficos e a rectitude em termos humanos O bom-

-humor a paciecircncia e a confianccedila com que foi respondendo agraves minhas solicitaccedilotildees

tornaram bastante mais faacutecil o meu percurso

Natildeo posso deixar de referir o quanto beneficiei da erudiccedilatildeo do Professor Doutor

Costa Macedo da visatildeo alargada da esteacutetica que as aulas da Professora Doutora Adriana

Veriacutessimo Serratildeo me proporcionaram e da elegacircncia filosoacutefica com que a Professora

Doutora Maria Luiacutesa Ribeiro Ferreira sempre estrutura as suas apresentaccedilotildees Ao

16

Professor Doutor Leonel Ribeiro dos Santos agrave Filipa Seabra agrave Carla Simotildees e agrave D

Filomena da Piedade agradeccedilo o caloroso acolhimento com que brindam todos os

alunos e investigadores de Filosofia atendendo agraves nossas necessidades e facilitando ao

maacuteximo o nosso trabalho pela agilizaccedilatildeo de processos paralelos que sempre influem na

pesquisa pela logiacutestica e pela disponibilizaccedilatildeo de materiais e espaccedilos que criam o

ambiente propiacutecio agrave investigaccedilatildeo

O aspecto mais positivo destes anos que dediquei ao projecto de doutoramento

foi a amizade que estabeleci com vaacuterios dos meus colegas investigadores Pude sempre

partilhar com eles as minhas duacutevidas beneficiei sempre do seu interesse pelo meu

trabalho pude contar com as suas palavras de incentivo com a sugestatildeo de livros e

artigos com a disponibilidade para resolverem os meus problemas burocraacuteticos na

secretaria da FLUL e pude contar com a companhia deles em momentos de lazer que soacute

vieram beneficiar a escrita da tese Assim natildeo posso deixar de agradecer agrave Teresa

Quirino ao Tiago Mesquita Carvalho agrave Ana Nolasco agrave Ana Cravo agrave Filipa Afonso agrave

Inecircs Bolinhas ao Francisco Ribeiro Soares e agrave sua esposa Isabel

Para aleacutem destes amigos feitos no acircmbito do doutoramento outros houve de

longa data que tambeacutem contribuiacuteram directamente para que pudesse levar a bom porto

o meu projecto de investigaccedilatildeo Qualquer agradecimento seraacute sempre insuficiente face

ao apoio e agrave boa vontade da Ilda e da Ana Salomeacute que tantas vezes me acolheram nas

deslocaccedilotildees a Lisboa ou agraves atenccedilotildees da Cristina de Melo sempre a par das novidades

editoriais acerca de Santo Agostinho e cujo entusiasmo e confianccedila face ao meu

trabalho frequentemente suplantavam o meu proacuteprio empenho Agrave Sandra Lourenccedilo o

meu bem-haja pela constacircncia da sua amizade e pelos afagos ao ego que tantas vezes

me proporcionou

O facto de deixar a famiacutelia para o fim em nada reflecte um decreacutescimo na ordem

de importacircncia que atribuo ao seu papel no meu percurso Aos meus pais e irmatildeo

agradeccedilo a forccedila o carinho e a estabilidade necessaacuterios para suplantar os momentos de

dificuldade que surgiram durante a redacccedilatildeo da tese Agrave minha cadela Fideacutelia agradeccedilo a

companhia que fez durante as muitas horas que passou debaixo da minha secretaacuteria e os

passeios que me obrigou a dar juntamente com o Castanho e com o Rufias propiciando

um saudaacutevel distanciamento do computador Por uacuteltimo agradeccedilo ao meu companheiro

Paulo pela compreensatildeo e paciecircncia que sempre demonstrou todas as vezes que roubei

o tempo que lhe deveria ser dedicado a favor desta dissertaccedilatildeo

19

ABREVIATURAS

Conf Confessionum

Contra Acad Contra Academicos

Contra ep fund Contra epistulam Manichaei quam vocant fundamenti

Contra Faust Contra Faustum

Contra Jul Contra Julianum

Contra Jul op imp Contra Julianum opus imperfectum

De an et orig De anima et ejus origine

De bono con De bono conjugali

De civ Dei De civitate Dei

De corr grat De correptione et gratia

De div quaest 83 De diversis quaestionibus octoginta tribus

De doct christ De doctrina christiana

De fide et op De fide et operibus

De grat et lib arb De gratia et libero arbitrio

De Gen ad litt De Genesi ad litteram

De Gen ad litt imp De Genesi ad litteram imperfectus liber

De Gen cont Man De Genesi contra Manichaeos

De Imm An De immortalitate animae

De lib arb De libero arbitrio

De Mag De Magistro

De mus De musica

De nat boni De natura boni

De quant an De quantitate animae

De ord De ordine

De Trin De Trinitate

20

De vera relig De vera religione

En Psa Enarrationes in Psalmos

Ep Epistulae

In Iohan ep Parthos In Iohannis epistulam ad Parthos tractatus

In Iohan Evang tract In Iohannis evangelium tractatus

Quaest Hept Quaestionum in Heptateuchum

Retr Retractationum

Sol Soliloquiorum

Plotino

En Eneacuteadas

Outra

REAug Revue d Etudes Augustiniennes et Patristiques

INTRODUCcedilAtildeO

25

A abordagem agrave esteacutetica agostiniana implica ao niacutevel dos conceitos um triplo

transporte em primeiro lugar entre liacutenguas jaacute que os textos a analisar estatildeo em Latim

em segundo lugar entre tempos visto terem sido escritos haacute dezassete seacuteculos e por

fim entre ramos filosoacuteficos uma vez que no tempo de Santo Agostinho a esteacutetica natildeo

constituiacutea ainda um ramo autoacutenomo da filosofia e aquilo que podemos considerar como

sendo o seu pensamento esteacutetico encontra-se disseminado entre as outras problemaacuteticas

filosoacuteficas que desenvolve Este triplo transporte torna necessaacuteria uma perspectivaccedilatildeo

filoloacutegica preacutevia sobre a relaccedilatildeo da linguagem com o tempo e com os contextos de

forma a justificar a pertinecircncia da leitura contemporacircnea sobre a esteacutetica agostiniana

que propomos

Para aleacutem de ser uma disciplina a esteacutetica eacute tambeacutem um conceito e um conceito

eacute em primeiro lugar um nome que usamos para designar os fenoacutemenos e os objectos

que integram as nossas vivecircncias Um conceito eacute pois uma delimitaccedilatildeo uma fronteira

que estabelecemos face a um determinado nuacutecleo de representaccedilotildees mentais Eacute

importante salientar que essa delimitaccedilatildeo eacute sinuosa natildeo eacute estaacutevel nem definitiva

Inevitavelmente as fronteiras entre conceitos interpenetram-se partilhando espaccedilos

proxeacutemicos alargados ndash por vezes natildeo sabemos mesmo onde situar essas fronteiras

reconhecendo apenas a dinacircmica que estabelecem com outros conceitos circunjacentes

Este eacute o caso da esteacutetica Soacute no seacuteculo XVIII com Baumgarten se deu nome ao nuacutecleo

constituiacutedo pelas consideraccedilotildees acerca do sentimento do belo e ao qual foi feito um

casamento imediato com outro nuacutecleo ndash o da arte Esse casamento ainda que tenha

ampliado de forma bastante legiacutetima o territoacuterio da esteacutetica tem constituiacutedo a nosso

ver uma prisatildeo para a disciplina tamanha tem sido a confusatildeo entre a abrangecircncia dos

limites da esteacutetica e os da filosofia da arte

Na verdade a histoacuteria da esteacutetica tem sido dominada pela questatildeo das fronteiras

que delimitam o seu campo de estudo Sendo uma disciplina recente e em maturaccedilatildeo

muitos dos universos que no passado natildeo eram abarcados pelo domiacutenio da esteacutetica

vecircem-se hoje no seu fulcro No futuro essa abrangecircncia seraacute ainda maior Associar o

26

reformular das fronteiras da esteacutetica ao constante reformular das fronteiras da arte eacute uma

visatildeo simplista e redutora do fenoacutemeno A esteacutetica tem vindo a ganhar terrenos que

fazem parte da eacutetica da ontologia da epistemologia ndash com a diferenccedila relativamente a

estes ramos filosoacuteficos de natildeo ter ainda o seu objecto claramente definido Mas natildeo eacute

por se desconhecer a linha de demarcaccedilatildeo do campo e do objecto de estudo da esteacutetica

que se torna impossiacutevel reflectir sobre os fenoacutemenos esteacuteticos e sobre as possibilidades

e limites de um discurso que os descreva (e que tambeacutem a constitui como disciplina)

Para abordar a esteacutetica agostiniana natildeo nos podemos reportar a um quadro

conceptual esteacutetico do seacuteculo IV porque tal quadro eacute inexistente ndash haacute portanto que

delimitar dentro das temaacuteticas de base do pensamento agostiniano os nuacutecleos de

abordagem que poderatildeo encontrar lugar num quadro conceptual esteacutetico

contemporacircneo Nas diferentes obras de Santo Agostinho eacute possiacutevel encontrar

passagens esparsas sobre a relaccedilatildeo entre a philosophia e a philocalia passagens sobre as

faculdades sensitivas sobre os criteacuterios daquilo que por outras palavras eacute o juiacutezo

esteacutetico sobre a sua intencionalidade sobre o valor cognoscitivo do belo e mesmo sobre

as implicaccedilotildees eacuteticas da fruiccedilatildeo Nos escritos agostinianos eacute tambeacutem possiacutevel encontrar

pistas quanto agrave subjectividade da experiecircncia esteacutetica e sobre o seu caraacutecter relacional

Claro que a transposiccedilatildeo dos conceitos agostinianos para um quadro conceptual esteacutetico

contemporacircneo natildeo pode ser feita arbitrariamente Tal questatildeo impotildee voltar aos

transportes referidos no iniacutecio deste texto ndash impotildee portanto a questatildeo da traduccedilatildeo

enquanto exerciacutecio de deslocaccedilatildeo do pensamento

Para a filosofia a questatildeo da traduccedilatildeo natildeo poder ser um assunto perifeacuterico e haacute

que assumir a necessidade de problematizar as tradiccedilotildees de recepccedilatildeo de textos antigos

O caso agostiniano eacute flagrante Actualmente face agrave maioria das traduccedilotildees e dos estudos

que dispomos sobre os textos de Santo Agostinho tendemos a consideraacute-los

conservadores quando na verdade no seu contexto de origem tais escritos eram quase

subversivos A sobriedade da linguagem que hoje parece revestir as suas obras

corresponde pouco ao tom crepuscular e violento do latim agostiniano ndash um latim que jaacute

natildeo obedece aos cacircnones gramaticais dos claacutessicos pelos quais Santo Agostinho foi

influenciado (Ciacutecero Virgiacutelio) e que tornava os seus escritos semanticamente

inovadores e estilisticamente muito complexos O idiolecto agostiniano eacute iroacutenico

angustiado por vezes sensual e por vezes ofensivo Os muitos seacuteculos de recepccedilatildeo dos

seus textos foram polindo tais asperezas e o seu caraacutecter audacioso perdeu-se O que

estaacute em causa natildeo eacute apenas o estilo literaacuterio pois do mesmo modo que natildeo existem

27

conteuacutedos transmissiacuteveis sem expressatildeo que os veicule tambeacutem natildeo existe expressatildeo

que natildeo veicule conteuacutedos Havendo perda de expressatildeo haacute perda de conteuacutedos

Os conceitos abordados nos textos antigos chegam aos nossos dias com perdas

nem sempre oacutebvias relativamente ao contexto de origem Os conceitos evoluem por

heterogenia e o seu percurso histoacuterico vai implicando diferentes circunscriccedilotildees e

intersecccedilotildees de valor significaccedilatildeo e intenccedilatildeo O ideal seria que os conceitos dos textos

antigos chegassem ateacute noacutes acompanhados pela respectiva estrutura diacroacutenica ndash

acompanhados por todas as especificidades do percurso histoacuterico do seu emprego As

alteraccedilotildees que os conceitos vatildeo sofrendo coincidem muitas vezes com as mudanccedilas de

episteme As associaccedilotildees conceptuais numa cultura ou numa liacutengua rumam em

diferentes direcccedilotildees noutra A grande questatildeo eacute que a recepccedilatildeo dos textos antigos eacute

sempre indirecta requerendo a mediaccedilatildeo de um lance hermenecircutico O que recebemos

tem que fazer sentido no nosso contexto de recepccedilatildeo sem perder o sentido intencionado

pelo contexto de origem

O proacuteprio Santo Agostinho deixou algumas coordenadas em relaccedilatildeo a estas

questotildees pois pela exegese tambeacutem ele se confrontou com a necessidade de interpretar

textos que natildeo lhe eram coevos e que natildeo podiam ou natildeo deviam ser interpretados

literalmente Em De Doctrina Christiana tal como jaacute havia enunciado em De Magistro

afirma que a linguagem eacute um sistema de sinais Muitos dos sinais presentes nos textos

tecircm sentidos ambiacuteguos ou desconhecidos (ignotis aut ambiguis signis)1 porque satildeo

metafoacutericos (signa translata)2 mas todos satildeo significantes Ao abordar a interpretaccedilatildeo

dos sinais metafoacutericos Santo Agostinho natildeo soacute admite a possibilidade de significados

muacuteltiplos como sugere que pode ser impossiacutevel determinar a intenccedilatildeo original que os

determinou e admite a possibilidade de futuras exegeses poderem extrair significados

legiacutetimos para aleacutem das intenccedilotildees originais No De doctrina christiana Santo

Agostinho reconhece ainda o caraacutecter convencional das palavras e antecipa as

comunidades sociolinguiacutesticas ao referir que a diferenciaccedilatildeo das diversas liacutenguas

humanas resulta de diferentes convenccedilotildees (instituta hominum)3

1 De doct christ II 10 15

2 Ibid

3 De doct christ II 24 37 - II 25 40

28

A abordagem agrave esteacutetica agostiniana que se propotildee nesta dissertaccedilatildeo parte de um

problema a secundarizaccedilatildeo deste autor na aacuterea da esteacutetica com base em trecircs criacuteticas

principais a) a ausecircncia de sistema b) o natildeo confinamento das suas consideraccedilotildees

esteacuteticas e c) a ausecircncia de uma filosofia da arte Essa marginalizaccedilatildeo a nosso ver eacute

sintomaacutetica natildeo de uma limitaccedilatildeo do pensamento esteacutetico de Santo Agostinho mas de

uma visatildeo aprisionada no tempo da esteacutetica ndash enquanto disciplina enquanto ramo

autoacutenomo da filosofia institucionalmente reconhecido Assim esta proposta tem um

caraacutecter biacutefido por um lado intenta a reabilitaccedilatildeo de um pensamento esteacutetico medieval

e por outro lado problematiza o universo contemporacircneo da anaacutelise conceptual

esteacutetica

A reabilitaccedilatildeo da esteacutetica agostiniana natildeo passa pela tentativa de lhe reconstituir

o tal sistema esteacutetico pelo menos natildeo na acepccedilatildeo tradicional dos termos mas passa sim

por reequacionar as valecircncias do campo de estudos delimitado pela esteacutetica e pela

demonstraccedilatildeo atraveacutes de uma leitura contemporacircnea do pensamento esteacutetico

agostiniano de que a marginalidade imputada natildeo corresponde agrave adequaccedilatildeo das

especificidades de tal pensamento agrave disciplina em questatildeo

O estudo da esteacutetica medieval eacute sobretudo dominado pela figura de S Tomaacutes de

Aquino muito graccedilas ao contributo de Umberto Eco que na deacutecada de 50 do seacuteculo

passado lhe consagrou a sua tese de doutoramento4 Nessa obra seminal Eco afirmava

ser seu intento explorar cada conceito agrave luz das respectivas circunstacircncias histoacutericas

situando os textos no seu tempo original pois soacute assim poderia aceder agrave sua ldquoverdaderdquo

A nossa preocupaccedilatildeo em reconhecer um nuacutecleo teoacuterico perfeitamente delimitaacutevel

apesar do seu caraacutecter esparso no seio da obra agostiniana eacute em tudo paralela ao

propoacutesito de Eco relativamente a S Tomaacutes poreacutem em termos metodoloacutegicos natildeo

poderiacuteamos ser mais discordantes Obviamente natildeo descartamos o enquadramento

histoacuterico dos conceitos ou daquilo que eacute encerrado pelos conceitos mesmo antes destes

serem formados ndash coisa aliaacutes frequente quando se lida com a esteacutetica ndash mas assumimos

especificamente o Presente como contexto de ancoragem desse trabalho de

interpretaccedilatildeo

4 Umberto Eco Il Problema Esteacutetico in Tommaso drsquoAquino 2ordf ed Milano Bompiani 1998

29

Hannah Arendt entende por ldquointerpretarrdquo o acto de tornar expliacutecito aquilo que

Santo Agostinho apenas diz implicitamente5 Eacute precisamente assim que nos lanccedilamos

sem medo numa estruturaccedilatildeo de nuacutecleos de anaacutelise que congregam vaacuterias temaacuteticas

desenvolvidas por Santo Agostinho a propoacutesito de questotildees que ndash mesmo estando no

contexto original directamente associadas a outros modos de abordagem filosoacutefica ndash

definem pela forma como se articulam um acircmbito de indubitaacutevel pertinecircncia esteacutetica Eacute

a acepccedilatildeo contemporacircnea e alargada da esteacutetica que temos em mente nessa anaacutelise e

estruturaccedilatildeo do pensamento agostiniano O respeito pelo contexto de origem ao qual

natildeo deixaacutemos de atender salvaguarda-nos das sobre-interpretaccedilotildees mas poderaacute tambeacutem

frustrar as expectativas de uma leitura radicalmente inovadora acerca da esteacutetica

agostiniana Para um investigador familiarizado com o pensamento do filoacutesofo africano

natildeo haveraacute agrave primeira vista uma originalidade tatildeo evidente nos conteuacutedos ainda que a

nossa anaacutelise siga trilhos menos convencionais e decirc relevacircncia inusual a toacutepicos que

qualquer outro enquadramento filosoacutefico relegaria para segundo plano ou a um total

esquecimento Eacute sobretudo no modo como eacute feita a articulaccedilatildeo desses toacutepicos que reside

a originalidade do nosso contributo

Ao propormos os diversos nuacutecleos de abordagem que constituem a primeira

parte desta tese tiacutenhamos jaacute presentes as bases nas quais assenta a nossa perspectiva

esteacutetica e que apontam para um alargamento do acircmbito tradicionalmente associado a

este ramo disciplinar filosoacutefico A intuiccedilatildeo de que o pensamento esteacutetico agostiniano

mereceria um maior reconhecimento e uma anaacutelise mais alargada do que aquela que lhe

tem sido consagrada pelos poucos investigadores que se dedicam a este acircmbito do seu

pensamento conduziu por um lado agrave percepccedilatildeo das possibilidades dessa ampliaccedilatildeo das

valecircncias do ramo disciplinar esteacutetico por outro lado a proacutepria antevisatildeo de uma nova

abrangecircncia relativamente agrave esteacutetica fautorizou o modo como reunimos e interpretaacutemos

as consideraccedilotildees agostinianas acerca dos assuntos que consideramos poderem filiar-se

no acircmbito esteacutetico

A interdependecircncia da perspectiva acerca do alargamento da esteacutetica enquanto

aacuterea disciplinar e da perspectiva acerca da esteacutetica de Santo Agostinho fez com que

hesitaacutessemos entre iniciar esta tese com a problematizaccedilatildeo relativa ao universo

contemporacircneo da anaacutelise conceptual esteacutetica e entre iniciaacute-la directamente com a

abordagem daquilo que entendemos ser o pensamento esteacutetico agostiniano A escolha

5 Hannah Arendt O conceito de amor em Santo Agostinho Alberto Pereira Dinis (trad) Lisboa Instituto

Piaget 1997 p 9

30

recaiu sobre esta segunda opccedilatildeo natildeo apenas porque consideramos ser aiacute que reside o

verdadeiro fulcro deste projecto doutoral mas tambeacutem por entendermos que a trama de

questotildees e temaacuteticas implicadas no universo da esteacutetica de Santo Agostinho poderia

propiciar novas pistas para o sobrepujar da acepccedilatildeo tradicionalmente atribuiacuteda agrave

esteacutetica De uma anaacutelise mais convencional em torno da beleza e da sensibilidade vimos

derivar uma constelaccedilatildeo de outros assuntos directamente implicados em tal nuacutecleo de

abordagem cuja relevacircncia destoava da mera subsunccedilatildeo agrave teoria do belo indiciando

antes um estatuto paralelo ao papel da beleza mas ainda pertinente no acircmbito esteacutetico

A complexidade e riqueza da esteacutetica agostiniana aponta direcccedilotildees e contribui para

justificar a actual tendecircncia de alargamento da esfera contemporacircnea da esteacutetica

Assim a primeira parte deste estudo concerne integralmente agrave estruturaccedilatildeo das

principais linhas do pensamento esteacutetico de Santo Agostinho No primeiro capiacutetulo satildeo

abordadas as temaacuteticas da criaccedilatildeo e da relaccedilatildeo sensiacutevel face ao criado A teoria do belo

marca aqui presenccedila incontornaacutevel natildeo apenas no que toca agrave sua formulaccedilatildeo como

transcendental mas igualmente no que respeita agraves implicaccedilotildees de um formalismo de

origem estoacuteica que aparentemente contrasta com a matriz neoplatoacutenica subjacente agrave

reflexatildeo agostiniana Partindo da anaacutelise de conceitos centrais como forma e species a

teoria do belo acaba por se ver enleada a temaacuteticas como o nihil ou como o mal das

quais ressalta a distacircncia entre Criador e criatura A esteacutetica agostiniana parece ir no

sentido de contrariar tal distacircncia revelando pontos de contacto entre finitude e infinitude

A relaccedilatildeo corpo alma e a forma como se processa a percepccedilatildeo sensiacutevel satildeo

desenvolvidas neste primeiro capiacutetulo jaacute que se constituem como alicerces de qualquer

experiecircncia esteacutetica O papel do sentido interior e da memoacuteria estabelecem a

transiccedilatildeo entre tal dimensatildeo e a esfera racional que contrariamente agravequilo que

comummente se assume natildeo constitui um poacutelo oposto da sensibilidade mas uma

condiccedilatildeo sine qua non da experiecircncia esteacutetica Tal complementaridade pode ser

compreendida na esteacutetica agostiniana atraveacutes de dicotomias como a de homem

exterior homem interior ou ratio superior ratio inferior bem como atraveacutes da

articulaccedilatildeo entre os diferentes tipos de visatildeo (corporal espiritual e intelectual) ou

entre os diversos tipos de luz (luz fiacutesica luz da alma e luz da inteligecircncia) que se

constituem como condiccedilatildeo da visualidade e que introduzem a teoria agostiniana da

iluminaccedilatildeo divina O segundo capiacutetulo desenvolve portanto tais temaacuteticas

explorando tambeacutem a relevacircncia do conceito de numerus para a esteacutetica de Santo

Agostinho e as triacuteades que permitem relacionar as caracteriacutesticas das criaturas com

31

as perfeiccedilotildees do Criador As relaccedilotildees entre as pessoas divinas na essecircncia una de

Deus abrem caminho agraves dinacircmicas que a multiplicidade pode configurar

determinando qualidades esteacuteticas exprimidas em conceitos como modulatio

proportio coaptatio congruentia convenientia consonantia rythmus integritas

aequalitas e ordo

O terceiro capiacutetulo clarifica os dois pontos de vista agostinianos a partir dos

quais as categorias esteacuteticas podem ser consideradas a) um ponto de vista autoacutenomo

que concerne agrave conveniecircncia do todo graccedilas agrave adaptaccedilatildeo das partes (e que eacute do domiacutenio

do pulchrum) e b) um ponto de vista relativo ndash o da conveniecircncia das partes em relaccedilatildeo

ao todo (do domiacutenio do aptum) O pulchrum e o aptum natildeo satildeo redundantes eles

marcam uma gradaccedilatildeo na suposiccedilatildeo das categorias esteacuteticas que se reflecte na

qualificaccedilatildeo do real e que torna indissociaacutevel o acircmbito esteacutetico do acircmbito eacutetico Assim

vaacuterias hierarquias se delineiam na filosofia agostiniana ndash de ser de beleza de elevaccedilatildeo

da alma de actividades humanas ndash hierarquias estas cuja descriccedilatildeo converge para a

ideia da indissociabilidade entre o belo e o bem

A legitimidade dos liames afectivos que o homem estabelece com aquilo que o

rodeia eacute problematizada agrave luz do ordo amoris tambeacutem ele uma estrutura de natureza

gradativa agrave qual natildeo eacute alheia a questatildeo uti frui A relaccedilatildeo entre a beleza e o amor eacute

equacionada por Santo Agostinho segundo o prisma do conhecimento levando-o a

constatar a equivalecircncia entre philosophia e philocalia O questionamento da beleza

conduz agrave percepccedilatildeo da inteligibilidade e em uacuteltima instacircncia ao reconhecimento de

Deus pela via da interioridade na qual a feacute no Mediador se assume como caracteriacutestica

central e distintiva do neoplatonismo agostiniano

No quarto capiacutetulo a inseparabilidade da esteacutetica em relaccedilatildeo agrave eacutetica na

perspectiva do Bispo de Hipona eacute reiterada atraveacutes da anaacutelise do processo de judicaccedilatildeo

O juiacutezo esteacutetico eacute com efeito uma avaliaccedilatildeo acerca da adequaccedilatildeo de uma resposta

natural da sensibilidade em relaccedilatildeo ao contexto e agrave sua determinaccedilatildeo final A utilizaccedilatildeo

do conceito ldquodesinteresserdquo no sentido kantiano parece natildeo encontrar adequaccedilatildeo na

perspectiva agostiniana jaacute que o juiacutezo implica uma reflexatildeo acerca da lex numerorum e

o prazer inscreve-se nas especificidades do ordo amoris

O acto judicativo esteacutetico natildeo apenas eacute indissociaacutevel do criteacuterio do bem como do

da verdade pelo que a moldura propiciada por Cristo quer como Mestre interior quer

como Verbo incarnado permite reconhecer na experiecircncia esteacutetica uma dimensatildeo

reveladora e ateacute mesmo salviacutefica A proacutepria beatitudo pode ser considerada de um

32

ponto de vista esteacutetico e o seu alcance estaacute dependente de uma estrateacutegia de

conformaccedilatildeo da imagem de Deus existente no homem ao seu modelo A abordagem

que Santo Agostinho consagra ao tema da imagem e das implicaccedilotildees da igualdade da

semelhanccedila e da especularidade traduz um modo de pensar a relaccedilatildeo de equidade entre

Deus Pai e Deus Filho e a relaccedilatildeo de proximidade entre Deus e o homem Tal

abordagem natildeo deixa de ser formulada em termos esteacuteticos jaacute que eacute a uma matriz de

beleza que a imagem se refere e jaacute que a conversatildeo pressupotildee simultaneamente a

reconversatildeo do olhar e a reformulaccedilatildeo da beleza da alma agrave luz de tal matriz atraveacutes da

mediaccedilatildeo de Cristo que eacute o modelo ao qual o homem tem de atender pela

exemplaridade da beleza divina que ele incarna O proacuteprio modo especular a que a

visatildeo humana estaacute limitada predispotildee a uma leitura caracteriacutestica da semiologia acerca

da relaccedilatildeo entre o universo criado e a esfera divina

Com a segunda parte da dissertaccedilatildeo pretende-se demonstrar e consolidar a ideia

de que haacute efectivamente uma esteacutetica agostiniana ndash contrariamente ao que afirmam

muitos dos filoacutesofos historiadores desta aacuterea como Raymond Bayer6 ndash e desmistificar o

receio que os proacuteprios investigadores que se debruccedilam sobre o pensamento esteacutetico de

Santo Agostinho tecircm demonstrado pela relutacircncia em usar a palavra ldquoesteacuteticardquo

relativamente ao Bispo de Hipona preferindo a seguranccedila da expressatildeo ldquoteoria do

belordquo Mesmo sem sistema esteacutetico e sem filosofia da arte a esteacutetica agostiniana natildeo se

resume a uma teoria do belo

No primeiro capiacutetulo desta segunda parte enfrenta-se a questatildeo da ausecircncia de

uma filosofia da arte no pensamento agostiniano clarificando as diversas acepccedilotildees que

o filoacutesofo africano consagra agrave palavra ldquoarterdquo e analisando a consideraccedilatildeo que dedica agraves

actividades que contemporaneamente se considera pertencerem ao universo da criaccedilatildeo

artiacutestica Anuiacutemos quanto agrave inexistecircncia de uma filosofia da arte mas discordamos

daqueles que vecircem em tal ausecircncia um impedimento a que se possa legitimamente falar

de uma esteacutetica agostiniana A atenccedilatildeo que o filoacutesofo daacute agraves especificidades da

experiecircncia temporal humana e a permeabilidade que reconhece existir entre o homem

interior e o homem exterior revelam uma rara valorizaccedilatildeo da dimensatildeo sensiacutevel a ponto

de Santo Agostinho descrever ateacute mesmo para o homem ressurrecto um possiacutevel uso

dos sentidos corpoacutereos jaacute desnecessaacuterios quanto agrave sua funccedilatildeo utilitaacuteria um uso

destinado ao deleite como preacutemio por uma vida virtuosa

6 Cf Raymond Bayer Histoacuteria da Esteacutetica Lisboa Estampa 1995 p 87

33

O segundo capiacutetulo visa responder agrave criacutetica da ausecircncia de sistema no

pensamento agostiniano uma vez mais anuindo quanto agrave veracidade da constataccedilatildeo de

assistematicidade mas recusando tal argumento como um factor de menoscabo e de

recusa de uma reflexatildeo estruturada enquadraacutevel no acircmbito da esteacutetica Para tal

problematiza-se o proacuteprio conceito de sistema enquanto forma filosoacutefica superior e

propotildee-se uma leitura da expressatildeo teoacuterica agostiniana agrave luz do conceito de

dispositivo na acepccedilatildeo que Deleuze lhe consagra atraveacutes da descriccedilatildeo que faz deste

filosofema em Foucault

O uacuteltimo capiacutetulo desta tese consiste numa exposiccedilatildeo acerca do que eacute a esteacutetica

de certo modo justificando os nuacutecleos de abordagem propostos como eixos do

pensamento esteacutetico agostiniano Parte-se de uma perspectiva histoacuterica sumaacuteria que

revisita alguns dos autores mais representativos do momento fundacional da disciplina

filosoacutefica em questatildeo Tarefa ingrata pelas omissotildees a que natildeo nos podemos furtar

Todavia assumimos com tal escolha de autores ndash Baumgarten Kant Schiller Schelling

e Hegel ndash o propoacutesito de descrever as linhas teoacutericas de base que alicerccedilariam os

posteriores desenvolvimentos na aacuterea da esteacutetica e que viriam a culminar na actual

tendecircncia de alargamento do acircmbito disciplinar Tendecircncia esta que contrasta com o

momento fundacional da esteacutetica durante o periacuteodo iluminista alematildeo no qual se

procurou lindar e circunscrever o acircmbito da disciplina para assim o legitimar

filosoficamente A transversalidade da esteacutetica agostiniana revela uma salutar

abrangecircncia aliaacutes comum a tantos outros autores medievos que poderaacute servir como

exemplo ou como reforccedilo teoacuterico para a esteacutetica contemporacircnea face agraves dificuldades

com que esta se tem deparado nesse seu movimento de expansatildeo Aleacutem da perspectiva

histoacuterica o perfil que se pretende traccedilar da esteacutetica exige tambeacutem a exploraccedilatildeo de

alguns conceitos fulcrais como o de ldquoexperiecircncia esteacuteticardquo ldquoemoccedilotildees esteacuteticasrdquo e ldquovalor

esteacuteticordquo A tese finda precisamente com tal anaacutelise que se por um lado revela uma

concepccedilatildeo da esteacutetica capaz de abranger as linhas do pensamento agostiniano em funccedilatildeo

dela previamente traccediladas por outro lado tambeacutem foi dessas linhas que se nutriu tal

concepccedilatildeo e nelas encontrou contributo para melhor se perspectivar

Nota Salvo indicaccedilatildeo contraacuteria as traduccedilotildees satildeo da nossa responsabilidade

Parte I

37

1 Os corpos e os sentidos

11 ndash Materia moles e forma species

A esteacutetica agostiniana eacute natildeo raras vezes tida como menos interessante do que a

esteacutetica neoplatoacutenica que tanto a influenciou Com efeito as Eneacuteadas de Plotino

parecem evidenciar uma abordagem relativa ao belo e agrave arte mais autoacutenoma ou

especiacutefica do que aquela que eacute desenvolvida em qualquer uma das obras de Santo

Agostinho que chegaram ateacute noacutes ndash a excepccedilatildeo estaria certamente em De pulchro et

apto Aleacutem de Plotino dedicar dois tratados especificamente ao tema do belo7 haacute nas

Eneacuteadas uma perspectivaccedilatildeo inovadora da arte ndash que Santo Agostinho de certo modo

adoptaraacute ndash expressa em termos bastante positivos e que contrastam com o aparente

menosprezo com que o Bispo de Hipona se refere a todas as formas de expressatildeo

artiacutestica que natildeo a muacutesica A perspectivaccedilatildeo inovadora da arte que Plotino desenvolve

e que Santo Agostinho segue sem no entanto lhe tecer encoacutemios marca uma inflexatildeo

quanto agrave esteacutetica platoacutenica que eacute avessa agravequilo que hoje podemos designar de beleza

artiacutestica Para Plotino a arte (τέχνη) porque proveacutem da ideia do artista mais do que da

sua habilidade manual faculta o conhecimento da beleza superior e eacute nesse sentido

valorizada como afirmaccedilatildeo do divino ndash ora isto eacute contraacuterio ao pensamento de Platatildeo

para quem a arte estava trecircs graus afastada da verdade e para quem a obra de um

sapateiro tinha maior valor do que a de um escultor Apesar de toda a sensibilidade

artiacutestica presente nos termos que Plotino usa para distinguir a beleza do bloco de pedra

7 O sexto tratado da Primeira Eneacuteada tido como o primeiro na cronologia plotiniana ndash conhecido pelo

tiacutetulo ldquoAcerca do Belordquo ndash e o oitavo tratado da Quinta Eneacuteada o trigeacutesimo primeiro em termos

cronoloacutegicos e intitulado por Porfiacuterio de ldquoAcerca da Beleza Inteligiacutevelrdquo Cf Plotin Enneacuteades I-VI2

Eacutemile Breacutehier (ed trad) Paris Belles-Lettres 1924-1938

38

esculpido da do bloco de pedra tosco8 e para se referir ao processo de purificaccedilatildeo da

alma em analogia com o gesto escultoacuterico9 a verdade eacute que para aleacutem dessa estrateacutegia

retoacuterica natildeo haacute propriamente diferenccedila entre a consideraccedilatildeo da arte plotiniana e

agostiniana Para ambos os filoacutesofos a arte estaacute subjugada a um quadro finaliacutestico que

tem no seu fulcro a purificaccedilatildeo da alma e a contemplaccedilatildeo da esfera divina ndash para ambos

a arte tem um valor heuriacutestico e a beleza que se lhe associa natildeo eacute mais do que um paacutelido

traccedilo da beleza superior da esfera divina

Sendo o proacuteprio Santo Agostinho um filoacutesofo de tradiccedilatildeo neoplatoacutenica o

pensamento esteacutetico que desenvolve manteacutem o pressuposto de que toda a beleza

inclusivamente a corpoacuterea adveacutem da comunhatildeo com uma forma ideal mas Santo

Agostinho vai mais longe do que Plotino ao estabelecer que a natureza inteligiacutevel do

belo natildeo obsta a que este possa ser concebido de um modo formalista material Assim

quando em ldquoAcerca do Belordquo Plotino comeccedila por negar a ideia de que a beleza consiste

na simetria apresentando cinco argumentos para refutar tal tese estoacuteica10

o Bispo de

Hipona por seu turno habituado a conciliar teorias antagoacutenicas coloca lado a lado a

perspectiva plotiniana ndash que enfatiza a existecircncia de belezas natildeo compostas no mundo

sensiacutevel e a ideia de que a fonte uacuteltima do belo eacute una simples ndash com a tese rival estoacuteica

segundo a qual a beleza requer uma multiplicidade de partes em harmoniosa relaccedilatildeo Ao

fazecirc-lo Santo Agostinho parece ignorar voluntariamente a muacutetua inconsistecircncia destas

perspectivas Na verdade o Bispo de Hipona apenas reduz o alcance da objecccedilatildeo

plotiniana jaacute que manteacutem a pertinecircncia do criteacuterio da simetria interpretando-o natildeo

8 Cf En V 8 1

9 Cf En I 6 9

10 A tradicional definiccedilatildeo de beleza que se supotildee de origem estoacuteica sintetizava-se nos seguintes termos

συμμετρία καὶ χρώμα Os argumentos plotinianos para a recusa da ideia de que a beleza resulta da

simetria desenvolvem-se do seguinte modo a) tal ideia pressuporia que soacute um ser composto seria belo e

por exemplo um ser simples como uma cor um som ou a luz do sol natildeo poderiam ser belos b)

equivaleria tambeacutem a afirmar que cada parte em si natildeo possui beleza mas apenas agrave sua combinaccedilatildeo tal

atributo poderia ser imputado ora segundo Plotino para um conjunto ser belo as partes tambeacutem tecircm de

o ser Um conjunto belo natildeo pode constituir-se por partes feias c) haacute tambeacutem exemplos como o de um

rosto proporcionado que natildeo poderaacute tirar a sua beleza das proporccedilotildees (simetria) uma vez que estas se

mantecircm mesmo quando por vezes esse rosto se mostra feio d) tambeacutem porque haacute beleza por exemplo

nos conhecimentos nas ciecircncias nas leis nos discursos e nas nobres condutas de vida para os quais eacute

impossiacutevel determinar um padratildeo de medida passiacutevel de aferir a relaccedilatildeo entre as partes da alma ndash e todos

estes exemplos satildeo jaacute uma beleza da alma e) acrescenta-se o facto de poder haver por exemplo simetria

em teorias maacutes e f) porque a beleza da inteligecircncia que eacute livre em si mesma natildeo poderia colocar-se em

termos de simetria proporccedilotildees Cf En I 6 1

39

como um criteacuterio falso mas como um criteacuterio insuficiente Quando Santo Agostinho

articula elementos da esteacutetica plotiniana com elementos estoacuteicos a ambivalecircncia em que

cai a perspectivaccedilatildeo da beleza corpoacuterea pode natildeo ser necessariamente entendida como

paradoxal no sentido de mutuamente invalidante se tomarmos a beleza corpoacuterea como

um elemento teofacircnico proclamador da beleza divina e prescritor de uma via para se lhe

aceder que tanto implica a desvalorizaccedilatildeo desta beleza que eacute imagem como insiste no

reconhecimento do seu encanto enquanto promessa da maior beleza constituiacuteda pela

esfera divina Estas duas atitudes divergentes em relaccedilatildeo ao mundo sensiacutevel satildeo

conciliaacuteveis porque satildeo paralelas agrave duplicidade do movimento a partir do qual a

multiplicidade adveacutem da unidade e a ela tende novamente A unidade eacute afim do desejo

criador de beleza e eacute a partir dessa unidade que nasce uma harmonia numerosa

(coaptatio) divergindo e desdobrando-se numa multiplicidade de partes e convergindo

novamente ao tender para o todo A duplicidade deste movimento marca qualquer

beleza criada e marcaraacute o modo de relaccedilatildeo que o homem deve manter face a este geacutenero

de beleza Deste modo embora Santo Agostinho insista na esteira de Plotino no

caraacutecter imaterial da beleza sempre dependente do princiacutepio de racionalidade que estaacute

na sua origem e natildeo da massa que constitui os corpos tidos por belos a verdade eacute que

por exemplo em De civitate Dei o Bispo de Hipona define a beleza fiacutesica como sendo

ldquoa harmonia das partes com uma certa suavidade da corrdquo11

evidenciando que natildeo

descarta a tradicional esteacutetica das proporccedilotildees reformulando-a natildeo mais em termos de

simetria como os estoacuteicos mas em termos de harmonia de partes (congruentia partium

ou congruentia numerosa)12

e da muacutetua adaptaccedilatildeo (coaptatio) que entre elas se

observa13

Natildeo haacute portanto o abandono completo da concepccedilatildeo formal da beleza como

pressuporia naturalmente o legado neoplatoacutenico mas de modo a reiterar a pertinecircncia

de tal legado a esteacutetica agostiniana assenta em pressupostos que acentuam a

subordinaccedilatildeo formal das diversas belezas existentes ao princiacutepio que as informa

Curiosamente esses pressupostos em que assenta a esteacutetica agostiniana e que lhe

permitem enfatizar o caraacutecter hiacutebrido e derivado as belezas sensiacuteveis por oposiccedilatildeo agrave sua

fonte simples e una para a qual remetem pelo acordo entre o nuacutemero e a sua figura

11

laquoOmnis enim corporis pulchritudo est partium congruentia cum quandam coloris suavitateraquo De civ Dei

XXII 19 (CCL 48 p 838)

12 Cf Ibid

13 Cf De civ Dei XXII 24

40

visiacutevel14

ao mesmo tempo que permitem reiterar os assertos em que assenta a

concepccedilatildeo plotiniana do belo constituem-se como elementos de dissensatildeo entre o

pensamento do filoacutesofo africano e o do filoacutesofo egiacutepcio Esses pressupostos satildeo a

criaccedilatildeo ex nihilo e a recusa da teoria plotiniana da emanaccedilatildeo O primeiro opondo-se agraves

teorias da preexistecircncia da mateacuteria e agrave ideia de um criador demiuacutergico que lhe daacute forma

faraacute com que a categoria ontoloacutegica da forma nos seus variados graus de igualdade e

natildeo apenas como padratildeo inteligiacutevel assuma um papel crucial na concepccedilatildeo da beleza do

universo O segundo amplia a ideia de participaccedilatildeo das belezas inferiores na beleza

superior e contribuiraacute decisivamente para a percepccedilatildeo e para o exerciacutecio da beleza

orientada para Deus Se a criaccedilatildeo tivesse emanado de Deus tal implicaria que nas

criaturas essa proacutepria substacircncia divina por natureza infinita e imutaacutevel em si mesma

seria sujeita a mutaccedilotildees e mesmo a degradaccedilatildeo ndash o que se constitui como uma ideia

sacriacutelega aos olhos de Santo Agostinho A criatura natildeo deriva da proacutepria substacircncia do

criador mas do nada

Santo Agostinho descreve Deus como forma infabricata atque omnium

formosissima 15

que cria a mateacuteria informe ex nihilo com o potencial para receber

forma16

pela conversatildeo a si A beleza da criaccedilatildeo eacute intriacutenseca agrave sua existecircncia e sua

equivalente desde o momento da criaccedilatildeo

A exploraccedilatildeo do conceito agostiniano de forma eacute fulcral para qualquer

abordagem agrave esteacutetica deste autor pois traduz o caraacutecter intermediaacuterio da atitude esteacutetica

ndash um caraacutecter que natildeo deixa de ser religioso17

ndash ao preservar num uacutenico lexema dois

significados semanticamente distintos A este niacutevel o latim agostiniano quase parece

permitir uma cintilaccedilatildeo da harmoniosa indiscernibilidade dos opostos que o caraacutecter

delimitador da linguagem verbal inevitavelmente gorou O conceito forma natildeo soacute se

refere aos arqueacutetipos transcendentes da realidade como agraves configuraccedilotildees dos corpos

14

Cf De civ Dei XX 30 10-19

15 De vera relig 11 21

16 Cf De vera relig 18 36

17 Na acepccedilatildeo priacutestina de religiosidade enquanto esfera empiacuterica propiacutecia ao re-ligare transdimensional

41

materiais Significa isto que contingecircncia e transcendecircncia satildeo expressas do mesmo

modo em termos esteacuteticos18

O conceito forma congrega portanto as acepccedilotildees que os gregos cindiram pelos

termos μορφή ou σχῆμα e ιδέα A natureza ambivalente da forma agostiniana torna

incontornaacutevel ancorar a sua abordagem agrave temaacutetica da criaccedilatildeo que por seu turno articula

a questatildeo da ordem a questatildeo do exemplarismo impliacutecita nas rationes seminales e

obviamente as questotildees do nihil e do mal

A doutrina da creatio ex nihilo era jaacute vigente na ortodoxia cristatilde19

quando Santo

Agostinho desenvolve a sua perspectiva sobre a criaccedilatildeo do mundo adequando-se muito

eficazmente agrave necessidade de refutar o dualismo maniqueu cujos argumentos tanto

incomodavam o Bispo de Hipona apesar de com eles ter comungado inicialmente Natildeo

eacute portanto de estranhar que o tema da criaccedilatildeo seja sobretudo tratado por Santo

Agostinho nos seus escritos de maior pendor antimaniqueiacutesta como De ordine (386)

De Genesi contra Manichaeos (388) De Genesi ad litteram liber imperfectus (393)

Contra Adimantum (393) De Genesi ad litteram (393-415) Contra adversarium Legis

et Prophetarum (420) e naturalmente tambeacutem em passagens presentes em

Confessionum XI-XIII (397-398) e em De civitate Dei XI (413-426)

Todas as coisas foram criadas por Deus a partir do nada e atraveacutes de um acto

livre de amor A mateacuteria da criaccedilatildeo natildeo eacute preexistente ou co-eterna com Deus Ele criou

a proacutepria mateacuteria da criaccedilatildeo e por isso o acto criador concerne natildeo apenas a tudo o que

existe como tambeacutem a tudo que poderaacute ainda vir a existir Ora a mateacuteria da criaccedilatildeo eacute

uma mateacuteria informe tal como se lhe refere o Livro da Sabedoria20

agrave qual Santo

18

Carol Harrison expotildee singularmente esta ideia ao escrever que ldquoAs configuraccedilotildees concretas e as

formas vagamente discerniacuteveis satildeo nomeadas com os nomes da transcendecircncia do belo Assim o latim

agostiniano permite-lhe conservar lado a lado o imediato e a ultimidade fazendo-o [por intermeacutedio da

beleza] pensando-os como o belordquo laquoThe actual shapes and forms dimly discerned are named with the

names of the ultimate of the beautiful Thus Augustinersquos Latin helps him to hold together the immediate

and the ultimate and to do this by thinking of them as the beautifulraquo Harrison Beauty and Revelation in

the Thought of Saint Augustine Oxford Clarendon Press 1992 p 2

19 Teoacutefilo de Antioquia (~120 ndash 180) eacute tido como o primeiro autor cristatildeo a defender a creatio ex nihilo

argumentando que se a mateacuteria fosse tal como Deus incriada ndash como postulavam os platoacutenicos ndash entatildeo

natildeo faria sentido considerar a transcendecircncia de Deus jaacute que tal pressuporia que a mateacuteria fosse igual a

Deus e que Ele natildeo poderia ser o criador de todas as coisas A preexistecircncia da mateacuteria gorava o caraacutecter

extraordinaacuterio da criaccedilatildeo e da actividade do criador divino ateacute porque os homens tambeacutem conseguem

produzir coisas novas a partir da mateacuteria existente

20 laquo[hellip]Vossa matildeo omnipotente que formou o mundo de mateacuteria informe [hellip]raquo Sab 1117

42

Agostinho faz equivaler ldquoos ceacuteus e a terrardquo do princiacutepio do acto criador descrito no

Geacutenesis21

A interpretaccedilatildeo agostiniana da criaccedilatildeo biacuteblica vecirc-se a braccedilos com a

necessidade de natildeo incompatibilizar entre si estas passagens do Antigo Testamento

bem como com a necessidade de dar resposta agraves criacuteticas sarcaacutesticas em que resultava a

interpretaccedilatildeo maniqueiacutesta das mesmas22

A criaccedilatildeo da mateacuteria informe corresponde a

um primeiro momento do acto criador que natildeo deveraacute ser entendido como primeiro

num sentido cronoloacutegico ou diacroacutenico mas em termos meramente loacutegicos ou

ontoloacutegicos e que permitem uma compreensatildeo triaacutedica da geacutenese

Assim a creatio prima contempla a criaccedilatildeo dos ceacuteus e da terra ex nihilo ainda

sem forma mas com capacidade para receber nos momentos seguintes as formas das

coisas23

Pela creatio secunda Deus informa o informe dando forma aos seres

particulares a partir da mateacuteria informe da creatio prima Eacute neste segundo momento que

surge a determinaccedilatildeo temporal e que se estabelecem os seis dias da criaccedilatildeo e o seacutetimo

dia de descanso que natildeo corresponde a um cessar da actividade divina relativamente agraves

criaturas mas ao acto criativo constituiacutedo por estes dois primeiros momentos Como

poreacutem a criaccedilatildeo se processa ao longo da histoacuteria haacute um terceiro momento ainda em

curso sob a divina providecircncia pelo qual os seres jaacute criados crescem e multiplicam-se

(agora em termos geracionais) e no qual graccedilas agraves razotildees seminais (rationes seminales)24

21

laquoNo princiacutepio Deus criou os ceacuteus e a terra A terra era informe e vaziaraquo Gn 1 1-2

22 Os maniqueus questionavam ironicamente o que andara Deus a fazer antes de criar os ceacuteus e a terra

por que razotildees resolvera criaacute-los e ridicularizavam uma suposta antropomorfizaccedilatildeo de Deus presente no

Antigo Testamento Cf De Gen cont Man I 2 3 e Conf XI 10 12

23 Cf De Gen cont Man I 5 9 e I 7 11 onde Santo Agostinho diz que no princiacutepio Deus fez os ceacuteus e

a terra como se fizesse o geacutermen do ceacuteu e da terra estando ainda confusa e sem forma (confusa et

informis) a mateacuteria do ceacuteu e da terra ndash e ainda invisiacuteveis (Cf De Gen cont Man I 3 5) pois satildeo

anteriores ao fiat lux ndash mas jaacute assim designados dado que deles procederiam os ceacuteus e a terra agora

visiacuteveis aos nossos olhos Esta mateacuteria informe encontra correspondecircncia no χάος grego conforme aponta

o proacuteprio Bispo de Hipona Dada a sua ldquoinformidaderdquo ela estaacute muito proacutexima do nada (prope nihil erat) e

eacute quase nada (paene nihilo) Cf Conf XII 6 6 - 8 8

24 Para um estudo mais aprofundado sobre o conceito de razotildees seminais na obra do Bispo de Hipona cf

Charles Boyer ldquoLa theacuteorie augustinienne des raisons seacuteminalesrdquo in Essais sur la doctrine de saint

Augustin Paris Gabriel Beauchesne et ses fils 1932 pp 97-137 J Brady The Function of the Seminal

Reasons in St Augustinersquos Theory of Reality PhD Dissertation St Louis University 1949 Michael

John McKeough The Meaning of the Rationes Seminales in St Augustine Washington Catholic

University of America Press 1926

43

as coisas que existem no mundo apenas em potecircncia25

podem actualizar-se dando origem a

novos seres

A explicaccedilatildeo triaacutedica da criaccedilatildeo natildeo obsta agrave ideia de que Deus tenha criado tudo

a partir do nada num uacutenico instante criador O segundo e o terceiro momentos da

criaccedilatildeo estatildeo desde logo contemplados na creatio prima onde a mateacuteria informe

criada do nada conteacutem em si todas as coisas nas suas particularidades ainda em

potecircncia26

Nada mais ndash ou nada realmente novo ndash foi criado apoacutes o primeiro acto de

criaccedilatildeo tudo foi criado no princiacutepio antes de aparecer na terra e no tempo mas esse

acto criativo actualiza-se progressivamente atraveacutes dos tempos pelo trabalho contiacutenuo

da divina providecircncia

A teoria das rationes seminales permite estabelecer uma distinccedilatildeo entre o acto

original da criaccedilatildeo e o operar providencial de Deus ou por outras palavras entre o

modo atraveacutes do qual Deus se constitui como causa uacutenica livre de tudo o que eacute e de

tudo o que natildeo sendo poderaacute ainda vir a ser e o modo de causalidade necessaacuterio das

leis naturais que presidem ao curso da natureza Tambeacutem este modo eacute em uacuteltima

instacircncia resultante da causa primeira e superior de todas as coisas27

e que portanto

natildeo inviabiliza a capacidade causal passiva ou potencial relativa aos acontecimentos

que natildeo tomamos por habituais ndash como os milagres ndash mas que nem por isso deveratildeo

ser considerados como uma quebra na cadeia causal natural Os milagres resultam

tambeacutem da capacidade intriacutenseca agraves razotildees seminais que tecircm a sua origem em Deus28

As causas naturais natildeo passam poreacutem de instrumentos da actividade providencial de

25

Apesar de natildeo conhecer as noccedilotildees aristoteacutelicas de acto e potecircncia a verdade eacute que Santo Agostinho

envereda por uma via que natildeo eacute completamente distinta da do estagirita e que facilitaraacute a

conceptualizaccedilatildeo do ser em Satildeo Tomaacutes de Aquino nove seacuteculos depois

26 Cf De Gen cont Man I 6 10

27 Cf De Trin III 4 9

28 Ocorre poreacutem que se os acontecimentos vulgares satildeo operados espontaneamente pela providecircncia

natural jaacute os milagres e os prodiacutegios satildeo operados pela providecircncia voluntaacuteria atraveacutes da

instrumentalizaccedilatildeo dos homens e dos seres angeacutelicos o que significa que para ocorrerem os milagres

tecircm de ser operados pelos homens ou pelos anjos Providecircncia natural e providecircncia voluntaacuteria satildeo ambas

modalidades da providecircncia divina ainda que Deus natildeo intervenha directamente em nenhum dos casos A

terminologia ldquoprovidecircncia naturalrdquo e ldquoprovidecircncia voluntaacuteriardquo embora natildeo seja muito comum nas obras

agostinianas eacute empregue pelo Bispo de Hipona em De Genesi ad litteram VIII 9 17 laquo[hellip] operatio

providentiae reperitur partim naturalis partim voluntariaraquo

44

Deus pelo que haacute diferenccedila entre a criaccedilatildeo das razotildees seminais e a sua sequente

manifestaccedilatildeo no tempo

A ideia das razotildees seminais remonta a Anaxaacutegoras (seacutec V a C) quando este

substitui a tradicional concepccedilatildeo dos quatro elementos pela noccedilatildeo de um nuacutemero

infinito de causas primeiras inertes ndash os geacutermenes (σπέρματα) ndash que seriam activadas

pela essecircncia intelectual (νοῦς) explicando assim a possibilidade de surgirem coisas

aparentemente novas Para Anaxaacutegoras os σπέρματα confirmavam a sua ideia de que

nada de novo poderia ser criado nem nada do que existia poderia ser totalmente

destruiacutedo ndash tudo se transformava Demoacutecrito foi bastante influenciado por esta ideia

de geacutermenes a partir dos quais todas as coisas se desenvolvem apondo-lhe outro

conceito ndash o de substacircncias elementares (ἄτομος) controladas por um poder externo

que ao dotaacute-las de movimento dava origem a todas as coisas Estava assim firmada a

base da ideia das rationes seminales que conheceria ainda desenvolvimentos e

variaccedilotildees com os contributos de Aristoacuteteles dos Estoacuteicos e de Fiacutelon Este uacuteltimo

introduz a ideia na exegese biacuteblica

Santo Agostinho simpatizava com os pressupostos desenvolvidos por

Anaxaacutegoras e pela variante estoacuteica29

adoptando o que diziam sobre os λόγοι

σπερματικοί Para o Bispo de Hipona as formas ou ideias platoacutenicas tinham existecircncia

eterna na mente de Deus que ao contemplaacute-las criou ex nihilo as razotildees seminais agrave

semelhanccedila das ideias ou formas30

Assim ideias eternas e razotildees seminais distinguem-se

pois as uacuteltimas tecircm existecircncia fiacutesica na mateacuteria ndash ainda que no primeiro acto criativo

natildeo sejam originadas logo com uma forma definida31

ndash e estatildeo ligadas por participaccedilatildeo

agraves primeiras (agraves ideias eternas) e por dependecircncia agrave vontade de Deus32

29

Que consistia numa visatildeo conciliadora entre a perspectiva aristoteacutelica e a perspectiva platoacutenica

postulando uma distinccedilatildeo entre mateacuteria passiva e mateacuteria activa Os Estoacuteicos defendiam uma alma do

mundo de natureza iacutegnea existente na mateacuteria passiva e contendo todas as razotildees (λόγοι) de todas as

mudanccedilas bem como os geacutermenes (σπέρματα) das formas futuras O fogo era o princiacutepio activo que

informava e movia a mateacuteria (princiacutepio passivo)

30 Com efeito as ideias eternas correspondem no leacutexico agostiniano agrave Sabedoria divina ou Verbo

31 Cf Conf XI 4 6 onde Santo Agostinho afirma que mesmo o que natildeo foi criado e todavia existe nada

tem em si que natildeo existisse

32 Cf Chris Gousmett ldquoCreation order and miracle according to Augustinerdquo In Evangelical Quaterly 60

3 1988 p 222

45

As rationes seminales actualizam-se fisicamente ao longo da criaccedilatildeo que

continua a ocorrer no decurso da histoacuteria e sob a divina providecircncia Na creatio prima

descrita no primeiro versiacuteculo do Geacutenesis elas contecircm como potecircncia todas as espeacutecies

possiacuteveis de coisas particulares Este substrato potencial eacute mantido e materializado pela

vontade e pelo poder causal de Deus nele imposto Sem esta perene dependecircncia

relativamente a Deus as razotildees seminais natildeo existiriam A intervenccedilatildeo divina nas

razotildees seminais pela providecircncia constitui-se como a derradeira causa ndash uma causa

interna ndash todas as outras causas operam externamente sobre as razotildees seminais

As rationes seminales obedecem agrave moccedilatildeo divina e soacute assim desenvolvem no

tempo as formas nelas existentes pelo que mesmo os novos seres natildeo escapam aos

desiacutegnios de Deus33

A criaccedilatildeo ex nihilo coloca a Santo Agostinho o problema da responsabilizaccedilatildeo

de Deus pelo mal pois se criou tudo a partir do nada entatildeo tambeacutem teraacute criado o mal A

soluccedilatildeo passa por negar a existecircncia do mal enquanto substacircncia Se tudo o que existe

foi criado por Deus e se o que Deus cria soacute pode ser tido como bom34

conclui-se

portanto que o mal eacute meramente uma privaccedilatildeo de bem Neste seguimento sendo a

existecircncia boa por natureza e sendo a suprema existecircncia o sumo bem35

natildeo seraacute

descabido reportar o mal ao nada (nihil) A doutrina da creatio ex nihilo postulada por

Santo Agostinho evidencia que o filoacutesofo distingue claramente o nada da mateacuteria

informe contrariamente a Plotino que fazia equivaler os dois conceitos A mateacuteria

informe estaacute no entanto proacutexima do nada e pode considerar-se como um estaacutedio

intermeacutedio entre a forma e o natildeo-ser36

Alguns autores consideram que mesmo natildeo

havendo equivalecircncia entre a mateacuteria informe e o nihil eacute plausiacutevel que o nihil

33

Foram vaacuterios os investigadores a argumentar sobre se o posicionamento agostiniano a este niacutevel

assumiria um caraacutecter determinista ou evolucionista Para um resumo esquemaacutetico de tal debate cf

Marcos Roberto Nunes Costa ldquoDefesa agostiniana da criaccedilatildeo ex nihilo contra os Maniqueusrdquo in

Scintilla Curitiba vol 5 nordm 1 Jan Jun 2008 p 51 n 20 Concordando com Copleston cremos que a

pertinecircncia de tal debate eacute questionaacutevel jaacute que este problema para Santo Agostinho eacute equacionado

relativamente agrave interpretaccedilatildeo biacuteblica e natildeo lhe eacute consagrado um tratamento cientiacutefico Cf Frederick

Copleston Histoacuteria de la Filosofia De San Agustiacuten a Escoto vol II Barcelona Ariel 1983 p83

34 Aliaacutes como muito bom como estaacute expresso em Gn1 31 laquoDeus vendo toda a Sua obra considerou-a

muito boaraquo Cf De Gen ad litt imp I 3

35 Cf De vera relig 17 34 ndash 18 36

36 Cf Conf XII 6 6 onde Santo Agostinho afirma que a mateacuteria informe natildeo era ainda nada e no

entanto era jaacute algo

46

agostiniano natildeo seja um nada absoluto ou ontoloacutegico constituindo-se jaacute como alguma

forma de substacircncia agrave semelhanccedila da ὕλη maniqueia ou da quase-existecircncia impliacutecita

no μὴ ὄν plotiniano37

Se as rationes seminales pareciam ser uma figura da

estabilidade ndash pois apesar de serem o veiacuteculo capaz de dar origem a novos seres esse

movimento configura-se como mais uma das evidecircncias da estabilidade divina que

havia assegurado desde o iniacutecio a tal possibilidade de novas espeacutecies criando-as ainda

que em potecircncia e assim relativizando o seu caraacutecter de novidade ndash o nihil sugere ao

inveacutes uma ausecircncia de estabilidade porque eacute o que sempre se dispersa constantemente

se torna dissoluto e eternamente perece38

Em termos morais o nada eacute a fonte do

movimento defectivo da vontade Pela corrupccedilatildeo tende-se ao lapso do ser ndash ao nada

Assim aleacutem de ausecircncia de estabilidade eacute tambeacutem ausecircncia de ser configurando-se

efectivamente como um nada absoluto ontoloacutegico39

Apesar de natildeo possuir qualquer referente ontoloacutegico o nada agostiniano tambeacutem

natildeo eacute estaacutetico ndash daiacute que se constitua como uma ameaccedila e mantenha um elo com a

corrupccedilatildeo (nequitia)40

com o pecado (iniquitas)41

e com o mal A criaccedilatildeo eacute ex nihilo in

principio e a Deo o que significa que Deus natildeo emana de si o mundo e que o mundo

natildeo lhe eacute igual42

As criaturas satildeo um outro inferior de Deus ao criaacute-las o inexistente

comeccedilou tambeacutem a fazer sentido enquanto inexistente (negaccedilatildeo do criado) ndash o que natildeo

37

Cf Gavin Hyman ldquoAugustine on the lsquoNihilrsquo An Interrogationrdquo Journal for Cultural and Religious

Theory vol 9 nordm 1 2008 p 40

38 Cf De beata vita 2 8 onde Santo Agostinho descreve a eterna dissolvecircncia do nihil

39 Cf De Gen ad litt VII 5 7 De nat boni 25 ou In Iohan Evang tract I 13 onde o Bispo de Hipona

adverte para o erro em que alguns incorrem ao tomar o nada por alguma coisa (putare aliquid esse nihil)

Os Maniqueus estariam certamente entre essas pessoas

40 Cf De beata vita 2 8

41 Cf Conf VII 12 18 e VII 16 22

42 Gerado a partir de Si e igual a Si soacute mesmo o Filho unigeacutenito que participa da sua essecircncia tudo o

demais natildeo partilha a substacircncia divina porque adveacutem do nada Cf De Gen ad litt VI 2 2 onde Santo

Agostinho diz que o criado natildeo eacute da mesma essecircncia ou substacircncia do criador De Gen cont Man I 2 4

onde explicita que a bondade das coisas natildeo eacute a mesma bondade com que Deus eacute bom e Conf VII 10 16

onde referindo-se agrave luz imutaacutevel escreve laquo[hellip] superior quia ipsa fecit me et ego inferior quia factus

ab earaquo Aleacutem da criaccedilatildeo ser ex nihilo in principio e abs Deo poderemos ainda acrescentar que quanto

ao seu modo ela eacute in Verbo pois resulta da Palavra criadora Como princiacutepio o Verbo divino identifica-

se com o Filho com a Sabedoria ndash a Palavra de Deus enleia conhecimento e amor e faz equivaler o dizer

ao fazer laquoin hoc principio deus fecisti caelum et terram in verbo tuo in filio tuo in virtute tua in

sapientia tua in veritate tua miro modo dicens et miro modo faciensraquo Conf XI 9 11

47

significa que exista ndash pois ao criar algo que natildeo eacute igual a si Deus instaura a distacircncia

entre si e o que cria43

Essa distacircncia absolutamente vazia opotildee-se no entanto agrave

estabilidade que caracteriza Deus O nada flui perenemente mas natildeo pode ser

equacionado em termos temporais jaacute que mesmo o tempo eacute ex nihilo44

O acto de criaccedilatildeo ex nihilo eacute tambeacutem um acto de domesticaccedilatildeo ou de

subordinaccedilatildeo do nihil pois ao mesmo tempo que se instaura a distacircncia entre o criador e

a criatura o facto de a criaccedilatildeo resultar de um acto livre de amor significa que haacute

uma proximidade iacutentima entre Deus e a sua obra Deus quis livremente o mundo e

por tecirc-lo desejado haacute proximidade entre ambos mesmo que ao fazecirc-lo do nada o

tenha distanciado de si A inigualaacutevel bondade de Deus e o seu amor incondicional

fazem da criatura um ser livre cujo sentido de si ndash da sua vida ndash lhe eacute entregue Essa

entrega eacute a abertura do ser ao ser e ao nada trata-se de uma questatildeo de sentido e de

existecircncia pois ao tender naturalmente ao ser o homem tende agrave completude da

existecircncia e a este niacutevel natildeo tende naturalmente ao natildeo-ser ao nada poreacutem tendo

sido criado por Deus a partir do nada a distacircncia que tem de percorrer ateacute Deus eacute

sempre ameaccedilada pela possibilidade de deslizar para o nada ndash natildeo pela ausecircncia de

Deus que eacute omnipresente mas pela deficiecircncia de ser na criatura enfatizada ao

distanciar-se de Deus por um acto defectivo da vontade

Indubitavelmente o nada possui uma conotaccedilatildeo negativa que o torna

indissociaacutevel do mal mesmo que como este careccedila de estatuto ontoloacutegico e natildeo possa

ser tido como um princiacutepio rival de Deus nem ser considerado co-eterno com Deus

como postulavam os Maniqueus Contra qualquer dualismo Santo Agostinho defende

que nunca algo existiu que natildeo fosse criado por Deus nem que se opusesse a Deus

sendo diferente dele45

Soacute faz sentido equacionar o sentido do mal e do nada em relaccedilatildeo

ao criado ou melhor a partir do momento em que o gesto criador instaura uma

distacircncia entre Deus e o demais O nada natildeo eacute uma realidade positiva baseia-se na

defecccedilatildeo e na ausecircncia de ser e permite que o mal seja experienciado no mundo como

privaccedilatildeo de bem O mal nada tem de substancial ele natildeo eacute poreacutem afecta o ser

43

Em Conf XII 7 7 Santo Agostinho refere que essa distacircncia do Criador ao criado natildeo eacute um

afastamento em termos espaciais permitindo a conclusatildeo oacutebvia de que se trata de uma distacircncia

ontoloacutegica em termos de ser e natildeo de espaccedilo

44 Tal natildeo significa que o nada seja co-eterno com Deus pois o nada natildeo eacute apenas faz sentido com o

gesto criador ndash daiacute que o nada seja considerado tambeacutem como um movimento

45 Cf Conf XII 7 7

48

Soacute quando o amorfismo da mateacuteria eacute ultrapassado pela creatio secunda eacute que o

ceacuteu e a terra saem das trevas ndash o fiat lux marca a possibilidade da perspectivaccedilatildeo

esteacutetica do criado natildeo soacute porque o surgimento da luz vem a par da configuraccedilatildeo

material em termos de existecircncia e visibilidade mas tambeacutem porque essa luz eacute tida

como boa46

Haacute uma triacuteplice articulaccedilatildeo impliacutecita no conceito de forma que irmana

existecircncia bondade e beleza assim o evidencia Santo Agostinho em De vera religione

Pois tudo o que eacute necessariamente possui beleza por mais iacutenfima que

seja portanto ainda que seja um bem iacutenfimo seraacute todavia um bem e procederaacute de Deus

Pois que se a suma beleza eacute um sumo bem tambeacutem a mais iacutenfima beleza seraacute um

iacutenfimo bem Assim todo o bem ou eacute Deus ou procede de Deus Logo ateacute mesmo a

beleza mais iacutenfima proveacutem de Deus Sem duacutevida o que se diz a respeito da beleza pode

tambeacutem ser dito quanto agrave forma47

Eacute a forma que vivifica a mateacuteria e que a retira do limbo entre o ser e o natildeo ser

Tudo o que eacute tendo sido criado por Deus eacute bom qualquer que seja o seu modo (bonum

est quidquid aliquo modo est)48

A existecircncia implica um certo modo ou uma certa

forma de ser nos conceitos species e forma radicam os qualificativos speciosus e

formosus Plotino jaacute havia enunciado a articulaccedilatildeo entre ser e beleza ao defender que

natildeo haacute belo privado de ser nem essecircncia privada de ser belo Para o licopolitano na

falta de belo falta tambeacutem a essecircncia o ser eacute tanto mais ser na medida em que eacute belo49

Santo Agostinho natildeo poderia estar mais de acordo quando em De immortalitate

animae conclui que se natildeo eacute a massa material (moles) mas a species que daacute ao corpo o

seu ser entatildeo a sua plenitude eacute tanto maior quanto mais speciosus e pulchrius for Pela

46

laquoDeus disse ldquoFaccedila a luzrdquo E a luz foi feita Deus viu que a luz era boa e separou a luz das trevasraquo Gn

13-4

47 laquoQuoniam quidquid est quantulacumque specie sit necesse est ita etsi minimum bonum tamen bonum

erit et ex Deo erit Nam quoniam summa species summum bonum est minima species minimum bonum

est Omne autem bonum aut Deus aut ex Deo Ergo ex Deo est etiam minima species Sane quod de

specie hoc etiam de forma dici potestraquo De ver relig XVIII 35 (CCL 32 p 208) A traduccedilatildeo de species

por beleza pretende evitar uma transliteraccedilatildeo que limitaria a nosso ver a verdadeira acepccedilatildeo do trecho e

segue a estrateacutegia utilizada por Boyer na ediccedilatildeo francesa de Confessionum onde este conceito eacute tambeacutem

traduzido por beauteacute Cf Saint Augustin Les aveux trad Freacutedeacuteric Boyer Paris POL 2008

48 Cf Conf XIII 31 46

49 Cf En V 8 9

49

mesma loacutegica substituindo os qualificativos speciosus e pulchrius por deformis o

inverso eacute verdadeiro50

Por outras palavras um corpo tem tanto mais ser quanto mais

speciosus atque pulchrius for e tem menos ser quatildeo mais feio ou disforme for O ser eacute

proporcional agrave species o que seraacute o mesmo que dizer que o ser de um corpo eacute

proporcional agrave sua beleza

Tal como moles e materia surgem lado a lado nos textos agostinianos ndash e na

maioria das vezes com valor intermutaacutevel ndash tambeacutem com os substantivos forma e

species ocorre o mesmo Tal sinoniacutemia natildeo significa poreacutem que o Bispo de Hipona os

empregue indistintamente Em relaccedilatildeo ao binoacutemio materia moles evidencia-se que o

uacuteltimo termo eacute utilizado sobretudo para expressar a ideia de ldquoextensatildeo materialrdquo51

embora muitas vezes surja tambeacutem empregue no sentido de ldquosubstacircnciardquo52

No que

toca ao par forma species haacute que salientar que a ambivalecircncia anteriormente apontada

para o conceito de forma se aplica tambeacutem agrave species pelo que natildeo raras vezes Santo

Agostinho emprega ambos os termos ligando-os pela conjunccedilatildeo ndashque (atque) ou ateacute por

vel53

Quando species se articula com pulcher geralmente este uacuteltimo qualificativo tem

uma funccedilatildeo de reforccedilo do primeiro jaacute que como nota Monteil a pulchritudo evoca um

estado optimizado do corpo54

Se species e forma se podem reportar agrave causa da

perfeiccedilatildeo ou plenitude do ser e do corpo o mesmo jaacute natildeo parece verificar-se

relativamente a pulcher ainda que seja empregue conjuntamente com species A

sinoniacutemia apontada entre forma e species natildeo sucede entre forma e pulcher A

pulchritudo estaacute mais para consequecircncia do que para causa ndash mais para uma

conformidade exterior do que para o princiacutepio que a configura

Fontanier sugere que em relaccedilatildeo agrave forma species cobre um registo mais extenso

e que etimologicamente seraacute a transposiccedilatildeo mais correcta do grego ίδέα55

Segundo

este autor ldquospecies designa toda a beleza desde a epifania de Deus ateacute agrave atracccedilatildeo dos

50

Cf De imm an 8 13

51 Cf Conf VII 1 2 XII 20 29 XII 21 30 XIII 32 47

52 Cf Conf V 10 20 V 11 21 X 6 10 X 43 70 XII 15 19

53 Cf Jean Michel Fontanier La beauteacute selon Saint Augustin Presses Universitaires de Rennes 2008 p 29

54 Cf P Monteil Beau et Laid en Latin Eacutetude de vocabulaire Paris Klincksieck 1964 p 91

55 Cf Fontanier op cit pp 31-38

50

corpos Forma evoca mais a correcccedilatildeo do desenho e corresponde mais a uma geometria

da belezardquo56

Soacute em parte concordamos com tais suposiccedilotildees pois se a palavra species

sugere mais enfaticamente o acircmbito esteacutetico do contexto em que eacute referida parece-nos

que tal ocorre precisamente em virtude de uma crescente especificidade que

esteticamente se comeccedila a definir com o conceito de forma e que se vai concentrando

em termos de acepccedilatildeo e de particularizaccedilatildeo no conceito species ateacute agrave perda de valecircncias

pelo qualificativo pulcher anteriormente referida Quase incorrendo numa redundacircncia

podemos considerar a species uma especificaccedilatildeo da forma que a centraliza com maior

margem no seio do acircmbito esteacutetico Eacute o proacuteprio Fontanier quem refere que ldquoa

diferenciaccedilatildeo da mateacuteria capax specierum em muacuteltiplas species significa

indissociavelmente a especificaccedilatildeo dos seres nas formas proacuteprias e a sua acessatildeo agrave

visibilidade ou melhor agrave perceptibilidade ndash a criaccedilatildeo de substacircncias discretas e

discerniacuteveisrdquo57

Efectivamente o termo forma quase parece insuficiente porque menos

especiacutefico para exprimir em concreto a ideia de beleza mas natildeo corresponderaacute mais a

uma geometria da beleza ou a uma correcccedilatildeo do desenho do que o termo species jaacute que

se ambas forem perspectivadas em relaccedilatildeo agrave ordem que prefiguram percebe-se que

efectivamente haacute uma real sinoniacutemia entre os dois conceitos e que as diferenccedilas no

emprego de cada um satildeo fruto do cuidado do Bispo de Hipona em exprimir a

possibilidade empiacuterica da compreensatildeo esteacutetica dos diferentes modos do ser por vezes

fazendo deles objectos directos dessa perspectivaccedilatildeo sensiacutevel

56

Ibid p 35

57 Ibid p 31 Cf tambeacutem p 32 onde Fontanier afirma que Santo Agostinho utiliza o termo species para

designar a forma imprimida (o τύπος) na mateacuteria informe

51

12 ndash Os fundamentos antropoloacutegicos da esteacutetica agostiniana

A doutrina da criaccedilatildeo ex nihilo natildeo soacute permitiu a Santo Agostinho refutar o

dualismo maniqueiacutesta como lhe facultou um enquadramento propiacutecio agrave diminuiccedilatildeo do

fosso ontoloacutegico entre a esfera divina e a esfera sensiacutevel que o dualismo platoacutenico lhe

legara A forma inovadora como o Bispo de Hipona perspectiva a relaccedilatildeo corpo alma

pode ser interpretada como paradigmaacutetica da relaccedilatildeo esfera sensiacutevel esfera inteligiacutevel58

assumindo especial relevacircncia no entendimento do papel que a beleza dos corpos tem

no percurso ascensional a empreender pela alma ateacute agrave sua origem

Para Santo Agostinho tambeacutem a alma eacute uma criatura mutaacutevel e ainda que nas

primeiras obras seja possiacutevel encontrar expressotildees como ldquoalma divinardquo59

o Bispo de

Hipona natildeo a perspectiva enquanto tal contrariamente aos maniqueus para quem as

almas eram partiacuteculas da natureza divina enclausuradas em corpos temporais na

sequecircncia do conflito primordial entre o bem e o mal O ponto de vista maniqueu que

Santo Agostinho partilhou durante cerca de nove anos culminava de certo modo numa

desresponsabilizaccedilatildeo face ao pecado uma vez que natildeo era verdadeiramente o homem

quem pecava mas a natureza maligna que o enclausurava60

Santo Agostinho rejeita

tambeacutem a hipoacutetese plotiniana da alma como hipoacutestase que abarca a multiplicidade de

almas individuais

58

Na mesma senda Peter Brown afirma que a relaccedilatildeo alma corpo eacute uma sineacutedoque para designar a

humanidade vulneraacutevel face a Deus Cf P Brown Le Renoncement agrave la chair Virginiteacute ceacutelibat et

continence dans le christianisme primitif Paris Gallimard 1995 p76

59 Por exemplo em Contra Acad I 1 1 Cocircnscios de que a expressatildeo divinum animum assume um

sentido figurativo os tradutores agostinianos evitam traduzi-la literalmente optando por acepccedilotildees como

ldquoalma sublimerdquo

60 Cf Conf V 10 18

52

Natildeo sendo aquilo que Deus eacute a alma foi criada por Ele a partir do nada A

questatildeo da origem da alma permaneceraacute no entanto sempre em aberto para o filoacutesofo

africano que natildeo aventa muito mais sobre o assunto para aleacutem da sua convicccedilatildeo de a

alma ter sido criada por Deus e de natildeo ser um corpo61

A convicccedilatildeo de a alma ter sido

criada por Deus ndash a partir do nada e natildeo de si62

ndash pressupotildee desde logo que a alma seja

naturalmente boa embora sujeita agrave degradaccedilatildeo e agrave corrupccedilatildeo A alma natildeo pode dada a

sua natureza ser maacute Ela eacute um bem corruptiacutevel que ocupa uma posiccedilatildeo intermeacutedia entre

Deus e os corpos Nada estaacute mais proacuteximo de Deus do que a alma63

A posiccedilatildeo intermeacutedia da alma natildeo lhe outorga poreacutem o papel de intermediaacuteria

entre a esfera divina e a esfera sensiacutevel como sucedia na perspectiva neoplatoacutenica Para

Santo Agostinho esse papel mediador cabe exclusivamente a Cristo A convicccedilatildeo da

incorporalidade da alma preconiza que esta se constitui como uma substacircncia imaterial

inextensa e indivisiacutevel ndash caracteriacutesticas que o Bispo de Hipona retira do neoplatonismo

No discurso epistolar que dirige a Jeroacutenimo64

Santo Agostinho argumenta a favor da

incorporalidade da alma ao notar que esta se apercebe das ocorrecircncias em diversas

partes do corpo o que implica que a totalidade da alma deva estar presente em cada

parte do corpo Ora se a alma estaacute inteiramente em cada parte do corpo natildeo pode ela

proacutepria ser um corpo65

Sendo uma criatura a alma tal como o corpo estaacute sujeita agrave

mudanccedila ndash a aprendizagem os afectos a deterioraccedilatildeo ou o progresso moral podem

mudar a alma ndash poreacutem diferenciando-se do corpo que eacute mutaacutevel no espaccedilo e no tempo

a alma apenas estaacute sujeita agrave mudanccedila no plano da temporalidade e ainda assim a

mutabilidade da alma natildeo lhe pressupotildee quaisquer mudanccedilas substanciais As mudanccedilas

61

Cf De Gen ad litt VII 28 43 onde Santo Agostinho elenca o que seguramente pode afirmar acerca

da alma Em relaccedilatildeo agrave questatildeo da origem da alma esta obra iniciada em 393 e concluiacuteda em 415 natildeo

difere da posiccedilatildeo evidenciada por Santo Agostinho em Epistola ad Hieronymum de Origine Animae (Ep

166 a Jeroacutenimo acerca da origem da alma) tambeacutem redigida em 415 nem dos quatro textos que compotildeem

De Anima et ejus Origine escritos em 419 como reacccedilatildeo aos dois livros que um jovem filoacutesofo africano

chamado Vicente Victor escrevera criticando a indefiniccedilatildeo da abordagem agostiniana sobre a origem da

alma e apresentando as suas ingeacutenuas conclusotildees

62 Cf De an et orig I 4

63 Cf De quant an 34 77

64 Mais concretamente em Ep 166 2 4 Esta epiacutestola eacute tambeacutem conhecida pelo tiacutetulo De origine animae

hominis

65 Cf De imm an 17 26

53

qualitativas que a existecircncia temporal imprime na alma satildeo alteraccedilotildees acidentais e natildeo

determinam uma perda ou alteraccedilatildeo de identidade Aliaacutes mais do que em mudanccedila ao

niacutevel da alma dever-se-aacute falar em moccedilatildeo uma vez que a sua substancialidade a torna

afim do movimento A substacircncia aniacutemica eacute uma substacircncia viva pois sem vida natildeo

poderia ser o motor do corpo e enquanto motor ela eacute imutaacutevel no sentido em que natildeo

se altera a sua substacircncia A alma eacute mantida na sua existecircncia pela vontade de Deus e a

natureza imutaacutevel de certo tipo de conhecimentos implica necessariamente a identidade

substancial da mente na qual tal conhecimento estaacute presente Aqui reside tambeacutem uma

das provas da imortalidade da alma ainda que ela natildeo partilhe a eternidade de Deus66

Santo Agostinho permaneceraacute irresoluto quanto agrave questatildeo da origem da alma

especialmente no que concerne ao momento em que a alma e o corpo se unem para

constituir o homem Em De beata vita escrito em Cassiciacuteaco no ano 386 o filoacutesofo

exprime as suas reticecircncias quanto agrave possibilidade de algum dia poder encontrar uma

soluccedilatildeo para a anima quaestio67

Mais de uma trintena de anos depois em De anima et

ejus origine as duacutevidas mantecircm-se Durante este periacuteodo vaacuterias foram as obras nas

quais a questatildeo eacute abordada e nas quais o Bispo de Hipona vai elencando hipoacuteteses sem

no entanto tomar partido por alguma delas Se em De beata vita as razotildees sobre a

presenccedila do homem no mundo ndash e consequentemente sobre a ligaccedilatildeo das almas

individuais aos corpos ndash variam entre seis hipoacuteteses68

jaacute em De libero arbitrio escrito

dois anos depois Santo Agostinho apresenta um conjunto de possiacuteveis razotildees mais

reduzido mas tambeacutem mais estruturado sobre a origem das almas com vista agrave defesa

da justiccedila divina a) as almas surgem por propagaccedilatildeo ou descendecircncia tendo sido

criadas a partir da alma pecadora de Adatildeo (hipoacutetese traducianista)69

b) as almas satildeo

individualmente criadas em cada crianccedila que nasce (hipoacutetese criacionista)70

c) as almas

preexistem algures e satildeo enviadas por Deus para os corpos dos que nascem obliterando

66

Sobre a distinccedilatildeo entre imortalidade e eternidade cf De div quaest 83 19

67 Cf De beata vita 5 5 Na uacuteltima obra que escreveu em 430 Santo Agostinho confessa sem pejo que

continua na ignoracircncia em relaccedilatildeo a esta questatildeo Cf Contra Jul op imp II 68

68 Satildeo elas a) o acaso desordenado b) a vontade de Deus c) a natureza d) a necessidade e) a vontade do

homem f) a confluecircncia de algumas ou de todas estas causas Cf De beata vita 1 1

69 Cf De lib arb III 20 55

70 Cf De lib arb III 20 56

54

tudo o que povoou as respectivas vidas preacute-corpoacutereas para se submeterem agrave vida

terrena71

e d) as almas preexistem algures e descem voluntariamente (sponte) ateacute aos

corpos72

Santo Agostinho recusa optar por qualquer uma destas hipoacuteteses para as quais

desenvolve argumentos a favor da justiccedila de Deus e da Sua total inocecircncia

relativamente a quaisquer pecados do homem

A maioria dos comentadores da obra agostiniana defende que dificilmente o

Bispo de Hipona tomaria o partido das duas uacuteltimas hipoacuteteses que implicam a ideia

platoacutenica da preexistecircncia da alma em relaccedilatildeo ao corpo Por exemplo Teske e Madec

defendem que Santo Agostinho preferiria a hipoacutetese criacionista73

jaacute Montcheuil e

Bassols consideram que o Bispo de Hipona teria escolhido a traducianista74

A grande

excepccedilatildeo eacute OrsquoConnell que defende a hipoacutetese da preexistecircncia da alma Segundo este

autor o traducianismo e o criacionismo satildeo mais dificilmente compatiacuteveis com a

incorporalidade da alma feita agrave imagem de Deus OrsquoConnell argumenta ainda que

parece oacutebvio que Santo Agostinho defende a preexistecircncia da alma humana ao

descrever que a alma humana antes de pecar fazia parte da criaccedilatildeo invisiacutevel e espiritual

habitando um paraiacuteso sem lugar em corpos celestiais diaacutefanos tendo sido expulsa para

71

Cf De lib arb III 20 57

72 Cf De lib arb III 20 58

73 R Teske ldquoAugustinersquos Theory of Soulrdquo STUMP et al The Cambridge Companion to Augustine

Cambridge University Press 2001 pp 116-123 G Madec (ed) De libero arbitrio BA Paris 1976 p

580

74 Y de Montcheuil laquoLrsquohypothegravese de lrsquoeacutetat originel drsquoignorance et de difficulteacute drsquoapregraves le De libero

arbitrio de saint Augustinraquo Meacutelanges theacuteologiques Paris Aubier 1946 pp 93-111 L Bassols Santo

Agostinho vida obra e pensamento Lisboa Puacuteblico 2008 p 138 Note-se que a favor da opiniatildeo destes

investigadores concorre uma passagem em De anima et ejus origine I 24 onde Santo Agostinho diz que

Vicente Victor ndash o tal jovem filoacutesofo africano que escrevera dois livros criticando a irresoluccedilatildeo

agostiniana acerca da origem da alma ndash estaacute errado ao afirmar que a alma natildeo eacute tirada da geraccedilatildeo nem do

nada Mais adiante nesta obra (I 26) o Bispo de Hipona acaba por escrever que natildeo afirma nem

desmente que a alma seja dada por geraccedilatildeo Haacute uma corrente traducianista conhecida por

generacionismo em que se faz a defesa de que as almas subsquentes derivam da de Adatildeo sendo

transmitidas de pai para filho OrsquoConnor eacute o seu maior seguidor Cf William P OrsquoConnor The Concept

of the Human Soul according to Saint Augustine PhD Dissertation Faculty of Philosophy of the Catholic

Universityof America 1921 p73 A nossa opiniatildeo concorre com a dos que defendem que o Bispo de

Hipona ter-se-ia aproximado mais da hipoacutetese traducionista geracionista com base em Ep 166 IV 10

onde Santo Agostinho roga a Jeroacutenimo que lhe mostre indiacutecios capazes de contrariar a opiniatildeo de que as

almas derivam da alma do primeiro homem e capazes de provar que as almas satildeo individualmente

criadas como sucedeu para Adatildeo Apesar de notarmos tal preferecircncia natildeo podemos esquecer que o Bispo

de Hipona sempre fez questatildeo de salientar a sua irresoluccedilatildeo relativamente a este problema da origem das

almas poacutes-adamitas

55

o mundo terreno aquando do seu pecado75

Em 415 Na Epiacutestola 166 a Jeroacutenimo acerca

da origem da alma76

Santo Agostinho reitera as suas duacutevidas sobre como as almas poacutes-

adamitas se originavam A alma de Adatildeo foi claramente criada por Deus77

mas a

explicaccedilatildeo relativa ao momento e ao modo da criaccedilatildeo da alma dos homens subsequentes

permanece obscura Seguro eacute tambeacutem que o Bispo de Hipona rejeita a doutrina

platoacutenica da transmigraccedilatildeo ou reincarnaccedilatildeo progressiva das almas A transmigraccedilatildeo

ocorre pois a alma apoacutes a morte torna ao corpo humano poreacutem este corpo humano eacute

agora imortal e nele natildeo se experienciam as miseacuterias do corpo corruptiacutevel Santo

Agostinho vecirc nas proposiccedilotildees de Platatildeo e de Porfiacuterio acerca deste tema uma

possibilidade de acerto caso ambos os autores abdicassem de determinadas concepccedilotildees

harmonizando as suas perspectivas antagoacutenicas78

75

Cf OrsquoConnell ldquoThe Genesi contra Manichaeos and the origin of the soulrdquo REAug 39 1993 pp129-

141 Idem ldquoPre-Existence in the Early Augustinerdquo REAug 25 1980 pp 176-188 Idem ldquoThe Origin of

the Soul in Saint Augustinersquos Letter 143rdquo REAug 28 1982 pp 239-252 A defesa da preexistecircncia da

alma que OrsquoConnell leva a cabo eacute bastante criticada por Carrol Harrison em Beauty and revelation in the

thought of Saint Augustine Oxford Clarendon Press 1992 p 35 OrsquoDaly tambeacutem se manifesta contra a

adopccedilatildeo agostiniana da teoria da preexistecircncia da alma argumentando que a teoria da iluminaccedilatildeo eacute a

prova inequiacutevoca de que o Bispo de Hipona natildeo vai nesse sentido embora o equacione a tiacutetulo

meramente hipoteacutetico em De lib arb I 12 24 e III 20 56-21 59 Cf OrsquoDaly Augustinersquos philosophy of

mind University of California Press 1987 p 199 e Idem ldquoDid St Augustine ever believe in the Soulrsquos

Pre-existencerdquo Augustinian Studies 5 1974 pp 227-235 Na opiniatildeo de Gilson eacute possiacutevel que Santo

Agostinho tenha aceitado numa primeira fase a articulaccedilatildeo entre a teoria da preexistecircncia da alma e a

doutrina da reminiscecircncia que eacute o seu complemento natural Cf Gilson Introduction agrave leacutetude de saint

Augustin 10 ed Paris Vrin 1987 p 95

76 Cf Ep 166 ad Hieronymum de Origine Animae 3 7 - 4 8 Nesta carta o Bispo de Hipona volta a

elencar cinco possiacuteveis formas pelas quais a alma pode ter incarnado no corpo descartando

imediatamente a quinta hipoacutetese segundo a qual a alma humana faria parte da alma divina e salientando

que ateacute agrave data natildeo conseguira ainda subscrever a hipoacutetese criacionista preferida por Jeroacutenimo A razatildeo

de tal relutacircncia assentava no facto de que se as almas fossem criadas por Deus para cada indiviacuteduo

aquando do seu nascimento o sacramento do baptismo deixaria de fazer sentido para as almas das

crianccedilas que natildeo estariam ainda maculadas por qualquer pecado

77 A alma de Adatildeo foi criada conjuntamente com o seu corpo correspondendo portanto agrave hipoacutetese

criacionista Tal como a de Adatildeo tambeacutem a alma de Eva eacute criada ex nihilo pois ela natildeo eacute uma

descendente do primeiro homem apesar de o seu corpo ter sido feito a partir da costela adacircmica nem a

sua alma eacute emanada da de Adatildeo Cf De Gen ad litt X 4 e X 10

78 Cf De civ Dei XXII 27-28 O Bispo de Hipona com certa ingenuidade considera que tanto Platatildeo

como Porfiacuterio poderiam ter-se tornado cristatildeos se conjugassem as suas perspectivas abrindo matildeo de

certas premissas Desde logo o filoacutesofo vecirc uma siacutentese cristatilde na afirmaccedilatildeo de Platatildeo de que as almas natildeo

podem existir para sempre sem os corpos e na afirmaccedilatildeo porfiriana de que a alma purificada e regressada

agrave origem natildeo pode novamente voltar aos males do mundo terreno

56

Se a origem da alma individual poacutes-adamita eacute obscura para Santo Agostinho o

mesmo natildeo se pode dizer quanto ao seu destino O Bispo de Hipona advoga firmemente

a imortalidade da alma sobretudo em De immortalitate animae e em Soliloquia Aleacutem

do jaacute citado argumento baseado na natureza imutaacutevel de certo tipo de conhecimentos

Santo Agostinho adopta tambeacutem o argumento que Platatildeo apresenta do Feacutedon 102a-

107b segundo o qual se a caracteriacutestica definidora da alma eacute o facto de ter vida entatildeo

ela natildeo pode admitir o contraacuterio da vida ndash natildeo pode cessar de viver79

Aleacutem destes

argumentos Santo Agostinho defende a imortalidade da alma considerando que se eacute

nela que reside o conhecimento ndash capacidade de direccionar o pensamento daquilo que

se tem por certo para a descoberta do incerto ndash entatildeo a alma humana soacute pode ser

imortal pois o conhecimento e as relaccedilotildees racionais satildeo realidades imutaacuteveis que a

morte natildeo pode tocar sendo a alma o lugar do conhecimento e da razatildeo ela tambeacutem eacute

imortal80

Na alma residem as verdades eternas ainda que por vezes pareccedila natildeo as

possuir dada a sua ignoracircncia ou esquecimento81

A alma soacute poderia deixar de ser se

fosse separada da razatildeo mas tal natildeo eacute possiacutevel pois a alma natildeo pode ser sem razatildeo 82

Outro argumento baseia-se na divisibilidade infinita da mateacuteria que por muito que a

reduza nunca faz com que caia no nada ora sendo isto verdade para a mateacuteria mais

ainda seraacute para a alma que a vivifica Tender ao nada eacute tender para a morte e na

impossibilidade da alma cair no nada reside tambeacutem a prova da sua imortalidade83

Acrescente-se ainda que tal como o corpo natildeo pode ser privado da sua forma jaacute que por

mais mudanccedilas que sofra natildeo perde a sua natureza corpoacuterea tambeacutem a alma natildeo perde

nunca a sua natureza84

Por vivificar a mateacuteria a alma natildeo eacute um mero acidente eacute vida e

natildeo comporta a sua privaccedilatildeo pois natildeo seria uma alma mas algo animado (como um

corpo) ora nunca a alma poderaacute tornar-se um corpo85

Se a alma recebeu o que a

79

Cf De imm an 4 5 9 16

80 Cf De imm an 1 1-2

81 Cf De imm an 4 5-6

82 Cf De imm an 16 25

83 Cf De imm an 7 12

84 Cf De imm an 8 13

85 Cf De imm an 13 20-21 15 24

57

constitui do Ser Supremo nada haacute que se oponha a esta substacircncia primordial logo

nada haacute que possa retirar agrave alma o que Dele recebeu86

Note-se poreacutem que a defesa da imortalidade da alma humana assume na

perspectiva de Santo Agostinho como que uma estrateacutegia adjuvante na questatildeo da

ressurreiccedilatildeo do corpo Tal ocorre em virtude da tomada de posiccedilatildeo cristatilde em detrimento

da perspectiva platoacutenica

A antropologia agostiniana considera que o homem eacute composto por uma alma e

um corpo (tambeacutem este vindo de Deus87

) funcionando a alma como uma espeacutecie de

arrais do corpo a partir do qual se desenrolam todos os seus movimentos88

Eacute portanto a

alma que governa o corpo e do mesmo modo que este natildeo deve ser considerado como

seu ergaacutestulo tambeacutem a uniatildeo da alma com o corpo terreno natildeo deve pressupor que se

trate de um supliacutecio imerecido em virtude do pecado ou um estado desprovido de todo o

bem Tendo Deus dotado a alma da faculdade de com a sua ajuda se trabalhar e

aperfeiccediloar a si mesma o estado de ignoracircncia e servidatildeo que a existecircncia sensiacutevel

comporta deve ser encarado como uma incitaccedilatildeo e um ponto de partida para o

aperfeiccediloamento Se a alma se recusar a aperfeiccediloar entatildeo efectivamente seraacute merecedora

de puniccedilatildeo pois despreza a faculdade que Deus lhe deu se a alma seguir a sua proacutepria

natureza entatildeo teraacute por recompensa poder retomar o estado puro e preacute-pecador da alma de

Adatildeo no Paraiacuteso Nem mesmo nesta condiccedilatildeo de inocecircncia e perfeiccedilatildeo a alma

individual eacute considerada sem estar associada a um corpo ndash neste caso natildeo a um corpo

corruptiacutevel mas a um corpo celestial espiritual89

Este corpo conforme Santo

Agostinho adverte natildeo deve ser tomado por um espiacuterito90

O corpo espiritual eacute um

corpo translucente e diaacutefano que permite a percepccedilatildeo imediata das almas entre si sendo

directamente iluminado pela luz do Verbo91

O corpo espiritual eacute um corpo glorioso

86

Cf De imm an 12 19

87 Cf De an et orig I 21

88 Cf De quant an 14 23

89 Cf Cor 115

90 Cf De civ Dei XIII 23

91 Eacute possiacutevel encontrar prenuacutencios desta ideia em Plotino mais especificamente em En V 8 3-4 onde eacute

abordado o tipo de visibilidade que os inteligiacuteveis estabelecem entre si e a relaccedilatildeo entre o princiacutepio

racional modelo da beleza corpoacuterea com a beleza primeira da qual deriva e que eacute perspectivada como

uma luz maior

58

que pela ressurreiccedilatildeo conserva a plena materialidade da sua carne e adquire qualidades

suplementares tal como a alma ele deveacutem imortal e impassiacutevel furtando-se aos efeitos

do tempo e da corrupccedilatildeo A grande diferenccedila estaacute na relaccedilatildeo que manteacutem com a alma

Se na existecircncia terrena a alma experiencia as paixotildees do corpo com a ressurreiccedilatildeo quer

o corpo quer a alma vivem em total harmonia num estado de natildeo perturbaccedilatildeo Esta

harmonia eacute fundamentalmente hieraacuterquica caracterizando-se pela obediecircncia absoluta

do corpo aos desiacutegnios da alma O corpo espiritual eacute assim designado por se submeter

totalmente agrave alma92

Santo Agostinho natildeo perspectiva portanto uma libertaccedilatildeo da alma em

relaccedilatildeo ao corpo que habita atraveacutes da morte Para o homem ressurrecto nem o seu

corpo deixa de ser reconheciacutevel no outro mundo nem a sua alma passa a ser um

vago espectro impessoal que desapareccedila no anonimato dos mortos93

Apoacutes a morte o

corpo mortal eacute renovado para acompanhar servilmente a alma auxiliando-a na sua

dignidade94

e impedindo que esta corte peremptoriamente com a ordem sensiacutevel

apesar de natildeo mais estar sujeita a paixotildees Santo Agostinho refere que pela

ressurreiccedilatildeo os santos habitaratildeo o mesmo corpo em que sofreram as agruras da vida

na terra95

aqueles que sofreram martiacuterios manteratildeo no corpo renovado as cicatrizes

pois natildeo satildeo uma deformidade mas um sinal de dignidade e beleza de valor96

Pela

ressurreiccedilatildeo os corpos erguer-se-atildeo como seriam na sua condiccedilatildeo oacuteptima de sauacutede

forccedila e beleza fiacutesica que como anteriormente referimos Santo Agostinho descreve

como dependente de uma harmonia de partes combinada com uma compleiccedilatildeo

agradaacutevel (suavitas coloris)97

A estatura dos corpos teraacute as proporccedilotildees que tinha

atingido ou que deveria ter atingido na juventude98

embora tambeacutem seja aceitaacutevel

92

Cf J Baschet laquoAcircme et corps dans lrsquooccident medieval ndash une dualiteacute dynamique entre pluraliteacute et

dualismeraquo in Archives de sciences sociales des religions 112 Paris EHESS 2000 p 12 onde se

clarifica o paradoxo do corpo glorioso se constituir como um modelo de soberania da alma

93 Em Ep 7 5 13 Santo Agostinho apresenta a ideia de que depois da morte as almas permanecem num

estado de repouso ou possivelmente de purificaccedilatildeo ateacute ao momento da ressurreiccedilatildeo dos corpos

94 Cf De mus VI 5 13 (PL 32 c 1170)

95 Cf De civ Dei XXII 19

96 Cf ibid

97 Cf ibid

98 Cf De civ Dei XXII 16 e 20

59

considerar que se manteraacute a estatura que se tinha por altura da morte desde que se

exclua toda a disformidade Com efeito haacute uma medida de perfeiccedilatildeo que todos os

corpos possuem desde que foram concebidos mas esta medida de perfeiccedilatildeo eacute in

ratione non in mole ndash os corpos possuem-na na razatildeo causal e natildeo na sua

materialidade Pode ocorrer ela nunca chegar a manifestar-se no corpo animal mas

apenas no corpo espiritual como sucede no caso de algueacutem que tenha falecido ainda

na infacircncia99

Nenhum defeito corporal que possa ter existido nesta vida e que se oponha agrave beleza

humana prevaleceraacute na ressurreiccedilatildeo Natildeo haveraacute alopecia100

nem corpos mutilados nem

corpos monstruosos Todas as excrescecircncias naturais mas desgraciosas que um corpo possua

na sua existecircncia terrena desapareceratildeo com a renovaccedilatildeo apoacutes a morte

Esta renovaccedilatildeo do corpo natildeo implica qualquer diminuiccedilatildeo da substacircncia corporal jaacute

que Deus tem o poder para separar o que de errado haja com um corpo natildeo para eliminar esse

componente disforme mas para agrave semelhanccedila de um artiacutefice o redistribuir e misturar em

conformidade com a proporccedilatildeo das partes conservando a quantidade e corrigindo a

disformidade101

A beleza do corpo espiritual seraacute portanto bastante superior agrave beleza do corpo

animal jaacute que o primeiro eacute uma optimizaccedilatildeo do segundo natildeo soacute no que toca agrave sua

corporeidade mas tambeacutem graccedilas agrave sua harmonizaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave alma A beleza do corpo

eacute uma beleza de terceira ordem inferior agrave da alma sendo que a beleza da alma de algum

modo acaba por ser perceptiacutevel tambeacutem no corpo No corpo animal isso ocorre por exemplo

pela percepccedilatildeo da sauacutede jaacute que esta indicia uma vida regrada e sem viacutecios No corpo

espiritual ndash ressurrecto ndash isso ocorre pela clarissima perspicuitas102

que caracteriza o modo

de visibilidade vigente no reino de Deus e que possibilita que na carne espiritual refulja

99

Cf De civ Dei XXII 15

100 Note-se a insistecircncia com que em De civitate Dei o Bispo de Hipona cita os versiacuteculos do Evangelho

de S Lucas Nem um soacute cabelo da vossa cabeccedila se perderaacute (laquoCapillus capitis vestri non peribitraquo Lc 21

18) e Ateacute os cabelos da vossa cabeccedila estatildeo contados (laquoCapilli capitis vestri numerati sunt omnes raquo Lc

12 7) Cf De civ Dei XXII 12 14 19 20

101 Afirma Santo Agostinho que aquilo que eacute mal feito seraacute corrigido aquilo que eacute menos do que conveacutem

seraacute completado e aquilo que eacute mais do que conveacutem seraacute suprimido mantendo-se em todo o caso a

integridade da mateacuteria (laquoProinde nulla erit deformitas quam facit incongruentia partium ubi et quae

prava sunt corrigentur et quod minus est quam decet unde Creator novit inde supplebitur et quod plus

est quam decet materiae servata integritate detraheturraquo De civ Dei XXII 19)

102 Cf De civ Dei XXII 29

60

tambeacutem a beleza da virtude103

Esteticamente o ser humano deve o seu hibridismo ao enlace

entre a beleza da alma ndash uma beleza racional ndash e a beleza do corpo ndash uma beleza formal

positiva na sua espeacutecie poreacutem bastante relativa e que natildeo deixa de estar desvinculada da

beleza racional incorpoacuterea (mas nem por isso imperceptiacutevel) A beleza do corpo exprime a

beleza da forma que lha confere

A beleza da alma eacute seguramente superior agrave beleza do corpo pois a verdade desta

segunda encontra o seu fulcro na primeira e a prova disso eacute que se a alma abandonasse o

corpo este natildeo passaria de um cadaacutever horrendo A beleza da alma estaacute relacionada com o

processo de autoconhecimento pelo qual o homem descobre a sua condiccedilatildeo de imago Dei

Pelo fortalecimento da razatildeo pelo exerciacutecio da feacute e das virtudes (sobretudo da caritas) a alma

aperfeiccediloa-se tornando-se cada vez mais igual a si mesma Novamente eacute aqui oacutebvia a

influecircncia de Plotino pela conformaccedilatildeo da alma agrave sua proacutepria substacircncia e pela exaltaccedilatildeo da

beleza da alma (na qual estatildeo impliacutecitas as virtudes) face agrave beleza do corpo Santo Agostinho

destaca-se do legado neoplatoacutenico contando entre as virtudes da alma a feacute cristatilde que descreve

como sendo mais bela do que a Helena do mito grego104

mas subsiste a ideia de que as

belezas meramente corporais satildeo inferiores agrave beleza das virtudes Tal como a beleza do corpo

tambeacutem a beleza da alma consiste na sua forma mas mais especificamente a forma revela a

sua condiccedilatildeo de imago Dei Pelo pecado a alma torna-se deficiente e natildeo soacute o homem se

torna disforme como perde ser mas a imagem de Deus nunca eacute totalmente apagada105

A beleza eacute da ordem da conversio ndash formaccedilatildeo ou reformaccedilatildeo da imagem de Deus nas

criaturas ao se direccionarem para Ele em resposta ao Seu chamamento106

A fealdade eacute da

ordem da aversio ndash afastamento da criatura em relaccedilatildeo a Deus pela dispersatildeo das faculdades

humanas nas coisas materiais e pela conformaccedilatildeo (conformatio) a elas resultando na

deformaccedilatildeo da imago Dei107

Com efeito logo pelo pecado original o homem ficou

103

Cf De civ Dei XXII 19 onde Santo Agostinho se refere agraves cicatrizes das chagas dos maacutertires que

atraem o olhar dada a beleza da virtude que nelas refulge Esta beleza natildeo eacute do corpo embora esteja no

corpo (in corpore non corporis)

104 Cf Ep 40 4 7

105 Cf De Trin XIV 4 6 e 16 22

106 Cf C Harrison Beauty and Revelation in the Thought of Saint Augustine Oxford University Press

1992 p 178

107 Para a questatildeo da aversio cf De imm an 8 13 Conf XIII 12 13 - 13 14 em relaccedilatildeo agrave questatildeo da

conformatio cf De Trin XIV 16 22 e Rom 122

61

condenado a errar pela regio dissimilitudinis108

na qual para a reformaccedilatildeo da imagem de Deus

(reformatio) eacute totalmente dependente da graccedila divina109

A conversatildeo do homem e a

reformaccedilatildeo da sua alma soacute satildeo possiacuteveis ldquopela feacute na revelaccedilatildeo de Deus no amor e na

esperanccedila que Ele inspira e que leva ao entendimento e ao conhecimentordquo110

A soteriologia

cristatilde preconiza que Deus incarnado assume a disformidade humana para a reformar A graccedila

divina manifesta-se de modo expliacutecito e inequiacutevoco em Cristo cuja humanidade natildeo O

impede de ser a forma ou a beleza suprema de Deus111

O Verbo incarnado eacute pois a via de

ligaccedilatildeo entre as belezas temporais e a sua fonte de beleza superior112

A beleza paradoxal do

Salvador permite que a partir de referentes humanos os atributos divinos sejam

compreensiacuteveis capacitando o homem para alcanccedilar realidades que de outro modo

permaneceriam meras abstracccedilotildees

A coexistecircncia da forma servi e da forma Dei em Cristo113

incentiva e demonstra a

correcta utilizaccedilatildeo dos sentidos corporais cujas impressotildees natildeo devem ser assumidas pelo

homem como realidades finais ou como objectivos em si mesmas Ao inveacutes os sentidos

corporais constituem uma propedecircutica para a utilizaccedilatildeo dos sentidos espirituais soacute eles aptos

a captar a expressatildeo da natureza divina presente em todas as criaturas desde a mais pequena

flor ou fio de erva114

A exemplaridade de Cristo significa a possibilidade de pela feacute e pelo

amor o homem se reformar adquirindo algo da Sua beleza115

conformando-se-Lhe Cristo eacute

pois a revelaccedilatildeo da beleza de Deus que torna o homem belo a Sua acccedilatildeo mediadora permite

que a imagem de Deus no homem possa restaurar-se e devir semelhanccedila (similitudo)

108

Cf Conf VII 10 16

109 Cf Psa 45 14

110 Cf C Harrison op cit p 178 De Trin IV 18 24

111 Cf De mus V 17 56 De Trin VI 10 11

112 Cf Div quaest 83 23 laquoomne pulchrum pulchritudinoraquo

113 Cf De Trin II 5 9

114 Cf De civ Dei X 14 e 17

115 Cf De civ Dei X 6

62

13 ndash A alma e os sentidos corpoacutereos

A teoria agostiniana da sensaccedilatildeo assenta na sua concepccedilatildeo de humanidade ndash o

homem eacute um animal rationale mortale116

um composto de alma espiritual e corpo

material sendo que o corpo natildeo tem qualquer capacidade de actuar sobre a alma e que

nenhuma modificaccedilatildeo causada pelos sentidos corpoacutereos pode afectar por si a mente

Seguindo fielmente o princiacutepio neoplatoacutenico que pressupotildee que o que eacute inferior natildeo

pode agir sobre o que lhe eacute superior117

o Bispo de Hipona tem por premissas que na

hierarquia natural soacute a alma pode instrumentalizar o corpo e que este natildeo tem quaisquer

capacidades sem a alma que o vivifica Nesta senda a sensaccedilatildeo soacute pode ser uma

actividade imputaacutevel agrave alma e natildeo ao corpo ainda que esta actividade da alma decorra a

partir dos oacutergatildeos dos sentidos118

A grande questatildeo reside portanto no modo como a

alma racional faz uso dos oacutergatildeos dos sentidos corpoacutereos na experiecircncia sensiacutevel

Para ocorrer sensaccedilatildeo eacute condiccedilatildeo necessaacuteria haver um encontro do sujeito

atraveacutes dos oacutergatildeos dos sentidos com um objecto poreacutem esta condiccedilatildeo necessaacuteria natildeo eacute

suficiente ndash a sensaccedilatildeo ultrapassa o mero encontro fiacutesico que estaacute na sua base jaacute que

implica a consciecircncia da mente A presenccedila da alma no corpo natildeo eacute da ordem da difusatildeo

espacial pois esta natildeo tem qualquer extensatildeo ou medida aferiacutevel ndash a sua grandeza eacute o

seu poder119

ndash pelo que a alma natildeo estaacute presente parcialmente nas diversas partes do

corpo mas sim como um todo em cada uma destas partes atraveacutes de uma espeacutecie de

116

De ord II 11 31 cf De quant an 25 47 De Trin VII 4 7 XV 7 11

117 Cf De mus VI 5 8

118 De Gen ad lit III 5 7 laquosentire non est corporis sed animae per corpusraquo

119 Cf De quant an 32 69

63

impulso corporal ou ldquoatenccedilatildeo vitalrdquo120

que se revela nas acccedilotildees do corpo Ora a

consciecircncia dos estados corporais eacute precisamente uma parte da presenccedila vivificante

da alma no corpo manifesta na capacidade dela experienciar atraveacutes do seu corpo dor

ou prazer de acordo com as variaccedilotildees nas condiccedilotildees da sua actividade

instrumentalizadora121

Se a acccedilatildeo da alma sobre o corpo ndash de acordo com a percepccedilatildeo

que tem das afecccedilotildees por ele sofridas no encontro com um objecto sensiacutevel ndash se

processar de modo harmonioso e faacutecil por conveniecircncia entre o sensoacuterio e o sensiacutevel

a alma experiencia uma sensaccedilatildeo de prazer Se ao inveacutes a acccedilatildeo da alma sobre o

corpo se revelar difiacutecil e obstaculizada pela inconveniecircncia entre os oacutergatildeos sensoacuterios e

a realidade sensiacutevel a sensaccedilatildeo de desprazer ou mesmo de dor seraacute experienciada122

Em nenhum dos casos a alma sofre algo pelo corpo ndash a alma sente sim atraveacutes do

corpo e no corpo

Embora Santo Agostinho natildeo o explicite eficazmente ainda neste seguimento eacute

importante compreender que os diversos graus de resistecircncia que os objectos sensiacuteveis

vatildeo impondo aos oacutergatildeos dos sentidos e que condicionam se o resultado da experiecircncia eacute

uma sensaccedilatildeo de prazer ou de desprazer natildeo correspondem necessariamente agraves

dificuldades que a alma vai encontrando na natureza corpoacuterea de acordo com as suas

capacidades Por exemplo os prazeres da carne satildeo ao niacutevel sensoacuterio reconhecidos

pela alma como sensaccedilotildees de prazer efectivo mas isto significa que a alma os

reconhece como apraziacuteveis para o corpo e natildeo para si mesma Na perspectiva

agostiniana os prazeres da carne resultam de uma harmonizaccedilatildeo entre os oacutergatildeos

sensoacuterios ndash que a alma obrigatoriamente reconhece como tal ndash com um corpo exterior

mas relativamente agrave natureza da alma soacute pode reconhecer-se uma desadequaccedilatildeo entre

esta e a natureza carnal de tais experiecircncias Uma alma aperfeiccediloada natildeo estaacute atenta a

120

Ep 166 2 4 laquoquadam vitali intentioneraquo

121 Cf De mus VI 5 9-10 De Gen ad lit VII 19 25

122 Em De musica Santo Agostinho explica a experiecircncia do prazer e do seu contraacuterio de acordo com o

seguinte a actividade da alma sobre o corpo pode desenvolver-se de modo congruente ou encontrar

resistecircncias Natildeo eacute na alma mas no corpo que os objectos exteriores provocam um efeito que se opotildee ou

harmoniza com o movimento dos oacutergatildeos Eacute a partir do momento em que a alma toma consciecircncia deste

processo que ocorre a sensaccedilatildeo Designamos por dor ou labor (dolor aut labor) a sensaccedilatildeo que se

processa dificilmente por natildeo haver adequaccedilatildeo entre o objecto sensiacutevel experienciado e o movimento do

oacutergatildeo que eacute afectado pela experiecircncia desse objecto sensiacutevel Designamos por prazer (voluptas) ao acto

pelo qual a alma atende ao processo em que faz comunicar o corpo que lhe estaacute associado com um corpo

estranho que lhe eacute conveniente Cf De mus VI 5 9

64

este tipo de prazeres sensiacuteveis e por isso natildeo os procura Daiacute que Santo Agostinho decirc a

entender que proporcionalmente agraves dificuldades que experiencia a alma se torna mais

ou menos atenta agraves afecccedilotildees do corpo Quanto mais rebelde for o corpo quanto maior

for a necessidade de a alma o submeter agrave sua acccedilatildeo maior empenho haveraacute entre a alma

e a materialidade que caracteriza o alvo da sua acccedilatildeo ndash o que obviamente natildeo eacute

desejaacutevel Eacute de acordo com os seus meacuteritos que a alma vai encontrando maior ou menor

dificuldade relativamente agrave natureza corpoacuterea123

Dois processos concorrem portanto no fenoacutemeno da percepccedilatildeo sensiacutevel

segundo a perspectiva agostiniana o primeiro eacute respeitante agrave acccedilatildeo do objecto exterior

sobre o corpo e o segundo eacute respeitante agrave acccedilatildeo da alma sobre o corpo Este duplo

movimento infringido ao corpo natildeo o subtrai agrave sua passividade jaacute que em qualquer um

destes processos o princiacutepio activo nunca eacute o corpo124

A sensaccedilatildeo eacute exclusivamente do

acircmbito da alma ainda que a alma sinta por intermeacutedio do corpo Em De quantitate

animae Santo Agostinho estabelece a definiccedilatildeo da sensaccedilatildeo como ldquo uma impressatildeo

corporal que por si mesma natildeo escapa agrave almardquo125

e em De musica como a atenccedilatildeo dada

pela alma a propoacutesito das modificaccedilotildees do corpo face a um objecto exterior ldquoo proacuteprio

sentir eacute [a alma] mover o corpo em resposta ao movimento que nele foi produzidordquo126

No fundo estamos perante uma atenccedilatildeo por parte da alma em relaccedilatildeo a uma mudanccedila

fiacutesica nos oacutergatildeos dos sentidos Os cinco sentidos exteriores apenas indiciam o contacto

123

Cf De mus VI 5 9

124 Eacute comum pensar-se que num primeiro niacutevel o corpo humano pelo simples facto de ter o privileacutegio de

estar associado a uma alma pudesse assumir um papel activo face ao encontro com um qualquer objecto

sensiacutevel inanimado poreacutem assim natildeo ocorre Na perspectiva agostiniana natildeo haacute a este niacutevel risco de se

estar a inverter a premissa de que o inferior natildeo actua sobre o superior pois a sua teoria da sensaccedilatildeo

aborda a dualidade ontoloacutegica consignando agrave alma um papel preponderante e embora o corpo nunca seja

abordado como estando desligado dela a verdade eacute que natildeo passa de um corpo como todos os outros

laacutebil e material Portanto a acccedilatildeo seraacute sempre de um corpo sobre outro corpo ndash natildeo havendo problemas

em considerar que o corpo exterior ao sujeito que experiencia a sensaccedilatildeo assuma nesse processo o papel

activo em relaccedilatildeo ao corpo do sujeito A premissa a empregar natildeo seraacute a das hierarquias naturais mas a

que preconiza que a causa se impotildee ao efeito Daiacute que quando em De musica o disciacutepulo vecirc grande

dificuldade em considerar que os nuacutemeros sonoros que satildeo materiais devem ter proeminecircncia sobre os

nuacutemeros que se elevam no sujeito quando experiencia uma sensaccedilatildeo o mestre responde-lhe que natildeo haacute

por que vacilar em fazer tal consideraccedilatildeo jaacute que natildeo se estaacute a hierarquizar o corpo acima da alma mas

nuacutemeros acima de nuacutemeros preferindo a causa ao efeito Cf De mus VI 4 6-7

125 De quant an 30 59 laquosensus est corporis passio per seipsam non latens animam [hellip]raquo

126 De mus VI 5 15 laquoCum igitur ipsum sentire movere sit corpus adversus illum motum qui in eo factus

est [hellip]raquo

65

com os objectos sensiacuteveis havendo dois modos de considerar o resultado deste contacto

entre o sensiacutevel e os oacutergatildeos sensitivos podemos a este niacutevel falar em a) impressotildees (dos

objectos sobre o corpo) e b) afecccedilotildees (do corpo pelos objectos) Note-se que a este niacutevel

natildeo haacute ainda sensaccedilatildeo pois conforme anteriormente referimos o encontro entre o

sujeito e o objecto apesar de ser condiccedilatildeo necessaacuteria para que ocorra a sensaccedilatildeo natildeo eacute

poreacutem condiccedilatildeo suficiente Soacute quando a alma estaacute atenta agraves afecccedilotildees do corpo face a

um objecto exterior eacute que se daacute a sensaccedilatildeo Por outras palavras a sensaccedilatildeo eacute a resposta

consciente da alma face agraves impressotildees no corpo A impressatildeo pertence ao corpo

(princiacutepio passivo) e a sensaccedilatildeo soacute pertence agrave alma (princiacutepio activo) Para o Bispo de

Hipona a sensaccedilatildeo eacute um caso particular da utilizaccedilatildeo do corpo pela alma pelo que natildeo

haacute razatildeo para nos admirarmos que a alma agindo num invoacutelucro mortal ressinta as

modificaccedilotildees do corpo

Em De quantitate animae Santo Agostinho analisa o processo da visatildeo

questionando o seu interlocutor Evoacutedio sobre o que ocorre aos olhos quando vecircem

Evoacutedio comeccedila por invocar determinadas analogias relacionadas com a percepccedilatildeo de

emoccedilotildees e de comoccedilotildees para explicar o processo visual afirmando que os olhos

experienciam a visatildeo tal como um doente experiencia uma doenccedila ou um homem que

deseja experiencia desejo ou um homem que teme experiencia temor ou um homem

alegre experiencia alegria127

Imediatamente Evoacutedio eacute levado a considerar as

dificuldades da assimilaccedilatildeo do acto visual aos sentimentos quando Santo Agostinho lhe

pede para que considere se os olhos vecircem tudo o que eacute experienciado e se tudo o que

experienciamos eacute por noacutes visto A partir deste questionamento o disciacutepulo acaba por

concluir que natildeo haacute uma correspondecircncia necessaacuteria entre o que eacute visto e o que eacute

sentido ndash entre sensaccedilatildeo e sentimento ndash jaacute que por exemplo quando vemos algo que

nos suscita amor natildeo podemos ver em si esse amor128

O sentimento impotildee uma

compenetraccedilatildeo fiacutesica daquilo que eacute sentido ora se ver fosse sentir (sentimentos) entatildeo

os olhos natildeo poderiam ver nada mais aleacutem de si mesmos Esta hipoacutetese eacute absurda jaacute

que o que eacute visto natildeo satildeo os proacuteprios olhos ou os seus estados ndash o que eacute visto eacute algo de

ordem necessariamente exterior ao sujeito que vecirc Assim quando Evoacutedio vecirc Santo

Agostinho e Santo Agostinho vecirc Evoacutedio eles natildeo se estatildeo a experienciar a sentir um

ao outro o que requereria a tal compenetraccedilatildeo dos corpos

127

Cf De quant an 23 42

128 Cf Ibid

66

A fisiologia da visatildeo eacute explicada pelo Bispo de Hipona como tendo por base

uma emissatildeo visual a partir dos olhos ateacute ao objecto visiacutevel129

Esta emissatildeo que a partir

dos olhos atinge o objecto eacute explicada por Santo Agostinho como uma espeacutecie de

instrumentalizaccedilatildeo da emissatildeo visual pelos olhos anaacuteloga agrave manipulaccedilatildeo de uma vara Eacute

Evoacutedio quem verbaliza no diaacutelogo esta analogia ldquoTal como se ao tocar-te com uma

vara eu efectivamente te tocaria e sentiria que te estava a tocar sem no entanto estar no

siacutetio onde te toco assim quando digo que vejo por meio da vista ainda que eu natildeo

esteja nesse lugar natildeo sou obrigado a reconhecer que natildeo sou eu quem vecircrdquo130

Se os

olhos vecircem um objecto exterior que estaacute a alguma distacircncia eacute porque a alma percebe no

ponto em que os olhos vecircem 131

Ainda que a alma possa perceber para laacute do corpo ela

apenas existe no corpo e natildeo eacute extensiacutevel agrave mateacuteria Sem a alma os olhos jamais

poderiam sofrer a impressatildeo da visatildeo132

Este princiacutepio eacute aliaacutes extensiacutevel a todos os

restantes oacutergatildeos sensiacuteveis corpoacutereos Num outro diaacutelogo agostiniano ndash em De musica ndash

o disciacutepulo comenta que seria preferiacutevel atribuir directamente agrave alma todos os

movimentos em vez de atribuir ao corpo a funccedilatildeo motora jaacute que este apenas lhe

obedece133

O Bispo de Hipona responde que se assim fosse quanto mais se

performassem os movimentos maior seria o conhecimento Ora a praacutetica pode levar ao

aperfeiccediloamento dos movimentos do corpo independentemente de qualquer

conhecimento Fica assim assente que do mesmo modo que natildeo haacute correspondecircncia

directa entre sensaccedilatildeo e sentimento134

tambeacutem natildeo haacute entre sensaccedilatildeo (sensus) e

conhecimento (scientia)

129

De quant an 23 43 Evoacutedio diz a este propoacutesito laquoomnino ego video sed emisso viso per oculos

videoraquo Em De mus VI 5 10 fala-se num agente luminoso laquoluminosum aliquid in oculisraquo e em De Trin

XI 2 4 em laquoradiis oculorumraquo Cf Ep 137 2 8

130 De quant an 23 43 laquoSed quemadmodum si virga te tangerem ego utique tangerem idque sentirem

neque tamen ego ibi essem ubi te tangerem ita quod dico visu me videre quamvis ego ibi non sim non

ex eo cogor fateri non me esse qui videamraquo

131 Cf Ep 137 2 6

132 Cf De quant an 30 60

133 De mus I 4 9 laquoSed cum sciens animus hoc imperat corpori magis hoc scienti animo quam

servientibus membris tribuendum putoraquo

134 Embora tambeacutem no latim os verbos que dizem respeito a estes substantivos sejam intermutaacuteveis

quando Santo Agostinho fala em sensus no sentido de sensaccedilatildeo costuma acoplar-lhe o verbo patior e

quando fala de sensus no sentido de sentimento costuma preferir a forma verbal sentire sobretudo

quando se refere na mesma passagem agraves sensaccedilotildees e aos sentimentos

67

A anaacutelise agostiniana da sensaccedilatildeo auditiva eacute desenvolvida em De musica e os seus

pressupostos em nada diferem daquilo que o Bispo de Hipona expotildee em De quantitate

animae relativamente ao processo visual Quase numa intuiccedilatildeo das ondas sonoras da

fiacutesica moderna Santo Agostinho refere que o fluido que circula no ouvido eacute posto em

movimento pela percussatildeo do ar que o som provoca Mesmo antes de perceber as

modificaccedilotildees que o oacutergatildeo auditivo sofre em virtude desse movimento jaacute a alma agia

sobre esse oacutergatildeo comunicando-lhe vida Pela audiccedilatildeo a alma natildeo suspende essa

actividade mas performa uma outra ao empreender sobre ele um acto consciente dos

seus movimentos No seguimento das impressotildees fiacutesicas produzidas sobre o corpo quando

um objecto intersecta a luz dos olhos ou quando um som invade os ouvidos ou quando

as emanaccedilotildees dos corpos atingem as narinas ou quando os sabores invadem o palato ou

quando o resto do corpo estaacute em contacto com objectos exteriores ou mesmo quando no

proacuteprio corpo algum oacutergatildeo muda de lugar ndash em suma quando ele eacute afectado por um

impulso interior ou exterior ndash a alma ldquosofrerdquo com o processo sendo isso um efeito da sua

proacutepria actividade e natildeo do corpo

Em De Genesi ad litteram eacute possiacutevel verificar que o Bispo de Hipona estava jaacute

familiarizado com o funcionamento do sistema nervoso135

jaacute que se refere agraves tenues

fistulae que unem o ceacuterebro aos olhos aos ouvidos agraves narinas e ao palato para transmitir

os sons os odores e os sabores Quanto ao tacto Santo Agostinho diz que este se exerce

por todo o corpo atraveacutes da espinal medula e dos seus finiacutessimos canais que divergem da

coluna vertebral espalhando-se por todos os membros136

O ceacuterebro eacute o centro dos

135

As descobertas meacutedicas a este propoacutesito remontam ao seacutec III aC mais concretamente aos estudos de

dois fisiologistas fundadores da Escola de Medicina de Alexandria ndash Heroacutefilo e Erasiacutestrato Este uacuteltimo

foi o que mais contribuiu para a fisiologia da sensaccedilatildeo tendo praticado inuacutemeras experiecircncias

dissecaccedilotildees e vivissecccedilotildees em prisioneiros de guerra e em animais A ele se deve a distinccedilatildeo entre ceacuterebro

e cerebelo e entre nervos motores e nervos sensoacuterios bem como a descriccedilatildeo das meninges membranas

cavidades e ventriacuteculos cerebrais Foi o primeiro meacutedico a associar o nuacutemero de sulcos e circunvoluccedilotildees

cerebrais ao grau de desenvolvimento intelectual Muitos dos conhecimentos meacutedicos do Bispo de

Hipona podem ter tido como fonte Aulus Cornelius Celsus ndash um enciclopedista romano do seacutec I que

escreveu os famosos oito livros de De medicina ndash e que o Bispo de Hipona cita em Soliloquiorum I 12

21 Para um estudo aprofundado acerca dos conhecimentos meacutedicos e das fontes sobre esse tema no

tempo de Santo Agostinho cf Shelley Reid The first dispensation of Christ is medicinal Augustine and

roman medical culture unpublished PhD thesis Vancouver University of British Columbia 2008 URL

httpscircleubccabitstreamubc_2008_fall_reid_shelley_annettepdf

136 Cf De Gen ad lit VII 13 20 e Ep 137 2 8

68

movimentos sensiacuteveis137

e os sentidos satildeo assim uma espeacutecie de mensageiros da alma138

ou portas do corpo139

Os sentidos da visatildeo e da audiccedilatildeo foram considerados por Santo Agostinho

superiores aos demais pelo menos numa primeira fase em que o filoacutesofo africano

adoptou certos pressupostos de origem estoacuteica para contrariar os ceacutepticos Estes uacuteltimos

consideravam toda a realidade corpoacuterea deceptiva consideraccedilatildeo que se estendia aos

sentidos devendo as suas impressotildees falazes desmerecer qualquer atenccedilatildeo Por seu turno

os estoacuteicos consideravam que os sentidos corpoacutereos podiam ser penetrados pela razatildeo e

mesmo ajuizar as belezas sensiacuteveis Eacute nesta senda que Santo Agostinho inicialmente

defende que os sentidos superiores ndash visatildeo e audiccedilatildeo ndash mantecircm alguma contiguidade com

a razatildeo pois permitem que as suas impressotildees sejam julgadas pela mente segundo

categorias racionais Nos restantes sentidos haacute apenas vestiacutegios da razatildeo quanto agrave sua

finalidade140

ao passo que nos sentidos superiores pode haver um prazer que afecta a

razatildeo em virtude da presenccedila do numerus141

Em Contra Academicos com o intuito de

refutar os ceacutepticos Santo Agostinho defende ateacute os sentidos mais baixos dizendo que

estes natildeo satildeo essencialmente maus ou estranhos a Deus e que natildeo enganam por si

mesmos mas pelo modo como satildeo afectados142

pelo que as suas impressotildees devem ser

137

Cf De Gen ad lit VII 20 42

138 Cf De Gen ad lit VII 14 20

139 Cf De Gen ad lit VII 20 42

140 Cf De ord II 11 33

141 Cf De ord II 11 32 (acerca da razoabilidade nos sentidos) II 14 39 (acerca da audiccedilatildeo) e II 15 42

(acerca da visatildeo) Em De libero arbitrio II 7 17-19 a visatildeo e a audiccedilatildeo satildeo descritas como superiores em

virtude de conseguirem abarcar uma totalidade enquanto que o olfacto o paladar e o tacto soacute alcanccedilam

partes os exemplos que usa para ilustrar esta ideia de apreensatildeo total e apreensatildeo parcial por parte dos

sentidos satildeo o da audiccedilatildeo de uma mesma palavra escutada por dois sujeitos (ambos conseguem ouvir

integralmente a palavra ao mesmo tempo) e o da visatildeo de uma imagem (tambeacutem abarcada

simultaneamente na totalidade por sujeitos distintos) em contraposiccedilatildeo dois sujeitos distintos natildeo podem

saborear cheirar ou tocar simultaneamente a mesmiacutessima porccedilatildeo de algo cada sujeito soacute tem acesso agrave

respectiva parte do objecto na sensaccedilatildeo Cf De lib arb II 14 38 onde Santo Agostinho admite que tais

analogias estatildeo longe de ser perfeitas Em De Trinitate XI I 1 o Bispo de Hipona refere-se novamente agrave

visatildeo como sendo o sentido corporal mais perfeito e mais proacuteximo da visatildeo intelectual corroborando o

seguinte trecho de De Genesi ad litteram XII 16 32 laquo[hellip] quinque sensus cum ipso ubi sola excellit

oculorum sensu efficit sicut in libro quarto itemque in septimo disseruisse me recolo Est autem hoc

coelum oculis conspicuum unde luminaria et sidera effulgent excellentius utique omnibus corporeis

elementis sicut oculorum sensus excellit in corporeraquo

142 Cf Contra Acad III 11 26 De vera relig 33 62

69

correctamente ajuizadas e utilizadas143

Santo Agostinho chega a utilizar a expressatildeo

ldquojulgamento dos sentidosrdquo (judicium sensus) equacionando-os com a reacccedilatildeo prazer

dor144

e a consideraacute-los como arautos da verdade a que a razatildeo aponta como index

veritatis145

Nas obras de maturidade o processo de apreciaccedilatildeo da beleza requer um

julgamento raramente reportado aos sentidos e mais consistente com determinadas

passagens dos diaacutelogos de Cassiciacuteaco que o ligam a um juiacutezo de inteligecircncia146

A

distinccedilatildeo entre sentidos superiores e sentidos inferiores perde forccedila na teoria agostiniana

da sensaccedilatildeo e deixa de fazer sentido a ideia de que os primeiros satildeo capazes de uma

resposta esteacutetica adequada ao passo que os segundos natildeo o satildeo ateacute porque esta ideia

pressupunha uma certa antinomia entre os conceitos de pulchrum e aptum que como

veremos no terceiro capiacutetulo deste ensaio natildeo procede Pelo menos no mundo sensiacutevel

haacute uma relaccedilatildeo estrita entre o pulchrum e o aptum que gora a ideia de que os sentidos

mais baixos estariam demasiado orientados para o aptum e por isso mais presos ao

prazer do que os sentidos superiores Essa orientaccedilatildeo dos sentidos inferiores dificultaria a

suspensatildeo que a contemplaccedilatildeo esteacutetica pressupotildee daiacute que a visatildeo e a audiccedilatildeo

supostamente orientadas para o pulchrum fossem capazes de uma resposta esteacutetica mais

adequada que os demais sentidos O juiacutezo da beleza ou acto estimativo esteacutetico eacute

considerado por fim do domiacutenio exclusivo da razatildeo incorpoacuterea Soacute ela eacute capaz de

reconhecer os nuacutemeros inteligiacuteveis que presidem a todas as belezas natildeo devendo

considerar-se qualquer reflexividade em relaccedilatildeo aos sentidos

Em De musica Santo Agostinho parece antecipar a tendecircncia contemporacircnea de

natildeo limitar os sentidos corpoacutereos aos tradicionais cinco prevendo a propriocepccedilatildeo como

um sentido corpoacutereo por meio do qual agrave semelhanccedila dos demais sentimos desconforto ou

143

Cf De vera relig 54 106

144 Cf De mus VI 10 27 VI 9 23 Em De libero arbitrio Santo Agostinho chega tambeacutem a admitir que

os sentidos corpoacutereos exercem juiacutezos sobre o corpo em virtude de afectarem prazer ou dor face a um

objecto mas a argumentaccedilatildeo desenvolvida parece recair mais sobre uma reacccedilatildeo instintiva e natildeo

reflexiva como pressuporia a acccedilatildeo judicativa Cf De lib arb II 5 12 Aleacutem disso Santo Agostinho

refere que eacute esse ldquojuiacutezordquo que os sentidos corpoacutereos exercem sobre o corpo que leva o sujeito a repulsar ou

a aceitar aquilo que afectou os seus sentidos mas pouco antes na mesma obra (cf De lib arb II 3 8)

afirmara que a repulsatildeo ou procura das coisas vistas por um animal eacute algo que se distingue do sentido da

visatildeo jaacute que este estaacute nos olhos enquanto que o outro estaacute dentro da proacutepria alma ndash referindo-se

claramente ao sentido interior e a ele atribuindo o tal juiacutezo exercido sobre o corpo

145 Cf De mus VI 7 18

146 Cf De Trin VIII 4 5 IX 6 11 XII 2 2 De civ Dei VIII 5-7 XI 16 e 27 De lib arb II 5 12

70

prazer Afirma o Bispo de Hipona que a actividade da alma desencadeia certas

necessidades no corpo agraves quais ela estaacute atenta Entre estas necessidades conta-se a fome

ou qualquer outro sentimento afim Descreve Santo Agostinho que se cometermos um

excesso o estocircmago fica sobrecarregado e torna os movimentos do corpo mais peniacuteveis

Como esta situaccedilatildeo natildeo escapa agrave alma o desprazer faz-se sentir A proacutepria atenccedilatildeo da

alma acompanha o acto pelo qual o excesso de comida eacute rejeitado e tambeacutem a facilidade

desta evacuaccedilatildeo gera prazer ou dor147

Quando por exemplo uma doenccedila se instala e

impotildee um problema ao organismo a alma presta-lhe atenccedilatildeo procurando debelar as

deficiecircncias ou as causas da degradaccedilatildeo do corpo e eacute em virtude deste acto acompanhado

da sua consciecircncia que a alma sente a doenccedila e o sofrimento148

A descriccedilatildeo que o Bispo

de Hipona faz em relaccedilatildeo agraves sensaccedilotildees que o proacuteprio corpo desencadeia pelos seus

processos fisioloacutegicos encontra perfeita adequaccedilatildeo agraves conceptualizaccedilotildees que a esteacutetica

somaacutetica contemporacircnea contempla

A sensaccedilatildeo natildeo nasce da razatildeo ldquomas da vista do ouvido do olfacto da palavra

do tactordquo149

desde logo isso pressupotildee que seja ontologicamente fraca Diz o Bispo de

Hipona que os sentidos regulam a vida humana durante a infacircncia e a primeira juventude

mas soacute a miseacuteria e o mal deles resultam se natildeo forem sujeitos ao controle da razatildeo o mais

cedo possiacutevel150

jaacute que ldquoDeus natildeo se oferece aos sentidos corpoacutereosrdquo151

Os sentidos

devem ser tratados como escravos da alma e devem ser correctamente utilizados com

consciecircncia de que as impressotildees deles resultantes equivalem a um estaacutedio bastante inicial

e ainda preparatoacuterio do percurso que a alma deve empreender ateacute agrave sua origem Os

sentidos corpoacutereos apenas manifestam o contacto com os objectos exteriores natildeo se lhes

podendo imputar qualquer outra valecircncia Assim os sentidos natildeo enganam pois a

verdade ou a falsidade natildeo estaacute neles mas no julgamento da alma relativamente agraves

147

Cf De mus VI 5 9

148 Cf Ibid

149 De quant an 29 57 laquoNon autem sentimus ratione sed aut visu aut auditu aut olfactu aut gustatu

aut tacturaquo

150 Cf De Gen cont Man I 20 31

151 De vera relig 36 67 laquo[hellip]Deus enim non corporalibus sensibus subiacet [sed ipsi menti

supereminet]raquo

71

impressotildees corpoacutereas152

Compete agrave alma responder conscientemente agraves afecccedilotildees do

corpo sentindo prazer ou dor e ajuizando sobre a legitimidade de tais sensaccedilotildees A alma

natildeo deve distrair-se com as impressotildees do corpo ficando a elas presa nem deve pretender

retirar felicidade dos prazeres sensiacuteveis Quando usadas correctamente as impressotildees

veiculadas atraveacutes dos sentidos podem funcionar como uma propedecircutica para a

verdadeira visatildeo da alma Os perigos da sensaccedilatildeo residem na forma desviante que pode

assumir a consciecircncia da alma em relaccedilatildeo agraves afecccedilotildees do corpo A attentio153

que define a

sensaccedilatildeo pode redundar em curiositas que na terminologia agostiniana corresponderaacute a

um desejo (appetitus) inquietante orientado para o conhecimento das coisas sensiacuteveis

como um fim em si mesmo ao inveacutes de o assumir como um meio para alcanccedilar um

conhecimento mais elevado154

Outra modalidade da curiositas eacute a tentaccedilatildeo que o homem

sente em se direccionar para as realidades espirituais com o ldquoolho terrenordquo155

No fundo a

inclinaccedilatildeo para ver as coisas sensiacuteveis como um fim e a inclinaccedilatildeo para perscrutar a

verdade atraveacutes das sensaccedilotildees satildeo uma e a mesma coisa ndash traduzem-se ambas no amor

inquietante pelo conhecimento vatildeo156

Enquanto que a attentio eacute saudaacutevel e desejaacutevel a curiositas natildeo o eacute ela eacute jaacute a

transformaccedilatildeo da attentio numa afecccedilatildeo da alma Obviamente natildeo de uma afecccedilatildeo

provocada pelo corpo mas por um processamento desviante dos dados resultantes da

atenccedilatildeo da alma sobre o corpo que culmina num iacutempeto da alma em direcccedilatildeo aos deleites

falazes das coisas sensiacuteveis A curiositas eacute jaacute da ordem do juiacutezo e natildeo tanto da sensaccedilatildeo

ainda que a ela remonte Por vezes o Bispo de Hipona reporta directamente essa atenccedilatildeo

iliacutecita relativamente agrave experiecircncia sensual tambeacutem agrave passio Mas se etimologicamente a

raiz cura aponta para o cuidado ou zelo e logo para uma acccedilatildeo intencional e consciente

152

Cf De vera relig 33 61-62 36 67 laquoUnde falsitas oritur non rebus ipsis fallentibus quae nihil aliud

ostendunt sentienti quam speciem suam quam pro suae pulchritudinis acceperunt gradu neque ipsis

sensibus fallentibus qui pro natura sui corporis affecti non aliud quam suas affectiones praesidenti animo

nuntiant sed peccata animas fallunt cum verum quaerunt relicta et neglecta veritateraquo

153 A attentio natildeo eacute apenas usada por Santo Agostinho no contexto da atenccedilatildeo da alma relativamente ao

corpo mas tambeacutem na acepccedilatildeo de poder de concentraccedilatildeo associado ao sentido interior que abordaremos

no subcapiacutetulo seguinte

154 Cf Conf X 34 53- 35 55

155 De Gen cont Man II 26 40 laquo[hellip] aut curiosos qui terrena sapiunt et spiritalia terreno oculo

inquirunt[hellip]raquo

156 Cf De mus VI 13 39

72

agrave qual pode ser imputada a responsabilidade do erro jaacute a passio corresponde mais agrave acccedilatildeo

de suportar ou sofrer A negatividade do conceito acentua-se se o encararmos na acepccedilatildeo

cristatilde ligada ao facto da condenaccedilatildeo agonia e morte do Salvador Natildeo seraacute de estranhar

que as passiones equivalham muitas vezes agraves tentaccedilotildees dos sentidos poreacutem mais

frequentemente Santo Agostinho emprega esta palavra no sentido de impressatildeo

enquanto resultado da influecircncia exercida por algo exterior nos oacutergatildeos dos sentidos As

passiones satildeo sobretudo modificaccedilotildees no corpo daiacute que o Bispo de Hipona considere

que o crescimento fiacutesico seja tambeacutem uma passio157

Mas as passiones pertencem

igualmente agrave alma e a este niacutevel as formulaccedilotildees agostinianas satildeo bastante influenciadas

por Ciacutecero e por aquilo que este designa de perturbationes ou manifestaccedilotildees

emocionais158

As passiones natildeo implicam apenas movimentos negativos da alma ateacute

mesmo a cupiditas ou o timor podem estar na base de emoccedilotildees positivas visto poderem

nortear para o verdadeiro bem A orientaccedilatildeo da vontade eacute que determina se as paixotildees satildeo

positivas ou negativas159

Natildeo eacute desejaacutevel refrear totalmente as paixotildees durante a vida terrena Santo

Agostinho alude agrave ἀπάθεια (apatheia) estoacuteica criticando os estados de impassibilidade

em que a alma natildeo eacute sujeita a nenhuma paixatildeo que a perturbe parecendo natildeo estar atenta

agraves afecccedilotildees do corpo Diz Santo Agostinho que tal estado natildeo eacute adequado a esta vida e

revela uma insensibilidade pior do que todos os viacutecios A apatia consiste em natildeo se ser

tocado por nada nem dor nem amor ou temor A nosso ver tambeacutem natildeo eacute unicamente da

ordem da sensaccedilatildeo mas jaacute do juiacutezo da alma que insiste em desvalorizar as sensaccedilotildees e

anular a senciecircncia A apatheia eacute um estado que coube aos habitantes do Eacuteden160

e que

nos caberaacute na vida apoacutes a morte Durante a vida terrena as paixotildees da alma satildeo

necessaacuterias e naturais podem ateacute ser pedagogicamente uacuteteis embora natildeo devamos

157

Cf De quant an 25 48

158 Santo Agostinho refere-se directamente a Ciacutecero e agraves paixotildees da alma nos livros IX e XIV de De

civitate Dei Para um estudo aprofundado acerca deste tema cf Johannes Brachtendorf laquoCicero and

Augustine on the Passionsraquo REAug 43 1997 pp 289-308

159 Para Santo Agostinho cada paixatildeo tem uma versatildeo positiva e uma versatildeo negativa daiacute que uma boa

vontade seja um bom amor e uma perversatildeo da vontade um mau amor (Cf De civ Dei XIV 7) No

entanto per se as paixotildees natildeo satildeo intrinsecamente positivas elas potildeem em risco o domiacutenio da razatildeo e

satildeo um mal a que estamos sujeitos na nossa vida terrena mas que podemos redireccionar positivamente

pela vontade

160 Cf De civ Dei XIV 10

73

esquecer que satildeo o resultado da condenaccedilatildeo do pecado original Os saacutebios conseguem

lidar bem com as paixotildees moderando-as jaacute que as subordinam agrave razatildeo161

Santo

Agostinho conclui que todas as afecccedilotildees satildeo boas naqueles que vivem bem e maacutes nos que

natildeo fazem bom uso delas A insensibilidade natildeo eacute sauacutede162

Em relaccedilatildeo ao modo como Santo equaciona os sentidos corpoacutereos haacute ainda que

questionar sobre a sua existecircncia no corpo celestial possuiria o corpo de Adatildeo os mesmo

oacutergatildeos dos sentidos antes e depois da queda O que aconteceraacute aos sentidos no corpo

celestial ressurrecto Os sentidos do nosso corpo terreno satildeo uma espeacutecie de interface

entre a alma racional e as realidades sensiacuteveis corruptiacuteveis deste mundo a que a expulsatildeo

do Paraiacuteso nos condenou Na ausecircncia de realidades sensiacuteveis a existecircncia dos sentidos

corpoacutereos deveacutem obsoleta mas seraacute realmente que Santo Agostinho natildeo perspectiva o seu

uso para o corpo da fase adamita preacute-queda e relativamente ao corpo ressurrecto

Antes do pecado original as almas de Adatildeo e Eva habitavam corpos gloriosos

celestiais e eram directamente iluminadas pela luz do Verbo divino163

Os seus corpos

espirituais permitiam a intuiccedilatildeo imediata e directa das almas164

mas em virtude da

expulsatildeo do Eacuteden Adatildeo e Eva perderam esse corpo celestial transparente165

bem como a

visatildeo beatificante de que gozavam Em De Genesi ad litteram Santo Agostinho comenta

o facto de Adatildeo e Eva ouvirem a voz de Deus no Eacuteden166

e sustenta que antes da queda

eles teriam constantes conversas com Deus interiormente Com a expulsatildeo ficam

consignados ao reino da mediaccedilatildeo simboacutelica ao labor da sensaccedilatildeo e da linguagem167

Deus soacute lhes fala atraveacutes de imagens corpoacutereas perceptiacuteveis pelos sentidos e a verdade jaacute

soacute pode ser perscrutada de modo velado e indirecto daiacute que a linguagem seja tambeacutem

161

A defesa que Santo Agostinho faz desta ideia em De civ Dei IX 4-5 eacute contra os postulados estoacuteicos

segundo os quais os saacutebios natildeo seriam sujeitos a paixotildees e que a apatia era um estado desejaacutevel e

alcanccedilaacutevel por meio de uma espeacutecie de terapia filosoacutefica O proacuteprio Santo Agostinho tenta demonstrar

que no fundo os estoacuteicos seguiam a mesma perspectiva que os peripateacuteticos e que realmente natildeo

postulavam a possibilidade de tal impassibilidade feliz na vida terrena

162 Cf De civ Dei XVI 9

163 Cf De lib arb II 4 5

164 Cf De lib arb II 6 14 e II 11 30-32

165 Cf De lib arb II 8 23 e II 11 32

166 Cf De Gen ad lit XI 33 43

167 Cf De lib arb II 2 5 e II 11 30-32

74

uma consequecircncia da queda Antes do pecado os sentidos corpoacutereos parecem natildeo ter

qualquer papel ainda que no Eacuteden houvesse ldquotoda a espeacutecie de aacutervores agradaacuteveis agrave vista

e de saborosos frutos para comerrdquo168

Soacute quando comem o fruto proibido eacute que os

sentidos corpoacutereos do primeiro casal parecem ter sido activados pois Adatildeo e Eva abrem

os olhos e vecircem que estatildeo nus169

antes disso viviam num estado de natildeo perturbaccedilatildeo em

que a alma natildeo experienciava as paixotildees do corpo Mas a verdade eacute que Santo Agostinho

parece perspectivar que Adatildeo e Eva jaacute fariam uso dos sentidos corpoacutereos antes do pecado

original pois adverte que a nudez de ambos natildeo lhes era desconhecida ndash ela simplesmente

natildeo era vergonhosa O casal natildeo foi criado cego viam animais aos quais Adatildeo atribuiu

nomes e Eva viu que o fruto proibido era agradaacutevel agrave vista170

Ambos tinham os olhos

abertos mas a sua nudez natildeo lhes despertava qualquer concupiscecircncia Quando a

Escritura diz que ao pecarem os seus olhos foram abertos e eles viram que estavam

nus isso significa que os olhos se abriram natildeo agrave visatildeo visto que eles viam

anteriormente mas ao conhecimento do bem que acabavam de perder e do mal em que

vinham de incorrer ndash daiacute que a aacutervore do fruto proibido seja tambeacutem conhecida como

aacutervore do conhecimento do bem e do mal171

Aleacutem disso Santo Agostinho diz que o

homem vivia segundo Deus no Paraiacuteso e este era simultaneamente corporal e espiritual

pois natildeo fazia sentido haver um Paraiacuteso corporal para os bens do corpo sem um Paraiacuteso

espiritual para os do espiacuterito e por outro lado um Paraiacuteso fonte de alegrias interiores natildeo

podia existir sem um Paraiacuteso corporal fonte de alegrias exteriores A existecircncia de

sentidos na carne espiritual natildeo eacute portanto um anacronismo Haacute para o ser dual um

Paraiacuteso duplo172

simultaneamente material e espiritual de modo a satisfazer quer os

sentidos interiores do homem quer as suas percepccedilotildees externas Natildeo eacute suposto negar a

realidade do paraiacuteso terrestre para que possa existir um paraiacuteso espiritual173

Do mesmo

modo que os corpos pela ressurreiccedilatildeo seratildeo transformados em corpos espirituais sem que

168

Gn 2 9

169 Gn 3 7

170 Cf Gn 3 6

171 Cf De civ Dei XIV 17

172 Cf De civ Dei XIV 11

173 Cf De civ Dei XIII 21

75

a sua carne se converta em espiacuterito tambeacutem todas as restantes realidades corpoacutereas que

existem na vida terrena e que podem contribuir para a vida feliz estaratildeo presentes no

Paraiacuteso ndash natildeo haacute por que assumir que jaacute laacute natildeo estivessem desde os primeiros tempos

Em relaccedilatildeo ao corpo ressurrecto o Bispo de Hipona interroga-se sobre as

capacidades dos sentidos corpoacutereos renovados Comeccedila por afirmar que eacute no corpo

ressurrecto que haveremos de ver Deus mas questiona se eacute por intermeacutedio do corpo que

agrave semelhanccedila do que ocorre com o processo visual sensiacutevel essa visatildeo esplendorosa

ocorreraacute Certo eacute que o corpo conservaraacute os seus olhos e que estes manteratildeo a sua funccedilatildeo

e estaratildeo no seu devido lugar podendo abrir-se e fechar-se No entanto Santo Agostinho

constata que seria estranho se mesmo com os olhos fechados natildeo se pudesse ver Deus174

Mais adiante o Bispo de Hipona afirma que o espiacuterito se serviraacute dos olhos por intermeacutedio

do corpo espiritual mas reitera a questatildeo se de facto nos corpos espirituais os olhos

espirituais tambeacutem teratildeo apenas o mesmo poder que agora possuem na vida terrena o

que significaria que com eles Deus natildeo poderia ser visto A natureza divina incorpoacuterea

dada a Sua ubiquidade natildeo estaacute limitada a um lugar e tal exige que os olhos da carne

ressurrecta para verem Deus e as realidades incorpoacutereas teratildeo de ser dotados de uma

capacidade muito mais poderosa do que quando eram olhos mortais Nas Escrituras

Santo Agostinho lecirc que ldquotoda a carne veraacute a salvaccedilatildeo de Deusrdquo175

e lecirc a afirmaccedilatildeo de Job

ldquo[hellip] e a minha carne veraacute a Deusrdquo176

Estas passagens natildeo satildeo no entanto conclusivas

para a questatildeo sobre qual se debruccedila o Bispo de Hipona jaacute que para elas estabelece mais

do que uma acepccedilatildeo possiacutevel De acordo com o proacuteprio a sua incerteza quanto agraves

capacidades do corpo espiritual encontra eco no Livro da Sabedoria ldquoOs pensamentos

dos mortais satildeo tiacutemidos e incertas as nossas previsotildeesrdquo177

O Bispo de Hipona critica o

raciociacutenio dos filoacutesofos que afirmam peremptoriamente que as realidades inteligiacuteveis soacute

satildeo vistas pela mente e que as realidades sensiacuteveis soacute satildeo percebidas pelos sentidos do

corpo Contra tal raciociacutenio concorre a premissa de que Deus incorpoacutereo conhece as

coisas corpoacutereas que criou bem como certos exemplos biacuteblicos como eacute o caso do profeta

174

Cf De civ Dei XXII 29

175 Is 40 5 laquoEt videbit omnis caro salutare Deiraquo

176 Job 19 26 laquo[hellip] Et in carne mea videbo Deumraquo

177 Sab 9 14 laquoCogitationes mortalium timidae et incertae providentiae nostraeraquo

76

Eliseu que natildeo estando presente na altura em que o seu servo recebeu o dinheiro178

viu

toda a cena ora tal visatildeo de coisas corpoacutereas soacute pode ter sido conseguida pelo espiacuterito de

Eliseu e natildeo pelos olhos do corpo Nesta senda se os corpos podem ser vistos pelo

espiacuterito natildeo seraacute descabido equacionar a hipoacutetese de que o poder do corpo espiritual seja

tatildeo grande que tambeacutem ele (um corpo) possa ver um espiacuterito Deus eacute um espiacuterito

Segundo Santo Agostinho eacute bastante provaacutevel que os olhos dos corpos espirituais possam

ver Deus incorpoacutereo regendo todas as coisas Tal visatildeo da divindade por parte dos olhos

do corpo ressurrecto ou implica que os olhos adquiram algo semelhante agrave mente isto eacute

implica que os nossos sentidos corporais sejam elevados agrave visatildeo que geralmente se

reserva para a pura inteligecircncia ndash o que segundo o Bispo de Hipona parece impossiacutevel de

demonstrar a partir do testemunho biacuteblico ndash ou entatildeo

ldquo[hellip] Deus ser-nos-aacute conhecido e visiacutevel de tal modo que seraacute visto em

espiacuterito por cada um de noacutes seraacute visto por uns nos outros seraacute visto em si

proacuteprio seraacute visto num novo Ceacuteu e numa nova Terra seraacute visto em toda a

criatura que entatildeo existir seraacute visto em todo o corpo com os olhos do corpo

para onde quer que se voltem esses olhos do corpo espiritualrdquo179

Embora natildeo o assuma abertamente o Bispo de Hipona parece pender mais para

esta segunda hipoacutetese Quaisquer que sejam o uso e as possibilidades dos sentidos

corpoacutereos ressurrectos certo eacute que na perspectiva agostiniana eles natildeo perturbaratildeo a alma

com paixotildees jaacute que em plena concordacircncia com ela o corpo experienciaraacute a perfeita

beatitude Por exemplo a contemplaccedilatildeo dos atributos fiacutesicos femininos natildeo iraacute suscitar

luxuacuteria concupiscente mas puro louvor ndash estes atributos natildeo suscitaratildeo paixatildeo (libido)180

Diz Santo Agostinho que as mulheres ressuscitaratildeo com o sexo feminino jaacute que ambos os

sexos seratildeo restabelecidos e que os seus oacutergatildeos subsistiratildeo embora livres do coito e do

parto portanto natildeo mais ldquoacomodados ao antigo uso mas a uma nova belezardquo181

178

Cf 2ordm Rs 5 26

179 De civ Dei XXII 29 laquo[hellip] Deus nobis erit notus atque conspicuus ut videatur spiritu a singulis nobis

in singulis nobis videatur ab altero in altero videatur in se ipso videatur in caelo novo et terra nova atque

in omni quae tunc fuerit creatura videatur et per corpora in omni corpore quocumque fuerint spiritalis

corporis oculi acie perveniente directiraquo A traduccedilatildeo da periacutecope eacute de J Dias Pereira in A cidade de Deus

vol III 2ordf ed Lisboa FCG 2000 p 2354

180 Cf De civ Dei XXII 17

181 Ibid laquo[hellip] non accommodata usui veteri sed decori novo [hellip]raquo

77

14 ndash O sentido interior e a memoacuteria

No penuacuteltimo tratado escrito por Plotino o licopolitano estabelece uma distinccedilatildeo

entre sensaccedilatildeo e percepccedilatildeo que encontra eco na distinccedilatildeo agostiniana entre sentidos natildeo

reflexivos e sentido interior182

Para Plotino a sensaccedilatildeo diz respeito agrave impressatildeo (τύπος)

sensiacutevel resultante da acccedilatildeo do objecto exterior ao passo que a apreensatildeo consciente ou

percepccedilatildeo (ἀντίληψις) dessas impressotildees sensiacuteveis eacute jaacute uma faculdade da alma racional

(ψυχὴ λογική) proacutepria do ser humano e natildeo do animal A percepccedilatildeo na perspectiva

plotiniana eacute uma intuiccedilatildeo impassiacutevel da alma sobre as imagens ou formas de natureza

jaacute inteligiacutevel que resultam das impressotildees sensiacuteveis e agraves quais se aplica jaacute ldquoo raciociacutenio

a opiniatildeo o pensamento que sobretudo nos constituemrdquo183

Plotino natildeo distingue no processo da sensaccedilatildeo entre o momento da impressatildeo ao

niacutevel dos oacutergatildeos sensiacuteveis e o momento em que a alma tem consciecircncia dessas

impressotildees Esta percepccedilatildeo por parte da alma racional natildeo deve ser tida como paralela

ao segundo momento considerado por Santo Agostinho em relaccedilatildeo agrave sensaccedilatildeo184

pelo

qual a alma estaacute atenta agraves afecccedilotildees do corpo deve sim considerar-se paralela ao sentido

interior que o filoacutesofo africano descreve em De libero arbitrio como sendo um sentido

reflexivo Nesta obra agostiniana eacute feita uma distinccedilatildeo entre as propriedades dos

182

Trata-se cronologicamente do quinquageacutesimo terceiro tratado escrito por Plotino jaacute no final da

sua vida embora de acordo com a ordenaccedilatildeo porfiriana corresponda ao primeiro livro da primeira

Eneacuteada Neste tratado Plotino natildeo chega a falar num sentido interior mas refere a sensibilidade

exterior (ἕξις παθητική) distinguindo-a da faculdade de sentir proacutepria agrave alma racional e que poderaacute

ser considerado como uma sensibilidade interior Cf En I 1 7 e tambeacutem En IV 3 23-26 IV 4

18-21 IV 8 8 e V 5 1

183 Plotino En I 1 7 laquoδιάνοιαι δὴ καὶ δόξαι καὶ νοήσεις ἔνθα δὴ ἡμεῖς μάλισταraquo

184 Natildeo se trata de um segundo momento em termos diacroacutenicos visto que eacute instantacircneo agrave alteraccedilatildeo

provocada pelo objecto no oacutergatildeo corpoacutereo

78

objectos que podem ser apercebidas singularmente por um sentido corpoacutereo ndash como a

cor o som ou o cheiro ndash e a percepccedilatildeo de propriedades relativamente agraves quais eacute

possiacutevel o concurso de dois ou mais sentidos corpoacutereos ndash como por exemplo a

configuraccedilatildeo do objecto que tanto pode ser apercebida pela visatildeo como pelo tacto185

Tal distinccedilatildeo remete necessariamente para a questatildeo aristoteacutelica do sensus communis

(κοινή αἴσθησις)186

desenvolvida em De anima de modo muito semelhante agrave exposiccedilatildeo

do diaacutelogo agostiniano mas com conclusotildees bastante distintas Para Aristoacuteteles natildeo haacute

um sentido subsidiaacuterio relativamente aos tradicionais cinco sentidos corpoacutereos jaacute que

estes satildeo reflexivos e assumem-se como funccedilotildees particulares daquilo que hoje diriacuteamos

ser um sistema intersensorial e que enquanto sistema perceberia os sensiacuteveis comuns e

seria capaz de distinguir que objecto ou propriedade corresponde a cada funccedilatildeo geneacuterica

do sistema Santo Agostinho natildeo teve acesso ao De anima187

embora a leitura de alguns

tratados das Eneacuteadas possa ter facultado um acesso indirecto a determinados

conteuacutedos188

O penuacuteltimo tratado de Plotino teve precisamente por modelo o De anima

185

Cf De lib arb II 3 8

186 Cf Aristoacuteteles De anima II 6 418a 7-25 III 1 424b 22-427a 16 e III 3 428b 22-24 Para

Aristoacuteteles a expressatildeo κοινή αἴσθησις natildeo soacute alude agrave combinaccedilatildeo das modalidades especiacuteficas de cada

um dos sentidos entre si como tambeacutem ao facto de cada sensaccedilatildeo ser acompanhada pela consciecircncia de si

mesma Santo Agostinho natildeo usa a expressatildeo sensus communis relativamente agrave percepccedilatildeo sensiacutevel mas

na acepccedilatildeo que corresponderia a κοινή δόξα

187 De Aristoacuteteles o Bispo de Hipona parece soacute ter lido a traduccedilatildeo latina das Categoriae feita por Maacuterio

Vitorino Cf Conf IV 16 28

28 De Trin V 2 3 e V 7 8 onde se fala em essecircncia e em substacircncia

188 Acerca da problemaacutetica sobre quais os tratados plotinianos que teraacute Santo Agostinho lido vide Ana

Rita Ferreira laquoDo Belo a esteacutetica augustiniana vista agrave luz das Eneacuteadasraquo in Revista Signum vol 11 n 1

2010 p 7 Natildeo eacute possiacutevel ter certezas quanto agraves fontes agostinianas relativamente ao sentido interior mas

haacute seguramente uma seacuterie de filoacutesofos e de correntes filosoacuteficas com as quais Santo Agostinho estava

familiarizado que desenvolveram conceitos muito proacuteximos ao de sentido interior ou que com ele se

relacionam Directa ou indirectamente o filoacutesofo africano tomou conhecimento de tais

desenvolvimentos ndash natildeo pode ser mera coincidecircncia o facto da formulaccedilatildeo que Santo Agostinho faz do

conceito sentido interior seguir termos tatildeo semelhantes aos empregues por Aristoacuteteles relativamente ao

sentido comum Tambeacutem natildeo faz sentido duvidar que Santo Agostinho desconhecia a posiccedilatildeo estoacuteica

sobre as impressotildees sensiacuteveis e sobre conceitos como ἡγεμονικόν (hegecircmonikon ndash faculdade que

reconhece coordena e julga as impressotildees sensiacuteveis) οἰκείωσις (oikeiosis ndash espeacutecie de identificaccedilatildeo

apropriaccedilatildeo que implica o sentimento de si e permite aos animais procurar o que lhes conveacutem e evitar o

que lhes eacute prejudicial) e ἐντός ἁφή (entos haphecirc ndash tacto interno) Apesar de nunca citar tais expressotildees

Santo Agostinho refere-se por vaacuterias vezes aos estoacuteicos para os criticar quanto agrave reflexividade dos

sentidos e agrave assunccedilatildeo da verdade a eles associada (como em De civ Dei VIII 7) ou paradoxalmente para

invocar o estoicismo contra o cepticismo acadeacutemico contrariando assim a ideia de que os sentidos

enganam (por exemplo em Contra Academicos) Ora se Santo Agostinho estaacute familiarizado com o

79

do qual adopta o plano de trabalho contudo dificilmente teraacute sido atraveacutes deste

trabalho que Santo Agostinho se aproximou tanto da anaacutelise dos sensiacuteveis comuns e da

capacidade de distinguir os objectos dos diferentes sentidos ndash Plotino diz que a sensaccedilatildeo

eacute considerada comum em virtude de implicar corpo e alma189

mas natildeo se aproxima

daquilo que Aristoacuteteles designa por κοινή αίσθησις a natildeo ser quando em outros tratados

refere uma uacutenica alma sensitiva da qual cada um dos cinco sentidos corpoacutereos satildeo

poderes190

ou quando refere que na percepccedilatildeo de um objecto as diversas sensaccedilotildees

devem ser unidas e ordenadas por uma faculdade perceptiva incorpoacuterea191

Eacute mais nesta

direcccedilatildeo que se orienta tambeacutem o conceito agostiniano de sentido interior em De libero

arbitrio Neste diaacutelogo a anaacutelise levada a cabo por Santo Agostinho e pelo seu

interlocutor Evoacutedio acerca das competecircncias e das capacidades de cada um dos sentidos

corpoacutereos revela rapidamente a intenccedilatildeo de nortear os toacutepicos da conversaccedilatildeo desde o

domiacutenio da sensibilidade para o domiacutenio da razatildeo o que obviamente natildeo pode ser feito

de maneira abrupta Tal direccionamento espelhar-se-aacute uma deacutecada mais tarde neste

trecho de Confessionum ldquoPortanto por etapas passei dos corpos para a alma que

percebe atraveacutes do corpo e daiacute para o poder interno da alma ao qual os sentidos

corpoacutereos reportam as coisas externas etapa que os animais conseguem alcanccedilarrdquo192

O sentido interno embora resulte da ratio enquanto movimento da mens natildeo se

confunde com ela pois natildeo chega a ser uma consciecircncia racional mas antes uma

estoicismo eacute quase certo que os conceitos acima indicados tenham contribuiacutedo para a formulaccedilatildeo do

ldquosentido interiorrdquo tal como teraacute contribuiacutedo o sensus sui ciceroniano (De finibus bonorum et malorum

III 16) Acerca da influecircncia do estoicismo em Santo Agostinho aconselha-se a leitura do quarto capiacutetulo

da obra de Marcia L Colish The Stoic Tradition from Antiquity to the Early Middle Ages Leiden Brill

1985 pp 142-238 e Michel Spanneut ldquoLe Stoiumlcisme et saint Augustin Etat de la questionrdquo in AAVV

Forma futuri FS Michele Pellegrino Turin 1975 p 896-914 Acerca da influecircncia ciceroniana cf M

Testard Saint Augustin et Ciceacuteron Paris Etudes Augustiniennes 1958 Em relaccedilatildeo a Plotino haacute certezas

quanto ao facto de que Santo Agostinho teraacute lido certos tratados das Eneacuteadas mas natildeo haacute certezas sobre

quais os tratados e essa eacute uma discussatildeo bastante antiga entre os investigadores da qual natildeo se pode

esperar um resoluccedilatildeo concreta

189 Cf Plotino En I 1 9 e IV 3 26

190 Cf Plotino En IV 3 3

191 Cf Plotino En IV 7 6

192 Cf Conf VII 17 23 (CCL 27 p 107) laquoAtque ita gradatim a corporibus ad sentientem per corpus

animam atque inde ad eius interiorem vim cui sensus corporis exteriora nuntiaret et quousque possunt

bestiaeraquo

80

consciecircncia sub-racional193

que medeia a sensaccedilatildeo e o conhecimento e que eacute comum

aos homens e aos animais194

Eacute nesta senda que OrsquoDaly explica o surgimento isolado do

conceito de sentido interno Sendo apenas em De libero arbitrio que haacute referecircncia

expliacutecita ao conceito195

este comentador da obra agostiniana defende que ele eacute aduzido

pelo filoacutesofo africano dada a necessidade em completar dois niacuteveis hieraacuterquicos

correspondentes entre si corpo alma mente e percepccedilatildeo sensoacuteria sentido interior

conhecimento196

Em nenhuma outra obra se repete tal esquema analoacutegico pelo que a

formulaccedilatildeo ldquosentido interiorrdquo deixa de ser necessaacuteria no entanto a acepccedilatildeo que lhe eacute

preconizada em De libero arbitrio natildeo eacute descartada nas abordagens ao tema da

percepccedilatildeo desenvolvidas em obras posteriores OrsquoDaly considera que a noccedilatildeo de

concentraccedilatildeo (intentio attentio) eacute com efeito uma reformulaccedilatildeo do poder reflexivo do

sentido interno197

Em obras anteriores a De libero arbitrio poderatildeo tambeacutem encontrar-se indiacutecios

do conceito em questatildeo por exemplo em Soliloquia na metaacutefora dos sentidos da alma

(sensus animae)198

ou em De musica quando Santo Agostinho diz que os oacutergatildeos dos

sentidos satildeo instrumentos corpoacutereos passiacuteveis de ser activados pela attentio da alma199

O sentido interior (sensus interior) conforme descrito em De libero arbitrio200

eacute a

capacidade de ajuizar as sensaccedilotildees reportadas pelos cinco sentidos corpoacutereos Eacute ele que

controla os sentidos corpoacutereos e que permite a consciecircncia da actividade ou da ausecircncia

193

Cf De lib arb III 5 12 onde Santo Agostinho diz reconhecer que o sentido interior eacute abaixo da razatildeo

(infra rationem)

194 No caso dos animais obviamente o sentido interior natildeo ocuparaacute uma posiccedilatildeo intermeacutedia entre a

sensaccedilatildeo e o conhecimento (scientia) neles as percepccedilotildees tecircm a mesma eficaacutecia que o conhecimento tem

para o homem

195 Noutras obras agostinianas muito raramente se encontra a expressatildeo sensus interior e quando tal

ocorre eacute com a acepccedilatildeo de faculdade racional de discernimento particular do ser humano Esta acepccedilatildeo

natildeo tem obviamente qualquer relaccedilatildeo com o conceito desenvolvido em De libero arbitrio Cf De civ Dei

XI 27 e RetrI 1 2

196 OrsquoDaly Augustinersquos philosophy of mind Berkeley University of California Press 1987 p 105

197 Ibid

198 Cf Sol I 6 12

199 Cf De mus VI 5 10

200 Cf De libero arbitrio II 3 8 - II 6 13

81

de actividade por parte desses sentidos corpoacutereos No diaacutelogo Evoacutedio diz a Santo

Agostinho que eacute a razatildeo que faculta a compreensatildeo da existecircncia do sentido interior e

salienta que embora este seja apreendido por ela natildeo se lhe pode atribuir o nome de

razatildeo visto que os animais tambeacutem o possuem201

Se parece ser oacutebvio que o sentido

interior se apercebe de tudo o que ocorre ao niacutevel dos sentidos corpoacutereos jaacute natildeo eacute tatildeo

oacutebvio que o sentido interior se aperceba de si mesmo Santo Agostinho tambeacutem natildeo

parece ir nesse sentido afirmando apenas como certo que a razatildeo julga o sentido

interior202

e que este estaacute ao serviccedilo dela203

Sabemos pela razatildeo que o sentido interior existe necessariamente pois a

distinccedilatildeo entre os sensiacuteveis proacuteprios e os sensiacuteveis comuns natildeo poderia ser estabelecida

pelos sentidos corpoacutereos uma vez que estes carecem de reflexividade A proacutepria

articulaccedilatildeo entre os sentidos face a um sensiacutevel comum pressupotildee que haja um sentido

superior capaz de coordenar tal papel conjunto Aleacutem disto acresce a evidecircncia da

funccedilatildeo reflexiva do sentir ou por outras palavras a consciecircncia da sensaccedilatildeo que soacute

pode ser imputada ao sentido interior jaacute que ultrapassa as capacidades dos sentidos

corpoacutereos A visatildeo natildeo sente a vista ao ver uma cor o ouvido natildeo se sente a si mesmo

quando ouve um som o paladar carece de sabor e quando tocamos em algo natildeo

sentimos o tacto do mesmo modo quando cheiramos o odor natildeo nos faculta qualquer

cheiro de si mesmo204

Eacute o sentido interior quem tem a sensaccedilatildeo dos proacuteprios sentidos

No caso do homem haacute o conhecimento daquilo que propriamente cada um dos

sentidos corpoacutereos tem por competecircncia por exemplo agrave visatildeo compete-lhe reportar a

cor e agrave audiccedilatildeo compete-lhe reportar o som ndash tal discernimento racional natildeo eacute partilhado

pelos animais No entanto eles partilham connosco a consciecircncia sub-racional da

sensaccedilatildeo sem essa consciecircncia os animais natildeo poderiam sequer mover-se Santo

Agostinho explica a Evoacutedio que por exemplo para que um animal possa abrir os olhos

direccionando-os para o objecto que pretende ver ele tem de sentir que natildeo vecirc tendo os

olhos fechados ou por direccionar Os sentidos corpoacutereos sentem as coisas corpoacutereas

201

De lib arb II 3 8 (CCL 29 p 240) laquoQuod cum ratione comprehendamus ut dixi hoc ipsum tamen

rationem vocare non possum quoniam et bestiis inesse manifestum estraquo

202 Cf De lib arb II 6 13

203 Cf De lib arb II 3 9

204 Cf Ibid

82

mas natildeo podem ter a sensaccedilatildeo de si mesmos jaacute o sentido interior tem natildeo apenas a

sensaccedilatildeo das coisas corpoacutereas atraveacutes dos sentidos corpoacutereos como tambeacutem tem a

sensaccedilatildeo dos proacuteprios sentidos corpoacutereos Atraveacutes do sentido interior a alma apercebe-se

dos sentidos e das sensaccedilotildees A transitividade dos sentidos corpoacutereos relativamente ao

sentido interior prova que estes satildeo limitados face a si mesmos e entre si ndash demarcando

radicalmente a perspectiva agostiniana da perspectiva aristoteacutelica

O sentido interior parece articular-se natildeo apenas com as impressotildees sensiacuteveis

mas tambeacutem com a memoacuteria inclusivamente no caso dos animais205

que face agrave visatildeo

de algo que anteriormente lhes causou uma sensaccedilatildeo desagradaacutevel evitam aproximar-se

do objecto responsaacutevel por tal sensaccedilatildeo

A memoacuteria tem aliaacutes um funcionamento afim ao do sentido interno pois lida

com os dados da sensibilidade e natildeo com os objectos sensiacuteveis em si e permite a

concentraccedilatildeo mental ndash que Santo Agostinho tambeacutem refere atraveacutes do termo intentio ndash sem

a qual as sensaccedilotildees seriam imperceptiacuteveis Com efeito a memoacuteria tem um papel

imprescindiacutevel no processo da percepccedilatildeo sensiacutevel tal como Santo Agostinho ilustra em

De musica pela anaacutelise do hino ambrosiano Deus creator omnium206

Qualquer objecto

sensiacutevel tem uma existecircncia espacio-temporal que predetermina que a sua percepccedilatildeo se

subordine necessariamente aos limites fiacutesicos desse contexto e que se articule agrave

actividade de reconstruccedilatildeo da memoacuteria sem a qual se perderia a noccedilatildeo da continuidade

espacial eou duracional do objecto percebido atraveacutes das impressotildees corpoacutereas

Sem a memoacuteria qualquer percepccedilatildeo seria imperceptiacutevel Ao ouvirmos uma

frase lidamos com ritmos sonoros com cadecircncias e intervalos de tempo que

obviamente natildeo decorrem em simultacircneo A sucessividade dos objectos sonoros implica

que para os percebermos sejamos capazes de nos lembrar ordenadamente dos diferentes

espaccedilos temporais que compotildeem esse objecto sonoro de modo a que quando ele deixa

de ressoar tenhamos ainda presente o seu iniacutecio No caso da percepccedilatildeo de siacutelabas isso eacute

ainda mais flagrante Por mais breve que uma siacutelaba seja podemos distinguir-lhe um

iniacutecio e um fim que o ouvido percebe em tempos distintos cabe agrave memoacuteria reconstituir

esses tempos estabilizando-os como que num presente interno que nela permanece por

oposiccedilatildeo ao movimento fiacutesico exterior do qual resulta a impressatildeo e que imediatamente

205

Cf De quant an 33 71

206 Cf De mus VI 9 23 e VI 8 21

83

deveacutem preteacuterito desvanecendo-se na exacta proporccedilatildeo da sua ocorrecircncia Tal

presentificaccedilatildeo interior operada pela memoacuteria ocasiona que no momento em que

ouvimos retinir o fim da siacutelaba haja uma reproduccedilatildeo do movimento que se operou

quando ouvimos o seu iniacutecio permitindo-nos ouvir como que instantaneamente essa

siacutelaba A instantaneidade para a qual a memoacuteria concorre no processo da percepccedilatildeo

sensiacutevel estaacute ligada agrave produccedilatildeo de imagens (imagines ou similitudines) Em De Genesis

ad litteram o Bispo de Hipona explica que logo que os sentidos percebem um objecto

produz-se uma imagem sua na mente de modo instantacircneo (nullius puncti temporalis

interpositione formatur) Se a mente fosse incapaz de formar em si uma imagem daquilo

que eacute percebido pelo ouvido e se a memoacuteria fosse incapaz de a conservar ela natildeo

poderia conhecer a segunda siacutelaba nem saber que se trata da segunda pois a primeira jaacute

teria perdido a sua existecircncia desvanecendo-se ao repercutir o ar Naturalmente

qualquer potencial praacutetico e esteacutetico da percepccedilatildeo seria gorado uma vez que neste caso

a proacutepria percepccedilatildeo natildeo se efectivaria laquo[hellip] por conseguinte veriacuteamos desaparecer

todo o proveito de uma conversa toda a agradabilidade de um canto enfim todo o

movimento relativo agrave acccedilatildeo do corporaquo207

Parafraseando Moreau sem o papel fundamental da memoacuteria a sensaccedilatildeo seria

fragmentaacuteria e ininteligiacutevel sequer seria uma sensaccedilatildeo pois esta soacute se completa na

instantaneidade da memoacuteria ou seja no momento aglutinador que o operar

presentificante da memoacuteria permite208

O proacuteprio Santo Agostinho parece explicar que a

impressatildeo sonora soacute devem sensaccedilatildeo quando entra em jogo a memoacuteria ao exemplificar

que quando estamos distraiacutedos por vezes parece-nos natildeo ouvirmos as pessoas que nos

falam e isto ocorre natildeo porque o som natildeo atinja os nossos ouvidos mas porque a alma

permanece inactiva como se tal impressatildeo nunca tivesse ocorrido209

Em relaccedilatildeo agrave percepccedilatildeo visual o processo eacute idecircntico natildeo podemos percepcionar

um corpo por menor que seja sem o auxiacutelio da memoacuteria Se a memoacuteria natildeo se aplicar

ao sentido do corpo tal como este se aplicou ao objecto visiacutevel quando por exemplo

lemos uma paacutegina sucederaacute que teremos de recomeccedilar a leitura pois apesar de termos

207

De Gen ad litt XII 16 33 (CSEL 28 I p 431) laquo[hellip] ac sic omnis locutionis usus omnis cantandi

suavitas omnis postremo in actibus nostris corporalis motus dilapsus occideretraquo

208 Cf M Moreau laquoMeacutemoire et Dureacuteeraquo in REAug 3 1955 p 240 laquo La sensation pure srsquoaccomplit dans

lrsquoinstantaneacute elle serait fragmentaire et inintelligible sans la ldquomeacutemoirerdquoraquo

209 Cf De mus VI 8 21

84

seguido as letras que compunham as frases nada do que foi lido ficaraacute em noacutes210

Aleacutem

disso os olhos satildeo obrigados a captar progressivamente as qualidades dos objectos

cabendo agrave memoacuteria salvaguardar uma espeacutecie de sincronia das sucessivas imagens

captadas pela vista e disponibilizar tal conjunto para a mente De certo modo a

memoacuteria pode retardar pausar ou prolongar a percepccedilatildeo conferindo-lhe uma certa

dimensatildeo espiritual ao transcender o espaccedilo e o tempo fiacutesicos Eacute neste sentido que o

Bispo de Hipona diz que a memoacuteria eacute uma espeacutecie de luz dos intervalos de duraccedilatildeo

que se espraia tanto quanto possiacutevel pelos espaccedilos temporais agrave semelhanccedila da

difusatildeo dos raios luminosos que divergem das nossas pupilas para abarcar vastas

distacircncias espaciais211

Para Santo Agostinho a memoacuteria eacute um dos trecircs aspectos da mente (mens) e esta

eacute por seu turno a parte mais excelente da alma212

Embora o proacuteprio Bispo de Hipona

fale em pars animi a expressatildeo eacute algo desajustada uma vez que a alma natildeo tem

qualquer extensatildeo nem eacute divisiacutevel O proacuteprio conceito de mens natildeo eacute usado sempre com

a mesma acepccedilatildeo nos escritos agostinianos oscilando entre a sinoniacutemia com a proacutepria

razatildeo (ratio)213

e entre uma acepccedilatildeo mais lata em que a mens conteacutem a razatildeo

excedendo-a214

Seja como mens rationalis seja como ratio a mente articula trecircs

aspectos memoacuteria (memoria) entendimento (intellectus) e vontade (voluntas) apenas

distintos pelas suas muacutetuas relaccedilotildees agrave semelhanccedila da Santiacutessima Trindade A mens

trabalha com imagens (imagines ou phantasiae) que satildeo construiacutedas por si mesma e

nesse sentido constituem-se tambeacutem como formas (formae) articuladas com certa

afinidade estrutural relativamente agrave proacutepria mens215

Uma coisa eacute a forma do objecto

sensiacutevel outra eacute a forma que os nossos sentidos corpoacutereos reportam ao nosso sentido

210

Cf De Trin XI 8 15

211 Cf De mus VI 8 21

212 Cf De Trin XV 7 11 e Contra Acad I 2 5

213 Cf Contra Acad I 2 5 ou por exemplo Sol I 4 12 onde a mens eacute considerada como oculus animae

e De lib arb II 6 13 onde a razatildeo eacute tambeacutem considerada como a cabeccedila ou o olho da alma

214 Por exemplo em De ord II 11 30 onde a ratio eacute assumida como o movimento da mens ou De civ

Dei XI 2 onde a mens abarca a razatildeo e a inteligecircncia

215 OrsquoDaly refere que quando Santo Agostinho pretende enfatizar o aspecto racional da percepccedilatildeo fala

em forma ou species quando tal ecircnfase eacute desnecessaacuteria utiliza os termos imago ou phantasia referindo-se

ao objecto da nossa percepccedilatildeo Cf OrsquoDaly op cit p 141

85

interior e outra ainda eacute a forma que se constitui na percepccedilatildeo216

Em De Trinitate Santo

Agostinho serve-se de uma imagem bastante recorrente para melhor explicar o processo

da percepccedilatildeo ndash a da impressatildeo de um pequeno anel sobre cera217

Platatildeo no Teeteto (191d-c) recorre jaacute a essa imagem218

aludindo ao

funcionamento da memoacuteria como um bloco de cera onde ficam gravadas as sensaccedilotildees e

as concepccedilotildees quais marcas de sinete aiacute impressas Os blocos de cera satildeo como um

presente de Mnemoacutesina a matildee das musas Aristoacuteteles retoma a imagem da gravaccedilatildeo em

cera mas com uma nova abordagem que seraacute seguida pelo Bispo de Hipona as formas

gravadas natildeo satildeo tanto coacutepias da forma constituiacuteda pelo sinete mas novas formas em si

mesmo imagens cujo caraacutecter mimeacutetico cede lugar ao caraacutecter fantasmaacutetico uma vez

que satildeo mais o resultado da ductilidade da cera da substacircncia aniacutemica e natildeo tanto do

sinete da impressatildeo sensiacutevel Aristoacuteteles afirma que a lembranccedila qual marca de um

sinete eacute uma imagem mental (φάντασμα) uma aparecircncia fisicamente inscrita na parte

do corpo que constitui a memoacuteria e diz que este φάντασμα eacute o corolaacuterio de qualquer

processo de percepccedilatildeo sensiacutevel seja ele visual auditivo taacutectil palatal ou olfactivo219

Plotino rejeita a imagem da impressatildeo em cera relativamente agraves sensaccedilotildees pois

considera que se a alma se comportasse de tal modo ela seria como um corpo que se

deixa afectar passivamente220

A sua criacutetica visa sobretudo refutar os peripateacuteticos e os

estoacuteicos que consideravam a alma como sendo corporal e tendo um papel passivo na

teoria da sensaccedilatildeo Para Plotino as sensaccedilotildees natildeo satildeo paixotildees (πάθη) mas actos da alma

relativos agraves paixotildees do corpo ndash portanto a sensaccedilatildeo eacute uma operaccedilatildeo comum agrave alma e ao

corpo em que o corpo experiencia a paixatildeo e serve de mensageiro da alma que por sua

vez percebe a impressatildeo produzida no corpo ela tambeacutem pode formular um juiacutezo

(χρίσις) acerca da paixatildeo que o corpo experiencia A memoacuteria ocorre posteriormente agrave

216

Cf De Trin XI 2 5

217 Cf De Trin XI 2 3

218 Que Herman Parret diz remontar jaacute a Homero Cf Parret laquoVestige archive et trace Preacutesences du

temps passeacuteraquo in Proteacutee v 32 n 2 automne 2004 pp 37-46

219 Cf Aristoacuteteles De memoria et reminiscentia 450a - 450b Cf Idem De anima II 12 424a 17-20

onde a imagem da marca de um anel em ouro ou bronze sobre cera eacute utilizada em relaccedilatildeo aos sentidos

corpoacutereos que recebem as formas sensiacuteveis sem a mateacuteria tal como a cera recebe a forma do anel sem o

ouro ou sem o bronze que o constitui

220 Cf Plotino En IV 6 1

86

percepccedilatildeo que a alma tem da impressatildeo produzida no corpo pela sensaccedilatildeo ndash pode retecirc-la

ou deixar que se desvaneccedila Eacute sempre a alma que se lembra ndash a memoacuteria soacute pertence agrave

alma mas pertence-lhe na medida em que ela natildeo eacute pura e habita um corpo Eacute preciso

que ela habite um corpo para receber e conservar formas na memoacuteria Ao tratar-se de

formas sem extensatildeo elas natildeo podem constituir-se como caracteres nem como imagens

ou impressotildees (αἱ ἐνσφραγίσεις οὐδacute ἀντερείσεις ἢ τυπώσεις) pois natildeo haacute na alma

nenhum impulso (ὠθισμός) nem marca semelhante agrave de um sinete sobre cera221

Plotino

diz que a proacutepria operaccedilatildeo pela qual a alma percebe as coisas sensiacuteveis eacute jaacute uma espeacutecie

de pensamento ou inteleccedilatildeo (νόησις)

O Bispo de Hipona segue tambeacutem a via plotiniana mas faz uma leitura mais

flexiacutevel acerca da comparaccedilatildeo do funcionamento da memoacuteria a uma placa de cera que

o aproxima igualmente da via aristoteacutelica ainda que tal imagem da cera seja referida

pelo Bispo de Hipona em relaccedilatildeo aos sentidos e natildeo directamente em relaccedilatildeo agrave

memoacuteria Em De Trinitate Santo Agostinho explica que do mesmo modo que um anel

sobre a cera faz com que a sua marca aiacute fique impressa ndash e sabecircmo-lo mesmo antes do

anel se separar da cera ndash tambeacutem sabemos que se colocarmos o anel sobre uma

superfiacutecie liacutequida antes da separaccedilatildeo de ambos haacute uma forma do anel feita a partir

dele distinta da forma que eacute o proacuteprio anel Essa forma feita a partir da forma que eacute o

proacuteprio anel desaparece no momento exacto da separaccedilatildeo entre o anel e o liacutequido pelo

que natildeo haacute hipoacutetese de percebermos a forma resultante da junccedilatildeo do anel com o liacutequido

Mas ainda que os nossos olhos natildeo a vejam como vecircem a marca do anel numa placa de

cera a nossa razatildeo diz-nos que tal forma tem lugar quando o liacutequido e o anel se

encontram222

O objecto nunca gera o sentido pois este existe independentemente da

sensaccedilatildeo mas gera a sua forma ou semelhanccedila que tem lugar nos sentidos corpoacutereos

face ao encontro com esse objecto Santo Agostinho recorre ao exemplo das imagens de

persistecircncia retiacutenica para confirmar que nos sentidos se gera uma forma da forma

corpoacuterea sentida Esta forma nos sentidos eacute a impressatildeo sensiacutevel que eacute automaticamente

reportada ao sentido interior e soacute entatildeo pertence agrave alma ndash enquanto impressatildeo sensiacutevel

eacute do domiacutenio do corpo mas quando eacute interiorizada passa a ser do domiacutenio exclusivo da

221

Cf Plotino En IV 3 26

222 Cf De Trin XI 2 3

87

alma223

As trecircs formas tecircm substacircncias distintas poreacutem estatildeo de tal modo

interrelacionadas que dificilmente se destrinccedilam

A percepccedilatildeo sensiacutevel soacute pode ser uma percepccedilatildeo de aparecircncias ndash de imagens

incorpoacutereas de corpos sensiacuteveis ou como diria Aristoacuteteles uma recepccedilatildeo de formas sem

mateacuteria224

Tal desdobramento de formas que ocorre no processo perceptivo tem por

resultado o facto de a alma acabar por lidar com uma forma que jaacute lhe eacute afim225

Natildeo eacute o

objecto que produz na mente uma imagem de si mas antes eacute a mente que forma em si

mesma uma imagem do objecto visto pelos olhos e faacute-lo de modo praticamente

instantacircneo ldquosem qualquer interposiccedilatildeo temporalrdquo226

Essa imagem produzida na mente

a partir da impressatildeo sensiacutevel mesmo sendo posterior ao objecto eacute-lhe superior

precisamente porque eacute um produto mental espiritual e natildeo corporal As imagens

mentais satildeo armazenadas na memoacuteria que como salientaacutemos tem tambeacutem um papel

activo na sua formaccedilatildeo

O papel activo da memoacuteria enleia-se com as competecircncias do sentido interior e

embora os escritos agostinianos permitam facilmente concluir que de modo algum o

sentido interior e a memoacuteria satildeo conceitos intermutaacuteveis a verdade eacute que dada a falta

de uniformidade dos termos empregues dificilmente se podem traccedilar fronteiras

definidas entre o domiacutenio do sentido interior e o da memoacuteria sendo certo que se

interpenetram

O papel da memoacuteria no processo perceptivo eacute sobretudo clarificado em De

Trinitate Nesta obra a forma como Santo Agostinho expotildee a sua perspectiva

ontoloacutegica parece contribuir para cercear mais ainda o fosso entre a sensibilidade e a

inteligibilidade bem como a separaccedilatildeo entre a dimensatildeo do corpo face agrave da alma A

dualidade homem interior homem exterior natildeo parece implicar uma cisatildeo no animal

mortal humano sobretudo quando entra em jogo a intentio animi que o Bispo de

223

Note-se que em De Trinitate Santo Agostinho natildeo se refere a esta interiorizaccedilatildeo atraveacutes do sentido

interior mas atraveacutes da vontade da alma (voluntas animi) Cf De Trin XI 2 5

224 Cf Aristoacuteteles De anima II 12 424a 18

225 Cf De Trin X 5 7 (CCL 50 p 320) onde Santo Agostinho diz que ao recolher em si imagens dos

corpos criadas em si mesma e por si mesma a alma comunica algo da sua proacutepria substacircncia a essas

imagens laquo[hellip] imagines eorum convolvit et rapit factas in semetipsa de semetipsa Dat enim eis

formandis quiddam substantiae suae [hellip]raquo

226 Cf De Gen ad litt XII 16 33 (CSEL 281 p 402) laquo[hellip]nullius puncti temporalis interpositione

formaturraquo

88

Hipona tambeacutem perspectiva como voluntas227

De modo algum poderaacute considerar-se um

paralelismo entre os pares alma corpo e homem interior homem exterior uma vez que

este uacuteltimo conceito ndash o de homem exterior ndash se refere na verdade ao sujeito do

conhecimento sensiacutevel implicando o ser na sua animalidade implicando a natureza

corpoacuterea animada A articulaccedilatildeo corpo alma alicerccedila portanto o homem exterior O

homem interior ainda que pressuponha uma vivecircncia relativamente autoacutenoma face ao

corpo sendo o sujeito do conhecimento inteligiacutevel encontra na memoacuteria na voliccedilatildeo e

na cogitaccedilatildeo um inegaacutevel elo com o homem exterior

O homem interior acede agrave imagem da Trindade que eacute toda a alma que se conhece

e se ama Esse conhecimento procede da vontade da alma que a atrai para aquilo que

deseja conhecer228

Logo que aquilo que se deseja conhecer se torna conhecido o desejo

transforma-se em amor pelo conhecimento e por aquilo que eacute conhecido Esta trindade

da alma do conhecimento que alma tem de si e do amor eacute uma soacute essecircncia da qual os

trecircs constituintes satildeo iacutendices de inter-relacionamento sem mistura ou confusatildeo229

O

conhecimento natildeo eacute menor do que a alma uma vez que esta se conhece em toda a sua

extensatildeo ele eacute como que o filho da alma como o verbo criado pela alma O amor

tambeacutem natildeo eacute menor do que a alma ou do que o conhecimento pois a alma ama-se na

medida em que se conhece e em toda a sua extensatildeo O amor acarinha o conhecimento e

une-o agrave alma que o gera como a um filho ou verbo Assim a imagem da Trindade

repercute o Pai na alma que tambeacutem eacute memoacuteria espiacuterito ou vida o Filho no

conhecimento que tambeacutem eacute inteligecircncia ou ciecircncia e o Espiacuterito Santo no amor que

tambeacutem eacute vontade ou acccedilatildeo ndash e todos satildeo uma soacute quanto agrave essecircncia e trecircs em relaccedilatildeo a

cada qual A memoacuteria considerada vida alma substacircncia eacute tomada no sentido absoluto

e soacute eacute memoacuteria quando se reporta a algo o mesmo ocorre com os outros iacutendices O

homem exterior natildeo encontra em si a imagem da Trindade mas encontra vestiacutegios dela

a dois niacuteveis o primeiro respeitante agrave percepccedilatildeo e o segundo agrave cogitaccedilatildeo

227

Cf De Trin XI 2 5

228 Cf De Trin IX 12 18 Bourke defende que Santo Agostinho faz corresponder o homem interior agrave

triacuteade mens memoria voluntas Cf Vernon Joseph Bourke Augustines love of wisdom An introspective

philosophy West Lafayette Purdue University Press 1992 p 24

229 Cf De Trin IX 5 8

89

Ao niacutevel da percepccedilatildeo haacute vestiacutegios da Trindade na relaccedilatildeo triaacutedica composta

pelo exterior visiacutevel a visatildeo (visio) e a atenccedilatildeo da alma (animi intentio)230

ndash mas estes

componentes natildeo satildeo consubstanciais satildeo trecircs coisas de natureza diferente (discreta

natura) o primeiro eacute corpoacutereo a segunda pertence agrave natureza animal231

e a terceira

pertence soacute agrave alma O primeiro gera as formas ou semelhanccedilas que tecircm lugar nos

sentidos quando vemos a segunda eacute gerada pelo visiacutevel exterior e pelo sujeito que vecirc

tendo portanto jaacute algo de espiritual pois natildeo poderia existir sem a alma e a terceira une

a visatildeo ao exterior visiacutevel e equivale ao Espiacuterito Santo232

porque natildeo eacute nem filha da

visatildeo existindo como quieta voluntas antes dela nem seu pai

Ao niacutevel da cogitaccedilatildeo haacute vestiacutegios da Trindade na relaccedilatildeo triaacutedica estabelecida

pelo seguinte conjunto memoacuteria (memoria) visatildeo interior (acies animi) e vontade

(voluntas) A memoacuteria conserva a imagem que penetrou na alma a partir do sentido

corpoacutereo A visatildeo interior recai sobre a lembranccedila da memoacuteria e a vontade une as outras

duas voltando o olhar da alma (acies animi) para a memoacuteria porque esta se forma a

partir daquilo que a memoacuteria reteve originando assim uma visatildeo semelhante na

cogitaccedilatildeo (in cogitatione)233

Nesta triacuteade todos os componentes satildeo de uma uacutenica e

mesma substacircncia jaacute que todos satildeo interiores sendo uma soacute alma234

Esta trindade

ocorre inteiramente ao niacutevel do pensamento e por implicar uma recolecccedilatildeo Santo

Agostinho designa-a de cogitaccedilatildeo (cogitatio) Tal como a distinccedilatildeo entre o visiacutevel

exterior e a semelhanccedila que dele se forma nos sentidos pela sensaccedilatildeo soacute era destrinccedilaacutevel

pela razatildeo tambeacutem a distinccedilatildeo entre a imaginaccedilatildeo (phantasia) formada a partir da

semelhanccedila (similitudo) do exterior sensiacutevel conservado pela memoacuteria e a imagem que

dele nasce no olhar da alma que se recorda (acie recordentis animi) parecem de tal

modo unas e simples que soacute um juiacutezo da razatildeo as permite distinguir A memoacuteria e a

230

Ou vontade Cf De Trin XI 2 5

231 Por natureza animal entenda-se a do corpo ligado agrave alma

232 Cf De Trin XI 5 9

233 Cf De Trin XI 3 6

234 Cf De Trin XI 3 7 laquo[] sed unius eiusdemque substantiae quia hoctotum intus est et totum unus

animusraquo

90

aparecircncia (species) que encontramos quando a ela retornamos no processo de

recordaccedilatildeo satildeo duas coisas distintas235

Viver segundo as trindades do homem exterior eacute degradante para a alma pois

mesmo ocorrendo interiormente elas referem-se a coisas exteriores ndash satildeo acerca do que

haacute de mais imperfeito na criaccedilatildeo236

Poreacutem nestas trindades a vontade eacute quem dita a

boa conduta da alma Eacute a vontade que une a visatildeo (visio) ao exterior sensiacutevel no caso da

percepccedilatildeo e a visatildeo interior (acies animi) agrave memoacuteria no caso do pensamento ou

cogitaccedilatildeo Em nenhum dos casos a visatildeo deveraacute ser o fim da vontade237

mas antes um

acto acidental do seu desejo de ver Se a vontade repousar sobre a visatildeo tomaraacute por

verdadeiro (vero) o que apenas tem semelhanccedilas com a verdade (verisimilis) Todas as

criaturas tecircm uma semelhanccedila ainda que imperfeita com Deus que tudo fez muito

bem238

e satildeo portanto boas no seu geacutenero Natildeo haacute uma contaminaccedilatildeo pecaminosa

directa atraveacutes do sensiacutevel exterior ou das imagens que dele ficam na memoacuteria haacute sim

um mau direccionamento da vontade que se ateacutem na visatildeo (seja na visio ou na acies

animi) A vontade deveraacute sempre querer algo mais do que a visatildeo e deveraacute utilizaacute-la

como a uma janela ndash quando a olhamos ela natildeo eacute o termo da nossa vontade de ver eacute-o

sim o que se passa para laacute dela239

Do mesmo modo que a sensaccedilatildeo depende do corpo a cogitaccedilatildeo depende da

memoacuteria240

A memoacuteria eacute limitada quanto ao nuacutemero agrave extensatildeo e agrave qualidade das

sensaccedilotildees experienciadas em termos de imagens corporais que armazena poreacutem as

visotildees da cogitaccedilatildeo ocasionadas a partir daquilo que a memoacuteria conteacutem satildeo infinitas

Aquilo que fica armazenado na memoacuteria natildeo eacute aquilo que se reproduz no pensamento

daquele que se recorda embora ambas as imagens sejam tatildeo unidas que pareccedilam uma

soacute Para haver recordaccedilatildeo eacute necessaacuterio uma outra trindade mais interior eacute preciso a

235

Neste processo de recordaccedilatildeo pode suceder natildeo encontrarmos a tal species e eacute nesse caso que

dizemos que nos esquecemos (ita oblitos nos esse diceremus) Cf De Trin XI 3 6

236 Cf De Trin XI 5 8

237 Soacute a felicidade se constitui legitimamente com o fim da vontade Cf De Trin XI 6 10

238 Gn 1 31

239 Cf De Trin XI 6 10

240 Natildeo eacute no entanto verdade que a memoacuteria necessite da cogitaccedilatildeo jaacute que pode exercer-se

independentemente das suas imagens (phantasiae) Cf Ep 7 1 1

91

aparecircncia do objecto escondida na memoacuteria (mesmo antes de o pensarmos) eacute preciso

aquilo que se forma no pensamento quando o objecto eacute visto e eacute precisa a vontade que

os une e que com eles faz uma terceira coisa ndash um todo Atraveacutes do pensamento (cum

cogitatus) forma-se uma outra forma (species) a partir da forma armazenada na

memoacuteria Assim apesar da forma se produzir no olhar da alma pelo acto de recordar

ela resulta daquela outra forma que existe na memoacuteria pelo que o olhar da alma eacute-lhe

anterior natildeo sendo como o seu pai A trindade do pensamento pode desdobrar-se

infinitamente ateacute porque o olhar da alma natildeo pode abarcar de um soacute lance tudo o que

conteacutem a memoacuteria241

Santo Agostinho exemplifica ao dizer que quando se lembra de

um sol faacute-lo porque o viu mas se quiser poderaacute imaginar dois ou trecircs soacuteis e esta visatildeo

do pensamento eacute formada a partir da memoacuteria onde soacute haacute um sol A seu bel-prazer

poderaacute recordar-se de um sol maior ou menor quadrado ou verde mesmo que nunca o

tenha visto assim Tal aplica-se a qualquer outra coisa Por norma e a um primeiro

niacutevel as nossas recordaccedilotildees satildeo verdadeiras mas por vezes a vontade faz com que o

olhar do pensamento (cogitantis acies) figure coisas das quais natildeo nos poderiacuteamos

lembrar porque natildeo existem ou natildeo ocorreram a partir de coisas que estatildeo na nossa

memoacuteria tomando daqui um traccedilo e dali outro e reunindo tudo numa soacute visatildeo que

diremos ser falsa242

Mesmo no caso das falsas imagens a memoacuteria tem portanto um

papel fundamental pois fornece imagens esparsas que podemos reunir ampliar ou

reduzir quando pensamos (cogitamus)

Tais variaccedilotildees que operamos nas formas sem mateacuteria que a memoacuteria conteacutem

estatildeo na origem dos produtos da nossa imaginaccedilatildeo das aparecircncias que figuramos nos

sonhos e das recordaccedilotildees falsas que a um segundo niacutevel podemos armazenar tambeacutem

na memoacuteria243

Este segundo niacutevel diz respeito a uma espeacutecie de actualizaccedilatildeo das

imagens que a memoacuteria conteacutem e que graccedilas ao papel mediador da voliccedilatildeo mental 244

e

241

Cf De Trin XI 8 12

242 Cf De Trin XI 10 17 e Ep 7 3 6

243 O Bispo de Hipona nunca fala em niacuteveis de memoacuteria mas de certo modo parece pressupocirc-los Em De

Trin XI 10 17 afirma que soacute temos recordaccedilotildees verdadeiras das coisas que sentimos ao passo que em

De Trin XIII 5 24 diz que haacute falsas memoacuterias As afirmaccedilotildees natildeo satildeo antagoacutenicas pois pressupotildeem

dois niacuteveis distintos no acto de memoriar no primeiro caso a construccedilatildeo da imagem-memoacuteria eacute feita a

partir da impressatildeo sensiacutevel e no segundo caso a construccedilatildeo da imagem-memoacuteria eacute feita a partir de

outras imagens-memoacuterias

244 Cf De mus VI 8 22

92

a um certo poder de associaccedilatildeo transfigura tais imagens que se mantecircm na memoacuteria jaacute

como fruto da cogitaccedilatildeo e natildeo mais como um dado directo da percepccedilatildeo Assim haacute com

efeito um desdobramento de quatro formas que derivam gradualmente umas das outras

da forma do exterior sensiacutevel nasce a forma impressa no sentido desta por seu turno

nasce a forma que a um primeiro niacutevel eacute guardada na memoacuteria e da qual deriva uma

quarta forma nascida do olhar do pensamento (in contuitu cogitantis) que ficaraacute tambeacutem

ela guardada na memoacuteria como que num segundo niacutevel Esta eacute a siacutentese entre

percepccedilatildeo e cogitaccedilatildeo em que a vontade eacute por trecircs vezes o elo entre formas245

Eacute

atraveacutes desta siacutentese que se vai da sensaccedilatildeo ao pensamento num processo de

desdobramento de semelhanccedilas

Para aleacutem da analogia da Trindade que Santo Agostinho estabelece

relativamente ao concurso da memoacuteria com o entendimento e com a vontade eacute possiacutevel

perceber outras valecircncias da memoacuteria que se repercutem de modo indirecto no processo

da percepccedilatildeo sensiacutevel ou que com ele se articulam Desde logo a memoacuteria parece

funcionar tambeacutem como um dispositivo de positivaccedilatildeo de imagens negativas pois para

aleacutem das imagens das coisas reportadas pelos sentidos as afecccedilotildees da mente fazem

tambeacutem parte dos conteuacutedos da memoacuteria estando nela armazenadas de um modo que

poderemos dizer ldquoapaacuteticordquo que possibilita a sua reequacionaccedilatildeo moral e em uacuteltima

instacircncia alicerccedila o acto confessional

A recordaccedilatildeo das afecccedilotildees da mente (alegria tristeza medo desejo) processa-se

de um modo distinto daquele que resultou na experiecircncia efectiva de tais sentimentos

pela mente pois quando nos lembramos de tais afecccedilotildees fazecircmo-lo sem efectivamente

as sentir Esse modo ldquoapaacuteticordquo de as armazenar e reutilizar eacute quase uma sublimaccedilatildeo

dessas afecccedilotildees atraveacutes da qual comeccedila a interrogaccedilatildeo de si mesmo e o conhecimento

de si mesmo Em relaccedilatildeo ao papel da memoacuteria sobre estas afecccedilotildees Santo Agostinho

245

Cf De Trin XI 9 16 (CCL 50 p 353) onde o Bispo de Hipona diz que laquoNa sequecircncia que deste

modo comeccedilamos com a forma do corpo e atraveacutes da qual chegamos ateacute agrave forma que eacute originada no olhar

do pensamento encontramos quatro formas como que nascidas gradualmente umas das outras a segunda

da primeira a terceira da segunda a quarta da terceira Da forma do corpo que efectivamente vemos

surge aquela originada no sentido daquele que vecirc por seu turno desta surge aquela que eacute originada na

memoacuteria e desta por sua vez nasce aquela que eacute originada no olhar do pensamentoraquo laquoIn hac igitur

distributione cum incipimus a specie corporis et pervenimus usque ad speciem quae fit in contuitu

cogitantis quattuor species reperiuntur quasi gradatim natae altera ex altera secunda de prima tertia de

secunda quarta de tertia A specie quippe corporis quod cernitur exoritur ea quae fit in sensu cernentis

et ab hac ea quae fit in memoria et ab hac ea quae fit in acie cogitantisraquo

93

diz que ela funciona como um estocircmago da mente (venter animi) que as digere246

Tal

como em relaccedilatildeo ao exterior sensiacutevel a memoacuteria natildeo guarda qualquer corporeidade dele

mas apenas as suas imagens tambeacutem em relaccedilatildeo agraves afecccedilotildees da alma a memoacuteria natildeo

guarda as sensaccedilotildees em si mesmas ndash dessas afecccedilotildees a memoacuteria apenas tem noccedilotildees

(notiones)247

e eacute isso que permite reviver as experiecircncias na memoacuteria de uma forma

educativa

Quando o Bispo de Hipona descreve em Confessionum o episoacutedio do roubo das

peras em que se envolveu na sua juventude faacute-lo dirigindo-se directamente a Deus

estabelecendo um contraponto moral ao qual anexa uma evidecircncia de ordem esteacutetica A

admissatildeo do erro de conduta eacute acompanhada pelo reconhecimento da fealdade da alma

que para sua ruiacutena se afasta do suporte divino248

O enlace entre as dimensotildees eacutetica e

esteacutetica concorre para que em determinadas contextos da perspectiva agostiniana o

pecado surja integrado na proacutepria beleza do universo enquanto um todo ndash podendo este

conformar-se-lhe pela expiaccedilatildeo e podendo mesmo ser usado para glorificar Deus249

Ao promover uma presenccedila figurativa da nossa vida em noacutes mesmos a

memoacuteria conforme descrita por Santo Agostinho parece ser a base da nossa identidade

histoacuterica e do processo de consciecircncia ldquoResponder agrave questatildeo laquoergo sumraquo eacute responder agrave

questatildeo da natureza mesma da memoacuteriardquo250

Diz o Bispo de Hipona que eacute ele que se

lembra na mente e pergunta o que de mais proacuteximo haacute de si do que ele mesmo251

A

246

Cf Conf X 14 21

247 Cf Conf X 14 22 Aleacutem dos dados da sensibilidada das phantasiae e das notiones o conteuacutedo

da memoacuteria eacute tambeacutem composto por rationes As rationes dizem respeito agravequilo que foi aprendido

pelo estudo das artes liberais e satildeo coisas em si mesmas ndash natildeo satildeo imagens de coisas ndash pois

constituem-se como nuacutemeros princiacutepios e leis matemaacuteticas natildeo veiculados pelos sentidos

corpoacutereos Cf Conf X 12 19

248 Cf Conf II 4 9 (CCL 27 p 21) laquo[hellip] turpis anima et dissiliens a firmamento tuo in exterminium [hellip]raquo

249 Cf De Trin XI 5 8 onde Santo Agostinho afirma que mesmo nos pecados as almas mostram alguma

semelhanccedila com Deus

250 Maria Manuela Brito Martins ldquoA leitura heideggeriana do Livro X das Confissotildees de Agostinhordquo

Actas do Congresso Internacional As Confissotildees de Santo Agostinho 1600 anos depois Presenccedila e

actualidade Lisboa Universidade Catoacutelica Editora 2001 p 390

251 Cf Conf X 16 25

94

memoacuteria eacute a proacutepria mente252

ainda que seja a mente empenhada numa actividade

particular

A memoacuteria consegue voltar-se para si mesma e consegue mesmo lembrar-se

do esquecimento Assim o esquecimento que no geral consiste na privaccedilatildeo de

memoacuteria tambeacutem pode portanto ser um conteuacutedo da memoacuteria enquanto imagem

Santo Agostinho parece incorrer numa aporia ao considerar que o esquecimento

pode inscrever a sua imagem e ao afirmar tambeacutem que pela sua acccedilatildeo tudo o que

lembramos eacute destruiacutedo253

Diz ainda que natildeo podemos sequer desejar recordar algo

a menos que tenhamos na memoacuteria ainda que parcialmente a imagem daquilo que

queremos recordar254

A vontade de recordar procede das coisas que estatildeo

armazenadas na memoacuteria

Ao reunir e unificar as lembranccedilas a memoacuteria lida com o tempo de um modo

muito particular que natildeo soacute reitera a sua a sua capacidade compreensiva ao niacutevel da

percepccedilatildeo sensiacutevel como se constitui como uma espeacutecie de dispositivo

transcendentalizador O espaccedilo e o tempo ndash que satildeo as marcas da nossa mortalidade e os

alicerces da percepccedilatildeo sensiacutevel ndash vecircem-se como que espiritualizados pela acccedilatildeo da

memoacuteria ela proacutepria duraccedilatildeo255

Ao fazer participar na sua duraccedilatildeo interior as imagens

dos corpos sensiacuteveis a memoacuteria presentifica o tempo que perenemente se escapa no

sensiacutevel exterior e transcende-o256

No tempo fiacutesico o presente eacute inalcanccedilaacutevel pois natildeo

tem qualquer extensatildeo de duraccedilatildeo ou eacute jaacute passado ou ainda eacute futuro (em ambos os

casos natildeo eacute) A memoacuteria pode reter o passado no seu presente interior e pode antecipar o

futuro estabilizando o curso do tempo ao operar a siacutentese dos seus modos e conceder-lhe

existecircncia A memoacuteria permite a elevaccedilatildeo do pensamento ao plano da eternidade

promovendo um presente interno estaacutevel em que na revisatildeo das experiecircncias passadas

se clarifica uma antevisatildeo do futuro ndash a este futuro a alma espera-o e imagina-o ndash daiacute

que o tempo seja distentio animi e que a existecircncia se possa projectar como intentio animi

252

Cf Conf X 14 21

253 Cf Conf X 16 24 -25

254 Cf De Trin XI 7 12

255 Para um estudo mais aprofundado sobre a memoacuteria como duraccedilatildeo cf Moreau laquoMeacutemoire et Dureacuteeraquo in

REAug 3 1955 pp 239-250

256 Aleacutem da memoacuteria tambeacutem a atenccedilatildeo e a expectaccedilatildeo satildeo funccedilotildees psicoloacutegicas convergentes na criaccedilatildeo

do tempo interior

95

Embora natildeo seja possiacutevel encontrar Deus na memoacuteria Ele torna-se ldquouma

imagem alcanccedilaacutevel no trabalho espiritual da memoacuteriardquo257

Deus eacute o eterno hoje258

pelo

que a estabilidade do presente interior propiciada pela memoacuteria na unificaccedilatildeo dos trecircs

modos temporais conta jaacute como uma aproximaccedilatildeo agrave transcendecircncia divina Viver de

acordo com o homem interior implica o conhecimento de si soacute possiacutevel pelo trabalho

da memoacuteria

257

Doucet laquoLrsquoArs Memoriae dans les Confessionsraquo in REAug 33 1987 p 54

258 Cf Conf I 6 10

97

2 O potencial cognoscitivo da experiecircncia esteacutetica

21 Os fundamentos gnosioloacutegicos da atitude esteacutetica

211 ndash O papel da razatildeo na percepccedilatildeo sensiacutevel

Tanto o sentido interior quanto a memoacuteria parecem funcionar como dispositivos

de intermediaccedilatildeo entre a percepccedilatildeo sensiacutevel e o conhecimento racional Eacute curioso

constatar que se por um lado tal papel intermediaacuterio supotildee um hiato entre a

sensibilidade e o conhecimento por outro lado paralelamente denota a necessidade de

elos entre ambos os domiacutenios Natildeo haacute na perspectiva agostiniana uma correspondecircncia

directa entre sensaccedilatildeo e conhecimento (scientia) nem haacute dependecircncia entre

conhecimento e sabedoria (sapientia) poreacutem o conhecimento natildeo deixa de ser uma

visatildeo mediada constituiacuteda a partir das percepccedilotildees sensiacuteveis e a sabedoria natildeo exclui

radicalmente o conhecimento daquilo que eacute contingente

O conhecimento racional das realidades inteligiacuteveis eternas e imutaacuteveis estaacute

intimamente ligado ao conhecimento de si e por conseguinte ao conhecimento de tudo

mais A alma natildeo consegue entrar em si mesma sem levar consigo nesse percurso

interior as suas imagens ndash as imagens das coisas sensiacuteveis259

A necessidade que a alma

tem de se destacar de tudo o que lhe eacute estranho para se conhecer implica precisamente

o reconhecimento daquilo que lhe eacute alheio e natildeo haacute possibilidade de distanciamento

sem antes a alma imergir em tudo o que directa ou indirectamente se encontra com ela

enleado Por outro lado as imagens das coisas sensiacuteveis tecircm algo de espiritual uma vez

que tais imagens satildeo criadas na alma e com a ldquomateacuteriardquo da proacutepria alma a partir dos

259

De Trin X 8 11 (CCL 50 p325) laquo[mens] non valet sine imaginibus eorum esse in semetipsaraquo De

acordo com passagens anteriores do texto a expressatildeo imagines eorum diz respeito agraves imagens das coisas

sensiacuteveis corpoacutereas

98

objectos sensiacuteveis Assim algo da proacutepria alma eacute comunicado agraves imagens que cria para

si dos objectos sensiacuteveis260

Algo da relaccedilatildeo da alma com o sensiacutevel permanece nela e

trata-se de algo necessariamente positivo que contribui para o crescimento da alma

algo que a faraacute merecedora da Cidade Celeste e de algum modo diferente superior agraves

almas dos primeiros habitantes que dele foram expulsos A alma ressurrecta teraacute um

aperfeiccediloamento ao qual natildeo eacute estranha a relaccedilatildeo com o sensiacutevel um aperfeiccediloamento

que a fortaleceu a ponto de natildeo mais experienciar as paixotildees ndash a ponto de natildeo mais cair

na mortalidade como ocorreu com Adatildeo e Eva

O interesse pelas res temporales eacute mais um indiacutecio do caraacutecter inovador da

perspectiva agostiniana face agrave tradiccedilatildeo neoplatoacutenica em que se filia Para o Bispo de

Hipona podemos contar com um conhecimento seguro do mundo exterior o que de

certo modo antecipa a ideia de um mundo fenomeacutenico261

Em Contra Academicos

critica a utilizaccedilatildeo que os Acadeacutemicos fazem da definiccedilatildeo de Zenatildeo262

problematizando

sobretudo a acepccedilatildeo de verdade nela expliacutecita ao demonstrar que uma verdade loacutegica

garante por si soacute o seu caraacutecter verdadeiro ao niacutevel da percepccedilatildeo263

Para demonstrar a

impossibilidade do conhecimento os Acadeacutemicos socorrem-se da definiccedilatildeo de Zenatildeo

segundo a qual soacute eacute possiacutevel conhecer uma verdade quando o princiacutepio que a gera a

260

Cf De Trin X 5 7

261 Uma das razotildees que levou Santo Agostinho a abandonar o maniqueiacutesmo foi precisamente a

incompatibilidade entre as explicaccedilotildees miacuteticas apresentadas por Mani acerca dos fenoacutemenos naturais e as

explicaccedilotildees cientiacuteficas cuja comprovaccedilatildeo factual descredibilizava a perspectiva maniqueia Cf Conf V

3 6 Procurando evitar que o mesmo descreacutedito ocorresse em relaccedilatildeo ao Cristianismo Santo Agostinho

iraacute constatar uma certa autonomia da ciecircncia face agrave religiatildeo ndash pela capacidade que os homens da ciecircncia

mesmo infieacuteis tecircm de aceder a conhecimentos precisos acerca dos fenoacutemenos naturais ndash e defenderaacute que

natildeo haacute qualquer oposiccedilatildeo entre o conhecimento cientiacutefico e a Escritura natildeo devendo esta ser tomada agrave

letra e sim no caraacutecter metafoacuterico e alegoacuterico de muitas das suas passagens Cf De Gen ad litt I 19 38-

40 e De Trin IV 16 21 Feacute e razatildeo satildeo compatiacuteveis para o Bispo de Hipona a quem certamente

repugnariam condenaccedilotildees da Inquisiccedilatildeo como a de Galileu treze seacuteculos mais tarde Na sua carta de

1615 agrave Gratilde-duquesa da Toscacircnia Cristina de Lorena Galileu cita repetidamente Santo Agostinho de

modo a fundamentar a sua defesa ante a incompreensatildeo da Igreja Cf Galileu Galilei Ciecircncia e feacute cartas

de Galileu sobre o acordo do sistema copernicano com a Biacuteblia Carlos Arthur do Nascimento (trad e

ed) 2ordf ed S Paulo UNESP 2009 p 49-102

262 Trata-se de Zenatildeo de Ciacutetio (334-262 a C) e da sua formulaccedilatildeo do criteacuterio de conhecimento

263 A este propoacutesito Gareth B Matthews refere-se agraves impressotildees cataleacutepticas ndash impressotildees garantidas por

si mesmas pela forma como satildeo recebidas e que reflectem com exactidatildeo aquilo a que se referem

enquanto impressotildees ndash ou seja uma impressatildeo de P que garante que o conhecimento eacute tal que

impossibilita ter esse geacutenero de impressatildeo de P sem ser verdade que P Cf Matthews Augustine Oxford

Blackwell 2005 p 17

99

imprimiu de tal modo na mente que nenhuma outra coisa poderia provocar semelhante

impressatildeo ou seja segundo a qual o verdadeiro eacute reconheciacutevel por certas caracteriacutesticas

que o falso natildeo poderia ter264

Para os Acadeacutemicos tal eacute impossiacutevel de encontrar pelo

que soacute podemos contar com impressotildees incertas e enganos dos sentidos Ora Santo

Agostinho pelo princiacutepio da bivalecircncia argumenta que o simples facto de sabermos

que a definiccedilatildeo de Zenatildeo eacute verdadeira ou falsa desde logo prova que dela podemos

saber algo265

Fica portanto refutada a impossibilidade de encontrar algo que preencha

os requisitos da definiccedilatildeo de Zenatildeo e por conseguinte fica refutada a alegaccedilatildeo dos

Acadeacutemicos de que nada podemos conhecer no mundo sensiacutevel Tal via eacute

complementada pelo argumento ad fallor sum266

de acordo com o qual a proacutepria

realidade do pensamento estaacute acima de qualquer duacutediva ou por outras palavras ainda

que pudeacutessemos duvidar de tudo natildeo poderiacuteamos duvidar do pensamento

A verdade natildeo estaacute fora do alcance humano e eacute absurdo considerar que as

percepccedilotildees sensiacuteveis nos reportam coisas falsas ou enganadoras dada a sua semelhanccedila

com aquilo que para os Acadeacutemicos natildeo conhecemos ndash a verdade O cepticismo eacute

absurdo mesmo admitindo que frequentemente nos enganamos em relaccedilatildeo agraves

percepccedilotildees sensiacuteveis Para Santo Agostinho os sentidos natildeo satildeo enganadores

aproximando-se assim da perspectiva epicurista267

A defesa das percepccedilotildees sensiacuteveis assenta no pressuposto da consciecircncia de que

elas nos reportam apenas aparecircncias ou semelhanccedilas natildeo podendo ser consideradas

deceptivas uma vez que cumprem o que lhes compete268

O erro estaacute em assumir que

essas aparecircncias verdadeiras apenas enquanto tal satildeo verdadeiras em si ou seja o erro

estaacute em natildeo tomar os dados da sensibilidade no seu caraacutecter aparente pois se o mundo

sensiacutevel eacute verissimilis do mesmo modo em que aparenta a verdade tambeacutem apresenta o

risco de a tomarmos pela proacutepria verdade269

mas as consequecircncias deste risco natildeo

deveratildeo imputar-se nem aos sentidos nem ao mundo sensiacutevel

264

Cf Contra Acad II 5 11

265 Cf Contra Acad III 9 21

266 Cf De civ Dei XI 26

267 Cf Contra Acad III 11 26

268 Cf Contra Acad III 9 26

269 Cf Contra Acad I 4 11

100

Como as ilusotildees oacutepticas bem ilustram as sensaccedilotildees satildeo verdadeiras de um

modo muito relativo270

por si soacute as sensaccedilotildees natildeo tecircm qualquer caraacutecter apofacircntico

natildeo permitem a distinccedilatildeo entre falso e verdadeiro a realidade que reportam eacute

necessariamente verdadeira (caso contraacuterio nem sequer existiria) mas o

reconhecimento que dela fazemos nunca eacute directo ndash conforme explicitaacutemos no capiacutetulo

anterior ao analisarmos o desdobramento de formas na siacutentese que vai da sensaccedilatildeo ao

pensamento ndash daiacute que seja comum fazermos juiacutezos errados acerca de conteuacutedos

sensiacuteveis O juiacutezo compete agrave mente e embora no que toca agrave sua formulaccedilatildeo relativa agraves

coisas do universo sensiacutevel seja mais adequado falar em opiniatildeo (opinio) do que em

conhecimento (scientia)271

esse conhecimento eacute possiacutevel e efectivo uma vez que estaacute

sempre pressuposto o criteacuterio de verdade

Soacute podemos formular juiacutezos acerca das realidades sensiacuteveis porque possuiacutemos

uma espeacutecie de padratildeo comparativo que nos sugere se algo eacute falso ou verdadeiro Esse

padratildeo (regula) eacute constituiacutedo pelo acesso da mente agraves ideias e eacute o que nos diferencia dos

restantes animais272

Como anteriormente referimos o Bispo de Hipona natildeo eacute claro porque natildeo

apresenta uma concepccedilatildeo estaacutevel no que respeita aos conceitos de mens e de ratio

chegando por vezes a utilizaacute-los intermutavelmente Seguindo a diferenciaccedilatildeo proposta

por Gilson Santo Agostinho designa ldquoalmardquo (anima animus) o princiacutepio vital que

anima o corpo dos homens e dos restantes animais e que eacute simultaneamente uma

substacircncia racional assumindo em determinados trechos da obra agostiniana o caraacutecter

de ldquosummus gradus animaerdquo273

e neste caso aplicando-se exclusivamente aos seres

humanos Esta uacuteltima acepccedilatildeo corresponde tambeacutem agrave de spiritus na linguagem biacuteblica

270

As sensaccedilotildees satildeo verdadeiras no sentido em que reportam correctamente o que se passa nos sentidos

cai-se facilmente no erro de julgar que aquilo que se passa nos sentidos equivale directamente ao que

ocorre na realidade ndash e tal eacute uma fraqueza do espiacuterito Cf De Gen ad litt XII 25 52

271 Cf Contra Acad III 17 37

272 De Trin XIV 15 21 laquoQuibus ea tandem regulis iudicant nisi in quibus vident quemadmodum

quisque vivere debeat etiamsi nec ipsi eodem modo vivant Ubi eas vident Neque enim in sua natura

cum procul dubio mente ista videantur eorumque mentes constet esse mutabiles has vero regulas

immutabiles videat quisquis in eis et hoc videre potuerit nec in habitu suae mentis cum illae regulae sint

iustitiae mentes vero eorum constet esse iniustas Ubinam sunt istae regulae scriptae ubi quid sit iustum

et iniustus agnoscit ubi cernit habendum esse quod ipse non habet Ubi ergo scriptae sunt nisi in libro

lucis illius quae veritas diciturraquo

273 Civ Dei VII 23 1

101

tal como eacute utilizada pelo Bispo de Hipona em De fide et symbolo X 23 Mas Gilson

constata tambeacutem que o conceito spiritus de acordo com a linhagem porfiriana pode ser

encontrado na obra de Santo Agostinho com a acepccedilatildeo de imaginaccedilatildeo reprodutiva ou

memoacuteria sensiacutevel hierarquizando-se assim de modo crescente entre a vida (anima) e a

mente (mens) tal como surge em De Gen ad litt XII 24 5 A mente (mens) constitui-se

privilegiadamente como parte superior da alma razoaacutevel (animus) comunicando com os

inteligiacuteveis e com Deus274

Em De civ Dei XI 2 o Bispo de Hipona afirma que a mente

(mens) abarca a razatildeo (ratio) e a inteligecircncia (intellegentia) sendo a razatildeo o movimento

pelo qual o pensamento ldquopassa de um dos seus conhecimentos a outro para os associar

ou dissociarrdquo275

Num outro ensaio Gilson associa a mens ao homem interior276

A

inteligecircncia (intellegentia) e o intelecto (intellectus) concernem a uma faculdade

superior agrave razatildeo (ratio) e confundem-se entre si277

A inteligecircncia eacute o que haacute de mais

eminente no homem278

O intellectus pertence agrave mens sendo uma faculdade da alma

proacutepria do homem uma vez que eacute directamente iluminado pela luz divina279

Pode ter-se razatildeo sem se ter inteligecircncia mas natildeo se pode ter inteligecircncia sem se

ter razatildeo o que dita a superioridade do intellectus sobre a ratio mas tambeacutem permite

constatar que eacute por possuir razatildeo que se procura alcanccedilar a inteligecircncia que natildeo eacute mais

do que uma visatildeo interior atraveacutes da qual a mens percebe a verdade que a luz divina lhe

mostra280

Esta luz divina incorpoacuterea que irradia na parte mais excelsa da mente

permite-lhe ver as ideias281

Eacute nesta senda que o Bispo de Hipona contrapotildee a sua teoria

da iluminaccedilatildeo agrave teoria platoacutenica da reminiscecircncia defendendo que a natureza da alma

inteligente eacute tal que de acordo com os desiacutegnios do Criador descobre tudo o que

naturalmente se liga agraves coisas intelectuais por meio de tal luz imaterial e espiritual ndash nas

274

Cf En PsaIII 3 De div quaest 83 7

275 Gilson Introduction agrave lrsquoeacutetude de saint Augustin p 56

276 Idem The Christian Philosophy of Saint Augustine New York Random House 1960 p 117

277 Cf En PsaXXXI 9

278 Cf De lib arb I 1 13

279 Cf In Iohan Evan tract XV 4 19

280 Cf Gilson Introduction agrave lrsquoeacutetude de saint Augustin p 57

281 Cf De Trin XII 15 24

102

palavras do proacuteprio Santo Agostinho sui generis282

ndash da mesma forma que o olho da

carne vecirc o que o rodeia atraveacutes da luz material que percebe e para a qual foi preparado

Na verdade haacute nas obras agostinianas a distinccedilatildeo entre a luz fiacutesica vista pelos

olhos e que eacute ela proacutepria condiccedilatildeo da visatildeo corpoacuterea a luz natildeo corporal que estaacute na

alma e que eacute uma luz viva sempre presente e que permite discernir de modo senciente o

que eacute referido atraveacutes do corpo ao juiacutezo da alma283

e ainda a luz da inteligecircncia que daacute

a ver as ideias Soacute esta uacuteltima eacute exclusiva dos seres humanos A luz que permite a

senciecircncia eacute ainda comum aos animais e corresponde agrave faculdade perceptiva pelo

que como nota o proacuteprio Bispo de Hipona ela emprega meios corpoacutereos para

discernir ndash acccedilatildeo que pode ser afectada pelos defeitos ou maleitas dos sentidos

corpoacutereos embora em momento algum eles possam pocircr em causa a existecircncia desta

luz284

Eacute graccedilas a esta luz na alma que qualquer ser vivo sabe o que deve evitar ou o que

lhe conveacutem Eacute tambeacutem ela que permite discernir (discernere) aquilo que os oacutergatildeos do

corpo apresentam agrave apreciaccedilatildeo da alma ldquo[hellip] como o branco e o negro a melodia e o

ruiacutedo o oloroso e o fedorento o doce e o amargo o quente e o frio e coisas afinsrdquo285

Sem tal luz seriacuteamos forccedilados a ter uma vida vegetativa pois a alma natildeo poderia

relacionar-se com o exterior A ldquoluz da almardquo poderaacute ser entendida como uma outra

formulaccedilatildeo para o sentido interior

Apesar de Santo Agostinho indiciar o paralelo entre as trecircs luzes e os trecircs tipos

de visatildeo em De Genesi ad litteram a verdade eacute que tal equivalecircncia apresenta algumas

incongruecircncias ao niacutevel do par luz senciente286

visatildeo espiritual As duas primeiras luzes

satildeo criadas por Deus sendo portanto mutaacuteveis ao passo que a uacuteltima nasce de Deus

(non creata est sed nata) e eacute a sua proacutepria Sabedoria (ipsa Dei Sapientia)287

Os

primeiros dois tipos de visatildeo ndash a visatildeo corporal e a visatildeo espiritual estatildeo de tal modo

282

Cf Ibid

283 Cf De Gen ad litt imp V 20-24

284 Cf De Gen ad litt imp V 24

285 Ibid laquo[hellip] id est alba et nigra canora et rauca suaveolentia et graveolentia dulcia et amara calida et

frigida et caetera huiusmodiraquo

286 Na verdade o Bispo de Hipona jamais se refere a esta luz como ldquoluz sencienterdquo (lux sentienti)

cataloga-a sim de ldquoluz da vida sensitivardquo (lux vita sentiens) em De Gen ad litt imp V 24 ou ldquoluz

sensualrdquo (lucem sensualem ndash lux sensualis) em De Gen ad litt imp V 25

287 Cf De Gen ad litt imp V 20

103

interligadas que a primeira natildeo poderia ocorrer sem a segunda A visatildeo corporal

baseia-se na relaccedilatildeo entre a percepccedilatildeo sensiacutevel e o primeiro niacutevel de memoacuteria que a

possibilita Desde logo este primeiro niacutevel de visatildeo implica quer a luz solar quer a luz

incorpoacuterea criada que estaacute na alma Esta visatildeo permite a senciecircncia ndash o conhecimento

resultante dos dados da sensibilidade e que natildeo implicando auto-consciecircncia permite

no entanto constatar o estado corpoacutereo face agraves impressotildees288

A visatildeo corpoacuterea natildeo eacute

mais do que a capacidade de sentir ora como na perspectiva agostiniana a sensaccedilatildeo

pressupotildee a actividade da alma natildeo haacute qualquer descontinuidade entre a visatildeo corporal

e a visatildeo espiritual no ser humano Mas esta segunda visatildeo eacute jaacute uma capacidade que natildeo

compartilhamos inteiramente com os restantes animais pois abarca faculdades racionais

que pertencem exclusivamente agrave alma humana ndash desde logo ficando comprometida uma

correspondecircncia total com a segunda luz referida por Santo Agostinho289

A visatildeo

espiritual eacute uma visatildeo mental em relaccedilatildeo directa com a percepccedilatildeo sensiacutevel mas envolve

a actividade da vontade implica um consentimento distinto da reacccedilatildeo instantacircnea e

impulsiva dos outros animais Graccedilas a esta visatildeo o homem pode reagir agrave sensaccedilatildeo de

modo natildeo instintivo290

O homem pode independentemente da visatildeo corporal produzir as suas proacuteprias

visotildees pelo que apesar da visatildeo corporal depender da visatildeo espiritual esta natildeo depende

da primeira291

Tal constataccedilatildeo do filoacutesofo africano levanta alguns problemas

nomeadamente ao pressupor de modo ambivalente que os animais precisam da visatildeo

espiritual para que possam usufruir da visatildeo corporal292

parecendo logo de seguida

negar-lhes tal capacidade espiritual afirmando que ela se refere por exemplo agrave

288

Permite constatar as sensaccedilotildees de prazer por exemplo ou simplesmente constatar que eacute preciso

redireccionar o olhar para ver melhor um objecto perifeacuterico no nosso campo de visatildeo

289 O proacuteprio Santo Agostinho parece admitir as suas limitaccedilotildees quanto agrave perspectivaccedilatildeo das diferentes

visotildees ao prever a possibilidade de existirem vaacuterios patamares nas visotildees espirituais e racionais e ao

justificar a sua incapacidade para explicar mais do que as trecircs ordens de visatildeo referidas Diz reconhecer a

proacutepria ignoracircncia em saber se haveria de definir diferentes espeacutecies de visotildees dentro de cada um dos trecircs

geacuteneros e em definir diversos graus para cada uma das suas espeacutecies Cf De Gen ad litt XII 29 27

290 Cf De Gen ad litt IX 14 25

291 Cf De Gen ad litt XII 24 51

292 Natildeo apenas o pressupotildee como afirma que a visatildeo sensiacutevel e a visatildeo espiritual satildeo simultacircneas (simul)

Cf De Gen ad litt XII 24 51

104

recordaccedilatildeo intencional de algo que estaacute ausente e agrave actividade imaginativa293

Ora em

De Trinitate ao estabelecer as capacidades que na alma satildeo exclusivas do homem e as

que satildeo tambeacutem comuns aos animais o Bispo de Hipona refere precisamente que as

almas dos animais carecendo de determinadas apetecircncias racionais natildeo estatildeo

capacitadas para concentrar a sua atenccedilatildeo intencionalmente numa dada imagem da sua

mente assumindo-a enquanto tal nem satildeo capazes de confiar determinadas imagens agrave

memoacuteria de forma premeditada (de industria commendata) nem de reiterar pelo

pensamento os conteuacutedos da memoacuteria e nem de compor ficccedilotildees imaginaacuterias

reconfigurando partes de lembranccedilas Soacute o homem consegue lidar de tal modo com a

memoacuteria e com a imaginaccedilatildeo tal como soacute o homem tem capacidade para ver como

nesta ordem de coisas o semelhante se distingue do verdadeiro294

Ainda em De

Trinitate Santo Agostinho afirma que tudo o que na nossa alma eacute comum agrave dos animais

eacute atribuiacutevel ao homem exterior que natildeo consiste apenas no corpo mas tambeacutem no

princiacutepio vital que anima o seu organismo e os sentidos As proacuteprias imagens dos

objectos sensiacuteveis gravadas na memoacuteria e reproduzidas pela recordaccedilatildeo (cum

recordando revisuntur) pertencem ainda ao homem exterior e portanto satildeo valecircncias

que tambeacutem comungamos com os animais295

Em De Genesis ad litteram o Bispo de Hipona explica que tal como a visatildeo

corporal depende da visatildeo espiritual tambeacutem a visatildeo espiritual precisa do concurso da

visatildeo intelectual sendo esta a subordinante das duas primeiras296

Soacute a visatildeo intelectual

natildeo estaacute sujeita ao erro pois ela mesma eacute da ordem da verdade Sempre que fazemos

uso desta modalidade superior de visatildeo estamos no acircmbito da verdade297

caso

contraacuterio sequer tal visatildeo eacute activada Sem qualquer problema esta visatildeo corresponde agrave

luz da inteligecircncia que daacute a ver as ideias e que nos permite distinguir o que eacute certo e o

que eacute errado298

As visotildees intelectuais satildeo as que nos apresentam conteuacutedos da proacutepria

293

Cf De Gen ad litt XII 24 51

294 Cf De Trin XII 2 2

295 Cf De Trin XII 1 1

296 Cf De Gen ad litt XII 24 51

297 Cf De Gen ad litt XII 25 52

298 Cf De civ Dei XII 3 (CCL 48 p 358) laquoDe vitiis quippe nunc loquimur eius naturae cui mens inest

capax intellegibilis lucis qua discern justum ab injustoraquo

105

alma como as virtudes de uso eterno (como a piedade) ou de uso meramente temporal

(como a feacute a esperanccedila e a paciecircncia) virtudes estas que satildeo distintas da proacutepria luz

que ilumina a alma e que lhe revela aquilo que em si mesma ela concebe graccedilas a esta

luz ndash uma luz simultaneamente criadora e possibilitadora de visatildeo Diz o Bispo de

Hipona que esta luz eacute o proacuteprio Deus299

Ainda que a alma soacute consiga suportar na sua

vida terrena meros vislumbres de tal luz eacute a ela que deve a compreensatildeo verdadeira das

coisas que estatildeo ao seu alcance Natildeo eacute possiacutevel que na sua existecircncia temporal a alma

veja face a face tal esplendor300

O julgamento das percepccedilotildees sensiacuteveis e das imagens que delas guardamos na

memoacuteria soacute pode ser da alccedilada da visatildeo espiritual pois eacute um juiacutezo ainda sujeito ao erro

poreacutem Santo Agostinho diz que se tal juiacutezo eacute justo ele eacute-o em virtude de regras

imutaacuteveis e superiores agrave nossa alma racional (regulis supra mentem nostram

incommutabiliter manentibus)301

pelo que o juiacutezo das percepccedilotildees sensiacuteveis e das suas

imagens na memoacuteria deve ser reportado agrave visatildeo intelectual A actividade judicativa

deveria ultrapassar a visatildeo corpoacuterea e a visatildeo espiritual norteando-se pelas regras da

verdade eterna soacute assim poderia existir uma correspondecircncia directa entre percepccedilatildeo

sensiacutevel e conhecimento

Conhecer algo em si mesmo eacute conhecer de acordo com a verdade eterna por

conseguinte qualquer juiacutezo sobre as coisas sensiacuteveis deveria exercer-se tambeacutem em

funccedilatildeo das regras da verdade eterna O juiacutezo esteacutetico natildeo escapa a esta loacutegica e natildeo eacute

por acaso que Santo Agostinho associa o reconhecimento da beleza agraves percepccedilotildees dos

nuacutemeros inteligiacuteveis (numeri) que presidem a todas as coisas criadas por Deus302

299

Cf De Gen ad litt XII 31 59 Sol I 1 3 (CSEL 89 p 5) laquoDeus intellegibilis lux in quo et a quo et

per quem intellegibiliter lucent quae intellegibiliter lucent omniaraquo

300 Na beatitude manter-se-atildeo as trecircs visotildees mas com um caraacutecter muito mais unitaacuterio ndash seraacute uma tripla

visatildeo em nenhuma das suas valecircncias sujeita ao erro ou agrave ilusatildeo uma vez que a visatildeo intelectual seraacute

muito mais viacutevida e evidente do que alguma vez a visatildeo sensiacutevel o foi na Terra Continuaraacute a haver

imagens e siacutembolos mas a imaginaccedilatildeo humana ajudada pelos anjos assumi-las-aacute como revelaccedilotildees Soacute a

evidecircncia reinaraacute com uma ordem luminosa sobre as visotildees sensiacuteveis espirituais e intelectuais Cf De

Gen ad litt XII 36 69

301 De Trin IX 6 10

302 Esta questatildeo seraacute desenvolvida ao longo do proacuteximo subcapiacutetulo

106

Muitas vezes o homem eacute demasiado fraco para ver as leis ou regras da

verdade303

Como primeiro patamar dos trecircs niacuteveis de visatildeo a percepccedilatildeo sensiacutevel eacute

ainda algo apartada do conhecimento e pouco contribui para o fortalecimento

ontoloacutegico daiacute que o homem tenha dificuldade em guindar-se dos seus meandros para

ascender ateacute agrave visatildeo intelectual iluminada pela luz da verdade As imagens corpoacutereas

apresentam-se como uma trama confusa (quasi quodam nubilo subtexitur)304

mas que

por si soacute natildeo obstaculiza a visatildeo espiritual ou a visatildeo intelectual Esta uacuteltima eacute

totalmente distinta da visatildeo corpoacuterea e de modo algum se confunde com ela (non

tamen involvitur atque confunditur)305

O ser humano ao contraacuterio dos restantes

animais natildeo eacute refeacutem de tal trama confusa assim o parece explicar o Bispo de

Hipona ao equacionar que tal como no cume de uma montanha podemos ver abaixo

de noacutes nuvens tenebrosas e acima de noacutes a luz sem nuvens tambeacutem na nossa relaccedilatildeo

com as coisas sensiacuteveis ndash quer seja pelo acto perceptivo quer seja pela memoacuteria ou

pela imaginaccedilatildeo ndash podemos por um lado figurar na nossa alma imagens corpoacutereas

ou limitarmo-nos agrave visatildeo corpoacuterea e podemos por outro lado captar (capiens) pela

inteligecircncia (intellegentia) as razotildees e o tipo inefavelmente belo de tais figuras que

estatildeo acima do olhar da mente (super aciem mentis)306

Os trecircs tipos de visatildeo estatildeo longe de ser modalidades perceptivas estanques entre

si e isto tanto vale para o facto da visatildeo intelectual poder ser exercida sobre os objectos

da visatildeo corporal como para o facto de a visatildeo corpoacuterea ser em termos relativos

importante para a visatildeo intelectual A este propoacutesito Carol Harrison afirma que ldquoeacute pelas

percepccedilotildees sensiacuteveis corpoacutereas mediadas pelas imagens espirituais ou recordadas que

o intelecto ou razatildeo tendo caiacutedo da sua contemplaccedilatildeo intuitiva iluminada consegue

ultrapassar a visatildeordquo307

e cita uma passagem onde Santo Agostinho em De Trinitate XI 1 1

refere que devemos tomar como exemplos de semelhanccedila (similitudinem documenta) as

303

Cf Sol I 13 23 e I 6 12

304 De Trin IX 6 10

305 Ibid

306 De Trin IX 6 11

307 Carol Harrison Beauty and Revelation in the Thought of Saint Augustine p 64-65 laquo[hellip] by corporeal

sensible perceptions mediated by spiritual or remembered images the intellect or reason which has

fallen from its illuminated intuitive contemplation is able to move towards visionraquo

107

coisas exteriores e materiais de modo a tentarmos distinguir mais precisamente e

destacar melhor as coisas interiores e espirituais308

Embora a afirmaccedilatildeo de Harrison

ilustre perfeitamente a nossa linha argumentativa natildeo eacute possiacutevel referi-la sem notar a

aparente incongruecircncia entre a expressatildeo ldquointelecto caiacutedo da sua contemplaccedilatildeo

intuitivardquo e aquilo que a autora subscreve criticando as conclusotildees de OrsquoConnell sobre a

presenccedila da teoria da preexistecircncia da alma na perspectiva agostiniana e sobre a ecircnfase

na teoria da ldquoalma caiacutedardquo309

Com efeito tal celeuma remete-nos para a teoria agostiniana da iluminaccedilatildeo e

mais concretamente para a questatildeo da rejeiccedilatildeo da teoria platoacutenica da reminiscecircncia por

parte do Bispo de Hipona Natildeo haacute qualquer duacutevida quanto agrave extraordinaacuteria importacircncia

do dualismo mundo inteligiacutevel mundo sensiacutevel que o platonismo lega ao filoacutesofo

africano As formas platoacutenicas ou ideias enquanto realidades eternas e imutaacuteveis

constituem-se como os objectos do verdadeiro conhecimento a que Santo Agostinho se

refere como rationes aeternae A perspectivaccedilatildeo do modo como acedemos a tais razotildees

eternas estabelece a grande diferenccedila entre a gnosiologia platoacutenica e a gnosiologia

agostiniana ainda que esta uacuteltima natildeo deixe de estar inscrita na matriz neoplatoacutenica

Para Santo Agostinho as ideias ndash ou razotildees310

ndash estatildeo contidas na inteligecircncia divina

(divina intellegentia continentur) Natildeo tendo sido formadas eacute de acordo com elas que

tudo aquilo que nasce e morre foi formado ou seja tudo o que existe qualquer que seja

a sua forma de existecircncia deve-a agrave participaccedilatildeo nas razotildees eternas imutaacuteveis e

verdadeiras A contemplaccedilatildeo de tais razotildees eacute um privileacutegio exclusivo da alma racional

308

A citaccedilatildeo exacta e completa eacute a seguinte laquo[hellip] tamen ut dixi tanta facta est in corporibus consuetudo

et ita in haec miro modo relabens foras se nostra proicit intentio ut cum ab incerto corporum ablata fuerit

ut in spiritu multo certiore ac stabiliore cognitione figatur refugiat ad ista et ibi appetat requiem unde

traxit infirmitatem Cuius aegritudini congruendum est ut si quando interiora spiritualia accommodatius

distinguere atque facilius insinuare conamur de corporalibus exterioribus similitudinum documenta

capiamusraquo laquo[hellip] como o disse estabelecemos uma tal familiaridade com os corpos que a nossa atenccedilatildeo

se projecta para fora de si em direcccedilatildeo a eles de modo tatildeo extraordinaacuterio e que tendo ela sido afastada da

incerteza das coisas corpoacutereas para encontrar no espiacuterito noccedilotildees mais exactas e firmes ela lanccedila-se

novamente em direcccedilatildeo aos objectos sensiacuteveis e aiacute mesmo de onde tirou a sua fraqueza procura refuacutegio

Eacute suposto ser congruente em relaccedilatildeo a este mal de modo que se quisermos discernir mais precisamente e

destacar melhor as coisas interiores e espirituais tomemos exemplos de semelhanccedila a partir das coisas

exteriores e corporaisraquo De Trin XI 1 1

309 Carol Harrison Beauty and revelation in the thought of Saint Augustine p 35

310 Em De div quaest 83 46 2 Santo Agostinho refere que eacute indiferente a nomenclatura ideias formas

espeacutecies ou razotildees A expressatildeo razotildees eternas eacute no entanto bastante mais agostiniana do que qualquer

um dos outros termos

108

pela parte mais excelsa do seu ser Poreacutem nem todas as almas racionais conseguem

aceder a tal contemplaccedilatildeo soacute uma alma santa e pura possui um olho interior ldquosatildeo

sincero sereno e semelhante agraves proacuteprias coisas deseja verrdquo311

estando habilitada para

aceder agraves razotildees

Cada criatura tem de acordo com a sua espeacutecie312

uma razatildeo divina proacutepria que

existe na mente do Criador (in ipsa mente Creatoris) e segundo a qual (secundum id) ele

a constituiu As razotildees podem portanto considerar-se causas exemplares de tudo o que

existe Tal como Platatildeo tambeacutem Santo Agostinho considera que a percepccedilatildeo sensiacutevel

natildeo eacute suficiente para o conhecimento dos universais Platatildeo defendia que a nossa

relaccedilatildeo sensiacutevel com as coisas materiais proporcionaria o reconhecimento a partir da

recordaccedilatildeo das ideias sobrejacentes a tais objectos corpoacutereos Tal reminiscecircncia seria

possiacutevel em virtude de a alma ter preexistido numa regiatildeo divina e aiacute ter contemplado as

ideias mantendo vestiacutegios de tal contacto mesmo apoacutes a sua uniatildeo ao corpo terreno

Gilson afirma que numa fase inicial o filoacutesofo africano teria aceitado a teoria da

preexistecircncia da alma juntamente com o seu ldquocomplemento natural a doutrina da

reminiscecircncia platoacutenicardquo313

Orsquo Connell argumenta que tal aceitaccedilatildeo se manteacutem mesmo

apoacutes o baptismo de Santo Agostinho Segundo este investigador o filoacutesofo africano

segue a via do neoplatonismo ora para Plotino natildeo haveria qualquer oposiccedilatildeo entre a

reminiscecircncia da visatildeo fruiacuteda na preexistecircncia e a iluminaccedilatildeo gozada pela alma na sua

vida terrena Apesar de caiacuteda a alma recorda-se do mundo inteligiacutevel onde habitou

antes da queda natildeo significando tal queda um corte radical com a realidade inteligiacutevel

como se a alma natildeo fosse afinal totalmente caiacuteda314

Assim OrsquoConnell defende a

presenccedila da doutrina da iluminaccedilatildeo em Soliloquiorum e argumenta a favor da

possibilidade de que as teorias da reminiscecircncia e da preexistecircncia da alma se possam

manter de modo natildeo contraditoacuterio no pensamento agostiniano a par da teoria da

iluminaccedilatildeo divina Haacute no entanto que considerar certos trechos em que Santo Agostinho

311

Ibid (CCL 44A p 72) laquo[hellip] sanum et sincerum et serenum et similem his rebus quas videre intendit [hellip]raquo

312 Por exemplo Santo Agostinho diz que a razatildeo de ser de um cavalo natildeo eacute a mesma que a de um

homem Cf Ibid

313 Cf Gilson Introduction agrave leacutetude de saint Augustin p 95

314 Robert J OrsquoConnell ldquoPre-existence in Augustine Seventh Letterrdquo in REAug 15 1-2 1996 p 69

109

parece evidenciar a recusa da teoria da reminiscecircncia315

Em Retractationum natildeo soacute

estaacute manifesto um claro arrependimento pelas consideraccedilotildees elogiosas feitas a Platatildeo e

aos platoacutenicos316

como haacute a condenaccedilatildeo de uma frase presente em Soliloquiorum que

poderia remeter para a possibilidade do acesso ao conhecimento atraveacutes da anamnese317

laquoTais satildeo os espiacuteritos bem formados nos conhecimentos liberais

retiram-nos certamente de si mesmos pelo estudo como se estivessem

enterrados no esquecimento e daiacute de algum modo os desenterram [hellip]raquo

Santo Agostinho afirma ser mais criacutevel que o facto de as mentes quando bem

interrogadas poderem proferir respostas verdadeiras sobre certas mateacuterias que natildeo

estudaram se deva agrave presenccedila da luz da razatildeo eterna em si pela qual vecircem tais verdades

imutaacuteveis e natildeo a um conhecimento preacutevio que tivessem obliterado agrave semelhanccedila do

que Platatildeo e ldquoalguns outrosrdquo pensavam Acrescenta que se insurgiu contra tal opiniatildeo

platoacutenica jaacute no livro deacutecimo segundo de De Trinitate318

Com efeito nesse livro319

Santo Agostinho refere por alto o famoso episoacutedio reportado por Platatildeo no Meacutenon em

que Soacutecrates interroga o escravo conduzindo-o a uma demonstraccedilatildeo geomeacutetrica do

teorema de Pitaacutegoras com o fito de ilustrar a possibilidade de se alcanccedilar um

conhecimento absoluto e irrefutaacutevel atraveacutes de um meacutetodo capaz de reavivar a

bagagem com que a alma viria jaacute munida para esta vida concluindo que aprender eacute

mais recordar conhecimentos passados do que adquirir conhecimentos novos

Santo Agostinho ironiza com tal conclusatildeo platoacutenica dizendo que nem todos

fomos geoacutemetras na vida anterior pelo que ao inveacutes de considerar a extraordinaacuteria

coincidecircncia de Soacutecrates se ter deparado com um mais sensato seraacute considerar que a

315

Como vimos no capiacutetulo 12 do presente ensaio Santo Agostinho nunca chega a admitir nem a negar

a preexistecircncia da alma equacionando-a sempre em termos meramente hipoteacuteticos e frisando a sua

incapacidade para solucionar tal questatildeo

316 Cf Retr I 1 4 Aleacutem de referir tal arrependimento o Bispo de Hipona alerta ainda para a necessidade

de defender a doutrina cristatilde contra os erros destes filoacutesofos

317 Cf Retr I 4 4 A frase em questatildeo pertence a Sol II 20 35 (CSEL 89 p 95) laquoTales sunt qui bene

disciplinis liberalibus eruditi siquidem illas sine dubio in se oblivione obrutas eruunt discendo et

quodammodo refodiunt [hellip]raquo

318 Cf Retr I 4 4

319 Mais concretamente em De Trin XII 15 24-25

110

natureza da alma inteligente eacute tal que de acordo com os desiacutegnios do Criador ela

descobre tudo o que naturalmente estaacute ligado agraves coisas intelectuais atraveacutes de uma

certa luz imaterial do mesmo modo que o olho da carne vecirc o que o cerca com a

ajuda da luz material que eacute apto a receber e para a qual foi concebido Santo

Agostinho refere-se ainda agraves sensaccedilotildees de deacutejagrave vu condenando quem considere que

satildeo reminiscecircncias de situaccedilotildees experienciadas pela alma numa vida anterior num

outro corpo Explica que se trata de falsas memorias semelhantes agraves que se

experienciam durante os sonhos quando nos parece que recordamos coisas que

jamais fizemos ou vimos e aventa ainda a possibilidade de se deverem agrave influecircncia

de espiacuteritos maus e enganadores (instintctu spirituum malignorum atque fallacium)

dedicados a lograr os homens criando ideias falsas acerca de regressos das almas320

Muito antes de ter escrito as suas retractaccedilotildees e um pouco antes de De

Trinitate jaacute na carta de 415 a Jeroacutenimo eacute possiacutevel reconhecer a relutacircncia

agostiniana em relaccedilatildeo agrave preexistecircncia da alma quando aponta a incongruecircncia

daqueles que postulam que a alma jaacute teria existido algures sem pecado tendo sido

enviada por Deus para o corpo terreno e o facto de as almas sem pecado

obedecerem descendo aos corpos ficando algumas sujeitas ao castigo divino em

virtude dos seus corpos falecerem ainda na primeira infacircncia sem baptismo Santo

Agostinho vecirc na preexistecircncia da alma uma incompatibilidade com a maacutecula do

pecado adamita eacute heresia considerar que Deus castiga almas sem maacutecula pelo

pecado de Adatildeo321

Sem que a teoria da preexistecircncia da alma pudesse servir ao Bispo de Hipona

como fundamento para a aquisiccedilatildeo do conhecimento sobre as ideias a teoria da

reminiscecircncia platoacutenica perde pertinecircncia pelo que Santo Agostinho lhe contrapotildee a

sua teoria da iluminaccedilatildeo divina muito mais de acordo com os conteuacutedos

veterotestamentaacuterios A gnosiologia agostiniana passa pela consideraccedilatildeo de que em

virtude de ter sido criada agrave imagem de Deus a alma humana pode granjear

inatamente o acesso agraves ideias Natildeo eacute pela reminiscecircncia nem pela experiecircncia e

nem mesmo pela aprendizagem que acedemos agraves realidades inteligiacuteveis

320

Cf De Trin XII 15 24

321 Cf Ep 166 9 27

111

O papel da memoacuteria manteacutem-se como um elo relativamente ao processo de

conhecimento professado pelo platonismo mas agora como possibilitadora da

lembranccedila com base na presenccedila da luz divina em noacutes a activaccedilatildeo dos conhecimentos

latentes eacute em uacuteltima instacircncia devida ao Mestre interior Cristo O Verbo divino estaacute na

origem do fiat lux ndash criaccedilatildeo e iluminaccedilatildeo convergem e repercutem-se na incarnaccedilatildeo do

proacuteprio Deus que vem agrave Terra para o apelo caridoso ao reconhecimento da via interior

que a Si conduz

A iluminaccedilatildeo divina natildeo deveraacute considerar-se como uma impressatildeo das formas

inteligiacuteveis na mente humana pois isso faria de noacutes receptores passivos da actividade

intelectual divina Quer para Gilson quer para Copleston a iluminaccedilatildeo divina natildeo dota

propriamente a mente humana com conteuacutedos mas com estruturas puramente formais

de modo a que em cada acto judicativo a mente entra em contacto com algo imutaacutevel e

eterno322

A existecircncia de verdades eternas e imutaacuteveis na mente humana eacute por si uma

prova da existecircncia de Deus323

A preocupaccedilatildeo do Bispo de Hipona relativamente agrave iluminaccedilatildeo divina natildeo

contempla meramente a questatildeo da origem do conhecimento das formas mas tambeacutem a

questatildeo da necessidade de certezas e da validade dos nossos juiacutezos e conhecimentos

Certas ideias satildeo necessaacuterias e imutaacuteveis e em relaccedilatildeo a elas o nosso intelecto eacute

simultaneamente passivo e activo passivo no sentido em que o nosso conhecimento de

tais formas ideias eacute-nos doado pela graccedila divina e activo porque essa daacutediva se

manteacutem latente em noacutes e soacute eacute activada se intencionalmente nos prepararmos para a

utilizar subordinando as nossas experiecircncias a uma espeacutecie de autoridade reguladora

que tais formas podem exercer enquanto regra (regula) A actividade da mente a este

niacutevel da aplicaccedilatildeo normativa das formas deve prolongar-se no campo da percepccedilatildeo

sensiacutevel pois todos os objectos que percepcionamos devem ser ajuizados de acordo

com tais formas324

Natildeo eacute por acaso que em De musica quando Santo Agostinho

322

Note-se por exemplo em De libero arbitrio III V 13 (CCL 29 p 282) a passagem que refere que a

alma humana estaacute naturalmente unida agraves ideias eternas das quais depende e a partir das quais ajuiacuteza as

restantes realidades com que se depara laquoHumana quippe anima naturaliter divinis ex quibus pendet

connexa rationibus cum dicit melius hoc fieret quam illud si verum dicit et videt quod dicit in illis

quibus connexa est rationibus videtraquo

323 Cf Gilson History of Christian Philosophy in the Middle Ages NY Random House 1954 p 76 e

Copleston A History of Philosophy vol 2 Westminster Newman Press 1962 p 64

324 Cf De vera relig 32 57-58 Conf VII 17 23

112

descreve o reconhecimento do primeiro verso do hino ambrosiano Deus creator

omnium se assiste a um escalonamento de processos que clarifica o papel do homem

interior em relaccedilatildeo agrave sensibilidade e que enfatiza as implicaccedilotildees numeacutericas presentes em

qualquer percepccedilatildeo325

Em De Trinitate o Bispo de Hipona clarifica que as razotildees eternas natildeo estatildeo

sujeitas agrave mesma mutabilidade que caracteriza a razatildeo humana326

por aqui se pode

inferir que as razotildees natildeo se confundem com a mente independem dela e apesar de lhe

terem sido doadas e de estarem nela subsistem acima de tudo na mente de Deus Soacute de

modo derivativo ndash porque o homem eacute agrave imagem de Deus ndash eacute que se encontram na mente

humana A estrutura racional humana tem sempre acesso agraves ideias mesmo que o

homem nunca as reconheccedila como predisposiccedilatildeo racional para a verdade e erradamente a

procure por vias iacutempias327

Essa procura errante fora de si significa que o homem se

queda ao niacutevel ratio inferior Soacute fazendo uso da faculdade da ratio superior pode haver

o reconhecimento dos nuacutemeros presentes em todas as coisas e da luz inteligiacutevel que daacute a

ver as ideias

325

Cf De mus VI 9 23

326 Cf De Trin XII 2 2

327 A via para a verdade passa sobretudo pela feacute enquanto forma de conhecimento que antessente as

razotildees eternas mas natildeo deveremos considerar que a feacute precede as condiccedilotildees de conhecimento pelo

contraacuterio eacute tal estrutura racional que permite a liberdade para a feacute ndash liberdade que pode ou natildeo ser

usufruiacuteda ainda que todos a tenham Cf De lib arb II 14 37-38 Na captaccedilatildeo das ideias a mente faz

uso de uma capacidade intuitiva aleacutem da discursividade e do raciociacutenio

113

212 ndash A propedecircutica do olhar e a aprendizagem da razatildeo com vista agrave beata vita

A distinccedilatildeo agostiniana entre ratio superior e ratio inferior eacute feita em De

Trinitate natildeo sem que o filoacutesofo advirta para o facto de a ratio inferior ser um princiacutepio

que natildeo cinde a unidade racional328

A distinccedilatildeo em causa natildeo eacute portanto substancial

mas relacional uma vez que diz respeito a duas modalidades de relaccedilatildeo que a alma

humana pode encetar ndash ora constituindo como objecto de relaccedilatildeo os dados da percepccedilatildeo

sensiacutevel e as realidades materiais ora reconhecendo-se ela proacutepria como objecto da luz

divina capaz de reconhecer as razotildees eternas e relacionar-se com tudo o mais em

funccedilatildeo delas

Agrave ratio superior cabe-lhe especificamente direccionar a alma para a

contemplaccedilatildeo das coisas eternas discernindo a realidade inteligiacutevel a sua fonte e a sua

proacutepria condiccedilatildeo de acesso a tal conhecimento como alma divinamente iluminada329

Nesta senda apesar de contemplativo e independente do conhecimento das realidades

sensiacuteveis (scientia) este conhecimento das realidades inteligiacuteveis (sapientia) tem uma

aplicaccedilatildeo concreta no norteamento da vida terrena dos homens ao facultar um modo

normativo que estes satildeo livres de atender ou ignorar A visatildeo intelectual eacute pois uma

funccedilatildeo da ratio superior que permite o mais elevado niacutevel de conhecimento no qual

natildeo interveacutem a sensaccedilatildeo

A ratio inferior possibilitando a visatildeo espiritual diz respeito ao conhecimento

racional das coisas temporais Eacute a partir dela que eacute feito o juiacutezo dos dados da percepccedilatildeo

sensiacutevel A actividade da razatildeo inferior deve por isso procurar esclarecer-se pela

atenccedilatildeo e fortalecimento da ratio superior da qual aliaacutes deriva e em relaccedilatildeo agrave qual natildeo

328

Cf De Trin XII 3 3

329 Quase como se a alma reconhecesse na sua condiccedilatildeo de iluminada uma estrutura a priori de

conhecimento

114

pressupotildee um divoacutercio podendo inclusivamente ser considerada como uma auxiliar

subordinada330

Uma eacute inteligecircncia (intellectum) e conselho (consilium) ao passo que a

outra eacute acccedilatildeo (actio) e execuccedilatildeo (exsecutio)

Natildeo eacute evidente que haja uma correspondecircncia entre homem interior homem

exterior e razatildeo superior razatildeo inferior apesar de Santo Agostinho afirmar que laquoonde

comeccedila a surgir qualquer coisa que natildeo nos seja comum com os animais aiacute comeccedila a

razatildeo e aiacute pode ser reconhecido o homem interiorraquo331

De acordo com tal

afirmaccedilatildeo entende-se que ao homem exterior correspondem apenas capacidades

sub-racionais ndash como a do sentido interior ndash partilhadas pelos animais A ratio inferior

natildeo pode portanto corresponder ao homem exterior uma vez que jaacute natildeo eacute uma funccedilatildeo

da alma que tenhamos em comum com os animais

Soacute o homem acede ao conhecimento elevando-se do plano dos sentidos para o da

verdade O conhecimento eacute uma funccedilatildeo (officium) da razatildeo se for adquirido atraveacutes das

estruturas humanas constitui-se como scientia se for adquirido atraveacutes das estruturas

supra-racionais (Ideias) constitui-se como sapientia Para o Bispo de Hipona a ratio

deve tambeacutem empenhar-se no bom uso das coisas temporais o que aliado ao facto de

ser atraveacutes dos sentidos corpoacutereos que tais coisas materiais se fazem sentir leva o

filoacutesofo a apelidar o conhecimento de scientia actionis e a referir-lhe a capacidade da

ratiocinatio Agrave sapientia que eacute da ordem da contemplaccedilatildeo tambeacutem eacute dado o nome de

noccedilatildeo da sabedoria (ratio sapientiae) e Santo Agostinho refere-lhe a capacidade da

intellegentia332

Eacute possiacutevel considerar a vera ratio a que Santo Agostinho alude por diversas

vezes333

como a articulaccedilatildeo entre a ratio inferior e a ratio superior que permite a

330

Cf De Trin XII 3 3 (CCL 50 357-8) em especial laquo[hellip] in auxilium societatis quasi derivatumraquo

331 De Trin XII 8 13 (CCL 50 368) laquo[hellip] unde incipit aliquid occurrere quod non sit nobis commune

cum bestiis indeincipit ratio ubi iam homo interior possit agnosciraquo Note-se igualmente a afirmaccedilatildeo

expliacutecita de De Trin XII 1 1 (CCL 50 p 356) em que eacute dito que tudo o que temos na alma de comum

com os animais eacute ainda com razatildeo atribuiacutedo ao homem exterior laquoQuidquid enim habemus in animo

commune cum pecore recte adhuc dicitur ad exteriorem hominem pertinereraquo

332 De Trin XII 12 17 (CCL 50 pp 371-2) laquoQuandoquidem de ipsis corporalibus quae sensu corporis

sentiuntur ratiocionatur ea quae scientia dicitur actionis [hellip] sensu quippe corporis corporalia sentiuntur

aeterna vero et incommutabilia spiritalia ratione sapientiae intellegunturraquo

333 Sobretudo em De lib arb III 5 13-17

115

rectidatildeo do acto cognitivo relativamente a qualquer realidade percepcionada334

Essa

rectidatildeo traduzir-se-aacute portanto no uso natildeo isolado da ratio inferior ou por outras

palavras no condicionamento da scientia pela ratio superior O conhecimento de uma

qualquer realidade temporal eacute devido ao exerciacutecio da ratio inferior e pode quedar-se por

aiacute o processo de agniccedilatildeo das espeacutecies sensiacuteveis no entanto o facto de o proacuteprio Bispo

de Hipona salientar que a dicotomia ratio inferior ratio superior natildeo pressupotildee uma

cisatildeo na unidade racional335

parece autorizar que se perspective uma fluidez natural

entre os niacuteveis de cogniccedilatildeo A sapientia ou o exerciacutecio da ratio superior parece ter

efectivamente uma aplicaccedilatildeo mais abrangente natildeo se limitando ao conhecimento de

realidades inteligiacuteveis como os numeri ou as virtudes Tal conhecimento natildeo eacute esteacuteril

relativamente agrave ratio inferior que dele colhe precisamente a possibilidade de fundar o

seu niacutevel cognitivo num ordo rerum A vera ratio natildeo equivale apenas agrave ratio superior

como agrave primeira vista poderia parecer ela resulta desse conuacutebio entre ambos os

princiacutepios racionais e eacute por isso usada por Santo Agostinho tambeacutem relativamente agrave

recta judicaccedilatildeo das naturezas sensiacuteveis O proacuteprio facto de o homem ser capaz de

hierarquizar correctamente qualquer realidade qualificando-a natildeo do ponto de vista da

utilidade mas de acordo com a luz da verdade parece comprovar esta ideia336

Na vera

ratio estaacute pois impliacutecito um processo de afericcedilatildeo em que as diversas realidades

inferiores satildeo escalonadas subordinando-se ordenadamente agraves realidades superiores e

em uacuteltima instacircncia agrave verdade A conformidade do nosso conhecimento com a verdade

depende de uma elevaccedilatildeo da ratio em si mesma uma vez que a recta consideraccedilatildeo dos

objectos cognosciacuteveis implica que o sujeito atenda agraves rationes aeternae que estatildeo para

laacute de si e dos objectos cognosciacuteveis Ora respeitando e descobrindo em si mesma essa

ordenaccedilatildeo ou estrutura veritativa a razatildeo percebe-se iluminada e apta a aferir qualquer

realidade relativamente agraves ideias eternas O conhecimento de si o conhecimento das

coisas e o conhecimento de Deus relacionam-se intimamente e salvaguardando as

devidas especificidades podem reportar-se agrave famosa trilogia esse nosse velle

apresentada pelo Bispo de Hipona em Confessionum337

334

Nessa articulaccedilatildeo a feacute tem um papel fundamental que adiante explicitaremos

335 Cf De Trin XII 3 3

336 Cf De lib arb III 5 17

337 Conf XIII 11 12 (CCL 27 p 247) laquo[hellip] Dico autem haec tria esse nosse velle Sum enim et scio et

volo sum sciens et volens et scio esse me et velle et volo esse et scire In his igitur tribus quas sit

116

O conhecimento das realidades sensiacuteveis pela ratio inferior limita-se a uma

compreensatildeo articulada das coisas que permite o seu perfeito reconhecimento e permite

estabelecer analogias e relaccedilotildees de causalidade338

orientando a acccedilatildeo humana de um

modo que poderaacute considerar-se loacutegico e pragmaticamente eficaz poreacutem sem que haja

um conuacutebio entre acccedilatildeo e contemplaccedilatildeo ndash entre ciecircncia e sabedoria ndash a conduta humana

vecirc-se desprovida dos verdadeiros criteacuterios normativos que correctamente a podem

nortear Soacute pela sapientia eacute possiacutevel aferir as realidades corporais em funccedilatildeo das razotildees

eternas ajuizando as primeiras relativamente agrave distacircncia qualitativa que as separa das

segundas A distinccedilatildeo entre ratio superior e ratio inferior como que determina o acesso

a uma espeacutecie de visatildeo binocular da realidade pois salvaguardando sempre a unidade

da ratio possibilita que qualquer relaccedilatildeo com os sensibilia possa manter um viacutenculo

com a esfera inteligiacutevel e possa reconhecer e minorar o erro de paralaxe a que o homem

estaacute sujeito dada a sua situaccedilatildeo no mundo terreno Por outras palavras nesta distinccedilatildeo

parece estar impliacutecita a ideia de que haacute um aperfeiccediloamento a fazer a partir da nossa

relaccedilatildeo com as coisas temporais

Conforme anteriormente expusemos natildeo haacute uma descontinuidade entre homem

exterior e homem interior na antropologia agostiniana339

facto que tambeacutem contribui

para apoiar o argumento de que a razatildeo pode encontrar na experiecircncia sensiacutevel uma

propedecircutica para o aperfeiccediloamento da alma Haacute uma conversatildeo do olhar340

mais do

que um abandono dos sentidos no percurso ateacute agrave Verdade e como natildeo poderia deixar de

ser a esse percurso natildeo eacute alheia a dimensatildeo esteacutetica O olhar interior ndash razatildeo ndash nutre-se

tambeacutem das belezas inferiores que a visatildeo sensiacutevel lhe reporta e que assume como

indiacutecios de uma beleza maior Haacute um exercitamento da razatildeo per corporalia ad

incorporalia que o Bispo de Hipona abordaraacute em relaccedilatildeo agrave temaacutetica das artes liberais

mas que poderaacute tambeacutem ser perspectivado na esteira da matriz neoplatoacutenica pela qual a

contemplaccedilatildeo da esfera da Verdade ou do Bem exige uma preparaccedilatildeo do olhar

inseparabilis vita et una vita et una mens et una essentia quam denique inseparabilis distinctio et tamen

distinctio videat qui potestraquo

338 A previsibilidade natildeo eacute portanto de se descartar da scientia

339 Vide subcapiacutetulo I14 da presente tese

340 Esta eacute aliaacutes a tese de Luiacutes Evandro Hinrichsen A conversatildeo do olhar um estudo do ato estimativo

esteacutetico segundo Agostinho de Hipona Porto Alegre Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do

Sul 2007

117

Para Platatildeo o poder da alma capaz de suportar a luz que ilumina todas as

realidades eacute a razatildeo341

a alegoria da caverna descreve como a activaccedilatildeo da plena

visualidade exige um adestramento do olhar que sumariamente consiste na mudanccedila

gradual das realidades a contemplar342

e que no retorno ao contexto original

predisporia a uma nova perspectiva sobre o visiacutevel Ligando a simboacutelica da visatildeo agrave

temaacutetica do conhecimento e da ascese esta alegoria pode ajudar a explicitar o modo

aparentemente ambivalente como Santo Agostinho se refere agraves naturezas sensiacuteveis pois

com efeito quando em algumas das suas obras haacute a advertecircncia para que o homem

deixe para traacutes tais realidades que os sentidos corpoacutereos nos reportam tal posiccedilatildeo

agostiniana visa sobretudo apelar a uma mudanccedila do niacutevel cognitivo do sujeito face a

essas realidades Quanto mais capacitada estiver a ratio menos preso se estaraacute a uma

visatildeo parcial do mundo O olho interior deve sobrepor-se ao olhar exterior

subordinando-o e considerando os seus objectos sempre para aleacutem de si mesmos

Tal perspectiva que assume as realidades sensiacuteveis como imagens do inteligiacutevel

e como indiacutecios capazes de guiar o sujeito para a esfera superior desde que bem

ajuizados tem como principal fonte Plotino ainda que a perspectiva deste autor seja

bastante mais ambivalente Tambeacutem nas Eneacuteadas haacute passagens que atestam a

possibilidade da conversatildeo do olhar exterior em olhar interior atraveacutes da contemplaccedilatildeo

esteacutetica em que da beleza sensiacutevel a alma eacute conduzida ateacute agrave beleza inteligiacutevel e desta

ateacute ao Uno No tratado Acerca do Belo o Licopolitano esclarece que o olhar percebe o

belo e que a alma o reconhece recordando-o a partir de um antigo conhecimento Nesse

processo a alma entra em consonacircncia com a beleza identificando-se com ela As

341

Cf Platatildeo Repuacuteblica VII 518c-518d

342 Primeiro deveraacute comeccedilar por distinguir as sombras depois as imagens dos homens e dos outros

objectos reflectidos nas aacuteguas seguidamente os proacuteprios objectos a claridade dos astros durante a noite e

soacute por fim o proacuteprio Sol Sem tal processo gradativo a visatildeo ficaria comprometida pelo ofuscamento e

pela dor Em Soliloquiorum I 13 23 Santo Agostinho exemplifica de modo muito semelhante que a

preparaccedilatildeo do olhar interior para alcanccedilar a sapientia se processa de um modo gradativo anaacutelogo agrave

preparaccedilatildeo dos olhos exteriores para ver o sol Diz o Bispo de Hipona que estes deveratildeo comeccedilar por

observar as coisas que natildeo brilham por si mesmas e que precisam de uma luz que lhes eacute alheia para

poderem ser vistas como por exemplo uma parede depois deveratildeo dirigir-se para as coisas que reflectem

com maior vivacidade tal luz exterior como o ouro ou a prata cujo brilho natildeo fere os olhos

seguidamente poderatildeo contemplar o brilho do fogo terrestre o brilho dos astros como a lua e o brilho das

auroras e do nascer do dia soacute depois poderatildeo contemplar o sol sem se ferirem

118

realidades materiais devem a sua beleza agrave comunhatildeo com uma forma ideal343

pelo que

a beleza das coisas corpoacutereas remete para a beleza das coisas incorporais e a alma atinge

a beleza inteligiacutevel tambeacutem por meio das belezas sensiacuteveis344

Tais belezas participadas

cativam a atenccedilatildeo do homem ndash se a alma se preparar devidamente purificando-se

poderaacute ascender ateacute agrave beleza primordial que na henologia plotiniana se identifica com

o Ser reportando-se ao Intelecto

O facto de a alma ser cativada pelas belezas materiais pode supor duas

interpretaccedilotildees que natildeo satildeo totalmente contraditoacuterias nem inconciliaacuteveis a primeira eacute a

de que haacute uma espeacutecie de dimensatildeo propagandiacutestica nas belezas terrenas que promove o

encontro com a beleza superior e por extensatildeo com o plano inteligiacutevel a segunda eacute a

de que a alma arrisca ficar presa a essas realidades materiais onde encontra espelhadas

imagens fugidias da verdadeira beleza confundindo-as com esta e natildeo se esforccedilando

por encetar o processo de purificaccedilatildeo e ascese de retorno agrave origem345

Plotino apresenta

ambas as perspectivas embora a segunda acabe por evidenciar maior preponderacircncia

nas Eneacuteadas346

De qualquer modo ambas as consideraccedilotildees supotildeem a ideia de que a

alma pode e deve esforccedilar-se por substituir o modo de visatildeo exterior pelo modo da

visatildeo interior347

e para tal precisa de uma habituaccedilatildeo que passa pela consciecircncia de que

haacute uma ordem e uma hierarquizaccedilatildeo cujo niacutevel inferior eacute ocupado pelas belezas

materiais seguido pelas belas ocupaccedilotildees depois pelas belas obras da moral e pelas

343

Mais concretamente Plotino afirma que a beleza das coisas materiais proveacutem da sua comunhatildeo com o

pensamento (razatildeo logos) que emana dos deuses En I 6 2

344 Cf En I 6 3

345 Cf En I 6 8

346 A perspectiva que consigna um papel mais positivo nunciativo agraves belezas materiais por norma

cumpre na filosofia plotiniana propoacutesitos antignoacutesticos O gnosticismo estaraacute para Plotino como o

estoicismo para Santo Agostinho Apesar de algumas vezes integrar elementos da filosofia estoacuteica o

Bispo de Hipona viu-se na necessidade de refutar vaacuterios pressupostos do estoicismo por exemplo

acusando os seus aspectos contraditoacuterios ndash como o que ocorre na promoccedilatildeo da felicidade e na aceitaccedilatildeo

do suiciacutedio ndash ou problematizando o conceito de apatheia Em termos gerais a suas refutaccedilotildees acabam por

predispor a uma consideraccedilatildeo menos negativa das realidades sensiacuteveis e dos sentidos O mesmo se

verifica no caso plotiniano em relaccedilatildeo aos gnoacutesticos contra os quais escreve um tratado que em virtude

da organizaccedilatildeo feita por Porfiacuterio acaba por ser desmembrado e disperso nas Eneacuteadas Cf Vincenzo

Cilento Paideia antignostica Ricostruzione di un unico scritto da Enneadi III8 V8 V5 II9 Firenze

Monnier 1971

347 Cf En I 6 9

119

almas daqueles que realizam as belas obras348

O reconhecimento desta escala de

belezas culmina na semelhanccedila do olhar com o objecto da contemplaccedilatildeo Diz Plotino

que a alma soacute pode contemplar a beleza primordial se antes se tornar bela

Mas se tentares contemplar com um olhar sujo pelo viacutecio e impuro incapaz

de sustentar a visatildeo de objectos muito brilhantes ele entatildeo natildeo veraacute nada [hellip] Eacute

necessaacuterio tornar o oacutergatildeo da visatildeo afim e similar agrave coisa que contempla Nenhum

olho na verdade jaacute viu o sol sem se tornar semelhante ao sol nem a alma pode

ver a beleza sem se tornar bela349

Em suma para Plotino a beleza coincide com o inteligiacutevel e a sua busca

coincide com aquela que leva a alma ao conhecimento do Intelecto A perspectiva de

Santo Agostinho eacute anaacuteloga podendo inferir-se a conversatildeo do olhar pela educaccedilatildeo da

razatildeo na qual estaacute impliacutecito o tracircnsito do sensiacutevel ao inteligiacutevel e o estiacutemulo que a

estese das realidades sensiacuteveis exerce sobre a alma Toda a criaccedilatildeo exalta o criador350

e

nela haacute traccedilos (vestigia) da unidade agrave qual remonta a sua origem Basta utilizar os olhos

da alma e indagar as razotildees do prazer resultante da contemplaccedilatildeo de uma bela simetria

para poder encontrar o plano superior Essa eacute a ideia presente em De vera religione

quando o Bispo de Hipona refere que se perguntasse a um trabalhador a razatildeo de querer

edificar um arco em face de outro que acabara de construir este natildeo saberia dar-lhe

outra justificaccedilatildeo para aleacutem da necessidade de estabelecer uma simetria capaz de

agradar ao olhar Tratando-se de um homem capaz de usar os seus olhos interiores

certamente que correctamente instigado compreenderia que as coisas belas agradam

porque satildeo belas contrariamente agrave ideia de que satildeo belas porque agradam e

compreenderia ainda que tais belezas advecircm de uma unidade que lhes eacute superior a qual

de certo modo apenas simulam (eam quodammodo mentiantur) Essa unidade eacute

tambeacutem o iacutendice de referecircncia operante na correcta judicaccedilatildeo dos corpos351

Haacute

portanto uma via esteacutetica que atraveacutes da experiecircncia sensorial promove o

348

Cf En I 6 9

349 Ibid laquoἘὰν δὲ ἴῃ ἐπὶ τὴν θέαν λημῶν κακίαις καὶ οὐ κεκαθαρμένος ἢ ἀσθενής ἀνανδρίᾳ οὐ δυνάμενος

τὰ πάνυ λαμπρὰ βλέπειν οὐδὲν βλέπει [hellip] Τὸ γὰρ ὁρῶν πρὸς τὸ ὁρώμενον συγγενὲς καὶ ὅμοιον

ποιησάμενον δεῖ ἐπιβάλλειν τῇ θέᾳ Οὐ γὰρ ἂν πώποτε εἶδεν ὀφθαλμὸς ἥλιον ἡλιοειδὴς μὴ γεγενημένος

οὐδὲ τὸ καλὸν ἂν ἴδοι ψυχὴ μὴ καλὴ γενομένηraquo

350 Conf XI 4 7 (CCL 27 197) laquoTe laudant haec omnia creatorem omniumraquo

351 De vera relig 32 59- 60

120

conhecimento da realidade inteligiacutevel e consequentemente revela agrave ratio a chave da

hierarquizaccedilatildeo qualitativa do real Eacute no reconhecimento de tal hierarquizaccedilatildeo que se

funda a possibilidade de um compromisso mais adequado com as naturezas sensiacuteveis e

em uacuteltima instacircncia que se funda o exerciacutecio das virtudes

A celeuma sobre o primado da razatildeo ou da feacute na perspectiva agostiniana

encontra aqui um bom terreno de exploraccedilatildeo A bem conhecida formulaccedilatildeo agostiniana

crede ut intellegas352

natildeo promoveu interpretaccedilotildees consensuais acerca da relaccedilatildeo entre

feacute e razatildeo A vera ratio revela-se com efeito uma expressatildeo sinoacutenima de vera religio

traduzindo ambas ldquoa relaccedilatildeo ontoloacutegica entre a mente e a Verdaderdquo353

e sugerindo uma

convergecircncia de tal ordem entre a feacute e a razatildeo que leva ao seu entendimento como uma

unidade orgacircnica em peacute de igualdade mais do que em termos de relaccedilatildeo hieraacuterquica A

exploraccedilatildeo das diversas matizes da suposta hierarquia entre razatildeo e feacute natildeo deixa no

entanto de propiciar o esclarecimento de ambos os termos

Nem a razatildeo sem a feacute eacute legiacutetima ndash como bem ilustra a criacutetica agostiniana agrave

soberba dos filoacutesofos neoplatoacutenicos354

ndash nem a feacute cega (nulla fides) eacute desejaacutevel ou

verdadeira 355

O aforismo de Isaiacuteas Nisi credideritis non intelligetis (Is 7 9) eacute amiuacutede

citado por Santo Agostinho a propoacutesito desta questatildeo parecendo outorgar primazia agrave feacute

No entanto poder-se-aacute legitimamente objectar que a feacute encontra as condiccedilotildees da sua

possibilidade no conhecimento racional ndash natildeo eacute por acaso que a feacute se assume como uma

352

Sermo XLIII 4 (CCL 41 p 509) laquoDicit mihi homo Intellegam ut credam Respondeo Crede ut

intellegas Cum ergo nata inter nos sit controversia talis quodam modo ut ille mihi dicat Intellegam ut

credam ego ei respondeam Immo crede ut intellegas [hellip]raquo 7 laquoTu dicebas Intellegam ut credam Ego

dicebam Ut intellegas crede Nata est controversia veniamus ad iudicem iudicet Propheta immo vero

Deus iudicet per Prophetam Ambo taceamus Quid ambo dixerimus auditum est Intellegam inquis ut

credam Crede inquam ut intellegas Respondeat Propheta Nisi credideritis non intellegetisraquo Sermo

CXVIII 1 (PL 38 c 672) laquoSi non potes intellegere crede ut intellegas Praecedit fides sequitur

intellectus quoniam propheta dicit Nisi credideritis non intellegetisraquo In Iohan Evang tract XXIX 6

(CCL 36 p 287) laquoSi non intellexisti inquam crede Intellectus enim merces est fidei Ergo noli quaerere

intellegere ut credas sed crede ut intellegas quoniam nisi credideritis non intellegetisraquo

353 Assim o constata Paula Oliveira e Silva em Ordem e Ser Ontologia da Relaccedilatildeo em Santo Agostinho

Lisboa CFUL 2007 pp 354-355 ecoando uma passagem de Gilson em Introduction agrave leacutetude de Saint

Augustin p 46

354 Cf Conf VII 9 13 VII 20 26 -21 27

355 Cf Sermo XLIII 8

121

capacidade exclusiva dos seres racionais 356

ndash o que inverte a vantagem hieraacuterquica mais

comummente associada agrave perspectiva agostiniana357

Ambas feacute e razatildeo natildeo satildeo mais do que meios para o alcance de algo para laacute de

si mesmas ou seja natildeo se constituem como um fim mas como vias complementares A

razatildeo natildeo deve ser confundida com o conhecimento da Verdade Quando o Bispo de

Hipona afirma que a feacute procura e o intelecto encontra358

natildeo estaacute a supor dois processos

distintos embora o acto de feacute seja referido em separado e como que precedendo o

processo intelectual a verdade eacute que este natildeo pode senatildeo ser o resultado da actividade

conjunta da feacute e da razatildeo Santo Agostinho argumenta claramente que os filoacutesofos e os

hereges que prometem a possibilidade do conhecimento sem o auxiacutelio da feacute natildeo

poderatildeo nunca atingi-lo A feacute eacute um grau salutar e indispensaacutevel para nos guindar ateacute

uma certeza cuja finalidade soacute pode ser constituiacuteda pelas realidades eternas359

Ainda

que por vezes a feacute chegue mesmo a ser vista como uma alternativa agrave razatildeo na

preparaccedilatildeo para o conhecimento360

natildeo haacute como ignorar que a razatildeo eacute uma estrutura

basilar do conhecimento e o Bispo de Hipona chega tambeacutem a firmar que haacute um quase

nada de razatildeo (quantulacumque ratio) que nos persuade agrave feacute e por isso a precede361

Haacute primazia da feacute sobre a razatildeo se tivermos em conta a fase preacute-intelectiva do

processo cognitivo em que a feacute se assume como forccedila motriz e condiccedilatildeo sine qua non

da inteligecircncia mas haacute tambeacutem primazia da razatildeo sobre a feacute se tivermos em conta que

356

Ep 120 1 3 (CSEL 34 2 p 719) laquo[hellip] cum etiam credere non possemus nisi rationales animas

haberemusraquo

357 Sobre a defesa do primado da razatildeo em Santo Agostinho cf Maria Leonor Xavier Questotildees de

Filosofia na Idade Meacutedia Lisboa Ediccedilotildees Colibri 2007 pp 82-83 Sobre a defesa do primado da feacute e do

caraacutecter instrumental da razatildeo cf Andreacute Mandouze Saint Augustin lrsquoaventure de la raison et de la gracircce

Paris Eacutetudes Augustiniennes 1968 pp 283-285

358 De Trin XV 2 2 (CCL 50A p 461) laquoFides quaerit intellectus invenit [hellip]raquo Cf De lib arb II 2 5-6

359 En PsaVIII 6 (PL 36 c 111) laquo[hellip] quod gradum saluberrimum et necessarium fidei neglegendum

putant per quem in aliquid certum quod esse nisi aeternum non potest oportet ascendiraquo

360 De doct christ II 12 17 (CCL 32 p 43) laquo[hellip] per fidem ambulamus non per speciem nisi autem

per fidem ambulaverimus ad speciem pervenire non possumus quae non transit sed permanet per

intellectum purgatum nobis cohaerentibus veritati propterea ille ait Nisi credideritis non permanebitis

ille autem Nisi credideritis non intellegetisraquo cf De div quaest 83 81 2

361 Ep 120 1 3 (CSEL 34 2 p 719) laquoSi igitur rationabile est ut ad magna quaedam quae capi nondum

possunt fides praecedat rationem procul dubio quantulacumque ratio quae hoc persuadet etiam ipsa

antecedit fidemraquo

122

a feacute soacute eacute possiacutevel graccedilas ao alicerce da condiccedilatildeo racional Apesar de natildeo haver qualquer

confusatildeo entre estes dois termos para Santo Agostinho percebe-se de imediato que natildeo

haacute feacute sem razatildeo e ainda que possa haver razatildeo sem feacute esta nunca seraacute uma verdadeira

razatildeo nem poderaacute culminar na inteligecircncia362

Na carta escrita por Santo Agostinho a

Consecircncio em 410 haacute uma passagem que ilustra particularmente bem a

complementaridade entre a feacute e a razatildeo

Que outro motivo poderia evitar que ouviacutessemos de forma vatilde

coisas que satildeo verdadeiras senatildeo o da actividade da razatildeo [hellip] ser precedida

no nosso coraccedilatildeo pela feacute que nos reveste de piedade Eacute porque a feacute

empreende a parte que lhe compete neste processo que a razatildeo encontra de

modo subsequente alguns esclarecimentos para o que demandava Assim agrave

falsa razatildeo eacute de preferir sem duacutevida natildeo apenas a verdadeira razatildeo com a

qual compreendemos a verdade na qual acreditamos mas tambeacutem a feacute na

verdade que ainda natildeo compreendemos Mais vale crer no que eacute verdadeiro

ainda que natildeo o tenhamos visto do que pensar ver o verdadeiro naquilo que

eacute falso Com efeito a feacute tem os seus olhos pelos quais de certo modo vecirc que

eacute verdadeiro aquilo que ainda natildeo pode ver e com os quais vecirc com absoluta

certeza que ainda natildeo vecirc aquilo em que crecirc Aleacutem disso quem mediante a

verdadeira razatildeo compreende o que apenas acreditava deve certamente estar

adiante de quem desejar ainda a compreender aquilo em que crecirc se [tal

pessoa] nem sequer deseja e considera que basta acreditar naquilo que pode

entender natildeo sabe de que trata a feacute pois a feacute pia natildeo quer ser sem a

esperanccedila e sem a caridade Assim o homem de feacute deve crer no que ainda

natildeo vecirc de modo a esperar e a amar a visatildeo futura363

Neste excerto Santo Agostinho liga a ratio ao particiacutepio presente subsequens

evidenciando o caraacutecter impreteriacutevel da feacute no processo de descoberta da verdade Por

outro lado o Bispo de Hipona natildeo deixa de salientar o papel da razatildeo sobre os

362

Sobre a distinccedilatildeo entre razatildeo e inteligecircncia vide subcapiacutetulo anterior

363 Ep 120 2 8 (CSEL 34 2 p 711) laquoQuamobrem nisi rationem disputationis [hellip] fides in corde nostro

antecessisset quae nos indueret pietate nonne incassum quae vera sunt audiremus Ac per hoc quoniam

id quod ad eam pertinebat fides egit ideo subsequens ratio aliquid eorum quae inquirebat invenit Falsae

itaque rationi non solum ratio vera qua id quod credimus intellegimus verum etiam fides ipsa rerum

nondum intellectarum sine dubio praeferenda est Melius est enim quamvis nondum visum credere quod

verum est quam putare te verum videre quod falsum est Habet namque fides oculos suos quibus

quodammodo videt verum esse quod nondum videt et quibus certissime videt nondum se videre quod

credit Porro autem qui vera ratione iam quod tantummodo credebat intellegit profecto praeponendus est

ei qui cupit adhuc intellegere quod credit si autem nec cupit et ea quae intellegenda sunt credenda

tantummodo existimat cui rei fides prosit ignorat nam pia fides sine spe et sine caritate esse non vult Sic

igitur homo fidelis debet credere quod nondum videt ut visionem et speret et ametraquo

123

conteuacutedos da feacute uma vez que estaraacute em situaccedilatildeo privilegiada aquele que compreende

aquilo em que crecirc relativamente agravequele que crecirc sem compreender

De certo modo a feacute eacute o dispositivo que permite integrar o significado das

vivecircncias e das realidades terrenas no acircmbito da ordenaccedilatildeo concertada do universo

(carmen universitatis) e logo no plano divino Por outras palavras a feacute eacute o elo que

possibilita reconhecer o caraacutecter anagoacutegico de tudo o que existe no mundo sensiacutevel

impedindo que o homem fique preso agrave parcialidade que naturalmente caracteriza a sua

mundividecircncia e se ela ndash a feacute ndash eacute a convicccedilatildeo das coisas que natildeo vemos364

poderemos

entatildeo dizer que eacute tambeacutem um modo de visatildeo interior capaz de activar as funccedilotildees

superiores da mente e que tambeacutem ela pode ser aperfeiccediloada dada a sua natureza

temporal e mutaacutevel365

Ela natildeo eacute aquilo em que se crecirc mas aquilo pelo qual se crecirc366

ora a feacute natildeo eacute portanto alheia agrave conversatildeo do olhar ainda que diga jaacute respeito ao olhar

interior e embora se refira agrave invisibilidade ndash porque aquilo que se constitui como seu

objecto eacute de ordem inteligiacutevel ndash a feacute parte inevitavelmente de uma base racional ainda

situada sobretudo ao niacutevel da ratio inferior Dizer que a feacute ocorre sobretudo ao niacutevel da

ratio inferior natildeo significa que natildeo haja implicaccedilatildeo da feacute relativamente agrave ratio

superior Na verdade estamos a tentar clarificar um estaacutedio inicial em que o homem

encontra a feacute no seu interior a partir de estiacutemulos que natildeo podem senatildeo ser exteriores e

que se devem agrave interacccedilatildeo do sujeito com a natureza que o contextualiza ndash logo ao

conhecimento das realidades sensiacuteveis (scientia) Conforme se constata a partir do

comentaacuterio agostiniano a propoacutesito do evangelho joanino a feacute eacute adventiacutecia367

No

entanto a feacute tambeacutem exige que haja na alma a capacidade de esta se direccionar para a

dimensatildeo inteligiacutevel havendo portanto lugar agrave actividade da ratio superior mesmo

que aquilo em que se crecirc possa nunca vir a ser objecto de conhecimento368

364

De Trin XIII 1 3 laquo[hellip] convictionem rerum quae non videnturraquo cf Heb 11 1

365 A feacute pode inclusivamente perecer Cf De Trin XIII 1 3

366 De Trin XIV 8 11 laquoFides enim non est quod creditur sed qua creditur et illud creditur illa

conspiciturraquo

367 De Trin XIII 1 3 laquo [hellip] et ipsa tamen temporaliter fit in cordibus hominumraquo

368 O domiacutenio dos inteligiacuteveis estaacute subsumido no dos crediacuteveis mas o inverso natildeo eacute verdadeiro O facto

de haver crediacuteveis que ficam para laacute do alcance da inteligecircncia (como a histoacuteria) natildeo parece constituir um

problema para o Bispo de Hipona talvez porque crer seja tambeacutem uma certa forma de saber conforme

expressa Gilson laquoDe toute faccedilon croire est encore une certaine maniegravere de savoir crsquoest une

124

Aleacutem de ser uma procura e uma promessa a feacute eacute tambeacutem uma espeacutecie de guia

que orienta a alma em direcccedilatildeo ao estado de catarse necessaacuterio para a contemplaccedilatildeo do

inefaacutevel Diz o Bispo de Hipona que eacute a feacute que orienta e nutre a visatildeo beatiacutefica enquanto

esta natildeo eacute ainda alcanccedilada e faacute-lo tornando o percurso mais brando e o homem mais

habilitado para essa inteligibilidade do misteacuterio369

Embora de natureza temporal a feacute

descrita em De Trinitate aponta para uma relaccedilatildeo privilegiada com a luz inteligiacutevel e de

facto pela caracterizaccedilatildeo presente em In Evangelium Ioannis tractatus a feacute parece

funcionar como uma espeacutecie de antevisatildeo de tal luz Natildeo eacute pois de estranhar que apesar

do homem a encontrar no mais iacutentimo de si a feacute seja tambeacutem um fruto da bondade e da

gratuitidade divina ela eacute uma graccedila a primeira com a qual Deus nos presenteia370

O tema do conhecimento na perspectiva agostiniana deveraacute ser situado no

contexto mais lato da beata vita A alma aspira a sobrepujar as suas limitaccedilotildees natildeo

podendo deixar de reconhecer que haacute um ser mais perfeito absolutamente perfeito soacute

ele capaz de mitigar a sua acircnsia conferindo-lhe paz e felicidade O conhecimento natildeo

tem um valor intriacutenseco pois subordina-se a um fim alcanccedilar a Verdade beatificante

identificada com Deus daiacute que o percurso de re-conformaccedilatildeo a Deus pressuponha

tambeacutem uma via cognitiva

Todos os homens aspiram agrave felicidade371

Esta premissa cedo entra no

pensamento agostiniano pela leitura do diaacutelogo perdido de Ciacutecero Hortensius ndash o

mesmo diaacutelogo que desperta o Bispo de Hipona para a filosofia372

Diz Santo Agostinho

connaissance de la penseacutee comme lrsquoest la science proprement dite dont elle ne diffegravere drsquoailleurs que par

son origineraquo in Introduction agrave leacutetude de Saint Augustin p 33

369 De Trin I 1 3 - 2 4 laquo[hellip] Et ideo est necessaria purgatio mentis nostrae qua illud ineffabile

ineffabiliter videri possit qua nondum praediti fide nutrimur et per quaedam tolerabiliora ut ad illud

capiendum apti et habiles efficiamur itinera ducimur [hellip] et a se propterea cerni comprehendique non

posse quia mentis humanae acies invalida in tam excellenti luce non figitur nisi per iustitiam fidei nutrita

vegeteturraquo Cf Sol I 6 12 - 14 onde o Bispo de Hipona explica o papel da trindade de virtudes

constituiacuteda pela feacute (fides) pela esperanccedila (spes) e pelo amor (caritas) na purificaccedilatildeo e preparaccedilatildeo dos

olhos da alma Destas trecircs virtudes soacute a caritas permaneceraacute actuante na beata vita

370 In Iohan EvangTract III 8 laquoQuam gratiam primo accepimus Fidemraquo

371 Cf De beata vita 2 10

372 Cf De Trin XIII 4 7 e De beata vita 2 10 (CCL 29 p 70) onde Santo Agostinho cita uma passagem

dessa obra ciceroniana que natildeo chegou aos nossos dias laquoEcce autem ait non philosophi quidem sed

prompti tamen ad disputandum omnes aiunt esse beatos qui vivant ut ipsi velint Falsum id quidem Velle

enim quod non deceat id est ipsum miserrimum Nec tam miserum est non adipisci quod velis quam

adipisci velle quod non oporteat Plus enim mali pravitas voluntatis affert quam fortuna cuiquam boniraquo

125

que todos aqueles que satildeo felizes tecircm o que desejam mas nem todos os que possuem o

que desejam satildeo felizes em virtude disso Por outro lado aqueles que natildeo tecircm o que

desejam satildeo necessariamente infelizes tal como o satildeo aqueles que possuem o que natildeo

lhes conveacutem desejar Conclui o Bispo de Hipona que soacute pode ser feliz quem

simultaneamente possui aquilo que deseja e deseja aquilo que lhe natildeo eacute pernicioso

possuir373

Tal eacute a dupla condiccedilatildeo da felicidade Quando natildeo se consegue reunir estas

duas condiccedilotildees os homens tendem a centrar a sua atenccedilatildeo em possuir aquilo que

desejam independentemente de desejarem o que lhes conveacutem e assim acabam por

subverter a loacutegica da obtenccedilatildeo da felicidade uma vez que seria preferiacutevel o esforccedilo de

ter bons desejos independentemente da posse

Estaacute mais distante da felicidade aquele que possui objectos de desejo iliacutecitos

do que aquele que natildeo possui qualquer objecto dos seus desejos e no entanto apesar

de todos desejarem a felicidade muitos acabam por preferir aquilo que os afasta da

vida feliz por uma defecccedilatildeo da vontade A boa vontade eacute jaacute um bem de grande valor

no caminho para a felicidade374

mas mais importante ainda eacute a feacute na imortalidade e na

incarnaccedilatildeo A vida para ser feliz tem necessariamente de ser eterna e querer a

imortalidade natildeo eacute querer nada de mal pelo contraacuterio o desejo de imortalidade aliado

agrave feacute faz com que todos os homens vivam de modo a poder merececirc-la A feacute na

incarnaccedilatildeo permite reconhecer em Cristo quer a ciecircncia quer a sabedoria reunidas

Daiacute que Cristo seja ldquoa nossa ciecircncia e tambeacutem a nossa sabedoria Eacute ele que nos daacute a feacute

a partir das coisas temporais e eacute ele que nos ensina a verdade sobre as coisas eternas

Por ele vamos ateacute ele pela ciecircncia tendemos agrave sabedoria e no entanto natildeo nos

afastamos deste mesmo e uacutenico Cristo em quem todos os tesouros da sabedoria e da

ciecircncia estatildeo escondidosrdquo375

O desejo de felicidade corresponde portanto ao desejo de Deus e da posse da

verdade absoluta Ao encontrar Deus encontra-se a felicidade Este eacute aliaacutes o aforismo a

que pode ser resumido o diaacutelogo De beata vita A felicidade eacute o culminar de um

373

Cf De Trin XIII 5 8

374 Cf De Trin XIII 6 9

375 De Trin XIII 19 24 (CCL 50A p 416) laquoScientia ergo nostra Christus est sapientia quoque nostra

idem Christus est Ipse nobis fidem de rebus temporalibus inserit ipse de sempiternis exhibet veritatem

Per ipsum pergimus ad ipsum tendimus per scientiam ad sapientiam ab uno tamen eodemque Christo

non recedimus in quo sunt omnes thesauri sapientiae et scientiae absconditiraquo Cf 1 Cor 12 8 Col 2 3

126

percurso fundado na constataccedilatildeo da equivalecircncia entre a suma Beleza e a suma Verdade ndash um

percurso gradativo da visatildeo que passa pelo adestramento da alma com vista agrave

subjugaccedilatildeo dos sentidos corpoacutereos e por um certo conluio entre a ratio inferior e a ratio

superior ou seja entre o conhecimento racional e o conhecimento intelectual

22 ndash Uma esteacutetica expressa em termos matemaacuteticos

2 2 1 Numerus pondus e mensura

Foi jaacute evidenciado no primeiro subcapiacutetulo desta tese o modo como a esteacutetica

agostiniana ampliou o conceito de beleza legado pela tradiccedilatildeo neoplatoacutenica ao

pressupor que a natureza inteligiacutevel do belo natildeo obsta a que as suas manifestaccedilotildees

possam tambeacutem ser concebidas de um modo formalista O proacuteprio conceito de forma

atesta tal despreconceito acerca das feiccedilotildees que o belo assume na sua desmultiplicaccedilatildeo

pelo universo As configuraccedilotildees dos corpos natildeo deixam de significar a beleza superior

da qual provecircm ndash satildeo dela imagens parcelares nebulosas que podem no entanto

promover o reconhecimento de tal superioridade desde que bem ajuizadas pela alma

humana Aleacutem da forma haacute um outro conceito fulcral para a esteacutetica agostiniana que se

constitui como um iacutendice qualitativo servindo agrave clarificaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre o todo e as

partes e contribuindo para que melhor se perceba a valorizaccedilatildeo das naturezas corpoacutereas

pelo elo que mantecircm com a dimensatildeo inteligiacutevel Trata-se do conceito de numerus

O sobrepujar da acepccedilatildeo quantitativa de numerus natildeo se constituiacutea como uma

novidade na eacutepoca de Santo Agostinho Quase dez seacuteculos antes ao estabelecer uma

relaccedilatildeo entre a ordem dos nuacutemeros e a frequecircncia dos sons Pitaacutegoras havia jaacute lanccedilado

as bases para tal etologia meta-matemaacutetica A perspectiva de que a evoluccedilatildeo do mundo

eacute paralela agrave evoluccedilatildeo dos nuacutemeros resultou natildeo soacute da constataccedilatildeo de que as duraccedilotildees

relativas das vibraccedilotildees na harmonia musical eram passiacuteveis de ser reconhecidas em

todas as coisas ndash concluindo-se que qualquer coisa podia ser exprimida em termos

127

numeacutericos ndash mas tambeacutem da observaccedilatildeo dos movimentos regulares dos astros e da ideia

de uma harmonia concertada das esferas A noccedilatildeo de ordem e a perspectiva de um

caraacutecter esteacutetico associados aos nuacutemeros marcavam presenccedila desde entatildeo 376

Os pressupostos pitagoacutericos da temaacutetica do nuacutemero chegam a Santo Agostinho

pela via neoplatoacutenica uma via por seu turno jaacute informada pelas consideraccedilotildees gnoacutesticas

acerca do nuacutemero como entidade significante capaz de mediar entre o divino e o criado

Para os gnoacutesticos os nuacutemeros determinavam o caraacutecter das coisas por si ordenadas e

impregnavam-nas de um significado metafiacutesico reconheciacutevel pelo homem377

Plotino

que apesar das criacuteticas que tecia aos gnoacutesticos natildeo deixava de simpatizar com algumas

das suas ideias dedica o seu trigeacutesimo quarto tratado precisamente agrave temaacutetica do

nuacutemero378

Na esteira de Moderato o nuacutemero eacute abordado em termos de movimento de

egresso e regresso da multiplicidade relativamente ao Uno Refutando a criacutetica de

Aristoacuteteles agrave concepccedilatildeo de nuacutemero presente no Parmeacutenides de Platatildeo Plotino rejeita

qualquer valor quantitativo no que toca ao nuacutemero inteligiacutevel ou substancial (ἀριθμός

οὐσιώδης) Este o nuacutemero inteligiacutevel eacute a actividade (ἐνέργεια) da substacircncia primeira

(οὐσία) bem como o poder (δύναμις) que cinde a dimensatildeo do ser inteligiacutevel no

nuacutemero limitado de formas Presidindo como causa de todos os nuacutemeros estaacute o Uno

376

Natildeo nos interessa aqui entrar na celeuma sobre a veracidade das descobertas atribuiacutedas a Pitaacutegoras

pelo que partimos apenas das evidecircncias acerca daquilo que era considerado ser o legado pitagoacuterico agrave

eacutepoca de Santo Agostinho Para tal natildeo satildeo de descartar os comentaacuterios de Ciacutecero em Tusculanae

Quaestiones I 17 (sobre Pitaacutegoras e a disposiccedilatildeo da terra e das regiotildees celestes de acordo com o peso e a

igualdade de acircngulos) I 10 (sobre o poder do nuacutemero para Pitaacutegoras) IV 2 (sobre a influecircncia pitagoacuterica

na muacutesica e na poesia de entatildeo) Muito antes de Ciacutecero jaacute Platatildeo no livro VII da Repuacuteblica (530d) havia

testemunhado a iacutentima relaccedilatildeo existente nas teorias do pitagorismo entre a astronomia e a harmonia e que

aliaacutes Platatildeo assume subscrever Ao reportar a harmonia agrave audiccedilatildeo reitera a afinidade entre o movimento

dos astros e o movimento harmoacutenico sonoro (muacutesica) Assumindo uma perspectiva criacutetica Aristoacuteteles

refere muito claramente esta concordacircncia pitagoacuterica entre os fenoacutemenos celestes os nuacutemeros existentes

na muacutesica e a ordem do universo no primeiro livro da Metafiacutesica e no segundo livro de Do Ceacuteu Cf

Metafiacutesica I 5 985b-986a e Do Ceacuteu II 9 290b Sobre as referecircncias que Santo Agostinho faz nas suas

obras a Pitaacutegoras cf Christiane L Joost-Gaugier ldquoPythagoras remembered in the Fifth and Sixth

Centuriesrdquo in Measuring heaven Pythagoras and his influence on art in Antiquity and the Middle Ages

Cornell University Press 2006 pp 58-59

377 Sobre a questatildeo do nuacutemero no gnosticismo cf Michel Onfray ldquoLa numeacuterologie gnostiquerdquo in La

reacutesistence au Christianisme Contre Histoire De La Philosophie Vol 3 (partie 1) Vincennes Fremeaux amp

Associes 2006 cd 4 faixa 5 (audiolivro) e Vincent Foster Hopper ldquoThe Gnosticsrdquo in Medieval number

symbolism its sources meaning and influence on thought and expression NY Dover 2000 pp 50-68

378 Cf En VI 6 [34] Sobre a abordagem plotiniana do nuacutemero talvez a melhor perspectiva seja dada por

Svetla Slaveva-Griffin no ensaio Plotinus on Number Oxford University Press 2009 Eacute a esta obra que

devemos a maioria das consideraccedilotildees aqui tecidas sobre o nuacutemero nas Eneacuteadas

128

que assim precede o nuacutemero inteligiacutevel que eacute do domiacutenio da segunda hipoacutestase

Plotino refere a incapacidade de Aristoacuteteles compreender a moacutenada e a diacuteade indefinida

como princiacutepios da criaccedilatildeo e da ordem do intelecto e explica a relaccedilatildeo entre o nuacutemero

substancial natildeo quantitativo com o nuacutemero monaacutedico (ἀριθμός μοναδικός)

quantitativo em termos de paradigma inteligiacutevel e sua coacutepia material379

Enquanto o

nuacutemero substancial actualiza a existecircncia daquilo que separou do Uno no inteligiacutevel o

nuacutemero monaacutedico exprime quantitativamente aquilo que jaacute foi definido pelo nuacutemero

substancial O nuacutemero monaacutedico tem um papel importante ao niacutevel da cosmologia

plotiniana uma vez que salvaguarda a multiplicidade sensiacutevel de se dissipar no infinito

O nuacutemero substancial eacute tambeacutem considerado por Plotino sob o prisma dos cinco

geacuteneros platoacutenicos presentes no Sofista o repouso corresponderia ao nuacutemero unificado

(ἀριθμὸς ἡνωμένος) o movimento ao nuacutemero movendo-se a si mesmo (ἀριθμὸς ἐν

ἑαυτῷ κινούμενος) o outro ao nuacutemero desmultiplicado (ἀριθμός ἐξεληλιγμένος) e o

mesmo ao nuacutemero englobante (ἀριθμὸς περιέχων)380

As propriedades do nuacutemero

substancial traduzem os quatro primeiros geacuteneros ao passo que o quinto ndash o do ser ndash se

constitui como o denominador comum que representa todos os outros Fica assim

elucidada a relaccedilatildeo entre o nuacutemero substancial com o Uno e com a Alma uma vez que

Plotino natildeo os identifica com nenhuma propriedade particular do nuacutemero As

propriedades do nuacutemero substancial ordenam o Intelecto a partir do seu interior ora

tanto o Uno quanto a Alma estatildeo fora do Intelecto pelo que natildeo herdam qualquer

propriedade particular do nuacutemero No entanto sendo uma emanaccedilatildeo do Intelecto e logo

uma imagem sua a Alma possui todas as propriedades do nuacutemero substancial A alma

individual exprime os nuacutemeros substanciais em nuacutemeros monaacutedicos sendo que a

matemaacutetica e a contabilizaccedilatildeo das coisas individuais assenta no nuacutemero monaacutedico O

nuacutemero substancial eacute uma expressatildeo ontoloacutegica do Uno que estaacute para laacute do Ser e natildeo

possui qualquer caracteriacutestica particular

Do mesmo modo que o conceito de forma na teoria agostiniana permitia uma

siacutentese entre a ultimidade e o imediato tambeacutem o conceito de numerus parece conservar

a articulaccedilatildeo entre unidade e multiplicidade tornando algo obsoleta a distinccedilatildeo entre

nuacutemero inteligiacutevel e nuacutemero monaacutedico que marca toda a abordagem plotiniana Ainda

379

Cf En VI 6 9

380 Cf Ibid

129

assim natildeo a descarta totalmente Do conjunto formado pelas principais obras a partir

das quais se revela mais profiacutecuo o estudo do conceito de numerus em Santo Agostinho

eacute sobretudo em De musica e em De libero arbitrio que os ecos de tal distinccedilatildeo satildeo ainda

fortes381

Nos cinco primeiros livros de De musica o filoacutesofo comeccedila por proceder agrave

anaacutelise dos vestiacutegios sensiacuteveis da muacutesica ndash definida como ciecircncia de bem modular ndash e

das relaccedilotildees que fixam a duraccedilatildeo dos tempos passando no sexto livro para os lugares

espirituais onde a muacutesica natildeo assume um corpo especiacutefico382

Assim nos primeiros

cinco livros o acircmbito da aritmeacutetica e da quantificaccedilatildeo ocupa um lugar central

lembrando os nuacutemeros monaacutedicos plotinianos ao passo que no uacuteltimo livro eacute dado

destaque agravequilo que para Plotino seria o acircmbito do nuacutemero substancial

Santo Agostinho refere-se nesta obra aos numeri corporales que natildeo devem ser

interpretados como equivalentes imediatos dos nuacutemeros monaacutedicos ainda que numa

transposiccedilatildeo grosseira da terminologia plotiniana para a terminologia agostiniana

pudeacutessemos considerar que os numeri corporales abarcam os nuacutemeros monaacutedicos O

filoacutesofo africano refere-se aos numeri corporales como sinoacutenimos dos numeri

sonantes383

Estes satildeo os nuacutemeros que se manifestam nos sons na danccedila e em qualquer

outro movimento visiacutevel Santo Agostinho coloca-os na base da hierarquia numeacuterica

passiacutevel de ser reconhecida em qualquer processo ligado agrave sensibilidade Tal hierarquia

integra tambeacutem os nuacutemeros de reacccedilatildeo (numeri occursores) que resultam da impressatildeo

sensiacutevel produzida quando o sentido exterior eacute afectado pelas realidades sensiacuteveis

Note-se que natildeo haacute na obra agostiniana mateacuteria que permita concluir uma

intermutabilidade entre o conceito de numeri corporales e o de sensibilia Na verdade

Santo Agostinho parece apenas perspectivar que os sensibilia ndash enquanto coisas que

381

Este conjunto eacute constituiacutedo pelas seguintes obras De ordine escrita em 386 De musica escrita em

388 estando Santo Agostinho ainda em Milatildeo De libero arbitrio e De Genesi contra Manichaeos que

datam desse mesmo ano mas satildeo jaacute escritas em Roma apoacutes a morte de Moacutenica De vera religione

redigida em 390 De Trinitate em 400 De Genesi ad litteram principiada em 393 e terminada por volta

de 415 De doctrina christiana redigida entre 397 e 426 e De civitate Dei redigida entre 41213 e 426

382 De mus I 2 2 (PL 32 c 1083) laquoMusica est scientia bene modulandiraquo No primeiro livro de De

musica eacute analisada a natureza dos nuacutemeros e das relaccedilotildees impliacutecitas nas principais sequecircncias do sistema

decimal No segundo livro as consideraccedilotildees numeacutericas recaem sobre a meacutetrica nos livros III e IV sobre o

ritmo no livro V sobre o verso e por fim no livro VI a abordagem eacute reconduzida para os lugares

espirituais salientando o papel dos nuacutemeros na universalidade da ordem e sublinhando a superioridade da

alma em relaccedilatildeo ao corpo

383 Cf De mus VI 4 7 e VI 9 24

130

podem ser objecto de percepccedilatildeo sensiacutevel ndash integram o movimento contiacutenuo da criaccedilatildeo

divina (que natildeo soacute os originou como os manteacutem) e em virtude disso podem eles

proacuteprios ser considerados em funccedilatildeo de um dinamismo expressivo intriacutenseco que

permite o reconhecimento dos nuacutemeros neles presentes Eacute ao reconhecimento de tal

presenccedila nas coisas sensiacuteveis que o conceito de numeri corporales deve ser associado

pois se os reportaacutessemos exclusivamente aos objectos sensiacuteveis em si mais dificilmente

se perspectivaria a sua ligaccedilatildeo ao nuacutemero superno ou o seu papel no carmen

universitatis como efectivamente ocorre na obra agostiniana384

Eacute por si mesmos que os nuacutemeros causam impressotildees na nossa alma e natildeo

por constituiacuterem imagens de coisas visiacuteveis385

Haacute que natildeo esquecer que a

hierarquizaccedilatildeo presente em De musica eacute elaborada de acordo com a percepccedilatildeo

musical e eacute transponiacutevel para qualquer outro processo perceptivo em todo o caso

estaacute-se sempre no acircmbito da sensibilidade ou seja dos movimentos que a alma

empreende face agraves impressotildees do corpo pelo exterior sensiacutevel o que natildeo significa

que os nuacutemeros natildeo existam independentemente da alma ndash eles estatildeo na alma nos

corpos e na esfera divina (estatildeo para caacute e para laacute da alma aleacutem de tambeacutem estarem

nela) ndash mas sim que desempenham a funccedilatildeo de iacutendices de reconhecimento de

relaccedilatildeo Quando em Confessionum o Bispo de Hipona parece hesitar quanto agrave

legitimidade do prazer com os cacircnticos religiosos386

poderiacuteamos argumentar a

partir das proacuteprias consideraccedilotildees agostinianas sobre a natureza do nuacutemero que a

legitimidade de tal prazer eacute relativa ao reconhecimento dos nuacutemeros implicados na

percepccedilatildeo de tais cacircnticos Soacute haacute prazer desde logo porque os nuacutemeros sonoros

(ou corporais) foram experienciados esse prazer seraacute legiacutetimo se natildeo houver

qualquer dificuldade em reconhecer que os nuacutemeros fazem parte da grandeza

infinita divina seraacute um prazer ilegiacutetimo se pelo contraacuterio os nuacutemeros forem

tomados como uma pluralidade de unidades vaacutelidas em si ou no seu conjunto

restrito sem qualquer reconhecimento da referecircncia ao plano divino Atente-se a

seguinte passagem

384

Cf De mus VI 11 29

385 Cf De lib arb II 8 20-24

386 Cf Conf X 33 49

131

Portanto o que polui a alma natildeo satildeo os nuacutemeros inferiores agrave razatildeo belos no seu

geacutenero mas o amor agrave beleza inferior Se nela [a alma] ama natildeo apenas a igualdade da

qual jaacute suficientemente falaacutemos no acircmbito do nosso assunto mas ama-a tambeacutem

como fim a alma ter-se-aacute perdido do seu proacuteprio fim todavia ela natildeo sai da ordem das

coisas uma vez que tem uma posiccedilatildeo e uma dignidade tais que lhe outorgam uma

ordenaccedilatildeo perfeita Uma coisa eacute sujeitar-se agrave ordem outra coisa eacute estar sujeito agrave

ordem A alma sujeita-se agrave ordem quando ama plenamente aquilo que estaacute acima dela

isto eacute Deus e quando ama como a si mesma as almas suas semelhantes Pela forccedila

deste amor ela ordena as coisas inferiores sem ser corrompida Aquilo que corrompe a

alma natildeo eacute mau pois tambeacutem o corpo eacute uma criatura de Deus e eacute adornado por uma

beleza iacutenfima mas que soacute relativamente agrave dignidade da alma pode ser menosprezada

tal como a qualidade do ouro eacute maculada pela uniatildeo com a mais fina prata Portanto

natildeo excluamos da obra da divina providecircncia os nuacutemeros que satildeo formados na nossa

sujeiccedilatildeo agrave morte pena do pecado pois no seu geacutenero satildeo belos Mas tambeacutem natildeo os

amemos como se encontraacutessemos a felicidade fruindo deles Uma vez que satildeo

temporais aproveitemo-los como a uma taacutebua num naufraacutegio natildeo devemos rejeitaacute-los

como um fardo nem abraccedilaacute-los como se natildeo soccedilobrassem mas devemos usaacute-los

bem e assim os ultrapassaremos387

Neste trecho Santo Agostinho comeccedila precisamente por advertir que natildeo eacute liacutecito amar na

beleza inferior ndash ou seja nas belezas corpoacutereas ndash o seu aspecto puramente formal que nos deteria

nesse amor como se ele fosse um fim em si mesmo e limitaria o reconhecimento dos nuacutemeros agrave

dimensatildeo sensiacutevel Usar os nuacutemeros inferiores e ultrapassaacute-los significa partir do indiacutecio para o

reconhecimento do proacuteprio iacutendice ou por outras palavras descobrir a relaccedilatildeo de

proporcionalidade entre as coisas e o divino a partir daquilo que nos corpos (nuacutemeros formados

na nossa sujeiccedilatildeo agrave morte) lhes eacute anterior e em razatildeo do proacuteprio ser

Aleacutem dos nuacutemeros de reacccedilatildeo que ocupam o segundo patamar da hierarquia da

sensibilidade distinguem-se ainda os nuacutemeros de desenvolvimento (numeri

progressores) que mesmo na ausecircncia de um objecto ou movimento exterior resultam

387

De mus VI 14 46 (PL 32 c 1187) laquoNon igitur numeri qui sunt infra rationem et in suo genere

pulchri sunt sed amor inferioris pulchritudinis animam polluit quae cum in illa non modo aequalitatem

de qua pro suscepto opere satis dictum est sed etiam ordinem diligat amisit ipsa ordinem suum nec

tamen excessit ordinem rerum quandoquidem ibi est et ita est ubi esse et quomodo esse tales

ordinatissimum est Aliud enim est tenere ordinem aliud ordine teneri Tenet ordinem seipsa tota

diligens quod supra se est id est Deum socias autem animas tamquam seipsam Hac quippe dilectionis

virtute inferiora ordinat nec ab inferioribus sordidatur Quod autem illam sordidat non est malum quia

etiam corpus creatura Dei est et specie sua quamvis infima decoratur sed prae animae dignitate

contemnitur sicuti auri dignitas etiam purgatissimi argenti commixtione sordescit Quapropter

quicumque de nostra quoque poenali mortalitate numeri facti sunt non eos abdicemus a fabricatione

divinae providentiae cum sint in genere suo pulchri Neque amemus eos ut quasi perfruendo talibus beati

efficiamur His etenim quoniam temporales sunt tamquam tabula in fluctibus neque abiciendo quasi

onerosos neque amplectendo quasi fundatos sed bene utendo carebimusraquo

132

da acccedilatildeo da alma sobre o corpo Estes nuacutemeros encontram-se por exemplo no acto de

pronunciar o primeiro verso do hino de Santo Ambroacutesio Deus creator omnium ou

simplesmente em casos de percepccedilotildees anoacutemalas como as que ocorrem durante as

alucinaccedilotildees A estes nuacutemeros seguem-se os nuacutemeros da memoacuteria (numeri recordabiles)

graccedilas aos quais podemos reconhecer coisas que vimos ou ouvimos anteriormente

Estes nuacutemeros funcionam como uma espeacutecie de arquivo e servem de mediadores entre

os nuacutemeros de reacccedilatildeo e os nuacutemeros de desenvolvimento Santo Agostinho refere ainda

os nuacutemeros sensiacuteveis (numeri sensuales) respeitantes ao prazer ou ao desprazer

provocados pelos movimentos da alma face agraves modificaccedilotildees do corpo desencadeadas

pela sensaccedilatildeo No topo da hierarquia do processo de percepccedilatildeo sensiacutevel estatildeo os

nuacutemeros de julgamento (numeri iudiciales) que concernem ao acto de ajuizar sobre a

legitimidade de tal prazer ou desprazer Eacute quando os nuacutemeros do julgamento se

desencadeiam que haacute possibilidade de reconhecer a amplitude das implicaccedilotildees

numeacutericas O processo racional do qual depende tal reconhecimento implica uma

preparaccedilatildeo ndash uma via gradativa que a razatildeo deve empreender e que numa primeira fase

Santo Agostinho perspectiva atraveacutes das artes liberais O diaacutelogo De musica fazia parte

de um conjunto de obras que Santo Agostinho projectara escrever precisamente para

contemplar as especificidades de cada arte liberal atraveacutes um tratado respectivo

Embora em De musica a proacutepria estrutura da obra e as referecircncias aos nuacutemeros

corporais ou aos nuacutemeros inferiores promovam a analogia entre a distinccedilatildeo numeacuterica

plotiniana de nuacutemero inteligiacutevel e nuacutemero monaacutedico a verdade eacute que um estudo mais

aprofundado acerca do conceito de numerus em Santo Agostinho revela que natildeo haacute

propriamente diferenccedila para laacute do acto perceptivo ndash ou seja para o filoacutesofo africano o

nuacutemero eacute sempre substancial natildeo estando sujeito agraves mutaccedilotildees dos corpos Ele eacute

simultaneamente imanente e transcendente agraves coisas bem como agrave alma racional388

Mesmo nos aspectos meramente formais e quantitativos haacute uma proporcionalidade que

388

De libarb II 11 31 (CCL 29 p 258) laquoSed quia dedit numeros omnibus rebus etiam infimis et in

fine rerum locatis et corpora enim omnia quamvis in rebus extrema sint habent numeros suos sapere

autem non dedit corporibus neque animis omnibus sed tantum rationalibus tamquam in eis sibi sedem

locaverit de qua disponat omnia illa etiam infima quibus numeros dedit itaque quoniam de corporibus

facile iudicamus tamquam de rebus quae infra nos ordinatae sunt quibus impressos numeros infra nos

esse cernimus et eos propterea vilius habemus Sed cum coeperimus tamquam sursum versus recurrere

invenimus eos etiam nostras mentes transcendere atque incommutabiles in ipsa manere veritateraquo

133

reflecte a ordem divina e cuja significaccedilatildeo pode ser interpretada como se de uma

codificaccedilatildeo metafiacutesica se tratasse389

O nuacutemero tal como a beleza eacute como o brilho da luz divina nas coisas quanto

maior for a distacircncia ontoloacutegica das criaturas ao criador mais paacutelido seraacute esse brilho no

entanto ele natildeo eacute substancialmente distinto da sua fonte de luz Talvez por isso em De

libero arbitrio Santo Agostinho diga que o nuacutemero e a sabedoria satildeo como uma e a

mesma coisa e citando uma passagem biacuteblica ndash Ela [a sabedoria] estende o seu vigor de

uma extremidade agrave outra e governa todas as coisas com suavidade (Sab 81) ndash demonstra

considerar que o vigor (potentia) pelo qual a sabedoria se espraia corresponde ao

nuacutemero enquanto que a capacidade pela qual tudo eacute disposto com suavidade

corresponde agrave sabedoria propriamente dita sendo que ambas as operaccedilotildees satildeo a mesma

sabedoria390

Para melhor se explicar Santo Agostinho estabelece uma analogia entre o

par sabedoria nuacutemero e o par calor luz referindo que mesmo sendo consubstanciais

haacute uma diferenccedila na sua percepccedilatildeo os sentidos soacute percebem o calor quando se

aproximam da sua fonte ao passo que a luz irradia por todo o lado A sabedoria eacute como

o calor e implica olhos capazes de a ver olhos ontologicamente mais proacuteximos daquilo

que pretendem ver Tudo o que estiver mais proacuteximo desse fogo uacutenico (unus ignis) que

emana calor e luz exaltar-se-aacute dada a proximidade ora o que estaacute mais proacuteximo dessa

389

Natildeo eacute por acaso que se constata ser comum aos autores deste periacuteodo fazerem divisotildees formais nas

suas obras que traduzissem o significado miacutestico dos nuacutemeros A este propoacutesito Annemarie Schimmel

nota que os vinte e dois livros de De civitate Dei corresponderiam agraves vinte e duas letras do alfabeto

hebraico e que por duas vezes estatildeo divididos em cinco refutaccedilotildees exprimindo os mandamentos

enunciados na negativa (2x5=10) e por trecircs vezes em quatro ensinamentos afirmativos que

correspondem aos doze apoacutestolos e tambeacutem agrave Trindade proclamada nos quatro Evangelhos (3x4=12) Cf

Annemarie Schimmel The mystery of numbers N Y Oxford Oxford University Press 1993 p 20 Para

o mesmo tipo de abordagem formal em relaccedilatildeo a Confessionum cf Fernando Afonso Andrade Lemos As

Confissotildees de Santo Agostinho 1600 Anos Depois Presenccedila e Actualidade Lisboa Universidade

Catoacutelica Editora 2001 p 671-696 Na mesma senda Svetla Slaveva-Griffin explica o arranjo temaacutetico

das Eneacuteadas por Porfiacuterio referindo que para a tradiccedilatildeo neopitagoacuterica o nuacutemero seis eacute considerado o

primeiro nuacutemero perfeito e eacute identificado com o nuacutemero da Alma A criaccedilatildeo do universo eacute representada

pelo nuacutemero nove (ἐννεάς) como se fosse uma hendiacuteadis por derivaccedilatildeo do Uno Os cinquenta e quatro

tratados das Eneacuteadas estatildeo agrupados em novenas encerrando assim a essecircncia numeacuterica do universo

desde o Uno (ἐν) ateacute agrave eneacuteada O arranjo porfiriano codifica assim numericamente a perfeita unidade do

universo plotiniano Cf Svetla Slaveva-Griffin op cit pp 131 - 140

390 De lib arb II 11 30 (CCL 29 p 258) laquo[hellip] [numerus et sapientia] una quaedam eademque res est

verumtamen quoniam nihilominus in divinis Libris de sapientia dicitur quod attingit a fine usque ad

finem fortiter et disponit omnia suaviter ea potentia qua fortiter a fine usque ad finem attingit numerus

fortasse dicitur ea vero qua disponit omnia suaviter sapientia proprie iam vocatur cum sit utrumque

unius eiusdemque sapientiaeraquo Haacute aqui uma proximidade entre o nuacutemero como potentia em De libero

arbitrio e o nuacutemero como ἐνέργεια ou δύναμις presente nas Eneacuteadas

134

fonte satildeo as almas racionais Jaacute os corpos mais distantes natildeo satildeo atingidos pelo seu

calor mas apenas pela sua luz ndash a luz dos nuacutemeros (lumen numerorum) Santo

Agostinho salienta que nem a sabedoria deveraacute ser considerada superior ao nuacutemero

nem o nuacutemero superior agrave sabedoria pois satildeo a mesma coisa e contrariamente a Plotino

resiste a considerar que a sabedoria subsista por si e que o nuacutemero subsista na

sabedoria salientando que ambos satildeo verdadeiros e ambos tecircm na verdade imutaacutevel a

sua morada391

Mais adiante neste tratado Santo Agostinho diz que a sabedoria faz com

que se empreenda a via interior e se reconheccedila como repleto de nuacutemeros tudo aquilo

que deleita nos corpos e tudo aquilo que cativa os sentidos corpoacutereos convidando a que

se perscrute a sua origem e a que se reconheccedila que haacute certas regras do belo perto do

sujeito que experiencia as belezas sensiacuteveis Satildeo estas regras que lhe permitem aprovar

ou desaprovar (probare aut improbare) tais sentimentos esteacuteticos392

Numa primeira

leitura poderaacute parecer estranho que seja a sabedoria a permitir o reconhecimento dos

nuacutemeros e natildeo o inverso mas haacute que ter em conta que os nuacutemeros satildeo como vestiacutegios

da sabedoria presentes nos corpos e em tudo o que existe Diferentemente de um

siacutembolo que a partir de si remeteria para outra realidade distinta os vestiacutegios ou indiacutecios

soacute satildeo reconhecidos como tal por se subsumirem na realidade a que se referem e com a

qual consequentemente partilham caracteriacutesticas de natureza comum Assim os

siacutembolos funcionam de modo metoniacutemico pois envolvem duas entidades distintas em

que uma remete para a outra atraveacutes de uma relaccedilatildeo culturalmente determinada ao

passo que os indiacutecios ou vestiacutegios satildeo da ordem da sineacutedoque permitindo que o todo

seja tomado a partir da parte ou a parte a partir do todo Enquanto aspecto parcial de

uma totalidade os vestiacutegios satildeo dela manifestaccedilotildees Ainda que tudo esteja repleto de

nuacutemeros estes soacute satildeo reconhecidos para laacute da estese que suscitam quando a alma

racional se reconhece a si mesma dotada de sabedoria daiacute que embora natildeo seja possiacutevel

estabelecer uma ordem de precedecircncia entre a sabedoria e os nuacutemeros haacute pelo menos

ao niacutevel da percepccedilatildeo intelectual uma ordem de procedecircncia em que a sabedoria eacute

391

Cf De lib arb II 11 32

392 Cf De lib arb II 16 41 (CCL 29 p 266) onde falando da sapiecircncia Santo Agostinho diz laquoQuoquo

enim te verteris vestigiis quibusdam quae operibus suis impressit loquitur tibi et te in exteriora

relabentem ipsis exteriorum formis intro revocat ut quidquid te delectat in corpore et per corporeos

illicit sensus videas esse numerosum et quaeras unde sit et in teipsum redeas atque intellegas te id quod

attingis sensibus corporis probare aut improbare non posse nisi apud te habeas quasdam pulchritudinis

leges ad quas referas quaeque pulchra sentis exteriusraquo

135

considerada primeira em relaccedilatildeo ao nuacutemero jaacute que possibilita o reconhecimento dos

nuacutemeros Ora se os nuacutemeros funcionam eles proacuteprios como iacutendices de relaccedilatildeo e

pressupotildeem que haja um conhecimento preacutevio mesmo que parcelar daquilo que

indiciam eacute natural que o seu reconhecimento promova tambeacutem a compreensatildeo de tais

regras do belo que existem algures perto do sujeito e que natildeo satildeo outras senatildeo as regras

da verdade eterna393

Essas regras satildeo as Formas imutaacuteveis que natildeo tecircm qualquer

extensatildeo no espaccedilo ou no tempo mas a partir das quais tudo o que existe eacute formado de

acordo com o seu geacutenero para ocupar os nuacutemeros do espaccedilo e do tempo394

Os nuacutemeros

natildeo deixam de ser um elo entre as formas corpoacutereas ndash elas proacuteprias resultantes de uma

ordenaccedilatildeo da mateacuteria imposta pelos nuacutemeros ndash e as Formas exemplares que lhes

correspondem no plano inteligiacutevel mais concretamente na mente de Deus Daiacute que a

presenccedila de nuacutemeros seja proporcional agrave presenccedila de ser e que sem nuacutemeros os corpos

nada seriam395

O mais iacutenfimo grau de forma que subsiste num ser ainda que este tenda

ao perecimento e ao natildeo-ser adveacutem da Forma inteligiacutevel que eacute impereciacutevel e que

impede que os proacuteprios movimentos das coisas mutaacuteveis e mortais saiam do acircmbito

numeacuterico ndash da lei dos nuacutemeros (lex numerorum) Assim tudo o que de admiraacutevel as

criaturas suscitem qualquer que seja o seu grau de beleza deveraacute ser reportado ao

elogio do Criador A legitimidade das esteses eacute sempre uma questatildeo teleoloacutegica

Observa o ceacuteu e a terra e o mar e todas as coisas que brilham na esfera

superior ou que na inferior rastejam voam ou nadam eles tecircm formas

porque tecircm nuacutemeros retira-os e nada seratildeo De quem recebem ser senatildeo de

quem recebe ser o nuacutemero pois tecircm tanto mais ser quanto mais nuacutemero

Tambeacutem os artiacutefices que trabalham coisas corpoacutereas tecircm em tal arte nuacutemeros

que harmonizam a sua obra movem as suas matildeos e manuseiam instrumentos

nesse fabrico e quando a obra ndash que recebe do exterior a forma relacionada

com a luz luminosa que tem no interior pelos nuacutemeros ndash recebe tanto quanto

possiacutevel a completude e atraveacutes dos sentidos agrada ao juiz interior que

atende aos nuacutemeros superiores Procura de seguida aquilo que move os

393

Vide subcapiacutetulo 21 p 105

394 Cf De lib arb II 16 44

395 Cf Ibid Arthur Hilary Armstrong diz que todas as coisas existem na medida em que satildeo imagens das

Formas na mente divina satildeo coacutepias mais ou menos imperfeitas da perfeiccedilatildeo divina O que faz delas

imagens e o que lhes confere tal grau de ser eacute a posse do nuacutemero Arthur Hilary Armstrong An

Introduction to Ancient Philosophy Totowa Rowman amp Littlefield 1981 pp 213-214

136

membros do artiacutefice seraacute o nuacutemero pois tambeacutem ele se move segundo uma

medida numeral E se subtrai das matildeos a obra e da alma a intenccedilatildeo de

produzi-la e o movimento dos membros for relativo ao prazer esta acccedilatildeo

chamar-se-aacute danccedila Procura entatildeo o que daacute prazer na danccedila responder-te-aacute

o nuacutemero sou eu Vecirc agora a beleza da forma sensiacutevel satildeo os nuacutemeros

tomando lugar Vecirc a beleza do movimento sensiacutevel satildeo os nuacutemeros

povoando o tempo Penetra na arte de onde procedem procura nela o tempo

e o lugar natildeo encontraraacutes tempo nem lugar algum no entanto nela vive o

nuacutemero mas a sua regiatildeo natildeo eacute a dos espaccedilo nem a sua duraccedilatildeo a dos dias

no entanto aqueles que optam por se tornar artiacutefices quando se dispotildeem a

aprender a arte movem o seu corpo no espaccedilo e no tempo e a alma apenas

no tempo pois eacute com o passar do tempo que se tornam peritos Eleva-te

ainda para laacute da alma do artiacutefice para ver o nuacutemero sempiterno entatildeo a

sapiecircncia brilharaacute para ti da sua sede interior e do proacuteprio santuaacuterio da

verdade e se encandeia o teu olhar ainda deacutebil torna a volver o olho da

mente para aquela via onde se mostrava afaacutevel Recorda-te poreacutem que

afastaste de ti a visatildeo e que retornaraacutes a ela quando o teu olhar for mais satildeo e

forte396

Esta passagem permite compreender como o itineraacuterio per corporalia ad

incorporalia tem um pendor marcadamente esteacutetico Tal como acontece em De musica

tambeacutem em De libero arbitrio se mantecircm ecos da distinccedilatildeo plotiniana entre nuacutemeros

monaacutedicos e nuacutemero substancial agora com um certo escalonamento das realidades de

acordo com os nuacutemeros poreacutem uma vez mais haacute que referir que tal escalonamento eacute

sobretudo uma estrateacutegia com o fito de elucidar a permeabilidade que o nuacutemero faculta

396

Lib arb II 16 42 (CCL 29 p 266) laquoIntuere coelum et terram et mare et quaecumque in eis vel

desuper fulgent vel deorsum repunt vel volant vel natant formas habent quia numeros habent adime

illis haec nihil erunt A quo ergo sunt nisi a quo numerus quandoquidem in tantum illis est esse in

quantum numerosa esse Et omnium quidem formarum corporearum artifices homines in arte habent

numeros quibus coaptant opera sua et tamdiu manus atque instrumenta in fabricando movent donec

illud quod formatur foris ad eam quae intus est lucem numerorum relatum quantum potest impetret

absolutionem placeatque per interpretem sensum interno iudici supernos numeros intuenti Quaere deinde

artificis ipsius membra quis moveat numerus erit nam moventur etiam illa numerose Et si detrahas de

manibus opus et de animo intentionem fabricandi motusque ille membrorum ad delectationem referatur

saltatio vocabitur Quaere ergo quid in saltatione delectet respondebit tibi numerus Ecce sum Inspice

iam pulchritudinem formati corporis numeri tenentur in loco Inspice pulchritudinem mobilitatis in

corpore numeri versantur in tempore Intra ad artem unde isti procedunt quaere in ea tempus et locum

nunquam erit nusquam erit vivit in ea tamen numerus nec eius regio spatiorum est nec aetas dierum et

discendae arti tamen cum se accommodant qui se artifices fieri volunt corpus suum per locos et tempora

movent animum vero per tempora accessu quippe temporis peritiores fiunt Transcende ergo et animum

artificis ut numerum sempiternum videas iam tibi sapientia de ipsa interiore sede fulgebit et de ipso

secretario veritatis quae si adhuc languidiorem aspectum tuum reverberat refer oculum mentis in illam

viam ubi se ostendebat hilariter Memento sane distulisse te visionem quam fortior saniorque repetasraquo

137

entre a esfera superior e o mundo terreno e que de certo modo explica tambeacutem a

articulaccedilatildeo entre a sensaccedilatildeo o conhecimento e a sapiecircncia

Ao niacutevel dos sensibilia os nuacutemeros manifestam-se sobretudo como species397

conceito praticamente idecircntico ao de forma natildeo fora o uso mais especiacutefico que o Bispo

de Hipona lhe consigna ao utilizaacute-lo preferencialmente quando quer sublinhar a

dimensatildeo esteacutetica da forma na sua abertura agrave percepccedilatildeo sensiacutevel Nesta senda o nuacutemero

natildeo deixa de ser sinoacutenimo de beleza398

Em De ordine Santo Agostinho diz que soacute a

beleza agrada agrave razatildeo e que em uacuteltima instacircncia por traacutes desta beleza estaacute o nuacutemero399

Os nuacutemeros podem ser progressivamente menos belos pela distacircncia face ao Criador

mas natildeo podem ser totalmente desprovidos de beleza400

A species eacute de certo modo o caraacutecter manifestativo da forma pela atracccedilatildeo que

exerce sobre os sentidos A uma alma jaacute capacitada e fortalecida para perscrutar as

realidades superiores a species revela facilmente as relaccedilotildees numeacutericas que a

constituem mas se a species fala agrave sensibilidade o numerus natildeo eacute percebido pelos

sentidos corpoacutereos mas pela luz da razatildeo401

A ratio inferior poderaacute permitir a

proficiecircncia matemaacutetica e a mestria daqueles que trabalham as coisas corpoacutereas mas soacute

a ratio superior permite alcanccedilar a lei imutaacutevel que preside a todos os nuacutemeros e que

apenas eacute visiacutevel ao olho da inteligecircncia A este niacutevel eacute jaacute indiferente falar em nuacutemeros

ou em sabedoria Os nuacutemeros satildeo pois a forma da sabedoria divina presente no mundo

e que pode ser perscrutada pela mente humana naturalmente agradada e atraiacuteda por tal

presenccedila qualitativa

397

Cf Gen ad litt IV 3 7 (CSEL 281 p 99) laquo[hellip] et numerous omni rei speciem praebetraquo Sobre o

conceito de species consultar a p 49 da presente tese

398 Jaacute anteriormente referimos como por exemplo a beleza do corpo eacute expressa em termos de

congruentia numerosa (De civ Dei XXII 24) Vide p 39 da presente dissertaccedilatildeo

399 Cf De ord II 15 42 (CCL 29 p 130) laquoHinc est profecta in oculorum opes et terram coelumque

collustrans sensit nihil aliud quam pulchritudinem sibi placere et in pulchritudine figuras in figuris

dimensiones in dimensionibus numerosraquo Esta formulaccedilatildeo repete jaacute a ideia expressa em De lib arb II

16 41 (CCL 29 p 266) laquo[hellip] ut quidquid te delectat in corpore et per corporeos illicit sensus videas

esse numerosum [hellip]raquo que citaacutemos na nota 392 do presente subcapiacutetulo

400 De mus VI 17 56 (PL 32 c 1191) laquo[hellip] qui certe numeri minus minusque pulchri esse possunt

penitus vero carere pulchritudine non possunt [hellip]raquo

401 Cf De lib arb II 8 21 ndash 24

138

A originalidade da filosofia do nuacutemero em Santo Agostinho face agrave tradiccedilatildeo

plotiniana leva-nos a aventar a possibilidade de fontes retoacutericas como Varratildeo e Ciacutecero

terem a este niacutevel desempenhado um importante papel Ambos os autores satildeo citados

e encomiados por Santo Agostinho402

o primeiro natildeo tanto pelos meacuteritos do seu

estilo ndash que aliaacutes o Bispo de Hipona considerava bastante desagradaacutevel ndash mas pela

riqueza de doutrina e pensamento sobretudo no que concerne as ordens do saber liberal

Com efeito entre as muitas obras que Varratildeo escreveu conta-se o compecircndio

conhecido por Disciplinarum libri IX que Santo Agostinho teraacute natildeo soacute utilizado

enquanto aluno mas tambeacutem como professor403

Nesta obra que se supotildee ter

desaparecido entre os seacuteculos VI e VII Varratildeo propunha nove disciplinas para o

curriacuteculo romano a partir das quais mais tarde nasceriam as sete artes liberais

Infelizmente natildeo haacute como saber o teor destes tratados que certamente influenciaram a

via gradativa da razatildeo atraveacutes das artes liberais desenvolvida por Santo Agostinho em

De ordine no entanto haacute um poema epistolar da autoria de Licecircncio404

que nos autoriza

a colocar a hipoacutetese de que os Disciplinarum libri IX estariam imbuiacutedos de uma

matemaacutetica miacutestica que apesar de natildeo ter encontrado seguimento no neoplatonismo

plotiniano poderaacute ter estado na base das consideraccedilotildees agostinianas sobre o nuacutemero

Na epiacutestola em verso que Licecircncio remete a Santo Agostinho o jovem expotildee as

suas preocupaccedilotildees intelectuais e solicita uma coacutepia de De musica Os primeiros versos

da sua carta que se crecirc ter sido escrita por volta de 395 testemunham a leitura dos

nouem libri disciplinarum de Varratildeo ndash indiciando de que se tratava de uma obra

402

Relativamente a Varratildeo cf De civ Dei VI 2 et seq XIX 1 1 et seq De De ord II 12 35 para

Ciacutecero a mais famosa passagem eacute a de Conf III 4 7 onde Santo Agostinho refere a importacircncia desta

obra na sua adesatildeo agrave filosofia e no caminho que o leva agrave conversatildeo

403 Acerca de outras obras de Varratildeo que Santo Agostinho teraacute utilizado cf Allan D Fitzgerald (ed)

Augustine Through the Ages An Encyclopedia Cambridge Wm B Eerdmans Publishing 1999 p 863

Sobre a existecircncia em concreto do compecircndio Disciplinarum libri IX que tem encontrado alguns

resistentes ao longo da histoacuteria da filosofia cf Vitruacutevio De architectura VII 14 laquo[hellip] item Terentius

Varro de novem disciplinis unum de architectura [hellip]raquo Os fragmentos das obras varronianas foram

compilados traduzidos e publicados em Pietro Canal Federico Brunetti (eds) M Terenti Varronis Libri

De Lingua et Fragmenta Quae Supersunt Ominia Veneza Giuseppe Antonelli 1874 Fragmentos que se

supotildeem ser da obra perdida De novem disciplinis foram analisados por Friedrich Wilhelm Ritschl em De

M Terentii Varronis disciplinarum libris commentarius Bonn 1845 (texto reeditado em F Ritschl

Opuscula philologica Vol III Leipzig Teubner 1877 pp 353-402)

404 Licecircncio era um jovem disciacutepulo de Santo Agostinho que o acompanhou durante o retiro de

Cassiciacuteaco logo apoacutes a sua conversatildeo O filoacutesofo refere-se ao seu talento poeacutetico em De ord I 5

139

estudada pelos disciacutepulos de Santo Agostinho sobre sua orientaccedilatildeo ndash e revelam ecos de

um pitagorismo onde a miacutestica e o nuacutemero satildeo inseparaacuteveis

Ao estudar a via misteriosa e profunda de Varratildeo a minha mente

desinteressa-se e foge aterrorizada da luz natildeo admira pois colapsa toda a

minha atenccedilatildeo face agrave leitura quando natildeo me estaacutes dando a matildeo e [a minha

mente] teme elevar-se sozinha logo que sobre os densos livros do grande

homem o teu afecto me exorta a debruccedilar e a alcanccedilar os sacros sentidos

que consignou agraves harmonias dos nuacutemeros e com que expocircs que o universo

canta em honra do Troante e potildee em marcha os movimentos regulares o

meu peito fica envolto por um nevoeiro instaacutevel e a aspereza dos assuntos

[aiacute tratados] conduz uma nuvem ao meu espiacuterito procuro qual insensato as

formas essenciais das figuras desenhadas na areia e colido com outras trevas

ainda mais densas em suma com a questatildeo sobre as causas das estrelas e

dos seus claros meatos cujas posiccedilotildees obscuras ele aponta atraveacutes das

nuvens 405

A via misteriosa e profunda de Varratildeo diz respeito aos Disciplinarum libri onde

entre outros estavam contemplados tratados acerca da geometria da aritmeacutetica da

astrologia e da muacutesica Eacute curioso notar que a resistecircncia de Licecircncio ante tal cosmologia

matemaacutetica herdeira directa do pitagorismo parece assentar sobretudo no caraacutecter

miacutestico de tal abordagem Ora pela resposta agostiniana a esta missiva compreende-se

que o mestre hiponense se preocupa precisamente com a incapacidade de Licecircncio

perceber a ligaccedilatildeo entre a esfera sensiacutevel e a esfera superior enredando-se nas

voluptuosidades da primeira e desprezando o caminho que a razatildeo pode empreender ateacute

405

laquoArcanum Varronis iter scrutando profundi mens hebet adversamque fugit conterrita lucem nec

mirum iacet omnis enim mea cura legendi te non dante manum et consurgere sola veretur nam simul ut

perplexa viri compendia tanti volvere suasit amor sacrosque attingere sensus quis numerum dedit ille

tonos mundumque Tonanti disseruit canere et pariles agitare choreas implicuit varia nostrum caligine

pectus induxitque animo rerum violentia nubem inde figurarum positas in pulvere formas posco amens

aliasque graves offendo tenebras ad summam astrorum causas clarosque meatus obscuros quorum ille

situs per nubila monstratraquo A transcriccedilatildeo completa deste texto do qual aqui soacute traduzimos um fragmento

encontra-se em Ep 26 (CSEL 341 pp 89-95) onde se percebe a reacccedilatildeo negativa de Santo Agostinho

face agraves dificuldades de Licecircncio Para uma exegese desta carta-poema cf Danuta Shanzer ldquolsquoArcanum

Varronis iterrsquo Licentiusrsquos Verse Epistle to Augustinerdquo in REAug 37 1991 pp 110-143 Neste artigo

Danuta Shanzer contraria a posiccedilatildeo de Ilsetraut Hadot acerca da influecircncia dos Disciplinarum libri de

Varratildeo em Santo Agostinho e fundamenta a sua perspectiva de que a via de Varratildeo a que o poema de

Licecircncio se refere corresponde efectivamente a esta obra perdida

140

agrave segunda406

Santo Agostinho natildeo chega a enviar o seu De musica talvez por recear

confundir ainda mais o espiacuterito atormentado de Licecircncio

A anaacutelise ao conceito de nuacutemero em Santo Agostinho natildeo fica no entanto

completa sem uma abordagem que o integre na famosa triacuteade biacuteblica Deus dispocircs tudo

com medida nuacutemero e peso (Sab 11 20) Na exegese desta passagem Santo Agostinho

adverte para que natildeo se vejam estas ideias apenas nas naturezas fiacutesicas sob pena de

ficarmos escravos dos sentidos e exorta ao conhecimento das relaccedilotildees que ligam as

verdades contingentes agraves verdades absolutas407

Natildeo quer com isto dizer que Deus tenha

feito uso de outros princiacutepios superiores para dispor estas mesmas relaccedilotildees segundo as

quais o mundo foi ordenado mas sim que elas estatildeo para laacute do mundo Em Deus a

medida o nuacutemero e o peso subsistem independentemente de quaisquer medidas

nuacutemeros e pesos408

isto porque se constituem como perfeiccedilotildees divinas

Eacute a unidade de Deus que determina toda a medida eacute a sua sabedoria que produz

toda a beleza e a sua lei que estabelece toda a ordem409

A terminologia agostiniana

por vezes muda falando do corpo efectivamente refere a unidade concertada dos

membros e dos oacutergatildeos dispostos segundo uma moderaccedilatildeo da medida uma igualdade

do nuacutemero e uma ordem do peso410

mas desde logo se percebe que a triacuteade se assume

tambeacutem como modus species e ordo em De natura boni contra Manichaeos Santo

Agostinho refere-se-lhe como uma triacuteade de bens gerais que podemos encontrar em

todas as coisas criadas por Deus sejam elas espirituais ou corporais411

406

Ep 26 2 (CSEL 341 p 84) laquoMi Licenti etiam atque etiam recusantem et formidantem compedes

sapientiae timeo te rebus mortalibus validissime et perniciosissime compediriraquo

407 Gen ad litt IV 4 9 (CSEL 281 p 101) laquo Scire oportet tamen cuiusmodi similitudo est inferiorum ad

superiora Non enim aliter recte hinc illuc ratio tendit et nititurraquo Contra Faust XXI 6

408 Gen ad litt IV 4 8 (CSEL 281 p 100) laquoMensura autem sine mensura est cui aequatur quod de illa

est nec aliunde ipsa est numerus sine numero est quo formantur omnia nec formatur ipse pondus sine

pondere est quo referuntur ut quiescant quorum quies purum gaudium est nec illud iam refertur ad

aliudraquo

409 Cf Contra Faust XXI 6

410 Ibid (CSEL 251 p 575) laquoQuid in ipsa carne vitalia viscera totius formae convenientia membra

operandi vasa sentiendi locis atque officiis suis cuncta distincta et concordi unitate contexta

moderatione mensurarum parilitate numerorum ordine ponderum nonne indicant artificem suum Deum

verum cui vere dictum est Omnia in mensura et numero et pondere disposuistiraquo

411 De nat boni 3 (CSEL 25 p 856) laquo[hellip] haec ergo tria modus species ordo tamquam generalia bona

sunt in rebus a Deo factis sive in spiritu sive in corporeraquo

141

De acordo com Hans Urs von Balthasar na articulaccedilatildeo de ambas as triacuteades

resulta que pelo par mensura modus o modo de ser se torna medida do ser ordenado

por Deus e corresponde agrave unidade e agrave causa eficiente pelo par numerus species a

forma do ser e do conhecimento faculta a esta essecircncia a sua verdade e a sua posiccedilatildeo no

conjunto das coisas assumindo sobretudo o aspecto da beleza (species) e corresponde agrave

causa exemplar pelo par pondus ordo a ordem permite a atracccedilatildeo para Deus e para as

outras criaturas correspondendo ao bem e agrave causa final412

Aleacutem de constituintes da realidade existente no mundo sensiacutevel a medida o

nuacutemero e o peso de certo modo parecem fazer tambeacutem parte da virtualidade das razotildees

seminais pois em De Trinitate o Bispo de Hipona referindo-se agraves causas segundas e

contingentes (accedentes causae) diz que elas favorecem o desenvolvimento raacutepido e

suacutebito de certos seres que repousam escondidos nas profundezas da natureza tais seres

satildeo criados graccedilas agrave irrupccedilatildeo das suas forccedilas vitais isto eacute ao desenvolvimento das suas

proacuteprias medidas nuacutemeros e pesos que Deus secretamente lhes outorgou segundo

medida nuacutemero e peso413

A repeticcedilatildeo da triacuteade natildeo eacute tautoloacutegica pois reporta-se em

primeiro lugar agraves caracteriacutesticas das criaturas e em segundo lugar agrave natureza do

criador Eacute graccedilas agraves medidas aos nuacutemeros e agrave bela ordem que as criaturas apresentam

que elas merecem louvor quando tomadas individualmente no seio da criaccedilatildeo414

No

fundo a louvaacutevel beleza da individualidade das criaturas eacute sempre relativa ao Criador

pelo que acaba por ser sempre Ele a razatildeo e o alvo dos encoacutemios A benevolecircncia e a

abertura agostinianas para com todas as formas de existecircncia colhem aqui a sua

justificaccedilatildeo Mesmo ignorando que finalidade cumprem os ratos as ratildes as moscas ou os

vermes Santo Agostinho reconhece que no seu geacutenero eles satildeo bons os membros dos

seus corpos natildeo deixam de estabelecer relaccedilotildees de medida e de proporcionalidade

equivalentes agraves das coisas belas pois reportam-se de um modo exacto agrave unidade do

conjunto e radicam na suma medida no nuacutemero e na suma ordem que subsistem na

imutaacutevel e eterna perfeiccedilatildeo de Deus Mesmo que existam espeacutecies que nos pareccedilam

412

Hans Urs von Balthasar op cit p 336

413 Cf De Trin III 9 16 (CCL 50 p 146) laquoAdhibere autem forinsecus accedentes causas quae tametsi

non sunt naturales tamen secundum naturam adhibentur ut ea quae secreto naturae sinu abdita continentur

erumpant quodam modo et foris creentur explicando mensuras et numeros et pondera sua quae in occulto

acceperunt ab illo qui omnia in mensura et numero et pondere disposuitraquo

414 Cf De Gen cont Man I 21 32

142

nocivas e outras que nos pareccedilam supeacuterfluas elas fazem parte da integridade do

universo que eacute bem superior agrave casa que noacutes habitamos415

O filoacutesofo quer com isto

dizer que a nossa situaccedilatildeo no mundo soacute nos permite uma visatildeo e uma compreensatildeo

parcial do que nos rodeia mas tal limitaccedilatildeo de perspectiva pode ser superada se

atendermos agrave medida ao nuacutemero e agrave ordem que nas criaturas remetem para o Criador Eacute

notoriamente um apelo agrave assunccedilatildeo de uma perspectiva eacutetico-esteacutetica que segundo Santo

Agostinho eacute frutuosa

Certamente todos os animais satildeo para noacutes uacuteteis nocivos ou supeacuterfluos

Contra aqueles que satildeo uacuteteis eles [os maniqueiacutestas] nada tecircm a dizer Os

animais nocivos servem para nos punir ou para colocar agrave prova a nossa

virtude ou para nos assustar de modo a que procuremos com o meacuterito da

obra inspirada na feacute amar e desejar natildeo a vida presente sujeita a muitos

perigos e trabalhos mas uma outra melhor onde haacute soberana seguranccedila

Quanto aos animais supeacuterfluos de que havemos de nos queixar Se te

desagrada que natildeo sejam vantajosos apraz-te que natildeo sejam nocivos mesmo

que natildeo sejam necessaacuterios para a nossa casa servem para completar a

integridade deste universo que eacute muito maior e muito melhor do que a nossa

casa Com efeito Deus governa o universo muito melhor do que cada um de

noacutes governa a sua proacutepria casa Serve-te entatildeo dos [animais] que satildeo uacuteteis

evita os nocivos e ignora os supeacuterfluos Natildeo obstante ao veres em todos os

seres a medida o nuacutemero e a ordem procura o criador Natildeo encontraraacutes

nenhum outro senatildeo aquele no qual estaacute a suma medida e o sumo nuacutemero e

a suma ordem isto eacute Deus de quem eacute dito com absoluta verdade que tudo

dispocircs com medida nuacutemero e peso Assim talvez possas colher melhor o

fruto quando louvas a Deus na pequenez da formiga do que quando

atravessas o rio sobre o dorso de qualquer jumento416

415

Cf De Gen cont Man I 16 26

416 Ibid (CSEL 91 pp 93-94) laquoEt certe omnia animalia aut utilia nobis sunt aut perniciosa aut

superflua Adversus utilia non habent quid dicant De perniciosis autem vel punimur vel exercemur vel

terremur ut non vitam istam multis periculis et laboribus subditam sed aliam meliorem ubi securitas

summa est diligamus et desideremus et eam nobis pietatis meritis comparemus De superfluis vero quid

nobis est quaerere Si tibi displicet quod non prosunt placeat quod non obsunt quia etsi domui nostrae

non sunt necessaria eis tamen completur huius universitatis integritas quae multo maior est quam domus

nostra et multo melior Hanc enim multo melius administrat Deus quam unusquisque nostrum domum

suam Usurpa ergo utilia cave perniciosa relinque superflua In omnibus tamen cum mensuras et

numeros et ordinem vides artificem quaere Nec alium invenies nisi ubi summa mensura et summus

numerus et summus ordo est id est Deum de quo verissime dictum est quod omnia in mensura et

numero et pondere disposuerit Sic fortasse uberiorem capies fructum cum Deum laudas in humilitate

formicae quam cum transis fluvium in alicuius iumenti altitudineraquo

143

A dimensatildeo trinitaacuteria da realidade criada eacute modelada pela Trindade divina417

Deus que outorga a tudo o que existe uma medida e um limite eacute mensura sine

mensura418

e summus modus o que natildeo soacute equivale a dizer que Deus eacute o sumo bem

como tambeacutem que o seu reino natildeo tem fim (Luc 1 33)419

A medida reporta-se ao Pai

por ser um princiacutepio que predetermina os termos sequentes

Deus eacute tambeacutem o numerus sine numero e o summus numerus420

e a este niacutevel o

Bispo de Hipona depara-se com a questatildeo de que apesar de Deus ser infinitude para

noacutes para si mesmo ele de algum modo tem de ser determinado na forma como entende

a sua proacutepria eternidade uma vez que mesmo sendo os nuacutemeros infinitos eles natildeo

escapam na sua infinitude ao conhecimento de Deus Ateacute a infinitude e a

indeterminaccedilatildeo satildeo finitas e determinadas em Deus421

Haacute uma associaccedilatildeo do par

numerus species agrave segunda pessoa da Santiacutessima Trindade ndash o Filho422

ndash que era jaacute

expectaacutevel dada a identificaccedilatildeo entre a sabedoria e o nuacutemero

Deus eacute o peso absoluto ndash o pondus sine pondere ou centro gravitacional para

onde tudo converge para aiacute encontrar o equiliacutebrio e o repouso423

O peso eacute a fonte da

stabilitas e da quies por isso encontra par com o ordo Em De Trinitate o Espiacuterito

Santo eacute precisamente apresentado como o doce lugar daquele que gera e daquele que eacute

gerado e que se dissemina com generosidade e abundacircncia sobre todas as criaturas

ordenando-as424

Possibilitado pelo amor ele eacute o dom (donum)425

onde apaziguamos as

417

Cf De mus VI 17 56 e De Trin VI 10 12

418 Cf De Gen ad litt IV 4 8

419 Cf De nat boni 22

420 Cf De Gen ad litt IV 4 8 De Gen cont Man I 16 26 En in Ps CXLVI 2

421 Cf De civ Dei XII 18 O mesmo parece dizer Plotino em En VI 6 3 quando refere que no mundo

inteligiacutevel o infinito eacute determinado mas natildeo eacute menos infinito jaacute que essa determinaccedilatildeo se reporta agrave

infinitude e natildeo ao termo e que entre ambos natildeo haacute qualquer mediaccedilatildeo nem determinaccedilatildeo ou em En VI

6 18 quando eacute dito que no mundo inteligiacutevel qualquer nuacutemero eacute finito jaacute que eacute impossiacutevel conceber um

nuacutemero maior do que o Nuacutemero superior ao qual nenhum outro falta nem nenhum outro poderaacute ser

acrescido

422 Cf De mus VI 17 56 De Trin VI 10 11

423 Cf De Gen ad litt IV 4 8

424 De Trin VI 10 11 (CCL 50 p 241) laquo[hellip] et est in Trinitate Spiritus Sanctus non genitus sed

genitoris genitique suavitas ingenti largitate atque ubertate perfundens omnes creaturas pro captu earum

ut ordinem suum teneant et locis suis acquiescantraquo

144

nossas almas refere o Bispo de Hipona em Confessionum426

Ordem estabilidade e amor

marcam pois o discurso agostiniano sobre a terceira pessoa da Santiacutessima Trindade

reflectindo-se nas criaturas que ocupam um lugar especiacutefico na ordem universal de

acordo com o seu peso Minus ordinata inquieta sunt ordinantur et quiescunt Pondus

meum amor meus427

Para as almas racionais o peso eacute a ponderaccedilatildeo expressa nos actos

morais na justa medida dos sentimentos eacute como uma balanccedila para a vontade e para o

amor evitando que a desordem se instale pelas paixotildees e equilibrando a intensidade dos

desejos e do verdadeiro amor (caritas) cuja fonte eacute precisamente o Espiacuterito Santo

(Rom 55)428

425

Cf De Trin V 15 16

426 Conf XIII 9 10 (CCL 27 p 246-247) laquoCur ergo tantum de spiritu tuo dictum est hoc Cur de illo

tantum dictum est quasi locus ubi esset qui non est locus de quo solo dictum est quod sit donum tuum

In dono tuo requiescimus ibi te fruimur Requies nostra locus nosterraquo

427 Ibid

428 Cf Ibid e De Trin XV 21 41

145

2 2 2 Unidade multiplicidade e ordem

Os nuacutemeros soacute existem porque haacute multiplicidade O Deus cristatildeo que Santo

Agostinho descreve eacute devedor do legado neoplatoacutenico natildeo apenas quanto ao conceito de

substacircncia espiritual mas tambeacutem quanto ao seu cariz uno e simples O Bispo de

Hipona vai no entanto mais longe ao compreender que a unidade divina natildeo obsta a

que o primeiro princiacutepio possa ser concebido de modo trinitaacuterio integrando assim a

multiplicidade de pessoas divinas na essecircncia una de Deus

Fora do esquema emanacionista plotiniano a trindade cristatilde natildeo pressupotildee

degradaccedilatildeo de hipoacutestase para hipoacutestase uma vez que a diferenccedila eacute equacionada em

termos relacionais sem gorar a identidade essencial429

O Pai gera o Filho por pura

gratuitidade ou bondade surgindo a alteridade natildeo como uma diferenccedila ontoloacutegica mas

como uma semelhanccedila perfeita eternamente subsistente Este espelhamento de si mesmo

que ocorre a partir do Pai no Filho imediatamente gera dois modos de relaccedilatildeo o da

paternidade e o da filiaccedilatildeo O Pai eacute ingeacutenito e eacute o ipsum esse (Ex 3 14) deum non ex

deo430

ex ipso (Rom 11 36)431

principium sine principio432

tambeacutem biblicamente

identificado como caritas (1 Jo 4 16) O Filho per ipsum433

eacute o outro do Pai embora

consubstancial434

pode reconhecer a sua identidade no Pai pois manteacutem com ele uma

429

De Trin VII 6 11 (CCL 50 p 265) laquoAt in Deo non ita est non enim maior essentia est Pater et

Filius simul quam solus Pater aut solus Filius sed tres simul illae substantiae sive Personae si ita

dicendae sunt aequales sunt singulis [hellip]raquo

430 Cf De grat et lib arb 19 40

431 Cf De Trin I 6 12

432 Cf De ord II 5 16

433 Cf De Trin I 6 9

434 Na verdade como Santo Agostinho rejeita que a compreensatildeo da natureza de Deus possa assentar no

quadro categorial aristoteacutelico a utilizaccedilatildeo do conceito de consubstancialidade natildeo eacute preferiacutevel agrave de

146

comunidade de essecircncia que enquanto tal eacute reciacuteproca contrariamente ao processo de

geraccedilatildeo A reciprocidade da relaccedilatildeo entre Pai e Filho desde logo acrescenta uma terceira

dinacircmica ndash a da doaccedilatildeo ndash e uma terceira singularidade tambeacutem ela eternamente

subsistente ndash o Espiacuterito Santo A doaccedilatildeo eterna e reciacuteproca entre Pai e Filho eacute a proacutepria

relaccedilatildeo da essecircncia divina que se exprime pelos termos donum dilectio ou caritas

assim o Espiacuterito Santo eacute uma singularidade comum agraves duas outras pessoas divinas que

tem por caracteriacutestica distintiva ou identidade proacutepria a unidade que resulta da muacutetua

doaccedilatildeo de dois diferentes ndash do Pai e do Filho435

A comunhatildeo entre Pai e Filho eacute

diferente do Pai e diferente do Filho resultando pois numa terceira pessoa

essencialmente idecircntica agraves anteriores e como elas eternamente subsistente

Dizer que Deus eacute o summus numerus e o numerus sine numero436

significa

tambeacutem que a sua unidade eacute lugar de relaccedilatildeo e logo de multiplicidade Deus Uno-

Trino abre-se ao mundo da contingecircncia humana como Ser Verdade Beleza e Bem

agregando num uacutenico princiacutepio o que a henologia plotiniana cindia pelas duas primeiras

hipoacutestases e determinando contrariamente a Plotino que o primeiro princiacutepio possa ser

acessiacutevel ao conhecimento Tambeacutem em desacordo com a perspectiva necessitarista

neoplatoacutenica da emanaccedilatildeo Santo Agostinho concebe a multiplicidade como uma

expressatildeo da gratuita benevolecircncia de Deus pelo que natildeo deve ser considerada como

tendencialmente maacute Ao inveacutes se a multiplicidade manifesta a bondade de Deus ela

proacutepria estaacute imbuiacuteda desse caraacutecter O Deus Uno-Trino repercute-se na estrutura triaacutedica

das criaturas por si dispostas segundo medida nuacutemero e peso que por isso indiciam a

sua origem constituindo-se como vestiacutegios Tambeacutem as criaturas satildeo boas muito boas

coessencialidade Para o Bispo de Hipona agrave luz dos predicamentos de substacircncia e de acidentes eacute

impossiacutevel explicar a essecircncia simplex et multiplex de Deus sem cair na heresia ariana ou sem gorar a

dinacircmica relacional da unidade que no interior de si mesma se comunica e doa Eacute precisamente por

constatar tal limitaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo das categorias aristoteacutelicas ao entendimento de Deus pelo homem que

Santo Agostinho propotildee a par da predicaccedilatildeo secundum substantia a predicaccedilatildeo secundum relatiuum ndash a

primeira presta-se agrave concepccedilatildeo relacional de Deus como Unidade e a segunda como Trindade sendo

impossiacutevel dadas as limitaccedilotildees naturais da razatildeo humana compreender em simultacircneo ambas as

dimensotildees da essecircncia divina Para um melhor entendimento destas questotildees cf Paula Oliveira e Silva

laquoSimplex et Multiplex A essecircncia de Deus como ordem supremaraquo in Maria Leonor Xavier (coord) A

Questatildeo de Deus na Histoacuteria da Filosofia vol 1 Sintra Zeacutefiro 2008 pp 405-423 e Joseacute Rosa ldquoO

Primado da Relaccedilatildeo Da Intencionalidade trinitaacuteria da Filosofiardquo in Didaskalia 36 2006 pp 139-170

435 De Trin VI 5 7 (CCL 50 p 235) laquoSpiritus ergo sanctus commune aliquid est Patris et Filii quidquid

illud estraquo

436 Vide nota 408

147

segundo o relato biacuteblico da proacutepria consideraccedilatildeo divina acerca do que havia criado (Gn

1 31) natildeo sendo de estranhar que Deus as abenccediloe dizendo-lhes ldquoCrescei e

multiplicai-vosrdquo (Gn 1 22)

Natildeo soacute a criaccedilatildeo eacute plural como cada criatura tomada individualmente revela natildeo

possuir uma verdadeira unidade Apesar de ser possiacutevel encontrar em todos os corpos

traccedilos de unidade natildeo eacute possiacutevel por mais belo que um corpo seja considerar que nele

se concretiza uma unidade perfeita ndash se assim fosse natildeo estariacuteamos face a um corpo437

A sua natureza espaacutecio-temporal implica que os corpos acusem invariavelmente a

multiplicidade em si mesmos eles tecircm sempre uma pluralidade de partes e por menores

que sejam pode reconhecer-se neles uma parte direita e uma parte esquerda uma parte

superior opondo-se agrave inferior uma parte posterior a par da anterior Todos os corpos

tecircm um centro e extremidades o que torna desadequado considerar que sejam

verdadeiramente unos438

A constataccedilatildeo de tal ausecircncia de unidade pura nas criaturas

implica no entanto que haja um conhecimento da unidade pois soacute assim haacute certeza de

que os corpos natildeo a possuem Diz Santo Agostinho que ao saber que ela natildeo existe

num corpo sabe o que eacute a unidade439

Tal como sucedia com a percepccedilatildeo dos nuacutemeros

inacessiacuteveis aos sentidos exteriores esse reconhecimento da ausecircncia de unidade nada

tem que ver com a sensaccedilatildeo

Os nuacutemeros como anteriormente referimos satildeo tambeacutem iacutendices de relaccedilatildeo entre

a unidade e a multiplicidade e embora soacute a razatildeo os perceba enquanto tais eles

promovem para os sentidos exteriores uma seacuterie de qualidades esteacuteticas que natildeo soacute

acusam a proacutepria presenccedila como remetem para a unidade que os originou440

Tais

qualidades satildeo exprimidas em conceitos como modulatio proportio coaptatio

congruentia convenientia consonantia rhythmus integritas aequalitas ou mesmo

ordo Todos eles situam a questatildeo do belo ao niacutevel da articulaccedilatildeo entre os pares

437

Cf De ver relig XXXII 60

438 cf De lib arb II 8 22

439 Ibid (CCl 29 p251) laquoCum enim quaero unum in corpore et me non invenire non dubito novi utique

quid ibi quaeram et quid ibi non inveniam et non posse inveniri vel potius omnino ibi non esse Ubi

ergo novi quod non est corpus unum Unum enim si non nossem multa in corpore numerare non

possemraquo

440 De mus VI 17 56 (PL 32 c 1191) laquoNumerus autem et ab uno incipit et aequalitate ac similitudine

pulcher est et ordine copulaturraquo

148

dicotoacutemicos todo partes e unidade multiplicidade convergindo no universo do

numerus e orientando-se para a ideia de ordem

A modulatio implica as noccedilotildees de medida e de duraccedilatildeo de fluxos441

podendo

considerar-se como a ordenaccedilatildeo racional escandida do movimento Em De musica

Santo Agostinho emprega o conceito de modulatio para referir a presenccedila de uma

medida fixa nos movimentos da voz que canta ou do corpo que danccedila442

No fundo

trata-se de submeter o movimento ao numerus com vista a uma proporcionalidade que

harmoniza as suas partes e que contribui para uma percepccedilatildeo mais integrada da forma

em questatildeo Tal coerecircncia que os trechos partilham pela modulatio faz com que o seu

conjunto se configure mais unificado dada a possibilidade de perceber as relaccedilotildees entre

as partes sejam elas estruturas riacutetmicas ou movimentos cadenciados dos corpos O

objectivo da modulatio eacute causar deleite por si443

Ao dizer que agrada por si Santo

Agostinho alude no entanto agrave harmonia da relaccedilatildeo das partes nos movimentos ainda

que tidos independentemente de qualquer subordinaccedilatildeo a uma realidade final A

conveniecircncia das partes natildeo eacute alheia a uma espeacutecie de beleza moral interna ndash a um

decoro ndash pelo que tambeacutem natildeo se limita ao caraacutecter utilitaacuterio ou agrave linear relatividade da

adequaccedilatildeo das partes em relaccedilatildeo ao todo que compotildeem entre si A conveniecircncia das

partes pode portanto ser reportada a uma dimensatildeo interna em que cada parte no seio

do conjunto orgacircnico que constitui realiza a sua beleza singular ndash e a este niacutevel a

conveniecircncia assume-se como decor ou decus ndash ou pode reportar-se a uma dimensatildeo

externa em que o conjunto de partes demonstra uma conformidade desse organismo

composto por partes relativamente a todos os demais ndash a este niacutevel a conveniecircncia eacute

mais geralmente assumida como aptum Note-se que um elemento pode considerar-se

aptum reconhecendo-se-lhe certa beleza na adequaccedilatildeo que manteacutem com os seus pares

sem necessariamente lhe ser reconhecido um decus ou vice-versa Por exemplo em De

musica Santo Agostinho diz que um canto belo poder ser desadequado ou inconveniente

quando provoca alegria num contexto que exigiria grande solenidade ou gravidade444

441

Note-se que o verbo modulor natildeo soacute significa marcar o ritmo compor versos ou tocar mas tambeacutem

medir regular

442 Cf De mus I 2 2

443 De mus I 2 3 (PL 32 c 1084) laquoErgo scientiam modulandi iam probabile est esse scientiam bene

movendi ita ut motus per se ipse appetatur atque ob hoc per se ipse delectetraquo

444 Cf De mus I 3 4

149

Neste caso haacute decus sem aptum Um exemplo de aptum sem decus eacute dado pelo Bispo

de Hipona quando explica que as almas pecadoras perdem o seu decus sem no entanto

deixarem de ser boas no conjunto e na totalidade da obra da criaccedilatildeo jaacute que satildeo

ordenadas com rectitude445

Quer em relaccedilatildeo agrave conveniecircncia interna quer em relaccedilatildeo agrave conveniecircncia externa

eacute sempre a adaptaccedilatildeo das partes (coaptatio ou congruentia) que estaacute em jogo Com

efeito estes satildeo os termos a que o Bispo de Hipona mais recorre para definir a beleza do

corpo humano em De civitate Dei Omnis enim corporis pulchritudo est partium

congruentia cum quadam coloris suavitate446

Mais adiante nesta obra o filoacutesofo

explica as implicaccedilotildees da congruentia e da coaptatio na beleza do corpo

[hellip] a proporccedilatildeo (congruentia numerosa) de todas as partes eacute tatildeo

harmoniosa e corresponde a tatildeo bela paridade que natildeo poderemos saber se

aquando da sua criaccedilatildeo foi tida mais em conta a razatildeo da utilidade ou a da

beleza Efectivamente eacute certo que nada vemos ter sido criado no corpo por

causa da utilidade que natildeo tenha tambeacutem beleza Tal seria ainda mais

evidente para noacutes se conhececircssemos os nuacutemeros das medidas pelos quais

todas as partes satildeo ligadas e ajustadas entre si [hellip] todavia estes nuacutemeros

de que falo e pelos quais se compotildee dentro e fora de todo o corpo o acordo

(coaptatio) a que os gregos chamam ἁρμονία como se fosse um instrumento

musical terei eu de confessar que ningueacutem os pocircde encontrar que ningueacutem

se atreveu a procuraacute-los [hellip]447

Eacute com frequecircncia que Santo Agostinho recorre ao termo harmonia ndash sinoacutenimo

de coaptatio ndash ateacute porque se trata de um substantivo que se presta particularmente bem

ao cariz musical com que as suas descriccedilotildees da beleza estatildeo eivadas448

Dois outros

445

Cf De Gen ad litt III 24 37

446 De civ Dei XXII 19 (CCL 48 p 840) Ep 3 4 (CSEL 341 p 8) laquoQuid est corporis pulchritudo

Congruentia partium cum quadam coloris suavitateraquo

447 De civ Dei XXII 24 (CCL 48 p 850) laquo[hellip] omnium partium congruentia numerosa sit et pulchra

sibi parilitate respondeat ut nescias utrum in eo condendo maior sit utilitatis habita ratio quam decoris

Certe enim nihil videmus creatum in corpore utilitatis causa quod non habeat etiam decoris locum Plus

autem nobis id appareret si numeros mensurarum quibus inter se cuncta connexa sunt et coaptata [hellip]

numeros tamen de quibus loquor quibus coaptatio quae ἁρμονία Graece dicitur tamquam cuiusdam

organi extrinsecus atque intrinsecus totius corporis constat quid dicam nemo valuit invenire quos nemo

ausus est quaerereraquo

448 A tiacutetulo de exemplo para aleacutem da uacuteltima periacutecope cf De imm an 2 2 De civ Dei II 21 XXII 19

XXII 30 De Trin IV 2 4 De Gen ad litt X 21 37 (nestas duas uacuteltimas obras tal como no trecho

citado Santo Agostinho usa o termo grego fazendo-o explicitamente equivaler agrave coaptatio)

150

termos que a esteacutetica agostiniana partilha com o universo da muacutesica satildeo o rhythmus e a

consonantia Este uacuteltimo serve sobretudo agrave descriccedilatildeo da proporccedilatildeo 21449

O primeiro

reporta-se a uma sequencialidade de peacutes (pedes) ou seja a um sistema de tempos

comportando uma ratio450

Esta ratio eacute determinada pela relaccedilatildeo de dois tempos que

podem ser marcados pela levatio e pela positio agraves quais Santo Agostinho faz referecircncia

em De musica como sendo o levantar e o baixar da matildeo de acordo com a particcedilatildeo dos

peacutes451

Os peacutes satildeo assim chamados pois na realidade a levatio e a positio correspondem

agrave ἄρσις e agrave θέσις com que os gregos mediam os tempos musicais levantando ou

baixando natildeo a matildeo mas o peacute Esta marcaccedilatildeo dos tempos de relaxamento e dos tempos

de tensatildeo diz respeito agrave cadecircncia quer em termos de pausas quer em termos de intensidade

podendo indicar por exemplo um aumento ou uma diminuiccedilatildeo no tom de voz

A proportio eacute a proacutepria relaccedilatildeo existente entre as diversas partes de um todo e

entre cada parte relativamente ao todo Assim por exemplo na numeraccedilatildeo o homem

estabeleceu certas divisotildees (articuli)452

nas quais a unidade eacute repetida um determinado

nuacutemero de vezes453

e as principais sequecircncias de nuacutemeros inteiros satildeo definidas de

acordo com determinadas regularidades sempre relativas agraves unidades que cada nuacutemero

conteacutem e que cada nuacutemero eacute ndash uma unidade repetida determinado nuacutemero de vezes e

cujo conjunto de vezes forma tambeacutem uma totalidade especiacutefica de unidades A

449

De Trin IV 2 4 (CCL 50 p 164) laquoMerito quippe mors peccatoris veniens ex damnationis necessitate

soluta est per mortem iusti venientem ex misericordiae voluntate dum simplum eius congruit duplo

nostro Haec enim congruentia sive convenientia vel concinentia vel consonantia commodius dicitur

quod est unum ad duo in omni compaginatione vel si melius dicitur coaptatione creaturae valet

plurimum Hanc enim coaptationem sicut mihi nunc occurrit dicere volui quam graeci αρμονία vocant

Neque nunc locus est ut ostendam quantum valeat consonantia simpli ad duplum quae maxima in nobis

reperitur et sic nobis insita naturaliter (a quo utique nisi ab eo qui nos creavit) ut nec imperiti possint

eam non sentire sive ipsi cantantes sive alios audientesraquo Cf De civ Dei XV 10

450 Cf De mus III 1 2 - III 2 4 Eacute frequente vermos nas traduccedilotildees das obras agostinianas a palavra

ritmo surgir como traduccedilatildeo de numerus o que dada proximidade semacircntica dos termos gregos ἀριθμός e

ρυθμός natildeo eacute despropositado no entanto e tal como aqui se demonstra dado que Santo Agostinho usa

diferentemente os conceitos de numerus e de rhythmus consideramos ser mais correcto evitar fazer

equivaler a palavra ritmo agrave de numerus Especificamente sobre o conceito de pes cf De mus II 4 4 II

5 7 II 6 10 II 7 14 II 9 16 II 11 21 e II 13 24

451 Cf De mus II 10 18

452 Cf De mus I 11 19

453 Cf De lib arb II 8 22-24

151

proportio surge portanto como equivalente da correlationalitas e da analogia454

Vitruacutevio em De architectura explica-a dizendo que consiste na comensurabilidade de

cada parte entre si e com o todo455

e Aristoacuteteles no quinto livro da Eacutetica a Nicoacutemaco

refere-se agrave justiccedila recorrendo ao conceito de analogia (ἀναλογία) e define-a como uma

espeacutecie de proporccedilatildeo ou igualdade de razotildees onde AB equivale a BC456

Tal como a

equivalecircncia agrave corrationalitas jaacute o indiciava a proportio implica certas rationes que

devem ser fixas por uma regra e ser submetidas a um modo e a uma forma concreta457

Aristoacuteteles refere-lhes as λόγων Entendida como analogia a proportio eacute uma qualidade

unificadora jaacute que estabelece uma paridade entre elementos distintos ou como

Aristoacuteteles notava estabelece uma relaccedilatildeo de igualdade que pode por isso reportar-se

ao conceito de justiccedila458

O proacuteprio Santo Agostinho identifica-a ainda com a consentio

e reconhece-lhe um inegaacutevel elo com a concordia e com a amizade459

A proportio eacute uma razatildeo de semelhanccedila entre dois termos pelo que articula

tambeacutem qualidades como a aequalitas a parilitas e a similitudo O emprego destes

qualificativos revela muitas vezes uma certa sinoniacutemia mas a este propoacutesito Fontanier

cita uma passagem de In Epistolam Johannis ad Parthos atraveacutes da qual distingue uma

coerecircncia terminoloacutegica Segundo este autor a aequalitas designa a identidade

quantificaacutevel de dois elementos considerados no espaccedilo ou no tempo se for relativa a

um eixo de divisatildeo a aequalitas assume-se como parilitas Quando a aequalitas apenas

revela uma certa igualdade (quaedam aequalitas) ela eacute mais propriamente dita pelo

termo similitudo e aplicaacutevel a realidades formalmente comparaacuteveis ou

454

Cf De mus VI 17 57

455 Cf Vitruacutevio De architectura III 1 1 laquoProportio est ratae partis membrorum in omni opere totiusque

commodulatio ex qua ratio efficitur symmetriarumraquo

456 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicoacutemaco V 6 1131a [30] laquoτὸ γὰρ ἀνάλογον οὐ μόνον ἐστὶ μοναδικοῦ ἀριθμοῦ

ἴδιον ἀλλ ὅλως ἀριθμοῦ ἡ γὰρ ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγων καὶ ἐν τέτταρσιν ἐλαχίστοις ἡ μὲν οὖν

διῃρημένη ὅτι ἐν τέτταρσι δῆλονraquo

457 De mus I 11 18 (PL 32 c 1094) laquoCerta ratio coercuerit et ad quamdam modum formamque revocaveritraquo

458 Cf Aristoacuteteles Eacutetica a Nicoacutemaco V 6 1131a

459 A este propoacutesito cf Maria Manuela Brito Martins ldquoAmicitia nostra vera ac sempiterna erit As fontes da

amizade espiritual em Agostinho de Hiponardquo in Revista Portuguesa de Filosofia vol 64 2008 p 215

152

quantitativamente comensuraacuteveis460

Em De vera religione Santo Agostinho diz que a

conveniecircncia das partes tende agrave igualdade e agrave unidade seja pela similitude que as partes

idecircnticas naturalmente gozam entre si seja pela gradaccedilatildeo das partes sem paridade461

Similitudo e gradatio surgem aqui como duas espeacutecies de igualdade ndash a primeira

relativa a elementos comensuraacuteveis (parium) a segunda relativa a elementos

quantitativamente desiguais (disparium) A similitudo pode assim ver-se como

equivalente agrave simetria462

como relaccedilatildeo de tamanho ou disposiccedilatildeo de partes entre si e

no fundo eacute uma parilitas que em vez de assentar em aspectos quantitativos assenta em

aspectos qualitativos ainda que em ambos os casos esteja pressuposta uma relaccedilatildeo

numeacuterica A gradatio refere-se a uma comparabilidade de elementos quantitativamente

diferentes entre si ndash natildeo tem portanto qualquer relaccedilatildeo agrave parilitas ndash mas cuja disposiccedilatildeo

promove uma espeacutecie de progressatildeo matemaacutetica em que cada termo sequente eacute maior

ou mais intenso do que aquele que o antecede Mesmo sem uma comensurabilidade ao

niacutevel dos elementos ou partes que constituem a gradatio reconhece-se uma igualdade

ou uma regularidade entre eles como se os intervalos que determinam entre si

contribuiacutessem para promover a sua unidade

Todos estes termos bem como o contexto no qual o Bispo de Hipona os insere

contribuem para estruturar uma esteacutetica assente na ideia de ordem Nihil est ordinatum

quod non sit pulchrum463

afirma Santo Agostinho O filosofema da ordem eacute

fundamental para a compreensatildeo da relaccedilatildeo entre unidade e multiplicidade na

460 Cf Jean Michel Fontanier La beauteacute selon Saint Augustin Rennes Presses Universitaires de Rennes

1998 p 51 A citaccedilatildeo a que se refere eacute a seguinte laquoQuomodo verbi gratia visa basilica ista ampla si

velit facere aliquis minorem sed tamen proportione ad mensuras eius ut verbi gratia si lata est ista

simplum et longa duplum faciat et ille latam simplum et longam duplum videtur sic fecisse sicut est

ista Sed ista habet verbi gratia centum cubitos illa triginta et sic est et impar est Videtis quia non

semper sicut ad parilitatem et aequalitatem refertur Verbi gratia videte quantum sit inter faciem

hominis et imaginem de speculo facies in imagine facies in corpore imago in imitatione corpus in

veritate Et quid dicimus Nam sicut hic oculi ita et ibi sicut hic aures ita et ibi aures sunt Dispar est

res sed sicut ad similitudinem diciturraquo In Iohan ep Parthos IV 9 (PL 35 c 2010)

461 De vera relig 30 55 (CCL 32 p 223) laquoSed cum in omnibus artibus convenientia placeat qua una

salva et pulchra sunt omnia ipsa vero convenientia aequalitatem unitatemque appetat vel similitudine

parium partium vel gradatione disparium [hellip]raquo

462 Vide capiacutetulo I11 p 39 da presente dissertaccedilatildeo acerca da reformulaccedilatildeo da tradicional definiccedilatildeo de

beleza assente na simetria atraveacutes da congruentia numerosa

463 De vera relig 41 77

153

perspectiva agostiniana464

uma perspectiva que de certo modo rompe com o

neoplatonismo e ostensivamente com o maniqueiacutesmo pois permite integrar de modo

positivo a diferenccedila e a diversidade abrindo o plano divino agrave relaccedilatildeo A ordum rerum

significa que tudo o que existe e tudo o que afecta a existecircncia tem o seu lugar proacuteprio e

encontra uma justificaccedilatildeo no seio da racionalidade divina ndash a questatildeo do mal que tanto

atormentava o jovem Agostinho encontra aqui um solo propiacutecio de exploraccedilatildeo Como

privaccedilatildeo do bem o mal natildeo tem existecircncia proacutepria positiva ele natildeo procede da mateacuteria

nem pode portanto ser imputado a Deus Eacute fruto de uma defecccedilatildeo da vontade do homem

que pelo livre arbiacutetrio com que Deus dotou as almas racionais tem a faculdade de optar

livremente pela conformidade agrave sua essecircncia e pela reconduccedilatildeo agrave sua origem ou pelo

contraacuterio pode optar por renunciar ao bem Contrariamente agraves teses defendidas pelos

maniqueus Santo Agostinho conclui pela negaccedilatildeo da substancialidade do mal e encara-o

como um natildeo-ser Em Confessionum explica a linha de raciociacutenio que o conduz a tal

conclusatildeo tudo o que eacute bom estaacute sujeito agrave corrupccedilatildeo exceptuando aquilo que eacute

supremamente bom e aquilo a que radicalmente falta bondade A corrupccedilatildeo eacute

precisamente a carecircncia de bem ora o bem marca presenccedila na natureza criada pelo

simples facto de ser obra de Deus mas comparado agrave suma bondade divina eacute um bem

inferior sujeito agrave corrupccedilatildeo Se no entanto as criaturas perdessem radicalmente a sua

bondade e continuassem a existir isso significaria que eram incorruptiacuteveis tal como

Deus Eacute no entanto uma monstruosidade absurda concluir que as criaturas se tornariam

melhores pela perda A privaccedilatildeo radical de bem implica a privaccedilatildeo radical de ser se as

criaturas tecircm uma existecircncia positiva entatildeo satildeo necessariamente boas Eacute impossiacutevel que

o mal seja uma substacircncia pois isso significaria paradoxalmente que o mal fosse bom

A ser substacircncia o mal soacute poderia ser incorruptiacutevel ndash um sumo bem ndash ou corruptiacutevel

mas natildeo poderia corromper-se a menos que fosse bom Como nenhuma destas hipoacuteteses

procede resta concluir pela natildeo substancialidade do mal ou seja pela sua

inexistecircncia465

464

A tese de mestrado de Joseacute Silva Rosa e a tese de doutoramento de Paula Oliveira e Silva exploram

precisamente a centralidade da temaacutetica da ordem no pensamento agostiniano Joseacute Maria Silva Rosa Em

busca do centro Investigaccedilotildees sobre a noccedilatildeo de ordem na obra de Santo Agostinho Periodo de

Cassiciacuteaco Lisboa UCP 1999 Paula Oliveira e Silva Ordem e Ser Ontologia da Relaccedilatildeo em Santo

Agostinho Lisboa CFUL 2007

465 Conf VII 12 18 (CCL 27 p 224) laquoEt manifestatum est mihi quoniam bona sunt quae

corrumpuntur quae neque si summa bona essent neque nisi bona essent corrumpi possent quia si

summa bona essent incorruptibilia essent si autem nulla bona essent quid in eis corrumperetur non

154

O mal natildeo existe nem para Deus nem para a totalidade da criaccedilatildeo porque nada

pode atalhar ou destruir a ordem divina Tal natildeo significa poreacutem que certas partes da

criaccedilatildeo natildeo possam ser consideradas maacutes dado o modo inconveniente com que se

relacionam com outras determinadas partes Mas a ordem abarca bens e males (que soacute

assim poderatildeo ser considerados em funccedilatildeo da sua relatividade e parcialidade) daiacute que

ateacute mesmo uma alma pecadora natildeo fique fora da escala de belezas466 Ora se a ordem eacute

afim da beleza e se integra aspectos que em termos parciais parecem natildeo se coadunar

entre si contribuindo assim mesmo para a harmonia e para a perfeiccedilatildeo do todo isso

abre caminho para a consideraccedilatildeo de que a beleza se nutre ela proacutepria de aspectos que o

homem pela sua incapacidade de ter uma perspectiva totalizadora assume como

contraditoacuterios

Em De natura boni percebe-se tal articulaccedilatildeo de contraacuterios no acircmbito da

esteacutetica quando o Bispo de Hipona elogia a bela variedade contemplada na ordenaccedilatildeo

de bens exemplificando que ao privar certas zonas terrestres de luz em determinadas

horas Deus fez com que as trevas fossem tatildeo graciosas quanto os dias467

Todos os

esset Nocet enim corruptio et nisi bonum minueret non noceret Aut igitur nihil nocet corruptio quod

fieri non potest aut quod certissimum est omnia quae corrumpuntur privantur bono Si autem omni

bono privabuntur omnino non erunt Si enim erunt et corrumpi iam non poterunt meliora erunt quia

incorruptibiliter permanebunt Et quid monstrosius quam ea dicere omni bono amisso facta meliora Ergo

si omni bono privabuntur omnino nulla erunt ergo quandiu sunt bona sunt Ergo quaecumque sunt bona

sunt malumque illud quod quaerebam unde esset non est substantia quia si substantia esset bonum

esset Aut enim esset incorruptibilis substantia magnum utique bonum aut substantia corruptibilis esset

quae nisi bona esset corrumpi non posset Itaque vidi et manifestatum est mihi quia omnia bona tu fecisti

et prorsus nullae substantiae sunt quas tu non fecisti Et quoniam non aequalia omnia fecisti ideo sunt

omnia quia singula bona sunt et simul omnia valde bona quoniam fecit Deus noster omnia bona valde

Nec in Deo nec in universa creatura eius est malumraquo

466 De mus VI 17 56 (PL 32 c 1191) laquoNos tantum meminerimus quod ad susceptam praesentem

disputationem maxime pertinet id agi per providentiam Dei per quam cuncta creavit et regit ut etiam

peccatrix et aerumnosa anima numeris agatur et numeros agat usque ad infimam carnis corruptionem qui

certe numeri minus minusque pulchri esse possunt penitus vero carere pulchritudine non possunt Deus

autem summe bonus et summe iustus nulli invidet pulchritudini quae sive damnatione animae sive

regressione sive permansione fabricaturraquo

467 De nat boni 16 (CSEL 25 p 861) laquoQuae tamen etiam privationes rerum sic ordinantur in universitate

naturae ut sapienter considerantibus non indecenter vices suas habeant Nam et Deus certa loca et

tempora non illuminando tenebras fecit tam decenter quam dies Si enim nos continendo vocem decenter

interponimus in loquendo silentium quanto magis ille quarumdam rerum privationes decenter facit sicut

rerum omnium perfectus artifex Unde et in hymno trium puerorum etiam lux et tenebrae laudant Deum id

est eius laudem in bene considerantium cordibus pariunt Natura in quantum natura est nulla malaraquo Santo

Agostinho usa o adveacuterbio decenter enfatizando a conveniecircncia ou adequaccedilatildeo das trevas e dos silecircncios mas

pelo contexto facilmente se percebe o pendor esteacutetico de que o termo estaacute eivado O particiacutepio decens

integra portanto o universo semacircntico dos substantivos decus e decor Cf De vera relig 40 75

155

detalhes que nos desagradam harmonizam-se perfeitamente na ordem geral do

universo A beleza do conjunto pode ser constituiacuteda por partes imperfeitas Tambeacutem as

obras humanas e a finalidade de todas as criaturas concorrem para essa beleza

universal468

Mas mesmo a um niacutevel natildeo geral haacute evidecircncias dessa harmoniosa

integraccedilatildeo de contraacuterios por exemplo quando entrecortamos adequadamente um

discurso ou um canto com silecircncios realccedilando-o469

ou quando numa pintura a cor

negra abrilhanta pelo seu contraste as tonalidades circunvizinhas470

Em De Genesi ad litteram imperfectus liber iniciado doze anos antes de De

natura boni jaacute Santo Agostinho havia clarificado que as privaccedilotildees (sejam elas de luz de

som ou de bem) natildeo satildeo obra de Deus ndash Ele nunca ordenou ldquoFaccedilam-se as trevasrdquo ndash no

entanto ateacute elas satildeo contempladas na sua ordenaccedilatildeo do universo o que se comprova

biblicamente quando eacute dito que Deus separou a luz das trevas (Gn14) Este eacute o

primeiriacutessimo indiacutecio da ordem divina em que eacute dado um lugar agrave privaccedilatildeo de luz apoacutes a

luz (e soacute ela) ter sido positivamente criada Em relaccedilatildeo agraves positividades Deus eacute

simultaneamente o criador e o ordenador em relaccedilatildeo agraves privaccedilotildees eacute apenas o ordenador

Todas as coisas por si criadas satildeo belas tal como o satildeo todas aquelas que ordena471

Anne Isabelle Bouton-Touboulic nota como em obras posteriores o Bispo de

Hipona estabelece uma analogia expliacutecita entre a actividade ordenadora de Deus e a

mestria de um pintor472

A imagem do Deus pictor ndash natildeo tatildeo comum nas obras

agostinianas ndash serve para ilustrar a presciecircncia divina face agrave realidade dos pecadores O

pecador equivale agrave cor negra que pela matildeo de Deus eacute integrada no conjunto da

disposiccedilatildeo de todas as outras cores colocando-a na devida ordem e fazendo com que

468

Cf De vera relig 40 76

469 Cf De nat boni 16

470 Cf De vera relig 40 76

471 Cf De Gen ad litt imp V 25 (CSEL 281 p 475-476) laquoIta species naturasque ipsas et facit et

ordinat privationes autem specierum defectusque naturarum non facit sed ordinat tantum Dixit itaque

Fiat lux et facta est lux Non dixit Fiant tenebrae et factae sunt tenebrae Horum ergo unum fecit

alterum non fecit utrumque tamen ordinavit cum divisit Deus inter lucem et tenebras Ita et ipso faciente

pulchra sunt singula et ipso ordinante pulchra sunt omniaraquo

472 Anne-Isabelle Bouton-Touboulic laquoLrsquoestheacutetique de lrsquoordre chez saint Augustin les images du discours

et du tableauraquo in Maurice F Wiles E J Yarnold Saint Augustine and his Opponents Other Latin

Writers Studia Patristica vol 38 Leuven Peeters Publishers 2001 p 22

156

tenha o seu papel na pintura que eacute o universo473

contribuindo tambeacutem ela para a beleza

do conjunto Eacute com a cor negra que se pintam os cabelos as barbas e as sobrancelhas

ou seja os ornamenta do corpo474

Em De ordine Santo Agostinho refere-se agrave percepccedilatildeo de um mosaico cuja

harmonia e beleza do desenho soacute poderaacute ser fruiacuteda por aqueles que natildeo limitarem a sua

atenccedilatildeo a uma tessela mas pelo contraacuterio atenderem agrave totalidade que o conjunto de

moacutedulos perfaz475

Com tal imagem O Bispo de Hipona pretende exemplificar que o

ponto de vista parcial a que a condiccedilatildeo humana naturalmente nos condena impede que

percebamos facilmente a ordem que configura o desenho divino do universo Por

natureza e mediante os sentidos tendemos a perceber uma desordem e uma ausecircncia de

harmonia no mundo muito graccedilas agrave incompreensatildeo da origem do mal ou do papel que

os contraacuterios esteticamente assumem Mas tal eacute apenas o fruto da nossa incapacidade

em assumir um ponto de vista totalitaacuterio Por outro lado a nossa tendecircncia natural para

a unidade possibilita que possamos entender a dependecircncia das formas existentes em

relaccedilatildeo a uma razatildeo universal A ordem eacute hierarquia conveniecircncia das partes harmonia

subsistente e omnipresente mas tambeacutem eacute uma construccedilatildeo mental elaborada face agrave

diversidade das formas existentes na estrutura cosmoloacutegica476

agrave qual natildeo eacute alheia a

dialeacutectica entre aptidatildeo e beleza

473

De civ Dei XI 23 (CCL 48 p 342) laquo[hellip]quoniam sicut pictura cum colore nigro loco suo posito ita

universitas rerum si quis possit intueri etiam cum peccatoribus pulchra est quamvis per se ipsos

consideratos sua deformitas turpetraquo Muito mais comum do que a imagem do universo como pintura eacute a

do universo como cacircntico ou poema ndash carmen universitatis Cf De mus VI 11 29 De civ Dei XI 18

474 Sermo 125 5 (PL 38 cols 692-693) laquoCerte peccator niger color esse voluit ideo nescit ordo artificis

ubi cum ponat Quanta ordinat de nigro colore Quanta ornamenta facit pictor Facit inde capillos facit

barbam facit supercilia non facit frontem nisi de alboraquo Cf Sermo 301 5 4

475 Cf De ord I 1 2

476 Cf Paula Oliveira e Silva Ordem e ser Ontologia da relaccedilatildeo em Santo Agostinho Lisboa CFUL

2007 p 122

157

3 Gradaccedilotildees de ser de beleza e dos efeitos da percepccedilatildeo do belo

31 - Do pulchrum aptum ao par conceptual uti frui

O interesse agostiniano no que respeita agrave articulaccedilatildeo entre as partes e o todo ndash ou

por outras palavras no que respeita agrave relaccedilatildeo que a multiplicidade manteacutem com a

unidade ndash estava jaacute presente nos dois ou trecircs livros que integrariam aquela que foi a sua

primeiriacutessima obra o tratado perdido De pulchro et apto escrito entre 380 e 381 Aos

44 anos por altura da redacccedilatildeo de Confessionum jaacute esta obra havia sido excluiacuteda da

biblioteca de Santo Agostinho e da possibilidade de chegar aos nossos dias Talvez o

forte pendor maniqueiacutesta tenha ditado a sua destruiccedilatildeo477

Natildeo haacute registo da argumentaccedilatildeo aiacute desenvolvida mas conforme Santo

Agostinho daacute conta em Confessionum enquanto o pulchrum concerne agrave conveniecircncia

da totalidade o aptum eacute aquilo que agrada pela sua acomodaccedilatildeo a alguma coisa Apesar

de distintos os conceitos natildeo satildeo antinoacutemicos e pressupotildeem-se mutuamente no que

respeita agrave beleza dos corpos Estaacute aqui presente o problema da conveniecircncia das partes

relativamente ao todo e o problema da conveniecircncia do todo graccedilas agrave adaptaccedilatildeo das

partes No pequeno resumo que nos lega sobre este ensaio mais do que uma definiccedilatildeo

de beleza Santo Agostinho estabelece dois pontos de vista a partir dos quais a beleza

477

Acerca das provaacuteveis influecircncias maniqueias nesta obra cf Takeshi Katocirc laquoMelodia Interior Sur le

traiteacute De pulchro et aptoraquo in REAug 12 1966 pp 229-240 Aleacutem desta influecircncia haacute ainda a referir o

pendor pitagoacuterico notado por Solignac e por Svoboda bem como o pendor estoacuteico referido por Alfaric e

Guitton cf respectivamente A Solignac laquoDoxographies et manuels chez Saint Augustinraquo Recherches

augustiniennes vol 1 Paris 1960 pp 113-148 K Svoboda La esteacutetica de San Agustiacuten y sus fuentes

Luis Rey Altuna (versioacuten y proacutelogo) Madrid Libreriacutea Editorial Augustinus 1958 p 15 P Alfaric

Leacutevolution intellectuelle de Saint Augustin Paris Eacutemile Nourry 1918 pp 225 e 232 J Guitton Le

temps et leacuteterniteacute chez Plotin et Saint Augustin Paris Vrin 2004 p 189

158

corpoacuterea pode ser considerada um ponto de vista autoacutenomo pelo qual a beleza eacute tida

como um todo e um ponto de vista relativo pelo qual a beleza eacute reportada a uma

totalidade O primeiro ponto de vista eacute-nos sintetizado na questatildeo Quid est ergo

pulchrum O segundo na questatildeo et quid est pulchritudo478

As duas questotildees natildeo satildeo

redundantes como agrave primeira vista poderiam deixar supor mas marcam uma gradaccedilatildeo

na caracterizaccedilatildeo da beleza enquanto harmonia da relaccedilatildeo das partes entre si e

relativamente a um conjunto

Haacute a tendecircncia em associar a distinccedilatildeo entre pulchrum e aptum ao binoacutemio uti-frui

como se Santo Agostinho reportasse linearmente a pulcritude das coisas corpoacutereas (que

eacute uma propriedade das formas) agrave sua adequaccedilatildeo no contexto da finalidade da acccedilatildeo

humana mas na verdade ainda que a articulaccedilatildeo entre o pulchrum e a fruiccedilatildeo per se

resulte correcta479

jaacute o paralelo entre uti e aptum natildeo colhe o mesmo resultado pois

pressuporia que agrave congruecircncia entre as partes e o todo estivesse associada a categoria de

bonum utile em vez da coaptatio O pulchrum eacute o que agrada por si e o aptum eacute o que

agrada pela sua acomodaccedilatildeo a alguma coisa sendo que ambos independem da esfera da

acccedilatildeo humana Talvez tenha sido tambeacutem essa autonomia da beleza das coisas

corpoacutereas uma outra razatildeo para o desagrado que esta primeira obra inspirou em Santo

Agostinho A dimensatildeo moral das belezas corpoacutereas parecia natildeo ter lugar numa tal

perspectiva alheia agrave esfera da acccedilatildeo humana Nas obras posteriores seraacute o numerus a

salvaguardar a ordem universal determinando a articulaccedilatildeo do belo temporal com o

modo de apreensatildeo e valoraccedilatildeo que o sujeito faz das coisas belas e integrando assim ao

niacutevel das estesias a dimensatildeo utilitaacuteria que teria sido descartada nesta primeira obra

Uma caracteriacutestica tiacutepica da abordagem maniqueiacutesta eacute a valorizaccedilatildeo da beleza

sensiacutevel vir a par de um certo pessimismo quanto agrave sua harmonizaccedilatildeo face ao todo

abrindo deste modo caminho para a substancializaccedilatildeo dualista480

Ou seja apesar de a

esfera sensiacutevel intrinsecamente promover uma compreensatildeo harmoniosa em termos

estruturais pelo reconhecimento das relaccedilotildees de conveniecircncia entre as diversas

unidades orgacircnicas e as partes que as constituem jaacute o modo como ela (esfera sensiacutevel)

478

Conf IV 13 20 (CCL 27 p 51)

479 Pelo menos neste niacutevel restrito Se pensarmos o pulchrum ao niacutevel da perspectiva que o fruidor deve

assumir face agraves belezas corpoacutereas jaacute o paralelo com a fruitio resulta incorrecto

480 Para uma perspectiva natildeo acadeacutemica mas extremamente sugestiva e bem fundamentada acerca da

esteacutetica maniqueiacutesta cf Amin Maalouf Os jardins de luz Lisboa Puacuteblico 2003 passim

159

tida na sua multiplicidade de formas se harmoniza com o todo coacutesmico revela-se

problemaacutetico A relaccedilatildeo entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel natildeo predispotildee a um

reconhecimento da ordem como na tradiccedilatildeo neoplatoacutenica mas sim da desordem Natildeo

significa isto que Santo Agostinho negasse a beleza inteligiacutevel ndash e nem Mani nem os

seus disciacutepulos o faziam ndash pelo contraacuterio ele pressentia-a e desejava-a apesar de natildeo

ser capaz de a perspectivar convenientemente481

A beleza divina teria um pendor

formalista adoptado a partir das coisas corpoacutereas e o seu equacionamento em termos de

ordem estava comprometido pela distinccedilatildeo que Santo Agostinho entatildeo fazia entre

moacutenade e diacuteade482

A moacutenade era como uma mente assexuada483

uma unidade onde

estaria subsumida a alma racional bem como a natureza da verdade e do bem

superiores A diacuteade opondo-se desde sempre agrave moacutenade seria um mal substancial e

natural caracterizado pela discoacuterdia e pela irracionalidade As formas sensiacuteveis

possuindo traccedilos de unidade tenderiam naturalmente para ela pela carecircncia que dela

sentiam poreacutem pertencendo agrave mateacuteria estavam presas agrave mutabilidade e ao caraacutecter

diverso que caracterizaria a esfera da diacuteade A tensatildeo entre bem e mal preponderava

sobre a ideia de ordem na eacutepoca em que Santo Agostinho escreveu o De pulchro et

apto Na verdade parecia ser precisamente essa preponderacircncia que dificultava a

concertaccedilatildeo entre os elementos formalistas da sua teoria esteacutetica e os elementos eacuteticos e

metafiacutesicos que viriam mais tarde a caracterizar o discurso agostiniano sobre o belo e

481

Cf Conf IV 15 27

482 Conf IV 15 24 (CCL 27 p 52) laquo[hellip] ibat animus per formas corporeas et pulchrum quod per se

ipsum aptum autem quod ad aliquid accommodatum deceret definiebam et distinguebam et exemplis

corporeis astruebam Et converti me ad animi naturam et non me sinebat falsa opinio quam de

spiritualibus habebam verum cernere Et irruebat in oculos ipsa vis veri et avertebam palpitantem

mentem ab incorporea re ad lineamenta et colores et tumentes magnitudines et quia non poteram ea

videre in animo putabam me non posse videre animum Et cum in virtute pacem amarem in vitiositate

autem odissem discordiam in illa unitatem in ista quamdam divisionem notabam inque illa unitate mens

rationalis et natura veritatis ac summi boni mihi esse videbatur in ista vero divisione irrationalis vitae

nescio quam substantiam et naturam summi mali quae non solum esset substantia sed omnino vita esset

et tamen abs te non esset Deus meus ex quo sunt omnia miser opinabar Et illam monadem appellabam

tamquam sine ullo sexu mentem hanc vero dyadem iram in facinoribus libidinem in flagitiis nesciens

quid loquerer Non enim noveram neque didiceram nec ullam substantiam malum esse nec ipsam mentem

nostram summum atque incommutabile bonumraquo Poucos anos mais tarde com a leitura dos libri

platonicorum Santo Agostinho teria oportunidade natildeo soacute de rever os seus conceitos de moacutenade e diacuteade

como tambeacutem o problema do mal e ainda de estruturar a sua original teoria do nuacutemero combinando agrave luz

das Sagradas Escrituras tais leituras que teraacute feito de Plotino e de Porfiacuterio com as de Ciacutecero e Varratildeo

483 Este caraacutecter assexual da moacutenade que Santo Agostinho refere estaraacute porventura associado agrave

caracterizaccedilatildeo pitagoacuterica da moacutenade como sendo um princiacutepio que natildeo eacute nem par nem iacutempar

160

sobre a sensibilidade O belo estaria jaacute equacionado com o bem pelo que mesmo as

belezas corpoacutereas por serem uma aparecircncia fragmentaacuteria da unidade eram tidas

positivamente falhava poreacutem ao jovem Agostinho uma perspectiva capaz de articular

tal qualidade esteacutetica das criaturas com as implicaccedilotildees da valoraccedilatildeo e da utilizaccedilatildeo a

que deveria ser sujeita Faltava-lhe relativizar o belo sensiacutevel associando-o a um valor

instrumental que desencorajasse a fruiccedilatildeo per se de tal beleza Como iacutendice de relaccedilatildeo

o numerus imporia tal relatividade entre o belo sensiacutevel face ao belo inteligiacutevel

deslocando sem constriccedilotildees a fonte do prazer esteacutetico entatildeo vista a partir das qualidades

formais para a congruentia numerosa ou para a ordem e daiacute para Deus pulchritudo

pulchrorum omnium484

Faltava-lhe tambeacutem situar positivamente as marcas da

multiplicidade como o contrastante o diferente ndash coisa que viria a acontecer com a

esteacutetica dos opostos ou da totalidade antiteacutetica como vimos no final do subcapiacutetulo

anterior A dialeacutectica entre aptidatildeo e beleza manter-se-aacute no pensamento esteacutetico

agostiniano sem os constrangimentos com que a perspectiva maniqueia eivara o tratado

De pulchro et apto

Os filosofemas agostinianos de nuacutemero e de ordem fazem com que a teoria

esteacutetica do Bispo de Hipona seja indissociaacutevel de uma visatildeo hieraacuterquica do real muito

distinta da maniqueia de acordo com a qual os seres vegetais estavam acima dos seres

humanos485

Com efeito os seres ordenam-se segundo graus de perfeiccedilatildeo distintos que

se reflectem na sua beleza daiacute que por exemplo um homem seja mais belo do que um

siacutemio486

A ordem das coisas parece resultar da dialeacutectica entre aptidatildeo e beleza num

plano natildeo tatildeo limitado agrave percepccedilatildeo sensiacutevel mas muito mais racional com o

reconhecimento dos nuacutemeros

[hellip] a proacutepria beleza pela qual a terra se distingue dos outros elementos natildeo

ostenta o uno tanto quanto o recebeu Com efeito a nenhuma das suas partes

falta proporccedilatildeo com o todo e pelo conjunto das suas partes ocupa no seu

geacutenero a esfera mais baixa mas tambeacutem mais propiacutecia agrave sua conservaccedilatildeo

Sobre si estende-se o elemento da aacutegua que tende tambeacutem para essa

unidade pois eacute mais belo e mais diaacutefano graccedilas agrave maior proporccedilatildeo das partes

e porque ocupa o lugar mais conveniente agrave sua ordem e conservaccedilatildeo O que

484

Conf III 6 10 (CCL 27 p 31)

485 Cf Conf III 10 18

486 Cf De nat boni 14 De Gen cont Man II 29 43

161

dizer do elemento ar que tende agrave unidade mediante uma organicidade muito

mais faacutecil que eacute tatildeo mais belo do que a aacutegua quatildeo esta o eacute do que terra e

superior em termos de autoconservaccedilatildeo O que dizer por fim da esfera

superior do ceacuteu na qual termina todo o universo dos corpos visiacuteveis a mais

bela neste geacutenero e que ocupa o lugar excelso em termos de

autoconservaccedilatildeo Certamente os elementos que percebemos atraveacutes dos

nossos sentidos corpoacutereos com tudo aquilo que neles existe natildeo podem

admitir nem conservar esses nuacutemeros no espaccedilo que parecem existir num

outro estado sem uma influecircncia anterior interior e silenciosa da sucessatildeo

de nuacutemeros que existem no movimento Do mesmo modo um movimento

vital precede e modifica estes nuacutemeros que se movem nos intervalos dos

tempos este movimento servindo ao Senhor criador de todas as coisas natildeo

tem em si intervalos de tempo que regulem os seus nuacutemeros mas recebe do

poder divino o benefiacutecio dos tempos Acima deste poder estatildeo os nuacutemeros

intelectuais e racionais das almas santas e bem-aventuradas que transmitem

sem intermediaacuterios a lei a que obedecem as coisas terrenas e os infernos a

proacutepria lei de Deus sem a qual a folha natildeo cai da aacutervore e pela qual os

nossos cabelos estatildeo contados487

Denotando a influecircncia neoplatoacutenica satildeo inuacutemeras as passagens onde Santo

Agostinho faz hierarquizaccedilotildees ontoloacutegicas ou descreve escalas de realidades e de

actividades Tal ordenamento evidencia em muitos casos a interpenetraccedilatildeo das esferas

do belo e do bem mais acentuadamente do que aquilo que ocorre com os exemplos das

Eneacuteadas488

Desde logo estaacute subjacente agrave hierarquia esse-vivere-intellegere o modo

como os seres se relacionam com os corporalia traduzido na capacidade de reconhecer

487

De mus VI 17 58 (PL 32 cols 1192-1193) laquo[hellip] ipsa species qua item a caeteris elementis terra

discernitur nonne et unum aliquid quantum accepit ostentat et nulla pars eius a toto est dissimilis et

earumdem partium connexione atque concordia suo genere saluberrimam sedem infimam tenet Cui

superfunditur aquarum natura nitens et ipsa ad unitatem speciosior et perlucidior propter maiorem

similitudinem partium et custodiens locum ordinis et salutis suae Quid de aeris natura dicam multo

faciliore complexu ad unitatem nitente et tanto speciosiore aquis quam illae terris sunt tantoque

superiore ad salutem Quid de coeli supremo ambitu quo tota universitas visibilium corporum terminatur

et summa in hoc genere species ac saluberrima loci excellentia Ista certe omnia quae carnalis sensus

ministerio numeramus et quaecumque in eis sunt locales numeros qui videntur esse in aliquo statu nisi

praecedentibus intimis et in silentio temporalibus numeris qui sunt in motu nec accipere illos possunt

nec habere Illos itidem temporum intervallis agiles praecedit et modificat vitalis motus serviens Domino

rerum omnium non temporalia habens digesta intervalla numerorum suorum sed tempora ministrante

potentia supra quam rationales et intellectuales numeri beatarum animarum atque sanctarum legem

ipsam Dei sine qua folium de arbore non cadit et cui nostri capilli numerati sunt nulla interposita natura

excipientes usque ad terrena et inferna iura transmittuntraquo

488 Haacute que natildeo esquecer que para Plotino no plano inteligiacutevel o Bem estaacute acima do Belo podendo

considerar-se como um super-belo pois eacute dele que nasce a beleza das Ideias Cf En VI 7 18 e En V 5 12

acerca da superioridade e da anterioridade do Bem relativamente ao Belo Para Santo Agostinho tanto o

Bem quanto o Belo podem ser identificados com Deus

162

os nuacutemeros ou as leis que governam o universo Diz o Bispo de Hipona que entre os

seres satildeo superiores aqueles que tecircm vida aos que natildeo a tecircm e desses deveratildeo preferir-se

os que tecircm capacidade generativa ou apetitiva diz ainda que os sencientes ndash como os

animais ndash satildeo superiores aos natildeo sencientes ndash como as aacutervores ndash entre os sencientes

satildeo superiores os que tecircm inteligecircncia ndash como os homens ndash aos que natildeo tecircm

inteligecircncia ndash como os outros animais ndash entre os que tecircm inteligecircncia satildeo superiores

os imortais ndash como os anjos ndash aos mortais489

O homem ocupa um lugar intermeacutedio nos

graus de ser definidos por Santo Agostinho diferenciando-se dos outros animais pela

racionalidade da sua alma que lhe permite contemplar a realidade superior e aceder agrave

verdade Tambeacutem o seu corpo eacute superior ao dos animais e eacute belo mas mais bela eacute a

alma pois eacute dela que o corpo retira a sua beleza A beleza do corpo portanto natildeo se

limita agrave harmonia da disposiccedilatildeo dos membros natildeo eacute uma beleza meramente formal eacute

tambeacutem uma beleza moral que natildeo deixa de ser visiacutevel ao transparecer na postura e na

atitude490

Eacute interessante notar que haacute uma recusa em estabelecer um cacircnone formal fixo para

a beleza do corpo embora a mais famosa definiccedilatildeo agostiniana de beleza corpoacuterea ndash corporis

pulchritudo est partium congruentia cum quadam coloris suavitate 491

ndash assim o pareccedila

anunciar como vimos anteriormente a congruecircncia das partes tambeacutem enunciada

como congruentia numerorum eacute uma reformulaccedilatildeo da definiccedilatildeo estoacuteica da beleza

baseada na simetria que natildeo descarta o caraacutecter imaterial da beleza

A beleza da alma proveacutem de Deus que eacute a suma Beleza e em comparaccedilatildeo com a

qual as demais belezas nada satildeo492

Assim o ornamento do corpo eacute a alma ao passo

que o ornamento da alma eacute Deus493

Um corpo mais belo do que o mortal eacute aquele que

489

Cf De civ Dei XI 16

490 Cf De Gen ad litt VI 12 22 De div Quaest 83 51 3

491 De civ Dei XXII 19 (CCL 48 p 838) Tambeacutem para Ciacutecero este tipo de formulaccedilatildeo formal da beleza

natildeo exclui o cariz moral laquoEt ut corporis est quaedam apta figura membrorum cum coloris quadam

suavitate eaque dicitur pulchritudo sic in animo opinionum iudiciorumque aequabilitas et constantia cum

firmitate quadam et stabilitate virtutem subsequens aut virtutis vim ipsam continens pulchritudo vocaturraquo

(Tusculanae Disputationes IV 31)

492Cf Conf XI 4 6 (CCL 27 p 197) onde falando da beleza dos ceacuteus e da terra Santo Agostinho diz

laquoTu ergo Domine fecisti ea qui pulcher es pulchra sunt enim qui bonus es bona sunt enim qui es sunt

enim Nec ita pulchra sunt nec ita bona sunt nec ita sunt sicut tu Conditor eorum quo comparato nec

pulchra sunt nec bona sunt nec suntraquo

493 In Iohan Evang tract XXXII 3 (CCL 36 p 301) laquoDecus ergo corporis animus decus animi Deusraquo

163

as almas bem-aventuradas assumiratildeo no dia do Juiacutezo Final Trata-se de um corpo

ainda carnal apesar de celestial resultante da renovaccedilatildeo da mateacuteria humana

aquando da ressurreiccedilatildeo A sua beleza eacute maior em virtude da redistribuiccedilatildeo

optimizada das quantidades corpoacutereas que a par de um maior transparecimento da

alma e da adquirida imutabilidade resulta numa superioridade qualitativa

relativamente ao corpo temporal terreno494

Em De quantitate animae encontramos hierarquizadas as proacuteprias actividades e

estadios da alma495

A um niacutevel baacutesico a alma vivifica o corpo a que estaacute unida

conferindo e mantendo a sua unidade permitindo que decorra uma distribuiccedilatildeo

uniforme de alimento pelos seus membros conservando as suas proporccedilotildees e tudo isto

natildeo apenas para efeitos de beleza mas tambeacutem para efeitos de crescimento e de

reproduccedilatildeo Natildeo haacute neste niacutevel nada que distinga o homem dos vegetais pois tambeacutem

destes se pode dizer que vivem que cada qual se conserva na sua espeacutecie que se

alimentam crescem e reproduzem

O segundo patamar de actividade aniacutemica diz respeito agrave percepccedilatildeo sensiacutevel e ao

seu papel no funcionamento motor do corpo Apesar de distinguir jaacute os homens dos

vegetais este grau natildeo o distingue ainda dos restantes animais A memoacuteria interveacutem jaacute

nas funccedilotildees que entatildeo tecircm lugar e que satildeo por exemplo relativas agrave alimentaccedilatildeo agrave

protecccedilatildeo agrave imitaccedilatildeo e ateacute mesmo agrave reproduccedilatildeo ndash trata-se do niacutevel instintivo da alma

Passando para um terceiro patamar de actividade da alma a memoacuteria permite

executar uma seacuterie de ofiacutecios ou artesanias (ars) de que satildeo exemplo a cultura dos

campos a edificaccedilatildeo de cidades a invenccedilatildeo e o uso de signos como sejam as palavras

os gestos a muacutesica a pintura e a escultura Tecircm aqui lugar as instituiccedilotildees humanas as

invenccedilotildees a preocupaccedilatildeo com o legado para a posteridade as hierarquias de poder de

honra (seja no acircmbito familiar seja no acircmbito estatal) a guerra a paz as cerimoacutenias

profanas ou sagradas a capacidade de raciociacutenio a criatividade o entretenimento a

mestria a precisatildeo as convenccedilotildees as previsotildeeshellip enfim tudo o que peculiarmente

494

Cf De civ Dei XXII 19 Vide p 58 da presente tese A beleza do corpo acompanha portanto a beleza

da alma mas podemos objectar que apesar de contemplar a integraccedilatildeo positiva de exemplos menos

convencionais no que toca agrave beleza fiacutesica ndash como eacute o caso das cicatrizes dos maacutertires cristatildeos ndash Santo

Agostinho eacute suficientemente cauteloso para distinguir aquilo que manifestando-se no corpo eacute da alma e

para natildeo cortar abruptamente com o cacircnone greco-romano da beleza juvenil ou natildeo situasse o corpo

ressurrecto na pujanccedila fiacutesica dos vinte e poucos anos A serenidade madura que acompanha a senescecircncia

de um homem virtuoso por exemplo parece natildeo ter lugar nas perfeiccedilotildees da beata vita

495 Cf De quant an 33 70 - 36 81

164

caracteriza o ser humano Santo Agostinho nota poreacutem que nada disto distingue ainda

os saacutebios dos ignorantes ou as boas pessoas das vis

A virtude comeccedila apenas no quarto grau ousando a alma preferir-se aos corpos

olhando com desapego os bens temporais e percebendo que a relatividade a que estatildeo

sujeitos os faz inferior a si mesma quer em termos de forccedila (potentia) quer em termos

de beleza (pulchritudo) Quanto mais se purifica e se arma contra aquilo que obstaculiza

o seu derradeiro desiderato mais bela ela se torna Uma alma capaz de aceder a este

niacutevel eacute tambeacutem capaz de amar a grande comunidade humana natildeo desejando para os

outros aquilo que natildeo deseja para si proacutepria Natildeo se trata de patamar faacutecil pois implica

renunciar ao apelo das seduccedilotildees temporais e lidar ainda com um certo medo da morte

Face a isto sabe poreacutem que pode contar com a palavra timoneira da autoridade e dos

saacutebios e sobretudo que pode contar com a ajuda de Deus pela justiccedila com que criou e

com que dirige o universo

No quinto niacutevel jaacute purificada alma apraz-se portanto por si mesma ao

compreender a sua grandeza O facto de se ter purificado e redimido as suas faltas natildeo eacute

poreacutem garante de que natildeo possa voltar a reincidir Soacute neste patamar eacute que a alma

consolida a pureza que foi granjeando no niacutevel anterior Pode voltar-se para Deus com

maior confianccedila encaminhando-se para a sublime e misteriosa recompensa para a qual

tanto se esforccedilou

Em relaccedilatildeo ao sexto degrau evolutivo da alma Santo Agostinho refere que uma

coisa eacute purificar o olho da alma evitando abri-lo em vatildeo ou levianamente e evitando

pousaacute-lo sobre coisas perversas (como ocorria no quarto niacutevel) outra coisa eacute conservar

e reforccedilar a sanidade desse olhar (como acontecia no quinto niacutevel) e outra coisa ainda eacute

direccionar para aquilo que deve ser contemplado esse olhar tornado justo e sereno Em

sintonia com aquilo que Platatildeo diz na Alegoria da Caverna Santo Agostinho explica

que se o quarto e o quinto niacutevel fossem saltados pela alma ao chegar ao sexto a luz

divina cegaria o seu olhar e ela seria incapaz de lhe reconhecer algo de bom e de admitir

que estaria face agrave verdade Soacute pela ascensatildeo gradual da alma atraveacutes destes niacuteveis ela

poderaacute elevar-se acima das paixotildees e de tudo o que a suja para singrar sem desvios ou

retrocessos ateacute agrave verdade reconhecendo-a e desejando-a

O uacuteltimo patamar da grandeza da alma natildeo eacute verdadeiramente um degrau diz

Santo Agostinho eacute antes a morada (mansio) para onde todos os outros niacuteveis conduzem

a alma Aqui a alma viveraacute o bem supremo e verdadeiro alcanccedilando a causa soberana

(summa causa) e o princiacutepio soberano (summum principium) que eacute Deus

165

Compreenderaacute entatildeo como as realidades temporais nada satildeo em comparaccedilatildeo com os

bens eternos ainda que consideradas em si mesmas sejam belas e admiraacuteveis

Alguns anos mais tarde em De doctrina christinana Santo Agostinho volta a

estruturar setes degraus para a ascensatildeo da alma em termos de timor pietas scientia

fortitudo consilium purgatio cordis e sapientia496

Assim nesta obra o primeiro

patamar concerne agrave crenccedila em Deus e agrave sua capacidade em predispor a alma para o

conhecimento da sua vontade no segundo patamar entra em jogo a piedade que torna a

alma doacutecil de modo a receber os ensinamentos da Sagrada Escritura o terceiro niacutevel eacute

do conhecimento (scientia) e nele estatildeo todos aqueles que se dedicam ao estudo

aprofundado da Sagrada Escritura cuja doutrina pode resumir-se no preceito de amar

Deus de todo o coraccedilatildeo e amar o proacuteximo como a si mesmo no quarto patamar tendo o

conhecimento aberto caminho para a esperanccedila haacute um fortalecimento da alma

exercitado na pretericcedilatildeo dos bens materiais em prol dos bens espirituais no quinto

patamar a alma purifica-se em obras misericordiosas e aperfeiccediloa-se no amor ao proacuteximo

chegando mesmo a amar os seus inimigos entrando no sexto niacutevel o homem purifica de tal

modo o seu coraccedilatildeo ndash vivendo menos para este mundo e mais para Deus ndash que a luz

infinita comeccedila a tornar-se menos ofuscante ainda assim o homem vecirc-a apenas em

enigma e por espelho (II Cor 13 12) O seacutetimo e uacuteltimo patamar eacute o da contemplaccedilatildeo

onde a alma frui da sabedoria (sapientia) no seio da mais profunda paz

Agrave medida que a alma ascende pelos sete patamares vai-se tornando cada vez

mais bela pois purifica-se e despoja-se de tudo aquilo que lhe eacute alheio que a suja e a

deforma O seu aperfeiccediloamento esteacutetico eacute directamente proporcional ao

aperfeiccediloamento eacutetico pela praacutetica das virtudes Assim o teraacute aprendido Santo

Agostinho atraveacutes da leitura das Eneacuteadas onde em contraste com outras passagens da

mesma obra eacute afirmada a identidade entre o belo e o bem497

496

Cf De doct christ II 7 9 - 11 Para um esquema de complementaridade entre os sete degraus descritos

em De quant an e em De doct christ cf E Gilson Introduction agrave lrsquoeacutetude de saint Augustin p 160

Importa referir que entre De quant an e De doct christ Santo Agostinho escreveu algumas obras onde o

esquema vertical de aperfeiccediloamento da alma parece dar lugar a um esquema horizontal baseado na

hierarquizaccedilatildeo temporal e histoacuterica que todavia natildeo nos parece incompatiacutevel com esta perspectiva

ascensional de que aqui damos conta A tiacutetulo de exemplo cf De Gen cont Man I 23 35 - I 25 43

497 En I 6 6 [1] laquoΔιὸ καὶ λέγεται ὀρθῶς τὸ ἀγαθὸν καὶ καλὸν τὴν ψυχὴν γίνεσθαι ὁμοιωθῆναι εἶναι θεῷ

ὅτι ἐκεῖθεν τὸ καλὸν καὶ ἡ μοῖρα ἡ ἑτέρα τῶν ὄντων Μᾶλλον δὲ τὰ ὄντα ἡ καλλονή ἐστιν ἡ δacute ἑτέρα

φύσις τὸ αἰσχρόν τὸ δacute αὐτὸ καὶ πρῶτον κακόν ὥστε κἀκείνῳ ταὐτὸν ἀγαθόν τε καὶ καλόν ἢ τἀγαθόν τε

καὶ καλλονή Ὁμοίως οὖν ζητητέον καλόν τε καὶ ἀγαθὸν καὶ αἰσχρόν τε καὶ κακόν Καὶ τὸ πρῶτον θετέον

τὴν καλλονήν ὅπερ καὶ τἀγαθόν ἀφacute οὗ νοῦς εὐθὺς τὸ καλόν ψυχὴ δὲ νῷ καλόνraquo

166

A proacutepria percepccedilatildeo da beleza por parte do sujeito acompanha tal evoluccedilatildeo

pois se ateacute ao terceiro niacutevel a alma natildeo discerne a relatividade das belezas sensiacuteveis jaacute

a partir do quarto ela comeccedila a perceber que a identificaccedilatildeo entre a beleza reconheciacutevel

nas realidades temporais e o bem soacute pode ser metafiacutesica significando que o belo natildeo eacute

uma propriedade inerente a tais realidades mas um vestiacutegio que nelas fulge da beleza

superior Esta suma beleza soacute pode ser contemplada desveladamente no uacuteltimo patamar

quando a alma jaacute eacute de tal modo pura e bela que se confunde com a natureza e com a

beleza daquilo que aspirava contemplar A alma natildeo saberia encontrar a beleza se antes

natildeo se tornasse ela proacutepria bela O seu aperfeiccediloamento natildeo implica que haja uma

progressiva insensibilidade face agraves expressotildees do belo no mundo sensiacutevel implica sim

um ultrapassar gradual da opacidade que as coisas temporais encerram para o

homem498

a beleza vai sendo percebida cada vez mais nitidamente e cada vez mais vai

sendo valorizada As coisas satildeo ultrapassadas na sua opacidade mas a beleza essa vai

sendo progressivamente ganha

Interessa no entanto questionar se para Santo Agostinho a beleza reconhecida

nas coisas corpoacutereas eacute sempre esse rasto do belo superior que pode ser seguido ateacute agrave sua

origem ou se efectivamente haacute uma beleza fiacutesica sem qualquer referecircncia agrave

inteligibilidade divina e por consequecircncia ao bem A beleza do corpo nem sempre eacute

proporcional agrave beleza no corpo e isso leva-nos a interrogar se o que estaacute por traacutes dessa

beleza corpoacuterea (do corpo) natildeo se resume a um acordo meramente formal A resposta eacute

negativa ndash ateacute mesmo essa beleza do corpo eacute resultado da ordenaccedilatildeo providencial de

Deus sendo por isso indissociaacutevel do bem Os nuacutemeros que subjazem a essa beleza natildeo

satildeo menos gloriosos Por exemplo em De civitate Dei Santo Agostinho afirma que a

beleza eacute um dom de Deus e eacute um bem mas ela pode ser atribuiacuteda tambeacutem a quem eacute

mau precisamente para que aqueles que satildeo bons mais claramente percebam que essa

beleza sensiacutevel natildeo eacute um bem maior499

O Bispo de Hipona quer com isto salientar a

498

A opacidade natildeo deve ser encarada como um castigo divino mas como um dispositivo necessaacuterio para

o aperfeiccediloamento da alma que seria gorado pela ofuscaccedilatildeo provocada pelo brilho da luz divina numa

alma natildeo preparada para a receber Trata-se pois de uma protecccedilatildeo

499 De civ Dei XV 22 (CCL 48 p 488) laquo[hellip] sed ab initio quae pravis moribus fuerant in terrena

civitate id est in terrigenarum societate amatae sunt a filiis Dei civibus scilicet peregrinantis in hoc

saeculo alterius civitatis propter pulchritudinem corporis Quod bonum Dei quidem donum est sed

propterea id largitur etiam malis ne magnum bonum videatur bonis Deserto itaque bono magno et

bonorum proprio lapsus est factus ad bonum minimum non bonis proprium sed bonis malisque

commune ac sic filii Dei filiarum hominum amore sunt capti atque ut eis coniugibus fruerentur in mores

societatis terrigenae defluxerunt deserta pietate quam in sancta societate servabant Sic enim corporis

167

inferioridade da beleza corpoacuterea e defender o desapego que face a ela o homem deve

assumir por um lado evitando que ele tome tal qualidade como um fim em si e por

outro lado evitando que a beleza perca a fluidez que a caracteriza na permeaccedilatildeo entre as

esferas do sensiacutevel e do inteligiacutevel A proacutepria fugacidade dessa beleza corpoacuterea vem

precisamente relembrar que natildeo eacute mais do que um veiacuteculo e do que um traccedilo de algo

superior e perene em relaccedilatildeo ao qual deve ser radicalmente preterida Atender agrave escala

de belezas eacute jaacute mapear o caminho ateacute Deus A beleza relativa dos corpos eacute

incomensuravelmente inferior agrave beleza absoluta divina Entre ambas haacute a beleza da alma

racional alma que eacute capaz de julgar as belezas sensiacuteveis e prever o deleite que a

aguarda pela contemplaccedilatildeo da suma Beleza

Importa ainda perceber se a beleza natildeo se descaracteriza pela confluecircncia no

bem Com efeito a um niacutevel primaacuterio o bem parece carecer de um poder de atracccedilatildeo

sem o belo ndash eacute o belo que atrai eacute ele que faz com que a alma deseje esse bem e bens

cada vez maiores ndash mas natildeo haacute bens sem beleza haacute apenas falhas no processo de

valoraccedilatildeo por parte do homem A beleza de um bem eacute o reconhecimento que a alma faz

desse bem Nesse sentido funciona tanto como um preacutemio porque deleita quanto como

um incentivo porque atrai Tambeacutem poderaacute funcionar como uma armadilha se por

exemplo o seu reconhecimento num bem menor impedir que a alma deseje bens

superiores e ascenda ateacute ao sumo Bem Aqui sim ocorreria uma indistinccedilatildeo entre bem e

belo ndash o belo seria erradamente tomado como o bem e perderia a sua capacidade de

remeter para o que estaacute mais aleacutem de si e que eacute a sua origem cativando a alma num

plano inferior Quando a alma percebe que haacute diferenccedila entre o belo que a atrai e o bem

que lhe diz respeito ela natildeo tem por que se deixar aprisionar e eacute livre para ascender

sem renunciar a nenhum dos dois

Se a alma escolhe seguir o bem automaticamente estaraacute a seguir a beleza poreacutem

se escolhe apenas a beleza que a atrai nos corpos estaraacute a subverter o princiacutepio da boa

ordem tomando o indiacutecio por aquilo que eacute indiciado tomando a via pela meta A beleza

sensiacutevel eacute para ser utilizada reconhecendo-se-lhe o elo com a beleza divina ndash soacute esta

poderaacute ser legitimamente fruiacuteda Em De doctrina christiana clarificam-se as

especificidades entre a utilizaccedilatildeo e a fruiccedilatildeo a primeira supotildee que algo seja

pulchritudo a Deo quidem factum sed temporale carnale infimum bonum male amatur postposito Deo

aeterno interno sempiterno bono quemadmodum iustitia deserta et aurum amatur ab avaris nullo peccato

auri sed hominisraquo

168

pragmaticamente colocado ao serviccedilo da obtenccedilatildeo de um objecto visado ao passo que a

segunda pressupotildee um liame afectivo (amor) entre o sujeito e um objecto valorizado

por si mesmo Santo Agostinho recorre agrave metaacutefora da viagem para explicar que o amor

pelas belezas inferiores atrasa o nosso percurso ateacute agrave paacutetria almejada essa sim digna de

ser fruiacuteda

Fruir eacute ligar-se por amor a uma coisa tida em si mesma Por outro lado

utilizar eacute referir aquilo que se usa agrave obtenccedilatildeo daquilo que se ama desde que

deva ser amado Assim uma utilizaccedilatildeo iliacutecita eacute chamada abuso ou de uso

abusivo Tomemos entatildeo como hipoacutetese que somos viajantes e que natildeo

podemos ser felizes senatildeo na paacutetria miacuteseros por tal exiacutelio e desejosos de sair

da miseacuteria queremos regressar agrave paacutetria e para conseguir regressar agrave paacutetria

de que queremos fruir precisamos de nos servir de veiacuteculos de transporte

mariacutetimos ou terrestres mas se as belezas da viagem ou os proacuteprios embalos

dos veiacuteculos nos deleitarem iremos virar-nos para a fruiccedilatildeo daquilo que

apenas deviacuteamos utilizar entatildeo natildeo desejaremos que a viagem finde em

breve e imersos num deleite perverso distanciar-nos-emos da paacutetria cujas

doccediluras nos tornariam plenamente felizes Por conseguinte se nesta vida

mortal em que somos viajantes longe do Senhor queremos tornar agrave paacutetria

onde poderemos ser plenamente felizes deveremos servir-nos deste mundo e

natildeo fruiacute-lo atraveacutes das coisas criadas e com o intelecto procuraremos

desvendar as perfeiccedilotildees invisiacuteveis de Deus ou seja por meio das coisas

corpoacutereas e temporais alcanccedilaremos as coisas eternas e espirituais500

As realidades temporais natildeo tecircm mais do que um valor instrumental pelo que

apesar de podermos encontrar algum deleite na sua fruiccedilatildeo deveremos reservar tal gozo

para a contemplaccedilatildeo da verdade eterna em relaccedilatildeo agrave qual qualquer encanto eacute paacutelido O

uso a que deveratildeo ser subordinadas tais realidades sensiacuteveis consiste na verdade em

assumi-las como objecto de conhecimento natildeo sendo por isso de estranhar a proposta

500

De doct christ I 4 4 (CCL 32 p 8) laquoFrui est enim amore inhaerere alicui rei propter seipsam Uti

autem quod in usum venerit ad id quod amas obtinendum referre si tamen amandum est Nam usus

illicitus abusus potius vel abusio nominandus est Quomodo ergo si essemus peregrini qui beate vivere

nisi in patria non possemus eaque peregrinatione utique miseri et miseriam finire cupientes in patriam

redire vellemus opus esset vel terrestribus vel marinis vehiculis quibus utendum esset ut ad patriam qua

fruendum erat pervenire valeremus quod si amoenitates itineris et ipsa gestatio vehiculorum nos

delectaret conversi ad fruendum his quibus uti debuimus nollemus cito viam finire et perversa suavitate

implicati alienaremur a patria cuius suavitas faceret beatos sic in huius mortalitatis vita peregrinantes a

Domino si redire in patriam volumus ubi beati esse possimus utendum est hoc mundo non fruendum ut

invisibilia Dei per ea quae facta sunt intellecta conspiciantur hoc est ut de corporalibus

temporalibusque rebus aeterna et spiritalia capiamusraquo Cf De civ Dei XI 25 (CCL 48 p 344) laquo[hellip] re

frui dicimur quae nos non ad aliud referenda per se ipsa delectat uti vero ea re quam propter aliud

quaerimus [hellip]raquo

169

da via ascensional atraveacutes das artes ou disciplinas liberais que examinaremos na segunda

parte desta dissertaccedilatildeo Santo Agostinho acrescentaraacute no entanto que se o conhecimento

natildeo estiver associado ao amor pelo criador ele natildeo passaraacute de uma zona obscura501

32 - Na raia do erotismo ndash da philocalia agrave philosophia

O tema do amor no pensamento agostiniano conflui no do conhecimento com a

vantagem de que a sua anaacutelise permite abordar a relaccedilatildeo entre o sujeito e o mundo sem

cair na dicotomia entre racionabilidade e sensibilidade ou pelo menos permitindo uma

visatildeo mais integrada de ambas as dimensotildees ndash uma visatildeo bastante mais adequada ao

pensamento agostiniano onde como jaacute vimos natildeo haacute uma verdadeira cisatildeo entre

homem exterior e homem interior502

O modo como cada homem vecirc o mundo eacute o resultado de um mecanismo

selectivo baseado em sensaccedilotildees de atracccedilatildeo e repulsa que reflecte uma

hierarquia pessoal de valores Eacute nesta senda que Max Scheler considera que

para o Bispo de Hipona todos os actos intelectuais e todos os conteuacutedos

imaginativos e significativos que lhes correspondem ndash desde a percepccedilatildeo

sensiacutevel mais simples ateacute agraves mais complicadas criaccedilotildees representativas e

conceptuais ndash natildeo apenas estatildeo vinculados agrave existecircncia de objectos exteriores

e aos estiacutemulos sensiacuteveis que deles provecircm (ou estiacutemulos reprodutores de que

eacute exemplo o recordar) como estatildeo sobretudo vinculados essencial e

necessariamente a actos de tomada de interesse e atenccedilatildeo e em uacuteltima instacircncia

501

Cf De civ Dei XI 29

502 Vide p 87 da presente dissertaccedilatildeo

170

a actos de amor e oacutedio503

Segundo Scheler o amor eacute no pensamento agostiniano quase

uma categoria a priori do conhecimento e eacute o acto mais primaacuterio sobre o qual todos os

outros se alicerccedilam Sem haver um interesse em algo natildeo pode ocorrer nenhuma

sensaccedilatildeo nenhuma representaccedilatildeo nenhum juiacutezo nenhuma recordaccedilatildeo nem nenhuma

intenccedilatildeo As direcccedilotildees dos nossos actos perceptivos e representativos seguem as

direcccedilotildees do nosso amor do mesmo modo o nosso desejo ou necessidade de

aprofundar o conhecimento sobre aquilo que nos rodeia e que nos move eacute uma

manifestaccedilatildeo da profundidade desse amor

Ordo amoris eacute como o filoacutesofo alematildeo designa a hierarquia de valores impliacutecita

na forma como cada homem vecirc o mundo de acordo com a leitura que faz dos escritos

agostinianos504

Por exemplo em De civitate Dei o Bispo de Hipona diz que a definiccedilatildeo

mais sucinta e verdadeira da virtude eacute precisamente a ordem do amor505

O destino e o mundo circundante satildeo determinados pelo ordo amoris Esta ideia

reflecte obviamente um problema de natureza moral a que Santo Agostinho se refere

em De doctrina christiana quando escreve

De acordo com a justiccedila e a santidade vive aquele que sabe estimar

integramente as coisas Por possuir um amor bem ordenado evita amar o

que natildeo deve ser amado natildeo amar o que deve ser amado amar demais o que

natildeo deve ser demasiado amado amar equitativamente aquilo que deve ser

mais ou menos amado Nenhum pecador enquanto tal deve ser amado e

todo o homem enquanto tal deve ser amado por amor a Deus no entanto

Deus deve ser amado por si E se Deus deve ser amado mais do que qualquer

homem cada um deve amar Deus mais do que a si mesmo Do mesmo

modo devemos amar o proacuteximo mais do que ao nosso corpo pois todas as

coisas devem ser amadas relativamente a Deus e o proacuteximo pode partilhar

connosco a fruiccedilatildeo de Deus coisa que natildeo eacute consentida ao corpo que

enquanto tal vive graccedilas agrave alma e eacute graccedilas a ela que fruiacutemos de Deus506

503

Cf Max Scheler Amor y conocimiento y otros escritos Sergio Saacutenchez-Migalloacuten (trad) Madrid

Palabra 2010 p 44

504 Cf Max Scheler Ordo amoris Xavier Zubiri (trad) 3ordf Ed Madrid Caparroacutes 2008 Hannah Arendt

categoriza este aspecto como ordinata dilectio e considera-o como uma das vertentes do amor sui a par

do amor enquanto desejo (appetitus) Cf Hanna Arendt O conceito de amor em Santo Agostinho Alberto

Pereira Dinis (trad) Lisboa Instituto Piaget 1997 p 39

505 De civ Dei XV 22 (CCL 48 p 488) laquo[hellip] quod definitio brevis et vera virtutis ordo est amoris [hellip]raquo

506 De doct christ I 27 28 (CCL 32 p 22) laquoIlle autem iuste et sancte vivit qui rerum integer aestimator

est Ipse est autem qui ordinatam habet dilectionem ne aut diligat quod non est diligendum aut non

diligat quod diligendum est aut amplius diligat quod minus diligendum est aut aeque diligat quod vel

171

A adequaccedilatildeo do amor quanto ao seu objecto e intensidade eacute sempre relativa a

Deus ldquoAmar natildeo eacute mais do que desejar uma coisa por si mesmardquo diz o Bispo de

Hipona em De diversis quaestionibus octoginta tribus507

ora soacute Deus deve ser desejado

por si mesmo (propter se) e tudo o resto em funccedilatildeo dele Quando tal natildeo ocorre o amor

assume a forma de cupiditas e a sua forccedila motriz ao inveacutes de elevar o homem prende-o

agraves coisas mundanas e impede-o de aceder ao conhecimento da verdadeira realidade

Dada a natureza impermanente do objecto de amor atraveacutes do qual se espera encontrar a

felicidade a alma jamais encontraraacute descanso nesse amor agraves coisas materiais temendo

constantemente perdecirc-las contra a sua vontade A cupiditas ocorre portanto quando se

ama o mundo por si esquecendo a prioridade absoluta do Criador em relaccedilatildeo agrave criaccedilatildeo

Por seu turno a caritas promove a liberdade autonomizando o homem em relaccedilatildeo

agravequilo que na verdade sempre escapa ao seu alcance por lhe ser exterior e por estar

sujeito agrave mutabilidade Atraveacutes do exerciacutecio da caritas o medo de perder ou de natildeo ter

domiacutenio sobre aquilo que eacute arrebatado pela morte deixa de fazer sentido A caritas eacute

entatildeo o amor justo que ndash citando a grande teoacuterica do amor agostiniano ndash ldquoconcede

pertenccedila agrave eternidaderdquo508

No amor a Deus o homem ama-se de modo justo (recte)

a si proacuteprio e soacute assim pode alcanccedilar a plenitude do seu ser que natildeo eacute imanente agrave

vida mundana

Eacute a escolha do objecto de amor e forma como se ama que distinguem a caritas

da cupiditas Tal natildeo significa que natildeo deva existir um exerciacutecio de amor dirigido para

as demais criaturas mas que esse amor deve contemplar um certo esquecimento de si

por parte do sujeito e deve ser auto-reflexivo O amor ao proacuteximo eacute particularmente

elucidativo jaacute que Santo Agostinho o refere como um amor em que natildeo eacute propriamente

o proacuteximo que eacute amado mas o proacuteprio amor Ora quem ama o amor ama Deus que eacute o

minus vel amplius diligendum est Omnis peccator in quantum peccator est non est diligendus et omnis

homo in quantum homo est diligendus est propter Deum Deus vero propter seipsum Et si Deus omni

homine amplius diligendus est amplius quisque Deum debet diligere quam seipsum Item amplius alius

homo diligendus est quam corpus nostrum quia propter Deum omnia ista diligenda sunt et potest

nobiscum alius homo Deo perfrui quod non potest corpus quia corpus per animam vivit qua fruimur

Deoraquo

507 Div quaest 83 35 1 (CCL 44A p50) laquoNihil enim aliud est amare quam propter se ipsam rem

aliquam appetereraquo

508 Hannah Arendt O conceito de amor em Santo Agostinho p 29

172

proacuteprio amor509

Eacute desejaacutevel amar Deus em todas as criaturas relativizando-as e

reencontrando o seu sentido como daacutediva amorosa de Deus

Esta circularidade da dilecccedilatildeo pode inclusivamente ser reconhecida a partir da

temaacutetica da percepccedilatildeo sensiacutevel Quando no subcapiacutetulo I 1 3 frisaacutemos que na

percepccedilatildeo o princiacutepio activo jamais eacute o corpo distinguimos dois processos que

concorrem para o fenoacutemeno sensiacutevel a acccedilatildeo do objecto externo sobre o corpo do

sujeito que percebe e a acccedilatildeo da alma sobre o corpo em resposta agrave impressatildeo causada

pelo objecto Assim natildeo restam duacutevidas de que no acto perceptivo o encontro do

sujeito com o objecto integra tambeacutem a dimensatildeo activa desse objecto o que manifesta

explicitamente a bondade divina pela daacutediva do mundo ao homem Os objectos

sensiacuteveis datildeo-se e revelam-se ao homem com a mesma gratuitidade com que Cristo

veio ao mundo Haacute uma revelaccedilatildeo natural a par da revelaccedilatildeo de Cristo e ambas satildeo

revelaccedilotildees do amor divino Os proacuteprios sensibilia tecircm o seu valor e plenitude ontoloacutegica

associados agrave sua revelaccedilatildeo e fazem parte do diaacutelogo amoroso entre Deus e o homem

Nesta senda haacute que problematizar a adequaccedilatildeo da resposta amorosa do sujeito ao ldquodar-

se ao conhecimentordquo por parte dos sensibilia que nos reconduz uma vez mais agrave

questatildeo uti-frui

Todo o amor eacute uma tensatildeo para a fruiccedilatildeo para a tranquilidade (quies) de estar

perto daquilo que se deseja A realizaccedilatildeo do amor eacute a beatitude e segue uma via que tem

de passar pelo uso (uti) ateacute dar lugar agrave permanecircncia da fruiccedilatildeo (frui) O amor a Deus eacute

incompatiacutevel com o amor que procura a quietude da felicidade nas criaturas mas natildeo

com o amor devidamente ordenado pelas criaturas que atraveacutes delas procura Deus O

homem eacute neste mundo como um peregrino em Sua demanda que soacute teraacute descanso

quando conseguir o desapego relativo agrave felicidade enganosa e efeacutemera que lhe concede

o amor desordenado (cupiditas) Se no acto de amar as coisas deste mundo estiver

impliacutecito o desejo de alcanccedilar Deus entatildeo esse amor eacute uma via para a beatitude Se ao

amar as coisas deste mundo o homem pretender encontrar nelas a fonte da sua

felicidade natildeo gozaraacute o tatildeo almejado descanso contemplativo Diz Santo Agostinho

509

In Iohan Ep Tract IX 10 (CCL 36 p 96) laquoNumquid potest diligere fratrem et non diligere

dilectionem Necesse est ut diligat dilectionem [hellip] Diligendo dilectionem Deum diligit [hellip] Necesse est

qui diligis fratrem diligas ipsam dilectionem dilectio autem Deus est necesse est ergo ut Deum diligat

quisquis diligit fratremraquo

173

Deus natildeo te proiacutebe de amar estas coisas mas de [lhes] devotares o teu

amor com o propoacutesito de alcanccedilar a felicidade todavia [natildeo eacute proibido]

aceitar e louvar [as criaturas] ao amares o Criador 510

O processo de salvaccedilatildeo alicerccedila-se no amor divino e o amor a Deus natildeo exclui o

amor ao proacuteximo nem agraves demais criaturas Significa isto que a caritas e a cupiditas natildeo

correspondem linearmente ao amor a Deus e ao amor agraves criaturas a caritas integra

tambeacutem o recto amor pelas criaturas que eacute aquele que natildeo as tem por finalidade e que

natildeo espera delas fruir ainda que uma certa fruiccedilatildeo natildeo esteja delas totalmente excluiacuteda

Este recto amor eacute portanto baseado no uso A distinccedilatildeo uti-frui permite ao Bispo de

Hipona defender um amor especiacutefico pelo mundo temporal

Por seu turno Deus pode ser amado como uma luz como voz como odor

todavia natildeo como um estiacutemulo sensiacutevel ndash porque esta luz voz e odor estatildeo no homem

interior e natildeo no mundo dos sensibilia ndash mas como beleza Em Confessionum haacute duas

famosas passagens que se destacam por ilustrarem a transcendentalizaccedilatildeo da memoacuteria

de certos prazeres sensiacuteveis atraveacutes de uma espeacutecie de projecccedilatildeo no amor a Deus

Mas que amo eu quando te amo Natildeo a beleza do corpo nem a gloacuteria

do tempo nem esta claridade da luz tatildeo amaacutevel a meus olhos natildeo as doces

melodias de todo o geacutenero de canccedilotildees natildeo a fragracircncia das flores e dos

perfumes e dos aromas natildeo o manaacute e o mel natildeo os membros agradaacuteveis aos

abraccedilos da carne Natildeo eacute isto o que eu amo quando amo o meu Deus E no

entanto amo uma certa luz e uma certa voz e um certo perfume e um certo

alimento e um certo abraccedilo quando amo o meu Deus luz voz perfume

alimento abraccedilo do homem interior que haacute em mim onde brilha para a

minha alma o que natildeo ocupa lugar e onde ressoa o que o tempo natildeo rouba e

onde exala perfume o que o vento natildeo dissipa e onde daacute sabor o que a

sofreguidatildeo natildeo diminui e onde se une o que a saciedade natildeo separa Isto eacute o

que eu amo quando amo o meu Deus511

510

In Iohan Ep TractII 11 (CCL 36 p 16) laquoNon te prohibet Deus amare ista sed non diligere ad

beatitudinem sed approbare et laudare ut ames creatoremraquo

511 Conf X 6 8 (CCL 27 p 158) laquoQuid autem amo cum te amo Non speciem corporis nec decus

temporis non candorem lucis ecce istis amicum oculis non dulces melodias cantilenarum omnimodarum

non florum et unguentorum et aromatum suaviolentiam non manna et mella non membra acceptabilia

carnis amplexibus non haec amo cum amo Deum meum Et tamen amo quamdam lucem et quamdam

vocem et quemdam odorem et quemdam cibum et quemdam amplexum cum amo Deum meum lucem

vocem odorem cibum amplexum interioris hominis mei ubi fulget animae meae quod non capit locus

et ubi sonat quod non rapit tempus et ubi olet quod non spargit flatus et ubi sapit quod non minuit

edacitas et ubi haeret quod non divellit satietas Hoc est quod amo cum Deum meum amoraquo A traduccedilatildeo

presente no corpo do texto eacute de Arnaldo Espiacuterito Santo Joatildeo Beato e Maria Cristina Castro Maia de

Sousa Pimentel in Confissotildees Lisboa IN-CM 2001

174

Tarde te amei beleza tatildeo antiga e tatildeo nova tarde te amei E eis que

estavas dentro de mim e eu fora e aiacute te procurava e eu sem beleza

precipitava-me nessas coisas belas que tu fizeste Tu estavas comigo e eu

natildeo estava contigo Retinham-me longe de ti aquelas coisas que natildeo seriam

se em ti natildeo fossem Chamaste e clamaste e rompeste a minha surdez

brilhaste cintilaste e afastaste a minha cegueira exalaste o teu perfume e

eu respirei e suspiro por ti saboreei-te e tenho fome e sede tocaste-me e

inflamei-me no desejo da tua paz512

Para o homem jaacute desperto para a sua interioridade os prazeres gozados atraveacutes

dos diversos sentidos corporais prognosticam e descrevem a experiecircncia do amor a

Deus Natildeo haacute qualquer hesitaccedilatildeo por parte do Bispo de Hipona em considerar Deus

como a beleza originaacuteria e final contrariamente ao que Plotino defendia a beleza eacute

directa e plenamente atribuiacuteda agrave divindade A recta dedicaccedilatildeo amorosa natildeo soacute permite

impulsionar o percurso esteacutetico ndash um percurso legiacutetimo dada a continuidade entre

beleza inteligiacutevel e beleza participada que o numerus confere ndash como determina a

possibilidade de uma hermenecircutica atraveacutes das belezas sensiacuteveis

A vertente emocional do homem natildeo eacute destacada da razatildeo sendo que o

reconhecimento deste enlace entre amor beleza e razatildeo remonta a Platatildeo No Banquete

Soacutecrates coloca na boca de Diotima de Maniteacuteia a afirmaccedilatildeo de que o amor eacute amor pelo

belo e que uma das coisas mais belas eacute a sabedoria513

A estrangeira teraacute ainda descrito a

Soacutecrates uma espeacutecie de pedagogia do amor ou via ascensional que atraveacutes da recta

consideraccedilatildeo das belezas sensiacuteveis e inteligiacuteveis conduz gradualmente o homem ateacute agrave

eterna fonte do belo514

Tal via encontra eco nas Eneacuteadas de Plotino sobretudo quando

haacute a enumeraccedilatildeo das realidades que o olho interior deve atender para progressivamente

512

Conf X 27 38 (CCL 27 p 175) laquoSero te amavi pulchritudo tam antiqua et tam nova sero te amavi

Et ecce intus eras et ego foris et ibi te quaerebam et in ista formosa quae fecisti deformis irruebam

Mecum eras et tecum non eram Ea me tenebant longe a te quae si in te non essent non essent Vocasti

et clamasti et rupisti surdidatem meam coruscasti splenduisti et fugasti caecitatem meam fragrasti et

duxi spiritum et anhelo tibi gustavi et esurio et sitio tetigisti me et exarsi in pacem tuamraquo A traduccedilatildeo

presente no corpo do texto eacute de Arnaldo Espiacuterito Santo Joatildeo Beato e Maria Cristina Castro Maia de

Sousa Pimentel in Confissotildees Lisboa IN-CM 2001

513 CF Platatildeo O banquete 204b

514 Ibid 210a - 212a O primeiro patamar da dialeacutectica amorosa eacute o amor pelos corpos os dois seguintes

patamares satildeo respeitantes ao amor pela beleza da alma pelas actividades e leis humanas o quarto

patamar refere-se ao amor pela beleza do conhecimento e o uacuteltimo patamar da escala amorosa

corresponde agrave visatildeo da beleza enquanto Forma ideal

175

conseguir uma habituaccedilatildeo que lhe permita suportar a visatildeo da beleza primordial515

Esse

mesmo eco pode igualmente ser reconhecido nas gradaccedilotildees agostinianas descritas no

subcapiacutetulo anterior

Entre amor e conhecimento haacute uma relaccedilatildeo de muacutetuo benefiacutecio sendo difiacutecil

estabelecer uma hierarquia embora Santo Agostinho testemunhe considerar o amor

como a forccedila motriz mais originaacuteria da mente quer divina 516

quer humana A isto

acrescenta que o amor eacute mais do que qualquer razatildeo fonte de bem-aventuranccedila A

razatildeo permite ordenar o amor promovendo a sua eficaacutecia no processo de

transcendecircncia mas eacute o amor que a impulsiona e que faz com que a alma franqueie as

portas do divino ao tornar-se ela mesma bela Diz o filoacutesofo que a caritas eacute ela proacutepria

a beleza da alma517

e a alma eacute tanto mais bela e mais amaacutevel quanto melhor uso fizer da

sua vertente racional518

Em Contra Academicos Santo Agostinho apresenta em jeito de faacutebula a

distinccedilatildeo entre philosophia ndash que eacute o nome dado ao amor pela sabedoria (amor

sapientiae) ndash e philocalia ndash que eacute o amor pela beleza (amor pulchritudinis)

Perspectivando-as como duas aves diz que satildeo como irmatildes uma poreacutem tendo descido

do ceacuteu cativada pela voluptuosidade manteacutem-se presa dentro da gaiola que eacute o mundo

terreno ao passo que a outra adeja livremente pelos ceacuteus Em liberdade a philosophia

reconhece a sua irmatilde cativa mas raramente a liberta Soacute ela sabe a origem da philocalia

que partilha consigo o mesmo progenitor519

Cerca de 40 anos mais tarde Santo Agostinho testemunha em Retractationum

que esta faacutebula eacute desadequada e ridiacutecula pois na verdade tomando a philocalia numa

acepccedilatildeo mais corriqueira ela natildeo eacute digna de ser considerada como pertencendo agrave

mesma linhagem que a philosophia por outro prisma tomando a philocalia como amor

pelo belo e havendo uma verdadeira beleza na sabedoria natildeo haacute razatildeo para a distinguir

515

Cf En I 6 9

516 O amor de Deus manifesta-se no proacuteprio acto criador e no acto redentor de Cristo

517 In Iohan Ep TractIX 9 (CCL 36 p 95) laquo[hellip] ipsa caritas est animae pulchritudoraquo

518 Sol I 2 7 (CSEL 89 p 12) laquoLicet enim mihi in quovis amare rationem cum illum iure oderim qui

male utitur eo quod amo Itaque tanto magis amo amicos meos quanto magis bene utuntur anima

rationali vel certe quantum desiderant ea bene utiraquo

519 Cf Contra Acad II 3 7

176

da philosophia Neste caso natildeo satildeo como irmatildes uma vez que coincidem perfeitamente

na esfera incorpoacuterea elas satildeo portanto uma e a mesma coisa520

Santo Agostinho teraacute tomado conhecimento da palavra φιλοκαλία no Fedro de

Platatildeo onde eacute usada na sua forma adjectivante para qualificar aquele cuja alma

contemplou a verdade Diz Platatildeo que a alma que mais tiver contemplado a verdade

deveraacute dar origem a um homem que seraacute um filoacutesofo amante da beleza e muacutesico521

A

tradiccedilatildeo platoacutenica faz portanto corresponder o esteta ao filoacutesofo jaacute que ambos visam

retornar agrave beleza da verdade Para o Bispo de Hipona a filosofia eacute tambeacutem o amor pela

verdadeira beleza pelo que a designaccedilatildeo philocalia acaba por se tornar redundante e

perde razatildeo de ser Em ambos os conceitos estava em causa o amor pela idealidade e

pela verdade A proacutepria filosofia eacute considerada como um caminho para a vera

pulchritudo por pressupor a aspiraccedilatildeo e o amor agrave sabedoria Todavia eacute preciso natildeo

esquecer que Santo Agostinho nem sempre se refere agrave filosofia de um modo generalista

e muitas vezes critica escolas de pensamento especiacuteficas ou filoacutesofos concretos522

o

que natildeo invalida que reconheccedila o valor intriacutenseco da atitude filosoacutefica Renunciar agrave

filosofia seria renunciar ao amor pela sabedoria e tal eacute naturalmente sacriacutelego

Gilson refere duas acepccedilotildees para o conceito agostiniano de filosofia em certas

obras o termo filosofia refere-se simplesmente agrave especulaccedilatildeo racional em geral e neste

caso qualquer procura pela verdade eacute considerada filosoacutefica noutras obras a filosofia

surge como uma busca pela verdade especificamente classificaacutevel de acordo com a

capacidade e eficaacutecia relativas ao alcance da finalidade a que se propotildee Neste caso por

exemplo Santo Agostinho considera os filoacutesofos platoacutenicos ndash nomeadamente Platatildeo e

520

Retr I 1 3 (CCL 57 p 9) laquoIn secundo autem libro prorsus inepta est et insulsa illa quasi fabula de

philocalia et philosophia quod sint germanae et eodem parente procreatae Aut enim philocalia quae

dicitur nonnisi in nugis est et ob hoc philosophiae nulla ratione germana aut si propterea est hoc nomen

honorandum quia Latine interpretatum amorem significat pulchritudinis et est vera ac summa sapientiae

pulchritudo eadem ipsa est in rebus incorporalibus atque summis philocalia quae philosophia neque ullo

modo sunt quasi sorores duaeraquo

521 Platatildeo Fedro 248d

522 Aliaacutes em Contra Jul IV 14 72 (PL 44 c 774) afirma que a uacutenica filosofia verdadeira eacute a cristatilde

laquoObsecro te non sit honestior philosophia Gentium quam nostra Christiana quae una est vera

philosophiaraquo

177

Plotino ndash como aqueles que mais se aproximam da verdadeira filosofia por

reconhecerem na divindade a primeira causa do universo e a fonte da felicidade523

De acordo com Eacutemile Saisset524

para Santo Agostinho a filosofia interessa como

exerciacutecio intelectual profiacutecuo que procura abordar trecircs grandes questotildees Qual eacute a causa

primeira de tudo o que existe Onde reside a fonte de conhecimento e da verdade Qual

eacute a finalidade uacuteltima da existecircncia Estas questotildees correspondem precisamente agrave

triparticcedilatildeo da filosofia proposta pelos filoacutesofos platoacutenicos e que eacute inteiramente subscrita

pelo Bispo de Hipona em De civitate Dei por conceptualizar ordenadamente o Ser a

Verdade e o Bem Nessa triparticcedilatildeo os filoacutesofos gregos teriam pressentido a Santiacutessima

Trindade o Pai no Ser dos seres o Filho como Verdade jaacute que eacute o Verbo ou luz

inteligiacutevel o Espiacuterito Santo como princiacutepio de toda a acccedilatildeo e morada do amor A

divisatildeo platoacutenica da filosofia referida pelo Bispo de Hipona contempla portanto a

Fiacutesica ou ciecircncia natural a Loacutegica ou ciecircncia do entendimento e a Eacutetica ou ciecircncia da

moral525

Como tal os platoacutenicos estavam no caminho daquilo que Santo Agostinho diz

ser a genuiacutena filosofia aquela que tem precisamente por objectivo ensinar a existecircncia

sempiterna de um princiacutepio universal a grandeza da inteligecircncia nele presente e o valor

que dele dimana para a nossa salvaccedilatildeo sem que caia no devir526

A filosofia natildeo eacute a proacutepria sabedoria mas apenas o seu estudo ou meacutetodo

propiciador Assim sendo tambeacutem o filoacutesofo natildeo eacute automaticamente um saacutebio por seguir

a via do amor ao conhecimento A sabedoria encontra-se em Deus que natildeo eacute

directamente acessiacutevel ao conhecimento humano Para o conhecer o homem tem primeiro

de conhecer a sua proacutepria alma e ao fazecirc-lo descobre que natildeo eacute um ser auto-suficiente ou

independente A felicidade a que almeja estaacute para laacute de si pelo que tal constataccedilatildeo surge

acompanhada pela consciecircncia da situaccedilatildeo precaacuteria que caracteriza a condiccedilatildeo humana

Soacute amando e possuindo o que eacute bom para si a alma poderaacute ser feliz No percurso para a

felicidade o amor eacute como um peso capaz de equilibrar e orientar cada passo do

523

Gilson Introduction agrave lrsquoeacutetude de Saint Agustin p 41 Cf De civ Dei I 8 para a afirmaccedilatildeo agostiniana

da proximidade entre os filoacutesofos platoacutenicos e a crenccedila cristatilde

524 Eacutemile Edmond Saisset Introduction agrave La citeacute de Dieu de Saint Augustin Paris Charpentier 1855 p lii

525 Cf De civ Dei VIII 4 e XI 25

526 De ord II 5 16 (CCL 29 p 116) laquo[hellip] germana philosophia est quam ut doceat quod sit omnium

rerum principium sine principio quantusque in eo maneat intellectus quidve inde in nostram salutem sine

ulla degeneratione manaverit [hellip]raquo

178

homem527

Esse percurso constroacutei-se portanto amando correctamente tudo aquilo que

conveacutem agrave alma Por detraacutes do amor estaacute no entanto a nossa capacidade de escolha e um

conhecimento preacutevio da ordem e do valor relativo ao plano divino pelos quais se

deveratildeo reger as nossas escolhas Tal como vimos o conhecimento depende do amor

mas para ser genuiacuteno e ordenado tambeacutem o amor tem de ter uma base racional

Satildeo diversas as passagens onde o Bispo de Hipona defende que natildeo eacute possiacutevel

amar aquilo que natildeo se conhece528

Os limites do amor correspondem de certo modo aos

limites da nossa capacidade intelectual O amor a Deus levanta com maior acutilacircncia a

questatildeo da interdependecircncia entre amor e conhecimento conhecer Deus implica amaacute-lo

e o amor a Deus pressupotildee um certo conhecimento preacutevio Dele O amor ao proacuteximo e

o amor a si funcionam como um meacutetodo amoroso que conduz a Deus e que parece

fundar-se numa espeacutecie de preacute-conhecimento subconsciente da divindade que permite

entatildeo a consciecircncia do amor a Deus

A circularidade impliacutecita neste esquema amoroso natildeo eacute tautoloacutegica o amor

votado ao proacuteximo e a si eacute jaacute o amor a Deus pois eacute jaacute o amor em si que eacute amado Haacute um

amor preacutevio a Deus do qual soacute se adquire consciecircncia pelo amor ao proacuteximo e a si A

consciecircncia de que Deus pode ser mediatamente conheciacutevel tambeacutem soacute surge pela

consciecircncia do amor a Deus que impulsiona tal esforccedilo intelectual de procura da

divindade poreacutem um certo conhecimento de Deus estaacute jaacute impresso na alma pela

imagem trinitaacuteria presente na mente Este preacute-conhecimento eacute convocado pela memoacuteria

natildeo como uma lembranccedila de algo passado mas como rememoraccedilatildeo presente529

Uma

527

Conf XIII 9 10 (CCL 27 p 246) laquoPondus meum amor meus eo feror quocumque feror Dono tuo

accendimur et sursum ferimur inardescimus et imusraquo

528 Cf De Trin VIII 4 6 X 1 1 XIII 4 7 XIV 14 18

529 Cf De Trin XIV 15 21 Natildeo se trata da lembranccedila de uma vivecircncia anterior nem atraveacutes de qualquer

legado adacircmico mas da recordaccedilatildeo de Deus que estaacute desde sempre presente em todo o lado por onde o

homem se mova Na verdade eacute Nele que a mente se move e tem o seu fundamento ontoloacutegico pelo que

natildeo eacute de estranhar que a memoacuteria possa rememoraacute-lo enquanto presenccedila e natildeo como algo passado A

memoacuteria de Deus radica na dependecircncia da alma em relaccedilatildeo a Si Mais uma vez se nota a tendecircncia

agostiniana de se desviar da teoria platoacutenica da reminiscecircncia ainda que ela tenha servido de base agrave sua

teoria da iluminaccedilatildeo divina A possibilidade da memoacuteria ter consciecircncia de algo que natildeo eacute preteacuterito surge

enfatizada pelo Bispo de Hipona quando cita Virgiacutelio e a lembranccedila que Ulisses teraacute de si mesmo (Eneida

III 5) Se a memoacuteria soacute se reportasse a coisas passadas Ulisses natildeo poderia lembrar-se de si mesmo jaacute

que foi sempre presente para si proacuteprio Por conseguinte a memoacuteria eacute tambeacutem a faculdade da auto-

consciecircncia ou seja eacute a faculdade de se presentificar a si mesma de modo a poder ser abarcada pelo seu

proacuteprio pensamento e a unir-se pelo amor a esse pensamento A memoacuteria pode portanto constituir-se

como objecto da sua proacutepria consciecircncia De Trin XIV 11 14 (CCL 50A p 442) laquoVergilius enim cum

sui non oblitum diceret Ulixem quid aliud intellegi voluit nisi quod meminerit sui Cum ergo sibi

179

rememoraccedilatildeo que eacute impulsionada pela feacute no redentor e na salvaccedilatildeo A humanidade de

Cristo convoca a feacute para a sua dimensatildeo divina que natildeo pode ser percebida pelo olho

carnal mas pelo olho interior ndash para a maioria dos homens o amor que ele inspira e

exemplifica eacute o primeiro passo para a via da interioridade

Subscrevemos inteiramente a posiccedilatildeo de Carol Harrison segundo a qual Cristo

suscita tal amor atraveacutes de uma estrateacutegia esteacutetica a fealdade que a incarnaccedilatildeo

comporta promove precisamente a reformaccedilatildeo da beleza humana530

Harrison afirma

que ldquoapesar de possuir a suprema beleza e forma de Deus Cristo o Noivo assumiu a

forma da Sua amada [a humanidade] a forma da mortalidade e pecaminosidade de

modo a revelar-lhe o Seu amor e restaurar a sua beleza evocando a sua confissatildeo de

pecado e amor [hellip] A disformidade de Cristo evoca portanto um amor no sujeito da

percepccedilatildeo que natildeo eacute propriamente dirigido agrave Sua beleza fiacutesica jaacute que esta foi destruiacuteda

mas agrave sua lsquobeleza interiorrsquo que [hellip] reside no Seu amorrdquo531

O amor a Deus granjeado pelo homem eacute possiacutevel graccedilas ao amor de Deus

expresso na exemplaridade do Redentor ao qual o homem eacute receptivo e responde

porque Deus o presenteou com o Espiacuterito Santo que eacute amor O amor de Deus e o amor

a Deus satildeo assim um soacute

praesens esset nullo modo sui meminisset nisi ad res praesentes memoria pertineret Quapropter sicut in

rebus praeteritis ea memoria dicitur qua fit ut valeant recoli et recordari sic in re praesenti quod sibi est

mens memoria sine absurditate dicenda est qua sibi praesto est ut sua cogitatione possit intellegi et

utrumque sui amore coniungiraquo

530 Carol Harrison Beauty and Revelation in the Thought of Saint Augustine p 233

531 Id op cit pp 236-237 laquoThough He possessed the supreme beauty and form of God Christ the

Bridegroom assumed the form of His beloved the form of her mortality and sinfulness in order to reveal

to her His love and restore her beauty by evoking her confession of sin and love [] The deformity of

Christ therefore evokes a love in the beholder which is not so much directed towards His physical beauty

for that has been destroyed but towards His inner beauty which [hellip] dwells in His love

180

33 - Atitude esteacutetica como processo relacional introspectivo e intencional

Haacute uma propedecircutica para a via da interioridade no proacuteprio questionamento

sobre a percepccedilatildeo sensiacutevel e sobre tudo o que cativa a atenccedilatildeo do sujeito causando-lhe

prazer ou admiraccedilatildeo O deleite esteacutetico natildeo eacute tanto o agrado dos sentidos mas sim a

proacutepria percepccedilatildeo da inteligibilidade como intuiccedilatildeo directa dos numeri que codificam

toda a realidade sensiacutevel incluindo os proacuteprios processos perceptivo e judicativo

Quando o Bispo de Hipona se debruccedila especificamente sobre o belo procura

esclarecer o que estaacute por detraacutes da beleza das coisas sensiacuteveis e de que modos podemos

ser tocados por ela Desde logo constata na senda de Plotino que a alma eacute em si

mesma bela e que a ela devemos o reconhecimento da beleza A interioridade eacute pois a

sede do belo e natildeo haacute beleza sensiacutevel que natildeo passe pelo crivo judicativo do animus532

Assim a beleza exterior eacute percebida interiormente e aferida de acordo com leis

imutaacuteveis533

leis estas que satildeo necessariamente superiores agrave alma racional que habitam

As pulchritudinis leges natildeo podem ser outras senatildeo as proacuteprias Formas ou leis da

verdade eterna534

O reconhecimento da beleza convoca pela via interior a procura do

plano inteligiacutevel e em uacuteltima instacircncia de Deus

A interioridade judicativa conforme estabelecida por exemplo em De musica

demonstra que Santo Agostinha aprova a compreensatildeo do mundo e da existecircncia a

532

De civ Dei VIII 6 (CCL 47 p 222) laquoNulla est enim pulchritudo corporalis sive in statu corporis

sicut est figura sive in motu sicut est cantilena de qua non animus iudicetraquo

533 De Trin XII 2 2 (CCL 50 p 357) laquoSed sublimioris rationis est iudicare de istis corporalibus

secundum rationes incorporales et sempiternas quae nisi supra mentem humanam essent incommutabiles

profecto non essent atque his nisi subiungeretur aliquid nostrum non secundum eas possemus de

corporalibus iudicare Iudicamus autem de corporalibus ex ratione dimensionum atque figurarum quam

incommutabiliter manere mens nouitraquo

534 Vide subcapiacutetulo 21 p 105

181

partir da esteacutetica O divino parece ser qualificaacutevel a partir do mundo sensiacutevel dada a sua

especularidade e dimensatildeo vestigial mas acabamos por perceber que na verdade

ocorre o inverso ao serem submetidos a leis imutaacuteveis e inteligiacuteveis satildeo os objectos da

sensibilidade que se paragonam ao divino Natildeo eacute o divino que desponta do sensiacutevel

mas o sensiacutevel do divino embora soacute nessa ordem o ser humano consiga inferir uma

realidade da outra Cocircnscio dessa sua limitaccedilatildeo perspeacutectica o homem pode integrar

positivamente o apreccedilo pela beleza presente no mundo temporal de modo a cumprir o

desiacutegnio que partilha com Deus acerca da felicidade eterna que natildeo eacute mais do que a

posse amorosa do Bem

Os aspectos qualitativos do mundo temporal correspondem a princiacutepios anaacutelogos

contudo absolutamente superiores na eternidade Sem a influecircncia preacutevia dos nuacutemeros

sequer haveria possibilidade de reconhecer qualidades nas coisas sensiacuteveis pois sequer

estas poderiam admitir ou conservar as relaccedilotildees espacio-temporais em aparecircncias

relativamente estaacuteveis535

Aleacutem de concessor de forma e species (beleza) ndash portanto de

ser e de qualidade ndash o nuacutemero eacute como vimos um iacutendice de relaccedilatildeo O homem interior

pode mapear o seu percurso ateacute Deus percebendo tal aspecto relacional e as suas leis

pois deixa desse modo de estar preso agraves realidades temporais O seu universo amplia-se

tal como a sua liberdade ao perceber que o mundo sensiacutevel eacute um mundo subordinado e

dependente da realidade superior agrave qual acede pela alma racional

A praacutetica da interioridade natildeo eacute portanto uma forma de egotismo mas de

relaccedilatildeo pela qual o sujeito percebe que a sua mente eacute feita agrave imagem de Deus e longe

de assumir tal semelhanccedila de modo estaacutetico eacute impelido a renovar e a aperfeiccediloar essa

imagem desfigurada pelo pecado O homem interior descobre-se imperfeito mas capaz

de se aperfeiccediloar com a ajuda de Deus A feacute no mediador a transferecircncia do amor pelas

coisas sensiacuteveis para as coisas eternas ndash que natildeo eacute necessariamente uma transferecircncia de

amor entre belezas ndash e a atitude caritativa para com o proacuteximo satildeo os passos a tomar

para esse aperfeiccediloamento536

Trata-se de uma vivecircncia segundo a razatildeo que estaacute

associada a um destacamento do sujeito face agrave realidade sensiacutevel Este aspecto eacute

sobretudo enfatizado nos diaacutelogos de Cassiciacuteaco poreacutem em obras posteriores Santo

Agostinho reconsidera tal desapego mais de acordo com a ideia de uma reconversatildeo do

535

Cf De mus VI 17 58

536 Cf De Trin XIV 17 23

182

olhar conforme explicitaacutemos no subcapiacutetulo I 2 2537

Associar a via interior a uma

aversatildeo ao mundo temporal eacute desconsiderar as muitas passagens nas quais Santo

Agostinho louva as naturezas sensiacuteveis e exorta ao reconhecimento da bondade e da

beleza nelas presentes Tal como o proacuteprio filoacutesofo demonstrou atraveacutes de descriccedilotildees

plenas de sensibilidade e poesia o mundo terreno pode servir ao sujeito de inspiraccedilatildeo e

de nuntius se este exercitar a sua iacutendole de esteta estaraacute certamente no caminho certo

para a interioridade contemplativa

John Peter Kenney em laquoSaint Augustine and the limits of contemplationraquo538

argumenta que a teoria agostiniana da contemplaccedilatildeo subsume e ultrapassa aquela que eacute

desenvolvida pelos teoacutelogos do neoplatonismo pagatildeo Para Plotino por exemplo a

contemplaccedilatildeo funcionava como uma ampliaccedilatildeo da relaccedilatildeo ontoloacutegica onde natildeo haacute

propriamente uma transformaccedilatildeo da alma mas uma revelaccedilatildeo da sua grandeza e do seu

alcance Pela contemplaccedilatildeo a alma descobre a sua origem no Uno descobre a sua

transcendentalidade A contemplaccedilatildeo em causa eacute uma contemplaccedilatildeo filosoacutefica ndash eacute uma

especial atenccedilatildeo ao questionamento introspectivo e agrave busca das causas primeiras que

neles colhe determinado comprazimento ndash ora por tudo o que anteriormente vimos esta

forma contemplativa natildeo eacute desligada da esteacutetica Mas se para Plotino haacute uma maior

estaticidade na alma contemplativa (o seu aperfeiccediloamento eacute mais um desvelamento do

que uma transformaccedilatildeo) jaacute para o Bispo de Hipona haacute um acentuar do esforccedilo salviacutefico

atraveacutes do qual a alma se engrandece e aperfeiccediloa mais dinamicamente A este

propoacutesito Kenney refere que o misticismo agostiniano parece indiciar apenas a

possibilidade do conhecimento imediato de Deus mas natildeo da salvaccedilatildeo o que leva a

questionar e a relativizar a eficaacutecia da contemplaccedilatildeo miacutestica no caso agostiniano539

A

experiecircncia da verdade eacute alcanccedilaacutevel na vida terrena ainda que momentaneamente mas

natildeo eacute suficiente Natildeo obstante da sua memoacuteria fica como que um alimento para a

intentio animi que aliado agrave crenccedila no Salvador permite agrave alma descobrir a luz interior

que entatildeo a guiaraacute no processo ascensional

A profundidade transcendente da alma revela-se nesse processo de iacutentima

ligaccedilatildeo com a divindade atraveacutes do Mestre interior Em virtude desta figura mediadora

537

Vide p 116

538 J P Kenney laquoSaint Augustine and the limits of contemplationraquo in M F Wiles e E J Yarnold (eds)

Studia Patristica XXXVIII Peeters Leuven 2001 pp 199 - 218

539 J P Kenney op cit p 204

183

a interioridade proposta pelo Bispo de Hipona eacute assim necessariamente distinta daquela

que Plotino jaacute havia enunciado nas Eneacuteadas540

Ambos os filoacutesofos partem da ideia de

que o homem tem no universo uma posiccedilatildeo pouco abonada e ambos concordam que o

seu desiderato seja a contemplaccedilatildeo de Deus fonte de eterna felicidade Tanto Plotino

como Santo Agostinho apontam a via da interioridade como modo de alcanccedilar tal

objectivo Para este uacuteltimo poreacutem a via da interioridade soacute eacute possiacutevel porque o homem

foi criado agrave imagem e semelhanccedila de Deus ndash criatura e criador diferem

substancialmente na perspectiva cristatilde Pela imersatildeo interior haacute uma consciecircncia do

plano matricial que espontaneamente desperta no homem a necessidade contemplativa

qual busca de uma auto-divinizaccedilatildeo ou seja de alcanccedilar a mais perfeita semelhanccedila

com Deus e assim alcanccedilar a plenitude do ser Em momento algum estaacute pressuposta

uma dissoluccedilatildeo das personalidades individuais como ocorre na perspectiva do

neoplatonismo pagatildeo Para Plotino a alma e o mundo satildeo resultado natildeo da criaccedilatildeo mas

da processatildeo mantendo-se um viacutenculo aparentemente mais estreito entre estes e a

divindade Pela via interior a alma descobre-se a si mesma como parte do divino e a

reconduccedilatildeo que empreende ateacute si equivale a uma perda de consciecircncia identitaacuteria jaacute que

se subsume na unidade primordial O retorno da alma ao Uno faz com que esta se dilua

indistintamente no seu seio Tambeacutem por ser uma parte esparsa da divindade a alma na

perspectiva plotiniana pode empreender esse percurso interior ascensional sem qualquer

auxiacutelio ou mediaccedilatildeo Jaacute para Santo Agostinho tal natildeo ocorre

A pretensatildeo de ser capaz de alcanccedilar sozinho a visatildeo de Deus eacute severamente

criticada pelo filoacutesofo africano que considera preferiacutevel a humildade de um crente com

uma mentalidade mais limitada do que a orgulhosa presunccedilatildeo de um saacutebio que

conseguindo elevar-se pela sua inteligecircncia acima deste mundo grosseiro e ver um teacutenue

raio da verdade inefaacutevel se recusa a embarcar no uacutenico navio capaz de o conduzir agrave

paacutetria que vislumbra ao longe541

Esse navio (lignum) eacute a feacute no Mediador que nos foi

enviado por Deus Pai

Sabedoria Verbo ou esplendor da luz eterna satildeo alguns nomes que

correctamente se podem atribuir ao Mediador Sendo coeterno agrave luz da qual eacute esplendor

540

Cf En I 6 2

541 Cf De Trin IV 15 20

184

(candor) ele eacute essa mesma luz542

pois natildeo haacute diferenccedila entre o que emana e o que eacute

emanado Tendo-se feito carne e habitando entre os homens (I Cor 1 21) o Verbo

cumpre a missatildeo de se dar a conhecer e de exortar a que se encontre a luz interior que

habita dentro de noacutes Ao dar-se a conhecer o Filho daacute a conhecer o Pai

Santo Agostinho esforccedila-se por explicar a afirmaccedilatildeo de Cristo que diz ldquoAquele

que crecirc em mim natildeo crecirc em mim mas Naquele que me enviourdquo (Jo 12 44) semelhante

a uma outra pela qual afirma ldquoQuem me vecirc a mim vecirc Aquele que me enviourdquo (Jo

1245) Para o Bispo de Hipona tais frases parecem confirmar que a visibilidade de

Cristo funciona na verdade como uma transparecircncia que natildeo chama a atenccedilatildeo para si

enquanto forma criada mas para o seu ser divino natildeo perceptiacutevel aos olhos humanos A

feacute no Mediador acaba sempre por manifestar a presenccedila das trecircs pessoas divinas a do

Pai que mesmo na revelaccedilatildeo permanece escondido a do Filho que medeia e revela a

verdade de Deus e a do Espiacuterito Santo que permite ao crente perceber a verdade da

revelaccedilatildeo O Espiacuterito Santo tem um papel fundamental na mediaccedilatildeo de Cristo e no

processo introspectivo poreacutem poucas vezes salientado pelos comentadores

agostinianos Ele permite o auto-conhecimento e a humildade necessaacuteria agrave direcccedilatildeo

ascensional e transcendente que a via interior deve assumir sobretudo porque eacute graccedilas

a si que Cristo pode ser reconhecido como o recto objecto de feacute Santo Agostinho diz

em De Trinitate que a alma se lembra de Deus apoacutes Dele ter recebido o Seu Espiacuterito

e escutado o Mestre interior543

o que parece atestar a ideia de que o Espiacuterito Santo

faz parte da agraciaccedilatildeo pela qual Deus capacitou o homem para o alcance da

Verdade A via para Deus atraveacutes de Cristo soacute eacute possiacutevel graccedilas ao Espiacuterito Santo

cuja acccedilatildeo corresponde em noacutes agrave aquisiccedilatildeo da feacute na incarnaccedilatildeo A feacute alavanca a

transiccedilatildeo do conhecimento para a sabedoria pois sendo Cristo a incarnaccedilatildeo da

verdade divina ele constitui-se temporalmente como objecto de feacute primeiro como

542

De Trin IV 20 27 (CCL 50 p 195) laquoNam quod dictum est Candor est enim lucis aeternae quid

aliud dictum est quam Lux est lucis aeternae Candor quippe lucis quid nisi lux est Et ideo coaeterna

luci de qua lux est Maluit autem dicere Candor lucis quam Lux lucis ne obscurior putaretur ista quae

manat quam illa de qua manat Cum enim auditur candor eius esse ista facilius est ut per hanc lucere illa

quam haec minus lucere credaturraquo

543 Cf De Trin XIV 15 21

185

scientia mas tambeacutem sempre-jaacute como sapientia544

O mero conhecimento da

incarnaccedilatildeo eacute jaacute uma proto-sabedoria

A via interior granjeada atraveacutes de Cristo pode no entanto natildeo ser dependente da

sua mediaccedilatildeo como Verbo incarnado para ser encetada Como mero esteta o homem

consegue perceber que a interioridade eacute o caminho para o conhecimento de Deus Assim

o atesta a seguinte passagem de Confessionum

E que eacute isto Interroguei o conjunto do universo acerca do meu Deus e

ele respondeu-me lsquoNatildeo sou eu mas foi ele mesmo que me fezrsquo Interroguei

a terra e ela disse lsquoNatildeo sou eursquo e todas as coisas que nela existem

responderam-me o mesmo Interroguei o mar e os abismos e os seres vivos

que rastejam e eles responderam-me lsquoNatildeo somos o teu Deus procura acima

de noacutesrsquo Interroguei as brisas que sopram e o ar todo com os seus habitantes

disse-me lsquoAnaxiacutemenes estaacute enganado eu natildeo sou Deusrsquo Interroguei o ceacuteu

o sol alua as estrelas e dizem-me lsquoNoacutes tambeacutem natildeo somos o Deus que

tuprocurasrsquo E disse a todas as coisas que rodeiam as portas da minha carne

lsquoFalai-me do meu Deus jaacute que natildeo sois voacutes dizei-me algumacoisa a seu

respeitorsquo E elas exclamaram com voz forte lsquoFoi ele que nos fezrsquo

Contemplaacute-las era a minha pergunta e a resposta era a sua beleza Dirigi-me

entatildeo a mim mesmo e a mim mesmo disse lsquoTu quem eacutesrsquo545

A beleza da criaccedilatildeo remete para o criador e qualquer experiecircncia sensiacutevel pode

ser encarada como um chamamento para a transcendecircncia desde que o processo

contemplativo esteja jaacute norteado pela finalidade concreta de perscrutar a razatildeo de tal

beleza A impossibilidade de obter uma resposta satisfatoacuteria na realidade exterior impotildee

a interioridade como uacutenica via de acesso agrave Verdade Na invocaccedilatildeo com que abre a sua

obra Confessionum Santo Agostinho diz que o nosso coraccedilatildeo estaacute inquieto ateacute

544

De Trin XIII 19 24 (CCL 50A p 416) laquoScientia ergo nostra Christus est sapientia quoque nostra

idem Christus est Ipse nobis fidem de rebus temporalibus inserit ipse de sempiternis exhibet veritatem

Per ipsum pergimus ad ipsum tendimus per scientiam ad sapientiam ab uno tamen eodemque Christo

non recedimus in quo sunt omnes thesauri sapientiae et scientiae absconditiraquo

545 Conf X 6 9 (CCL 27 p 159) laquo Et quid est hoc Interrogavi terram et dixit Non sum et

quaecumque in eadem sunt idem confessa sunt Interrogavi mare et abyssos et reptilia animarum

vivarum et responderunt Non sumus Deus tuus quaere super nos Interrogavi auras flabiles et inquit

universus aer cum incolis suis Fallitur Anaximenes non sum Deus Interrogavi caelum solem lunam

stellas Neque nos sumus Deus quem quaeris inquiunt Et dixi omnibus his quae circumstant fores

carnis meae Dicite mihi de Deo meo quod vos non estis dicite mihi de illo aliquid Et exclamaverunt

voce magna Ipse fecit nos Interrogatio mea intentio mea et responsio eorum species eorum Et direxi

me ad me et dixi mihi Tu quis esraquo A traduccedilatildeo presente no corpo do texto eacute de Arnaldo Espiacuterito Santo

Joatildeo Beato e Maria Cristina Castro Maia de Sousa Pimentel in Confissotildees Lisboa IN-CM 2001

186

encontrar descanso em Deus pois Ele criou-nos para si546

A inquietude humana faz

com que haja uma intencionalidade natural dirigida para o Criador que pode ser

despertada pelo mero reconhecimento de qualidades nas coisas corpoacutereas cuja

familiaridade convoca a atenccedilatildeo da alma Ainda que para ser encetada a via interior

possa dispensar o Cristo Redentor ela seraacute poreacutem esteacuteril sem Cristo Mediador pelo que

a centralidade do Verbo natildeo estaacute nunca posta em causa A dimensatildeo qualitativa dos

objectos corpoacutereos ultrapassa-os e ultrapassa a proacutepria alma que estaacute capacitada pela

Graccedila para seguir o rasto de tais qualidades ateacute agrave sua fonte Eacute sempre a Graccedila que em

uacuteltima instacircncia prepara a vontade humana para se direccionar para Deus

Embora nas suas uacuteltimas obras Santo Agostinho decirc um rumo diferente agrave questatildeo

da vontade547

a maioria dos seus escritos testemunha que ela natildeo apenas eacute actuante ndash e

necessaacuteria ndash no processo do conhecimento sensiacutevel (enquanto attentio ou intentio)

como no direccionamento de qualquer actividade intelectual (como voluntas)

inclusivamente no conhecimento de si e na dedicaccedilatildeo amorosa548

A atenccedilatildeo voluntaacuteria

da alma face ao que a rodeia eacute pois a primeira manifestaccedilatildeo da vontade que se prolonga

em qualquer acto de consciencializaccedilatildeo sobre a realidade exterior ou interior e que

assim comporta tambeacutem uma dimensatildeo salviacutefica549

546

Conf I 1 1 (CCL 27 p 1) laquoTu excitas ut laudare te delectet quia fecisti nos ad te et inquietum est

cor nostrum donec requiescat in teraquo

547 Assumindo o proacuteprio Bispo de Hipona a sua incapacidade para compreender plenamente os desiacutegnios

divinos numa obra publicada quatro anos antes da sua morte diz que a vontade humana apenas tem

liberdade para escolher o recto caminho de Deus pelo dom da Graccedila sendo que esta soacute eacute atribuiacuteda por

Deus a alguns predestinados Significa isto que a vontade humana eacute na realidade impotente para por si

soacute agir em conformidade com a vontade de Deus Cf De corr grat 8 17 Antes das suas obras estarem

marcadas pela controveacutersia pelagiana haacute uma notoacuteria autonomia da vontade em relaccedilatildeo agrave Graccedila e mais

importante do que isso estaacute ausente esta ideia de que alguns homens estatildeo fadados desde sempre ao

Juiacutezo sem que Deus lhes conceda a Graccedila Esta teoria tardia da selectividade de Deus natildeo coloca nunca

em causa a Sua justiccedila uma vez que todos os homens estatildeo maculados pelo pecado original e todos estatildeo

jaacute condenados a Graccedila eacute uma expressatildeo gratuita da bondade divina que natildeo depende de qualquer meacuterito

humano Santo Agostinho confessa natildeo saber explicar porque eacute que alguns homens satildeo agraciados e

outros natildeo mas defende que tal situaccedilatildeo certamente se enquadra numa perspectiva globalizante que natildeo

estamos em posiccedilatildeo de entender Cf Ibid

548 De Trin X 8 11 (CCL 50 p 325) laquoCognoscat ergo semetipsam nec quasi absentem se quaerat sed

intentionem voluntatis qua per alia vagabatur statuat in se ipsa et se cogitet Ita videbit quod numquam se

non amaverit numquam nescierit sed aliud secum amando cum eo se confudit et concrevit quodam

modo atque ita dum sicut unum diversa complectitur unum putavit esse quae diversa suntraquo

549 Cf De lib arb I 12 25

187

Para o Bispo de Hipona a experiecircncia esteacutetica certamente seria o processo

racional e objectivo de reconhecimento dos numeri que estatildeo por detraacutes das qualidades

das coisas e das nossas proacuteprias sensaccedilotildees Processo este que obviamente incluiria

tambeacutem as sensaccedilotildees mas sem se lhes limitar ateacute porque a actividade judicativa

igualmente impliacutecita neste decurso comporta uma alteraccedilatildeo dessas sensaccedilotildees primaacuterias

como que originando sobre estas uma espeacutecie de sensaccedilotildees secundaacuterias que as refreiam

ou amplificam consoante a sua adequaccedilatildeo Desta feita como processo racional que eacute a

atitude esteacutetica face ao mundo tambeacutem a voluntas tem aiacute um papel activo natildeo apenas

pela intencionalidade necessaacuteria agrave perscrutaccedilatildeo das razotildees que desencadearam o agrado

ou desagrado sentido mas tambeacutem pela proacutepria capacidade de refrear por exemplo uma

sensaccedilatildeo de agrado se ao ser ajuizada esta se revelar desadequada Uma vez que a sua

adequaccedilatildeo eacute aferida de acordo com as leges numerorum estaacute tambeacutem impliacutecita a

intencionalidade de harmonizar as sensaccedilotildees e a visatildeo do mundo que o sujeito tem com

a finalidade de ser eternamente feliz alcanccedilando a Verdade o Bem e a Beleza Ao

ultrapassar a mera teoria do belo e ao acordar o processo sensiacutevel com a razatildeo e com o

conhecimento (quer na acepccedilatildeo de scientia quer de sapientia) a esteacutetica agostiniana

desenvolve-se em total paralelismo com a eacutetica

Em De libero arbitrio Santo Agostinho aborda a vontade e a liberdade de

escolha em relaccedilatildeo agrave questatildeo do mal podendo tambeacutem aiacute assinalar-se-lhe uma certa

perspectivaccedilatildeo esteacutetica Conforme refere Weismann ao inclinar-se para o mal o livre

arbiacutetrio denota indigecircncia e imperfeiccedilatildeo e pelo contraacuterio ao inclinar-se para o bem

revela as qualidades inerentes agrave essecircncia da pessoa e o seu grau de excelecircncia550

Sendo a proacutepria liberdade realizada no autocontrolo da vontade ela eacute fortalecida pelas

escolhas correctas e o homem perde algo de si sempre que natildeo opta a favor da

sapiecircncia Esta perda de liberdade (libertas) pelo pecado natildeo corresponde no entanto

agrave perda de livre arbiacutetrio (liberum arbitrium) mas agrave facilidade em responder mais

adequadamente ao convite que Deus lhe faz para o bem551

A liberdade eacute portanto uma

capacidade com a qual a vontade eacute agraciada para agir intencional e conscientemente

de acordo com o bem

550

F J Weismann laquoThe problematic of freedom in St Augustine Towards a new hermeneuticsraquo REAug

35 1989 p 105

551 Cf Contra Jul op imp VI 11

188

A vontade existe para a acccedilatildeo natildeo apenas como um querer livre mas como um

poder da alma552

o poder de se votar a si mesma ao bem A acccedilatildeo eacute uma iniciativa face

agrave inquietude natural do homem e embora possamos correctamente pressupor que se

opotildee agrave contemplaccedilatildeo como se esta fosse da ordem da fruiccedilatildeo e a primeira da ordem da

utilidade a verdade eacute que Santo Agostinho chega a defender uma certa

complementaridade entre acccedilatildeo e contemplaccedilatildeo ultrapassando a ideia de que a uacuteltima

apenas concerne ao eterno descanso em Deus Claro que nesta perspectiva a

contemplatio acaba por entrar tambeacutem no do domiacutenio da utilidade e confunde-se com o

conhecimento (cognitio) Em De civitate Dei o Bispo de Hipona diz que a paz da alma

racional corresponde precisamente a um acordo ordenado entre a acccedilatildeo e a cogniccedilatildeo553

mas eacute sobretudo pelo conceito de totus Christus554

que ocorre o encontro entre a

dimensatildeo contemplativa e acccedilatildeo A este propoacutesito Bernard McGinn defende que como

figura hiacutebrida de mediaccedilatildeo entre Deus e a Igreja Cristo permite que os seus crentes

possam incorporar o seu corpo pela participaccedilatildeo na sua vida determinando que a acccedilatildeo

da Igreja seja a acccedilatildeo de Cristo555

Significa isto que a experiecircncia da vida temporal eacute

alterada pela acccedilatildeo de Cristo transformando-se no proacuteprio contexto processual de

conformaccedilatildeo dos homens com o Redentor

Tal encontro entre acccedilatildeo e contemplaccedilatildeo consiste pois na tentativa de

harmonizar a via interior de dedicaccedilatildeo a Deus com a nossa vivecircncia exterior temporal e

servil As acccedilotildees praticadas no acircmbito da temporalidade natildeo apenas reflectem a vida

interior de quem as pratica como contribuem para a enriquecer De certo modo a acccedilatildeo

pode ampliar a experiecircncia contemplativa a partir da exteriorizaccedilatildeo das virtudes

Assim a contemplaccedilatildeo natildeo diz apenas respeito agrave vida futura eterna de convivecircncia

com Deus mas tambeacutem ao encaminhamento da vida presente temporal para tal

552

De lib arb III 3 7 (CCL 29 p 278) laquoQuapropter nihil tam in nostra potestate quam ipsa voluntas estraquo

553 Cf De civ Dei XIX 13

554 O Cristo total consiste na sua consideraccedilatildeo como Cabeccedila sendo o Corpo a Igreja Pelos sacramentos

os fieacuteis continuam a receber a identidade de Cristo pelo que tal identificaccedilatildeo com o seu corpo continua a

vigorar mesmo apoacutes a ascensatildeo de Cristo incarnado Cf por exemplo In Iohan ep I 2 Sermo 341 9 11

De civ Dei X 6 En Ps XC 2 XXX 2 5

555 Bernard McGinn The Foundations of Mysticism Origins to the Fifth Century New York Crossroads

1991 p 250-251

189

eternidade na qual a contemplaccedilatildeo seraacute uma visatildeo sempre presente e natildeo mais uma

antecipaccedilatildeo de contornos miacutesticos ou uma propedecircutica intelectual virada para o futuro

O Bispo de Hipona serve-se de vaacuterias duplas biacuteblicas para explicar o acordo

entre acccedilatildeo e contemplaccedilatildeo e entre presente temporal e presente eterno

Marta e Maria ou Pedro e Joatildeo satildeo exemplos dessas duplas mas eacute sobretudo

com as duas mulheres de Jacob Raquel e Lia que Santo Agostinho melhor ilustra tal

afinidade Lia representa a acccedilatildeo presente vivida com feacute ao passo que Raquel

personifica a esperanccedila da visatildeo eterna de Deus Cada qual tem o seu modo de vida

distinto mas nem por isso opostos jaacute que ambos encontram em Cristo um elo comum

Portanto a acccedilatildeo da vida humana e mortal na qual vivemos pela feacute

fazendo muitas coisas laboriosas incertas quanto agraves vantagens que se podem

tirar da sua utilidade para aqueles que se querem beneficiar eacute Lia a primeira

mulher de Jacob [] Mas a esperanccedila da contemplaccedilatildeo eterna de Deus que

inclui o entendimento certo e deleitaacutevel da verdade eacute Raquel556

A feacute de Lia e a esperanccedila de Raquel aproximam ambos os modos de vida ateacute

porque nem Lia representa todo o tipo de acccedilatildeo nem Raquel pressupotildee a pura

contemplaccedilatildeo que soacute seria legiacutetima no conviacutevio presencial com Deus Tal como Lia e

Raquel tecircm fortes laccedilos familiares como irmatildes e esposas do mesmo marido tambeacutem a

acccedilatildeo (norteada pela feacute) e a contemplaccedilatildeo (natildeo como finalidade mas como esperanccedila)

tecircm entre si uma forte afinidade As duas filhas de Labatildeo fazem parte da Igreja que eacute o

Corpo de Cristo diz Santo Agostinho notando que tambeacutem em Cristo coexistem

precisamente dois modos de vida o temporal do labor e o eterno de contemplaccedilatildeo a

Deus557

Ampliando o paralelismo entre estas figuras biacuteblicas e o par acccedilatildeo contemplaccedilatildeo

o Bispo de Hipona lembra que Jacob primeiro trabalhou para Lia e depois para Raquel e

adverte que quem quiser Raquel (a contemplaccedilatildeo) teraacute primeiro de ter Lia (a acccedilatildeo) Na

realidade temporal que contextualiza o homem natildeo eacute possiacutevel aceder ao conhecimento

sem primeiro laborar para tal fim Raquel poderaacute ser a preferida mas natildeo eacute a primeira

esposa Natildeo se passa da contemplaccedilatildeo para a acccedilatildeo mas da acccedilatildeo para a contemplaccedilatildeo

556

Contra Faust XXII 52 (CSEL 25 I p 645) laquoActio ergo humanae mortalisque vitae in qua vivimus

ex fide multa laboriosa opera facientes incerti quo exitu proveniant ad utilitatem eorum quibus consulere

volumus ipsa est Lia prior uxor Iacob [hellip] Spes vero aeternae contemplationis Dei habens certam et

delectabilem intellegentiam veritatis ipsa est Rachelraquo

557 Cf Ibid

190

Acrescente-se ainda que Jacob deve amar Lia aleacutem de amar Raquel o que pelo

paralelismo traccedilado indicia que haacute um valor dilectivo importante associado ao valor

instrumental da acccedilatildeo558

Para Santo Agostinho a vida quotidiana na variedade de todas as suas expressotildees

natildeo deve ser negligenciada ou desvalorizada mas sim revestida de um novo significado

porque haacute uma continuidade entre o presente temporal e o presente eterno ndashcontinuidade

esta que a figura de Cristo vem realccedilar e que determina um prestiacutegio inusitado agrave vida

temporal O caminho para a contemplaccedilatildeo de Deus face a face eacute sobretudo marcado

pelo encontro com Cristo e pelo consequente chamamento para a relaccedilatildeo de amor que

deve ser encetada atraveacutes de si com o proacuteximo e com o proacuteprio

Como vimos a contemplaccedilatildeo pode ter tambeacutem uma dimensatildeo temporal presente

e neste caso eacute um auto-conhecimento que assume contornos divinos e que segundo o

mestre hiponense natildeo deixa de ser uma visatildeo reciacuteproca

Mas naqueles que vecircem as tuas obras atraveacutes do teu espiacuterito eacutes tu quem

as vecirc neles Portanto ao vermos que satildeo boas tu vecircs que satildeo boas aquilo que

nos agrada pela tua pessoa eacutes tu que nos agradas e se algo nos agrada pelo

teu espiacuterito agrada-te em noacutes559

Tal como quem vecirc Cristo vecirc Deus tambeacutem quem cultiva a visatildeo interior

aplicando-a ao criado estaraacute a sintonizar esse mesmo modo visivo com Deus

relacionando-se com o mundo exterior de acordo com a divindade como se houvesse

um circuito visual que culminasse no encontro diferido entre o sujeito que vecirc atraveacutes de

Deus e o proacuteprio Deus Ver algo atraveacutes do espiacuterito de Deus eacute ver no objecto o reflexo

de Deus como soacute pelo lado do sujeito eacute que tal visatildeo eacute mediada Deus natildeo soacute vecirc o

sujeito directamente como vecirc o objecto e a reflexividade da visatildeo do sujeito atraveacutes de

si mesmo enquanto espiacuterito no sujeito A visatildeo que o sujeito tiver do mundo atraveacutes do

espiacuterito coincidiraacute necessariamente com aquela que Deus tem O agrado que o sujeito

possa sentir atraveacutes do espiacuterito estaraacute portanto Deus a senti-lo em si A presenccedila do

Espiacuterito Santo no homem significa que Deus se revela sempre em uacuteltima instacircncia a

partir de Si proacuteprio mesmo que o sujeito soacute possa aceder a essa revelaccedilatildeo atraveacutes da

558

Cf Contra Faust XXII 53

559 Conf XIII 31 46 (CCL 27 p 269) laquoQui autem per spiritum tuum vident ea tu vides in eis Ergo cum

vident quia bona sunt tu vides quia bona sunt et quaecumque propter te placent tu in eis places et quae

per spiritum tuum placent nobis tibi placent in nobisraquo

191

interioridade pela qual recebe os vestiacutegios ou reflexos reconheciacuteveis no mundo exterior

e pela qual se relaciona com Cristo

Graccedilas ao Espiacuterito Santo o homem pode ver atraveacutes de Deus e amar pelo seu

amor560

estando capacitado para interagir correctamente com o que o rodeia e para tirar

o justo proveito do seu percurso pelo mundo temporal A abordagem que o Bispo de

Hipona faz relativamente agrave dicotomia acccedilatildeo contemplaccedilatildeo como modos de vida

distintos poreacutem natildeo antagoacutenicos permite reforccedilar a ideia de que as especificidades da

experiecircncia temporal satildeo necessaacuterias ao aperfeiccediloamento da alma racional A

visualidade e o amor confluem no acircmbito da esteacutetica e da eacutetica e do mesmo modo que

haacute uma intencionalidade no amor aos outros561

haacute tambeacutem uma intencionalidade no

modo como o olhar eacute dirigido agraves coisas que nos rodeiam Talvez por isso a associaccedilatildeo

natural do labor agrave vida terrena natildeo corresponda propriamente a uma mortificaccedilatildeo

voluntaacuteria do sujeito mas sim agrave percepccedilatildeo das afinidades e da diferenccedila que haacute entre a

esfera corpoacuterea e a divina Santo Agostinho natildeo exorta a uma vida de sofrimento esse

sofrimento e os trabalhos a ele associados estatildeo naturalmente presentes em virtude da

consciecircncia da distacircncia ontoloacutegica que separa as criaturas do Criador Contudo haacute uma

aprazibilidade passiacutevel de ser experienciada na constataccedilatildeo das afinidades entre criaccedilatildeo

e Criador sem que qualquer laivo de culpabilidade ou de ilegitimidade a macule desde

que o deleite natildeo constitua em si mesmo um fim Se a finalidade da atitude esteacutetica face

ao mundo estiver correctamente alicerccedilada em Deus entatildeo natildeo haacute por que refreaacute-la

Aquilo que nos agradar pelo Espiacuterito agradaraacute tambeacutem a Deus

560

No subcapiacutetulo precedente viu-se como o amor a Deus coincidia com o amor de Deus

561 Natildeo para o sujeito tirar proveito do outro mas do proacuteprio amor que por ele nutre Haacute poreacutem que

clarificar que Santo Agostinho defende que o proacuteximo tem um valor instrumental e que na vida terrena

devemos utilizar os outros em prol do alcance de Deus Soacute na vida ressurrecta o amor ao proacuteximo seraacute

um amor totalmente desinteressado A utilidade de que os outros se devem revestir para o sujeito eacute

relativa agrave praacutetica caritativa e nunca tem que ver com uma atitude de domiacutenio sobre eles por parte do

sujeito

193

4 A relaccedilatildeo entre beleza e verdade

41 - Acccedilatildeo perceptiva e juiacutezo racional

Em inuacutemeras passagens ao longo das suas obras Santo Agostinho daacute provas da

sua enorme sensibilidade face agrave beleza de tudo o que o rodeia O caraacutecter expressivo da

sua proacutepria escrita por vezes chega a contrastar com uma certa austeridade em relaccedilatildeo

ao modo como se refere a determinadas formas de expressatildeo artiacutestica Essa austeridade

estaacute longe de resultar de uma faceta filistina por parte do filoacutesofo muito pelo contraacuterio

eacute por reconhecer a vibrante atracccedilatildeo que tais formas artiacutesticas exercem sobre os homens

que Santo Agostinho se vecirc a braccedilos com a necessidade de criticar ou pelo menos de

refrear elogios a determinados produtos da criatividade humana Quer critique o teatro

quer elogie a muacutesica Santo Agostinho tem sempre como premissa uma subordinaccedilatildeo da

dimensatildeo esteacutetica agrave dimensatildeo moral o que natildeo significa que os sentimentos esteacuteticos

que entrem em confronto com o posicionamento moral sejam de algum modo

escamoteados e deles se perca o rasto Pressentindo o descalabro de possiacuteveis desencontros

entre o prazer esteacutetico e o juiacutezo moral Santo Agostinho imediatamente submete a um

elaborado trabalho de anaacutelise as qualidades esteacuteticas que reconhece na natureza ou nos

produtos da actividade humana O prazer que deles tira antes dessa anaacutelise eacute ainda um

prejuiacutezo a verdadeira judicaccedilatildeo esteacutetica eacute para o Bispo de Hipona posterior a esse

primeiro prazer e jaacute fruto do processo racional que determina a legitimidade de tal

sensaccedilatildeo Natildeo haacute uma separaccedilatildeo entre eacutetica e esteacutetica no pensamento agostiniano ainda

que seja possiacutevel diferenciar entre um primeiro momento no qual a dimensatildeo esteacutetica

parece gozar uma certa autonomia ndash eacute o momento anterior agrave judicaccedilatildeo ndash poreacutem na

verdade o juiacutezo eacute que inaugura a dimensatildeo esteacutetica e ele corresponde a um outro

momento da experiecircncia e eacute sempre um juiacutezo acerca da adequaccedilatildeo de uma resposta

194

natural da sensibilidade em relaccedilatildeo natildeo apenas ao seu contexto mais imediato como

tambeacutem agrave sua determinaccedilatildeo final

Assim em De musica vemo-lo chamar a atenccedilatildeo para o facto da muacutesica ndash por si

definida como a ciecircncia de bem modular ndash poder resultar numa maacute interpretaccedilatildeo ou maacute

performance musical mesmo que o seu inteacuterprete tenha sabido modulaacute-la bem Santo

Agostinho daacute o exemplo dos cantores que fazem um uso abusivo da modulaccedilatildeo das

palavras e dos sons ao empregaacute-los contra as conveniecircncias Por vezes haacute contextos que

exigem uma certa solenidade que poderaacute ser posta em causa se entatildeo soar uma muacutesica

que suscite uma alegria desmesurada nos seus auditores562

Mesmo que tal muacutesica seja

perfeita na sua cadecircncia a desadequaccedilatildeo da reacccedilatildeo que provoca torna despreziacutevel a

sua interpretaccedilatildeo Haacute determinadas qualidades esteacuteticas que agradam por si mesmas

podendo o seu enquadramento tornar esse prazer desagradaacutevel O desagrado natildeo anula

necessariamente a consciecircncia das qualidades esteacuteticas experienciadas mas eacute jaacute fruto de

um posicionamento moral sobre o prazer

Vale aqui a pena retomar a perspectiva agostiniana sobre o processo da sensaccedilatildeo

para compreender melhor o sentimento esteacutetico e a sua inseparabilidade em relaccedilatildeo agrave

eacutetica Sendo a sensaccedilatildeo uma actividade do domiacutenio exclusivo da alma que sente atraveacutes

do corpo e no corpo o prazer ou o desprazer satildeo em primeira instacircncia resultantes da

harmonizaccedilatildeo ou inconveniecircncia entre os oacutergatildeos sensoacuterios e o corpo exterior que eacute

objecto da sensaccedilatildeo Significa isto que a alma reconhece que o corpo exterior se

relaciona de um modo conveniente ou natildeo com o proacuteprio corpo que ela anima Natildeo eacute

ainda em relaccedilatildeo a si mesma que a alma perspectiva tal conveniecircncia do corpo exterior

natildeo havendo ainda juiacutezo mas apenas consciecircncia de um estado corporal O juiacutezo

esteacutetico seraacute para o Bispo de Hipona uma avaliaccedilatildeo do prazer ou desprazer sentidos e

ele proacuteprio ocasionaraacute um novo prazer (talvez seja mais correcto falar neste caso de uma

ampliaccedilatildeo transformaccedilatildeo do prazer primeiro) ou uma coibiccedilatildeo do prazer resultante da

harmonia entre os oacutergatildeos sensoacuterios e o objecto percebido Nesta fase a alma jaacute natildeo

perspectiva a conveniecircncia do objecto exterior face ao corpo mas a conveniecircncia do

resultado da afecccedilatildeo do corpo em relaccedilatildeo a si mesma

O prazer sexual por exemplo contempla a relaccedilatildeo harmoniosa entre o corpo

com outro poreacutem eacute condenaacutevel na perspectiva agostiniana por se desadequar agrave natureza

562

Cf De mus I 3 4

195

da alma563

Uma alma ordenada natildeo sentiria prazer nesse tipo de conveniecircncia entre o

seu corpo com outro Embora Santo Agostinho natildeo explique nestes termos a relaccedilatildeo

entre a sensaccedilatildeo primaacuteria e a sensaccedilatildeo poacutes-judicativa nem tatildeo pouco as distinga de

modo expliacutecito eacute possiacutevel perceber que a consciecircncia dos estados corporais eacute sentida

corporalmente como um prazer ou desprazer primaacuterio mas a estes sobrepotildee-se sempre

o prazer ou desprazer jaacute resultantes da actividade judicativa Tudo indica que estas

sensaccedilotildees de prazer e de desprazer resultantes do posicionamento moral tambeacutem se

fazem sentir no corpo elas parecem traduzir-se ora numa ampliaccedilatildeo ora num

enfraquecimento da sensaccedilatildeo primaacuteria O facto de haver uma desarmonia entre os

oacutergatildeos dos sentidos e o objecto externo ndash resultante numa sensaccedilatildeo primaacuteria de

desprazer ndash pode natildeo obstar a que a alma sinta prazer ao considerar a existecircncia de uma

conveniecircncia entre essa afecccedilatildeo negativa do corpo e a sua proacutepria natureza projectando

no corpo tal estado aniacutemico e assim minimizando a dor resultante da consciecircncia da

afecccedilatildeo Este seria por exemplo o caso daqueles que foram supliciados devido agrave sua feacute

Santo Agostinho refere-se-lhes relativamente agrave beleza das suas cicatrizes564

que eacute uma

marca da virtude da alma e podemos inferir que consideraria que na ponderaccedilatildeo das

razotildees de tais seviacutecias a alma projectaria no corpo a certeza da rectidatildeo da sua postura

lenindo-lhe de certa forma a sensaccedilatildeo de dor

As sensaccedilotildees secundaacuterias poacutes-judicativas funcionam portanto como um

reforccedilo ou como um contrapeso das sensaccedilotildees primaacuterias Ambas satildeo sentidas pela

alma no corpo as primeiras satildeo relativas agrave conformidade entre corpo sensitivo e os

sensibilia as segundas satildeo relativas agrave conformidade entre a sensaccedilatildeo e a alma na

sua natureza finalidade e grau de perfeiccedilatildeo No fundo a actividade judicativa acaba

por ser uma avaliaccedilatildeo da alma em relaccedilatildeo a si mesma Se for correctamente

efectuada essa avaliaccedilatildeo baseia-se num criteacuterio que ultrapassa a alma e natildeo deixa de

ter uma base moral Os erros de judicaccedilatildeo ocorrem quando a alma fica aprisionada agrave

sua temporalidade e assume como norma de valoraccedilatildeo certos criteacuterios que natildeo lhe

satildeo superiores

563

O prazer sexual (delectatio carnalis) em si eacute condenaacutevel tal como a sua procura poreacutem se ele for o

resultado inevitaacutevel da intenccedilatildeo de procriar Santo Agostinho revela-se muito mais tolerante e afirma que

tal como o prazer que acompanha outros actos naturais e necessaacuterios agrave preservaccedilatildeo da vida ele eacute

aceitaacutevel desde que contido em certos limites Cf De bono con 16 18

564 Cf De civ Dei XXII 19

196

Esta proposta abre-se a duas questotildees fundamentais a) perspectivado deste

modo o que distingue o juiacutezo esteacutetico de outro qualquer juiacutezo de valor b) O que seraacute

para Santo Agostinho o prazer esteacutetico Comeccedilando por esta uacuteltima questatildeo impotildee-se

perceber se haacute nas obras agostinianas alguma distinccedilatildeo que permita diferenciar o prazer

esteacutetico de outras quaisquer formas de prazer agrave semelhanccedila por exemplo da distinccedilatildeo

que Kant faz entre o prazer do bom o prazer do agradaacutevel e o prazer do belo565

Santo

Agostinho diz que o que provoca prazer eacute a beleza566

ela eacute o que atrai e o que deleita e

nela os nuacutemeros567

Ora os nuacutemeros soacute satildeo perceptiacuteveis pela mente ou alma racional o

que desde logo coloca o prazer esteacutetico na esfera do conhecimento ou melhor da

sabedoria com a qual inclusivamente os nuacutemeros se identificam568

Agradando por

meio da razatildeo os nuacutemeros pressupotildeem ateacute que haja uma certa preparaccedilatildeo intelectual

para o seu reconhecimento Utilizando a terminologia kantiana conclui-se que o prazer

esteacutetico na perspectiva de Santo Agostinho natildeo poderaacute ser um prazer desinteressado em

primeiro lugar porque lida com conceitos jaacute que os nuacutemeros funcionam como um elo

565

Segundo Kant o prazer pode ser experienciado de trecircs formas distintas a) atraveacutes da satisfaccedilatildeo de um

desejo ou da inclinaccedilatildeo natural dos nossos sentidos A esta primeira forma de prazer corresponde a

experiecircncia do agradaacutevel (das Angenehme) que eacute o resultado directo da estimulaccedilatildeo dos sentidos e natildeo

pressupotildee qualquer dimensatildeo cognitiva ou intersubjectiva significante Diz meramente respeito a uma

resposta pessoal que se traduz na atracccedilatildeo ou repulsa face ao objecto ou situaccedilatildeo que estaacute na base do

estiacutemulo O prazer do agradaacutevel natildeo eacute mais do que a gratificaccedilatildeo pessoal natildeo independe por isso de um

interesse b) O segundo modo de experienciar prazer concerne agrave satisfaccedilatildeo de uma necessidade praacutetica ndash eacute

o deleite do bom (das Wohlgefallen am Guten) Neste caso o prazer natildeo resulta da estimulaccedilatildeo dos

sentidos mas da realizaccedilatildeo de um propoacutesito sem que essa realizaccedilatildeo constitua um fim em si mesmo

Embora tambeacutem possa haver um sentimento de prazer associado agrave motivaccedilatildeo que compele o sujeito para

a concretizaccedilatildeo do propoacutesito a verdadeira finalidade natildeo eacute o prazer que se possa obter nesse processo de

concretizaccedilatildeo mas no proacuteprio propoacutesito alcanccedilado Haacute aqui uma inegaacutevel dimensatildeo funcional utilitaacuteria

que tal como acontecia no primeiro modo torna esse prazer dependente de um interesse c) O uacuteltimo tipo

de prazer diz entatildeo respeito agrave experiecircncia esteacutetica ndash eacute o prazer do belo (das Wohlgefallen am Schoumlnen)

Para que este prazer seja originado natildeo eacute sequer necessaacuteria a existecircncia efectiva do objecto jaacute que a

percepccedilatildeo que o sujeito tem do objecto natildeo coincide obrigatoriamente com as suas propriedades

intriacutensecas Na verdade o nosso interesse natildeo eacute tanto pelo objecto mas pelo que ele provoca em noacutes ndash o

objecto da experiecircncia esteacutetica vale sobretudo como aparecircncia ou representaccedilatildeo Para Kant o juiacutezo soacute eacute

esteacutetico em virtude da sua determinaccedilatildeo por um prazer desinteressado Ora se o juiacutezo eacute determinado pelo

prazer desinteressado isto eacute por um sentimento e natildeo por um objecto ele soacute pode ser um juiacutezo

subjectivo que natildeo eacute assegurado por regras mas cujo sentimento que o determina pode ser comunicado

O juiacutezo esteacutetico reflecte a capacidade de se pensar o particular contido no universal Cf Kant Criacutetica da

Faculdade de Julgar sect3-sect5

566 Cf De vera relig 32 59

567 Cf De ord II 15 42 De mus VI 11 29-30 e VI 13 38

568 Vide p 133 da presente tese

197

de relaccedilatildeo com as Formas em segundo lugar porque o prazer esteacutetico suscita um desejo

de posse identificaccedilatildeo ou no miacutenimo de ir ao encontro da qualidade Soacute numa certa

acepccedilatildeo shaftesburiana de desinteresse eacute que o prazer esteacutetico perspectivado pelo Bispo

de Hipona poderia ser desinteressado Para Shaftesbury o desinteresse opotildee-se ao

egotismo e ao amor excessivo por si mesmo que impede a acccedilatildeo virtuosa569

ora

tambeacutem para Santo Agostinho o prazer esteacutetico se situa na esfera da virtude ao impor a

reflexatildeo acerca da lex numerorum e mesmo do ordo amoris Ultrapassando a mera

consciecircncia dos estados corporais e implicando a percepccedilatildeo dos nuacutemeros o prazer

esteacutetico assim perspectivado implica um certo esquecimento de si Ao ponderar sobre o

prazer a alma automaticamente percebe que natildeo eacute dele que estaacute dependente a qualidade

esteacutetica dos objectos pelo contraacuterio eacute a qualidade (ou nas palavras de Santo Agostinho

o belo) que suscita prazer e que o torna dependente de si570

Tal implica que se deva

procurar a qualidade e natildeo o prazer ndash ele seraacute uma consequecircncia natural mas natildeo a

finalidade Se o prazer era subjectivo jaacute a qualidade acaba por revelar-se objectiva

porque se destacada quer do objecto quer da razatildeo que a perscruta ainda que em ambos

ela marque presenccedila atraveacutes dos nuacutemeros Nesta senda ao reconhecer que algo suscita

prazer num objecto e ao ponderar a razatildeo de tal prazer natildeo haacute um interesse pelo objecto

em si nem tatildeo pouco pelo sentimento que se constitui no sujeito mas sim pela

qualidade que estaacute acima quer do sujeito quer do objecto e que vale por si soacute Soacute assim

se pode falar em desinteresse na perspectiva esteacutetica agostiniana O desejo de posse ou

alcance da qualidade natildeo eacute de ordem materialista uma vez que natildeo diz respeito ao

objecto mas agrave qualidade em si (agrave suma beleza diria o Bispo de Hipona) sem a

subordinar a qualquer outra finalidade Claro que assim delineado o prazer esteacutetico soacute

uma alma superior o poderaacute sentir Quanto menor for o grau de aperfeiccediloamento da

alma menor seraacute o desinteresse e menor seraacute o prazer que essa alma eacute capaz de fruir

Em todo o caso natildeo haacute prazer esteacutetico sem uma percepccedilatildeo consciente dos numeri ndash a

mera consciecircncia dos estados corporais ainda que possa ser prazerosa natildeo eacute suficiente

para ser considerada de acircmbito esteacutetico A atitude esteacutetica eacute sempre afim da

contemplaccedilatildeo e exige um trabalho intelectual mais aprofundado do que o da ratio

569

Cf Shaftesbury Characteristics of Men Manners Opinions Times vol II treat V Whitefish

Kessinger Publishing 2004 passim

570 Cf De vera relig 32 59

198

inferior571

Fica assim feita a distinccedilatildeo entre o prazer esteacutetico e o prazer resultante da

consciecircncia dos estados corporais que eacute um prazer primaacuterio resta portanto perceber se

ao niacutevel daquilo que designaacutemos por prazeres secundaacuterios haveraacute alguma especificidade

que diferencie o prazer esteacutetico

Sem o trabalho intelectual que integre a consciecircncia da alma face a si mesma e

ao seu fim qualquer prazer experienciado ou natildeo passa de uma sensaccedilatildeo primaacuteria ou eacute

um prazer egoiacutesta porque inconsequente Por exemplo o sujeito que exerccedila domiacutenio

sobre os seus proacuteximos poderaacute sentir prazer nessa atitude e nos benefiacutecios materiais daiacute

decorrentes mas estaraacute a subverter a ordem do amor que o poderia conduzir agrave felicidade

eterna Se a sua alma se prestasse a um exame interior certamente encontraria o

contrapeso que faria desse prazer um pau de dois bicos impedindo a plenitude da

agradabilidade e promovendo a sua procura noutros modos de relaccedilatildeo Os prazeres

egoiacutestas satildeo naturalmente fruto de um deacutefice ou de um erro de judicaccedilatildeo eles estatildeo

associados ao amor desordenado (ou cupiditas)

A praacutetica de uma boa acccedilatildeo em que por exemplo o amor ao proacuteximo eacute

exteriorizado provoca no sujeito que a exerce uma sensaccedilatildeo de prazer mesmo que

possa implicar um sacrifiacutecio para o corpo Essa sensaccedilatildeo de prazer seria o resultado da

conformidade da acccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave natureza da alma e ao seu almejado regresso agrave

origem Seraacute portanto um prazer de ordem moral no entanto natildeo parece haver qualquer

diferenccedila significativa entre este tipo de prazer e o prazer esteacutetico jaacute que ambos se

desencadeiam a partir da consciecircncia da conformaccedilatildeo agrave ordem moral e ambos acabam

por ser actuantes sobre o prazer ou desprazer primaacuterios A consciecircncia da conformaccedilatildeo

ou natildeo agrave ordem acaba por corresponder a determinados estados de espiacuterito e estes quer

sejam ou natildeo motivados por factores externos tecircm sempre um reflexo fiacutesico que pode ir

desde a mera sensaccedilatildeo de relaxamento ateacute agrave dor fiacutesica ou mesmo agrave doenccedila passando por

uma vasta gama de sensaccedilotildees intermeacutedias e por manifestaccedilotildees externas de sintomas572

A alma sente o prazer esteacutetico do mesmo modo que experiencia o prazer moral em si

571

Sobre a ratio inferior vide subcapiacutetulo I 22 da presente tese

572 Em De Genesis ad litteram Santo Agostinho diz que a palidez o rubor os tremores e as doenccedilas tanto

podem ser desencadeadas por factores como a alimentaccedilatildeo ou como as condiccedilotildees exteriores que afectem

o corpo como tambeacutem pelas emoccedilotildees a que alma estaacute sujeita e que comunica ao corpo por meio de um

impulso quanto mais violentas forem tais emoccedilotildees mais veemente seraacute esse impulso que a alma

transmite ao corpo Cf De Gen ad litt XII 19 41 Em vaacuterias outras passagens explica que a alma

controla o ritmo respiratoacuterio e a pulsaccedilatildeo (cf Mus VI 3 4) controla os movimentos espontacircneos (cf De

quant an 22 38) e as funccedilotildees automaacuteticas do corpo (cf De Gen ad littVII 20 26)

199

enquanto estado de espiacuterito como uma conformidade ordenada e no corpo como

manifestaccedilatildeo sintomaacutetica desse estado de espiacuterito Natildeo eacute portanto de estranhar que

possa haver uma recorrecircncia ao vocabulaacuterio sensual para descrever o prazer ou o

desprazer de ordem moral Por exemplo face a uma situaccedilatildeo de injusticcedila na qual nos foi

impossiacutevel intervir dizemos que a sua lembranccedila nos deixa um ldquoamargo de bocardquo ou

pelo contraacuterio face a uma situaccedilatildeo em que testemunhamos algueacutem a praticar uma boa

acccedilatildeo dizemos que estaacute a ter uma ldquoatitude bonitardquo Mais uma vez conveacutem chamar a

atenccedilatildeo para o facto de a percepccedilatildeo das qualidades esteacuteticas natildeo se confundir com a

percepccedilatildeo do bem573

Apesar de defendermos que na perspectiva agostiniana o prazer

desencadeado por ambos os tipos de percepccedilatildeo eacute equivalente uma vez que se processa

do mesmo modo natildeo somos levados a crer que haja necessariamente uma indistinccedilatildeo

entre as qualidades esteacuteticas e morais presentes em determinada experiecircncia Na

verdade a ocorrer tal indistinccedilatildeo seraacute tambeacutem fruto de um juiacutezo de valor errado

Apesar de natildeo haver uma diferenccedila fundamental entre prazer esteacutetico e prazer

moral574

haveraacute no entanto algo que distinga entre um juiacutezo esteacutetico e um juiacutezo moral

ou entre um juiacutezo esteacutetico e um juiacutezo cognitivo Quando julgamos um objecto ou

situaccedilatildeo fazemo-lo atraveacutes de um criteacuterio de beleza de bondade ou de verdade de

acordo com o qual predicamos esse objecto ou situaccedilatildeo Para Santo Agostinho haacute uma

equivalecircncia entre estes trecircs criteacuterios jaacute que todos satildeo imutaacuteveis e se reportam a Deus575

e portanto todos satildeo superiores ao sujeito Tal como a divindade se triparte em trecircs

pessoas que apesar de se equivalerem mantecircm as suas caracteriacutesticas distintivas

tambeacutem na triacuteade de criteacuterios seraacute possiacutevel determinar uma especificidade que os

singularize natildeo quanto agrave sua natureza mas quanto agraves afinidades a que predispotildeem e aos

caminhos que iluminam para conduzir o sujeito ateacute si Com efeito cada um dos

criteacuterios parece corresponder a um modo distinto de relacionamento que o homem pode

encetar com aquilo que o rodeia

O juiacutezo moral implica uma resposta emocional adequada ndash Santo Agostinho

diria uma resposta de amor ndash que empenha o sujeito de modo prescritivo e que nunca eacute

dependente do contexto Eacute sempre um juiacutezo virado para a acccedilatildeo pois quer se reporte a

573

Este toacutepico foi jaacute clarificado no subcapiacutetulo I 3 1 Vide p 167

574 Eacute precisamente a capacidade de distinguir as qualidades esteacuteticas das morais que permite falar em

prazer esteacutetico e em prazer de ordem moral embora natildeo estes natildeo sejam experienciados distintamente

575 Por se identificarem com Ele e por Ele ser a sua causa

200

algo jaacute ocorrido quer se reporte a meras intenccedilotildees acaba sempre por revelar ao sujeito

como deve ou natildeo comportar-se Em termos morais a adequaccedilatildeo do comportamento eacute

sobretudo relativa ao outro embora em determinadas situaccedilotildees possa reportar-se ao

proacuteprio ndash por exemplo em relaccedilatildeo ao suiciacutedio Todavia os comportamentos que visam o

proacuteprio acabam por reflectir a postura do sujeito face ao proacuteximo576

Um juiacutezo moral eacute

em uacuteltima instacircncia uma constataccedilatildeo acerca de um modo de agir que leva o outro em

consideraccedilatildeo e que assim potildee em marcha o amor ao proacuteximo

O juiacutezo cognitivo regido pelo criteacuterio da Verdade natildeo eacute uma mera constataccedilatildeo

factual que apenas descreveria a realidade sensiacutevel e permitiria uma certa

previsibilidade ou antecipaccedilatildeo das implicaccedilotildees associadas ao modo como o sujeito se

relaciona com os objectos temporais O juiacutezo cognitivo diz respeito agrave constataccedilatildeo do

grau de consistecircncia ontoloacutegica dos objectos que percebemos Eacute portanto um juiacutezo

descritivo tal como o juiacutezo esteacutetico destacando-se deste por natildeo motivar directamente

uma resposta em termos de prazer577

Como tal falta-lhe a reflexividade impliacutecita no

modo como a alma revecirc o produto da sua proacutepria atenccedilatildeo ao corpo

Pelo juiacutezo esteacutetico apesar de o sujeito natildeo se estar a eximir de uma avaliaccedilatildeo ou

conteuacutedo proposicional que implica a cogniccedilatildeo e que implica um posicionamento

moral pressupotildee-se que o foco da atenccedilatildeo estaacute nas razotildees do seu poder de atracccedilatildeo ou

do modo inesperado como o processo sensiacutevel convoca a razatildeo predispondo a uma

nova compreensatildeo do sentido das coisas ou situaccedilotildees a partir da consciecircncia que o

576

Santo Agostinho condena o suiciacutedio dizendo que eacute errado e natildeo deve ser praticado uma vez que ao

matar-se o sujeito mata um homem De civ Dei I 20 (CCL 47 p 22) laquoNeque enim qui se occidit

aliud quam hominem occiditraquo O sujeito natildeo eacute portanto visto na sua individualidade mas na sua

generalidade ndash quase como um outro de si mesmo Santo Agostinho eacute expliacutecito ao dizer que o suiciacutedio

viola um mandamento da lei de Deus o sexto que diz ldquonatildeo mataraacutesrdquo e o preceito biacuteblico ldquoamaraacutes o teu

proacuteximo como a ti mesmordquo (Mat 2239) pois ao pressupor a falta de amor-proacuteprio o suiciacutedio revela

tambeacutem a falta de amor pelo proacuteximo

577 Cf De vera relig 49 95 Naturalmente o conhecimento de Deus suscitaraacute prazer mas como a relaccedilatildeo

alma-corpo entatildeo se altera a questatildeo da judicaccedilatildeo deixa de fazer sentido adquirindo aiacute o prazer uma

autonomia singular Como o corpo se submeteraacute inteiramente agrave alma esta natildeo precisa de lhe dedicar a

atenccedilatildeo que dedicava antes da ressurreiccedilatildeo e sequer precisa ajuizar acerca da adequaccedilatildeo da sua resposta agrave

sensaccedilatildeo O homem ressurrecto teve um percurso temporal que o conduziu ateacute agrave felicidade eterna e natildeo

corre o risco de voltar a pecar Os ecircxtases como aquele que Santo Agostinho experiencia pela visatildeo de

Oacutestia satildeo uma excepccedilatildeo nesta questatildeo do prazer motivado pelo vislumbre da Verdade ainda no mundo

terreno todavia eacute um prazer destacado da actividade judicativa jaacute com a mesma autonomia que

caracterizaraacute o prazer experienciado pelo homem ressurrecto Ainda que excepcional as caracteriacutesticas do

prazer extaacutetico vatildeo no sentido de confirmar que todo o prazer se faz sentir no corpo tal como Bernini tatildeo

exemplarmente demonstrou com a sua famosa escultura

201

sujeito tem dos seus estados corporais A sensaccedilatildeo investe imediatamente o objecto de

um sentido determinado pela fisicalidade da experiecircncia que eacute reiterado ou alterado pela

avaliaccedilatildeo da alma com base na adequaccedilatildeo da sua proacutepria resposta no corpo

relativamente ao criteacuterio que encontra em si mesma mas que a ultrapassa

Relativamente ao juiacutezo cognitivo o juiacutezo esteacutetico parece natildeo se distinguir para laacute

dessa integraccedilatildeo da fisicalidade que contempla Ele eacute como uma variaccedilatildeo do juiacutezo

cognitivo pela qual eacute levada em conta a reacccedilatildeo do sujeito ao estiacutemulo exterior quanto

ao seu estado corporal e quanto agrave conformidade desse estado ponderada em relaccedilatildeo agrave

natureza do estiacutemulo e em relaccedilatildeo agraves especificidades da natureza ascensional da alma

Daiacute que os nuacutemeros ndash cujo reconhecimento fundamenta o juiacutezo esteacutetico e estaacute

dependente do grau de evoluccedilatildeo da alma ndash sejam equivalentes agrave sabedoria

Dependendo do contexto um juiacutezo esteacutetico pode variar578

No entanto para

Santo Agostinho e contrariamente a Kant trata-se de um juiacutezo objectivo porque se

refere a relaccedilotildees numeacutericas meta-formais e tem por base um criteacuterio imutaacutevel e eterno

ao qual outras almas tecircm acesso pelas respectivas interioridades Natildeo esqueccedilamos que

para o Bispo de Hipona a interioridade pressupotildee conhecimento e iluminaccedilatildeo Natildeo

esqueccedilamos ainda que o juiacutezo esteacutetico de certo modo eacute tambeacutem um juiacutezo moral porque

tal como vimos avalia a adequaccedilatildeo da resposta sensiacutevel ao contexto imediato e ao

desiacutegnio da alma retornar agrave sua origem Ainda assim trata-se de um juiacutezo meramente

descritivo e natildeo prescritivo ele natildeo eacute prescritivo porque natildeo visa concretamente uma

acccedilatildeo e porque varia quanto ao contexto mas qualifica o objecto e eacute indicativo quanto agrave

proacutepria perfeiccedilatildeo da alma ndash uma alma incapaz de reconhecer qualidades esteacuteticas nas

coisas que a rodeiam natildeo eacute ela proacutepria bela uma vez que se revela inepta para perceber

e seguir os numeri Assim sendo o juiacutezo esteacutetico natildeo coloca a toacutenica no relacionamento

do sujeito com o outro como ocorria no caso do juiacutezo moral mas no relacionamento do

sujeito com as realidades sensiacutevel (a sua proacutepria) e inteligiacutevel Contrariamente ao juiacutezo

cognitivo simples o juiacutezo esteacutetico revela sobretudo a relaccedilatildeo do sujeito consigo mesmo

na sua natureza compoacutesita de corpo e alma Ainda assim o juiacutezo esteacutetico na perspectiva

agostiniana natildeo deveraacute considerar-se um juiacutezo de gosto pois sequer eacute subjectivo579

578

Eacute o caso do exemplo jaacute citado na p 194 de uma boa interpretaccedilatildeo musical que realizada num contexto

solene pode despertar sentimentos vexantes impedindo um apreccedilo pela muacutesica que noutro contexto

possivelmente se revelaria pleno

579 Na verdade o juiacutezo esteacutetico agostiniano quase corresponde ao juiacutezo cognitivo kantiano Para Kant o

juiacutezo cognitivo eacute determinado pela uniatildeo de um conceito a uma intuiccedilatildeo empiacuterica ou seja a percepccedilatildeo de

202

Para uma alma preparada o mesmo objecto pode ser alvo de um juiacutezo esteacutetico

de um juiacutezo moral eou de um juiacutezo cognitivo Os trecircs satildeo juiacutezos racionais fruto da

liberdade de escolha580

e os trecircs desde que correctamente formulados permitem

ordenar o objecto a que se referem numa mesma escala hieraacuterquica de perfeiccedilotildees Isto eacute

se o objecto em causa for correctamente ajuizado ele ocuparaacute sempre o mesmo lugar

hieraacuterquico quer o criteacuterio usado seja o da beleza o da bondade ou o da verdade

Todavia parece haver para o Bispo de Hipona uma certa ordem natildeo de importacircncia

mas de sucessividade entre os trecircs modos de relacionamento a que os trecircs juiacutezos

correspondem A relaccedilatildeo esteacutetica do sujeito com o mundo natildeo eacute condenaacutevel muito pelo

contraacuterio eacute desejaacutevel poreacutem natildeo deveraacute sobrepor-se preponderantemente agrave relaccedilatildeo

amorosa ordenada ndash o amor ao proacuteximo eacute o primeiro passo para o percurso ascensional

interior e natildeo pode ser uma etapa negligenciada em prol de um modo de estar mais

contemplativo que natildeo tenha tido por base tal posicionamento eacutetico Assim mesmo que

a ordem de valores eacuteticos corresponda agrave de valores esteacuteticos os nossos juiacutezos morais

deveratildeo ter prioridade face aos juiacutezos esteacuteticos caso sejam simultaneamente

convocados jaacute que a orientaccedilatildeo das nossas acccedilotildees eacute feita a partir de tais juiacutezos de valor

Eacute com base neles que estabelecemos as nossas prioridades e afinidades e que definimos

o nosso modo de estar no mundo

Os diferentes tipos de juiacutezos que fazemos sobre os objectos determinaratildeo

diferentes modos de agir e Santo Agostinho como que defende um certo protocolo de

actuaccedilatildeo Segundo o Bispo de Hipona a verdade deve ser procurada tal como fizeram

os filoacutesofos gregos poreacutem natildeo eacute suficiente e pode redundar em soberba A beleza deve

ser reconhecida contudo dadas as limitaccedilotildees do sujeito esse seu reconhecimento

facilmente ocasiona erros de valor que podem restringir o sujeito agrave sensibilidade

prendendo-o a prazeres inferiores O amor ao proacuteximo eacute a via segura a ser empreendida

e soacute ela parece dispensar o complemento inicial de algum dos outros modos de relaccedilatildeo

De qualquer modo por esta via o acesso agrave verdade e ao prazer do belo acabam por ser

um dado objecto eacute posta em relaccedilatildeo com uma ideia ou representaccedilatildeo mental abstracta e geral Para o

Bispo de Hipona o juiacutezo esteacutetico relaciona a percepccedilatildeo com uma ideia que ultrapassa a mente ndash natildeo eacute

uma representaccedilatildeo mas uma realidade concreta com existecircncia no plano inteligiacutevel agrave qual a mente acede

pela iluminaccedilatildeo divina

580 No sentido em que a prioridade dada a cada um desses juiacutezos em relaccedilatildeo aos outros eacute estabelecida

por uma escolha consciente do sujeito

203

sempre propiciados mas agora com a seguranccedila de um ordo amoris capaz de os

adequar quanto ao seu alcance e determinaccedilatildeo

A procura da verdade e a procura da beleza equivalem-se daiacute que em

Retractationum o Bispo de Hipona tenha escrito que a philosophia e a philocalia satildeo

uma e a mesma coisa581

Eacute como desejo (appetitus ou voluntas) que o amor se articula agrave

procura da beleza e da verdade mas eacute como caritas que estaacute impliacutecito na demanda da

bondade Eacute essa particularidade que determina o caraacutecter prioritaacuterio da eacutetica na ordem

do amor Todavia como os criteacuterios de bondade beleza e verdade no fundo se

correspondem todos eles acabam por estar implicados nos diversos tipos de relaccedilatildeo que

o sujeito estabelece com aquilo que o rodeia Na relaccedilatildeo esteacutetica que eacute aquela que nos

ocupa o criteacuterio da bondade marca presenccedila na afericcedilatildeo moral a que a alma sujeita a

sensaccedilatildeo ajuizando acerca da adequaccedilatildeo da sua resposta agrave impressatildeo no corpo o

criteacuterio da verdade acaba por ser tambeacutem a base dessa avaliaccedilatildeo pois ela implica uma

consciecircncia do estatuto ontoloacutegico dos elementos com os quais joga o processo

judicativo estatuto este que o criteacuterio da verdade eacute o mais apto a facultar

581

Cf Retr I 1 3 e vide p 175 da presente tese

204

42 - A verdade como criteacuterio do juiacutezo esteacutetico

De acordo com a perspectiva agostiniana o prazer que tem lugar na experiecircncia

esteacutetica eacute suscitado pela percepccedilatildeo de algo mais para laacute do objecto a partir do qual essa

mesma experiecircncia eacute desencadeada O objecto desperta no sujeito a sensaccedilatildeo primaacuteria

de prazer atraveacutes de propriedades sensiacuteveis como a simetria ou a suavidade poreacutem soacute

haacute experiecircncia esteacutetica pela recta avaliaccedilatildeo da sensaccedilatildeo e nessa altura a alma acede

necessariamente aos criteacuterios judicativos que lhe revelam natildeo ser predicado do objecto a

qualidade que apraz atraveacutes das suas propriedades sensiacuteveis Essa constataccedilatildeo desde

logo situa a experiecircncia esteacutetica na via da verdade Ao compreender o caraacutecter

transcendente daquilo que atrai e provoca prazer atraveacutes do objecto o sujeito

perspectiva a relaccedilatildeo entre duas realidades distintas uma inferior que o contextualiza

fisicamente e cujos indiacutecios lhe revelam uma outra realidade superior seguramente

mais viacutevida e verdadeira por natildeo estar sujeita agrave mutabilidade que caracteriza a sua

existecircncia terrena Como eacute a esta realidade superior que a alma aspira a sua relaccedilatildeo

com a esfera sensiacutevel eacute perspectivada segundo paracircmetros comparativos que lhe

permitem perceber o grau de proximidade ao plano inteligiacutevel que o seu modo de estar

no mundo determina Tais paracircmetros comparativos natildeo satildeo mais do que os criteacuterios

aos quais a alma recorre no processo de judicaccedilatildeo

Santo Agostinho diz que natildeo haacute nada de mais admiraacutevel e de mais belo do que a

verdade582

Mas natildeo soacute a verdade eacute bela como tambeacutem a beleza eacute verdadeira Sabendo

que no pensamento agostiniano a verdade se identifica com Deus583

ndash tal como o sumo

582

De vera relig 49 94 (CCL 32 p 249) laquoQuid ergo admirabilius quid speciosius ipsa veritate [hellip]raquo

583 Cf De lib arb II 15 39

205

bem ou o sumo belo ndash natildeo deveraacute suscitar estranheza a existecircncia de uma certa

comutabilidade entre os criteacuterios pelos quais se rege a actividade judicativa Do mesmo

modo que o bem eacute assumido como um dos criteacuterios do juiacutezo esteacutetico relativamente agrave

constataccedilatildeo da legitimidade da sensaccedilatildeo tambeacutem a verdade aiacute marca presenccedila de um

modo talvez ainda mais enfaacutetico do que o bem A desejaacutevel preeminecircncia inicial da

relaccedilatildeo eacutetica natildeo obsta a que o criteacuterio da verdade seja considerado a lei de qualquer

acto judicativo584

lei essa identificada com o Filho585

O acto judicativo eacute no fundo uma estrateacutegia natural e muitas vezes

inconsciente de direccionar a alma para a unidade jaacute que ela procura estabelecer e

colmatar a razatildeo do distanciamento entre o objecto alvo do juiacutezo e o criteacuterio judicativo

que eacute superior agrave alma e natildeo pode ser por seu turno ajuizado A procura de unidade

submete o sujeito e o objecto ao modelo arquetiacutepico do qual receberam o seu ser daiacute

que o homem seja tambeacutem ele julgado pela proacutepria lei segundo a qual julga aquilo que o

rodeia Ora as Sagradas Escrituras dizem que todos os homens deveratildeo comparecer ao

tribunal de Jesus Cristo (II Cor 5 10) pelo que eacute atraveacutes da sua lei a da Sabedoria que

qualquer juiacutezo deveraacute ser empreendido O Filho eacute a verdade que daacute a conhecer a

medida suprema586

Como tal ele preside interiormente e eacute a ele que a alma racional

consulta sempre que se interroga

Esta temaacutetica eacute clarificada em De Magistro onde Santo Agostinho explica a

Adeodato que Cristo eacute o uacutenico mestre capaz de ensinar algo ao homem a sua palavra

exterior adverte para que seja escutada a sua palavra interior587

que eacute a verdade

Qualquer outro suposto mestre nada pode ensinar uma vez que as palavras por si

utilizadas se limitam a referenciar coisas das quais o disciacutepulo jaacute tem conhecimento

preacutevio Sem esse conhecimento preacutevio o disciacutepulo sequer perceberia o significado das

palavras proferidas pelo mestre Haacute naturalmente comunicaccedilatildeo de ideias entre

interlocutores mas ao escutar o que o outro diz o sujeito manteacutem-se no acircmbito da

584

Cf De vera relig 30 56

585 Cf De vera relig 31 58

586 De beata vita 4 34 (CCL 29 p 84) laquoSed etiam summus modus necesse est ut verus modus sit Ut

igitur veritas modo gignitur ita modus veritate cognoscitur Neque igitur veritas sine modo neque modus

sine veritate unquam fuit Quis est Dei Filius Dictum est Veritasraquo

587 Cf De Mag 11 38 14 46

206

crenccedila e do plausiacutevel (probabilis)588

a menos que alcance pela proacutepria mente a verdade

daquilo que ouve Neste tipo de relaccedilatildeo pedagoacutegica natildeo haacute portanto um veicular de

verdades mas uma orientaccedilatildeo por parte do mestre que permite lembrar aquilo que o

disciacutepulo jaacute sabe Quase uma deacutecada volvida sobre o diaacutelogo De Magistro o Bispo de

Hipona reitera esta sua teoria em Contra epistulam Manichaei quam vocant fundamenti

referindo que por meio das palavras os homens podem despertar lembranccedilas uns nos

outros mas soacute aquele que realmente ensina eacute o mestre por excelecircncia o uacutenico Mestre

interior ndash tambeacutem epitetado por Santo Agostinho de Verdade incorruptiacutevel ndash que se fez

de mestre exterior para chamar o homem agrave sua interioridade589

A revelaccedilatildeo da verdade ocorre exclusivamente pela auscultaccedilatildeo do Mestre

interior que habita dentro de cada um e que ilumina a alma mediando a percepccedilatildeo das

verdades eternas domiciliadas em Deus O homem acede portanto agraves verdades eternas

imutaacuteveis e universais graccedilas agrave luz inteligiacutevel que lhe possibilita a visatildeo intelectual

Esta luz eacute Cristo que habita no homem interior e que permite passar da crenccedila para o

conhecimento da verdade Tal conhecimento da verdade natildeo eacute uma visatildeo directa da

Verdade transcendente identificada com Deus eacute sim uma percepccedilatildeo intelectual das

verdades fundamentais que manifestam a acccedilatildeo superior da Verdade divina590

Eacute nesta

relaccedilatildeo entre verdades fundamentais e Verdade pura transcendente que assenta o

caraacutecter simultaneamente imanente e transcendente da divindade em relaccedilatildeo ao homem

Ao aceder agraves verdades eternas o homem acede agrave derradeira Verdade (Deus) poreacutem natildeo

a vecirc ainda face a face mas sim como uma inteligibilidade de tudo o que existe591

Haacute entatildeo uma diferenciaccedilatildeo entre a Verdade eterna e verdades eternas sendo

que estas uacuteltimas correspondem agraves ideias ou razotildees existentes na mente de Deus que a

588

Cf Sol I 8 15

589 Contra ep fund 36 41 (CSEL 251 p 241) laquoPer homines enim commemoratio aliqua signis

verborum fieri potest docet autem unus verus magister ipsa incorruptibilis Veritas solus magister

interior qui etiam exterior factus est ut nos ab exterioribus ad interiora revocaret [hellip]raquo

590 Cf Dominique Doucet Augustin lexpeacuterience du verbe Paris Vrin 2004 p 83

591 Eacute assim que em Soliloquiorum Santo Agostinho estabelece um paralelo entre as trecircs propriedades que

podem ser distinguidas no sol corpoacutereo ndash que ele existe brilha e ilumina ndash e trecircs atributos divinos

segundo os quais Deus eacute Deus eacute inteligiacutevel e torna tudo o resto inteligiacutevel Sol I 8 15 (CSEL 89 p 23)

laquoErgo quomodo in hoc sole tria quaedam licet animadvertere quod est quod fulget quod illuminat ita in

illo secretissimo Deo quem vis intellegere tria quaedam sunt quod est quod intellegitur et quod caetera

facit intellegiraquo

207

mente humana intui592

As verdades eternas constituem-se como paradigmas e leis de

tudo o que existe natildeo se reduzindo a meras proposiccedilotildees loacutegicas ndash elas natildeo satildeo

abstracccedilotildees mas realidades com um estatuto infinitamente superior agraves coisas terrenas

Santo Agostinho natildeo eacute constante na terminologia que utiliza pelo que eacute possiacutevel

encontrarmos nas suas obras vaacuterias alusotildees distintas agraves leis pelas quais se rege a

actividade judicativa As verdades eternas satildeo leis593

como tambeacutem o satildeo as noccedilotildees

(notiones)594

e os princiacutepios racionais (rationes)595

Esta indeterminaccedilatildeo parece no

entanto delinear uma espeacutecie de ordem de derivaccedilatildeo pela qual se processa a aplicaccedilatildeo

do criteacuterio judicativo596

jaacute que os princiacutepios racionais tecircm um emprego mais concreto

em relaccedilatildeo ao objecto sobre o qual incide o juiacutezo da alma articulando a imagem mental

resultante da experiecircncia sensiacutevel com as notiones que satildeo por seu turno realidades

impressas na memoacuteria As rationes estatildeo inatamente presentes na memoacuteria597

e parecem

constituir-se como uma espeacutecie de estruturas mentais capazes de relacionar

caracteriacutesticas espaacutecio-temporais em termos de proporccedilotildees satildeo naturalmente de

natureza matemaacutetica no sentido em que aferem medidas e padrotildees mas ultrapassam os

esquemas algeacutebricos uma vez que o seu caraacutecter numeacuterico eacute consistente com o

reconhecimento da dimensatildeo qualitativa caracteriacutestica dos numeri598

Como tal os

princiacutepios racionais satildeo uma espeacutecie de funccedilatildeo da alma que permite estabelecer uma

referecircncia entre a percepccedilatildeo das caracteriacutesticas espaacutecio-temporais dos objectos e os

criteacuterios judicativos Assim Santo Agostinho diz que

Eacute segundo a lei da quadratura que se julgaraacute uma praccedila quadrada uma

pedra quadrada um quadro e uma joacuteia quadrada eacute segundo toda a lei da

igualdade que se julgaraacute harmoniosa a marcha de uma formiga bem como a

592

Cf De div quaest 83 46 2

593 Cf De lib arb II 10 29

594 Cf De Trin VIII 3 4

595 Cf Conf X 19 12 e De vera relig 30 56

596 Gilson nota que a iluminaccedilatildeo divina e os dispositivos mentais que lhe dizem respeito satildeo

essencialmente normativos o que corrobora esta nossa teoria acerca do papel das razotildees eternas das

noccedilotildees e dos princiacutepios racionais no processo judicativo Gilson op cit pp 119-124

597 Cf Conf X 19 12

598 Vide subcapiacutetulo I221 do presente ensaio

208

de um elefante [hellip] Uma vez que esta lei de todas as artes eacute absolutamente

imutaacutevel [hellip] parece evidente que haacute acima da nossa alma uma lei que eacute

chamada Verdade599

A Verdade parece poreacutem articular-se mais directamente com as notiones do que

com os princiacutepios racionais Santo Agostinho fala por exemplo da noccedilatildeo de

felicidade600

de justiccedila601

de bondade602

de sabedoria e de tudo o que nela se

subsume603

ndash cuja funccedilatildeo tanto parece ir no sentido da formulaccedilatildeo da lei judicativa

como no sentido do alcance cognoscitivo As noccedilotildees satildeo presenccedilas natildeo satildeo imagens e

funcionam como conceitos No caso da notio impressa constituiacuteda pela bem-aventuranccedila

tal como eacute exposta em De libero arbitrio Santo Agostinho iraacute referir-se-lhe tambeacutem em

Confessionum ao explicar que o homem deseja a felicidade eterna dado existir na

memoacuteria uma noccedilatildeo de felicidade que antecede tal desejo e que eacute projectiva pois

inscreve-se no tempo A origem de tal noccedilatildeo eacute contudo uma incoacutegnita para Santo

Agostinho mas estaacute associada agrave iluminaccedilatildeo da alma e o caraacutecter desiderativo que tal

noccedilatildeo assume corresponde agrave proacutepria acircnsia da Verdade e de Deus604

A noccedilatildeo natildeo eacute a

ideia ou verdade eterna mas uma espeacutecie de elo que liga a mente humana agrave mente

599

De vera relig 30 56 (CCL 32 p 224) laquoNunc vero cum secundum totam quadraturae legem iudicetur

et forum quadratum et lapis quadratus et tabella et gemma quadrata rursus secundum totam aequalitatis

legem iudicentur convenire sibi motus pedum currentis formicae et secundum eam gradientis elephanti

[hellip] Haec autem lex omnium artium cum sit omnino incommutabilis [hellip] satis apparet supra mentem

nostram esse legem quae veritas diciturraquo

600 De lib arb II 9 26 (CCL 29 p 254) laquoSicut ergo antequam beati simus mentibus tamen nostris

impressa est notio beatitatis per hanc enim scimus fidenterque et sine ulla dubitatione dicimus beatos

nos esse velleraquo

601 De lib arb I 13 27 (CCL 29 p 230) laquoNulla mihi alia iustitiae notio estraquo

602 De Trin VIII 3 4 (CCL 50 p 272) laquoNeque enim in his omnibus bonis vel quae commemoravi vel

quae alia cernuntur sive cogitantur diceremus aliud alio melius cum vere iudicamus nisi esset nobis

impressa notio ipsius boni secundum quod et probaremus aliquid et aliud alii praeponeremusraquo

603 De lib arb II 15 40 (CCL 29 p 264) laquoovit ergo insipiens sapientiam Non enim sicut iam dictum

est certus esset velle se esse sapientem idque oportere nisi notio sapientiae menti eius inhaereret sicut

earum rerum de quibus singillatim interrogatus respondisti quae ad ipsam sapientiam pertinent quorum

cognitione laetatus esraquo

604 Cf Conf X 20 29-30

209

divina605

e que permite ao homem ajuizar e desejar de acordo com as verdades eternas

A presenccedila das noccedilotildees faz-se notar na memoacuteria a partir das funccedilotildees que a reacccedilatildeo da

proacutepria alma aos estiacutemulos sensiacuteveis nela fez activar A simetria que por exemplo a

alma afere pela acccedilatildeo aferidora das rationes a partir de um estiacutemulo visual inicial seraacute

directamente reportadas agraves notiones e desta agraves verdades eternas numa coerecircncia que

permite integrar a multiplicidade na totalidade una e que possibilita a compreensatildeo da

infinitude no finito

A mesma loacutegica de intermediaccedilatildeo entre as dimensotildees humana e divina que este

esquema interior pressupotildee permite de certo modo estabelecer um paralelo com a acccedilatildeo

salviacutefica e mediadora de Cristo Eacute com efeito no Filho que a relaccedilatildeo entre beleza e

verdade melhor se compreende Sendo a mais perfeita imagem da beleza de todas as

belezas606

ou a semelhanccedila sem deformidade Cristo incarna no corpo terreno sem nada

perder desse seu atributo divino

Para aqueles que compreendem o Verbo feito carne eacute de uma suprema

beleza [hellip] belo eacute Deus o Verbo de Deus ele eacute belo no seio da Virgem

onde natildeo perdeu a divindade e assumiu a humanidade eacute belo o Verbo

nascido crianccedila pois enquanto crianccedila enquanto sugava o leite e era levado

nos braccedilos os ceacuteus falaram os anjos cantaram loas a estrela guiou o

caminho dos Magos foi adorado no preseacutepio ele que eacute o alimento dos

mansos Portanto eacute belo no ceacuteu belo na terra belo no uacutetero belo nos braccedilos

de seus pais belo nos milagres belo nos supliacutecios belo no convite agrave vida

belo no desinteresse pela morte belo no abandono da vida belo no

retomaacute-la belo na cruz belo no sepulcro belo no ceacuteu Escutai o canto no

intelecto e a enfermidade da carne natildeo desviaraacute os vossos olhos do esplendor

da sua beleza607

605 Haacute comentadores que natildeo partilham esta posiccedilatildeo Feacutelix Nourrisson por exemplo considera que as

notiones concernem ao intelecto divino e correspondem directamente agraves ideae formae ou species

Nourrisson La philosophie de Saint Augustin vol 2 2 ed Paris Didier et cie 1866 p 131

606 Conf III 6 10 (CCL 27 p 31) laquo[hellip] pulchritudo pulchrorum omniumraquo

607 En Ps 44 3 (CCL 38 p 495) laquoIntellegentibus autem et Verbum caro factum est magna pulchritudo

est [hellip] Pulcher Deus Verbum apud Deum pulcher in utero virginis ubi non amisit divinitatem et

sumpsit humanitatem pulcher natus infans Verbum quia et cum esset infans cum sugeret cum manibus

portaretur coeli locuti sunt Angeli laudes dixerunt Magos stella direxit adoratus est in praesepi cibaria

mansuetorum Pulcher ergo in coelo pulcher in terra pulcher in utero pulcher in manibus parentum

pulcher in miraculis pulcher in flagellis pulcher invitans ad vitam pulcher non curans mortem pulcher

deponens animam pulcher recipiens pulcher in ligno pulcher in sepulcro pulcher in coelo In

intellectum audite Canticum neque oculos vestros a splendore pulchritudinis illius avertat carnis

infirmitasraquo

210

Ainda que para os olhos sensiacuteveis a beleza do Verbo incarnado surja velada a

ponto de suscitar repulsa608

jaacute para os olhos da alma ela brilha em todo o seu

esplendor Significa isto que natildeo haacute acesso agrave beleza enquanto propriedade que

ultrapassa as propriedades sensiacuteveis dos corpos a menos que se atente agrave verdade

interior Cristo indica a via da humildade e do amor para o reconhecimento da

verdade a fealdade do seu corpo fustigado e crucificado comove suscitando

paradoxalmente a visatildeo da sua beleza ndash a verdadeira beleza Embora a Sagrada

Escritura se refira a Cristo como o mais formoso entre os filhos dos homens (Sl 453)

a sua beleza natildeo estaacute no seu corpo terreno mas no alcance iluminado da alma

humana que ele proacuteprio assegura Ao chamar o homem para a beleza o Filho natildeo soacute

mostra as leis da verdade eterna como embeleza a alma humana Cristo ama a

humanidade mesmo sendo ela ainda feia mas natildeo a ama na sua fealdade pois se

assim fosse tecirc-la-ia conservado Pelo contraacuterio ele vem precisamente para restaurar a

beleza609

Eacute assim que tambeacutem a beleza entra na dimensatildeo salviacutefica Citando Joseph

Ratzinger o Cristo crucificado atinge-nos ldquocom a seta da sua beleza paradoxal e soacute

entatildeo aprendemos a conhececirc-lo verdadeiramente sem intermediaacuterios Deste modo

encontramos a beleza da Verdade da Verdade que redimerdquo610

Fora do acircmbito concreto da Paixatildeo poderaacute ser um aspecto qualitativo a

determinar a esteticidade da experiecircncia mas tambeacutem natildeo eacute apenas o belo a ser

convocado como criteacuterio

608

Isaiacuteas diz que ldquoJesus natildeo tinha uma figura atraente nem formosura e olhando para Ele natildeo havia

beleza para que O contemplaacutessemosrdquo (Is 532) No versiacuteculo seguinte eacute referida a repulsa que suscitava

fazendo com que as pessoas dele desviassem o olhar

609 En Psa XLIV 3 (CCL 38 p 495) laquoIn principio erat Verbum et Verbum erat apud Deum et Deus

erat Verbum Gaudeat sponsa amata a Deo Quando amata Dum adhuc foeda Omnes enim peccaverunt

ait Apostolus et egent gloria Dei Et iterum Etenim Christus pro impiis mortuus est Amata est foeda ne

remaneret foeda Non enim vere foeda amata est quia non foeditas amata est nam si hoc amaret hoc

servaret evertit foeditatem formavit pulchritudinemraquo

610 Joseph Ratzinger Caminos de Jesucristo Madrid Ediciones Cristiandad 2004 p 41 Pouco mais agrave

frente desta passagem Ratzinger cita um famoso aforismo do romance O idiota de Dostoievski que diz

ldquoA beleza salvaraacute o mundordquo Cf Dostoievski O Idiota Lisboa Presenccedila 2001 p 396

211

[hellip] o juiacutezo da verdade surge e brilha sobranceiro firmado pelas regras

incorruptiacuteveis da sua lei e mesmo quase velado por uma nuvem de imagens

corporais ele natildeo se envolve nem se confunde com elas611

A verdade eterna entra necessariamente na judicaccedilatildeo da beleza das coisas

temporais sendo percebida pela intuiccedilatildeo da mente racional612

que adquire consciecircncia da

sua proacutepria probidade ndash logo do alcance da sua capacidade legisladora ndash precisamente

pela visatildeo da beleza ideal Este ponto de situaccedilatildeo que a beleza proporciona ao homem

em relaccedilatildeo a si mesmo eacute reportada agrave proacutepria inteligecircncia do transcendental daiacute que

Santo Agostinho diga que qual meacutedica a beleza ideal diagnostica a sanidade da alma e

determina quando se lhe deveraacute mostrar613

A beleza estaacute poreacutem sempre presente jaacute que

todas as coisas satildeo belas no seu geacutenero a alma eacute que soacute consegue perceber os diferentes

graus de perfeiccedilatildeo de acordo com a sua proacutepria beleza proporcional agrave grandeza que vai

adquirindo ao longo do processo evolutivo que eacute norteado em direcccedilatildeo agrave verdade

Assim a recorrecircncia ao criteacuterio do belo permite uma certa autoavaliaccedilatildeo da alma

coincidente com a proacutepria racionalidade impliacutecita nas condiccedilotildees de acesso a esse

criteacuterio a alma acederaacute a tanto mais beleza quanto maior for a sua capacidade para

reconhecer que a verdade natildeo estaacute na sua relaccedilatildeo sensiacutevel com o mundo jaacute que esse

reconhecimento eacute pressuposto pelo processo gradual de revelaccedilatildeo do proacuteprio criteacuterio de

beleza As coisas satildeo belas na medida em que espelham a sua origem divina

manifestando portanto a beleza suprema de Deus fundada no seu caraacutecter trinitaacuterio614

Apesar dessa beleza se revelar objectivamente para todos os homens natildeo eacute possiacutevel

afirmar que todos a vejam do mesmo modo As diferenccedilas na consideraccedilatildeo da beleza soacute

podem encontrar justificaccedilatildeo no erro da mente jaacute que nem todas as almas satildeo

suficientemente satildes para ver as leis da verdade615

Haacute uma espeacutecie de cegueira nas

611

De Trin IX 6 10 (CCL 50 p 301) laquoViget et claret desuper iudicium veritatis ac sui iuris

incorruptissimis regulis firmum est et si corporalium imaginum quasi quodam nubilo subtexitur non

tamen involvitur atque confunditurraquo

612 Ibid laquoItaque de istis secundum illam iudicamus et illam cernimus rationalis mentis intuituraquo

613 Cf Sol I 14 25-26

614 De Trin VI 10 12 (CCL 50 p 178) laquoIn illa enim Trinitate summa origo est rerum omnium et

perfectissima pulchritudo et beatissima delectatioraquo

615 Cf Sol I 13 23

212

almas impuras que as impede de reconhecer a presenccedila de Deus ainda que Ele esteja

em toda a parte616

Para estas as leis da verdade satildeo inuacuteteis e a beleza eacute vatilde

A beleza assenta num contexto relacional quer no que concerne agraves suas

manifestaccedilotildees temporais (como qualidade que marca presenccedila atraveacutes das formas

sensiacuteveis) quer no que concerne ao seu reconhecimento como lei que tambeacutem pode ser

traccedilado atraveacutes do nuacutemero617

Ainda que todos os corpos sejam verdadeiros eles satildeo

igualmente uma falsa unidade ou uma unidade relativa que o juiacutezo esteacutetico leva em

conta cotejando a unidade das pessoas divinas com a estrutura triaacutedica dos corpos (peso

nuacutemero e medida) que eacute um vestiacutegio dessa unidade primordial Nesta relaccedilatildeo

comparativa a beleza eacute aferida em termos de verdade quatildeo maior for a consciecircncia de

que eacute falsa a unidade dos corpos melhor se poderaacute fruir a sua beleza618

pois soacute assim

haveraacute condiccedilotildees para compreender a remissatildeo do objecto para a qualidade que

ultrapassa as suas caracteriacutesticas fiacutesicas Assim a beleza de algo eacute proporcional ao

reconhecimento que propiciar do seu arqueacutetipo

A presenccedila da verdade divina na realidade criada daacute-se tal como anteriormente

vimos atraveacutes dos nuacutemeros e eacute em virtude do poder de significaccedilatildeo da sua beleza que

os homens podem atender a tal revelaccedilatildeo da verdade no criado Embora se destinem agrave

razatildeo os nuacutemeros atraem tambeacutem pelo apelo aos sentidos corpoacutereos eacute na sua aparecircncia

ou exterioridade que a verdade convoca o homem mas eacute pela interioridade da alma que

ela se daacute a conhecer como sendo a razatildeo de tal atracccedilatildeo A escala de belezas eacute como

uma orientaccedilatildeo de percurso que direcciona ascendentemente a alma e que amplia a sua

capacidade de fruiccedilatildeo a cada patamar A alma atenta e virtuosa percebe que a beleza do

percurso eacute providenciada pela sabedoria (sapientia) que deseja alcanccedilar e natildeo se prende

agraves belezas inferiores jaacute que tal providecircncia pela diferenciaccedilatildeo impliacutecita na hierarquia

faz com que a alma aspire sempre ao que estaacute para laacute dessas belezas sucessivamente de

modo que o proacuteprio percurso seja assumido na urgecircncia da sua transitoriedade619

Eacute a

diferenciaccedilatildeo entre graus de beleza que permite evitar que a alma fique presa aos

prazeres que deles colhe

616

Cf De div quaest 83 12

617 Cf Carol Harrison Beauty and revelation in the thought of Saint Augustine p 22 onde Harrison nota

que o numerus eacute sinoacutenimo da verdade e tambeacutem da beleza

618 Cf De vera relig 34 64

619 Cf De lib arb II 17 45

213

A proacutepria temporalidade e a mutabilidade podem ser consideradas uma

caracteriacutestica da manifestaccedilatildeo do belo jaacute que numa perspectiva totalizadora apontam

para a necessidade de progressatildeo e cumprem o papel admonitoacuterio que efectivamente

cabe agraves belezas corpoacutereas A verdadeira realidade que eacute invisiacutevel aos olhos carnais eacute

tornada visiacutevel para os olhos da alma a partir da convocaccedilatildeo que os sensibilia fazem

natildeo soacute positivamente como vestiacutegios ou traccedilos do divino que os originou mas tambeacutem

como exemplos negativos ou admonitiones620

Ambos os modos de perspectivar as

belezas temporais tecircm por horizonte a verdade no primeiro caso permitindo o seu

vislumbre pela similitudo e no segundo caso advertindo para o facto de essa semelhanccedila

implicar tambeacutem distanciamento e diferenccedila face agrave verdade Se a realidade sensiacutevel eacute

um indicador da beleza e da verdade da esfera inteligiacutevel ela eacute simultaneamente um

indicador da natureza participada e deficitaacuteria das belezas temporais621

A beleza soacute eacute

verdadeira na alma622

logo soacute eacute verdadeira quando posta em relaccedilatildeo com o seu criteacuterio

A beleza eacute verdade tambeacutem no sentido em que indica a existecircncia de uma

inteligecircncia na organizaccedilatildeo do mundo talvez seja nesse sentido que Joseph Ratzinger

fala da beleza como coerecircncia da criaccedilatildeo e da recepccedilatildeo que o homem faz da obra

divina623

ou que Tina Manferdini refere que na perspectiva agostiniana a beleza eacute

como uma ldquoqualidade unificante do universordquo que a alma apreende quando unificada e

centrada em si mesma624

Nessa mesma senda Hans Urs von Balthasar nota que para o

Bispo de Hipona o modo como Deus se torna manifesto aos homens parece pressupor

ldquoa capacidade esteacutetica de reconhecimento da qualidade do eterno e do divino na verdade

(hellip) caso contraacuterio [a mente] pode falhar a real experiecircncia da verdaderdquo625

A real

620

O mesmo constata Joseacute Rosa que escreve laquo[] o exterior eacute uma admoniccedilatildeo constante para a alma a

realidade estaacute cheia de sinais assim a alma os saiba lerraquo Joseacute Silva Rosa Em busca do centro

Investigaccedilotildees sobre a noccedilatildeo de ordem na obra de Santo Agostinho Periacuteodo de Cassiciacuteaco Lisboa UCP

1999 p 171

621 Cf Conf XI 4 6

622 Cf Ep 3 4

623 Joseph Ratzinger Introduzione allo spirito della liturgia San Paolo Cinisello Balsamo 2001 p 149

624 Tina Manferdini Bologna Comunicazione ed estetica in SantAgostino Edizioni Studio Domenicano

2005 p 102

625 Hans Urs von Balthasar The glory of the Lord Studies in theological style clerical styles Andrew Louth

Francis McDonagh and Brian McNeil (trans) John Riches (ed) EdinburghT amp T Clark 1985 p 111

214

experiecircncia da verdade implicaraacute assim um elemento aglutinador que lhe aponha

caracteriacutesticas qualitativas de outro modo ausentes e que dela fariam um mero exerciacutecio

de loacutegica Esse elemento aglutinador que daacute consistecircncia qualitativa agrave verdade eacute a

esteacutetica Quando von Balthasar fala na qualidade do eterno e do divino estaacute a apontar

para aquilo que entre os seus atributos provoca uma especial comoccedilatildeo A experiecircncia de

Deus eacute um modo de estar qualitativo beatiacutefico que poderaacute ser considerado como

correspondente a um cliacutemace infindo e sereno do prazer Conforme vimos no

subcapiacutetulo anterior natildeo haacute diferenccedilas fundamentais entre o prazer esteacutetico e os outros

prazeres que envolvam reflexatildeo pelo que qualquer prazer pode ser um prazer esteacutetico

A felicidade eterna eacute de ordem esteacutetica precisamente porque do alcance congregado do

bem da verdade e do belo resulta uma disposiccedilatildeo de harmonia no composto alma-corpo

cujo prazer eacute a caracteriacutestica que mais ressalta O corpo ressurrecto com os seus oacutergatildeos

da sensibilidade activos na esfera da pura inteligibilidade indicia precisamente a

possibilidade da autonomia da experiecircncia esteacutetica face a Deus os sentidos corpoacutereos

satildeo desnecessaacuterios e poreacutem mantecircm-se como um boacutenus extra da contemplaccedilatildeo divina

Natildeo haacute outra finalidade no seu uso que natildeo seja a do prazer

Na existecircncia terrena a real experiecircncia da verdade tem de ser anagoacutegica aleacutem

de apofacircntica caso contraacuterio tambeacutem ela seria de certo modo vatilde porque apontaria

apenas para o caminho e natildeo para a finalidade A dimensatildeo qualitativa necessaacuteria

implica obviamente a feacute no Redentor A iluminaccedilatildeo divina eacute uma participaccedilatildeo no

Verbo626

onde a verdade e a beleza satildeo uma soacute Na teoria agostiniana a verdade

convoca o homem pela beleza e a beleza convoca o homem para a verdade pelo que

desconsiderar a beleza equivale a negligenciar a verdade

626

De Trin IV 2 4 (CCL 50 p 163) laquoIlluminatio quippe nostra participatio Verbi est illius scilicet

vitae quae lux est hominumraquo

215

43 - Imagem signo e alegoria

As imagens tecircm por constante o facto de obedecerem a um modelo face ao qual

mantecircm uma semelhanccedila mais ou menos acentuada Delas parece assim fazer parte uma

falsidade constitutiva jaacute que vivem da remissatildeo ao modelo graccedilas a atributos comuns

ou anaacutelogos que podem induzir o sujeito a relacionar-se com elas tal como se

relacionaria com o modelo sem levar em consideraccedilatildeo o estatuto secundaacuterio ndash porque

procedente ndash das imagens Para o Bispo de Hipona a questatildeo da falsidade e do caraacutecter

secundaacuterio da imagem natildeo parece no entanto perspectivar-se de um modo assim

depreciativo Santo Agostinho utiliza o termo imago em contextos vaacuterios e com

diferentes acepccedilotildees que vatildeo desde as representaccedilotildees materiais (como o satildeo as pinturas

ou os iacutedolos) passando pelas representaccedilotildees mentais ateacute agrave relaccedilatildeo de semelhanccedila entre

o homem e Deus e de igualdade entre Cristo e Deus Pai

Desde logo em relaccedilatildeo ao Filho como imagem de Deus seria um contra-senso

perspectivar negativamente a imagem sabendo que o Filho eacute tido como via de acesso agrave

Verdade Em De diversis quaestionibus octoginta tribus tal problema eacute esclarecido

precisamente atraveacutes da distinccedilatildeo entre imagem igualdade e semelhanccedila

[hellip] onde haacute imagem haacute por conseguinte semelhanccedila natildeo necessariamente

igualdade onde haacute igualdade haacute tambeacutem semelhanccedila natildeo necessariamente

imagem onde haacute semelhanccedila natildeo haacute necessariamente imagem nem haacute

necessariamente igualdade Onde haacute imagem haacute por conseguinte

semelhanccedila natildeo necessariamente igualdade assim no espelho haacute a imagem

do homem porque a partir dele se manifesta haacute tambeacutem necessariamente

semelhanccedila mas natildeo igualdade pois faltam agrave imagem muitos elementos que

pertencem agrave coisa da qual eacute expressatildeo Onde haacute igualdade haacute por

conseguinte semelhanccedila natildeo necessariamente imagem tal como em dois

ovos iguais haacute igualdade e haacute semelhanccedila Tudo aquilo que estaacute presente

num estaacute presente no outro natildeo haacute poreacutem imagem porque um natildeo eacute

216

expressatildeo do outro Onde haacute semelhanccedila natildeo haacute necessariamente imagem

nem igualdade cada ovo com efeito enquanto ovo eacute semelhante a outro

ovo mas o ovo da perdiz ainda que semelhante ao ovo da galinha natildeo eacute

contudo sua imagem pois natildeo se manifesta a partir dele nem eacute igual pois eacute

mais pequeno e de outra espeacutecie animal Mas quando eacute dito natildeo

necessariamente entende-se que tal pode ocorrer agraves vezes Pode portanto

haver uma imagem naquilo que tambeacutem eacute igualdade tal como entre pais e

filhos seria encontrada imagem igualdade e semelhanccedila se natildeo houvesse

intervalo de tempo com efeito a semelhanccedila do filho eacute expressa a partir do

pai pelo que eacute correctamente chamada imagem e [essa semelhanccedila] pode

ser tal a ponto de ser correctamente chamada igualdade se natildeo houver

precedecircncia temporal do pai Daqui se percebe que por vezes a igualdade

comporta natildeo apenas semelhanccedila mas tambeacutem imagem tal como ficou

claro no exemplo acima Por vezes tambeacutem pode haver semelhanccedila e

igualdade sem que haja imagem tal como se disse dos ovos iguais Pode

ainda haver semelhanccedila e imagem ainda que natildeo haja igualdade como

mostraacutemos no caso do espelho Pode ainda haver semelhanccedila onde haacute

igualdade e imagem como notaacutemos nos filhos desde que natildeo haja

precedecircncia temporal dos pais [hellip] Mas em virtude de em Deus se excluir a

condiccedilatildeo temporal natildeo se pode considerar que Deus tenha gerado no tempo

o Filho atraveacutes do qual fundou os tempos por conseguinte Ele natildeo eacute apenas

a imagem do Pai porque Dele procede e semelhanccedila porque eacute Sua imagem

mas tambeacutem notaacutevel igualdade a ponto de nem mesmo haver o

impedimento do intervalo temporal 627

627

De div quaest 83 74 (CCL 44A p 213) laquoImago et aequalitas et similitudo distinguenda sunt quia

ubi imago continuo similitudo non continuo aequalitas ubi aequalitas continuo similitudo non continuo

imago ubi similitudo non continuo imago non continuo aequalitas Ubi imago continuo similitudo non

continuo aequalitas ut in speculo est imago hominis quia de illo expressa est est etiam necessario

similitudo non tamen aequalitas quia multa desunt imagini quae insunt illi rei de qua expressa est Ubi

aequalitas continuo similitudo non continuo imago velut in duobus ovis paribus quia inest aequalitas

inest et similitudo quaecumque enim adsunt uni adsunt et alteri imago tamen non est quia neutrum de

altero expressum est Ubi similitudo non continuo imago non continuo aequalitas omne quippe ovum

omni ovo in quantum ovum est simile est sed ovum perdicis quamvis in quantum ovum est simile sit

ovo gallinae nec imago tamen eius est quia non de illo expressum est nec aequale quia et brevius est et

alterius generis animantium Sed ubi dicitur non continuo utique intellegitur quia esse aliquando potest

Potest ergo esse aliqua imago in qua sit etiam aequalitas ut in parentibus et filiis inveniretur imago et

aequalitas et similitudo si intervallum temporis defuisset nam et de parente expressa est similitudo filii

ut recte imago dicatur et potest esse tanta ut recte etiam dicatur aequalitas nisi quod parens tempore

praecedit Ex quo intellegitur et aequalitatem aliquando non solum similitudinem habere sed etiam

imaginem quod in superiore exemplo manifestatum est Potest etiam aliquando esse similitudo et

aequalitas quamvis non sit imago ut de ovis paribus diximus Potest et similitudo et imago esse quamvis

non sit aequalitas ut in speculo ostendimus Potest et similitudo esse ubi et aequalitas et imago sit sicut

de filiis commemoravimus excepto tempore quo praecedunt parentes [hellip] In Deo autem quia conditio

temporis vacat non enim potest recte videri Deus in tempore generasse Filium per quem condidit

tempora consequens est ut non solum imago eius sit quia de illo est et similitudo quia imago est sed

etiam aequalitas tanta ut nec temporis intervallum impedimento sitraquo

217

O facto do Filho se constituir como imagem do Pai em nada o afasta ou

diferencia da Verdade Eles satildeo tidos como iguais uma vez que natildeo haacute precedecircncia

temporal de um sobre o outro e que a sua semelhanccedila eacute perfeita A imagem configura-se

como um tipo especial de semelhanccedila e neste caso ela ocorre por uma ordem de

procedecircncia que natildeo implica a precedecircncia do Pai nem a superioridade do modelo em

relaccedilatildeo agrave coacutepia jaacute que Deus Pai natildeo eacute mais do que Deus Filho

O Espiacuterito Santo apesar de manifestar todos os atributos da deidade natildeo eacute

considerado como a imagem do Pai pois natildeo procede unicamente Dele mas da Sua

relaccedilatildeo com o Filho O Espiacuterito Santo eacute o Dom comum e eacute espiacuterito de ambos628

ele natildeo

eacute portanto imagem mas afinidade amorosa Como terceira pessoa da Trindade Ele estaacute

no entanto impliacutecito na imago Dei presente no homem629

Nas suas obras mais tardias Santo Agostinho afirma que o homem pode ser

correctamente tido como imagem de Deus contrastando com a sua posiccedilatildeo inicial de

que soacute o Filho assim deve ser considerado Ateacute cerca de 396 Santo Agostinho

cautelosamente afirmava apenas que o homem era feito agrave imagem e semelhanccedila de

Deus (ad imaginem et similitudinem)630

tal como eacute dito em Gn 1 26 As leituras

paulinas631

que entretanto faz e que salientam o facto de o homem ser imagem e natildeo

apenas ser agrave imagem de Deus determinam uma inflexatildeo no seu pensamento O Bispo

de Hipona parece a partir de entatildeo cortar com a tradiccedilatildeo da patriacutestica grega segundo a

qual a semelhanccedila revela um estatuto mais depurado do que a imagem632

Ireneu por

exemplo considerava que o homem nascia agrave imagem de Deus mas a semelhanccedila soacute era

adquirida apoacutes o percurso de aperfeiccediloamento e reformaccedilatildeo pela graccedila de Cristo A sua

concepccedilatildeo de imagem era assim bem mais abrangente do que a de semelhanccedila como se

628

De Trin XV 17 29 (CCL 50 p 504) laquoSic ergo eum genuit ut etiam de illo Donum commune

procederet et Spiritus Sanctus spiritus esset amborumraquo

629 De Gen ad litt imp XVI 61 (CSEL 28 p 502) laquoIlle autem sensus est potius in his divinis verbis

eligendos ut ideo non dictum intellegamus singulariter sed pluraliter Faciamus hominem ad imaginem

et similitudinem nostram quia non ad solius Patris aut solius Filii aut solius Spiritus sancti sed ad ipsius

Trinitatis imaginem factus est homo (hellip) ita dictum est Fecit Deus hominem ad imaginem Dei tamquam

diceretur ad imaginem suam quod est ipsa Trinitasraquo

630 Cf De div quaest 83 51 4

631 Por exemplo I Cor 11 7 que Santo Agostinho cita em De Trin VII 6 12 e em Retr I 26

632 Cf Quaest Hept V 4

218

esta uacuteltima fosse um refinamento posterior da primeira633

Para Santo Agostinho a

semelhanccedila natildeo deveria no entanto acrescentar nada agrave imagem pois natildeo eacute uma meta

para laacute dessa imagem de Deus no homem nem se adquire posteriormente Ela tem um

caraacutecter mais geral do que a imagem e eacute dita por exemplo em relaccedilatildeo a uma estaacutetua ou

agrave representaccedilatildeo de um qualquer homem ao passo que a imagem se refere a um sujeito

particular cujos traccedilos satildeo reproduzidos por um pintor ou estatuaacuterio634

Em termos salviacuteficos a semelhanccedila parece constituir-se como o caraacutecter

dinacircmico do processo de retorno da alma agrave sua proacutepria natureza A reformaccedilatildeo que

implica a saiacuteda da regiatildeo da dissemelhanccedila635

tem sempre a imagem de Deus como

horizonte A imagem de Deus no homem natildeo eacute coeterna nem consubstancial ao seu

modelo como ocorre no caso da imagem de Deus no Filho onde estaacute impliacutecita a

igualdade assim a imagem no homem precisa de ser reformada para se assemelhar

mais ao modelo636

Contrariamente agrave tradiccedilatildeo patriacutestica grega natildeo significa isto que a

semelhanccedila natildeo estivesse jaacute presente no homem desde o iniacutecio a par da imagem ndash a

imagem continua a implicar semelhanccedila tal como o Bispo de Hipona o testemunha em

De diversis quaestionibus octoginta tribus 51 4 ndash mas sim que ela tem diversos graus

sendo o mais alto deles a igualdade apenas predicaacutevel ao Filho Eacute graccedilas a esta

perspectiva que Santo Agostinho pode sem hesitaccedilatildeo defender a tese paulina de que o

homem eacute imagem de Deus aleacutem de ser agrave imagem de Deus Mais do que a semelhanccedila

passiacutevel de ser granjeada haacute na alma a presenccedila efectiva de Deus Deus estaacute presente na

imagem e ao encontrar a imagem o homem pode encontrar Deus ainda que se trate de

um encontro enigmaacutetico e obscuro jaacute que se daacute como por um espelho (I Cor 13 12)637

Natildeo eacute na sua integridade que o homem eacute imagem de Deus uma vez que o corpo

fica de fora de tal relaccedilatildeo especular Soacute a mente por ser iluminada possui uma estrutura

ontoloacutegica na qual pode ser reconhecida a reverberaccedilatildeo da divindade Vaacuterios niacuteveis

trinitaacuterios satildeo apontados pelo Bispo de Hipona na anaacutelise que faz da mente humana com

633

Sobre este assunto cf R A Markus laquoldquoImagordquo and ldquoSimilituderdquo in Augustineraquo REAug Vol 10 nordm

2-3 1964 p 126

634 Cf Quaest Hept IV 16

635 Cf Conf VII 10 16

636 Cf De civ Dei XI 26

637 Cf De Trin XV 8 14 XV 9 16 XV 10 20 XV 24 44

219

o intuito de nela encontrar a imagem de Deus No nono livro de De Trinitate Santo

Agostinho refere a trindade constituiacuteda pela mens notitia e amor638

ou seja constituiacuteda

pela mente pelo conhecimento que tem de si mesma e pelo amor que ela tem por si e

pelo seu proacuteprio conhecimento Os elementos desta triacuteade satildeo iguais e de uma soacute

essecircncia No deacutecimo livro a anaacutelise levada a cabo por Santo Agostinho condu-lo a uma

trindade da alma mais evidente que eacute constituiacuteda pela memoria pela intellegentia e

pela voluntas No deacutecimo quinto livro esta mesma triacuteade surge como memoria

intellectus e amor e eacute explicitado que os seus elementos satildeo como actos da alma atraveacutes

dos quais o homem se lembra compreende e ama pelo que pertencem ao homem ainda

que ele natildeo seja essas coisas639

Isso diferencia a trindade da alma da Trindade divina

que na simplicidade da sua natureza eacute Deus uni-trino possui e eacute trecircs pessoas (o Pai o

Filho e o Espiacuterito Santo) numa soacute substacircncia Aleacutem disso contrariamente agrave Trindade

divina cujas pessoas permanecem imutaacuteveis e eternamente iguais a si mesmas os

elementos da trindade da alma diferem entre si ao longo da vida de uma pessoa e cada

um deles tem um alcance distinto de pessoa para pessoa640

O filoacutesofo africano salienta a importacircncia da consciecircncia de si (notitia sui) que a

alma possui na mente e que lhe permite estar certa da sua proacutepria existecircncia e desejar

conhecer-se Na relaccedilatildeo consigo mesma essa consciecircncia eacute portanto memoacuteria

inteligecircncia e vontade delineando assim uma imagem permanente e essencial a que o

homem acede quando se conhece (nosse se) Com base na interpretaccedilatildeo que faz dos

capiacutetulos 13 a 15 do uacuteltimo livro de De Trinitate H Somers defende que ao pensar-se

de modo particular (cogitare se) a mente apresenta uma outra imagem contingente e

actual determinada pela estrutura mens verbum e dilectio Para Somers eacute somente

nesta uacuteltima triacuteade que Santo Agostinho consideraria estar a verdadeira imagem de Deus

na alma641

A ecircnfase dada pelo Bispo de Hipona agrave trindade que o noscere se

determina parece todavia contrariar esta posiccedilatildeo indo sim totalmente de encontro agrave

638

Cf De Trin IX passim Cf igualmente De Trin XV 6 10 onde esta triacuteade eacute apresentada como mens

notitia e dilectio

639 Cf De Trin XV 22 42

640 Cf De Trin XV 23 43

641 H Somers laquoLa gnose augustinienne sens et valeur de la doctrine de lrsquoimageraquo REAug vol 7 nordm1

1961 p 5

220

perspectiva que desenvolvemos a este propoacutesito no subcapiacutetulo dedicado ao sentido

interior e agrave memoacuteria642

Tal como a consideraccedilatildeo agostiniana do Filho como imagem do Pai natildeo

pressupunha qualquer caraacutecter falaz em relaccedilatildeo agrave imagem tambeacutem o reconhecimento da

imago Dei na mente natildeo coloca a toacutenica na diferenccedila ou no afastamento entre a

Trindade divina e a trindade da alma ainda que esta seja uma imagem imperfeita e sem

a plenitude da semelhanccedila ou igualdade que a imagem do Filho possui em relaccedilatildeo ao

Pai Com efeito Santo Agostinho estava sobretudo interessado em explorar a

possibilidade de uma aptidatildeo especular da alma que permitisse o vislumbre de Deus A

imago Dei funciona como um espelho no qual Deus se reflecte e se mostra agrave criatura

atraveacutes dela mesma A imagem eacute a proacutepria mente e ela daacute a ver pela semelhanccedila ndash ou

seja como que por um espelho ndash o Criador643

Apesar de actuar como um medium o espelho traduz o funcionamento de um

dispositivo de proximidade tal como Santo Agostinho enfatiza ao clarificar o

versiacuteculo de S Paulo presente em I Cor 1312 Porque agora vemos por espelho em

enigma mas entatildeo veremos face a face agora conheccedilo em parte mas entatildeo

conhecerei como tambeacutem sou conhecido644

O Bispo de Hipona estabelece um paralelo

entre este versiacuteculo e uma outra passagem paulina ndash E todos noacutes com o rosto

desvendado contemplando (speculantes) como por espelho a gloacuteria do Senhor somos

transformados de gloacuteria em gloacuteria na sua proacutepria imagem (II Cor 318) ndash para

salientar que o espelho (speculum) natildeo tem aqui o sentido de ponto de vista

diferenciando-se portanto da palavra specula que significa um lugar elevado onde a

nossa vista pode ter maior alcance645

Assim ver por espelho descarta a ideia de uma

visatildeo agrave distacircncia e indicia que natildeo eacute o homem que se posiciona num qualquer ponto

conveniente para por si alcanccedilar a visatildeo de Deus mas que eacute Deus que faculta ao

homem a perspectiva necessaacuteria para a sua visatildeo atraveacutes da imagem

642

Vide p 89 do presente ensaio

643 Cf De Trin XV 8 14

644 Videmus nunc per speculum in aegnigmate tuc autem facie ad faciem Nunc cognosco ex parte tunc

autem cognoscam sicut et cognitus sum

645 Cf De Trin XV 8 14

221

O ofuscamento que a visatildeo directa de Deus poderia provocar eacute resolvido atraveacutes

do espelho Na eacutepoca em que S Paulo escreveu as suas epiacutestolas um espelho era uma

superfiacutecie metaacutelica polida com uma capacidade de reflexatildeo diferente da dos espelhos

hodiernos A imagem reflectida seria bastante menos luminosa e definida daiacute que

quando eacute dito que a visatildeo eacute in aenigmate eacute a dimensatildeo alegoacuterica da imagem que estaacute a

ser enfatizada Deus que eacute luz (Jo 1 5) eacute vislumbrado atraveacutes da obscuridade Santo

Agostinho afirma que todo o enigma eacute uma alegoria obscura embora nem todas as

alegorias sejam enigmas e explica que o versiacuteculo paulino significa que vemos Deus

atraveacutes de uma imagem cuja semelhanccedila obscura com o modelo eacute difiacutecil de alcanccedilar646

Deus esconde-se para que o homem o possa vislumbrar sem se ofuscar portanto Deus

esconde-se natildeo para se ocultar mas precisamente para melhor se revelar Eacute na imagem

o seu esconderijo e a imagem de Deus eacute a proacutepria mente humana Por um lado o mestre

hiponense salienta atraveacutes do enigma a dificuldade impliacutecita no alcance de Deus e647

por outro lado atraveacutes do espelho reporta a visatildeo da divindade ao proacuteprio pensamento

ou visatildeo da alma pelo olho interior salientando paralelamente a sua capacidade para

alcanccedilar Deus pelo simples facto de se alcanccedilar a si mesmo Deus eacute difiacutecil poreacutem

acessiacutevel ao homem cuja perspectiva pouco favoraacutevel implica que a revelaccedilatildeo se

processe paradoxalmente por uma certa obscuridade providencial ou enigma que a

iluminaccedilatildeo permite desvelar

Tambeacutem a palavra humana reflecte per speculum et in aenigmate a inefaacutevel

palavra de Deus648

Ao conhecer algo o homem forma dentro de si uma palavra que eacute

na verdade uma visatildeo da visatildeo do conhecimento tal como o satildeo os pensamentos

verdadeiros649

A palavra e a visatildeo satildeo uma soacute coisa no interior do homem poreacutem

quando o pensamento se exterioriza a palavra e a visatildeo satildeo naturalmente distintas

Aquele que for capaz de escutar a palavra antes que ela ressoe e antes mesmo de o

pensamento se ocupar das imagens dos seus sons eacute tambeacutem capaz de ver jaacute ndash atraveacutes do

tal espelho e em enigma ndash certa semelhanccedila do Verbo supremo que eacute o Verbo presente

646

Cf De Trin XV 9 15 e 16

647 De Trin XV 9 16 (CCL 50 p 482) laquoNomen quippe hic non sonaret aenigmatis si esset facilitas

visionisraquo

648 Cf De Trin XV 11 20

649 Cf De Trin XV 10 18

222

no Evangelho Joanino No princiacutepio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo

era Deus (Jo 11)650

O Bispo de Hipona defende que ao dizermos a verdade portanto

ao dizermos aquilo que sabemos a palavra proveacutem da ciecircncia conservada na memoacuteria e

eacute necessariamente de natureza igual agrave da ciecircncia O pensamento formado a partir

daquilo que sabemos eacute a palavra que formamos no nosso coraccedilatildeo651

e que natildeo se

confina a uma qualquer liacutengua Eacute a necessidade de partilhaacute-la de transmiti-la a

terceiros que faz com que recorramos a signos para exprimi-la

A modulaccedilatildeo do som ou os gestos constituem-se como signos que permitem dar

a conhecer aos outros atraveacutes dos seus sentidos corpoacutereos a nossa palavra interior O

acto de se expressar atraveacutes de gestos (innuere) eacute um modo de tornar a palavra visiacutevel

tal como o acto de falar torna a palavra audiacutevel Aleacutem dos signos corporais como o som

ou os gestos haacute ainda os signos escritos que servem para expressar a palavra de um

homem sem que este esteja necessariamente presente A palavra escrita eacute assim o signo

da palavra dita que por seu turno eacute o signo daquilo que pensamos652

ou seja da nossa

palavra interior mais propriamente dita verbo que se exterioriza para se dar a conhecer

aos outros homens tal como o Verbo de Deus se fez carne para se manifestar aos

sentidos dos homens

A palavra que tem origem na nossa ciecircncia eacute obviamente muito distinta da

Palavra nascida da ciecircncia de Deus pois a ciecircncia do homem e a ciecircncia de Deus natildeo

satildeo iguais A ciecircncia de Deus eacute a sua sapiecircncia que eacute tambeacutem a sua proacutepria essecircncia ou

substacircncia (ipsa essentia sive substantia) A ciecircncia humana difere do ser e da

substacircncia do homem pois este pode ser sem saber O Verbo de Deus natildeo apenas

recebe do Pai o seu conhecimento como o seu ser pois em Deus ser e conhecer satildeo

uma e a mesma coisa653

Como que expressando-se o Pai engendrou o Verbo na sua

650

Cf De Trin XV 10 19

651 O verbum cordis eacute tambeacutem chamado por Santo Agostinho verbum mentis Cf Claude Panaccio Le

Discours Inteacuterieur de Platon agrave Guillaume drsquoOckham Paris Seuil 1999 p 94 et seq

652 Ibid (CCL 50A p 485) laquoSed haec atque huiusmodi signa corporalia sive auribus sive oculis

praesentibus quibus loquimur exhibemus inventae sunt autem litterae per quas possemus et cum

absentibus colloqui sed ista signa sunt vocum cum ipsae voces in sermone nostro earum quas cogitamus

signa sint rerumraquo

653 De Trin XV 14 23 (CCL 50A p 496) laquoVerbum ergo Dei Patris unigenitus Filius per omnia Patri

similis et aequalis Deus de Deo lumen de lumine sapientia de sapientia essentia de essentia est hoc

omnino quod Pater non tamen Pater quia iste Filius ille Pater Ac per hoc novit omnia quae novit Pater

sed ei nosse de Patre est sicut esse Nosse enim et esse ibi unum estraquo

223

perfeita igualdade sendo que aquilo que constitui a sua omnisciecircncia estaacute tambeacutem no

Filho que por isso eacute considerado como Verdade de Deus Deus Pai conhece todas as

coisas em si mesmo e conhece-as no Filho em si mesmo como Si e no Filho como

Seu Verbo654

Tambeacutem o Filho conhece portanto todas as coisas em si mesmo como

coisas nascidas daquelas que o Pai conhece em Si e no Pai como coisas de onde

nascem aquelas que o Filho conhece em si Natildeo se trata de coisas diferentes mas das

Ideias que se constituem como Sabedoria divina no Filho O Pai e o Filho sabem

reciprocamente um ao gerar e o outro ao nascer

O Verbo eacute a Verdade ao passo que o verbo humano soacute eacute verdadeiro na medida

em que proveacutem daquilo que conhecemos Quando duvidamos o verbo natildeo nasce do que

conhecemos mas da proacutepria duacutevida e ao sabermos que duvidamos o verbo daiacute

decorrente eacute verdadeiro Quando mentimos eacute porque originamos voluntaacuteria e

conscientemente um verbo falso Ao admitirmos a mentira estamos poreacutem a dizer a

verdade pois sabemos que mentimos e tiramos entatildeo o verbo daquilo que sabemos Haacute

coisas que sabemos de tal modo que nunca as poderemos esquecer ou perder o seu

conhecimento pois pertencem agrave proacutepria natureza da alma ndash por exemplo a proacutepria

certeza da nossa existecircncia Tais coisas nas quais a imagem de Deus pode ser

privilegiadamente encontrada nem sempre satildeo alvo do nosso pensamento assim

embora a alma possua um conhecimento sempiterno (scientia sempiterna) o verbo que

tem origem em tal ciecircncia natildeo eacute sempiterno pois nem sempre a alma pensa naquilo que

conhece Soacute o Verbo de Deus eacute sempiterno e coeterno ao Pai Poderemos considerar que

o olhar do pensamento eacute um verbo perpeacutetuo no sentido em que a alma tem a capacidade

de pensar naquilo que sabe mesmo quando natildeo faz uso desse pensamento Assim

sendo o verbo tem a perpetuidade do proacuteprio conhecimento mas natildeo estaacute ainda

formado pelo olhar do pensamento ele apenas eacute susceptiacutevel de ser formado (hoc

formabile nondumque formatum)655

Portanto mesmo considerando que o verbo

humano possa neste sentido ser perpeacutetuo ainda assim ele difere em muito do Verbo

de Deus pois este estaacute de tal modo na forma de Deus que natildeo poderia ser susceptiacutevel

de passar da natildeo forma agrave forma jaacute que eacute a proacutepria forma e nunca foi sem forma ao ser

coeterno e perfeitamente igual a Deus Santo Agostinho afirma que nem mesmo

654

Ibid laquo[hellip] in se ipso tamquam se ipsum in Filio tamquam Verbum suumraquo

655 Cf De Trin XV 15 25

224

ldquoquando formos semelhantes a Elerdquo vendo-O ldquo face a face tal como eacuterdquo seremos iguais

a Ele pois a natureza criada eacute sempre inferior agravequela que a cria e natildeo poderaacute igualar a

simplicidade onde nada susceptiacutevel de ser formado foi formado ou reformado e que natildeo

sendo nem informe nem formada eacute uma substacircncia imutaacutevel e eterna656

Mesmo natildeo

possuindo os atributos divinos o verbo humano assemelha-se ao Verbo de Deus de um

modo obscuro e tem portanto um papel necessaacuterio ao reflectir per speculum et in

aenigmate aquilo que eacute inefaacutevel ndash que eacute escondido

A possibilidade de se compreender a realidade divina atraveacutes das Sagradas

Escrituras assenta precisamente no facto de os textos aiacute presentes serem muitas vezes de

natureza alegoacuterica daiacute que Santo Agostinho advirta para a necessidade de natildeo se assumir

literalmente determinadas passagens biacuteblicas pois os seus significados estatildeo para laacute das

palavras657

A presenccedila da alegoria na Biacuteblia parece inclusivamente revestir-se de um

certo valor esteacutetico na medida em que funciona como um factor de atracccedilatildeo e desafio

capaz de estimular os leitores pelos seus misteacuterios658

As palavras satildeo signos sendo que um signo eacute uma coisa que para aleacutem daquilo

que eacute percebido pelos sentidos faz surgir na mente uma outra coisa a partir de si 659

Assim um signo estaacute por vez de algo para o sujeito Santo Agostinho estabelece duas

classes de signos os signa propria e os signa translata Os primeiros satildeo aqueles que

empregamos para designar os objectos em relaccedilatildeo aos quais foram directamente

instituiacutedos Os signos pertencem agrave outra classe quando as coisas designadas pelos

termos que lhes satildeo proacuteprios determinam por si outras coisas diferentes660

Assim o

significado de um tal signum acaba por funcionar como significante transpondo a sua

acepccedilatildeo literal Os signa translata concernem portanto ao sentido figurado das

palavras Em De Magistro o filoacutesofo diz que os signos satildeo meios excepcionais para

656

Cf De Trin XV 16 26

657 Sobre a necessidade da leitura alegoacuterica relativa a determinadas passagens biacuteblicas cf De civ Dei

XVII 3 e XVII 5 De doct christ II 10 15-12 17 III 25 35 et seq Sobre como o caraacutecter obscuro de

algumas passagens deve ser encarado como um exerciacutecio para o leitor cf Conf III 5 9 VI 5 8 De doct

christ IV 6 9 IV 7 15 De civ Dei XI 19 XX 17 XX 21

658 Cf Conf VI 5 8

659 De doct christ II 11 (CCL 32 p 32) laquoSignum est enim res praeter speciem quam ingerit sensibus

aliud aliquid ex se faciens in cogitationem venire [hellip]rdquo Por pressupor a sensibilidade esta definiccedilatildeo

deixa de fora o verbum mentis que natildeo eacute signo mas imagem

660 Cf De doct christ II 10 15

225

direccionar a atenccedilatildeo da mente para as coisas que significam Ainda que nada possam

mostrar (ostendere) eles podem advertir (admonere) eficazmente661

Os signos

permitem que a mente compreenda coisas que por seu turno podem tambeacutem

constituir-se como signos de outras coisas662

De acordo com a definiccedilatildeo agostiniana o signo eacute uma realidade sensiacutevel coisa

que a imagem pode natildeo ser Ele distingue-se da imagem tambeacutem por natildeo implicar

semelhanccedila todavia tal como esta remete o sujeito para outra coisa estabelecendo com

ela uma relaccedilatildeo de referencialidade No caso da imagem essa relaccedilatildeo eacute mais linear e

concreta ndash a imagem estaacute por norma dependente de um paradigma que por seu turno

poderaacute ter outras imagens ndash enquanto no caso do signo essa relaccedilatildeo eacute geralmente

pluriacutevoca o que significa que um mesmo signo pode constituir-se como referente de

diversas coisas

Santo Agostinho refere que na memoacuteria haacute tambeacutem imagens que estatildeo laacute em vez

das coisas a que se reportam Estas imagens podem constituir-se como phantasiae ou

phantasmata e para as diferenciar Santo Agostinho descreve o modo como a sua

memoacuteria reconstitui duas cidades ao lembrar-se de Cartago que tatildeo bem conhecia a

imagem da cidade presente na sua memoacuteria constitui-se como uma phantasia que eacute o

verbum da cidade constituiacutedo no interior da sua memoacuteria e para o qual a palavra

Cartago remete mesmo antes de se exteriorizar e constituir como objecto da

sensibilidade663

Por outro lado ao imaginar Alexandria cidade que lhe era

desconhecida a imagem presente na memoacuteria constitui-se como um phantasma664

Este

segundo tipo de imagens implica portanto um trabalho mental de associaccedilatildeo e arranjo

de outras imagens armazenadas na memoacuteria imagens estas que resultam num todo

coerente poreacutem com um estatuto questionaacutevel dada a margem de erro com que figuram

aquilo de que supostamente o phantasma eacute imagem Com efeito um phantasma eacute uma

661

Cf De Mag X - XI

662 Cf De Mag 3 5-6 e 10 29-30

663 Cf De Trin VIII 6 9 e Ep 7 1 1

664 Cf Ibid Em De musica a mesma distinccedilatildeo eacute feita usando o exemplo da imagem que Santo Agostinho

guarda na memoacuteria de seu pai e a imagem que fabrica na memoacuteria do seu avocirc que nunca conheceu A

primeira eacute uma phantasia e a segunda um phantasma Cf De mus VI 11 32

226

imagem de imagem665

a similitudo que apresenta eacute relativa a outras imagens resultantes

da experiecircncia sensiacutevel que se crecirc de algum modo poderem figurar aquilo de que o

phantasma supostamente eacute imagem A sua relaccedilatildeo com a verdade estaacute desde logo

minada pois natildeo havendo garantia da sua efectiva semelhanccedila com aquilo a que se

refere tambeacutem o seu proacuteprio estatuto como imagem eacute questionaacutevel uma vez que para o

Bispo de Hipona toda a imagem implica necessariamente similitudo A imagem que

fazemos da aparecircncia de Cristo ao lermos as Sagradas Escrituras obedece a esta mesma

loacutegica666

Natildeo eacute do acircmbito da feacute mas da opiniatildeo a formulaccedilatildeo de tal imagem para a feacute

importa perspectivar Cristo como o Filho de Deus nascido da Virgem Maria e natildeo se

era magro de barba e cabelo compridos

Em determinadas imagens produzidas na memoacuteria chega mesmo a haver uma

vacuidade na sua estrutura remissiva pela oacutebvia inexistecircncia da realidade a que se

referem ndash eacute o caso da imagem de um paacutessaro com quatro patas667

Curiosamente Santo

Agostinho parece subverter a loacutegica da terminologia que na mesma obra anteriormente

clarificara considerando este produto da imaginaccedilatildeo como uma phantasia e natildeo como

um phantasma A justificaccedilatildeo para tal aparente inversatildeo talvez resida no facto de a

phantasia natildeo estar sujeita a uma relaccedilatildeo arbitraacuteria com a verdade ora porque resulta de

uma efectiva lembranccedila da experiecircncia sensiacutevel ndash como no caso da imagem da cidade

recordada ndash ora por simplesmente a consciecircncia da sua falsidade estar presente agrave

partida como no caso de produtos da imaginaccedilatildeo dos quais satildeo exemplo os paacutessaros de

quatro patas ou as figuras mitoloacutegicas As phantasiae que sabemos serem falsas natildeo satildeo

necessariamente perniciosas elas podem ser falsas no sentido em que natildeo haacute nenhuma

realidade sensiacutevel ou inteligiacutevel agrave qual efectivamente se reportem enquanto imagens

mas podem apesar disso servir como adjuvantes na proacutepria compreensatildeo da verdade de

alguma outra coisa Este eacute por exemplo o caso das alegorias que os saacutebios criaram para

melhor explicar determinada realidade668

665

De mus VI 11 32 (PL 32 c 1180) laquoSed cum sibi isti motus occursant et tamquam diversis et

repugnantibus intentionis flatibus aestuant alios ex aliis motus pariunt non iam eos qui tenentur ex

occursionibus passionum corporis impressi de sensibus similes tamen tamquam imaginum imagines

quae phantasmata dici placuitraquo

666 Cf De Trin VIII 4 7

667 Cf De Trin XI 10 17 e Retr II 15 2

668 Cf Ep 7 2 4 Santo Agostinho natildeo daacute aqui o exemplo das alegorias mas das faacutebulas que tal como

estas satildeo um modo indirecto de representar algo sob a aparecircncia de outra coisa Quando o filoacutesofo

227

Na carta a Nebriacutedio de 389 Santo Agostinho distingue trecircs tipos de phantasiae

no primeiro tipo incluem-se as imagens que nascem das impressotildees das coisas nos

sentidos (por exemplo a recordaccedilatildeo de Cartago ou a face familiar de uma amigo

ausente) no segundo tipo estatildeo compreendidas os produtos da imaginaccedilatildeo (ou seja as

imagens de coisas que nunca experienciaacutemos mas que julgamos ser ou terem sido de

tal ou tal modo)669

por uacuteltimo o terceiro tipo abarca imagens da razatildeo (como os

nuacutemeros670

e as dimensotildees)671

Estas uacuteltimas phantasiae embora sejam verdadeiras

enquanto objecto do entendimento podem facilmente dar origem a imagens falsas por

exemplo ao permitirem ampliar desmesuradamente a dimensatildeo de um objecto

recordado desadequando a imagem que dele guardamos na memoacuteria em relaccedilatildeo agrave

imagem que dele fizemos atraveacutes dos sentidos corpoacutereos672

As imagens que se

constituem na memoacuteria parecem possuir em si uma certa neutralidade moral eacute o uso

que delas se faz que as torna perniciosas ou pelo contraacuterio proveitosas Exceptuando os

casos de alucinaccedilatildeo ou sonho os phantasmata tal como as imagens nascidas da

percepccedilatildeo sensiacutevel dependem sobretudo da nossa vontade (intentio)

Os comentaacuterios que o Bispo de Hipona tece relativamente agrave idolatria satildeo

elucidativos do modo como funciona a imagem enquanto representaccedilatildeo material

significante Apesar de por vezes Santo Agostinho acusar os pagatildeos de adorarem os

africano se refere agrave alegoria eacute sobretudo para descrever o modo como determinadas passagens da Biacuteblia

ao descreverem uma coisa estatildeo a significar outra Apesar de no caso da alegoria a relaccedilatildeo de semelhanccedila

natildeo ser directa mas sim baseada na analogia e na metaacutefora ela poderaacute a nosso ver ser considerada

tambeacutem como um caso especiacutefico da imagem enquadraacutevel na phantasia Santo Agostinho refere-se agrave

similitudo impliacutecita nas formas obscuras e figuradas com que as narrativas biacuteblicas expotildeem a Palavra de

Deus em De doctr christ II 6 8 onde salienta o deleite que tal semelhanccedila em si desperta e o modo

engenhoso como tais passagens permitem evitar o enfado (fastidium) do leitor

669 Santo Agostinho daacute o exemplo das imagens de figuras histoacutericas ou ficcionais modelos coacutesmicos

hipoteacuteticos e visotildees geograacuteficas da mitologia ou do maniqueiacutesmo Cf Ibid

670 Eacute curioso que Santo Agostinho se refira aqui aos nuacutemeros como imagem sendo que uma deacutecada

depois em Confessionum X 9 16 se lhes refira como presenccedilas reais na memoacuteria Seraacute esta uacuteltima

perspectiva a que melhor se enquadra no conjunto do pensamento agostiniano

671 Este tipo de phantasiae inclui portanto imagens de objectos reais mas que dadas as suas dimensotildees

soacute podem ser imaginados e natildeo fisicamente experienciados na sua totalidade dada a limitaccedilatildeo da nossa

percepccedilatildeo sensiacutevel Inclui ainda certos objectos de ciecircncia ou ramos do conhecimento (disciplinae) como

as figuras geomeacutetricas os tempos musicais ou os padrotildees meacutetricos

672 Cf Ibid

228

proacuteprios iacutedolos ao inveacutes da deidade que eles representam673

a sua criacutetica natildeo era

exercida fora da compreensatildeo de que para os pagatildeos a latria ritual dos iacutedolos era

distinta da veneraccedilatildeo consagrada por esse ritual Assim Santo Agostinho estava ciente

de que os pagatildeos natildeo veneravam a imagem mas aquilo que ela figurava Era aos

numina que reverenciavam e natildeo agrave imagem (simulacrum) a que estes presidiam674

A

criacutetica agostiniana assentava no facto de os numina natildeo serem merecedores da

glorificaccedilatildeo que soacute a Deus cabe Na perspectiva agostiniana ao adorarem os numina os

pagatildeos estavam a adorar os demoacutenios (daemonia) seria pois preferiacutevel adorar os

iacutedolos inanimados do que aquilo que eles significam jaacute que tal como as pedras de que

satildeo feitos os iacutedolos os demoacutenios satildeo criaturas natildeo satildeo o Criador Contrariamente agraves

pedras que em nada ajudam mas tambeacutem em nada prejudicam os demoacutenios revestem-se

de grande perigo para os homens que os tecircm por mestres675

Apesar da criacutetica agostiniana ao culto pagatildeo natildeo assentar no uso que estes

faziam das imagens mas no facto de atraveacutes de tais imagens adorarem demoacutenios e natildeo

Deus haacute ainda assim um tom reprovador relativamente agrave natureza dos simulacra

Estas imagens referem-se a qualquer estaacutetua mas mais concretamente agrave representaccedilatildeo de

deuses e demoacutenios tendo portanto uma forma antropomoacuterfica ou zoomoacuterfica que

favorece o desencadear de uma afecccedilatildeo torpe ao reconhecer no iacutedolo os traccedilos familiares

dos seres com vida ndash olhos boca pernas poreacutem olhos que nada vecircem boca que natildeo

respira pernas que natildeo se movem pois natildeo deixam de pertencer a uma estaacutetua ndash o

673

Cf Serm Dolbeau 6 8

674 Cf En Ps XCVI 11

675 Ibid (CCL 39 p 1362-3) Hanc gloriam ipsius cognoverunt populi dimittunt templa currunt ad

ecclesias Confundantur omnes qui adorant sculptilia Adhuc quaerunt adorare sculptilia Noluerunt

deserere idola deserti sunt ab idolis Confundantur omnes qui adorant sculptilia qui gloriantur in

simulacris suis Sed existit nescio quis disputator qui doctus sibi videbatur et ait Non ego illum lapidem

colo nec illud simulacrum quod est sine sensu non enim Propheta vester potuit nosse quia oculos habent

et non vident et ego nescio quia illud simulacrum nec animam habet nec videt oculis nec audit auribus

non ego illud colo sed adoro quod video et servio ei quem non video Quis est iste Numen quoddam

inquit invisibile quod praesidet illi simulacro Hoc modo reddendo rationem de simulacris suis diserti

sibi videntur quia non colunt idola et colunt daemonia Etenim fratres sicut dicit Apostolus Quae

immolant Gentes daemoniis immolant et non Deo Nolo vos inquit socios fieri daemoniorum nam

scimus quia nihil est idolum Ipse hoc dixit Apostolus Scimus quia nihil est idolum sed quae immolant

Gentes daemoniis immolant et non Deo dixit Nolo vos fieri socios daemoniorum Non ergo hinc se

excusent quia quasi idolis insensatis dediti non sunt daemoniis magis dediti sunt quod est periculosius

Nam si tantum idola colerent sicut eos non adiuvarent ita illis nihil nocerent si autem adores et servias

daemonibus erunt domini tuiraquo

229

homem tende a associar a ausecircncia de movimentos vitais agrave possibilidade de encontrar

em tal figura um poder divino (numen) escondido invisiacutevel Tal susceptibilidade

humana convida os demoacutenios a apossarem-se da estaacutetua ampliando infinitamente o erro

do homem que cultua tal imagem676

Os simulacros satildeo na esteira de Platatildeo imagens

destituiacutedas de essecircncia e portanto de real semelhanccedila ndash elas satildeo falsas imagens ou

coacutepias de imagens Santo Agostinho associa-os tambeacutem agraves estaacutetuas das divindades

greco-romanas que representam em uacuteltima instacircncia criaturas ou atributos de criaturas

Assim a estaacutetua de Neptuno eacute tambeacutem um iacutedolo pois representa as aacuteguas e natildeo o

verdadeiro Deus677

Os objectos usados no culto cristatildeo natildeo podem ser considerados simulacros nem

satildeo passiacuteveis de idolatria eles natildeo satildeo instrumentos de um culto vatildeo e inclusivamente

servem de elo capaz de reforccedilar a ligaccedilatildeo dos fieacuteis ao culto do Deus uacutenico678

Mas

mesmo a este niacutevel a opiniatildeo de Santo Agostinho quanto agraves imagens figurativas

manteacutem-se coerente com a ideia de que o antropomorfismo favorece as indesejadas

afecccedilotildees da alma679

Os demais objectos religiosos usados durante a celebraccedilatildeo dos

sacramentos ndash como as taccedilas por exemplo ndash satildeo feitos nos mesmos materiais dos

iacutedolos mas eles satildeo ditos sagrados precisamente porque a sua funccedilatildeo eacute a de honrar

Deus consagrando-se-Lhe Natildeo eacute aos objectos que os fieacuteis rezam nem eacute atraveacutes deles

que rezam a Deus Os cristatildeos natildeo satildeo escravos dos signos pois compreendem o que

significam e sabem utilizar aqueles que satildeo divinamente instituiacutedos para prestar

homenagem aos misteacuterios a que eles se referem Os signos do culto cristatildeo provam a

liberdade do espiacuterito contrariamente aos signos pagatildeos que escravizam e sujeitam os

seus seguidores ao jugo da carne680

As imagens satildeo expressotildees ou representaccedilotildees de algo com o qual mantecircm uma

relaccedilatildeo de semelhanccedila que pode ir ateacute agrave igualdade O alcance que o homem tem da

676

Cf En Ps CXIII 2 3

677 De doct christ III 7 11 (CCL 32 p 38) laquoQuid ergo mihi prodest quod Neptuni simulacrum ad illam

significationem refertur nisi forte ut neutrum colam Tam enim mihi statua quaelibet quam mare

universum non est Deusraquo Cf De doct christ II 17 27 En Ps CXIII 2 5

678 Cf De doct christ III 6 10

679 En Ps CXIII 2 6

680 Cf De doct christ III 9 13

230

esfera divina tem sobretudo por base a imagem desde logo pela proacutepria presenccedila

especular de Deus na mente Exteriormente as marcas da presenccedila de Deus satildeo

apreendidas como signos Eacute assim que a beleza do universo pode ser interpretada como

um signo da magnificecircncia divina O signo eacute afim da imagem no sentido em que remete

para laacute de si mesmo poreacutem como vimos distingue-se da imagem por ser uma realidade

sensiacutevel e por dispensar na relaccedilatildeo de referencialidade a semelhanccedila681

A beleza

presente na criaccedilatildeo natildeo seraacute erradamente considerada como uma imagem que espelha a

beleza do Criador no entanto dada a natureza da estrutura numeral que a compotildee

parece-nos mais correcto consideraacute-la como um iacutendice ou vestiacutegio entrando na ordem

dos signa naturalia682

Os nuacutemeros que constituem a beleza satildeo sempre substanciais

ditando uma continuidade entre a fonte e as suas manifestaccedilotildees Assim a beleza

sensiacutevel parece ser ndash tal como o fumo eacute em relaccedilatildeo ao fogo ndash um elemento parcial e

derivado que indicia a sua matriz

A capacidade imageacutetica da mente humana pelo modo como conjuga relaciona e

redimensiona as imagens resultantes da percepccedilatildeo originando novas imagens revela-se

profiacutecua e mesmo fundamental em determinadas estrateacutegias de aproximaccedilatildeo agrave verdade

A criatividade que permite estabelecer convenccedilotildees simboacutelicas alegorias ou

simplesmente compreender e interpretar tais figuras eacute uma das coisas que possibilita a

atitude transformativa do ser humano no processo salviacutefico Teraacute sido precisamente tal

capacidade da memoacuteria e tal abertura agrave leitura alegoacuterica reconhecida por Santo

Agostinho nas Sagradas Escrituras que o teraacute em definitivo conquistado para a Igreja

Na dimensatildeo imageacutetica que percorre toda a natureza sensiacutevel e que estrutura a

alma humana constituindo-se inclusivamente como um dos modos de relaccedilatildeo entre a

criatura e o criador natildeo soacute o homem pode assumir um novo modo de ver como pode

tambeacutem perspectivar-se a si mesmo na linhagem dessa nova visatildeo reconfigurando o seu

modo de ser Haacute portanto um estamento eacutetico que se desprende da reconstituiccedilatildeo

criativa propiciada pela imagem e que joga com a liberdade interpretativa e com a

681

A percepccedilatildeo pelos sentidos no caso do signo e a exigecircncia de similitudo no caso da imagem satildeo duas

premissas presentes na definiccedilatildeo que o proacuteprio Santo Agostinho estabelece para cada um dos termos

682 Jaacute os siacutembolos pertenceriam agrave classe dos signa data Santo Agostinho estabelece a distinccedilatildeo entre

signa naturalia e signa data em De doct christ II 12-23 Em relaccedilatildeo aos primeiros daacute o exemplo do

fumo que indica o fogo e de uma pegada que indica o trilho de um animal salientando o caraacutecter natildeo

intencional do modo como datildeo a conhecer a realidade que as originou Em relaccedilatildeo aos segundos diz que

dependem de convenccedilotildees estabelecidas pelos seres vivos com o intuito de expressarem o melhor possiacutevel

os seus sentimentos percepccedilotildees e pensamentos

231

premecircncia atraveacutes da qual os indiacutecios facultados pela semelhanccedila apelam agrave feacute Ricoeur

natildeo estaacute muito distante desta leitura quando refere que o ver-como da metaacutefora poderaacute

ser revelador de um ser-como ao niacutevel ontoloacutegico mais profundo683

A temporalidade a

que a criatura natildeo se pode furtar encontra uma espeacutecie de siacutentese estabilizadora e

presentificante na imagem pensada pelo homem enquanto tal cuja referencialidade

conduz ao entendimento da eternidade predispondo a uma atitude mimeacutetica que visa

romper com a dissemelhanccedila e encetar uma construccedilatildeo criativa da proacutepria vivecircncia

temporal com base em duas outras estruturas imageacuteticas por si reconhecidas ndash aquela

que descobre na sua alma e aqueloutra totalmente perfeita que se configura no Filho

683

Cf Ricoeur Temps et Reacutecit III Le temps raconteacute Seuil Paris 2005 p 281

Parte II

235

1 Teraacute Santo Agostinho uma filosofia da arte

11 - As trecircs acepccedilotildees da palavra ldquoarterdquo artes ars e Ars

Santo Agostinho emprega o termo arte de trecircs modos distintos utiliza o plural

artes como conhecimento (scientia) aludindo agraves artes liberais ou disciplinas em que

assentava o sistema educacional do seu tempo atraveacutes da palavra Ars que aqui

capitalizamos684

refere-se ao mundo divino das Formas como modelo transcendente e

utiliza ainda o termo ars na acepccedilatildeo directamente retomada do grego τέχνη como

capacidade habilidade ou teacutecnica

Em Retractationum685

o Doutor da Graccedila refere que durante o periacuteodo em que

aguardava pelo seu baptismo em Milatildeo tinha em vista um projecto consagrado agrave escrita

de um tratado para cada uma das artes liberais gramaacutetica dialeacutectica retoacuterica muacutesica

geometria astronomia aritmeacutetica Tal intento que ficou por cumprir visava propor uma

via gradativa para a razatildeo ascender atraveacutes do conhecimento das coisas corpoacutereas ou

materiais ateacute ao conhecimento das coisas imateriais (per corporalia ad incorporalia)

Neste acircmbito foram escritas as obras De grammatica e De musica sendo que alguns

autores defendem que o tratado De dialectica integraria tambeacutem o projecto poreacutem o

modo fragmentaacuterio com que chegou aos nossos dias e as duacutevidas quanto agrave sua

verdadeira autoria natildeo permitem ter como certa tal afirmaccedilatildeo Com efeito em

Retractationum o Bispo de Hipona testemunha que dos sete tratados planeados apenas

dois foram concluiacutedos o De grammatica que natildeo muito depois da sua redacccedilatildeo

684 Naturalmente a maiuacutescula natildeo eacute utilizada nos textos originais Socorremo-nos dela para distinguir esta

acepccedilatildeo do termo daquela que se refere ao saber fazer

685 Retr I 6 (CCL 57 p17)

236

desapareceu da biblioteca pessoal do autor e o De musica terminado apoacutes o seu

baptismo e cujo uacuteltimo livro se crecirc ser bastante posterior aos restantes cinco que

compotildeem essa obra Ao elencar os tratados que ficaram por escrever Santo Agostinho

menciona a filosofia em vez da astronomia e salienta que escrevera um plano para cada

uma destas obras tambeacutem ele perdido686

Em De ordine eacute no entanto possiacutevel perceber uma espeacutecie de sumarizaccedilatildeo do

conteuacutedo que cada um dos disciplinarum libri desenvolveria jaacute que Santo Agostinho aiacute

traccedila o esquema ascensional da razatildeo atraveacutes das artes ainda com a astronomia a

ocupar o seu tradicional lugar Assim a gramaacutetica eacute a disciplina constituiacuteda pela

atenccedilatildeo sistemaacutetica que a alma daacute a propriedades determinadas pelos numeri e pelas

dimensiones encontrados nas palavras como por exemplo as duraccedilotildees (morae) dos

sons e das siacutelabas que podem ser constituiacutedas por tempos simples ou duplos bem como

as modulaccedilotildees das suas proporccedilotildees que tanto podem ocasionar siacutelabas longas ou

breves687

Santo Agostinho inclui tambeacutem a literatura neste domiacutenio cujo objecto eacute o

estudo de todos os escritos dignos de memoacuteria e que portanto pressupotildee a associaccedilatildeo

da histoacuteria agrave gramaacutetica688

Passando para a dialeacutectica Santo Agostinho diz que esta se constitui como a

disciplina das disciplinas (disciplina disciplinarum) jaacute que faculta o meacutetodo pelo qual a

docecircncia e a discecircncia se empreendem ao estabelecer regras seguras para os exerciacutecios

da razatildeo Se a gramaacutetica implicava um processo de orgacircnico de definiccedilotildees divisotildees e

siacutenteses nada mais loacutegico do que passar para a disciplina capaz de assegurar sobre a

perfeiccedilatildeo e eficaacutecia dos instrumentos e das vias que a razatildeo segue para a elaboraccedilatildeo de

regras salvaguardando-a do erro689

Associada agrave dialeacutectica surge a retoacuterica que tem por objectivo exercitar a razatildeo e

fortalececirc-la de modo a que seja capaz de traduzir para actos concretos os conteuacutedos do

seu raciociacutenio Santo Agostinho nota que eacute bastante frequente os homens natildeo terem a

capacidade para seguir coisas de natureza boa uacutetil e honesta mesmo quando satildeo

persuadidos para tal Satildeo poucos aqueles que conseguem ver os ditames da verdade

686

Ibid

687 Cf De ord II 12 35

688 Cf De ord II 12 36

689 Cf De ord II 13 38

237

pura os demais tendem a seguir o haacutebito e vergar-se agraves exigecircncias da sua existecircncia

carnal A retoacuterica tem a missatildeo de cativar e deleitar o povo atraveacutes de estrateacutegias de

natureza esteacutetica que promovem a elevaccedilatildeo da razatildeo a partir dos nuacutemeros presentes nas

coisas temporais ndash por exemplo no cadenciar harmonioso das palavras ndash ateacute agrave beleza

superior Tais estrateacutegias cativam e fortalecem a alma persuadindo-a a procurar a sua

proacutepria amenidade690

Dado o perigo da atenccedilatildeo reclamada pelas coisas sensiacuteveis Santo Agostinho

determina-lhes um papel uacutetil na via gradativa da razatildeo eacute atraveacutes das coisas corporais

que a alma gradualmente se aperfeiccediloa e ascende Tal como a disciplina retoacuterica em

parte jaacute deixava anunciar a ciecircncia de bem modular ou muacutesica ocupa neste percurso

um lugar de relevo A muacutesica ocupa-se daquilo que apercebemos pelos ouvidos pelo

que na sua alccedilada recaem tambeacutem as palavras a partir das quais nasceram a gramaacutetica

a dialeacutectica e a retoacuterica Sendo a razatildeo capaz de diferenciar entre o som (sonus) e aquilo

do qual ele eacute signo (signum) compreendeu que soacute o som pertenceria agrave alccedilada da muacutesica

e agrupou-os em trecircs classes a que eacute formada pela voz animal integrando os sons

produzidos pelos actores traacutegicos coacutemicos e todos os que cantam com voz proacutepria a

segunda classe de sons diz respeito aos que satildeo produzidos pelo sopro do ar como por

exemplo os sons saiacutedos das flautas e por fim integram a terceira classe todos os sons

produzidos pela percussatildeo do ar seja ao tocar um tambor uma harpa ou uma lira691

Os

sons natildeo tecircm poreacutem qualquer valor se natildeo forem regulados pela duraccedilatildeo e por uma

variedade proporcionada de graves e agudos pelo que de acordo com esta constataccedilatildeo

e com o reconhecimento de valores gramaticais como peacutes e acentos a muacutesica atende a

determinadas divisotildees ndash as cesuras (caesa) e os hemistiacutequios (membra) O versum eacute

estipulado por esta ciecircncia de modo a que natildeo o nuacutemero de peacutes natildeo se multiplique de

tal modo que o juiacutezo natildeo o possa abarcar Os rhythmi por sua vez satildeo as estruturas que

apesar de fluiacuterem com um nuacutemero ordenado de peacutes natildeo possuem uma medida

uniforme Santo Agostinho diz ser desta ciecircncia que nascem os poetas ela honrou-os

outorgando-lhes o poder de compor toda a sorte de fantasias racionais (rationabilia

mendacia) atraveacutes de efeitos que atendem natildeo a penas agrave harmonia dos sons mas

tambeacutem agrave forccedila das palavras e aos contextos (momenta) Como esta ciecircncia se funda na

690

Ibid

691 Cf De ord II 14 39

238

primeira disciplina alcanccedilada e elaborada pela razatildeo cabe aos gramaacuteticos serem os

juiacutezes dos poetas692

A muacutesica eacute uma disciplina simultaneamente sensual e intelectual

que atraveacutes dos sons que se desvanecem no tempo permite que a alma perceba os

numeri que se constituem como objecto de contemplaccedilatildeo do espiacuterito e satildeo imortais693

Passando da disciplina que se ocupa das coisas percebidas atraveacutes dos ouvidos

para a disciplina relativa ao domiacutenio da visualidade a razatildeo percebe que nos ceacuteus e na

terra soacute a beleza lhe agrada e que em uacuteltima instacircncia o motivo desse agrado eacute o

nuacutemero que estaacute na base das figuras e das suas dimensotildees Daiacute que surja entatildeo a

geometria como uma penuacuteltima arte atraveacutes da qual a alma se deve exercitar Pela

geometria o homem pocircde perceber que natildeo eacute possiacutevel agraves figuras sensiacuteveis cotejar

aquelas que satildeo objecto da inteligecircncia694

Ao admirar e estudar diligentemente os movimentos dos ceacuteus a razatildeo percebeu

que tambeacutem aiacute reinavam os nuacutemeros e as regularidades temporais reconhecendo

movimentos fixos e concertados dos astros que ocorrem em distacircncias estaacuteveis Agrave

disciplina encarregue de sistematizar tais conhecimentos deu-se o nome de

astronomia695

Santo Agostinho natildeo se refere especificamente agrave aritmeacutetica nem se

percebe exactamente se a incluiria entre o grupo de disciplinas que durante a Escolaacutestica

tomaria o nome de trivium ou em maior conformidade com esta mesma divisatildeo a

incluiria no quadrivium696

Sendo a muacutesica especificamente assumida como o quarto

patamar697

dificilmente a aritmeacutetica marcaria a transiccedilatildeo entre o trivium e o

quadrividum possivelmente Santo Agostinho enquadraria esta disciplina como uma

ciecircncia transversal a todas as outras uma vez que em qualquer uma delas estaacute impliacutecita

a ideia de uma racionalidade numericamente proporcionada ou mais provavelmente

situaria a aritmeacutetica no final da sua lista Ainda que natildeo haja uma referecircncia expliacutecita a

692

Cf De ord II 14 40

693 Cf De ord II 14 41

694 Cf De ord II 15 42

695 Cf Ibid

696 Trivium e quadrivium satildeo divisotildees disciplinares posteriores agrave eacutepoca de Santo Agostinho pelo que natildeo

eacute de estranhar a hipoacutetese de o filoacutesofo natildeo seguir tal paracircmetro O trivium incluiacutea a gramaacutetica a dialeacutetica

e a retoacuterica ao passo que o quadriacutevium abarcava a aritmeacutetica a geometria a muacutesica e a astronomia

697 De ord II 14 41 (CCL 29 p 129) laquoIn hoc igitur quarto gradu sive in rhythmis sive in ipsa

modulatione intellegebat regnare numeros totumque [hellip]raquo

239

esta disciplina natildeo eacute descabido vecirc-la como o estudo diligente e fortalecedor das

proporccedilotildees numeacutericas que brilham com maior fulgor no reino do pensamento do que no

mundo sensiacutevel estudo este que revela agrave alma ser ela proacutepria nuacutemero capaz de regular

todas as coisas ou pelo menos que deveria tomar tal possibilidade como meta a

atingir698

A escada das artes pressupotildee o entendimento do mundo segundo uma ordem

numeacuterica harmoniosa atraveacutes da qual a razatildeo capta a unidade Na modulatio e na

congruentia que podem ser reconhecidas nas coisas sensiacuteveis haacute uma inteligibilidade

capaz de elevar a razatildeo do temporal ao eterno do corporal ao incorporal Tal itineraacuterio

funciona como um exerciacutecio da alma (exercitatio animi) que emprega proveitosamente

a realidade terrena natildeo apenas para que a alma possa ser capaz de fortalecer a sua

crenccedila na realidade divina mas tambeacutem para poder contemplaacute-la e compreendecirc-la699

O ambicioso projecto agostiniano dos disciplinarum libri natildeo era poreacutem uma

novidade durante o seacuteculo IV A origem das artes liberais remonta agrave παιδεία grega

onde jaacute no seacuteculo VI aC havia a distinccedilatildeo entre γυμναστική ou o treino do corpo e

μουσική ou o treino da alma Eacute a partir deste uacuteltimo nuacutecleo que nascem as disciplinas

liberais No oitavo livro da Poliacutetica Aristoacuteteles refere apenas trecircs disciplinas para aleacutem

da ginaacutestica como sendo as habituais do sistema educacional de entatildeo 1) leitura e

escrita 2) muacutesica e 3) desenho700

Dois seacuteculos depois Vitruacutevio escreve que o aluno

deveria saber geometria e desenho ter conhecimentos de histoacuteria e de filosofia

entender de muacutesica e ter alguns conhecimentos de medicina bem como das leis

Deveria ainda estar a par das proporccedilotildees celestes e ser entendido em astronomia701

698

De ord II 15 43 (CCL 29 p 130) laquoIn his igitur omnibus disciplinis occurrebant ei omnia numerosa

quae tamen in illis dimensionibus manifestius eminebant quas in seipsa cogitando atque volvendo

intuebatur verissimas in his autem quae sentiuntur umbras earum potius atque vestigia recolebat Hic se

multum erexit multumque praesumpsit ausa est immortalem animam comprobare Tractavit omnia

diligenter percepit prorsus se plurimum posse et quidquid posset numeris posse Movit eam quoddam

miraculum et suspicari coepit seipsam fortasse numerum esse eum ipsum quo cuncta numerarentur aut si

id non esset ibi tamen eum esse quo pervenire satageretraquo

699 Cf De ord II 16 44

700 Cf Aristoacuteteles Poliacutetica VIII 3 1338a Acerca das artes liberais na cultura antiga cf H-I Marrou

ldquoLes Arts Libeacuteraux dans lrsquoAntiquiteacute Classiquerdquo in Arts Libeacuteraux et Philosophie au Moyen Acircge Actes du

Quatriegraveme Congregraves International de Philosophie Meacutedieacutevale Montreacuteal ndash Paris Institut drsquoEacutetudes

Meacutedieacutevales Vrin 1969 pp5-27 Id Saint Augustin et la Fin de la Culture Antique Paris E de

Boccard 1938

701 Cf Vitruacutevio De architectura I 1 3 10

240

Varratildeo que eacute talvez o primeiro autor a escrever especificamente sobre cada uma das

disciplinas ou artes liberais distingue nove daiacute o tiacutetulo da sua obra Libri novem

disciplinarum Segundo Ritschl essas disciplinas eram a gramaacutetica a dialeacutectica a

retoacuterica a geometria a aritmeacutetica a astronomia a muacutesica a medicina e arquitectura702

Eacute bastante provaacutevel que Santo Agostinho tenha usado esta obra como manual

de estudo com os seus alunos Em De ordine quando inicia a descriccedilatildeo da escada

das artes mais concretamente ao escrever sobre a gramaacutetica o filoacutesofo refere

Varratildeo703

e volta a citaacute-lo pouco apoacutes ter terminado tal descriccedilatildeo a propoacutesito de um

aforismo de Pitaacutegoras704

Tambeacutem no poema epistolar que Licecircncio remete a

Agostinho em 395 ndash e que traduzimos a propoacutesito da temaacutetica dos numeri 705

ndash haacute

uma referecircncia agrave via misteriosa e profunda de Varratildeo que reforccedila a ideia de que a

leitura dos nouem libri disciplinarum faria parte do programa curricular proposto

por Santo Agostinho em Cassiciacuteaco

Em De vera religione obra concluiacuteda cinco anos apoacutes De ordine Santo

Agostinho afirma que a alma seraacute tanto mais capacitada para ajuizar quanto mais

dotada (peritior) for e que ela eacute tanto mais dotada quanto maior for o seu envolvimento

em alguma arte disciplina ou saber706

Neste seguimento clarifica que entende por arte

natildeo aquilo que deveacutem da experiecircncia mas aquilo que eacute formado pelo raciociacutenio Santo

Agostinho diz que o que qualifica um muacutesico na verdadeira acepccedilatildeo da palavra eacute a sua

capacidade para entender as relaccedilotildees numeacutericas Por exemplo um flautista amador pode

ouvir e reproduzir uma melodia mas a sua muacutesica natildeo passaraacute de uma mera imitaccedilatildeo707

Tal como um rouxinol que canta sem nada saber acerca dessa sua acccedilatildeo esse flautista

702

Ritschl Opusc iii 419-505 citado em John Edwin Sandys A History of Classical Scholarship

From the End of the Sixth Century BC to the End of the Middle Ages NYCambridge University

Press 2011 p 174

703 De ord II 12 35 (CCL 29 p 127) laquoQuibus duobus repertis nata est illa librariorum et calculonum

professio velut quaedam grammaticae infantia quam Varro litterationem vocat [hellip]raquo

704 Cf De ord II 20 54

705 Vide p 139

706 De vera relig 30 54 (CCL 32 p 222) laquoSed quia clarum est eam esse mutabilem quando nunc perita

nunc imperita invenitur tanto autem melius iudicat quanto est peritior et tanto est peritior quanto

alicuius artis vel disciplinae vel sapientiae particeps estraquo

707 Cf De mus I 4 6

241

natildeo eacute um verdadeiro muacutesico pois apesar de numerosa faciendo non numeros

cognoscendo708

O verdadeiro muacutesico eacute necessariamente um erudito

Em relaccedilatildeo agrave arquitectura o meacuterito de saber edificar elegantemente de modo a colocar

no centro um elemento singular e nos lados elementos pares correspondentes ndash portanto

jogando com a simetria ndash natildeo estaacute na repeticcedilatildeo acriacutetica de um trabalho oficinal ainda

que lhe subjaza uma espeacutecie de sentido (sensus) das proporccedilotildees ligado agrave razatildeo e agrave

verdade Eacute como se a proacutepria natureza impelisse o homem para a simetria No sentido

vulgar a arte natildeo eacute mais do que a lembranccedila das coisas que exercitaacutemos e que nos

deram prazer ligada a alguma destreza do corpo na sua execuccedilatildeo709

Mas natildeo eacute na

acepccedilatildeo vulgar de ars que Santo Agostinho quer prosseguir o seu raciociacutenio Desde

logo o filoacutesofo refere que quem natildeo possui a destreza necessaacuteria para a execuccedilatildeo de tais

obras pode todavia ajuizar sobre elas o que na perspectiva agostiniana eacute uma

actividade por si soacute bastante superior Neste sentido a formulaccedilatildeo de um juiacutezo esteacutetico

em relaccedilatildeo a uma obra arquitectoacutenica por exemplo tem mais meacuterito do que o trabalho

dos responsaacuteveis pela sua edificaccedilatildeo Poder-se-ia argumentar que o trabalho de

planeamento natildeo eacute correctamente contextualizado entre o trabalho dos pedreiros que

realizam a obra distinguindo assim a criatividade do autor ou mentor da ideia Conveacutem

poreacutem natildeo esquecer que tal tipo de raciociacutenio natildeo encontra enquadramento no modo

oficinal como entatildeo funcionavam as actividades que hoje tomamos por criativas A

aprendizagem era bastante praacutetica feita com mestres-de-obras experientes pelo que o

caraacutecter altamente normativo e a sujeiccedilatildeo a um nuacutemero de variaacuteveis relativamente

limitado natildeo permitiam aos arquitectos verdadeiras inovaccedilotildees ou marcas de estilo

Apesar de ser uma referecircncia capital durante vaacuterios seacuteculos mesmo Vitruacutevio com o seu

tratado De architectura natildeo fez mais do que elencar e explicar enciclopedicamente uma

seacuterie de variaacuteveis como materiais coordenadas e tipos de construccedilatildeo elementos e

detalhes decorativos etc dando exemplos que natildeo chegam a definir uma qualquer

linhagem autoral ateacute por eles proacuteprios resultarem de uma espeacutecie de compilaccedilatildeo de

casos observados por Vitruacutevio nas obras de vaacuterios mestres como Hermoacutegenes

Mnesthes Quersifratildeo ou Muacutecio entre outros710

708

Cf De ord II 19 49

709 Ibid laquoIta reperitur nihil esse aliud artem vulgarem nisi rerum expertarum placitarumque memoriam

usu quodam corporis atque operationis adiuncto [hellip]raquo

710 Os nomes citados satildeo referidos por Vitruacutevio no segundo capiacutetulo do terceiro livro de De architectura

242

A acepccedilatildeo que Santo Agostinho pretende enfatizar para a arte eacute pois a de

disciplina enquanto conhecimento alcanccedilado e sistematizado pela razatildeo A relaccedilatildeo das

artes neste sentido com a verdade eacute quase imediata daiacute que em Soliloquiorum Santo

Agostinho diga que as figuras empregues pela geometria pertencem agrave verdade ou que

essa verdade estaacute nelas contrariamente agraves figuras exibidas pelos objectos materiais que

natildeo passam de imitaccedilotildees dessa verdade (imitationes veritatis)711

Clarificando e

cultivando a mente as artes liberais permitem corrigir as falsas impressotildees que a mente

recebe da vida quotidiana712

Santo Agostinho acaba por lamentar a atenccedilatildeo que deu em De ordine agraves artes

liberais A via ascensional que atraveacutes delas propunha fundava-se na erudiccedilatildeo e o

Bispo de Hipona viria a reconhecer que ela natildeo era garante de santidade Poderiam

encontrar-se muitos exemplos de santos que o eram sem dominarem nenhuma das

disciplinas tal como poderiam ser encontrados muitos exemplos de homens versados

em tais artes que nunca chegariam a alcanccedilar a verdade dada a sua impiedade713

Em

Confessionum Santo Agostinho diz que ele proacuteprio na altura em que havia lido tudo o

que pocircde dos livros sobre as artes liberais714

virava ainda as costas agrave luz para se

concentrar nos objectos por ela iluminados715

A continuidade entre o raciociacutenio matemaacutetico e o alcance da beleza

transcendente natildeo eacute tatildeo imediata e autoacutenoma quanto a escada das artes deixa pressupor

Uma alma que singre atraveacutes destas disciplinas estaraacute cada vez mais apta a compreender

o caraacutecter substancial dos nuacutemeros que constituem o universo mas tal compreensatildeo natildeo

chega a ser uma contemplaccedilatildeo genuiacutena Haacute a exigecircncia de que a alma que contempla a

711

Cf Sol II 18 32

712 Cf De ord II 16 44

713 Cf Retr I 3 2 Ep 101 2

714 Possivelmente os jaacute citados nouem libri disciplinarum de Varratildeo

715 Conf IV 16 30 (CCL 27 p55) laquoEt quid mihi proderat quod omnes libros artium quas liberales

vocant tunc nequissimus malarum cupiditatum servus per me ipsum legi et intellexi quoscumque legere

potui Et gaudebam in eis et nesciebam unde esset quidquid ibi verum et certum esset Dorsum enim

habebam ad lumen et ad ea quae illuminantur faciem unde ipsa facies mea qua illuminata cernebam

non illuminabatur Quidquid de arte loquendi et disserendi quidquid de dimensionibus figurarum et de

musicis et de numeris sine magna difficultate nullo hominum tradente intellexi scis tu Domine Deus

meus quia et celeritas intellegendi et dispiciendi acumen donum tuum est Sed non inde sacrificabam

tibiraquo

243

beleza seja tambeacutem ela bela coisa que natildeo eacute assegurada pela eruditio mas por Cristo

Redentor Haacute efectivamente uma coincidecircncia entre a aproximaccedilatildeo agrave beleza e a

aproximaccedilatildeo agrave verdade que a escada das artes traduz ela natildeo contempla poreacutem o facto

de que essa aproximaccedilatildeo teraacute sempre por base a restauraccedilatildeo da imagem de Deus no

homem cuja beleza foi deformada pelo pecado

O singular ars eacute naturalmente aplicado a cada uma das disciplinas liberais716

mas eacute sobretudo utilizado por Santo Agostinho como competecircncia ou aptidatildeo no fazer

ou conduzir algo Assim em De civitate Dei vemo-lo referir-se agrave ars vivendi e agrave ars

agendae vitae717

O termo surge tambeacutem com a acepccedilatildeo de periacutecia ou meacutetodo em

relaccedilatildeo a uma qualquer actividade particular como refere OrsquoConnell citando os

exemplos da ars bene loquendi e da ars gubernandi718

Trata-se do saber fazer que

poderaacute efectivamente ser reconhecido tambeacutem nos trabalhos oficinais como eram agrave

eacutepoca a pintura ou a escultura Mas este saber fazer natildeo eacute tanto uma habilidade manual

ou uma mera destreza teacutecnica ele eacute a capacidade em exteriorizar a imagem presente na

mente humana Mesmo natildeo sendo a productio caracterizada pela intelectualidade

pressuposta nas artes liberais haacute ainda assim que assinalar o facto de Santo Agostinho

lhe reconhecer a subordinaccedilatildeo agrave ideia a ponto de estabelecer uma analogia entre o

trabalho de um artiacutefice e a creatio com base na Ars divina

Um artiacutefice faz um cofre Desde logo esse cofre jaacute se encontra na

sua arte pois se natildeo estivesse tal cofre na sua arte de onde o tiraria ao

fabricaacute-lo Mas o cofre natildeo estaacute na arte como quando eacute visto pelos olhos

Na arte eacute invisiacutevel em obra seraacute visiacutevel Ei-lo feito na obra teraacute cessado de

ser na arte Por um lado haacute o cofre que foi feito por outro lado haacute aquele

que permanece o mesmo na arte assim o primeiro pode corromper-se e de

novo outros cofres poderiam ser fabricados a partir daquele que estaacute na arte

Considere-se entatildeo tanto o cofre na arte como o cofre na obra O cofre na

obra natildeo eacute vida o cofre na arte eacute vida pois vive na alma do artiacutefice onde

existem todas as coisas antes que sejam produzidas no exterior Tambeacutem

assim cariacutessimos irmatildeos a Sabedoria de Deus graccedilas agrave qual todas as coisas

satildeo feitas possui em si a arte de todas as coisas antes de as fabricar pelo que

716

Como por exemplo quando o Bispo de Hipona se refere agrave ars rethorica em De doct christ IV 2 3

717 De civ Dei XIX 3 IV 21

718 OrsquoConnel S J Robert Art and the Christian Intelligence in St Augustine Oxford Basil Blackwell

1978 p 30

244

todas as coisas que satildeo feitas atraveacutes desta mesma arte natildeo satildeo por

conseguinte vida mas o que quer que seja feito eacute Nele vida719

Santo Agostinho quer assim clarificar que todas as coisas feitas por Deus satildeo

Nele vida pois Nele satildeo feitas primeiramente como ideia ou ars Por exemplo a terra

que foi criada natildeo eacute vida em si mesma mas eacute vida em Deus no seio da Sua Sabedoria

como arqueacutetipo imaterial a partir do qual a terra corpoacuterea foi criada720

A explicaccedilatildeo

de Santo Agostinho socorre-se da analogia com o processo de labor do artiacutefice

humano que para fabricar um objecto concreto tambeacutem se baseia em primeiro lugar

numa ideia Neste sentido a ars impliacutecita na produccedilatildeo humana eacute com efeito essa

ideia ou verbum mentis

A Ars divina eacute a proacutepria Sabedoria de Deus de onde tudo foi tirado do nada721

ela identifica-se portanto com o logos do evangelho joanino e estaacute na base do

exemplarismo que Santo Agostinho quase sempre perspectiva tendo por base a

dimensatildeo esteacutetica Eacute o que ocorre em De Trinitate quando diz que todas as coisas

criadas pela arte divina exibem caracteriacutesticas como a unidade a beleza e a ordem722

caracteriacutesticas estas que permitem compreender o criador pelas suas obras (I Rom

1 20) encontrando em cada criatura os traccedilos da Trindade que eacute a fonte de todas as

coisas e onde residem a beleza mais perfeita e a felicidade mais completa (perfectissima

pulchritudo et beatissima delectatio)723

Se a ars humana numa das suas acepccedilotildees mais

particulares se reportava ao verbum mentis tambeacutem a Ars divina eacute explicitamente

719

In Iohan Ev Tract I 17 (CCL 36 p 10) laquoFaber facit arcam Primo in arte habet arcam si enim in

arte arcam non haberet unde illam fabricando proferret Sed arca sic est in arte ut non ipsa arca sit quae

videtur oculis In arte invisibiliter est in opere visibiliter erit Ecce facta est in opere numquid destitit

esse in arte Et illa in opere facta est et illa manet quae in arte est nam potest illa arca putrescere et

iterum ex illa quae in arte est alia fabricari Attendite ergo arcam in arte et arcam in opere Arca in opere

non est vita arca in arte vita est quia vivit anima artificis ubi sunt ista omnia antequam proferantur Sic

ergo fratres carissimi quia Sapientia Dei per quam facta sunt omnia secundum artem continet omnia

antequam fabricet omnia hinc quae fiunt per ipsam artem non continuo vita sunt sed quidquid factum

est vita in illo estraquo

720 Cf In Iohan Ev Tract I 16

721 Cf De div quaest 83 78

722 De Trin VI 10 12 (CCL 50 p 242) laquoHaec igitur omnia quae arte divina facta sunt et unitatem

quamdam in se ostendunt et speciem et ordinemraquo

723 Ibid

245

reportada por Santo Agostinho ao Verbum perfectum o Verbo do princiacutepio de todas as

coisas onde estatildeo as razotildees eternas e imutaacuteveis de tudo o que existe724

A Ars divina eacute o modelo transcendental normativo da proacutepria arte humana

(agora entendida como productio) jaacute que para executar qualquer coisa o homem tem

de recorrer a materiais preexistentes pois natildeo tem a capacidade de criar ex nihilo e a sua

acccedilatildeo produtiva adveacutem ela proacutepria da ideia que nasce na mente a partir daquilo que

percebe na natureza Santo Agostinho perspectiva assim uma continuidade entre a arte

divina e a arte humana

Esta arte soberana proacutepria de Deus todo-poderoso pela qual tudo foi tirado

do nada e da qual tambeacutem dizemos ser a Sua Sabedoria eacute ela proacutepria que

opera atraveacutes dos artiacutefices fazendo-os produzir obras belas e harmoniosas

ainda que natildeo operem a partir do nada mas de algumas mateacuterias como a

madeira ou o maacutermore ou o marfim ou outros materiais afins dominados

pelas matildeos dos artiacutefices A razatildeo pela qual natildeo podem fabricar a partir do

nada eacute por operarem atraveacutes do corpo mas as proporccedilotildees e a harmonia que

imprimem na mateacuteria pelo seu corpo recebem-nas na sua alma da suma

Sabedoria cujos nuacutemeros e proporccedilotildees imprimiu com muito mais admiraacutevel

engenho em todo o universo corpoacutereo que foi criado do nada Neste

universo estatildeo tambeacutem os corpos dos animais que satildeo tirados de alguma

coisa isto eacute dos elementos do mundo de um modo muito mais portentoso e

perfeito do que as mesmas figuras e imitaccedilotildees dos corpos que os artiacutefices

reproduzem nas suas obras Com efeito na estaacutetua natildeo se encontra toda a

variedade de detalhes do corpo humano no entanto tudo o que aiacute

encontramos surge pela matildeo do artiacutefice daquela sabedoria que forma o

proacuteprio corpo humano naturalmente Natildeo se deve portanto ter em grande

conta aqueles que produzem ou estimam tais obras pois a sua alma

atendendo agraves coisas inferiores que faz materialmente por meio do corpo

tende menos para a suma Sabedoria da qual tira estas suas capacidades

Delas faz um mau uso exercendo-as no exterior pois estimando as coisas

nas quais se exercita perde de vista a sua forma interior e imutaacutevel e assim

se torna mais deacutebil e vatilde725

724

Cf De Trin VI 10 11

725 De div quaest 83 78 (CCL 44A p 224) laquoSed ideo non possunt isti de nihilo aliquid fabricare quia

per corpus operantur cum tamen eos numeros et convenientiam liniamentorum quos per corpus corpori

imprimunt in animo accipiant ab illa summa sapientia quae ipsos numeros et ipsam convenientiam longe

artificiosius universo mundi corpori impressit quod de nihilo fabricata est In quo sunt etiam corpora

animalium quae iam de aliquo id est de elementis mundi fabricantur sed longe potentius et excellentius

quam cum artifices homines easdem figuras corporum et formas in suis operibus imitantur Non enim

omnis numerositas humani corporis invenitur in statua sed tamen quaecumque ibi invenitur ab illa

sapientia per artificis animum traicitur quae ipsum corpus humanum naturaliter fabricatur Nec ideo

tamen pro magno habendi sunt qui talia opera fabricantur aut diligunt quia minoribus rebus intenta

anima quas per corpus corporaliter facit minus inhaeret ipsi summae sapientiae unde istas potentias

246

Mesmo com as flagrantes limitaccedilotildees e perigos que o Bispo de Hipona reconhece

aos objectos da arte humana ele natildeo pode deixar de admitir que ao prolongar de certo

modo o seu acircmbito neles a arte divina como que contamina tudo com a beleza que a

caracteriza e que imprime atraveacutes dos nuacutemeros nas coisas corpoacutereas Essa beleza estaacute

presente de dois modos nas obras humanas por um lado por participaccedilatildeo jaacute que os

materiais usados pelo homem na execuccedilatildeo dos objectos satildeo fruto da actividade criadora

divina e por transposiccedilatildeo porque a mente humana para formar a ideia que guiaraacute o

artesatildeo na execuccedilatildeo da obra serve-se de processos ligados agrave memoacuteria quer seja ao

imitar as formas que percebeu na natureza quer seja ao imaginar formas que nunca

observou mas que resultam de um trabalho de conjugaccedilatildeo eou redimensionamento de

elementos parciais retirados das lembranccedilas de coisas percebidas Esse trabalho da

memoacuteria eacute sempre feito portanto sobre imagens resultantes da percepccedilatildeo que reportam

ao homem os traccedilos da beleza divina presentes na natureza O processo de

exteriorizaccedilatildeo da ideia a partir da qual o homem executa materialmente o objecto

manteacutem certas analogias com o modo como a Ars divina opera ainda que natildeo se lhe

possa atribuir a originalidade impliacutecita no ex nihilo A proacutepria capacidade de formaccedilatildeo

da ideia na mente humana eacute devida agrave forccedila reguladora dessa arte divina fazendo com

que o homem a tenha tambeacutem presente como modelo prescritivo A ars humana eacute ainda

que de um modo bastante limitado subsidiaacuteria da Ars divina no sentido em que

prolonga e tambeacutem ela cumpre os nuacutemeros da criaccedilatildeo

habet Quibus male utitur dum foris eas exercet illa enim in quibus eas exercet diligens interiorem

earum formam stabilem neglegit et inanior infirmiorque efficiturraquo

247

12 - Santo Agostinho e as artes como hoje as entendemos

Em pleno seacuteculo XXI o termo belas-artes parece-nos jaacute algo obsoleto para

designar a pintura e a escultura e mais ainda para abarcar toda a panoacuteplia de expressotildees

artiacutesticas hiacutebridas cuja inclusatildeo numa aacuterea estanque se revela problemaacutetica A proacutepria

categoria esteacutetica que serve de mote agrave designaccedilatildeo ldquobelas-artesrdquo contribui para a

desadequaccedilatildeo do termo e poucos satildeo os criadores artiacutesticos que revecircem as suas obras agrave

luz de tal designaccedilatildeo preferindo expressotildees como ldquoartes-plaacutesticasrdquo ou ldquoartes-visuaisrdquo

Natildeo entrando em tal celeuma passaremos a referir-nos a todo o conjunto de expressotildees

artiacutesticas apenas pelo nome de ldquoartesrdquo

O que sobretudo distingue as artes hodiernas das artes oficinais e da muacutesica

(que como vimos era uma arte liberal) no tempo de Santo Agostinho eacute o caraacutecter

criativo que desde o Renascimento passaacutemos a reconhecer-lhes A criatividade eacute a

capacidade de idealizar e de exteriorizar atraveacutes de algum modo expressivo algo

supostamente original e significativo No tempo de Santo Agostinho a criatividade soacute

poderia ser apanaacutegio divino Eacute portanto pela religiatildeo que o conceito de criaccedilatildeo e por

conseguinte de criatividade entra na esfera da cultura Elevaacutemos a productio a creatio

transferindo para o acircmbito humano essa capacidade de idealizar e expressar coisas tidas

por originais ainda que o proacuteprio conceito de originalidade seja tantas vezes posto em

causa e seja problematizado plasticamente pelos proacuteprios artistas Para Santo Agostinho

era mais estranho pensar a arte (entatildeo oficinal) como criaccedilatildeo no sentido hodierno do

termo do que utilizar a analogia do Criador como artifex726

726

Que aliaacutes o que ocorre no exemplo citado no subcapiacutetulo anterior do artiacutefice que fabrica um cofre

Com este exemplo o Bispo de Hipona pretendia clarificar melhor a criaccedilatildeo divina e socorre-se para tal da

imagem da produccedilatildeo humana

248

Natildeo eacute portanto a beleza que estaacute na base da distinccedilatildeo entre as artes de hoje e as

artesanias do seacuteculo IV ateacute porque se por um lado essa categoria esteacutetica natildeo eacute

actualmente reconhecida como caracteriacutestica sine qua non da arte727

tambeacutem por outro

lado Santo Agostinho natildeo a descartava das consideraccedilotildees acerca dos objectos

produzidos pelos artiacutefices apesar de lhe relativizar a importacircncia a este niacutevel Natildeo deixa

de ser essencial ressaltar esse aspecto e desmistificar a ideia de que eacute soacute no

Renascimento que a pintura e a escultura passam a ser reconhecidas como loci da

beleza Jaacute Santo Agostinho e antes dele Plotino viam a arte como lugar do belo e viam

a beleza como sendo algo da ordem da ideia portanto cosa mentale conforme Da

Vinci muito mais tarde atestaraacute a propoacutesito da pintura

Em De libero arbitrio Santo Agostinho diz que os artesatildeos que trabalham sobre

as formas corpoacutereas possuem nuacutemeros na sua arte para organizar as obras que

fabricam Ao manejarem as suas ferramentas para harmonizar o melhor possiacutevel a

forma exterior sobre a qual trabalham tentam que esta corresponda agrave visatildeo luminosa

que interiormente tecircm dos nuacutemeros Tal harmonizaccedilatildeo consiste em agradar por

intermeacutedio dos sentidos ao juiacutez que intui os nuacutemeros superiores portanto agrave razatildeo728

O

727

Roger Scruton eacute talvez o principal criacutetico do notoacuterio afastamento verificado entre a arte e a categoria

do belo Este filoacutesofo contemporacircneo tem uma perspectiva marcadamente neoplatoacutenica acerca da beleza

considerando que se trata de um valor universal ancorado na estrutura racional humana e que constitui

uma das vias de comunicaccedilatildeo com o divino Segundo Scruton o reconhecimento do belo permite-nos

olhar o mundo de forma reverente predispondo assim para um posicionamento eacutetico que se estaacute a perder

com o afastamento da beleza das nossas vidas e que leva o autor a defender a necessidade da redescoberta

do belo Natildeo subscrevemos a posiccedilatildeo deste filoacutesofo no que toca ao menosprezo a que vota inuacutemeras obras

de arte revelando uma profunda incompreensatildeo acerca das temaacuteticas e formas de expressatildeo artiacutestica

contemporacircneas Scruton parece condenar agrave fealdade qualquer exemplo de cariz natildeo classicista com a

agravante de ver tal categoria esteacutetica como um sinoacutenimo linear do ofensivo e da falta de qualidade

esteacutetica Ainda mais discutiacutevel eacute o criteacuterio pelo qual se pauta para distinguir entre a obra de arte bela e a

obra de arte feia e que resulta numa perspectiva maniqueiacutesta (na pior acepccedilatildeo do termo) cuja incoerecircncia

eacute gritante por exemplo pela inclusatildeo de Rothko na categoria dos artistas propensos agrave fealdade A criacutetica

que este filoacutesofo faz em relaccedilatildeo agrave arbitrariedade do criteacuterio artiacutestico institucional eacute ainda assim bastante

pertinente Arthur Danto tem uma perspectiva bastante mais moderada no que toca ao hiato entre arte e

beleza constatando que natildeo se trata de um fenoacutemeno tatildeo recente quanto habitualmente se supotildee mas sim

de uma tendecircncia haacute muito escamoteada pela confusatildeo entre o apreciar do bom artiacutestico (artistic

goodness) e a percepccedilatildeo esteacutetica do belo Para Danto haacute uma beleza artiacutestica que eacute distinta da beleza

esteacutetica sendo esta esta uacuteltima de caraacutecter universal e apreendida de modo baacutesico pelo nosso aparato

sensorial jaacute a primeira exige discernimento e inteligecircncia criacutetica para ser reconhecida Cf Roger

Scruton Beauty Oxford UP 2009 Arthur C Danto The Abuse of Beauty Aesthetics and the concept of

art Chicago ndash La Salle Illinois Open Court 2003

728 De lib arb II 16 42 (CCL 29 p 266) laquoEt omnium quidem formarum corporearum artifices homines

in arte habent numeros quibus coaptant opera sua et tamdiu manus atque instrumenta in fabricando

movent donec illud quod formatur foris ad eam quae intus est lucem numerorum relatum quantum

249

filoacutesofo estaraacute a referir-se aos pintores e aos escultores dizendo que aquilo que move os

braccedilos de tais homens eacute o nuacutemero e que se subtrairmos ao artiacutefice a obra e a intenccedilatildeo de

a produzir mantendo os movimentos que faria pelo prazer e natildeo pelo produto

estariacuteamos na presenccedila da danccedila729

Ao trazer a danccedila para o contexto das artes a que anteriormente se referia e ao

enfatizar a questatildeo dos movimentos implicados na produccedilatildeo Santo Agostinho parece

reconhecer-lhes um aspecto performativo que natildeo seria menos importante do que a

obra730

Com efeito essa questatildeo do descentramento da obra faz com que o pensamento

agostiniano se aproxime de autores contemporacircneos como Umberto Eco que atraveacutes

do conceito de opera aperta abriu caminho para os movimentos que assumiram as

diversas variantes da desmaterializaccedilatildeo da obra de arte e que preconizaram a

valorizaccedilatildeo quer da atitude que leva agrave sua produccedilatildeo quer da sua completude atraveacutes da

recepccedilatildeo dando um papel mais participativo ao fruidor731

O descentramento da obra

coloca a toacutenica no processo mas eacute sobretudo na sua capacidade significante que a obra

encontra justificaccedilatildeo e se abre aos juiacutezos de valor Os criacuteticos e os teoacutericos da arte

deixaram necessariamente de atender a questotildees meramente formais ou de mestria

teacutecnica que melhor se adequavam agrave preeminecircncia da categoria esteacutetica do belo para

se debruccedilarem sobre a obra como se de um ensaio teoacuterico se tratasse Haacute que

reconhecer-lhe a linhagem com base em referecircncias anaacutelogas retiradas da histoacuteria da

arte e interpretar pelas suas coordenadas formais e contextuais os possiacuteveis nuacutecleos

de leitura O objecto artiacutestico vale por aquilo que pode significar e pelo modo como

o faz O belo natildeo fica necessariamente de fora de tal mecanismo mas tambeacutem natildeo

potest impetret absolutionem placeatque per interpretem sensum interno iudici supernos numeros

intuentiraquo

729 Ibid Cf De mus I 2 3

730 Eacute interessante notar que a performatividade nas formas de expressatildeo artiacutestica como a pintura e a

escultura tem sido apontada por diversos autores em relaccedilatildeo a periacuteodos histoacutericos bastante anteriores ao

do nosso autor contrariando a ideia do vanguardismo associado agrave performance Note-se a tiacutetulo de

exemplo como em Lascaux ou la naissance de lart Bataille chama a atenccedilatildeo para o facto da presenccedila

constante do fenoacutemeno da sobreposiccedilatildeo na arte paleoliacutetica sugerir que o essencial desta praacutetica seria o

processo e natildeo o produto subordinando o resultado final agrave performatividade que o gera Georges Bataille

La peinture preacutehistorique Lascaux ou la naissance de lart Les grands siegravecles de la peinture Genegraveve

Skira 1955 passim

731 Como a Arte Conceptual o Minimalismo ou a Arte Povera Cf Lucy Lippard Six years the

dematerialization of the art object from 1966 to 1972 New York Praeger 1973 e Umberto Eco Opera

aperta Milano Bompiani 1962

250

encontra a sua relevacircncia no impacto perceptivo que o objecto de arte teraacute sobre o

fruidor Se assim fosse a beleza poderia ser ldquodes-subjectivadardquo e codificada em

cacircnones que rapidamente se esgotariam Essa eacute aliaacutes uma liccedilatildeo que facilmente

poderaacute ser retirada da histoacuteria da arte

Quando presente o sentimento do belo suscitado por um objecto de arte parece

estar hodiernamente associado agrave experiecircncia esteacutetica natildeo por uma qualquer harmonia

formalista mas atraveacutes da conformaccedilatildeo idiossincraacutesica do fruidor com os possiacuteveis

significados da obra percebidos como reconhecimento ou como descoberta Tal natildeo eacute

particularmente distinto da perspectiva agostiniana ainda que nesta a beleza esteja

sempre subordinada agrave Verdade Para aceder ao fulgor da Verdade o homem tem de

elevar-se para laacute da mente do artiacutefice pois soacute assim consegue ver o nuacutemero eterno732

Santo Agostinho admite que as imagens possam ser simultaneamente

verdadeiras e falsas o que aliaacutes se aplica natildeo apenas aos produtos da pintura e da

escultura mas tambeacutem a todas as imagens que afectam a nossa percepccedilatildeo sensiacutevel733

Uma pedra pode ser uma verdadeira pedra mas se for percebida como um pau logo eacute

um falso pau Em linha com a concepccedilatildeo platoacutenica qualquer coisa que eacute pelo facto de

ser eacute tambeacutem verdadeira mas simultaneamente pode ser falsa se mal ajuizada Se tudo

o que eacute eacute verdadeiro o falso eacute aquilo que parece diferente do que eacute mas que como tal

eacute privado de existecircncia pois soacute o que existe eacute verdadeiro Natildeo existem portanto

realidades falsas mas juiacutezos errados sobre coisas verdadeiras

Eacute nesta linhagem que se funda a estrutura biacutefida da pintura e da escultura para

Santo Agostinho ndash apesar de verdadeiras em si ao remeterem para outra coisa originam

a falsidade na sua interpretaccedilatildeo Tal como em qualquer outra coisa a falsidade da obra

de arte eacute assim dita em virtude da sua similitude com o verdadeiro Tal como no Sofista

o falso eacute para Santo Agostinho aquilo que parece sem ser articula-se pois com a

mimesis mas enquanto que para Platatildeo as obras dos pintores e dos escultores estavam

trecircs graus afastadas da verdade ndash jaacute que eram coacutepias incompletas dos objectos sensiacuteveis

que por seu turno eram coacutepias das Ideias ndash para Santo Agostinho essa distacircncia eacute

encurtada em um grau natildeo havendo qualquer diferenccedila entre arte e artefacto

732

De lib arb II 16 42 (CCL 29 p 266) laquoTranscende ergo et animum artificis ut numerum

sempiternum videas iam tibi sapientia de ipsa interiore sede fulgebit et de ipso secretario veritatisraquo

733 Cf Sol II 5 7 - II 10 18

251

Em De libero arbitrio o Bispo de Hipona diz que o artiacutefice faz sinal (innuere)

ao espectador que contempla a beleza da sua obra para que natildeo se detenha nela e

percorra com o olhar o objecto reportando-o com sentimento (affectus) agravequele que o

fabricou734

Esta passagem quase parece lenir a associaccedilatildeo que o proacuteprio Santo

Agostinho mais comummente faz entre os produtores de imagens e a falsidade O

artiacutefice pode apelar a um sentimento que ao remeter para si mesmo indica ao fruidor o

caraacutecter significante da obra ou seja indica que a obra funciona como uma janela para

outra realidade para laacute de si mesma O modo afectivo como o faz natildeo eacute totalmente

clarificado por Santo Agostinho mas estaacute indubitavelmente relacionado com a

possibilidade de reconhecimento por parte do fruidor da beleza que o artiacutefice dispotildee

atraveacutes dos nuacutemeros no objecto que produz Como qualquer outra beleza tambeacutem esta eacute

um sinal (nutus) de Deus se ela atrai e deleita naturalmente remete para a esfera

luminosa da divindade ainda que nem todos sejam capazes de interpretar como sinal a

obra e permaneccedilam na sombra da sua concretude

A beleza confere uma dimensatildeo positiva agrave pintura e agrave escultura mas eacute bastante

mais comum encontrarmos na obra agostiniana passagens que salientam a dimensatildeo

negativa deste tipo de obras pelo caraacutecter desigual que estaacute na base da sua

verosimilhanccedila (verisimilitudo) Nesta senda a similitudo eacute a matildee da falsidade735

O

filoacutesofo chega inclusivamente a dizer que a pintura e as representaccedilotildees (figmenta) afins

pertencem agrave mesma ordem de coisas que os demoacutenios fazem caso faccedilam eles alguma

coisa736

Mas se o falso eacute aquilo que tem alguma semelhanccedila com aquilo que eacute

verdadeiro tambeacutem as coisas ditas falsas o satildeo por diferirem daquilo que eacute verdadeiro

assim se concluindo que eacute a dissimilitude que estaacute na origem da falsidade737

o que

734

Cf De lib arb II 16 43 (CCL 29 p 266) laquoEt artifex enim quodammodo innuit spectatori operis sui

de ipsa operis pulchritudine ne ibi totus haereat sed speciem corporis fabricati sic percurrat oculis ut in

eum qui fabricaverit recurrat affectu Similes autem sunt hominibus qui ea quae facis pro te amant qui

cum audiunt aliquem facundum sapientem dum nimis suavitatem vocis eius et structuras syllabarum apte

locatarum avide audiunt amittunt sententiarum principatum cuius illa verba tamquam signa sonuerunt

Vae qui se avertunt a lumine tuo et obscuritati suae dulciter inhaerent Tamquam enim dorsum ad te

ponentes in carnali opere velut in umbra sua defiguntur et tamen etiam ibi quod eos delectat adhuc

habent de circumfulgentia lucis tuaeraquo

735 Cf Sol II 6 10

736 Sol II 6 11 (CSEL 89 p 47) laquoIam vero animantium opera sunt in picturis et huiuscemodi quibusque

figmentis in quo genere includi etiam illa possunt si tamen fiunt quae daemones faciuntraquo

737 Cf Sol II 8 15

252

contraria a ideia de que a semelhanccedila eacute a mater falsitatis Santo Agostinho demonstra o

seu embaraccedilo ao hesitar entre considerar a semelhanccedila ou pelo contraacuterio a

dissemelhanccedila como responsaacutevel pela falsidade A razatildeo diz-lhe que o falso eacute aquilo

que oferece aos sentidos a semelhanccedila de outra coisa sem ser efectivamente essa

coisa a que se assemelha Todavia a razatildeo lembra-lhe ainda que o falso eacute tambeacutem

aquilo que estaacute longe de se assemelhar ao verdadeiro mas que dele implica uma

imitaccedilatildeo (imitatio)738

Para Santo Agostinho os pintores e os escultores fazem uso da mentira pois

enganam intencionalmente atraveacutes da semelhanccedila desigual que imprimem nas suas

obras ao figurarem coisas que na verdade natildeo passam de representaccedilotildees739

Tais

representaccedilotildees tecircm o propoacutesito de imitar aparecircncias daquilo que verdadeiramente eacute o que

aparenta ser Os objectos assim executados apelam mais aos sentidos ndash enganando-os

estrategicamente ndash do que agrave razatildeo Os objectos que natildeo satildeo fruto da capacidade

mimeacutetica dos artiacutefices podem enganar mas natildeo mentem pois natildeo tecircm qualquer

intenccedilatildeo de aparentar aquilo que natildeo satildeo

A falsidade natildeo eacute apenas da responsabilidade daqueles que mentem ou

enganam ela eacute tambeacutem uma consequecircncia do mau uso dos sentidos corpoacutereos por

parte da alma e dos erros de juiacutezo que esta comete Os olhos da carne natildeo podem ser

usados para tentar ver as coisas espirituais tal como o espiacuterito natildeo deve tentar

compreender os corpos porque nada haacute neles que valha por si740

Quando a alma

procura o que eacute verdadeiro e belo deixando de lado a verdade e a beleza ela prefere

as obras ao artiacutefice e agrave sua arte tomando-as pela proacutepria arte e por Aquele que a

criou741

Contudo se a alma se debruccedilar sobre as similitudines corporais jaacute com o

intuito de se elevar agraves verdades espirituais figuradas por essas similitudines o seu

movimento de elevaccedilatildeo cresce em vigor742

738

Cf Sol II 15 29

739 Cf De vera relig 33 61

740 De vera relig 34 62 (CCL 32 p 228) laquo Ille autem vult mentem convertere ad corpora oculos ad

Deum Quaerit enim intellegere carnalia et videre spiritalia quod fieri non potestraquo

741 Cf De vera relig 36 67

742 Ep 55 11 21 (CSEL 341 p 192) laquo[hellip] si vero feratur ad similitudines corporales et inde referatur

ad spiritalia quae illis similitudinibus figurantur ipso quasi transitu vegetatur et tanquam in facula ignis

agitatus accenditur et ardentiore dilectione rapitur ad quietemraquo

253

No uacuteltimo livro de De civitate Dei Santo Agostinho refere que graccedilas agrave

bondade e providecircncia de Deus o engenho humano foi capaz de inventar e aperfeiccediloar

uma infinidade de artes que demonstram o vigor e o alcance da sua mente e assim

servem tambeacutem para reiterar a magnificecircncia do Criador Entre as coisas de tais artes

mesmo as que satildeo supeacuterfluas ou perigosas atestam o extraordinaacuterio bem existente na

natureza a partir da qual o homem pocircde encontrar aprender e exercer tal variedade de

coisas

Mesmo que a alma nada consiga fazer destes bens esta capacidade de

adquirir tais bens divinamente inserida na natureza racional ndash quem poderaacute

convenientemente dizer ou compreeender quatildeo grande bem eacute quatildeo

admiraacutevel obra do Omnipotente eacute ela Aleacutem das artes de bem viver e de

chegar agrave imortal felicidade (agraves quais se daacute o nome de virtudes e que apenas

aos filhos da promessa e do reino satildeo dadas pela graccedila de Deus que estaacute em

Cristo) ndash natildeo foram inventadas e praticadas pelo geacutenio humano outras artes

numerosas e grandiosas umas necessaacuterias voluptaacuterias outras E uma tatildeo

excelente forccedila da mente e da razatildeo natildeo daacute testemunho mesmo nessas coisas

supeacuterfluas e ateacute perigosas e supersticiosas que deseja da quantidade de bens

existentes na natureza que lhe permitem descobrir aprender e praticar tais

artes A espantosa arguacutecia humana permitiu alcanccedilar maravilhosas obras de

vestuaacuterio e edificaccedilotildees progrediu na agricultura e na navegaccedilatildeo no fabrico

tanto de vasos estaacutetuas ou pinturas que com variedade idealizou e

concretizou nos teatros fez espectaacuteculos admiraacuteveis que exibiu a audiecircncias

estupefactas fez uso de vaacuterios e espantosos recursos para apanhar matar ou

domar os animais irracionais inventou toda a sorte de venenos armas e

maacutequinas contra os proacuteprios homens inventou remeacutedios e auxiacutelios para

defender e recuparar a sauacutede descobriu condimentos e estiacutemulos da gula

para o prazer da boca para expressar e inculcar os pensamentos inventou

uma multitude e variedade de signos dos quais se destacam as palavras e a

escrita para deleitar as almas magniacuteficos ornamentos do discurso e uma

grande diversidade de composiccedilotildees poeacuteticas para encantar o ouvido

inventou uma seacuterie de instrumentos musicais e magniacuteficos modos de canto

expocircs com grande periacutecia o conhecimento das dimensotildees e dos nuacutemeros

com sagacidade compreendeu os caminhos e as ordens das estrelas [hellip]743

743

De civ Dei XXII 24 (CCL 48 p 851) laquoQuod etsi non faciat ipsa talium bonorum capacitas in natura

rationali divinitus instituta quantum sit boni quam mirabileOmnipotentis opus quis competenter effatur

aut cogitat Praeter enim artes bene vivendi et ad immortalem perveniendi felicitatem quae virtutes

vocantur et sola Dei gratia quae in Christo est filiis promissionis regnique donantur nonne humano

ingenio tot tantaeque artes sunt inventae et exercitae partim necessariae partim voluptariae ut tam

excellens vis mentis atque rationis in his etiam rebus quas superfluas immo et periculosas perniciosasque

appetit quantum bonum habeat in natura unde ista potuit vel invenire vel discere vel exercere testetur

Vestimentorum et aedificiorum ad opera quam mirabilia quam stupenda industria humana pervenerit

quo in agricultura quo in navigatione profecerit quae in fabricatione quorumque vasorum vel etiam

statuarum et picturarum varietate excogitaverit et impleverit quae in theatris mirabilia spectantibus

254

Nesta periacutecope percebe-se que o Bispo de Hipona coloca as artes oficinais lado

a lado com as as artes liberais combinando-as com vista ao mesmo objectivo de louvar

a sabedoria suprema pela qual Deus conduz e dispotildee todas as coisas Como fruto do

engenho humano que eacute daacutediva de Deus ateacute mesmo certos produtos e aspectos culturais

menos dignos de estima contribuem para que se perceba o quatildeo extraordinaacuteria eacute a

natureza humana e por conseguinte o quatildeo extraordinaacuterio eacute Aquele que assim a criou

Vaacuterios anos antes em De doctrina christinana falando nas instituiccedilotildees humanas

(institutiones hominum) Santo Agostinho ressalta o seu caacuteracter convencional e

distingue aquelas que satildeo uacuteteis daquelas que satildeo supeacuterfluas Desde logo comeccedila a sua

abordagem falando nos signos que os histriotildees integram nas suas danccedilas Se estes

signos fossem naturais diz o Bispo de Hipona natildeo teria havido necessidade de

incumbir um arauto de explicar aos cidadatildeos de Cartago aquilo que o pantomimeiro

queria veicular aos espectadores com a sua danccedila A apresentaccedilatildeo feita pelos arautos

das intenccedilotildees codificadas nos signos pantomimados pelos histriotildees seria portanto uma

praacutetica antiga comum da qual Santo Agostinho diz haver ainda no seu tempo alguns

anciatildeos que tendo testemunhado tal praacutetica a costumavam descrever nos seus relatos

de tempos passados A mesma necessidade de um inteacuterprete eacute verificada quando algueacutem

natildeo acostumado ao teatro assiste a uma representaccedilatildeo inutilmente essa pessoa poderaacute

dedicar toda a sua atenccedilatildeo ao que estaacute a decorrer em cena pois natildeo iraacute compreender os

seus signos a menos que outra pessoa lhos explique744

Passando para as pinturas para

as estaacutetuas e outros objectos figurativos afins o Bispo de Hipona diz que natildeo haacute

margem de erro ndash sobretudo se tais objectos tiverem sido executados por artesatildeos

experientes ndash pois eacute faacutecil reconhecer o que representam observando a semelhanccedila entre

a coisa e a sua representaccedilatildeo745

Tanto a danccedila dos histriotildees quanto os objectos

audientibus incredibilia facienda et exhibenda molita sit in capiendis occidendis domandis

irrationabilibus animantibus quae et quanta reppererit adversus ipsos homines tot genera venenorum tot

armorum tot machinamentorum et pro salute mortali tuenda atque reparanda quot medicamenta atque

adiumenta comprehenderit pro voluptate faucium quot condimenta et gulae irritamenta reppererit ad

indicandas et suadendas cogitationes quam multitudinem varietatemque signorum ubi praecipuum locum

verba et litterae tenent ad delectandos animos quos elocutionis ornatus quam diversorum carminum

copiam ad mulcendas aures quot organa musica quos cantilenae modos excogitaverit quantam peritiam

dimensionum atque numerorum meatusque et ordines siderum quanta sagacitate comprehenderit (hellip)raquo

744 Cf De doct christ II 25 38

745 Cf De doct christ II 25 39

255

figurativos feitos pelos artesatildeos satildeo considerados pelo filoacutesofo como instituiccedilotildees

supeacuterfluas a menos que tais signos se revistam de algum interesse no que toca agrave sua

razatildeo de ser ao seu contexto espacial e temporal ou agrave autoridade que promoveu a sua

execuccedilatildeo A mesma natureza eacute assinalada por Santo Agostinho relativamente agraves faacutebulas

e agraves ficccedilotildees mentirosas que tanto atraiem os homens Com efeito eacute proacuteprio das obras

humanas possuirem uma natureza fundamentalmente falsa e mentirosa746

Por oposiccedilatildeo agrave danccedila agrave pintura e agrave escultura surgem as instituiccedilotildees humanas

consideradas uacuteteis e necessaacuterias como satildeo exemplo as vestes e os ornamentos

exteriores que servem para distinguir os sexos e as dignidades Como estes tambeacutem satildeo

contemplados nesta categoria todos os signos que possibilitam ou pelo menos

facilitam as relaccedilotildees sociais Assim Santo Agostinho cita os pesos as medidas bem

como a efiacutegie e o valor das moedas proacuteprias a cada povo Se natildeo houvesse convenccedilotildees

deste geacutenero nada seria distinto entre um povo nem nada tornaria cada povo singular

Todas as instituiccedilotildees humanas que servem utilmente ou necessariamente um

povo merecem a atenccedilatildeo dos cristatildeos e devem ser retidas na memoacuteria Pelo contraacuterio

deveratildeo rejeitar-se todas aquelas que servem para pactuar com os demoacutenios

Relativamente agraves instituiccedilotildees que tecircm por objecto as relaccedilotildees dos homens entre si eacute

possiacutevel usaacute-las naquilo que natildeo tecircm nem de supeacuterfluo nem de excessivo eacute o caso das

letras sem as quais natildeo poderiacuteamos ler ou o conhecimento de diversos idiomas na

medida da sua utilidade Santo Agostinho cita ainda o exemplo das notas a partir das

quais foi dado o nome de notaacuterios agravequeles que se lhes dedicam Jaacute que natildeo se baseiam

em nenhuma supersticcedilatildeo nem debilitam com o luxo estas instituiccedilotildees satildeo uacuteteis e natildeo eacute

desaconselhado que o homem nelas se instrua desde que a atenccedilatildeo que lhes dedique

natildeo constitua um obstaacuteculo aos fins mais importantes para os quais elas concorrem747

Nesta mesma obra o Bispo de Hipona diz que entre as diversas artes haacute

algumas cujo propoacutesito eacute de fabricar algo de relativamente duraacutevel como uma casa um

moacutevel ou um vaso outras como a agricultura a medicina ou o governo servem como

uma espeacutecie de instrumento da acccedilatildeo divina haacute outras ainda cujo efeito se exaure na

proacutepria acccedilatildeo eacute o caso da danccedila do atletismo ou da luta Em qualquer uma destas artes

a experiecircncia passada serve para conjecturar o futuro pois todos aqueles que nelas se

746

Ibid (CCL 32 p 61) laquoEt nulla magis hominum propria quae a seipsis habent existimanda sunt

quam quaeque falsa atque mendaciaraquo

747 Cf De doct christ II 26 40

256

exercem baseiam o seu trabalho na relaccedilatildeo entre a lembranccedila dos efeitos passados e a

esperanccedila de resultados similares no futuro748

Este exerciacutecio de previsatildeo inerente a

qualquer praacutetica artiacutestica seja ela mecacircnica ou liberal pode de algum modo reiterar um

aspecto positivo jaacute aqui apontado em relaccedilatildeo agraves artes como a pintura e a escultura o de

que a presciecircncia e por extensatildeo a intuiccedilatildeo das realidades eternas podem ser

exercitadas a partir do trabalho da memoacuteria nelas impliacutecito seja no acircmbito da

recordaccedilatildeo seja no da imaginaccedilatildeo

Em relaccedilatildeo agraves artes na sua acepccedilatildeo geral Santo Agostinho diz ainda que eacute bom

durante o curso da vida terrena que o homem se dedique um pouco e quase de fugida ao

conhecimento delas natildeo para as exercer a menos que uma profissatildeo particular a isso

obrigue mas meramente para as poder julgar e para natildeo ignorar aquilo que a Escritura quer

dar a entender quando emprega locuccedilotildees figuradas que tecircm origem neste tipo de fontes749

Eacute bastante clara a ambivalecircncia com que o Bispo de Hipona se refere agraves artes

como a pintura e a escultura ora distinguindo-as enfaticamente das actividades humanas

que tem por mais elevadas ora incluindo todas no mesmo acircmbito e assinalando

caracteriacutesticas comuns Natildeo eacute portanto estranho vecirc-lo elogiar estas artes em determinados

contextos para logo de seguida lhes apontar severas criacuteticas Haacute que ter em conta que os

elogios natildeo satildeo direccionados para o produto artiacutestico em si mas para a inteligibilidade

que envolvem na sua produccedilatildeo e para a qual podem remeter se durante a sua recepccedilatildeo

por parte do fruidor forem bem ajuizadas Mais frequentes do que os elogios as criacuteticas

dizem sobretudo respeito ao facto de apelarem muito directamente aos sentidos corpoacutereos

e de a relaccedilatildeo de semelhanccedila nelas cultivada se reportar aos corpos que jaacute por si satildeo

semelhanccedilas distantes de realidades inteligiacuteveis Por razotildees jaacute aqui referidas750

Santo

Agostinho tem a arte figurativa em baixa estima Talvez se nos objectos artiacutesticos do seu

tempo pudesse ter encontrado exemplos abstraccionistas as suas consideraccedilotildees sobre as

artes visuais se aproximassem mais daquilo que diz acerca da muacutesica

Em De quantitate animae751

a muacutesica surge como uma invenccedilatildeo humana a par

da arquitectura da pintura da escultura e da poesia mas para o filoacutesofo a muacutesica

748

Cf De doct christ II 30 47

749 Cf Ibid

750 Vide pp 228-229 do presente ensaio

751 Cf De quant an 33 72 Vide p 163

257

destaca-se de todas as outras invenccedilotildees da razatildeo ligadas aos signos e agraves imagens Com

efeito a muacutesica pode figurar coisas miacutesticas dignas de serem consagradas a Deus

assim o diz Santo Agostinho a propoacutesito das composiccedilotildees musicais do rei David752

Como ciecircncia de bem modular e de bem mover753

a muacutesica dirige-se agrave razatildeo e eacute um dos

domiacutenios onde o nuacutemero marca maior presenccedila A ordenaccedilatildeo e a justa medida dos

movimentos implicados nos sons traduzem as implicaccedilotildees numeacutericas que organizam

todo o universo A muacutesica natildeo soacute se distingue das artes oficinais como tambeacutem se

distingue das demais artes liberais pelo modo quase directo com que permite agrave razatildeo

constatar a perfeiccedilatildeo da beleza Apelando simultaneamente aos sentidos e agrave razatildeo ela

torna perceptiacutevel a continuidade existente entre a beleza superior e as suas

manifestaccedilotildees sensiacuteveis A muacutesica presta-se a tal entendimento jaacute que o proacuteprio ser

humano possui um ritmo interior que natildeo eacute alheio agrave capacidade de sentir prazer face aos

ritmos sensiacuteveis e que eacute ele mesmo afim dos nuacutemeros superiores754

No polo oposto da posiccedilatildeo ocupada pela muacutesica na escala agostiniana de

consideraccedilatildeo pelos produtos culturais estatildeo todas as artes ligadas aos espectaacuteculos de

entretenimento como o teatro a danccedila as lutas de arena ou os jogos circenses Em

Confessionum Santo Agostinho relata como os espectaacuteculos teatrais o arrebatavam ao

devolverem uma imagem das suas proacuteprias miseacuterias e ao alimentarem as afecccedilotildees da

sua alma755

O condoimento experimentado face a tais espectaacuteculos estaacute na base de um

752

De civ Dei XVII 14 (CCL 48 p 570) laquoErat autem David vir in canticis eruditus qui harmoniam

musicam non vulgari voluptate sed fideli voluntate dilexerit eaque Deo suo qui verus est Deus mystica

rei magnae figuratione servierit Diversorum enim sonorum rationabilis moderatusque concentus concordi

varietate compactam bene ordinatae civitatis insinuat unitatemraquo

753 Cf De mus I 2 2 e I 3 4

754 Santo Agostinho fala especificamente nos movimentos da alma que ocorrem na sensaccedilatildeo na acccedilatildeo na

lembranccedila e no julgamento Cf De mus VI 9 24 (PL 321176-1177) laquoNos ergo in istis generibus

numerandis et distinguendis unius naturae id est animae motus affectiones que dispicimus Quare si ut

aliud est ad ea quae corpus patitur moveri quod fit in sentiendo aliud movere se ad corpus quod fit in

operando aliud quod ex his motibus in anima factum est continere quod est meminisse ita est aliud

annuere vel renuere his motibus aut cum primitus exseruntur aut cum recordatione resuscitantur quod

fit in delectatione convenientiae et offensione absurditatis talium motionum sive affectionum et aliud est

aestimare utrum recte an secus ista delectent quod fit ratiocinando necesse est fateamur ita haec esse duo

genera ut illa sunt trio Et si recte nobis visum est nisi quibusdam numeris esset ipse delectationis sensus

imbutus nullo modo eum potuisse annuere paribus intervallis et perturbata respuere recte etiam videri

potest ratio quae huic delectationi superimponitur nullo modo sine quibusdam numeris vivacioribus de

numeris quos infra se habet posse iudicareraquo

755 Cf Conf III 2 2

258

prazer doentio que natildeo se baseia na compaixatildeo mas numa curiosidade torpe Ora a

curiosidade eacute fonte de perversatildeo sobretudo ao niacutevel deste tipo de fruiccedilatildeo (voluptas) em

que o espectador tanto se compraz com o gozo como com as dores que os personagens

parecem sentir O proacuteprio Bispo de Hipona descreve como em tempos passados

compartilhava no teatro da satisfaccedilatildeo dos amantes que mutuamente se gozavam pela

torpeza e como piedosamente se contristava quando se desgraccedilavam Tal piedade era

poreacutem falsa pois provinha de um comprazimento egoiacutesta por natildeo ser o proacuteprio a sofrer

tais provaccedilotildees Contrariamente agrave teoria aristoteacutelica da catarse associada ao teatro Santo

Agostinho considera que quanto mais algueacutem se deixar influenciar pelas emoccedilotildees de

tais espectaacuteculos menos livre eacute de semelhantes paixotildees como se escarafunchasse uma

ferida provocando a sua inflamaccedilatildeo e supuraccedilatildeo756

Eacute salutar sentir compaixatildeo desde que tal atitude conduza ao auxiacutelio daquele que

padece Natildeo eacute o caso das sensaccedilotildees despertadas pelo teatro que levam o espectador a

ansiar assistir a cada vez mais padecimentos para se comprazer e que paradoxalmente

fomentam uma postura de indiferenccedila jaacute que nunca estaacute em causa acorrer agraves

necessidades do personagem sofredor Santo Agostinho afirma que a pessoa

verdadeiramente misericordiosa preferiria que nenhuma dor houvesse de que se

compadecesse757

Aqueles que se deixam dominar pela curiosidade acabam por procurar

o prazer em toda a sorte de coisas ndash inclusivamente nas mais soacuterdidas ndash e subvertem

assim a natureza do sentimento esteacutetico e o ordo amoris no qual se alicerccedila o

posicionamento moral O prazer deixa de correr atraacutes do belo do harmonioso do suave

do saboroso do brando e passa a procurar os seus contraacuterios natildeo sendo de estranhar

haver quem se compraza ante a visatildeo horriacutevel de um cadaacutever dilacerado758

Eacute por isto

756

Conf III 2 2 (CCL 27 p 27) laquoNam eo magis eis movetur quisque quo minus a talibus affectibus

sanus est [hellip]raquo e III 2 4 (p 28) laquoAt ego tunc miser dolere amabam et quaerebam ut esset quod dolerem

quando mihi in aerumna aliena et falsa et saltatoria ea magis placebat actio histrionis meque alliciebat

vehementius qua mihi lacrimae excutiebantur Quid autem mirum cum infelix pecus aberrans a grege tuo

et impatiens custodiae tuae turpi scabie foedarer Et inde erant dolorum amores non quibus altius

penetrarer (non enim amabam talia perpeti qualia spectare) sed quibus auditis et fictis tamquam in

superficie raderer quos tamen quasi ungues scalpentium fervidus tumor et tabes et sanies horrida

consequebaturraquo

757 Cf Conf III 2 3

758 Conf X 35 55 (CCL 27 p 185) laquoEx hoc autem evidentius discernitur quid voluptatis quid

curiositatis agatur per sensus quod voluptas pulchra canora suavia sapida lenia sectatur curiositas

autem etiam his contraria temptandi causa non ad subeundam molestiam sed experiendi noscendique

libidineraquo

259

que as cenas monstruosas nascidas de supersticcedilotildees tanto agradam ao puacuteblico nos

espectaacuteculos teatrais A exibiccedilatildeo de tais cenas incentiva os homens a que se debrucem

sobre os assuntos preternaturais que nada de proveitoso podem dar a conhecer

enleando-os na viciosidade do saber soacute por saber

No tempo de Santo Agostinho era ainda comum levar-se agrave cena espectaacuteculos

teatrais como trageacutedias ou comeacutedias de acordo com a tradiccedilatildeo claacutessica poreacutem agrave

medida que se acentua o decliacutenio do impeacuterio romano os teatros anfiteatros e circos

servem sobretudo de palco a espectaacuteculos violentos de lutas de gladiadores e animais

onde quase sempre ocorriam mortes Eacute a este tipo de entretenimento que o Bispo de

Hipona se refere para criticar o apego do seu aluno Aliacutepio aos espectaacuteculos759

A

descriccedilatildeo que faz da reacccedilatildeo de Aliacutepio ao clamor do puacuteblico e agrave visatildeo do sangue do

gladiador demonstra como a sua criacutetica vai precisamente de encontro aos problemas

apontados para o teatro claacutessico Na leitura de Santo Agostinho ambos satildeo exemplo da

perversatildeo da amizade que natildeo daacute lugar a uma real comunidade mas a uma resposta

egoiacutesta por parte do espectador Corrompendo a piedade transforma-a em crueldade

evidenciando precisamente o processo inverso agravequele que Cristo empreende ao sofrer e

morrer pela humanidade Se os espectadores dos espectaacuteculos teatrais granjeiam a

curisosidade (curisositas) Cristo pelo inveacutes fomenta a caridade (caritas) A

incapacidade de Aliacutepio se abstrair de todo o contexto conforme inicialmente era a sua

vontade revela ainda como este tipo de espectaacuteculos desvia a alma da sua interioridade

Quando se refere agrave danccedila Santo Agostinho tem em mente os histriotildees Segundo

Tito Liacutevio estas figuras ligadas ao entretenimento teratildeo nascido a partir de uma

variaccedilatildeo das danccedilas etruscas imitadas pelos jovens que lhes foram integrando ditos

burlescos e modificando os movimentos que eram acompanhados pelo som de uma

flauta Uma segunda variaccedilatildeo de tais danccedilas aproximou-as mais daquilo que hoje satildeo

os espectaacuteculos de bailado e muacutesica jaacute que os histriotildees foram abandonando os ditos

jocosos e rudes que iam improvisando agrave desgarrada para encenarem saacutetiras plenas de

melodia com um canto entoado de acordo com as modulaccedilotildees da flauta e com gestos

ordenados que tambeacutem seguiam tal medida760

759

Cf Conf VI 8 13

760 Tito Liacutevio Ab Urbe Condita VII 2 Segundo este autor a proacutepria origem do teatro remonta agrave figura dos

histriotildees que foram delegando o canto para outras pessoas ndash que mais tarde viriam a constituir o coro ndash e

que ao adequarem as suas danccedilas a intrigas cada vez mais complexas comeccedilaram a integrar diaacutelogos nas

suas actuaccedilotildees

260

O Bispo de Hipona condena os histriotildees com base nos seus cantos e posturas

obscenas761

chega inclusivamente a equiparaacute-los agraves meretrizes afirmando que estes

dois grupos de pessoas bem como todos aqueles que tambeacutem professam publicamente o

deboche (turpitudo) natildeo satildeo dignos de aceder aos sacramentos cristatildeos a menos que se

libertem de todo e qualquer viacutenculo com tais actividades762

Apesar de conseguirem

cativar o ouvido da audiecircncia com os seus cantos os histriotildees satildeo incapazes de

conhecer os segredos da muacutesica Logo no primeiro livro de De musica Santo Agostinho

demonstra como o facto de terem em vista a recompensa monetaacuteria no final das suas

actuaccedilotildees prova que os histriotildees natildeo tecircm conhecimento da arte que apenas mimetizam

Os histriotildees valorizam mais as gratificaccedilotildees que recebem pelo seu desempenho do que a

arte que estaacute por traacutes dele pelo que soacute pode concluir-se que desconhecem tal arte

Aquele que toma por inferior uma coisa superior natildeo pode dela ter scientia763

Tanto nos cantos como nos movimentos dos histriotildees haacute vulgariadades (vilia) que

natildeo poderatildeo considerar-se modulationes sem rebaixar a muacutesica que eacute uma arte quase

divina764

O domiacutenio que o histriatildeo tem da muacutesica eacute semelhante ao do rouxinol que apesar

de modular bem o seu trinado desconhece os nuacutemeros que estatildeo na base das harmonias e

dos intervalos entre os sons graves e os agudos765

A muacutesica que ocorra por instinto ou

imitaccedilatildeo natildeo merece tal nome de acordo com a perspectiva agostiniana Sem intervenccedilatildeo

iluminada da razatildeo natildeo haacute portanto arte Muitos satildeo aqueles que natildeo percebem a regra

(approbandi modus) que lhes permite criar obras belas apesar de recorrerem quase

instintivamente agrave sua luz invisiacutevel para fabricar as belezas exteriores que deleitam766

761

Cf De civ Dei II 6

762 Cf De fide et op 18 33

763 Cf De mus I 6 11-12

764 Cf De mus I 2 3

765 cf De mus I 4 5

766 Conf X 34 53 laquoQuam innumerabilia variis artibus et opificiis in vestibus calceamentis vasis et

cuiuscemodi fabricationibus picturis etiam diversisque figmentis atque his usum necessarium atque

moderatum et piam significationem longe transgredientibus addiderunt homines ad illecebras oculorum

foras sequentes quod faciunt intus relinquentes a quo facti sunt et exterminantes quod facti sunt At ego

Deus meus et decus meum etiam hinc tibi dico hymnum et sacrifico laudem sanctificatori meo quoniam

pulchra traiecta per animas in manus artificiosas ab illa pulchritudine veniunt quae super animas est cui

suspirat anima mea die ac nocte Sed pulchritudinum exteriorum operatores et sectatores inde trahunt

approbandi modum non autem inde trahunt utendi modum Et ibi est et non vident eum ut non eant

longius et fortitudinem suam ad te custodiant nec eam spargant in deliciosas lassitudinesraquo

261

Apesar de serem vaacuterias as passagens sobre as artes que podemos encontrar nas

obras de Santo Agostinho natildeo cremos poreacutem que haja mateacuteria suficiente para reconhecer

uma filosofia da arte no seu pensamento esteacutetico Para que tal ocorresse seria necessaacuterio

encontrarmos uma reflexatildeo mais autoacutenoma e mais centrada na natureza dos objectos

artiacutesticos que nem mesmo no caso da muacutesica se verifica Como ciecircncia ou disciplina as

consideraccedilotildees tecidas acerca da muacutesica satildeo sobretudo respeitantes ao modo como a razatildeo

lida com as harmonias e como o seu conhecimento lhe permite progredir atraveacutes delas

incidindo mais na natureza ordenada do cosmo do que na muacutesica como objecto artiacutestico

Mais do que uma filosofia da arte haacute um percurso que vai da epistemologia

fenomenoloacutegica ateacute agrave metafiacutesica e que estaacute eivado de consideraccedilotildees sobre a beleza Haacute

sem sombra de duacutevidas uma teoria do belo fundada no conceito de numerus A temaacutetica

da beleza eacute de forccedila maior na esteacutetica agostinina mas natildeo se reveste de importacircncia

fulcral no que toca agrave atenccedilatildeo parcimoniosa que o Bispo de Hipona dedica aos objectos

artiacutesticos e natildeo chega para definir uma filosofia da arte

263

2 Um sistema esteacutetico agostiniano

21 - Por que razatildeo se deve falar sem medo numa esteacutetica agostiniana

Natildeo cremos que as consideraccedilotildees tecidas por Santo Agostinho a propoacutesito das

artes sejam suficientes para definir um nuacutecleo de abordagem proacuteprio da filosofia da arte

como hoje a entendemos mas enfatizamos a importacircncia da teoria do belo ao longo de

todo o seu pensamento filosoacutefico Ainda que nos nossos dias a teoria do belo natildeo

assuma no seio da filosofia da arte a relevacircncia de outrora ela manteacutem-se parcialmente

como um dos seus subnuacutecleos constituintes e nesse acircmbito poderaacute ateacute reconhecer-se

uma entrada parcimoniosa de Santo Agostinho em tal domiacutenio767

Ainda assim seria um

erro considerar que a beleza perspectivada pelo Bispo de Hipona relativamente agraves obras

humanas as faz coincidir directamente com os objectos que tomamos por artiacutesticos em

pleno seacuteculo XXI

Haacute ainda a ter em conta que a teoria do belo natildeo estaacute totalmente confinada agrave

alccedilada da filosofia da arte Na verdade haacute uma interpenetraccedilatildeo de esferas ou

sobreposiccedilatildeo parcial destes domiacutenios que faz com que ambas partilhem um nuacutecleo

comum natildeo obstante fora de tal nuacutecleo tanto o belo como a arte seguem os seus

proacuteprios caminhos com total independecircncia um do outro

Natildeo eacute por deixar de contemplar uma filosofia da arte que se deixa de poder

reconhecer no pensamento agostiniano uma forte dimensatildeo esteacutetica Por outro lado

mesmo anuindo quanto agrave importacircncia que a teoria do belo assume na reflexatildeo do Bispo

de Hipona tambeacutem natildeo consideramos que ela seja indispensaacutevel para podermos falar de

uma esteacutetica agostiniana A abrangecircncia da dimensatildeo esteacutetica eacute mais lata do que o

acircmbito da teoria do belo e da filosofia da arte nela subsumidas

Para Santo Agostinho as obras satildeo belas porque satildeo bem feitas porque revelam

mestria na teacutecnica porque as suas partes se conjugam convenientemente e porque satildeo

767

Ao escrevermos ldquoteoria do belordquo e ldquofilosofia da arterdquo estamos meramente a usar expressotildees com base

na sua utilizaccedilatildeo mais comum a este niacutevel natildeo fazemos qualquer distinccedilatildeo entre ldquofilosofiardquo e ldquoteoriardquo

pelo que teria sido equivalente usarmos expressotildees como ldquoteoria da arterdquo e ldquofilosofia do belordquo

264

adequadas na sua utilidade material conceptual e moral mas sobretudo satildeo belas por

participarem atraveacutes dos numeri na natureza divina A categoria do belo no

pensamento agostiniano desvia por um lado a atenccedilatildeo da obra para o Criador mas por

outro lado natildeo o faz sem antes abrir a porta para uma dimensatildeo mais vasta que eacute a da

esteacutetica propriamente dita ndash a esteacutetica no seu sentido mais lato Essa abertura propiciada

pela beleza conforme Santo Agostinho a perspectiva baseia-se no facto de esta

categoria natildeo estar limitada a cacircnones formais e de implicar uma noccedilatildeo de ordem que

escapa tambeacutem ela a uma loacutegica matemaacutetica ndash natildeo esqueccedilamos que se trata sobretudo

de um ordo amoris ndash a dimensatildeo afectiva nela impliacutecita canaliza o belo para uma eacutetica

englobante e anuncia outras dimensotildees onde tal categoria natildeo marca presenccedila directa

O belo natildeo estaacute necessariamente presente quando entram em cena as

consideraccedilotildees acerca da sensaccedilatildeo acerca do modo como eacute feita a valoraccedilatildeo das

impressotildees sensiacuteveis acerca do funcionamento mnemoacutenico da imaginaccedilatildeo ou dos

mecanismos remissivos das imagens Tambeacutem natildeo tem papel particularmente relevante

no modo significativo e expressivo como certos aspectos do quotidiano deixam marca

no sujeito Os proacuteprios relatos com que Santo Agostinho nos presenteia em

Confessionum ora mesclados de uma aura melancoacutelica ora de vibrante paixatildeo

convidam como que a um mergulho em dimensotildees subjectivas onde a voz do autor

deixa espaccedilo de encaixe agrave personalidade do seu leitor e que apesar de natildeo explorar

filosoficamente o funcionamento de tais relatos tecircm pelo seu estro uma presenccedila muito

importante e significativa na obra agostiniana O mecanismo de projecccedilatildeo que decorre

de certas descriccedilotildees revela-se quase ao jeito de uma madalena proustiana Haacute algo mais

do que uma liccedilatildeo de moral no relato do roubo das peras por exemplo A forma como

essa descriccedilatildeo convoca impressotildees e lembranccedilas associadas a sentimentos ambiacuteguos de

culpa e inocecircncia fazendo com que o leitor partilhe efectivamente do estado

confessional e da catarse do autor obedece a um mecanismo expressivo de sugestatildeo

que eacute do acircmbito da esteacutetica Poderia aqui ser considerada mais uma entrada indirecta

no domiacutenio da filosofia da arte todavia Santo Agostinho natildeo demonstra qualquer

interesse em explorar tal via filosoficamente ndash ainda que sem essa intenccedilatildeo a sua

entrada eacute na produccedilatildeo da arte propriamente dita como literato que faz uso de uma

expressividade requintada e quase dramaacutetica natildeo eacute de todo uma entrada na teorizaccedilatildeo

de tal estrateacutegia expressiva

A esteacutetica contempla todas as dimensotildees que a mera teoria do belo deixa de fora

ultrapassando-a sem deixar de a integrar A sua abordagem mais transversal permite

265

reduzir a preeminecircncia da beleza o que aliado agrave demarcaccedilatildeo relativamente agrave filosofia

da arte lhe consente uma liberdade pouco usual nos outros modos de ver o mundo Tal

como a podemos reconhecer no pensamento agostiniano a esteacutetica natildeo eacute meramente

teoloacutegica ainda que esse seja o seu cariz dominante Ela manifesta a profundidade da

experiecircncia humana no mundo ao mesmo tempo que a reporta agrave vocaccedilatildeo religiosa do

encontro com Deus Mesmo estando o seu horizonte uacuteltimo sempre na divindade o

homem eacute considerado na sua dimensatildeo sensiacutevel como sendo esta a que mais

especificamente o define

Eacute bastante curioso perceber que para Santo Agostinho nem mesmo no corpo

celestial os sentidos exteriores satildeo descartados O seu funcionamento eacute idecircntico ao que

ocorria no corpo terreno com a particularidade de os sentidos natildeo serem jaacute necessaacuterios

A alma do homem ressurrecto contempla Deus e relaciona-se com as demais almas e

com o que a rodeia atraveacutes de uma clarissima perspicuitas768

os sentidos satildeo totalmente

supeacuterfluos e no entanto permanecem activos como se o homem pudesse escolher fazer

uso deles pelo mero prazer que essa sensibilidade lhe pode conferir Natildeo haacute outra

explicaccedilatildeo para o papel activo dos sentidos corpoacutereos na esfera celestial

Na sua existecircncia terrena o homem precisava da sensibilidade para se relacionar

com as coisas como se tal imposiccedilatildeo tivesse resultado de um castigo decorrente da

expulsatildeo do Paraiacuteso Nessa condiccedilatildeo mortal os sentidos exteriores eram o interface

entre a alma e o mundo ao mesmo tempo que permitiam a vivecircncia normal do homem

tambeacutem limitavam de certo modo a sua alma pois faziam da experiecircncia terrena uma

experiecircncia indirecta e sujeita ao erro Na existecircncia superior a alma como que eacute tocada

directamente pelas realidades aiacute existentes e a possibilidade de fazer uso dos sentidos

externos como a visatildeo ou a audiccedilatildeo parece ser agora uma recompensa extra do seu

estado contemplativo O proacuteprio facto de haver uma dimensatildeo paradisiacuteaca que se presta

agraves sensaccedilotildees concorre como prova disso

O homem vivia entatildeo em conformidade com Deus no paraiacuteso corporal e

espiritual Natildeo havia com efeito um paraiacuteso corporal especiacutefico para os bens

do corpo e um paraiacuteso espiritual para os bens do espiacuterito do mesmo modo

um paraiacuteso espiritual para que o homem pudesse fruir atraveacutes da faculdade

interior natildeo poderia existir sem um paraiacuteso corporal para que desfrutasse

768

Cf De civ Dei XX 29

266

atraveacutes dos sentidos exteriores Havia claramente um paraiacuteso dual para o

bem de ambos769

Apesar de Santo Agostinho soacute se referir explicitamente agrave dualidade paradisiacuteaca

em relaccedilatildeo agrave vivecircncia de Adatildeo e de Eva antes do pecado original natildeo haacute razatildeo para

deixar de a considerar relativamente agrave vivecircncia do homem ressurrecto afinal de

contas eacute certo que esta nova vivecircncia eacute bastante mais rica do que qualquer outra e que

a total conformidade do corpo celestial agrave alma permite que o homem se possa

relacionar com todo o tipo de realidades deleitaacuteveis sem que a sua alma seja

acometida por qualquer perturbaccedilatildeo

Natildeo haacute outra finalidade para o aparente contra-senso que satildeo as realidades

sensiacuteveis celestiais do que o puro prazer Natildeo haacute nenhum estaacutedio mais elevado que o

homem possa alcanccedilar pelo que tambeacutem natildeo haacute mais nenhum aperfeiccediloamento ou

aprendizagem a que a alma possa aspirar Se na existecircncia terrena a relaccedilatildeo com os

sensibilia deveria estar sempre vinculada a uma finalidade condenando a sua fruiccedilatildeo e

enfatizando o seu caraacutecter utilitaacuterio jaacute na experiecircncia contemplativa do homem

ressurrecto as realidades que se prestam aos sentidos podem ser licitamente fruiacutedas O

prazer desinteressado isto eacute o prazer pelo prazer parece assim constituir-se como uma

das caracteriacutesticas da vida eterna Talvez seja ele que impeccedila que a contemplaccedilatildeo da

eternidade natildeo seja um lago estagnado afinal de contas tal como nota Peter Brown o

Bispo de Hipona jaacute havia perspectivado o prazer como o uacutenico motor da acccedilatildeo770

Claro

que a acccedilatildeo tinha por meta a contemplaccedilatildeo alcanccedilando-a ela eacute transformada em

relaccedilatildeo pura Contrariamente a Plotino que perspectivava para a alma uma eternidade

em total identificaccedilatildeo com a sua origem uacuteltima Santo Agostinho defende que o homem

ressurrecto manteacutem todos os traccedilos da sua individualidade inclusivamente os

fisionoacutemicos mas numa versatildeo aperfeiccediloada Essa manutenccedilatildeo da identidade no plano

divino natildeo sendo de todo impeditiva da quietude enquanto serenidade eacute oposta ao

cessar o homem natildeo deixa de sentir e natildeo deixa de se relacionar

769

De civ Dei XIV 11 (CCL 48 p 433) laquoVivebat itaque homo secundum Deum in paradiso et corporali

et spiritali Neque enim erat paradisus corporalis propter corporis bona et propter mentis non erat

spiritalis aut vero erat spiritalis quo per interiores et non erat corporalis quo per exteriores sensus homo

frueretur Erat plane utrumque propter utrumqueraquo

770 Cf Peter Brown Augustine of Hippo A Biography A New Edition with an Epilogue Berkeley and L

A University of California Press 2000 p 148

267

Se pudeacutessemos resumir o pensamento agostiniano a um uacutenico toacutepico diriacuteamos

que ele tematiza a incessante busca da felicidade humana Mas que felicidade humana eacute

esta que soacute se alcanccedila com a imortalidade Natildeo seraacute ela um estado fundamentalmente

esteacutetico cujas vias de acesso jaacute por si mobilizam dimensotildees e categorias esteacuteticas A

compreensatildeo das coisas para laacute da sua experiecircncia fenomeacutenica para laacute da proacutepria

sensiecircncia ultrapassa os limites da subjectividade para alcanccedilar o domiacutenio da verdade

comum partilhaacutevel permitindo portanto a relaccedilatildeo ao mais alto niacutevel da sua

possibilidade A base ontoloacutegica para a relaccedilatildeo durante a experiecircncia terrena eacute o

nuacutemero mas se sensivelmente ele era traduzido pela multiplicidade jaacute pela beatitudo

o homem acede agrave sua irredutiacutevel unidade e ao modo de relaccedilatildeo puramente qualitativo O

aspecto universal daquilo que funda os diferentes modos dos seres humanos

experienciarem sensivelmente o que os rodeia eacute precisamente o que estaacute em causa na

contemplaccedilatildeo da realidade divina

O Deus cristatildeo que o homem ressurrecto contempla e que eacute summus

numerus ou medida qualitativa de tudo o que existe pode ser perspectivado como

um super-quale transcendental Se os numeri funcionavam como disposiccedilotildees

relacionais pelas quais as formas corpoacutereas remetiam qualitativamente (atraveacutes da sua

beleza) para o plano inteligiacutevel entatildeo a contemplaccedilatildeo do nuacutemero supremo seraacute jaacute a

consciecircncia englobante do funcionamento de tais qualia fazendo equivaler o alcance da

sabedoria agrave estese plena do carmen universitatis Natildeo significa isto que Deus seja

percebido como qualidade (qualitas) mas como consciecircncia qualitativa coacutesmica e

simultaneamente como substacircncia espiritual exterior determinante causal dessa

consciecircncia qualitativa Por um lado Ele constitui-se como disposiccedilatildeo relacional

exterior ao sujeito e por outro lado como conteuacutedo mental de um estado perceptivo

directamente equivalente agrave consciecircncia de tal disposiccedilatildeo A contemplaccedilatildeo divina

articula em simultacircneo uma interioridade pela qual Deus faz presente no homem e uma

exterioridade que permite ao homem tornar-se presente em Deus mantendo a sua

identidade sem cair na indiferenciaccedilatildeo que por exemplo Plotino advogava como

caracteriacutestica do regresso ao Uno Sem esta dimensatildeo exterior o homem transformar-

se-ia na divindade coisa que jamais ocorre relativamente ao Deus cristatildeo

268

O homem no seio da esfera divina percebe Deus dentro si em sintonia perfeita

com Deus exterior como uma extimidade771

Quando Plotino dizia que a alma tinha de

ser bela para poder contemplar a beleza natildeo estava longe desta perspectiva que natildeo

podendo transformar o homem em Deus aposta na reformaccedilatildeo da imagem de Deus no

homem a um grau de semelhanccedila que raia a igualdade e que culmina com um estado

qualitativo de identificaccedilatildeo entre a consciecircncia de tal estado e a sua causa O sujeito natildeo

passa a coincidir com Deus mas a consciecircncia que tem da sua relaccedilatildeo com a divindade

passa a fazer equivaler as qualidades percebidas com a substacircncia Mais do que uma

percepccedilatildeo directa de atributos divinos a beatitude eacute a divinizaccedilatildeo do prazer pela

reconduccedilatildeo da experiecircncia do nuacutemero agrave sua substancialidade pura Ainda assim natildeo

seria correcto concluir que Santo Agostinho perspectiva um hedonismo escatoloacutegico

pois a beatitude eacute pressuposta como uma recompensa ela eacute o resultado do

posicionamento virtuoso do homem que na vida terrena sempre instrumentalizava o

prazer em prol da elevaccedilatildeo da sua alma ateacute Deus Alcanccedilado tal ideal o prazer deixa de

ter outra finalidade para laacute de si mesmo todavia ele eacute experienciado como um resultado

do amor a Deus e soacute nesse sentido eacute que eacute um bem supremo A beatitude agostiniana

corresponde portanto a um eudemonismo e natildeo a um hedonismo pois natildeo faz do prazer

o objecto da existecircncia nem pressupotildee a anteposiccedilatildeo do prazer ao amor a Deus772

Na esfera sensiacutevel a causa do prazer eacute o nuacutemero que conforme vimos actua

como um iacutendice relacional773

nessa esfera portanto os numeri funcionam para o sujeito

como qualia dimanados do sumo nuacutemero tambeacutem eles satildeo uma consciecircncia da

experiecircncia das propriedades qualitativas fisicamente existentes nos objectos Ao niacutevel

da ontologia dos qualia Santo Agostinho poderia agrave primeira vista considerar-se um

771

Ateacute porque a distinccedilatildeo entre interioridade e exterioridade deixa de fazer sentido O conceito de

extimidade eacute aqui retomado de Lacan que o define como sendo aquilo que nos eacute mais proacuteximo e iacutentimo

estando no exterior uma exterioridade iacutentima O ecircxtimo eacute o ponto onde a mais iacutentima interioridade

coincide com o exterior natildeo sendo descabida a analogia com a formulaccedilatildeo agostiniana presente em Conf

III 6 11 (CCL 27 p 33) Tu autem eras interior intimo meo et superior summo meo Cf Jacques Lacan

Seacuteminaire XVI Paris Seuil 2006 p 249 Idem Le Seacuteminaire VII LlsquoEthique de la Psychanalyse Paris

Editions du Seuil 1960 p 167

772 Daiacute que a felicidade eterna seja ldquotrabalhosa na caminhada e exija canseirasrdquo conforme constata Maria

Manuela Brito Martins em ldquoDeus como beatitude e outras felicidadesrdquo in Actas do coloacutequio Santo

Agostinho ndash O Homem Deus e a Cidade Leiria Centro de Formacatildeo e Cultura 2004 p 193 Neste texto

eacute ainda relembrado como o proacuteprio Santo Agostinho em De civ Dei IX 11-12 alude agrave origem filosoacutefica

grega do termo beatos designando-o por εὐδαίμονες Cf id op cit p 181

773 Vide p 160 do presente ensaio

269

objectivista774

tal como parece indiciar a consideraccedilatildeo acerca das propriedades

secundaacuterias presente na seguinte passagem de De Trinitate

Tal como somos persuadidos se pudermos ver na medida do

possiacutevel que estas coisas [o amor e o conhecimento] existem na alma que

elas aiacute estatildeo de modo impliacutecito e se desenvolvem de maneira a serem

sentidas e especificadas como pertencendo agrave substacircncia ou por assim dizer

agrave sua essecircncia natildeo como existindo num objecto a cor ou a figura num corpo

ou outra qualidade ou quantidade Pois tudo o que assim eacute natildeo ultrapassa o

objecto no qual eacute Com efeito esta cor ou a forma deste corpo natildeo podem ser

tambeacutem as de um outro corpo Mas a mente pode amar qualquer outra coisa

para laacute de si com o mesmo amor pelo qual se ama Aleacutem disso a mente natildeo

soacute se conhece a si mesma como tambeacutem conhece muitas outras coisas

Assim o amor e o conhecimento natildeo estatildeo na mente como num objecto mas

existem de modo substancial como a proacutepria mente pois mesmo que os

digamos mutuamente relativos eles ainda assim existem singularmente na

sua proacutepria substacircncia A sua relaccedilatildeo natildeo eacute como aquela que existe entre a

cor e o objecto colorido estando a cor no objecto colorido natildeo tendo em si

mesma nenhuma substacircncia proacutepria jaacute que o corpo colorido eacute uma

substacircncia ao passo que a cor eacute na substacircncia pelo contraacuterio [esta relaccedilatildeo

eacute] como a que existe entre dois amigos que tambeacutem satildeo dois homens e por

conseguinte [duas] substacircncias como homens natildeo satildeo ditos em termos

relativos poreacutem como amigos jaacute o satildeo775

774

Usamos a terminologia proposta por Gary Hatfield acerca dos trecircs modos possiacuteveis de considerar um

quale o modo objectivista defende que o quale eacute uma propriedade fiacutesica dos objectos independente da

mente o modo subjectivista defende que os qualia satildeo estados internos do sujeito que percebe o modo

disposicionista considera que os qualia satildeo definidos pela sua experiecircncia perceptiva ainda que existam

como propriedade dos objectos em virtude da relaccedilatildeo entre estes uacuteltimos e a experiecircncia qualitativa que

produzem Nesta perspectiva um quale como propriedade dos objectos eacute uma disposiccedilatildeo relacional Eacute

uma propriedade dos objectos que causa experiecircncias de caraacutecter fenomenal nos sujeitos Cf Gary

Hatfield laquoThe reality of qualiaraquo in Erkenntnis 66 2007 pp 133-168

775 De Trin IX 4 5 (CCL 50 p297) laquoSimul etiam admonemur si utcumque videre possumus haec in

anima exsistere et tamquam involuta evolvi ut sentiantur et dinumerentur substantialiter vel ut ita

dicam essentialiter non tamquam in subiecto ut color aut figura in corpore aut ulla alia qualitas aut

quantitas Quidquid enim tale est non excedit subiectum in quo est Non enim color iste aut figura huius

corporis potest esse et alterius corporis Mens autem amore quo se amat potest amare et aliud praeter se

Item non se solam cognoscit mens sed et alia multa Quamobrem non amor et cognitio tamquam in

subiecto insunt menti sed substantialiter etiam ista sunt sicut ipsa mens quia et si relative dicuntur ad

invicem in sua tamen sunt singula quaeque substantia Non sicut color et coloratum relative ita dicuntur

ad invicem ut color in subiecto colorato sit non habens in se ipso propriam substantiam quoniam

coloratum corpus substantia est ille autem in substantia sed sicut duo amici etiam duo sunt homines

quae sunt substantiae cum homines non relative dicantur amici autem relativeraquo

270

Natildeo haacute duacutevida de que as propriedades secundaacuterias dos objectos tecircm para Santo

Agostinho uma existecircncia material concreta todavia haacute que considerar o facto de que

essas propriedades fiacutesicas traduzem uma ordenaccedilatildeo pelo nuacutemero que a mente reconhece

se atender agrave consciecircncia da proacutepria estesia ou seja a partir de uma espeacutecie de sensaccedilatildeo

da sensaccedilatildeo e natildeo imediatamente ao niacutevel da percepccedilatildeo sensiacutevel como a perspectiva

objectivista pressuporia Esta sensaccedilatildeo da sensaccedilatildeo estaacute entre as sensaccedilotildees primaacuterias e

as sensaccedilotildees secundaacuterias776

jaacute natildeo depende apenas da consciecircncia da alma em relaccedilatildeo agrave

afecccedilatildeo do corpo nem da acccedilatildeo do sentido interior mas eacute ainda preacutevia a qualquer juiacutezo

esteacutetico apesar de ser jaacute de ordem racional Tal reconhecimento numeacuterico que eacute sempre

qualitativo e que alicerccedila a possibilidade de uma relaccedilatildeo com o real para laacute da proacutepria

subjectividade (sendo tambeacutem esta uma forma de transcendecircncia) evidencia um

posicionamento mais afim da perspectiva disposicionista do que da perspectiva

objectivista

Eacute a experiecircncia qualitativa do real nas suas muacuteltiplas dimensotildees que funda

quaisquer consideraccedilotildees esteacuteticas e determina a abrangecircncia ilimitada do domiacutenio

esteacutetico O caraacutecter esparso e transversal que assume tal dimensatildeo filosoacutefica nas obras

de Santo Agostinho ndash tal como nas dos demais autores medievos e claacutessicos ndash soacute vem

reiterar a amplitude desta mundivisatildeo que viria a tornar-se uma aacuterea disciplinar apenas

no seacuteculo XVIII Apesar de ser tatildeo tardia tal atenccedilatildeo que autonomizou este ramo

filosoacutefico natildeo parece correcto situar o Bispo de Hipona numa espeacutecie de preacute-histoacuteria da

esteacutetica pois se nos debruccedilarmos atentamente sobre este acircmbito da sua filosofia

poderemos facilmente concluir que nele se abordam muitas das questotildees sobre as quais

a esteacutetica contemporacircnea voltou a dirigir o seu foco Na verdade parece haver uma

maior proximidade entre a esteacutetica agostiniana e a esteacutetica contemporacircnea do que entre

esta uacuteltima e aquela que se praticou durante o periacuteodo imediatamente sequente agrave sua

instauraccedilatildeo disciplinar ateacute agrave primeira metade do seacuteculo XX

Natildeo haacute qualquer heresia na consideraccedilatildeo de que existe uma esteacutetica

propriamente dita na obra de autores que precederam a linhagem inaugurada por

Baumgarten nem tatildeo pouco nos esforccedilos de fazer uma leitura contemporacircnea dos seus

pressupostos mesmo que por vezes se arrisque incorrer em sobreinterpretaccedilotildees As

abordagens historicistas que se limitam a considerar os textos medievos e antigos agrave luz

daquilo que se supotildee ser o sistema conceptual do seu tempo pecam por limitar as

776

Vide subcapiacutetulo I41

271

valecircncias de tais textos a um quadro de interpretaccedilatildeo demasiado restrito e nem por isso

mais seguro quanto agrave legitimidade das suas conclusotildees acerca dos sentidos de que esses

textos ou os seus conceitos se revestiriam na eacutepoca que os viu nascer

Se as obras seculares chegam ateacute aos nossos dias eacute porque elas permanecem

significantes para noacutes por isso mesmo seria insensato descartarmos os nossos proacuteprios

quadros categoriais na sua consideraccedilatildeo Claro que eacute indispensaacutevel situar o texto no seu

tempo atendendo agraves fontes agrave natureza dos debates coevos e agraves especificidades do

contexto histoacuterico mas as leituras que podemos fazer deste tipo de textos mais os honra

e enriquece se for capaz de actualizar os seus sentidos e para tal basta natildeo esquecer

artificialmente o tempo em que tal hermenecircutica se situa e os leitores que visa Natildeo haacute

como ultrapassar o hiato entre a eacutepoca em que os textos agostinianos foram escritos e o

seacuteculo XXI A compreensatildeo de tal obstaacuteculo e a assunccedilatildeo da nossa proacutepria baliza

temporal eacute a forma mais honesta de propor uma leitura dos seus textos que em todo o

caso natildeo seria nunca uma leitura alheia agrave natureza das obras agostinianas porque elas

fazem parte inalienaacutevel de um cacircnone conceptual basilar onde estatildeo filiados os nossos

modos de ver o mundo e os quadros categoriais de que hoje nos servimos satildeo herdeiros

desse passado sobre o qual nos debruccedilamos Apesar do hiato que a distacircncia de

dezasseis seacuteculos impotildee natildeo deixa de haver uma certa continuidade entre o objecto do

nosso lance hermenecircutico e os moldes em que tal lance eacute feito777

Ao afirmarmos a proximidade da esteacutetica agostiniana em relaccedilatildeo agrave esteacutetica

contemporacircnea estamos sobretudo a basear-nos no facto de as consideraccedilotildees hodiernas

mobilizadas por este ramo disciplinar estarem indubitavelmente a encaminhar-se para o

alargamento do seu campo de estudo e para a transversalidade da sua abordagem

Quando foi cunhada como tal a esteacutetica precisou de apoiar-se na delimitaccedilatildeo

consensual do acircmbito e dos objectos de estudo de modo a salvaguardar o seu estatuto

disciplinar e a sua autonomia relativamente aos demais ramos filosoacuteficos Agrave luz dessa

tendecircncia inicial de constriccedilatildeo e de sistematizaccedilatildeo o pensamento de Santo Agostinho

teria certamente um lugar bastante limitado e perifeacuterico na aacuterea da esteacutetica Hoje em dia

poreacutem a esteacutetica segue um movimento oposto expandindo-se e promovendo

abordagens interdisciplinares que paralelizam com a transversalidade da esteacutetica

777

Esta eacute aliaacutes a posiccedilatildeo que Gadamer subscreve em Verdade e Meacutetodo a propoacutesito do entendimento de

qualquer obra do passado Cf Hans-Georg Gadamer Verdade e meacutetodo traccedilos fundamentais de uma

hermenecircutica filosoacutefica Flaacutevio Paulo Meurer (trad) 3ordf ed Petroacutepolis Ed Vozes 1999 passim mas

sobretudo p 436

272

medieva e antiga A inexistecircncia da designaccedilatildeo aglutinadora natildeo significa a

inexistecircncia do universo que ficaraacute sob sua alccedilada pelo que natildeo faz sentido considerar

que soacute a partir do seacuteculo XVIII eacute que haacute a possibilidade de encontrarmos filoacutesofos que

se tenham dedicado agrave esteacutetica A auto-referencialidade natildeo eacute um preacute-requisito

impreteriacutevel da disciplina ainda que presentemente sobressaia a tendecircncia de reflectir

acerca da proacutepria dinacircmica da esteacutetica enquanto aacuterea disciplinar ateacute para questionar a jaacute

referida contenccedilatildeo das suas valecircncias e fronteiras imposta a partir do periacuteodo iluminista

Eacute possiacutevel encontrar na esteacutetica agostiniana o mesmo nuacutecleo de questotildees acerca

do funcionamento mental da sensaccedilatildeo e das estesias a que os mais recentes estudos em

esteacutetica neuroloacutegica ou neuroesteacutetica778

ainda aspiram responder Tal como Santo

Agostinho avanccedilou a este niacutevel com propostas coerentes com os conhecimentos

cientiacuteficos da sua eacutepoca tambeacutem os neurologistas psicoacutelogos e filoacutesofos

contemporacircneos tecircm apresentado teorias acerca dos mecanismos fisioloacutegicos e

psicoloacutegicos implicados nas experiecircncias esteacuteticas Eacute extraordinaacuteria a proximidade que

a abordagem sobre os mecanismos da sensaccedilatildeo desenvolvida por Santo Agostinho em

De libero arbitrio manteacutem por exemplo com a descriccedilatildeo dos diversos patamares da

consciecircncia apresentada por Antoacutenio Damaacutesio em O livro da consciecircncia779

Parece

inclusivamente haver uma correspondecircncia entre o sentido interior agostiniano e o

conceito de sentimento primordial tal como Damaacutesio o descreve

Conforme demonstraacutemos no subcapiacutetulo 13 da primeira parte deste ensaio

encontramos nos escritos agostinianos elementos pertinentes para o nuacutecleo que hoje

constitui a esteacutetica somaacutetica780

encontramos um vasto conjunto de consideraccedilotildees do

acircmbito da semiologia781

consideraccedilotildees acerca do funcionamento das imagens

metafoacutericas acerca do processo diferenciado da valoraccedilatildeo das sensaccedilotildees e dos objectos

778

Embora em portuguecircs a designaccedilatildeo natildeo seja ainda familiar a esteacutetica neuroloacutegica (neuroaesthetics ou

neuroesthetics) tem vindo a ganhar bastante importacircncia na abordagem empiacuterica da esteacutetica que envolve

testes e experiecircncias efectuados atraveacutes da tecnologia imageacutetica da ressonacircncia magneacutetica levados a cabo

por neurocientistas e obviamente natildeo descarta a traduccedilatildeo conceptual das suas descobertas por parte dos

filoacutesofos O trabalho colaborativo entre investigadores de aacutereas cientiacuteficas e humanas tem sido

implementado em vaacuterios centros de pesquisa universitaacuterios Patricia Churchland foi uma das pioneiras da

neurofilosofia em relaccedilatildeo agrave qual a neuroesteacutetica se constitui como um dos mais recentes subnuacutecleos

779 Cf Antoacutenio Damaacutesio O livro da consciecircncia A construccedilatildeo do ceacuterebro consciente Lisboa Ciacuterculo de

Leitores 2010

780 Vide p 70

781 Sobretudo em De Mag e em De doct christ Acerca deste assunto vide subcapiacutetulo I43

273

que predispotildeem o sujeito a essas sensaccedilotildees Todas estas satildeo temaacuteticas que mobilizam

diversas aacutereas da esteacutetica contemporacircnea e cujo salutar natildeo confinamento ao proacuteprio ramo

filosoacutefico comeccedila a ser assumido sem preconceitos atraveacutes de estudos interdisciplinares

22 - Sistematicidade e esteacutetica agostiniana

Assim como natildeo haacute uma filosofia da arte no pensamento agostiniano tambeacutem

natildeo eacute possiacutevel encontrarmos um sistema esteacutetico propriamente dito Obviamente tal

natildeo pressupotildee a ausecircncia de um pensamento esteacutetico perfeitamente reconheciacutevel nas

obras do filoacutesofo africano significa apenas que esse pensamento natildeo assume a forma

que as disciplinas filosoacuteficas tecircm historicamente reclamado como especificamente

sua a do sistema

Dada a sua natureza e vocaccedilatildeo o presente ensaio natildeo pocircde deixar de estruturar

artificialmente as diversas abordagens com pertinecircncia esteacutetica encontradas nas obras

agostinianas A forma como os conteuacutedos foram agrupados e trabalhados poderaacute

resultar na falsa sensaccedilatildeo de que haacute um pensamento linear acerca desta temaacutetica coisa

que natildeo ocorre nem mesmo em relaccedilatildeo a qualquer outro nuacutecleo filosoacutefico que se

queira estudar a partir de Santo Agostinho

Vaacuterios satildeo os factores que impedem a sistematicidade do pensamento

agostiniano desde logo natildeo podem deixar de assinalar-se as mudanccedilas de

posicionamento intelectual ditadas pelo percurso biograacutefico do autor que por vaacuterias

vezes foi atraiacutedo para o cepticismo acadeacutemico fez uma incursatildeo de mais de nove anos

no maniqueiacutesmo foi influenciado pelo estoicismo e que se converteu ao Cristianismo

sob influecircncia do neoplatonismo O seu percurso biograacutefico bem como a predisposiccedilatildeo

da eacutepoca em que viveu conduziram o seu pensamento a uma siacutentese teoacuterica de

raciociacutenios filosoficamente herdados por vezes com nuacutecleos de abordagem

antagoacutenicos Tambeacutem as especificidades da submissatildeo agrave feacute levaram a determinados

274

posicionamentos contextualmente divergentes que impedem o reconhecimento de um

pensamento sistemaacutetico Como resultado destes factores eacute comum na leitura das obras

agostinianas perceber-se uma ausecircncia de rigor loacutegico uma justaposiccedilatildeo de reflexotildees

variaccedilotildees terminoloacutegicas bem como abordagens onde haacute referecircncia a um fundamento

objectivamente comum que eacute enunciado segundo pontos de vista heterogeacuteneos

Assim no pensamento agostiniano natildeo haacute caminhos de reflexatildeo lineares mas

percursos sinuosos muacuteltiplos e labiriacutenticos

Em muitas situaccedilotildees natildeo eacute sequer correcto falar num jovem Agostinho em

contraposiccedilatildeo ao Agostinho da maturidade pois as alteraccedilotildees de posicionamento natildeo

obedecem a uma diacronia evolutiva Carol Harrison escreveu um ensaio em que

contraria precisamente a tendecircncia dos investigadores agostinianos para considerar

uma inflexatildeo no posicionamento intelectual do filoacutesofo em 396782

por altura em que eacute

nomeado Bispo Harrison defende uma continuidade desde o momento da conversatildeo

de Santo Agostinho ao Cristianismo em 386 ateacute ao final da sua vida Segundo esta

autora o Bispo de Hipona permanece tatildeo neoplatoacutenico quanto o era na juventude e

tudo aquilo que faz de Santo Agostinho um teoacutelogo cristatildeo ortodoxo estaacute jaacute presente

nas primeiras obras (como por exemplo nos diaacutelogos de Cassiciacuteaco em De libero

arbitrio De Magistro De vera religione entre outras)783

Concordamos inteiramente com os argumentos a favor da continuidade e

consideramos que as diferenccedilas de abordagem nas obras de Santo Agostinho satildeo

essencialmente contextuais Nos escritos do filoacutesofo africano tanto eacute possiacutevel

encontrar passagens que exaltam e ilibam o papel dos sentidos corpoacutereos e dos

sensibilia como passagens que contrariam tal visatildeo positiva acerca da dimensatildeo

sensiacutevel Natildeo nos parece todavia que haja qualquer hesitaccedilatildeo por parte do autor tais

diferenccedilas tecircm origem na necessidade de enfatizar determinadas particularidades em

detrimento de outras Por norma a valorizaccedilatildeo do sensiacutevel radica na exaltaccedilatildeo da sua

782

Esta tendecircncia foi iniciada por Peter Brown segundo o qual a obra Ad Simplicianum escrita em 396 marca

uma ruptura no pensamento filosoacutefico de Santo Agostinho Peter Brown Augustine of Hippo A Biography A

New Edition with an Epilogue Berkeley and L A University of California Press 2000 p 490

783 Carol Harrison Rethinking Augustinersquos Early Theology An Argument for Continuity Oxford Oxford

University Press 2006 Na senda do mesmo argumento estaacute Joseacute Rosa que escreve laquo[hellip] em Cassiciacuteaco

estatildeo jaacute esboccedilados os conotrnos fundamentais e as grandes linhas que nortearatildeo o pensamento de

Agostinho O desenvolvimento posterior as inflexotildees e correcccedilotildees e mesmo as autocriacuteticas no que diz

respeito a algumas concessotildees agrave eacutetica estoacuteica e ao neoplatonismo natildeo invalidam o princiacutepio geralraquo Joseacute

Silva Rosa op cit p 23

275

origem ndash sendo obra do Criador ndash e da possibilidade de reconduzir ateacute ela por seu

turno a sua abordagem depreciativa encontra justificaccedilatildeo na necessidade de sublinhar

os efeitos punitivos que acompanharam a queda do Paraiacuteso e as especificidades de

uma vivecircncia incapaz de contrariar tal condiccedilatildeo caiacuteda Quando Santo Agostinho alerta

sobre os perigos das imagens dos sentidos ou sobre a atracccedilatildeo perniciosa das belezas

sensiacuteveis ele natildeo estaacute a invalidar a possibilidade de um relacionamento justo e

frutuoso entre o homem e o seu mundo nem a invalidar o reconhecimento de tais

belezas ou da sua legitimidade A leitura dos pressupostos agostinianos deveraacute ser

sempre feita agrave luz da relatividade contextual

Para melhor responder ao argumento daqueles que negam a existecircncia de uma

esteacutetica agostiniana com base na sua assistematicidade urge problematizar o proacuteprio

conceito de sistema ao niacutevel da filosofia Embora os sistemas filosoacuteficos tenham por

princiacutepios fundamentais a objectividade e a coerecircncia eles natildeo satildeo estruturas

completas e absolutamente iacutentegras como agrave partida parecem pressupor A pluralidade

de sistemas filosoacuteficos prova tal asserccedilatildeo e torna evidente o caraacutecter mutuamente

exclusivo parcial e mesmo arbitraacuterio dos sistemas Eles satildeo arbitraacuterios porque

assentam em escolhas livres que natildeo comportam possibilidade de demonstraccedilatildeo ou de

refutaccedilatildeo

No livro Neacutecessiteacute ou Contingence ndash Lrsquoaporie de Diodore et les systegravemes

philosophiques784

Jules Vuillemin aborda a questatildeo dos sistemas filosoacuteficos a partir

da aporia de Deodoro tambeacutem conhecida por argumento dominador ou argumento

mestre785

O argumento estabelece o dilema da inconsistecircncia e da falta de coerecircncia

Deodoro evidenciou a incompatibilidade entre quatro premissas tidas como presentes

nas condiccedilotildees de um acto livre e que satildeo geralmente aceites como verdadeiras a) o

passado eacute irrevogaacutevel b) do impossiacutevel para o possiacutevel a consequecircncia natildeo eacute boa c)

o possiacutevel eacute o que foi o que eacute e o que estaacute prestes a ser d) aquilo que eacute natildeo pode natildeo

ser enquanto eacute (princiacutepio da necessidade condicional) Estes princiacutepios satildeo na

verdade incompatiacuteveis entre si jaacute que as suas consequecircncias se goram mutuamente

Natildeo haacute forma de salvar a coerecircncia loacutegica do raciociacutenio sem sacrificar um dos

784

Jules Vuillemin Neacutecessiteacute ou contingence Lrsquoaporie de Diodore et les systegravemes philosophiques Paris

Minuit 1984

785 A aporia de Deodoro eacute reportada por Epicteto e foi formulada por um filoacutesofo grego quase

contemporacircneo de Aristoacuteteles chamado Deodoro de Kronos

276

princiacutepios ndash poreacutem acede-se a sistemas completamente diferentes segundo a escolha

do princiacutepio rejeitado A aporia de Deodoro constitui pois um princiacutepio de divisatildeo

que obriga os filoacutesofos a fazer escolhas que satildeo incompatiacuteveis entre si Segundo

Vuillemin eacute o argumento dominador que organiza a filosofia grega estando na

origem das divisotildees irredutiacuteveis dentro da filosofia ndash ou seja estando na origem do

pluralismo filosoacutefico Vuillemin propotildee uma classificaccedilatildeo dos sistemas filosoacuteficos

com base na aporia de Deodoro isto eacute remontando agraves razotildees a priori da distensatildeo

instaurada na filosofia786

A pluralidade filosoacutefica parece indicar que os sistemas satildeo irrefutaacuteveis e natildeo

permitem comparaccedilotildees fundamentais entre si pois se assim fosse haveria

paradigmas filosoacuteficos que ao jeito da ciecircncia ditariam a sua superioridade e

promoveriam um aperfeiccediloamento da aacuterea disciplinar Por norma na ciecircncia as

teorias mais recentes satildeo superiores agraves mais antigas mas esta ideia de progresso natildeo eacute

aplicaacutevel relativamente agrave filosofia ndash o acto de filosofar eacute sempre um acto de origem787

Se no caso da ciecircncia a sua divisatildeo em sistemas estaacute ligada agraves diferenccedilas de

natureza dos problemas cientiacuteficos jaacute no caso da filosofia os sistemas nascem do

conflito face a um mesmo problema filosoacutefico A pluralidade filosoacutefica relaciona-se

directamente com a indeterminaccedilatildeo e por seu turno a indeterminaccedilatildeo constitui outro

dos factores que parecem salvaguardar a independecircncia da filosofia face agrave ciecircncia A

filosofia natildeo comporta refutaccedilatildeo ou demonstraccedilatildeo como no caso da ciecircncia o que

significa que natildeo haacute um criteacuterio objectivo para discernir entre os sistemas filosoacuteficos

786

Para este autor haacute um uso filosoacutefico das asserccedilotildees e modalidades fundamentais que permitem

classificar as filosofias remontando ao princiacutepio que estaacute na origem da sua unidade da sua limitaccedilatildeo A

maioria das tentativas de classificaccedilatildeo dos sistemas filosoacuteficos satildeo ex datis ao passo que a de Vuillemin eacute

ex principis pois determina a priori o espaccedilo loacutegico de possibilidade de respostas filosoacuteficas em que

qualquer sistema encontraraacute lugar Significa isto que se trata de uma classificaccedilatildeo que natildeo determina

sistemas particulares (ilimitados) determina sim classes possiacuteveis de sistemas (classes limitadas) Em

Vuillemin as classes de sistemas filosoacuteficos estruturam-se de acordo com os diferentes tipos possiacuteveis de

proposiccedilotildees elementares Cada sistema apoia-se na escolha de uma ou mais proposiccedilotildees como forma

fundamental Assim Vuillemin divide os sistemas filosoacuteficos em duas grandes classes os sistemas

dogmaacuteticos (realismo conceptualismo nominalismo das coisas e nominalismo dos acontecimentos) e os

sistemas de exame (intuicionismo e cepticismo)

787 Jean-Luc Nancy diz que filosofar eacute recomeccedilar do zero na ordem da significaccedilatildeo Mesmo quando se eacute

influenciado por outros filoacutesofos e por outros pensamentos filosofar pressupotildee sempre um recomeccedilo

Natildeo haacute significados absolutos nem saberes adquiridos em filosofia Cf Sylviane Agacinski Carole

Diamant Yves Michaud et Jean-Luc Nancy ldquoDialogue Pour quoi philosophent-ils rdquo in Philosophie

Magazine ndeg 7 Paris Paris Philo eacuteditions 2007

277

aqueles que satildeo os melhores ndash ou seja natildeo haacute um criteacuterio racional para escolher entre

sistemas e natildeo haacute uma melhor escolha possiacutevel

A histoacuteria da filosofia eacute uma histoacuteria das escolhas pessoais feitas pelos

filoacutesofos ndash escolhas pessoais livres e sempre exclusivas Na leitura de Vuillemin a

aporia de Deodoro ilustra a exclusividade dessa escolha jaacute que demonstra a

impossibilidade de resolver o problema filosoacutefico sem renunciar a um dos

princiacutepios Os esforccedilos da filosofia tecircm sido no sentido de pocircr o real em sistema

poreacutem sistematizar o real significa recriaacute-lo sem qualquer garantia de que essa

ideia de real corresponda a um real autecircntico sequer sem a garantia da existecircncia de

um real autecircntico ou de verdades Em filosofia o real e a verdade natildeo satildeo mais do

que os discursos que deles se fazem satildeo pretensotildees daquilo que se supotildeem ser Eacute a

determinaccedilatildeo da fronteira entre a aparecircncia e a realidade que estaacute na base das

principais diferenccedilas entre sistemas filosoacuteficos Cada sistema implica uma decisatildeo

face ao real Pretensatildeo e decisatildeo satildeo dois conceitos chave relativamente aos sistemas

filosoacuteficos jaacute que cada um decide a sua lei de coerecircncia na construccedilatildeo do real e cada

um pretende que o discurso por si construiacutedo em torno do real seja o verdadeiro real

Para Vuillemin o facto de os sistemas serem mutuamente exclusivos e de

darem imagens de refutaccedilatildeo uns dos outros (por exemplo ao considerarem que o real

de um outro sistema natildeo passa de uma ilusatildeo) natildeo impede a sua complementaridade

Cada um dos sistemas entra necessariamente no requisito para descrever

completamente a realidade poreacutem natildeo sabemos conjugaacute-los de forma apropriada para

tal ou natildeo podemos porque isso corresponderia agrave descoberta de um meta-sistema e de

uma verdade absoluta ou de uma realidade para laacute de toda a aparecircncia Deus A razatildeo

leva-nos sempre a escolher um sistema e a excluir os outros Pela razatildeo sabemos que

a escolha que fizemos eacute incompatiacutevel com outras escolhas que poderiacuteamos ter feito e

que a nossa escolha apenas nos daraacute um fragmento do real ndash ou da verdade ou da

totalidade ndash e que os restantes fragmentos nos satildeo interditos sendo acessiacuteveis a outros

que fizeram escolhas diferentes da nossa mas a esses faltar-lhes-aacute sempre o

fragmento que ganhaacutemos com a nossa escolha entre outros Em suma para

Vuillemin os sistemas filosoacuteficos possuem a propriedade singular da

complementaridade sem que saibamos qual escolher e sem que os saibamos conciliar

Natildeo se deve esperar que a classificaccedilatildeo dos sistemas filosoacuteficos permita ou

facilite a escolha entre sistemas A classificaccedilatildeo deveraacute sim tornar-nos mais tolerantes

e mais abertos quanto aos sistemas filosoacuteficos que natildeo seriacuteamos atreitos a escolher Ela

278

eacute uacutetil ao clarificar a nossa situaccedilatildeo face aos outros e face agraves razotildees que os levaram a

escolher sistemas filosoacuteficos com os quais natildeo nos identificamos Natildeo haacute criteacuterio que

permita determinar se as razotildees dos outros satildeo preferiacuteveis agraves nossas nem eacute possiacutevel

comparar objectivamente os diferentes sistemas possiacuteveis pois a avaliaccedilatildeo comparativa

em filosofia implica que se tenha agrave partida um ponto de vista intriacutenseco a um qualquer

sistema Para que os sistemas filosoacuteficos fossem compatiacuteveis eles teriam que ser

traduziacuteveis uns para os outros ora natildeo haacute garantias que os valores de significaccedilatildeo

sejam conservados na imagem de refutaccedilatildeo que os sistemas rivais constroem uns sobre

os outros As traduccedilotildees filosoacuteficas comportam sempre um elevado grau de

indeterminaccedilatildeo jaacute que se comparam elementos previamente separados

descontextualizados A significaccedilatildeo de um elemento pode mudar radicalmente quando

se passa de um sistema para outro Os sistemas tecircm que ser entendidos como um todo e

soacute globalmente podem ser confrontados uns com os outros Para se chegar a uma

decisatildeo racional entre sistemas filosoacuteficos seria necessaacuterio possuir uma base linguiacutestica

comum para a qual todos os sistemas filosoacuteficos pudessem ser traduzidos e a partir daiacute

comparados Isso eacute impossiacutevel e tambeacutem isso eacute responsaacutevel pela independecircncia relativa

dos sistemas filosoacuteficos face agrave ciecircncia Natildeo eacute possiacutevel comparar sistemas filosoacuteficos

entre si nem entre eles e a ciecircncia

A escolha entre sistemas eacute uma escolha livre ndash a liberdade eacute condiccedilatildeo necessaacuteria

do conhecimento ndash eivada de subjectividade o que natildeo significa que seja uma escolha

cega mas uma escolha dirigida por interesses da razatildeo e por idiossincrasias Haacute na

filosofia um impasse que impede que se transite completamente de um estado de

opiniatildeo e de crenccedila para o estado da verdade impessoal ndash universal Haacute diferenccedilas entre

crenccedila e saber entre opiniatildeo e certeza eacute a ruptura com a opiniatildeo que marca a passagem

para a verdade Persiste uma ligaccedilatildeo com a crenccedila e ateacute mesmo com a feacute no acto da

escolha assim as proposiccedilotildees filosoacuteficas que satildeo as expressotildees desta escolha natildeo

podem ser verdadeiras nem falsas uma vez que satildeo expressotildees de actos livres

A paradoxal funccedilatildeo unificadora que estaacute na essecircncia do sistema filosoacutefico

implica um parcelamento artificial do absoluto Essa parcialidade jaacute Heidegger a havia

referido acrescentando-lhe tambeacutem caracteriacutesticas como a incompletude e um certo

grau de subjectividade a que o sistema natildeo se pode furtar788

Heidegger refere trecircs

788

A subjectividade no entender de Heidegger eacute inevitaacutevel pois para que o sistema exista eacute preciso que

o mundo possa ser concebido na sua totalidade e que haja um sujeito para o alcanccedilar Ainda assim para

este autor o sistema eacute sempre necessariamente um sistema matemaacutetico da razatildeo Cf Martin Heidegger

279

modos de se entender a palavra sistema um primeiro modo em que se entende uma

ordenaccedilatildeo de elementos segundo uma grelha previamente construiacuteda e que implica um

trabalho preacutevio de projecccedilatildeo desses elementos de acordo com a grelha onde se vatildeo

inserir Essa grelha eacute um espaccedilo aberto (em projecto) no qual a unidade da disposiccedilatildeo

torna visiacutevel a ordem Eacute um ajuntamento no qual se determina um conteuacutedo orgacircnico

Um segundo modo de se entender a palavra sistema consiste em ver nele uma simples

acumulaccedilatildeo de pedaccedilos mesmo na ausecircncia de uma moldura previamente traccedilada

Entre estas acepccedilotildees opostas ndash uma que se reporta ao caraacutecter interno do acto de reunir

outra que se reporta ao caraacutecter externo agrave mera configuraccedilatildeo do ajuntamento de

elementos ndash haacute uma terceira forma de entender pela qual chamamos sistema a um

quadro geral que natildeo eacute questatildeo de mera ordenaccedilatildeo interna nem simples acumulaccedilatildeo de

partes eacute um quadro geral que molda o ser-em-comum ou seja a composiccedilatildeo externa eacute

comandada por uma concepccedilatildeo e um dispositivo (interno) previamente determinados

Muito explicitamente Heidegger diz que apesar de toda a filosofia ser

sistemaacutetica nem toda a filosofia eacute sistema789

e que ldquoo sistema eacute a conjunccedilatildeo agrave

medida do saber do ajuntamento e da junccedilatildeo do proacuteprio serrdquo790

Por outras palavras

o sistema eacute o agrupamento interno daquilo que eacute o objecto possiacutevel de um saber e eacute a

configuraccedilatildeo que o funda De acordo com a ideia heideggeriana de sistema este visa

um saber absoluto e estaacute subdividido em vaacuterios subsistemas cuja autonomia natildeo os

desvincula do contexto conceptual a que pertencem de modo a salvaguardar a

validade da pretensatildeo ao tal saber absoluto

Um sistema filosoacutefico pressupotildee que os conteuacutedos sejam estruturados de modo a

que cada nuacutecleo conceptual tenha jaacute de conter os pressupostos loacutegicos dos outros

nuacutecleos e de ver os seus pressupostos neles contidos ndash ou seja o sistema filosoacutefico tem

que compreender as diferentes relaccedilotildees passiacuteveis de estabelecer entre os diferentes

nuacutecleos conceptuais Essa eacute uma exigecircncia da sistematicidade filosoacutefica natildeo apenas a

um niacutevel mais lato relativo agrave articulaccedilatildeo entre diferentes ramos do sistema (esteacutetico

metafiacutesico epistemoloacutegico eacuteticohellip) ndash e neste caso o sistema diz respeito ao corpo

filosoacutefico estruturado por um autor conjunto de autores (como por exemplo o sistema

Quest ce qu un systegraveme Comment la philosophie en vient-elle agrave construire des systegravemes in Schelling

le traiteacute de 1809 sur lessence de la liberteacute humaine Hildegard Feick Paris Gallimard 1993 p 66

789 Cf Ib p 59

790 laquoDas System ist die Wissensmaumlsige Fuumlgung des Gefuumlges und der Fuge des Seyns selbstraquo Ib p 58

280

platoacutenico ou o sistema marxista) ou a uma perspectiva filosoacutefica (como por exemplo a

realista ou a nominalista) ndash mas tambeacutem num sentido mais estrito pois a consequecircncia

loacutegica desta mesma caracteriacutestica da sistematicidade filosoacutefica eacute que o sistema pode ser

compreendido apenas com base num soacute nuacutecleo estruturado de conceitos

Tanto Heidegger como Vuillemin subscrevem a convicccedilatildeo de que o sistema natildeo se

impotildee necessariamente na filosofia A grande prova disso eacute precisamente a possibilidade de

escolha Vuillemin vecirc a divisatildeo da filosofia em sistemas a partir de Deodoro o que demonstra

que o sistema tem uma determinaccedilatildeo histoacuterica A filosofia precede a sistematicidade e natildeo

depende necessariamente dela Segundo Heidegger sempre houve orientaccedilatildeo para o sistema e

sempre houve pensamento sistemaacutetico em filosofia mas o sistema propriamente dito soacute

surge pela primeira vez na histoacuteria da filosofia com o idealismo alematildeo Heidegger diz

mesmo que actualmente o sistema natildeo eacute mais uma necessidade Por ldquoactualmenterdquo refere-se

ao periacuteodo de transiccedilatildeo do seacuteculo XIX para o seacuteculo XX e reporta a queda do sistema ao

niilismo Para o autor Nietzsche ultrapassou a questatildeo do sistema e ela jaacute natildeo se coloca791

Seria muito coacutemodo limitarmos a nossa abordagem agrave perspectiva heideggeriana de sistema

poreacutem a questatildeo da criacutetica agrave esteacutetica de Santo Agostinho com base na ausecircncia de sistema

permaneceria sem resposta Aleacutem disso a concepccedilatildeo que Heidegger tem do sistema eacute

bastante particular uma vez que o situa na convergecircncia da ordenaccedilatildeo interna de elementos

com a configuraccedilatildeo externa sendo esse ponto de convergecircncia extremamente especiacutefico e de

equiliacutebrio precaacuterio para a existecircncia do sistema que nesta concepccedilatildeo arrisca sempre ruir face

agrave simples orientaccedilatildeo para o sistema ou face ao pensamento sistemaacutetico A nosso ver esta

acepccedilatildeo do sistema eacute portanto demasiado inflexiacutevel e limitada ndash no sentido em que soacute ocorre

em condiccedilotildees muito particulares Concordariacuteamos com ela se Heidegger tivesse conferido ao

sistema a possibilidade de oscilar entre a configuraccedilatildeo externa e a projecccedilatildeo interna sem

perder o seu estatuto Esta flexibilidade das fronteiras do sistema teria como consequecircncia a

natural variaccedilatildeo do seu grau de coesatildeo ndash o que para Heidegger seria impensaacutevel mas a nosso

ver encontra perfeita justificaccedilatildeo

A questatildeo da totalidade e da ordenaccedilatildeo dos seus constituintes eacute precisamente o que

estaacute na base da primeira utilizaccedilatildeo do conceito sistema na filosofia ndash para os estoacuteicos o

sistema (σύστημα) designava a ldquoordem coacutesmicardquo Ao longo da histoacuteria da filosofia a questatildeo

da sistematicidade foi posta ao niacutevel da articulaccedilatildeo de uma determinada ordem do real com

791

Heidegger op cit p 48

281

uma determinada ordem do pensamento sobre esse real792

Por outras palavras a questatildeo do

sistema filosoacutefico eacute a da relaccedilatildeo entre um suposto sistema real e um sistema conceptual cuja

forma de expressatildeo pode assumir ela proacutepria caracteriacutesticas expressivas de tal modo

ilustrativas do conteuacutedo que veiculam que tambeacutem essa forma eacute dita sistemaacutetica A questatildeo

que se coloca eacute portanto a da relaccedilatildeo entre a forma e o conteuacutedo da conceptualizaccedilatildeo

filosoacutefica A forma eacute jaacute o conteuacutedo e o medium da mensagem793

Eacute preciso atender ao facto de que o sistema eacute uma forma de exposiccedilatildeo filosoacutefica que

pode perfeitamente integrar diversos modos expressivos natildeo se limitando ao ensaio

acadeacutemico tradicional Haacute no entanto formatos de exposiccedilatildeo filosoacutefica que propiciam as

posiccedilotildees anti-sistemaacuteticas dos filoacutesofos A fuga ao sistema eacute com efeito uma fuga agrave forma

que eacute dada ao pensamento filosoacutefico e agrave relaccedilatildeo que tradicionalmente a filosofia manteacutem com

a ideia de totalidade Eacute portanto tambeacutem uma questatildeo de expressatildeo e de exposiccedilatildeo do

pensamento filosoacutefico A este niacutevel a fuga ao sistema assume-se sobretudo como uma

estrateacutegia contra o fechamento que privilegia articulaccedilotildees criativas muacuteltiplas inserccedilotildees e

dinacircmicas livres O sistema eacute tido como uma forma que aprisiona e condena ao fechamento

dos conceitos o pensamento coarctando-o em termos de potencial

Ao niacutevel da histoacuteria da filosofia haacute toda uma seacuterie de exemplos passiacuteveis de ilustrar

formas de dar ao pensamento novos meios de expressatildeo para laacute do sistema que vatildeo desde a

procura da anulaccedilatildeo das diferenccedilas que estatildeo na base da cisatildeo da filosofia em vaacuterios sistemas

(ecletismo e sincretismo)794

passando pela renuacutencia de qualquer possibilidade de uma

792

A relaccedilatildeo entre sistema real e sistema conceptual pode ser assumida de modo a que o segundo (o

sistema conceptual) seja reflexo do primeiro (sistema real) ou de modo a que o primeiro seja apenas uma

construccedilatildeo do segundo ou pode ainda ser considerada uma relaccedilatildeo de paralelismo e mesmo de

isomorfismo entre a ordem do real e a ordem da conceptualizaccedilatildeo do real

793 Contra esta posiccedilatildeo parece seguir a teoria bergsoniana da intuiccedilatildeo filosoacutefica ao supor uma autonomia

da expressatildeo relativamente agrave intuiccedilatildeo (ideia) e justificando assim a possibilidade de uma mesma ideia

poder expressar-se segundo formas distintas Cf Bergson La penseacutee et le mouvant Paris PUF 2005 pp

117-142

794 O ecletismo toma em consideraccedilatildeo a histoacuteria da filosofia na sua continuidade e pretende elevar-se ao

ponto de convergecircncia das verdades parciais O ecletismo visa a reuniatildeo de teorias conciliaacuteveis tomadas

de diferentes sistemas filosoacuteficos que satildeo justapostas negligenciando pura e simplesmente as partes natildeo

conciliaacuteveis desses sistemas Foi Leibniz o primeiro filoacutesofo a definir o ecletismo diferenciando-o do

sincretismo que consiste na grande confrontaccedilatildeo dos sistemas da qual resulta uma ideia geral enquanto

que o ecletismo consiste em excluir de cada sistema aquilo que eacute negativo contraditoacuterio e natildeo essencial

para os fundir no que tecircm de positivo e verdadeiro Na realidade ambos parecem conduzir a uma espeacutecie

de meta-sistema No fundo o ecletismo e o sincretismo consideram positivamente a pluralidade de

sistemas e mais do que contradiccedilotildees reconhecem-lhes a riqueza entrando numa loacutegica aditiva e

multiplicadora que faz da filosofia o sistema dos sistemas

282

estruturaccedilatildeo e de um discurso vaacutelido sobre a verdade (cepticismo)795

ou sobre o real

(natildeo-filosofia por exemplo) ateacute agraves formas conversacionais ou agraves formas filosoacuteficas do

fragmento796

Santo Agostinho experimentou todas estas formas mas a sua

assistematicidade caracteriza-se sobretudo por uma exposiccedilatildeo de conteuacutedos com

contornos muito proacuteximos da ideia de dispositivo conforme ela nos eacute apresentada por

Deleuze

[hellip] um dispositivo eacute antes de mais uma meada um conjunto multilinear

composto por linhas de natureza diferente E nos dispositivos as linhas

natildeo delimitam ou envolvem sistemas homogeacuteneos por sua proacutepria conta

[hellip] mas seguem direcccedilotildees traccedilam processos que estatildeo sempre em

desequiliacutebrio e que ora se aproximam ora se afastam umas das outras797

Eacute partindo de Foucault que Deleuze clarifica esta noccedilatildeo de dispositivo que tatildeo

adequadamente parece descrever o modo como a filosofia agostiniana surge ao leitor O

Bispo de Hipona natildeo estava preocupado em estruturar um corpo teoacuterico desligado da

realidade798

nem as suas teorias satildeo meros exerciacutecios de abstracccedilatildeo intelectual com

propoacutesitos generalistas A reflexatildeo filosoacutefica de Santo Agostinho gira em torno de questotildees

muito concretas que ocupavam os demais teoacutericos do seu tempo questotildees sobretudo relativas

795

O cepticismo estaacute no outro extremo da atitude ecleacutetica e sincreacutetica advogando a recusa da noccedilatildeo de

verdade e consequentemente defendendo que nenhum sistema pode ser verdadeiro ou conter verdades O

cepticismo eacute portanto avesso ao sectarismo que parece estar impliacutecito na pluralidade filosoacutefica em que

cada sistema se proclama a si mesmo como o verdadeiro refutando a verdade dos outros Claro que tal

posiccedilatildeo do cepticismo natildeo o salvaguarda do estatuto de reacuteu face ao seu proacuteprio libelo Ao condenar todos

os sistemas filosoacuteficos agrave impossibilidade da verdade e ao sectarismo condena-se a si mesmo Toda a

argumentaccedilatildeo desencadeada pelo cepticismo contra a noccedilatildeo de verdade eacute aplicaacutevel agrave ideia de sistema

796 A construccedilatildeo em peccedilas eacute uma das estrateacutegias adoptadas para contrariar a articulaccedilatildeo linear e uniacutevoca

da estruturaccedilatildeo conceptual em sistema Muitos satildeo os exemplos que podem ser citados a este niacutevel desde

Parmeacutedines com os seus poemas passando pelos aforismos de Bacon Wittgenstein ou Nietzsche pelos

diaacuterios de Kierkegaard ou Gabriel Marcel ou pelos fragmentos de Barthes Mesmo o sistema mais

acabado natildeo constitui senatildeo um fragmento da realidade total pelo que natildeo haacute por que considerar o

fragmento como um modo de expressatildeo filosoacutefica menor Tanto mais que a fragmentaccedilatildeo natildeo significa

necessariamente a renuacutencia agrave totalidade natildeo havendo entre fragmento e totalidade uma antinomia

necessaacuteria

797 G Deleuze ldquoQuest-ce quun dispositifrdquo in David Lapoujade (org) Deux reacutegimes de fous Textes et

entretiens 1975ndash1995 Paris Les Editions de Minuit 2003 p 319

798 Assim o notam Marcos Roberto Nunes Costa e Marlesson Castelo Branco do Recircgo em laquoO estatuto

epistemoloacutegico da verdade em Santo Agostinhoraquo in Revista de Teologia e Ciecircncias da Religiatildeo 5 Dez

2006 p 241

283

agrave posiccedilatildeo da Igreja face agrave diversidade de correntes teoloacutegicas que entatildeo grassavam ou mesmo

face a dimensotildees bastante pragmaacuteticas da vida social poliacutetica educacional e domeacutestica

Frequentemente a resposta a tais questotildees era solicitada pelos seus disciacutepulos e amigos em

cartas agraves quais Santo Agostinho respondia assiduamente ou pelos seus diocesanos que

podiam contar com uma clarificaccedilatildeo dos assuntos nos sermotildees do seu pastor O

pensamento agostiniano eacute portanto ldquoum pensamento essencialmente relacional e

diferencialrdquo799

Ora esta forma situada de desenvolver e expor a especulaccedilatildeo intelectual

faz com que qualquer perspectiva sobre a filosofia agostiniana se depare com esta

estrutura pluriacutevoca que por oposiccedilatildeo ao sistema caracteriza o dispositivo A

extraordinaacuteria riqueza do real soacute pode ser abordada de acordo com uma estrateacutegia que

natildeo lhe coarcte tal complexidade nem comprometa a natureza misteriosa que

determinadas dimensotildees efectivamente comportam

O dispositivo propicia uma articulaccedilatildeo bastante mais dinacircmica dos conceitos e

dos pressupostos filosoacuteficos sem anular um nexo estaacutevel capaz de promover

disposiccedilotildees de leitura e interpretaccedilatildeo que mesmo apontando para direcccedilotildees por vezes

contraditoacuterias conduzem a um mesmo fundo de coerecircncia Eacute assim que ao niacutevel

concreto da esteacutetica podem ser observadas duas grandes vias no pensamento

agostiniano cujas diferenccedilas tecircm contribuiacutedo para interpretaccedilotildees contraditoacuterias por

parte dos investigadores que se debruccedilam sobre a obra de Santo Agostinho sem que

seja possiacutevel determinar qual eacute a mais especificamente agostiniana Por um lado

deparamo-nos com uma esteacutetica da totalidade antiteacutetica que eacute retomada dos estoacuteicos e

tem por objectivo reconciliar a alma com o mal aparente do mundo sensiacutevel ndash como

um todo o mundo sensiacutevel eacute belo e a sua beleza tem que ser presumida como

verdadeira ndash por outro lado eacute inegaacutevel a presenccedila de uma esteacutetica ascensional que

relativiza e desvaloriza esse mundo sensiacutevel incitando a alma a libertar-se das suas

imagens falazes elevando-se para um mundo superior onde habita a verdadeira beleza

Ambas as vias satildeo coevas ao longo do conjunto da obra agostiniana poreacutem haacute contextos

em que uma surge mais enfatizada do que a outra O grande nuacutecleo de coerecircncia que

viabiliza a justaposiccedilatildeo destas perspectivas eacute obviamente Deus ndash em termos

finaliacutesticos ambas promovem a reconduccedilatildeo a Deus em termos apofacircnticos ambas

provam a verdade da Sua beleza

799

Joseacute Rosa Em busca do Centro p 23

284

A resposta ao argumento que incide sobre a ausecircncia de sistematicidade para

negar a pertinecircncia de uma esteacutetica propriamente dita no pensamento agostiniano

passa portanto por clarificar em primeiro lugar que essa assistematicidade eacute uma

caracteriacutestica constante de toda a filosofia de Santo Agostinho ndash as demais vertentes

da sua filosofia satildeo igualmente caracterizadas por tal ausecircncia e natildeo satildeo por isso

postas em causa ndash em segundo lugar passa por mostrar que ela natildeo eacute um sinoacutenimo de

ausecircncia de articulaccedilatildeo ou coerecircncia teoacuterica Ainda que as muitas passagens com

pertinecircncia esteacutetica estejam disseminadas por diversos conjuntos temaacuteticos ao longo

da obra agostiniana em nada tal coerecircncia eacute afectada Na verdade a transversalidade

da esteacutetica de Santo Agostinho pode mesmo funcionar como uma via coesa para uma

leitura integrada das vaacuterias dimensotildees conceptuais do pensamento agostiniano de

certo modo recriando uma estrutura com caracteriacutesticas similares agraves de um sistema

Aleacutem disso conforme vimos nem mesmo o sistema escapa a uma certa dose de

incompletude de parcialidade e de arbitrariedade caracteriacutesticas estas que tornam

questionaacutevel a ideia de uma supremacia de tal estrutura conceptual o que

consequentemente gora a desvalorizaccedilatildeo da esteacutetica de Santo Agostinho argumentada

com base na ausecircncia de sistema

285

3 De que modo Santo Agostinho nos leva a repensar a esteacutetica

31 - O que foi e o que eacute a esteacutetica

A definiccedilatildeo de esteacutetica estaacute longe de gerar consenso e por norma natildeo escapa agrave

circularidade de conceitos tornando a definiccedilatildeo bastante vaga Como estudo filosoacutefico

das experiecircncias esteacuteticas dos objectos esteacuteticos das disposiccedilotildees mentais que

possibilitam e que resultam de tais experiecircncias e da semacircntica associada agrave sua

expressatildeo a esteacutetica confronta-se com a questatildeo da abrangecircncia do seu campo de estudo

e com a questatildeo das fronteiras que manteacutem relativamente a outros domiacutenios ou aacutereas

disciplinares Natildeo haacute como abordar tais questotildees sem levar em consideraccedilatildeo uma

perspectiva histoacuterica acerca da fundaccedilatildeo da disciplina

Baumgarten utilizou pela primeira vez o termo lsquoesteacuteticarsquo na sua obra de 1735

Mediataccedilotildees filosoacuteficas acerca de algumas caracteriacutesticas da poesia800

para designar a

ciecircncia do conhecimento sensiacutevel que a par da loacutegica constituiacutea segundo o autor a

gnoseologia Assim defende que as coisas conhecidas concernem agrave faculdade superior

sendo objecto da loacutegica e as coisas percebidas satildeo conhecidas pela faculdade inferior

sendo objecto do conhecimento sensiacutevel ou esteacutetica Note-se que o uso da expressatildeo

lsquofaculdade inferiorrsquo natildeo parece neste contexto condenar a percepccedilatildeo sensiacutevel a uma

real inferioridade jaacute que Baumgarten a irmana agrave loacutegica advogando-lhe valor cognitivo

e mais do que isso atribuindo-lhe um papel relevante no aperfeiccediloamento dos modos

de pensar e dos modos de vida

800 A G Baumgarten Karl Aschenbrenner William Benjamin Holther (eds) Reflections on poetry

Alexander Gottlieb Baumgartenrsquos Meditationes philosophicae de nonnullis ad poema pertinentibus

University of California Press 1954 sectsect 115-116 p78

286

Quatro anos apoacutes as Meditaccedilotildees Baumgarten publica a obra Metaphysica801

onde faz referecircncia agrave classe das coisas apercebidas ou aistheta dizendo que esta classe

eacute muito mais abrangente do que a classe de coisas apreendidas pela visatildeo e pela

audiccedilatildeo jaacute que inclui pensamentos e imagens Na segunda metade do seacuteculo XVIII

surge entatildeo o tratado que consolida a posiccedilatildeo baumgartiana acerca da esteacutetica A

primeira parte (da sua Aesthetica) eacute publicada em 1750 e em 1758 vem a puacuteblico uma

segunda parte bastante menos extensa No primeiro paraacutegrafo do tratado Baumgarten

reitera a definiccedilatildeo da esteacutetica que havia apresentado nas Meditaccedilotildees de 1735 como

sendo a ciecircncia do conhecimento sensiacutevel ndash ciecircncia esta que compreende a teoria das

artes liberais da cogniccedilatildeo inferior a arte do pensamento belo e a arte da razatildeo

analoacutegica802

Baumgarten preconiza o aperfeiccediloamento da cogniccedilatildeo sensiacutevel ou

lsquoesteacutetica artificialrsquo a par da actividade inata das nossas faculdades cognitivas sensiacuteveis

ou lsquoesteacutetica naturalrsquo cabendo agraves faculdades superiores do entendimento e da razatildeo

norteaacute-las803

Esse aperfeiccediloamento deveria ser intentado por duas vertentes

complementares ndash pela akesis ou exercitatio aesthetica e pela mathesis ou disciplina

aesthetica A primeira vertente consistia num programa praacutetico de treinamento que

incluiacutea actividades como a improvisaccedilatildeo certos jogos ou exerciacutecios relacionados com

as artes eruditas804

Estas actividades promoveriam a capacidade da mente lidar

harmoniosamente com um dado assunto ou pensamento805

A segunda vertente

compreendia a pulchra eruditio constituiacuteda pelo estudo das ciecircncias de Deus do

universo e do homem (a moral a histoacuteria sem esquecer a mitologia as culturas antigas

e os exemplos da genialidade humana)806

Esta vertente contemplava ainda uma teoria

da forma da bela cogniccedilatildeo (theoria de forma pulchrae cognitionis) que complementava

as regras de disciplinas especificamente esteacuteticas como a oratoacuteria a poesia a muacutesica

801

Alexander Gottlieb Baumgarten Metaphysica ed VI Halle C Hermann Hemmerde 1768 sect 533 p 187

802 Idem Aesthetica Impens I C Kleyb 1750 sect 1 p1 laquoAesthetica (theoria liberalium artium

gnoseologia inferior ars pulcre cogitandi ars analogi rationis) est scientia cognitionis sensitivaeraquo

803 Cf Ibidem sectsect 30-38 pp 12-16

804 Cf Ibid sectsect 52 55 58 pp 21 23 24

805 Cf Ibid sect 47 p19

806 Cf Ibid sectsect 62-64 pp 26-27

287

etc807

Em suma o projecto disciplinar baumgartiano preconizava uma esteacutetica

interdisciplinar natildeo meramente teoacuterica que contemplava uma filosofia da arte sem lhe

determinar um estatuto de preponderacircncia e que tinha como propoacutesito o

aperfeiccediloamento da capacidade cognitiva humana para uma efectiva melhoria da

qualidade de vida A esteacutetica exaltava o papel e o potencial da percepccedilatildeo sensiacutevel em

termos gnoseoloacutegicos de tal modo que se lhe poderia associar o mote melhor pensar

para melhor viver Baumgarten descreve inclusivamente o felix aestheticus ndash o esteta

feliz ndash como sendo um homem de sensibilidade com capacidades cognitivas e

perceptivas bastante desenvolvidas O aperfeiccediloamento da percepccedilatildeo sensiacutevel por meio

do estudo esteacutetico conferia ao sujeito uma vantagem sobre os demais 808

Assim mais do que uma filosofia da arte ou do belo o tratado fundador da

esteacutetica descrevia uma disciplina que com base na experiecircncia sensiacutevel apresentava um

modo especiacutefico de lidar com a realidade O conhecimento das coisas que nos rodeiam

dado pelas faculdades superiores natildeo esgota o que delas podemos conhecer A

faculdade cognitiva inferior ndash inferior porque natildeo se sobrepotildee ao entendimento ou agrave

razatildeo mas complementa-os ndash eacute a prova da perene insatisfaccedilatildeo do homem na relaccedilatildeo que

estabelece com as coisas e poderaacute ver-se tambeacutem como um modo de ir para aleacutem desse

conhecimento veiculado pelas faculdades superiores que por si natildeo nos satisfaz

O produto da percepccedilatildeo esteacutetica eacute na perspectiva de Baumgarten uma articulaccedilatildeo

de representaccedilotildees sensiacuteveis a niacutevel particular paralela agrave articulaccedilatildeo conceptual que se

processa a um niacutevel abstracto A verdade esteacutetica baseia-se na articulaccedilatildeo de tais

representaccedilotildees sensiacuteveis (articulaccedilatildeo esta que no fundo eacute um nexo de relaccedilotildees entre

sensaccedilotildees) com a razatildeo e com os seus objectos mas sendo sensivelmente reconhecida

pelo sujeito809

As representaccedilotildees sensiacuteveis possuem uma integridade e uma totalidade

que a mera abstracccedilatildeo conceptual natildeo consegue alcanccedilar e que define um modo

caracteriacutestico de pensar que eacute o modo esteacutetico propriamente dito

A esteacutetica lida com o particular e com o concreto eacute aiacute que a sua verdade pode

ser encontrada pelo que o esteta natildeo eacute uma apologista de generalizaccedilotildees mas de

807

Cf Ibid sectsect 68-69 pp 28-29

808 Cf Ibid sect 3 p2

809 Cf Ibid sect 437 p 278

288

verdades menos abstractas que faccedilam parte de uma verdade metafiacutesica810

Natildeo significa

isto que a esteacutetica natildeo possa passar dos objectos reais para os objectos hipoteacuteticos

ficcionais ou virtuais que aliaacutes satildeo uma parte importante do seu domiacutenio O esteta eacute em

suma aquele que pensa o mundo e a experiecircncia humana de uma forma bela uma

forma mais holiacutestica que natildeo descarta a dimensatildeo sensiacutevel e particular e que as integra

de modo anaacutelogo ao racional no proacuteprio desenvolvimento da sua estrutura intelectual

aprimorando progressivamente a cadeia de sensaccedilotildees passiacutevel de se estabelecer a cada

reflexatildeo sobre si e sobre o mundo sem a condicionar ao fechamento dos conceitos A

estrutura e a clareza do raciociacutenio loacutegico natildeo satildeo alcanccedilaacuteveis senatildeo agrave custa de um

empobrecimento do real e de uma amputaccedilatildeo artificial da sua natureza englobante e

multidimensional Eacute como alternativa a tal sistematizaccedilatildeo do real que surge a

esteacutetica ndash no fundo como um modo adequado de aceder agrave complexidade integrada

do todo a partir do particular

O conceito de analogon rationis que entra na definiccedilatildeo de esteacutetica e que surge

por variadiacutessimas vezes na obra de Baumgarten811

tanto se refere agrave razatildeo anaacuteloga

paralela agrave razatildeo que lida com a loacutegica como ao pensamento analoacutegico ou raciociacutenio

por analogia desde que este uacuteltimo seja entendido por oposiccedilatildeo ao raciociacutenio que liga

os dados da sensibilidade aos conceitos ou seja desde que seja entendido como o

raciociacutenio que liga as percepccedilotildees sensiacuteveis agravequilo que Baumgarten designa de

perceptiones obscurae e que constituem confusamente o fundus animae812

Para

Baumgarten a confusatildeo eacute uma condiccedilatildeo sine qua non para a descoberta da verdade uma

vez que a natureza natildeo apresenta hiatos entre a obscuridade e a distinccedilatildeo813

A

abstracccedilatildeo essa sim eacute que instaura uma fractura no real814

O conceito de analogon

rationis refere-se portanto a uma faculdade paralela agrave razatildeo que permite estabelecer um

nexo de similaridade (analogia) entre a estrutura basilar mental (ou fundus animae) e a

sensaccedilatildeo do proacuteprio real daiacute que a cogniccedilatildeo por esta via ndash a cogniccedilatildeo esteacutetica ndash seja

imediata

810

Cf Ibid sect 440 e 441 p 280-281

811 Cf por exemplo Ibid sect 74 p 32 sect 437 p 278 sect 468 p 299 sect 608 p 397 entre outras

812 Cf Id Metaphysica sect 511 p 176 e Aesthetica sect 80 p36

813 Cf Id Aesthetica sect 7 p 3

814 Cf Ibid sect 560 p 363

289

Ainda no final do seacuteculo XVIII a esteacutetica entra nos curriacuteculos das universidades

alematildes como disciplina mas sem a amplitude que Baumgarten lhe advogava Na

verdade mais do que uma esteacutetica a disciplina comeccedila a tomar a forma de uma

kalologia A acepccedilatildeo da aisthesis ndash ou percepccedilatildeo sensiacutevel ndash que estaacute na origem do nome

da disciplina vai perdendo forccedila no sentido em que a sensibilidade e a sensaccedilatildeo

comeccedilam a ser relegadas para um plano secundaacuterio

Kant Schiller Schelling e Hegel815

seratildeo os verdadeiros pais da esteacutetica que

hoje em dia se pratica nas universidades Se constrangeram o projecto disciplinar

baumgartiano tambeacutem lhe conferiram um acreacutescimo de credibilidade filosoacutefica ndash uma

credibilidade que natildeo voltaacutemos a reencontrar Kant desvaloriza a perspectiva de

Baumgarten por considerar improcedente a analogia entre a experiecircncia esteacutetica e o

conhecimento racional A nova orientaccedilatildeo que o filoacutesofo de Koumlnigsberg daacute agrave

problemaacutetica da esteacutetica condu-la a um enfoque sobretudo direccionado para as

questotildees do belo e do prazer nas quais o conceito de desinteresse assume protagonismo

Em 1790 eacute publicada a Criacutetica da Faculdade de Julgar cuja primeira parte eacute dedicada

ao juiacutezo esteacutetico tido como a resposta que imediatamente procede a representaccedilatildeo de

um objecto esteacutetico sem se basear num conceito determinado mas ainda assim com

validade universal

A representaccedilatildeo resultante da experiecircncia de um objecto belo produz um estado

anaacutelogo agravequele que precede a formaccedilatildeo de um conceito promovendo um prazer

intelectual especiacutefico pelo livre jogo entre as faculdades cognitivas (imaginaccedilatildeo e

entendimento) Este prazer eacute o que constitui a sensaccedilatildeo do belo Portanto na

experiecircncia do belo o juiacutezo esteacutetico eacute subjectivo natildeo podendo nunca considerar-se um

juiacutezo de conhecimento e eacute desinteressado Ainda assim de um modo distinto agravequele

que se observava na perspectiva baumgartiana tambeacutem para Kant parece haver na

815

Tambeacutem Shaftesbury (1671-1713) Hutcheson (1694-1746) Hume (1711-1776) e Burke (1729-1797)

satildeo tambeacutem nomes incontornaacuteveis poreacutem natildeo os abordaremos visto ser nosso propoacutesito salientar os

autores com contributo paradigmaacutetico quanto agrave orientaccedilatildeo que a disciplina foi tomando apoacutes a proposta

baumgartiana e natildeo fazer um resumo abrangente da histoacuteria da esteacutetica Shaftesbury e Hutcheson

centram as suas reflexotildees na analogia entre a beleza e a virtude que encontraraacute fortes ecos na perspectiva

de Schiller Hume eacute bastante influenciado pela proposta de Hutcheson acerca do fundamento emocional

dos juiacutezos morais e pela teoria do gosto e da imaginaccedilatildeo de Joseph Addison (1672-1719) este uacuteltimo

influenciaraacute Burke e Kant relativamente agrave temaacutetica do sublime Por seu turno Hume influencia Kant no

que toca agrave defesa da independecircncia dos juiacutezos esteacuteticos O contributo de Burke eacute fundamental para a

questatildeo do sublime quanto aos aspectos fisioloacutegicos da sua percepccedilatildeo e quanto ao caraacutecter mutuamente

exclusivo em relaccedilatildeo agrave beleza A sua perspectiva distancia-se da de Kant no que toca ao sentido moral ou

transcendente da experiecircncia do sublime

290

experiecircncia esteacutetica uma certa sensaccedilatildeo de relaccedilatildeo entre a realidade exterior e os

sentidos internos do sujeito como se a realidade exterior presentificasse de imediato

essa validade universal que natildeo eacute alheia ao domiacutenio da moral e que mais intensamente

se faz sentir com a experiecircncia do sublime Na experiecircncia da beleza a relaccedilatildeo em

causa eacute de harmonia enquanto que na experiecircncia do sublime eacute de desproporccedilatildeo e de

revelaccedilatildeo imediata dos limites da imaginaccedilatildeo acabando por intervir tambeacutem a razatildeo816

Kant interessa-se tambeacutem pela arte e pelas ideias esteacuteticas que subjazem agrave sua

produccedilatildeo Estas ideias natildeo satildeo traduziacuteveis por conceitos pois resultam da faculdade da

imaginaccedilatildeo elas satildeo apenas traduziacuteveis nas formas que as materializaratildeo artisticamente

e que seratildeo objecto dos juiacutezos esteacuteticos pelo que as suas caracteriacutesticas correspondem

tambeacutem agrave possibilidade de garantir que tais juiacutezos sejam livres de quaisquer conceitos

ou interesse817

O geacutenio eacute precisamente a faculdade associada agraves ideias esteacuteticas que

certos indiviacuteduos privilegiados possuem por dom da natureza ou seja ldquoeacute a disposiccedilatildeo

inata do acircnimo (ingenium) pela qual a natureza confere regras agrave arterdquo818

Com Kant a esteacutetica viu a proposta baumgartiana ser relegada para um plano de

mera curiosidade histoacuterica e consolidou como aacutereas centrais de enfoque a questatildeo do

belo na arte e na natureza e as formulaccedilotildees de juiacutezo esteacutetico prazer esteacutetico e

desinteresse A temaacutetica do geacutenio e da sublimidade abriram as portas para o

romantismo que foi tambeacutem uma eacutepoca crucial para a consolidaccedilatildeo da esteacutetica

sobretudo atraveacutes dos contributos de Schiller e de Schelling

Schiller publica em 1795 o livro Sobre a educaccedilatildeo esteacutetica do homem numa

seacuterie de cartas819

onde segundo o proacuteprio testemunha ao seu mecenas

Augustenburg820

intenta completar a perspectiva kantiana presente na Criacutetica da

Faculdade de Julgar Tal propoacutesito visava em concreto ultrapassar a ideia de que o

reconhecimento do belo assentava num mero jogo entre o entendimento e a imaginaccedilatildeo

816

Eacute na relaccedilatildeo tensional entre a imaginaccedilatildeo e a razatildeo que se gera um prazer negativo

817 Kant CFJ sect 46

818 Id op cit sect 46

819 O tiacutetulo original eacute Uumlber die aumlsthetische Erziehung des Menschen in einer Reihe von Briefen

820 Carta de 9 de Feveiro de 1793 citada por Maacutercio Suzuki em laquoO belo como imperativoraquo in Schiller

Sobre a educaccedilatildeo esteacutetica do homem R Schwarz (trad) S Paulo Iluminuras 2002 p 8

291

de modo a libertar a disciplina esteacutetica do jugo da subjectividade Para tal havia que

propor um elo entre o juiacutezo esteacutetico e os princiacutepios da razatildeo praacutetica

Schiller defende uma dualidade da natureza humana como razatildeo e sensibilidade

pelo que qualquer elevaccedilatildeo moral deveraacute contemplar tambeacutem a dimensatildeo sensiacutevel O

homem nobre ndash aquele que cultiva a sensibilidade quer pela criaccedilatildeo de obras belas quer

pela sua mera contemplaccedilatildeo ndash vai para aleacutem do imperativo categoacuterico no sentido em

que natildeo apenas vecirc o sujeito racional autonomamente enquanto fim em si mesmo como

espraia essa autonomia a tudo o que estaacute em seu redor 821

O homem educado pelo belo

seraacute portanto um homem virtuoso para o qual a felicidade equivale agrave dignidade o

prazer ao dever numa unificaccedilatildeo ideal sem preeminecircncia de um sobre o outro Tal

dualismo ideal seria o pleno desenvolvimento da proacutepria estrutura humana na livre

harmonia da sua orientaccedilatildeo formal ou Formtrieb (proveniente do seu cariz racional)

com a orientaccedilatildeo sensiacutevel ou Sinnestrieb harmonia esta que Schiller traduz pelo

conceito Spieltrieb enfatizando a ideia de impulso luacutedico que une estas duas dimensotildees

antropoloacutegicas tensionais822

Schiller escreve

O objecto do impulso luacutedico representado num esquema geral poderaacute

ser chamado forma viva um conceito que serve para designar todas as

qualidades esteacuteticas dos fenoacutemenos tudo o que em resumo entendemos no

sentido mais amplo por belo823

A experiecircncia do belo eacute afim da liberdade permitindo uma continuidade entre a

dimensatildeo sensiacutevel e da razatildeo que Kant enfaticamente negara Embora excessivamente

centrado na questatildeo artiacutestica e no conceito de belo Schiller oscila ainda para uma

perspectiva da disciplina esteacutetica onde podem ser reconhecidos alguns ecos da proposta

baumgartiana por exemplo atraveacutes de uma correspondecircncia entre o homem virtuoso e o

felix aestheticus ndash ambos traduzem um saber viver potenciado pelo aperfeiccediloamento da

sensibilidade

821

Cf Schiller Sobre a educaccedilatildeo esteacutetica do homem carta XXIII [R Schwarz (trad) S Paulo

Iluminuras 2002 p 117-120]

822 Eacute oacutebvio o paralelo com a ideia kantiana de prazer esteacutetico como jogo livre entre a imaginaccedilatildeo e o

entendimento que Schiller retoma de um modo muito mais abrangente e mesmo radical Cf Ibid carta

XV pp 77-82

823 Ibid carta XV pp 77

292

Para Schelling a esteacutetica surge no acircmbito da tentativa em encontrar um fundo

comum entre o ideal e a realidade soacute a arte como produto de uma actividade

simultaneamente consciente e inconsciente permite a unificaccedilatildeo entre a subjectividade

e a objectividade A arte tange simultaneamente a necessidade e a liberdade e a

identificaccedilatildeo da actividade inconsciente com a actividade consciente daacute-se no eu intuiacutedo

em si mesmo isto eacute no eu consciente de tal identidade A inteligecircncia como

subjectividade racional reconhece em si os princiacutepios dessa identidade que natildeo eacute mais

do que uma manifestaccedilatildeo do absoluto Agrave filosofia cabe articular o absoluto poreacutem soacute a

arte consegue objectivaacute-lo como expressatildeo da consciecircncia universal da intuiccedilatildeo

intelectual824

A intuiccedilatildeo esteacutetica eacute precisamente a objectivaccedilatildeo da intuiccedilatildeo

intelectual825

Aleacutem daquilo que com manifesta intenccedilatildeo coloca na sua obra o artista parece

instintivamente conseguir representar uma infinidade que nenhum entendimento finito eacute

capaz de desenvolver integralmente Uma verdadeira obra de arte comporta uma

infinidade de intenccedilotildees e pode ser interpretada ateacute ao infinito sem que possamos jamais

dizer se esta infinidade reside no artista ou simplesmente na obra de arte 826

A arte torna

presente uma beleza superior eterna emanada do absoluto em relaccedilatildeo agrave qual as belezas

sensiacuteveis satildeo uma versatildeo secundaacuteria degradada Natildeo haacute qualquer subordinaccedilatildeo da arte agrave

natureza cuja beleza eacute contingente e incapaz de funcionar como cacircnone para a arte

ainda que o artista deva prestar atenccedilatildeo agrave vida que subjaz agrave natureza

Segundo o filoacutesofo se subtrairmos a objectividade da arte ela deveacutem filosofia e

se conseguirmos garantir objectividade agrave filosofia ela cessa de ser aquilo que eacute e deveacutem

arte827

Foi precisamente com Schelling e com Hegel que a filosofia da arte consolidou a

sua posiccedilatildeo central no seio da esteacutetica a ponto de ainda hoje muitos filoacutesofos

considerarem sinoacutenimas as designaccedilotildees lsquoesteacutetica filosoacuteficarsquo e lsquofilosofia da artersquo

824

Cf Schelling The System of Transcendental Idealism Peter Heath (trans) Charlottesville University

of Virginia Press 1993 p 232

825 Cf Id op cit p 229

826 Cf Id op cit p 225

827 Cf Id op cit p 233

293

A consideraccedilatildeo da esteacutetica como intermediaacuteria entre a dimensatildeo transcendente e

a dimensatildeo imanente eacute abandonada por Hegel cuja obra poacutestuma Cursos de Esteacutetica828

constitui a primeira grande sistematizaccedilatildeo teoacuterica acerca da natureza da obra de arte

Para este autor a esteacutetica deixa de ter uma capacidade reveladora na acepccedilatildeo que os

seus antecessores lhe atribuiacuteam e deixa tambeacutem de fazer sentido como ciecircncia da

sensaccedilatildeo Soacute a filosofia da arte concerne a esteacutetica natildeo sendo de estranhar a exclusatildeo da

beleza natural do acircmbito disciplinar esteacutetico A esteacutetica teoloacutegica tambeacutem natildeo tem aiacute

lugar uma vez que o que ocupa agora a disciplina satildeo os aspectos formais e estiliacutesticos

da arte que natildeo encontram adequada aplicaccedilatildeo na consideraccedilatildeo da experiecircncia esteacutetica

ao niacutevel religioso Natildeo sendo a arte uma forma elevada de expressatildeo ndash como para Hegel

o satildeo a religiatildeo e a filosofia ndash ela eacute esteacuteril quanto ao alcance do tipo de verdades com as

quais lidam a religiatildeo e a filosofia Eacute neste seguimento que surge o seu mais famoso

aforismo acerca da arte

A arte eacute e permanece para noacutes quanto agrave sua mais elevada vocaccedilatildeo algo

do passado Assim ela perdeu tambeacutem para noacutes a sua verdade e a sua vida

autecircnticas e foi transferida para as nossas ideias ao inveacutes de manter a sua

anterior necessidade na realidade e aiacute ocupar o seu posto superior829

Esta sua afirmaccedilatildeo sobre o fim da arte iria influenciar toda uma seacuterie de

pensadores como Adorno Heidegger Lukaacutecs Derrida ou Danto A especulaccedilatildeo

hegeliana natildeo soacute rompe com a perspectiva de que a esteacutetica eacute holiacutestica e pode

manifestar ao homem a transcendecircncia como rompe tambeacutem com a tradiccedilatildeo fundada na

ideia de gosto cuja anaacutelise se centrava nas condiccedilotildees do juiacutezo esteacutetico Ainda assim o

filoacutesofo natildeo nega totalmente o caraacutecter revelador da experiecircncia esteacutetica da obra de arte

considerando que ela promove uma aproximaccedilatildeo da aparecircncia das ideias mais elevadas

aos sentidos e aos sentimentos830

A forma sensual como a arte presentifica tais ideias

impede poreacutem que se tomem como regra ou maacutexima universal

828

No original Vorlesungen uumlber die Aumlsthetik Esta obra eacute resultante dos cursos sobre esteacutetica

ministrados por Hegel nas Universidades de Heidelberg (1918) e de Berlim (182021 1823 1826 e

182829) A publicaccedilatildeo em 1835 resulta da compilaccedilatildeo de notas a partir dos proacuteprios manuscritos de

preparaccedilatildeo das aulas de Hegel e das anotaccedilotildees registadas pelos alunos durante os cursos

829 G W F Hegel Aesthetics Lectures on Fine Art T M Knox (trad) vol 1 Oxford Clarendon Press

1998 p 11

830 Id op cit p 10

294

Eacute tambeacutem Hegel quem mais notoriamente pressupotildee a ideia da necessidade de um

sistema de amplitude teoacuterica englobante ndash do qual a esteacutetica faz parte ndash caracterizado pela

ausecircncia de dualismos e orientado para o fito de alcanccedilar uma realizaccedilatildeo absoluta do

saber filosoacutefico que faria da filosofia uma verdadeira ciecircncia

O contributo para a esteacutetica de Schopenhauer Nietzsche Heidegger e de tantos

outros filoacutesofos que se seguiram mereceria uma anaacutelise que aqui natildeo faremos por

ultrapassar jaacute a problemaacutetica do momento fundacional da esteacutetica A originalidade das

suas propostas natildeo deixa de ser enquadraacutevel na moldura jaacute definida durante o periacuteodo

do Idealismo alematildeo831

Eacute esta moldura que ainda hoje aprisiona a ideia que temos da

esteacutetica a um modelo ultrapassado que por um lado natildeo eacute capaz de integrar plenamente

o contributo dos autores antigos e medievos por exemplo e por outro lado nem

sempre consegue acompanhar as diversas tendecircncias e problemaacuteticas que tecircm surgido

nas uacuteltimas deacutecadas acerca do modo como o sujeito se relaciona sensualmente com o

mundo e acerca das articulaccedilotildees que a sensibilidade pode manter com a razatildeo

A esteacutetica contemporacircnea ao debruccedilar-se sobre si mesma parece ter-se

apercebido que a credibilidade e a importacircncia gozadas no dealbar da sua constituiccedilatildeo

como disciplina filosoacutefica se esbateram transformando-a numa espeacutecie de filha espuacuteria

da filosofia sempre em vias de escorregar para famiacutelias do conhecimento que natildeo a

filosoacutefica ou mesmo em risco de perder toda a viabilidade nas esferas do saber O

esbatimento da sua relevacircncia no seio da filosofia prende-se precisamente com uma

certa petrificaccedilatildeo do seu campo de estudo e com a limitaccedilatildeo dos seus quadros

categoriais que acabam por se revelar insuficientes mesmo em relaccedilatildeo agraves tradicionais

aacutereas de aplicaccedilatildeo A categoria esteacutetica do belo em relaccedilatildeo agrave arte eacute disso o exemplo

mais gritante mas poder-se-aacute tambeacutem pensar no caso da teorizaccedilatildeo da experiecircncia

esteacutetica da natureza e da paisagem que ainda hoje luta por se livrar das perspectivas

pitorescas e do jargatildeo da filosofia da arte

831

Por exemplo Heidegger retoma o entendimento schellinguiano da arte como reveladora da natureza do

real ao atribuir-lhe um papel importante no domiacutenio da verdade como desvelamento No caso de

Nietzsche apesar da sua ruptura com as perspectivas tradicionais e da radicalidade da sua teoria natildeo

deixa de trilhar a esteira de Schelling considerando a arte como a manifestaccedilatildeo esteacutetica por excelecircncia e

determinando-lhe superioridade em relaccedilatildeo ao conhecimento conceptual Tambeacutem como Schelling

Schopenhauer incide na capacidade de objectivaccedilatildeo da arte e retomando a terminologia kantiana do

sublime matemaacutetico e dinacircmico estabelece uma relaccedilatildeo entre a dimensatildeo moral e a disposiccedilatildeo mental

que o sublime convoca

295

Na constataccedilatildeo de uma certa marginalidade e desprestiacutegio a esteacutetica tem

procurado contrariar esse estatuto pela estrateacutegia expansionista da interdisciplinaridade

e da esteticizaccedilatildeo consistindo esta uacuteltima na promoccedilatildeo a lugar esteacutetico conferida agraves

mais variadas paisagens experiecircncias objectos e situaccedilotildees e pelo esbatimento da

fronteira entre a esteacutetica e o quotidiano Poreacutem essa tendecircncia que promove o espraiar

da experiecircncia esteacutetica para laacute do confinamento da arte poderaacute parecer tambeacutem

condenaacute-la filosoficamente ndash perspectiva que natildeo subscrevemos A pluralizaccedilatildeo dos

lugares esteacuteticos eacute injustamente tida como uma ameaccedila agrave proacutepria sensibilidade e agrave

dimensatildeo eacutetica das nossas vivecircncias A resposta a tais receios passa pela rejeiccedilatildeo do

caraacutecter uniacutevoco e desinteressado da experiecircncia esteacutetica e pela assunccedilatildeo de que o

esteacutetico nunca eacute um predicado exaustivo e irreversiacutevel que outorgamos a determinadas

coisas ou situaccedilotildees

A noccedilatildeo kantiana de desinteresse marcou profundamente a esteacutetica

contemporacircnea e embora ateacute pudesse ter sido reencaminhada para interpretaccedilotildees que

sublinhassem a possibilidade de estender a experiecircncia esteacutetica a outros lugares que natildeo

a arte ou a natureza a verdade eacute que tal natildeo ocorreu O desinteresse associado agrave

experiecircncia esteacutetica constitui um dos principais argumentos contra a esteticizaccedilatildeo do

quotidiano Esta forma de descentralizar a filosofia da arte da experiecircncia esteacutetica

embora tenha vindo a ganhar terreno na uacuteltima deacutecada tem tambeacutem sido alvo de

inuacutemeras criacuteticas A pluralizaccedilatildeo dos lugares esteacuteticos eacute tida como uma ameaccedila agrave

proacutepria sensibilidade de dois modos por um lado teme-se uma anestesia por excesso e

por outro lado teme-se uma desequilibrada subjectivizaccedilatildeo das experiecircncias com

consequecircncias ao niacutevel do nosso relacionamento com os outros O prazer desinteressado

pressuposto na experiecircncia esteacutetica eacute tido como um prazer exclusivo um prazer em si e

por si que no contexto das situaccedilotildees e das relaccedilotildees do dia-a-dia poderaacute comprometer

um envolvimento seacuterio do sujeito e mesmo condicionar por exemplo a sua capacidade

de agir segundo convenccedilotildees morais A passagem do contexto artiacutestico para o contexto

da vida quotidiana seja nas suas trivialidades seja nas suas trageacutedias configura-se

problemaacutetica A esteticizaccedilatildeo das situaccedilotildees do dia-a-dia eacute a esteticizaccedilatildeo do mundo e

pode reduzi-lo a um lugar de prazer subjectivo desinteressado A contemplaccedilatildeo esteacutetica

pode parecer descabida em determinados contextos pois arrisca transformar-se numa

indiferenccedila ao sofrimento dos outros

A resposta a esta criacutetica passa por se rejeitar a impreteribilidade do divoacutercio

entre o prazer esteacutetico e outras dimensotildees da experiecircncia como por exemplo a

296

consciecircncia eacutetica ndash os objectos ou as situaccedilotildees natildeo satildeo territoacuterios de experiecircncia

lineares pois implicam que nos relacionemos com eles a um niacutevel multidimensional

Uma laacutegrima no rosto de algueacutem natildeo se resume a H2O+NaCl e sabemos interpretaacute-la

como uma manifestaccedilatildeo de tristeza ou de felicidade consoante o contexto Do mesmo

modo sabemos quando devemos ser sensiacuteveis e solidaacuterios antes de qualquer outro tipo

de resposta agrave visatildeo da laacutegrima ou se podemos ter a liberdade de a tomar no seu brilho

diaacutefano e atender placidamente agrave sinuosidade da linha huacutemida que desenha na pele pela

sua escorrecircncia Natildeo satildeo os objectos ou as situaccedilotildees que fazem a relaccedilatildeo esteacutetica eacute a

relaccedilatildeo que faz com que assumamos esteticamente os objectos ou as situaccedilotildees Essa

assunccedilatildeo resulta de uma escolha livre por parte do sujeito supostamente assente no

bom senso

Quaisquer objectos e situaccedilotildees podem ser assumidos esteticamente ndash o

quotidiano pode ser um lugar esteacutetico ndash natildeo significando isso que o esteacutetico seja um

predicado exaustivo e irreversiacutevel A experiecircncia de um prazer puro absolutamente

inebriante a tal ponto de se tornar irreprimiacutevel e exclusivo parece descrever melhor um

orgasmo do que um encontro esteacutetico A palavra lsquoencontrorsquo natildeo seraacute aqui fortuita ndash a

experiecircncia esteacutetica pode ser expressamente procurada e haacute lugares onde mais

facilmente a encontramos como num museu de arte onde os objectos e o contexto se

predispotildeem a tal encontro e nos quais haacute uma maior margem de liberdade para que o

desinteresse aconteccedila mas fora da redoma que a categoria lsquoartersquo confere aos objectos e

agraves situaccedilotildees o encontro esteacutetico pode ocorrer inesperadamente e em contextos que

exigem uma escolha por parte do sujeito ou melhor uma decisatildeo acerca das prioridades

relativas agraves diferentes dimensotildees da experiecircncia sendo que estas dimensotildees natildeo

compartimentam rigidamente a experiecircncia nem se circunjazem de forma estanque A

dimensatildeo esteacutetica natildeo inviabiliza de todo a dimensatildeo moral coisa que aliaacutes era jaacute

perfeitamente reconhecida pelos filoacutesofos do Idealismo alematildeo

Relativamente ao argumento que vecirc na esteticizaccedilatildeo do quotidiano uma via para

a anestesia por excesso ele assenta na ideia absolutamente correcta de que seriacuteamos

incapazes de viver num estado de perene encantamento com o mundo Poreacutem essa

impossibilidade natildeo significa que realmente ocorra uma espeacutecie de sobrecarga esteacutetica

ou uma intoxicaccedilatildeo da sensibilidade de tal ordem que nos pudesse conduzir a um

estado de lsquofilistinismorsquo total e abrangente Esta anestesia soacute seria possiacutevel se natildeo

tiveacutessemos a liberdade e a capacidade de nos relacionarmos de uma forma multiacutevoca

com os objectos que constituem a nossa experiecircncia do mundo Mais uma vez

297

deparamo-nos com o mito do desinteresse e com a consequente exclusividade do prazer

esteacutetico que goraria a nossa capacidade natural de experienciar os objectos e as

situaccedilotildees de forma multidimensional e integrada Por norma essa nossa capacidade faz

com que sejamos livres para determinarmos previamente o grau de arrebatamento que

estamos dispostos a sentir ante um objecto ou situaccedilatildeo num determinado contexto As

outras dimensotildees da experiecircncia podem mesmo funcionar como factores de equiliacutebrio

na gestatildeo do sentimento esteacutetico ao apresentarem alternativas ou complementos ao

nosso empenho relativamente a essa dimensatildeo esteacutetica Temos autonomia suficiente

para natildeo confundir o ilimitado potencial esteacutetico da experiecircncia das coisas que nos

rodeiam com a efectiva experiecircncia esteacutetica que delas fazemos

O reconhecimento de que qualquer coisa ou situaccedilatildeo pode ser um lugar esteacutetico

natildeo implica portanto que se tema a anestesia relativamente a outras dimensotildees da

experiecircncia nem a anestesia que eacute expressa na foacutermula se tudo eacute esteacutetico nada eacute

esteacutetico Coloca-se entatildeo a questatildeo sobre as razotildees que levam ao constrangimento por

parte da filosofia em dar aos lugares quotidianos o mesmo estatuto esteacutetico que daacute agrave arte

e que felizmente recomeccedila a dar agrave natureza Por outras palavras porque eacute que a

pluralizaccedilatildeo dos lugares esteacuteticos e a descentralizaccedilatildeo da filosofia da arte ameaccedilam

filosoficamente a esteacutetica Por um lado parece haver um receio de contaminaccedilatildeo

interdisciplinar que como jaacute vimos fragilizaria o estatuto filosoacutefico da esteacutetica pela

diluiccedilatildeo das suas fronteiras Por outro lado porque se trata de uma disciplina que desde

cedo se virou para a arte e que encontrou na categoria artiacutestica um porto seguro para o

discurso do prazer desinteressado

A noccedilatildeo de desinteresse desadequa-se agraves questotildees do quotidiano ateacute porque o

facto de nos relacionarmos desinteressadamente com algo eacute tido como uma libertaccedilatildeo

das pressotildees do dia-a-dia A experiecircncia esteacutetica assume essa desvinculaccedilatildeo das

preocupaccedilotildees de natureza praacutetica que maioritariamente caracterizam o quotidiano pelo

que se supotildee mais coerente com as excepccedilotildees com as coisas ou situaccedilotildees especiais A

arte eacute talvez o melhor territoacuterio para o confronto entre o sujeito e aquilo que natildeo lhe eacute

familiar e enquanto territoacuterio de novidade e estranheza o seu potencial esteacutetico eacute

enorme Em contextos que nos satildeo familiares tendemos a ver as coisas na sua dimensatildeo

praacutetica e a desvalorizar a sua dimensatildeo esteacutetica natildeo eacute portanto de se estranhar o

298

casamento automaticamente feito entre esteacutetica e arte e a negligecircncia a que a disciplina

condena o quotidiano832

Pela arte a experiecircncia esteacutetica tem uma distinccedilatildeo muito mais clara e quase

imediata de outros tipos de experiecircncia ndash as fronteiras entre o que eacute esteacutetico e o que natildeo

o eacute satildeo menos problemaacuteticas Aleacutem disso a arte faculta uma espeacutecie de moldura ou

enquadramento que torna aceitaacutevel e coerente o tal prazer desinteressado O contexto da

arte atraveacutes dessa moldura delimita o espaccedilo de exterioridade em que nos podemos

quedar na seguranccedila da contemplaccedilatildeo supostamente sem nos obrigar a estabelecer

prioridades quanto a certas dimensotildees da experiecircncia Eacute graccedilas a essa exterioridade que

automaticamente assumimos face agrave arte que ela ocasiona situaccedilotildees como a morte do

catildeo que fazia parte da instalaccedilatildeo do costa-riquenho Guillermo Vargas Assumimos que

se eacute arte entatildeo eacute suposto contemplarmos natildeo eacute suposto agirmos assumimos portanto

que natildeo nos devemos posicionar inter-esse Aleacutem do desinteresse a arte contemporacircnea

veio ditar a desadequaccedilatildeo de outros pressupostos esteacuteticos como o belo mas mais do

que isso veio demonstrar que as categorias artiacutesticas natildeo correspondem

necessariamente agraves categorias esteacuteticas Significa isto que a esteacutetica enquanto disciplina

pode alargar-se filosoficamente a outros lugares que natildeo a arte sem necessariamente

adoptar os modelos da arte ao campo esteacutetico desses outros lugares

Nos uacuteltimos anos a reabilitaccedilatildeo da esteacutetica da natureza tem contribuiacutedo bastante

para esta perspectiva ao defender o natildeo confinamento da experiecircncia esteacutetica da

natureza agraves categorias artiacutesticas e ao propor a sua integraccedilatildeo no processo activo do

relacionamento entre o sujeito e os seus ambientes A esteacutetica somaacutetica de Richard

Shusterman comeccedila tambeacutem a ganhar alguma credibilidade no meio filosoacutefico

inclusivamente tecircm surgido propostas para sub-nuacutecleos desse lugar esteacutetico ndash eacute o caso

da lsquoesteacutetica da digestatildeorsquo desenvolvida por Christian Denker (Universidade de Viena)

Com a esteacutetica somaacutetica apercebemo-nos que o prazer esteacutetico pode natildeo resultar

exclusivamente das experiecircncias que nos satildeo facultadas pelos cinco sentidos ou pela

imaginaccedilatildeo A propriocepccedilatildeo por exemplo poderaacute abrir caminho a novas categorias

esteacuteticas A esteacutetica somaacutetica posiciona-se na tradiccedilatildeo que assume a experiecircncia esteacutetica

natildeo numa dimensatildeo exterior superficial baseada na contemplaccedilatildeo e no prazer

desinteressado mas na dimensatildeo criacutetica e auto-reflexiva do encontro em que o prazer

se assume como um ganho como um enriquecimento pessoal O prazer esteacutetico do

832

O tiacutetulo de Arthur Danto The transfiguration of de Commonplace eacute disto ilustrativo

299

ganho que se opotildee ao prazer desinteressado eacute relativo agrave experiecircncia de qualquer lugar

esteacutetico e obviamente estaacute tambeacutem presente na relaccedilatildeo do sujeito com uma obra de

arte Eacute a este lsquoprazer-ganhorsquo que Steiner se parece referir quando diz que o encontro

com uma obra de arte propotildee uma mudanccedila ao impor uma questatildeo ao fruidor ldquoComo

sentes e o que pensas das possibilidades da vida das formas alternativas do ser que

estatildeo impliacutecitas na tua experiecircncia de mim no nosso encontrordquo833

A esteacutetica somaacutetica consiste no estudo criacutetico e melhorativo das experiecircncias e

dos usos do corpo como lugar de apreciaccedilatildeo sensoacuteria e da proacutepria praacutetica criativa Ou

seja ela baseia-se no aperfeiccediloamento da consciecircncia dos nossos estaacutedios e sensaccedilotildees

corpoacutereas A atenccedilatildeo dada a este funcionamento do corpo permite por exemplo

controlar e evitar estados de maacute disposiccedilatildeo ou mesmo de doenccedila que natildeo soacute limitam o

prazer e desencadeiam dor como enfraquecem os sentidos diminuindo a nossa

capacidade der atender agraves dimensotildees esteacuteticas que nos rodeiam A esteacutetica somaacutetica natildeo

se limita a aplicar categorias artiacutesticas ao corpo natildeo o trata como um mero objecto de

valor de contemplaccedilatildeo e de criaccedilatildeo esteacutetica mas sobretudo como um medium sensoacuterio

por si e pela sua capacidade em lidar com outros lugares esteacuteticos Ao incluir tambeacutem

uma vertente praacutetica e interdisciplinar surge na senda da proposta esteacutetica

baumgartiana

Assim a pluralizaccedilatildeo dos lugares esteacuteticos e o descentramento da filosofia da

arte no seio da esteacutetica natildeo ameaccedilam filosoficamente a disciplina se esta for

perspectivada no seio desta tradiccedilatildeo que tem sido negligenciada pela filosofia mais do

que isso a abertura e a abrangecircncia que caracteriza tal visatildeo da esteacutetica eacute talvez a

soluccedilatildeo para o lugar cada vez mais marginal que a esteacutetica aufere no seio da filosofia

Quanto agrave esteacutetica do quotidiano talvez ainda seja um lugar esteacutetico demasiado amplo e

heteroacuteclito que precise ser cindido em vaacuterios nuacutecleos constituintes de modo a

predispor-se agrave estruturaccedilatildeo de um corpo de estudo com a coerecircncia que a esteacutetica da

natureza jaacute tem e que a esteacutetica somaacutetica comeccedila a ter

Sendo um ramo tatildeo recente da filosofia a esteacutetica parece querer garantir a

validade do seu estatuto filosoacutefico de modo ambivalente por um lado sublinhando a

833

George Steiner Real Presences University of Chicago Press 1991 p 142 laquo What do you feel what

do you think of the possibilities of life of the alternative shapes of being which are implicit in your

experience of me in our encounterraquo

300

distinccedilatildeo e as fronteiras relativamente aos restantes ramos filosoacuteficos e por outro lado

mediando os departamentos artificiais dos quais ela proacutepria faz parte na esfera do saber

Esta ambivalecircncia levou a que se equacionasse a possibilidade de uma esteacutetica

interdisciplinar que natildeo tem sido bem-vinda no seio da filosofia A esteacutetica

interdisciplinar natildeo deve ser entendida como uma permeabilizaccedilatildeo exacerbada da

esteacutetica relativamente agraves outras disciplinas filosoacuteficas a ponto de nelas se diluir e perder

o estatuto diferenciado que alcanccedilou no seacuteculo XVIII nem como um mero canal de

interacccedilatildeo entre as diferentes disciplinas e formas de expressatildeo artiacutestica ndash como as artes

plaacutesticas cinema muacutesica literatura ou ateacute mesmo o design ndash e os discursos teoacutericos que

sobre elas versam sob o risco de perder a sua pertinecircncia filosoacutefica A esteacutetica

interdisciplinar deveraacute recuperar de algum modo o programa baumgartiano que tinha a

virtude de natildeo estabelecer uma antinomia entre o raciociacutenio loacutegico e a experiecircncia do

conhecimento sensiacutevel e que consignava uma vertente praacutetica que aliada agrave teoria

assumia o propoacutesito do aperfeiccediloamento do potencial cognitivo humano e da forma de

vida ndash ou seja da forma de lidar com as situaccedilotildees do quotidiano

Como um exemplo paradigmaacutetico de esteacutetica interdisciplinar destacamos o

projecto de investigaccedilatildeo da Universidade de Aarhus (Dinamarca) coordenado pelo

Professor Morten Kyndrup834

e intitulado Contemporary Aesthetic Theory Current

Functional Transformations of the Aesthetic Este projecto implementado haacute mais

de 15 anos resultou na criaccedilatildeo de um programa de estudos em esteacutetica

interdisciplinar (Interdisciplinary Aesthetic Studies Program) e num centro de

estudos homoacutenimo Segundo Kyndrup a esteacutetica interdisciplinar eacute um campo

relativamente novo cuja internacionalizaccedilatildeo soacute agora comeccedila a emergir e que exige

uma perspectiva biacutefida da esteacutetica por um lado o reconhecimento da diluiccedilatildeo de

fronteiras entre as artes e entre a arte e todos os outros campos disciplinares

implicando por outro lado o reconhecimento de que a esteacutetica natildeo se confina agrave ar te

e que os fenoacutemenos esteacuteticos bem como as formas esteacuteticas de articular fenoacutemenos

834

Destacamos as seguintes publicaccedilotildees de Kyndrup Aesthetics and Border Lines in Nordisk Estetisk

Tidsskrift nordm 35 Aarhus Aarhus Universitet 2008 pp 24-31 Art Theory versus Aesthetics in C

Entzenberg S Saumlaumltela (eds) Perspectives on Aesthetics Art and Culture Stockholm Thales 2005 pp

175-182 ldquoExplanation and Extinction - the Dilemma of Aesthetic Sciences in ACTS 3 Aarhus Aarhus

Universitet 1988 Art and the Enunciative Paradigm Todays Objectual De-differentiation and its

Impact on Aesthetics in Nordisk estetisk tidskrift nordm 25-26 Aarhus Aarhus Universitet 2002 pp26-38

301

satildeo incontornaacuteveis no dia-a-dia835

Sem constituir uma fuga agrave filosofia a esteticizaccedilatildeo

do quotidiano implica o alargamento das tradicionais fronteiras da esteacutetica e o

estreitamento do fosso entre conhecimento esteacutetico e sociedade contemporacircnea A

esteacutetica interdisciplinar surge na senda da viragem cultural esteacutetica que por seu turno

encontra raiacutezes no criticismo inglecircs do seacutec XVIII e na recusa do conceito de

ldquodesinteresserdquo que tradicionalmente se reporta agrave atitude esteacutetica

No acircmbito deste projecto tecircm sido organizados vaacuterios cursos e vaacuterias

conferecircncias internacionais apoiadas pela NOS-H (Nordic Research Councilsrsquo

Cooperation) e pela Nordic Society of Aesthetics das quais destacamos ldquoThe

Borderlines of Aestheticsrdquo (2003) e ldquoThe Limits of Aestheticsrdquo (2007) Outras

instituiccedilotildees noacuterdicas tecircm seguido este tipo de investigaccedilatildeo inaugurado pela

Universidade de Aarhus eacute o caso da Universidade de Uppsala (Sueacutecia) ndash que acolheu

conferecircncias como ldquoThe Aesthetic Turnrdquo (2001) ou ldquoAesthetics and the aestheticrdquo

(2008) ndash e da Universidade de Trondheim (Noruega) que em 2009 foi palco do

simpoacutesio ldquoThe future of aestheticsrdquo

Aleacutem de Kyndrup integram esta corrente noacuterdica investigadores como Lars-Olof

Aahlberg836

(mais criacutetico quando ao descentramento da filosofia da arte no seio da

esteacutetica) Arto Haapala Malte Lyneborg Carsten Friberg Jacob Lund Pedersen ou Arne

Melberg837

ndash estes uacuteltimos mais ligados agrave questatildeo da incorporaccedilatildeo e da relevacircncia da

dimensatildeo esteacutetica na vida quotidiana Fora da corrente noacuterdica esta questatildeo da

pertinecircncia filosoacutefica da estetizaccedilatildeo do quotidiano tem sido abordada por autores como

835

Cf Kyndrup citado no site oficial do Ministeacuterio dos Negoacutecios Estrangeiros da Dinamarca ndash

DenmarkDK ndash no artigo anoacutenimo ldquoArt without Boundariesrdquo Consultado em 2 de Marccedilo de 2009 in

httpwwwdenmarkdkenmenuAbout-DenmarkScience-ResearchResearch-AreasInterdisciplinary-

Aesthetic-StudiesArtWithoutBoundaries

836 Aahlberg ldquoThe Nature and Limits of Analytic Aestheticsrdquo in The British journal of aesthetics v 33

nordm 1 Oxford Oxford University Press 1993 p5-16 ldquoNotions of the Aesthetic and of Aestheticsrdquo in

Sharon Rider amp Paumlr Segerdahl (eds) Tankar Tillaumlgnade Soumlren Stenlund vol 54 Uppsala Uppsala

Universitet 2008 ldquoIs Aesthetics Possiblerdquo in Peter Keplec (ed) Filozofski vestnik vol 18 nordm1

Ljubljana Znanstvenoraziskovalni center SAZU 1997 pp 153-157

837 Haapala ldquoOn the Aesthetics of the Everyday Familiarity Strangeness and the Meaning of Placerdquo in

Andrew Light amp Jonathan M Smith (eds) The Aesthetics of Everyday Life New York Columbia

University Press 2005 pp 39-55 Malte Lyneborg ldquoFuzzy Aesthetics as an Interdisciplinary fieldrdquo in

Surveys of the Conference The Limitis of Aesthetics Aarhus University 2007 consultado em Junho de 2008 in

wwwaestetikaudkgrpapersmalte_chr_lyneborg J Lund Pedersen ldquoAn Art Afterrdquo in Ekman amp Tygstrup (eds)

Witness Koslashbenhavn Museum Tusculanums Forlag 2008 pp 282-288 Arne Melberg (ed) Aesthetics at

work Oslo Oslo Academic Press 2007

302

Katya Mandoki Yuriko Saito Crispin Sartwell838

entre outros Filoacutesofos como Dewey

ou mesmo Heidegger satildeo apontados como os precursores deste movimento que advoga

a possibilidade da experiecircncia esteacutetica face a objectos ou situaccedilotildees natildeo relacionados

com a arte e que problematiza a distinccedilatildeo entre as belas-artes e as artes populares No

fundo este tipo de abordagem eacute relevante pela perspectivaccedilatildeo do alargamento das

fronteiras tradicionalmente convencionadas para a esteacutetica Sem trilhar a senda da

estetizaccedilatildeo do quotidiano autores como Frank Sibley Wolfgang Welsh Arnold

Berleant e Richard Shusterman839

satildeo outros dos nomes cujo contributo para o espraiar

do campo da esteacutetica natildeo poderaacute ser ignorado

A descentralizaccedilatildeo do belo e da filosofia da arte natildeo constitui uma ameaccedila ao

estatuto filosoacutefico da esteacutetica e haacute caminhos jaacute trilhados pelos filoacutesofos anteriores agrave

delimitaccedilatildeo disciplinar da esteacutetica que podem ser retomados na contemporaneidade

sem o medo de que a dispersatildeo ou a transversalidade lhes retire valor ou pertinecircncia no

seio deste ramo filosoacutefico No fundo natildeo haacute uma extraordinaacuteria novidade nas propostas

que visam o alargamento das fronteiras da esteacutetica pois eacute possiacutevel reconhecer as suas

bases em muitas obras anteriores ao seacuteculo XVIII A consolidaccedilatildeo filosoacutefica de tais

propostas deveraacute inclusivamente levar em conta esse legado do passado sem se quedar

numa espeacutecie de justificaccedilatildeo historicista das mesmas mas percebendo por exemplo de

que modo os autores do passado articulavam as temaacuteticas constitutivas de tais nuacutecleos

que hoje podemos considerar esteacuteticos e qual o nexo que tais nuacutecleos podem assumir

no presente no seio da esteacutetica

A indefiniccedilatildeo do objecto da esteacutetica e as variantes interdisciplinares poderatildeo

fazer da esteacutetica um campo de estudos desconfortaacutevel pela falta de unidade implicada

mas talvez esse desconforto seja ainda o fruto da ideia preconceituosa da imposiccedilatildeo

necessaacuteria do sistema Nada impede que os objectos esteacuteticos sejam de natureza

disjuntiva nem nada exige que a esteacutetica seja um campo de estudos unificado

838

Katya Mandoki Everyday aesthetics Prosaics the Play of Culture and Social Identities Aldershot

Ashgate 2007 Yuriko Saito Everyday aesthetics Oxford Oxford University Press 2007 Crispin

Sartwell ldquoAesthetics of the everydayrdquo in Jerrold Levinson (ed) The Oxford handbook of aesthetics

Oxford Oxford University Press 2005 pp 761-770

839 Sibley Approach to Aesthetics Collected papers on philosophical Aesthetics Oxford J Benson

2001 Welsh Undoing Aesthetics London Thousand Oaks New Delhi SAGE 1997 Berleant Re-

thinking Aesthetics Rogue Essays in Aesthetics and the Arts Aldershot Ashgate 2005 Shusterman

Body Consciousness A Philosophy of Mindfulness and Somaesthetics Cambridge Cambridge University

Press 2008

303

32 ndash Repensando a esteacutetica a partir de Santo Agostinho

A clarificaccedilatildeo da esteacutetica e das suas valecircncias passa tambeacutem pela anaacutelise de

conceitos como experiecircncia esteacutetica emoccedilotildees esteacuteticas e valor esteacutetico A abordagem

relativa a estas formulaccedilotildees parece comeccedilar a substituir a atenccedilatildeo que anteriormente era

sobretudo dada aos conceitos de juiacutezo esteacutetico prazer ou beleza natildeo que o domiacutenio da

anaacutelise conceptual esteacutetica tenha abandonado estes conceitos poreacutem eles comeccedilaram a

revelar-se demasiado restritivos e pouco eficazes quanto a uma aplicaccedilatildeo mais

abrangente como aquela que eacute exigida pelas novas aacutereas do ramo disciplinar em

questatildeo Mesmo no que toca agrave esfera da filosofia da arte os desafios que a produccedilatildeo

artiacutestica contemporacircnea veio trazer resultaram tambeacutem na constataccedilatildeo de uma certa

obsolescecircncia das questotildees do gosto do prazer e da beleza Haacute obras que nos tocam de

um modo significativo e que natildeo podemos deixar de considerar esteacutetico mesmo que

natildeo possamos dizer que gostamos delas que satildeo belas ou que a sua contemplaccedilatildeo nos

provoca prazer As formulaccedilotildees ldquoexperiecircncia esteacuteticardquo ldquoemoccedilatildeo esteacuteticardquo e ldquovalor

esteacuteticordquo espraiam o acircmbito dos conceitos que ocuparam os filoacutesofos nos primeiros

seacuteculos da disciplina esteacutetica revelando-se mais adequados aos novos sub-nuacutecleos

disciplinares e agraves questotildees levantadas pela arte contemporacircnea

Santo Agostinho natildeo utilizou nenhum destes conceitos nos termos em que

actualmente eles se exprimem mas natildeo haacute duacutevida que eacute possiacutevel encontrar nas suas

obras articulaccedilotildees de temas e de ideias que concorrem para o mesmo universo

conceptual implicado nestas formulaccedilotildees da disciplina e que poderatildeo de algum modo

apontar para direcccedilotildees ainda insatisfatoriamente exploradas pela esteacutetica contemporacircnea

acerca da sua proacutepria especificidade Natildeo significa isto que a esteacutetica deva ter no

pensamento agostiniano uma espeacutecie de manual de normas capaz de traccedilar o seu perfil

como conceito e aacuterea disciplinar Um uacutenico autor natildeo eacute representativo da abrangecircncia

304

de um campo de estudos Conveacutem ainda salientar que o modo como Santo Agostinho

nos leva a repensar a esteacutetica natildeo implica necessariamente que com ele partilhemos

pontos de vista acerca das temaacuteticas que constituem o seu pensamento esteacutetico todavia

essas temaacuteticas e a forma como se articulam convocam-nos um entendimento pessoal

sobre o que eacute a esteacutetica

Para Santo Agostinho a experiecircncia sensiacutevel tem um papel no processo de

purificaccedilatildeo da alma o que implica uma certa integridade entre os mecanismos sensuais

e a racionalidade que trabalha sobre os seus dados traduziacutevel para o idiolecto

agostiniano como uma continuidade entre o homem exterior e o homem interior A

experiecircncia sensiacutevel por si soacute natildeo eacute suficiente para desencadear uma experiecircncia

esteacutetica a menos que ela seja acompanhada pela consciecircncia do estado emocional que

desencadeia no sujeito e pelo seu juiacutezo Haacute certos autores que contestam a noccedilatildeo de

experiecircncia esteacutetica com base na ideia de que natildeo haacute uma diferenccedila significativa entre a

resposta esteacutetica e qualquer outro processo mental de reacccedilatildeo840

Mas haacute diferenccedila natildeo podemos olhar para uma foacutermula matemaacutetica e obter um

resultado correcto diferente daquele que obtemos sempre que a resolvemos Pelo

contraacuterio podemos olhar para um mesmo filme ou ler um mesmo poema841

muitas

vezes e a cada visualizaccedilatildeo ou leitura sentir uma nova descoberta Natildeo eacute que o poema

ou filme tenham mudado mas algo em noacutes muda seja pelo simples facto de nos

confrontarmos com esses objectos seja pelo acumular de novas experiecircncias relativas a

outros objectos que entretanto tivemos A mudanccedila que provocam em noacutes eacute reflectida

no objecto e seu ldquoprodutordquo eacute permanentemente actualizado O produto de uma resoluccedilatildeo

matemaacutetica nunca poderaacute variar em funccedilatildeo do nosso enriquecimento pessoal mas ateacute

ele pode ser um objecto esteacutetico ndash qualquer coisa pode constituir-se como um objecto da

experiecircncia esteacutetica ndash se ultrapassarmos a sua natureza matemaacutetica e nele projectarmos

as nossas idiossincrasias prestando atenccedilatildeo ao desencadear de emoccedilotildees que desperta

em noacutes a sua resoluccedilatildeo A possibilidade de encontrar formas alternativas para a sua

resoluccedilatildeo pode tambeacutem mesmo sem alterar o resultado final predispor agrave experiecircncia

esteacutetica e muitas vezes a escolha entre diferentes formulaccedilotildees de um mesmo problema

840

Este eacute por exemplo o caso de Ivor Armstrong Richards em ldquoThe phantom aesthetic staterdquo Principles

of literary criticism London Routledge and Kegan Paul 1967 p 6-11

841 Utilizamos estes exemplos pela neutralidade que em geral apresentam em relaccedilatildeo ao contexto mas o

que eacute dito eacute vaacutelido para qualquer outro objecto que se constitua como esteacutetico

305

cientiacutefico eacute feita com base em razotildees comummente consideradas esteacuteticas por exemplo

tendo em consideraccedilatildeo a simplicidade e a elegacircncia dos seus termos Neste caso o

objecto da experiecircncia esteacutetica natildeo eacute a foacutermula em si ou o seu resultado final mas o

processo de descoberta e de racionalizaccedilatildeo das suas variantes

Poderemos mesmo considerar como uma expressatildeo de um sentimento emocional

esteacutetico a famosa interjeiccedilatildeo que ficou para a histoacuteria como a transliteraccedilatildeo da palavra

usada por Arquimedes ao perceber que um corpo mergulhado num fluido em repouso

sofre por parte do fluido uma forccedila vertical para cima cuja intensidade eacute igual ao peso

do fluido deslocado pelo corpo Esse sentimento emocional poderaacute ser relembrado

quando nos deparamos novamente com o problema matemaacutetico (ou fiacutesico) tal como

podemos sempre relembrar a experiecircncia esteacutetica que tivemos com um filme ou com um

poema mas a mera lembranccedila natildeo desencadeia por si uma nova experiecircncia esteacutetica

pois natildeo reactiva o estado emocional na sua plenitude A lembranccedila eacute praticamente

destituiacuteda de qualia842

a menos que possa funcionar por transposiccedilatildeo como no caso da

madalena proustiana Mas este eacute um caso excepcional de epifania mnemoacutenica e sensoacuteria

relativo agrave memoacuteria involuntaacuteria que pressupotildee uma certa densidade de referentes reais

e portanto funciona como uma redescoberta ao permitir o acesso a lugares da memoacuteria

interditos pela rememoraccedilatildeo sistemaacutetica daiacute que Blanchot a tenha definido como a

experiecircncia do tempo puro843

A experiecircncia esteacutetica eacute sobretudo uma experiecircncia de descoberta ou encontro

que contrariamente agraves demais envolve um estado mental capaz de reflectir a abertura da

sua natureza no proacuteprio objecto que por isso deveacutem esteacutetico ndash actualizaacutevel quanto aos

significados que pode adquirir para o sujeito A descoberta em causa natildeo implica sequer

a soluccedilatildeo de algo mas pressupotildee sempre uma problematizaccedilatildeo um posicionamento

criacutetico avaliativo que pode nada ter que ver com as categorias de belo ou de feio mas

que em uacuteltima instacircncia coloca em causa aquilo que o sujeito tem como adquirido tem

como certo ou natildeo problemaacutetico para si promovendo por essa mera abertura do sujeito

uma mudanccedila qualitativa

842

Sobre a diferenccedila de intensidade dos qualia presentes nos diversos estados de consciecircncia e de relaccedilatildeo

com o real Cf V S Ramachandran and William Hirstein laquoThree Laws of Qualia What Neurology Tells

Us about the Biological Functions of Consciousness Qualia and the Selfraquo in Journal of Consciousness

Studies 4 No 5-6 1997 pp 429ndash58

843 Maurice Blanchot Le livre agrave venir Paris Gallimard 1999 p 24

306

Se na relaccedilatildeo matemaacutetica a descoberta de uma soluccedilatildeo ou de foacutermulas

alternativas para a soluccedilatildeo de um problema natildeo significar para o sujeito a abertura ao

seu proacuteprio questionamento entatildeo natildeo haacute experiecircncia esteacutetica Em geral natildeo significa e

eacute por isso mesmo que o posicionamento cientiacutefico se costuma constituir quase como um

oposto do posicionamento esteacutetico Um cientista por norma natildeo tem os seus progressos

como um impulso de revisatildeo do corpo teoacuterico que acaba de constituir ndash esse eacute dado por

certo e comprovaacutevel ndash ainda que possa atraveacutes dele colocar em causa anteriores

paradigmas O facto de assentar na formulaccedilatildeo de hipoacuteteses jaacute faz da ciecircncia mais uma

comprovaccedilatildeo do que uma problematizaccedilatildeo O encontro do cientista com a ldquoverdaderdquo

impotildee um trabalho metoacutedico de reificaccedilatildeo de pressupostos e princiacutepios que natildeo tanto

dizem respeito a uma descoberta mas a uma confirmaccedilatildeo A descoberta do cientista ou

do matemaacutetico eacute-o mais para os outros do que para si mesmo Se ela for suficientemente

importante para implicar uma mudanccedila de paradigma o cientista pensaraacute ldquoagora tudo

muda para os outrosrdquo A interjeiccedilatildeo ldquoheurecardquo parece no entanto prenunciar um estado

esteacutetico pelo caraacutecter inesperado e ateacute algo ingeacutenuo de um novo entendimento das

coisas eacute um ldquoagora tudo muda para mimrdquo No entanto como acabaacutemos de ver o

posicionamento que a desencadeia como expressatildeo da verdadeira descoberta raramente

eacute assumido pelos praticantes das ciecircncias exactas O entusiasmo presente em tais

momentos de descoberta raramente estaacute associado a uma mudanccedila ou a um alargamento

de perspectiva no sujeito

A esteacutetica agostiniana aponta precisamente para a possibilidade e desiderato de

uma mudanccedila qualitativa no sujeito fruidor844

que passa pelo seu auto-questionamento

e pela revisatildeo daquilo que sabe sobre o mundo e sobre si Tudo o que rodeia o homem

pode activar a experiecircncia esteacutetica Santo Agostinho fala na beleza das coisas para

aludir agrave presenccedila constante dessa possibilidade nada pode ser totalmente desprovido de

beleza pois tudo tem uma species que resulta da sua disposiccedilatildeo temporal pelos numeri

A beleza das montanhas dos ceacuteus e das aacuteguas pode ser interrogada qual constataccedilatildeo

das valecircncias de tal experiecircncia As propriedades formais dos objectos satildeo meras

disposiccedilotildees a que nem todos os sujeitos aderem pelo que natildeo deveratildeo ser consideradas

844

O sujeito da experiecircncia esteacutetica eacute sempre um fruidor e natildeo um mero espectador pois o seu modo de

ver implica a impossibilidade da indiferenccedila O fruidor deixa-se tocar pelo objecto da experiecircncia e abre-

se agrave mudanccedila nesse sentido mesmo que natildeo haja necessariamente um desencadear da sensaccedilatildeo de

prazer haacute todavia um ganho nem que seja tatildeo-somente pelo acreacutescimo de um novo sentido entrevisto

pelo sujeito no objecto da sua experiecircncia que eacute portanto sempre frutuosa

307

como propriedades esteacuteticas A existirem propriedades esteacuteticas nos objectos elas

dizem respeito ao numerus e natildeo se constituem portanto como propriedades

secundaacuterias mas como disposiccedilotildees relacionais A experiecircncia esteacutetica eacute uma espeacutecie de

descoberta da natildeo conformaccedilatildeo agrave imediaticidade ndash agrave qual Santo Agostinho

expressivamente se refere como regio dissimilitudinis845

ndash que poreacutem natildeo prescinde da

valorizaccedilatildeo como aparecircncia dessa dimensatildeo existencial Ainda que o neoplatonismo

agostiniano seja totalmente afecto a uma perspectiva que desvaloriza o mundo sensiacutevel

em prol da verdadeira realidade situada no mundo das ideias a dimensatildeo cristatilde da sua

reflexatildeo leva-o a considerar positivamente o valor de todas as coisas apreensiacuteveis pelos

sentidos846

A necessidade em estabelecer a fronteira entre a aparecircncia e a realidade para noacutes

proacuteprios e em perceber ateacute que ponto ela poderaacute divergir relativamente agrave que eacute

estabelecida pelos outros sujeitos eacute um dos problemas fulcrais da filosofia em relaccedilatildeo ao

qual a esteacutetica poderaacute dar um importante contributo Diferentemente de outras

abordagens filosoacuteficas a esteacutetica interessa-se por essa cisatildeo entre real e aparente

assumindo que a relevacircncia do aparente eacute equiparaacutevel agrave do real847

O aparente diz por

si muito de noacutes Mas as coisas tambeacutem existem para laacute daquilo que satildeo para noacutes pois

podem ser em si ou ser para os outros elas podem ser mais do que aparentam e essa

845

Cf Conf VII 10 16

846 Natildeo temos qualquer reticecircncia em considerar Santo Agostinho como um filoacutesofo neoplatoacutenico apesar

das inflexotildees com que o Cristianismo marca o seu pensamento em relaccedilatildeo agrave matriz plotiniana

Concordamos com Heidegger quando este afirma que Santo Agostinho eacute um filoacutesofo do ocaso da

Antiguidade mais do que um filoacutesofo inaugural da Idade Meacutedia Cf Heidegger ldquoAugustine and Neo-

Platonisme Summer Semester 1921rdquo The Phenomenology of Religious Life Matthias Fritscht Jennifer

Anna Gosetti-Ferencei (trad) Bloomington Indiana University Press 2004 p 116

847

Bertrand Russell quase parece ter constatado tal natureza da experiecircncia esteacutetica mais propriamente

em relaccedilatildeo agrave produccedilatildeo artiacutestica laquo[hellip] the painter has to unlearn the habit of thinking that things seem to

have the colour which common sense says they really have and to learn the habit of seeing things as

they appear Here we have already the beginning of one of the distinctions that cause most trouble in

philosophy - the distinction between appearance and reality between what things seem to be and what

they are The painter wants to know what things seem to be the practical man and the philosopher want to

know what they are but the philosophers wish to know this is stronger than the practical mans and is

more troubled by knowledge as to the difficulties of answering the questionraquo Cf Bertrand Russell

laquoAppearance and reallity and the existence of matterraquo in Joel Feinberg Russ Shafer-Landau (org)

Reason and responsibility readings in some basic problems of philosophy Belmont Cengage Learning

2008 p 158 Curiosamente a esteacutetica foi talvez a uacutenica aacuterea filosoacutefica sobre a qual Russell jamais

escreveu se o tivesse feito provavelmente concluiria que a perspectiva esteacutetica reuacutene esse modo de ver

artiacutestico especialmente empenhado com o aparente com o modo de ver filosoacutefico interessado no real

308

sua natureza eacute permanente portanto instaacutevel Natildeo haacute aqui qualquer paradoxo a

experiecircncia esteacutetica contrariamente a outros tipos de questionamento filosoacutefico ou

cientiacutefico pressupotildee que natildeo haacute modos de ser nem modos de ver que alcancem um

caraacutecter definitivo ou definido848

A sua objectividade consiste precisamente nessa

abertura do sujeito agrave possibilidade pura permanentemente em aberto Como disciplina

a esteacutetica tem de lidar com a explicaccedilatildeo sempre insatisfatoacuteria dessa excessiva

liberdade

848

O proacuteprio conceito de experiecircncia aponta por si soacute para esta perspectiva jaacute que supotildee uma posiccedilatildeo em

que as coisas natildeo satildeo tidas como garantidas Experienciar algo eacute estar atento agraves suas possibilidades A

proacutepria acepccedilatildeo cientiacutefica de experiecircncia implica tal abertura passiacutevel de testar uma hipoacutetese

309

321 - O potencial cognoscitivo da experiecircncia esteacutetica

A experiecircncia esteacutetica eacute um modo de entendimento natildeo tradicional das coisas

porque natildeo se compraz na sua reduccedilatildeo aos conceitos ainda que os empregue Ela eacute

sempre um pensamento situado singular num aqui e num agora em que a dimensatildeo

afectiva se enleia indestrinccedilavelmente agrave cognitiva A necessidade de transpor o ponto de

vista limitado que os nossos sentidos permitem eacute um dos pontos de partida da esteacutetica

Desde logo deixa de ser justificaacutevel a tradicional oposiccedilatildeo entre sensibilidade e razatildeo

tal como Baumgarten defendeu ou como Santo Agostinho entreviu na continuidade

entre homem interior e homem exterior

Para o filoacutesofo africano a proacutepria sensaccedilatildeo implica a consciecircncia da mente

quanto aos estados corporais pela acccedilatildeo do sentido interno Este sentido estaacute entre a

percepccedilatildeo sensoacuteria e o conhecimento Ele natildeo eacute ainda um processo racional para Santo

Agostinho mas parece jaacute permitir uma certa consciecircncia acerca do proacuteprio sujeito ao

niacutevel das suas sensaccedilotildees e dos mecanismos fiacutesicos a partir dos quais elas se datildeo Eacute na

articulaccedilatildeo entre sentido interno e memoacuteria que surge o primeiro indiacutecio da

possibilidade de aquisiccedilatildeo ainda muito baacutesica de conhecimento pelo menos no sentido

restrito de aquisiccedilatildeo de capacidades de resposta adaptaacuteveis agraves situaccedilotildees Eacute tambeacutem nesta

articulaccedilatildeo que assenta possibilidade da experiecircncia esteacutetica849

pela estabilizaccedilatildeo e

integridade das imagens resultantes da percepccedilatildeo

Nem sempre a experiecircncia esteacutetica envolve um sentimento positivo de prazer

Quando o Bispo de Hipona vecirc a beleza natural como um indiacutecio da divindade que lhe

deu origem haacute um paralelo possiacutevel de se estabelecer com aquilo que mais tarde seria

descrito como a experiecircncia do sublime na qual o prazer assume contornos negativos

A inquietaccedilatildeo associada agraves descriccedilotildees agostinianas acerca da remissatildeo predisposta pela

beleza sensiacutevel para a esfera superior diz respeito agrave acircnsia de conhecimento assim

849

Vide subcapiacutetulo I14

310

despertada A esteacutetica como que instaura um corredor para o conhecimento acerca da

natureza profunda das coisas impossiacutevel de aceder de modo iacutentegro por outras formas

de experiecircncia O modo iacutentegro diz respeito agrave possibilidade de natildeo abandonar a nossa

proacutepria identidade nesse processo isto eacute diz respeito agrave possibilidade de manter as

especificidades daquilo que faz de cada pessoa o que ela singularmente eacute Todos os

traccedilos da sua personalidade as suas preferecircncias as suas memoacuterias e os seus anseios

tecircm lugar no modo de consideraccedilatildeo esteacutetico Monroe Beardsley apontou para essa

caracteriacutestica da experiecircncia esteacutetica ao defender que ao sujeito de tal experiecircncia ocorre

ldquoum sentido de integraccedilatildeo como pessoa de ser restituiacutedo a uma totalidade [hellip] e a um

correspondente contentamento ainda que atraveacutes de um sentimento perturbador que

envolve auto-aceitaccedilatildeo e auto-expansatildeordquo850

As demais formas de pensar o que nos rodeia parecem querer des-subjectivar

artificialmente o mundo e o modo de o pensar com vista agrave universalidade ou ao mais

amplo consenso possiacutevel A perspectivaccedilatildeo contemporacircnea do desinteresse esteacutetico

poderaacute por exemplo ser considerada a este niacutevel no qual a ausecircncia de conceito se

assume como indiferenccedila quanto a uma objectividade universal sem no entanto ver

sacrificada a possibilidade de partilha que o sensus communis kantiano salvaguardava

O que se partilha natildeo eacute propriamente a experiecircncia nem as sensaccedilotildees que ela fautoriza

mas sim a estrutura subjectiva aiacute implicada jaacute que se parte do pressuposto que os

processos mentais e os modos de reacccedilatildeo satildeo similares para todos os sujeitos face a uma

mesma experiecircncia Assim sendo a preocupaccedilatildeo com a universalidade da experiecircncia eacute

irrelevante porque ela estaacute subjectivamente garantida pela estrutura mental humana A

experiecircncia esteacutetica natildeo deixa de ser uma experiecircncia conceptual contrariamente agrave

posiccedilatildeo kantiana mas seraacute inuacutetil tentar a sua partilha com base nos conceitos nela

implicados uma vez que a discursividade necessaacuteria anularia o caraacutecter subjectivo que

cimenta a articulaccedilatildeo desses conceitos O modo iacutentegro como a experiecircncia esteacutetica

mobiliza a reacccedilatildeo do sujeito natildeo eacute totalmente partilhaacutevel

A esteacutetica eacute uma dimensatildeo filosoacutefica na plena acepccedilatildeo do seu termo quer como

ramo disciplinar quer como modo de relacionamento criacutetico com o que nos rodeia e

connosco mesmo A filosofia natildeo eacute propriedade inalienaacutevel dos filoacutesofos e embora no

seu dia-a-dia as pessoas comuns natildeo se dediquem a analisar a histoacuteria de um conceito

850

Monroe Beardsley et al (org) The aesthetic point of view selected essays Ithaca Cornell University

Press 1982 p 289

311

nem se decircem ao trabalho de redigir um ensaio sobre um determinado toacutepico que as

intriga a verdade eacute que a maioria das pessoas filosofa para si mesmo Talvez a grande

diferenccedila entre um filoacutesofo e um natildeo-filoacutesofo eacute que o primeiro partilha os conteuacutedos do

seu pensamento criacutetico tendo desenvolvido estrateacutegias argumentativas eficazes para o

efeito Natildeo haacute no entanto qualquer duacutevida de que ao longo da vida todas as pessoas se

cruzaram por diversas vezes com a sua proacutepria dimensatildeo filosoacutefica quer tenha sido em

virtude de um luto de uma crise identitaacuteria ou de um dilema moral O modo esteacutetico de

ver o mundo eacute tambeacutem um modo filosoacutefico de o fazer

A experiecircncia esteacutetica natildeo eacute a mera experiecircncia sensoacuteria ou perceptiva pois a

essa dimensatildeo acresce um reforccedilo da atenccedilatildeo e da reflexatildeo ela consiste num

intensificar da nossa consciecircncia como sujeitos pensantes no mundo mas sem a

fragmentaccedilatildeo que o tradicional pensamento conceptual instaura ao diluir diferenccedilas e

excepccedilotildees em prol de representaccedilotildees gerais A proacutepria dicotomia sujeito-objecto parece

ver as suas arestas lenidas pelo modo de reflexatildeo esteacutetico O seu caraacutecter contemplativo

confere-lhe portanto duas caracteriacutesticas distintivas

a) por um lado favorece a integridade da percepccedilatildeo na qual o detalhe pode

assumir uma relevacircncia que de outra forma passaria despercebida Pelo

modo de reflexatildeo esteacutetico o processo de exclusatildeo de escolha e de

hierarquizaccedilatildeo impliacutecito na conceptualizaccedilatildeo obedece apenas a criteacuterios

subjectivos e essa liberdade parece proporcionar uma menor transgressatildeo

quanto agrave natureza das coisas elas satildeo pensadas de um modo mais iacutentegro

quer na sua singularidade quer na relaccedilatildeo com tudo o mais o que lhes

outorga uma objectividade distinta O reconhecimento das diferenccedilas e das

nuances qualitativas como que determina uma menor intervenccedilatildeo do sujeito

sobre a natureza conceptualizaacutevel do objecto

b) por outro lado ao favorecer a compenetraccedilatildeo esse caraacutecter

contemplativo da esteacutetica promove uma continuidade entre o sujeito e o

objecto que natildeo assenta na internalizaccedilatildeo do objecto por parte do sujeito

indiferenciando-os mas numa correspondecircncia entre os estados mentais

emocionais do sujeito e a compreensatildeo do objecto Significa isto que a

dimensatildeo emocional se constitui como componente do conhecimento

possiacutevel acerca do objecto pelo modo de relaccedilatildeo esteacutetico o conhecimento

312

deixa de assentar apenas numa representaccedilatildeo daquilo que eacute exterior ao

sujeito para integrar nessa representaccedilatildeo a consciecircncia dos proacuteprios estados

emocionais Nesta senda o sujeito tem necessariamente de se constituir

tambeacutem como objecto para si mesmo e a representaccedilatildeo mental que faz de si

enleia-se agrave representaccedilatildeo que faz do objecto

A esteacutetica pode constituir-se como uma mundivisatildeo precisamente pelo caraacutecter

indefinido e pela transversalidade do seu objecto Ela cruza-se com os demais ramos

filosoacuteficos e todavia distingue-se deles por essa mesma extensatildeo transversal pela

abertura que propicia pela objectivaccedilatildeo do sujeito impliacutecita na integraccedilatildeo cognoscitiva

da sua dimensatildeo emocional e pela des-objectivaccedilatildeo851

do objecto na atenccedilatildeo agraves

particularidades por norma negligenciadas durante os processos de abstracccedilatildeo e

generalizaccedilatildeo conceptual O seu modo de interrogar e representar o mundo natildeo parece

quebrar com o posicionamento regular e quotidiano com o qual ordinariamente nos

relacionamos com as coisas o posicionamento esteacutetico natildeo passa na verdade de uma

intensificaccedilatildeo da nossa actividade reflexiva vulgar mas eacute precisamente essa

intensificaccedilatildeo que a faz pertencer ao universo da filosofia

A esteacutetica ou mais propriamente a forma de relaccedilatildeo esteacutetica que podemos

encetar com o que nos rodeia sempre foi algo conotada agrave necedade pela caracteriacutestica

subjectiva da sua validade universal O desinteresse natildeo era uma categoria alheia a esse

caraacutecter supostamente inepto ou esteacuteril do modo de relaccedilatildeo esteacutetico Eacute como se a

fronteira entre o real e o aparente natildeo pudesse ser satisfatoriamente estabelecida a partir

do ponto de vista esteacutetico No entanto as bases de tal desprestiacutegio podem ser tambeacutem

reconhecidas nos juiacutezos morais e mesmo nos juiacutezos cognitivos jaacute que nenhum deles eacute

imune ao erro agrave parcialidade ou totalmente independente de factores subjectivos No

caso da perspectiva esteacutetica a falibilidade natildeo se coloca tradicionalmente em termos de

erro uma vez que a assunccedilatildeo do caraacutecter flutuante do real implica que este natildeo possa

ser considerado em termos apofacircnticos Todavia a seu modo a esteacutetica tem uma

pretensatildeo legiacutetima agrave objectividade porque assume sem constrangimentos que a cisatildeo

entre real e aparecircncia se daacute unicamente no sujeito e a indeterminaccedilatildeo que lhe estaacute

associada equivale agrave proacutepria indeterminaccedilatildeo do sujeito enquanto ser que

permanentemente se vai construindo e desconstruindo A sua objectividade natildeo tem

851

Natildeo se trata propriamente de uma subjectivizaccedilatildeo do objecto

313

propriamente que ver com a fixaccedilatildeo dessa fronteira nem com o discurso analiacutetico

associado agrave procura de um consenso seu partidaacuterio mas com a imediaticidade e

particularidade impliacutecitas no modo de presentificaccedilatildeo da experiecircncia A fronteira entre o

real e o aparente eacute estabelecida mas sem possibilidade de se fixar ela eacute sempre

provisoacuteria

Pelo encontro esteacutetico as coisas surgem como apariccedilotildees envoltas numa aura de

novidade que convoca o sujeito para a construccedilatildeo de sentido na qual ele proacuteprio se situa

a par do objecto numa visatildeo sem distacircncia Soacute nesse instante haacute objectividade A

diferenccedila entre esta objectividade e a que eacute alcanccedilada por outros modos de relaccedilatildeo com

o mundo eacute qualitativa e quantitativa Qualitativamente esta eacute holiacutestica situando o

sujeito na proacutepria fronteira entre o real e o aparente sem o obrigar a tomar partido as

demais satildeo sempre parciais situando o sujeito do lado do aparente num esforccedilo de

alcance do real Quantitativamente esta eacute sempre efeacutemera e momentacircnea

impossibilitando a fixaccedilatildeo da fronteira e a partilha total das suas dimensotildees ao passo

que as demais tecircm uma duraccedilatildeo alargada mas ainda assim natildeo perene (ou de

perenidade apenas situada num contexto especiacutefico e portanto relativa)852

O facto de a cada experiecircncia esteacutetica a fronteira entre o real e o aparente ter

coordenadas diferentes natildeo significa que haja uma total autonomia e um caraacutecter

arbitraacuterio entre cada experiecircncia Na verdade pode considerar-se que haacute uma espeacutecie de

progressatildeo em termos de abertura agraves possibilidades da experiecircncia que resulta de um

enriquecimento pessoal a cada encontro esteacutetico Mesmo sendo totalmente diferente das

anteriores cada nova experiecircncia estaacute nelas filiada ao trazer consigo a abertura que o

conjunto de todas as outras faculta ao sujeito Tal processo eacute bastante claro no acircmbito da

histoacuteria da arte mesmo negando a ideia de progresso quanto ao aspecto qualitativo das

obras consideradas em termos histoacutericos natildeo haacute como negar uma evoluccedilatildeo em termos

de abertura ao niacutevel da recepccedilatildeo dessas obras A aceitaccedilatildeo da pintura futurista por

exemplo eacute bastante devedora da abertura propiciada pelo cubismo que por seu turno

tambeacutem beneficiou das bases lanccediladas pelo fauvismo jaacute por si em diacutevida para com

certos pintores poacutes-impressionistas como Gauguin Os modos de ver e de apreciar satildeo

evolutivos natildeo apenas historicamente como em termos individuais

852

A objectividade cientiacutefica por exemplo soacute faz sentido dentro de uma episteme particular que quando

eacute posta em causa jaacute soacute historicamente encontra pertinecircncia

314

322 - Emoccedilotildees esteacuteticas

A componente emocional envolvida na experiecircncia esteacutetica natildeo tem

necessariamente que ver com a sensaccedilatildeo de prazer e menos ainda com uma questatildeo de

gosto Ela comeccedila por ser um modo de conhecimento primaacuterio que de imediato nos diz

o essencial sobre o nosso encontro com o objecto sem que precisemos de o enquadrar

conceptualmente853

Natildeo significa isto que na experiecircncia esteacutetica natildeo haja recurso aos

conceitos na construccedilatildeo de sentido que a experiecircncia pressupotildee estes enquadram natildeo

soacute o objecto como a proacutepria componente emocional que se presta tambeacutem ela a ser

pensada Poreacutem mesmo antes de um exerciacutecio intelectual acerca das razotildees de tal

estado emocional ou de uma reflexatildeo apreciativa do objecto somos capacitados com

determinadas coordenadas de reacccedilatildeo que resultam do funcionamento conjunto entre

mecanismos bioloacutegicos disposiccedilotildees culturais e traccedilos pessoais como a personalidade e

experiecircncias passadas854

Esse estado emocional condensa uma espeacutecie de inteligecircncia

instantacircnea que alicerccedilaraacute a reflexatildeo acerca do nosso encontro com o objecto

Todas as nossas emoccedilotildees satildeo reacccedilotildees daiacute que etimologicamente a palavra

tenha que ver com movimento Interessa no entanto saber se a reacccedilatildeo esteacutetica implica

853

A emoccedilatildeo envolve uma espeacutecie de conhecimento natildeo conceptual em que o sujeito desenvolve um

pensamento instantacircneo acerca daquilo que lhe estaacute a acontecer sem no entanto ter consciecircncia desse

pensamento Tal consciecircncia soacute surge ao niacutevel do sentimento emocional

854 Os artistas conseguem pelas suas obras condicionar parcialmente a reacccedilatildeo esteacutetica dos fruidores

jogando com os mecanismos bioloacutegicos e com as disposiccedilotildees culturais A recepccedilatildeo da obra de arte nunca

eacute um processo totalmente controlado pelo artista dada a oacutebvia impossibilidade de atender agraves variantes

implicadas na personalidade de cada pessoa poreacutem os temas do pensamento durante a recepccedilatildeo parecem

poder ser parcialmente condicionados por essa induccedilatildeo parcial de estados emocionais que ateacute certo ponto

os artistas controlam Com efeito aleacutem de poderem jogar com as emoccedilotildees os artistas conseguem apelar

directamente a determinados sentimentos atraveacutes de imagens metafoacutericas que melhor os traduzem do que

os proacuteprios nomes que usamos para nos referimos a esses sentimentos

315

um tipo diferente de emoccedilotildees agraves quais tambeacutem possamos chamar esteacuteticas A resposta

parece ser negativa quando algo nos toca temos um leque relativamente pouco variado

emoccedilotildees que podem ser convocadas Eacute difiacutecil que uma emoccedilatildeo surja isoladamente mas

ateacute mesmo entre os conjuntos de emoccedilotildees que compotildeem diferentes estados emocionais

natildeo parece haver um que particularmente se distinga pela sua relaccedilatildeo com a experiecircncia

esteacutetica Podemos sentir nas mesmas proporccedilotildees um misto de respeito atracccedilatildeo

curiosidade e medo face a uma paisagem sublime ou face uma pessoa sem que

consideremos ter uma experiecircncia esteacutetica quando lidamos com ela As mesmas

reacccedilotildees psicossomaacuteticas satildeo activadas ndash aumento do ritmo cardiacuteaco modificaccedilotildees

viscerais atraveacutes de oscilaccedilotildees dos niacuteveis endoacutecrinos reforccedilo da atenccedilatildeo alteraccedilatildeo na

cor da face alteraccedilatildeo na tensatildeo muscular etc ndash e no entanto na primeira situaccedilatildeo haacute

algo que natildeo estaacute presente no nosso encontro com a pessoa que assim admiramos Se o

mesmo agregado de emoccedilotildees pode ser convocado por uma experiecircncia esteacutetica e por

uma experiecircncia natildeo esteacutetica como sabemos que estamos face a uma experiecircncia

esteacutetica

Para Santo Agostinho as emoccedilotildees correspondem sobretudo agraves perturbaccedilotildees da

alma podendo ser positiva ou negativamente consideradas de acordo com a orientaccedilatildeo

que a vontade lhes atribuir A controlabilidade das emoccedilotildees parece no entanto falhar em

contextos onde privilegiadamente ocorrem as experiecircncias esteacuteticas O teatro eacute o

exemplo mais oacutebvio da perspectiva agostiniana855

mas tambeacutem em relaccedilatildeo agrave muacutesica tal

desnorte das emoccedilotildees parece ocorrer daiacute que Santo Agostinho critique o modo como

uma boa interpretaccedilatildeo musical pode desencadear emoccedilotildees desadequadas ao contexto856

As suas consideraccedilotildees concorrem tambeacutem para a ideia de que natildeo haacute emoccedilotildees

especificamente esteacuteticas pois se assim fosse o problema da desadequaccedilatildeo natildeo

ocorreria Independentemente do contexto a emoccedilatildeo esteacutetica seria sempre aceitaacutevel

dada a sua especificidade Mesmo suscitando prazer numa situaccedilatildeo de pesar ela estaria

restringida a um modo de relaccedilatildeo completamente autoacutenomo ndash um modo que Santo

Agostinho soacute teraacute subscrito na sua primeira obra De pulchro et apto

O conceito de emoccedilatildeo esteacutetica harmoniza-se com a ideia da existecircncia de

propriedades esteacuteticas capazes de determinar a esteticidade de um dado objecto Para

855

Vide p 257 et seq da presente tese

856 Vide p 194

316

aqueles que procuram uma definiccedilatildeo estaacutevel da arte as emoccedilotildees esteacuteticas e as

propriedades esteacuteticas seriam foacutermulas coadjuvantes eficazes As contradiccedilotildees que

levantam e a insuficiecircncia que evidenciam face a casos concretos do modernismo e da

arte contemporacircnea demonstram no entanto a inoperacircncia de tais conceitos Natildeo haacute

ainda uma resposta consensual e satisfatoacuteria para a questatildeo da arte857

nem tatildeo pouco se

conseguiram isolar os traccedilos distintivos das emoccedilotildees e das propriedades esteacuteticas Se

existissem as emoccedilotildees esteacuteticas funcionariam como um modo de autonomizar a

experiecircncia esteacutetica relativamente a outras dimensotildees da relaccedilatildeo com o mundo Tal

hipoacutetese revelou-se bastante atractiva para alguns teoacutericos do seacuteculo passado que nela

viram um bom modo de destacar e de salientar a importacircncia do domiacutenio esteacutetico858

Eacute o modo como as emoccedilotildees satildeo pensadas e sentidas no acircmbito de uma

experiecircncia esteacutetica que se revela peculiar Damaacutesio refere que as acccedilotildees fisioloacutegicas

desencadeadas por uma emoccedilatildeo satildeo complementadas por um programa cognitivo que

inclui certas ideias e modos de cogniccedilatildeo859

que por sua vez funcionam como um novo

estiacutemulo responsaacutevel por uma espeacutecie de desdobramento das emoccedilotildees860

que vai

definindo a complexidade do estado emocional ateacute culminar no sentimento da emoccedilatildeo

Damaacutesio explica o ciclo emoccedilatildeo-sentimento em termos neuroloacutegicos como um processo

mensuraacutevel em milissegundos com iniacutecio no ceacuterebro despoletado pela percepccedilatildeo de

857

Face agrave frustraccedilatildeo e confusatildeo em que resultam as tentativas de definiccedilatildeo da arte Nelson Goodman

propocircs num ensaio do final da deacutecada de 70 que a questatildeo Quando eacute arte substituiacutesse a formulaccedilatildeo O

que eacute a arte Cf N Goodman laquoWhen is artraquo in David Perkins Barbara Leondar (eds) The arts and

cognition Baltimore Johns Hopkins University Press 1977 pp 11 - 19

858 O exemplo mais famoso eacute o de Clive Bell que propotildee o conceito de ldquoemoccedilatildeo esteacuteticardquo a par do de

ldquoforma significanterdquo no seu livro de 1914 ndash Art Stolnitz foi o principal criacutetico desta formulaccedilatildeo tendo

apresentado como mais adequado o conceito de ldquoatitude esteacuteticardquo poreacutem nos moldes em que Stolnitz o

apresenta tambeacutem este se revelou um conceito problemaacutetico por implicar a mesma dissociaccedilatildeo artificial

entre os valores esteacuteticos relativamente aos cognitivos e aos morais O primeiro teoacuterico a apontar tais

caracteriacutesticas que tornam implausiacutevel a ideia de ldquoatitude esteacuteticardquo foi George Dickie em 1964 Natildeo

consideramos que a atitude esteacutetica esteja relacionada com um posicionamento desinteressado tal como

Stolnitz defende nem vemos nas criacuteticas efectuadas por Dickie uma refutaccedilatildeo passiacutevel de invalidar a

pertinecircncia do conceito ldquoatitude esteacuteticardquo Cf Clive Bell Art New York Oxford University Press 1987

passim J Stolnitz Aesthetics and Philosophy of Art Criticism A Critical Introduction Boston MA

Houghton Mifflin Co 1960 G Dickie ldquoThe Myth of the Aesthetic Attituderdquo American Philosophical

Quarterly 1 1964 56-65

859 Antoacutenio Damaacutesio O livro da consciecircncia A construccedilatildeo do ceacuterebro consciente Lisboa Ciacuterculo de

Leitores 2010 p 143

860 Damaacutesio fala a este propoacutesito em ldquoreacccedilatildeo emocional em cadeiardquo op cit p 144

317

um estiacutemulo potencialmente capaz de causar uma emoccedilatildeo que se espraia pelo corpo

efectivamente originando a emoccedilatildeo e terminando com o retorno do processo ao ceacuterebro

onde o estado emocional daacute origem ao sentimento jaacute com a intervenccedilatildeo de regiotildees

cerebrais diferentes daquelas com que o ciclo se iniciou861

Em suma as emoccedilotildees

suscitam sentimentos quando reflectimos sobre elas Para a anaacutelise filosoacutefica aqui em

questatildeo interessa perceber se o conceito de ldquoemoccedilatildeo esteacuteticardquo natildeo tem sido confundido

com o de ldquosentimento esteacuteticordquo Seraacute este uacuteltimo uma formulaccedilatildeo vaacutelida e eficaz para o

universo da esteacutetica

Um sentimento eacute um estado mental em que o pensamento se une agrave emoccedilatildeo

assumindo um caraacutecter avaliativo ora porque pressupotildee uma afericcedilatildeo de valor ora

porque o confere a um dado objecto ou experiecircncia862

O sentimento distingue-se da

emoccedilatildeo por ter uma natureza mais estaacutevel duradoura menos vocacionada para a acccedilatildeo

e mais permeaacutevel ao controlo dos estados corporais ele eacute como que uma domesticaccedilatildeo

da emoccedilatildeo Os sentimentos satildeo portanto percepccedilotildees compoacutesitas que nos facultam

representaccedilotildees da nossa relaccedilatildeo com o mundo e que podemos ateacute certo ponto controlar

Com maior ou menor intensidade eles estatildeo sempre presentes na nossa mente

independentemente do tipo de experiecircncia em que nos encontremos ou da atenccedilatildeo que

lhe estejamos a dar863

Na maioria das vezes o sentimento emocional constitui-se como

uma espeacutecie de plano de fundo que cenariza os produtos do nosso pensamento

discursivo e que se vai gradualmente alterando de acordo com o desenrolar dessa acccedilatildeo

podendo em determinadas ocasiotildees influir explicitamente no seu curso Durante uma

qualquer experiecircncia esteacutetica parece ocorrer contrariamente a outros modos de reflexatildeo

uma reverberaccedilatildeo dos sentimentos que entatildeo preenchem a nossa mente Tal como no

caso das emoccedilotildees natildeo haacute um sentimento esteacutetico propriamente dito mas haacute uma

espeacutecie de fenoacutemeno reflexivo ao niacutevel mental que traz para primeiro plano o

sentimento emocional

861

Ibid

862 Nem todo o valor eacute emocional jaacute que muitas vezes avaliamos objectos ou situaccedilotildees

independentemente dos sentimentos que despertam em noacutes

863 Naturalmente haacute certas patologias que constituem uma excepccedilatildeo a esta regra bem como haacute certas

drogas que condicionam a nossa resposta emocional e por conseguinte a formaccedilatildeo de sentimentos

Mesmo em estados alterados de consciecircncia como o que caracteriza a nossa mente durante o sono somos

capazes de experienciar emoccedilotildees e sentimentos jaacute no caso de um coma induzido tal parece natildeo ocorrer

318

Nesse transir o sentimento passa pelo crivo do pensamento discursivo sem

todavia se deixar conceptualizar inteiramente e sem perder aquilo que de si natildeo eacute

conceptualizado O sentimento encerra em si uma espeacutecie de conhecimento imageacutetico

que funciona como uma descriccedilatildeo alusiva do nosso modo de ver o objecto que o suscita

ou sobre o qual incide864

O raciociacutenio vulgar tende a descartar essa dimensatildeo do

sentimento com a consequecircncia de que a representaccedilatildeo em primeiro plano deixa de ser

um reflexo do sentimento emocional em plano de fundo para se constituir meramente

como uma representaccedilatildeo conceptual865

No modo de pensamento que ocorre durante

uma experiecircncia esteacutetica o sentimento emocional que se espelha no primeiro plano eacute jaacute

uma representaccedilatildeo distinta daquela que se encontra em plano de fundo porque eacute

acrescido das valecircncias que o pensamento discursivo lhe outorga mas manteacutem todas as

caracteriacutesticas da sua matriz

A experiecircncia esteacutetica vive desta translocaccedilatildeo do sentimento que o transforma

em algo mais O sentimento jaacute era de ordem racional antes de tal movimento ainda que

a sua racionalidade fosse distinta da que concerne o pensamento conceptual866

Jaacute estava

nele pressuposto um modo de conhecimento relacional que permite ao sujeito

compreender o mundo e a sua posiccedilatildeo nele ou mais especificamente que permite ao

sujeito ter uma noccedilatildeo do que representa para si o objecto fautor do sentimento e que lhe

permite reagir de acordo com esse sentido implicado no encontro entre ambos O

sentimento eacute uma construccedilatildeo de sentido que pode por exemplo articular-se com o

864

Esse conteuacutedo do sentimento faz tambeacutem parte da nossa racionalidade pois jaacute implica uma construccedilatildeo

com base em imagens da memoacuteria e da imaginaccedilatildeo e sobretudo porque eacute uma forma de pensamento

intuitivo assente natildeo em conceitos ou essecircncias mas em representaccedilotildees (que num qualquer outro acircmbito

racional seriam consideradas secundaacuterias ou superficiais) capazes no seu conjunto de emular

alusivamente o objecto ou situaccedilatildeo a que se refere Um sentimento eacute sempre despertado por e dirigido a

algo independentemente da sua presenccedila ou existecircncia factual A emulaccedilatildeo do objecto ou situaccedilatildeo que

integra o sentimento eacute como uma recriaccedilatildeo que aglomera de um modo descritivo alusivo as

caracteriacutesticas que se revelam como mais significativas para noacutes do objecto ou situaccedilatildeo Esse modo

descritivo alusivo implica jaacute as tais dimensotildees da nossa personalidade como a memoacuteria e a imaginaccedilatildeo

pelo que diz tanto do objecto quanto de noacutes Natildeo eacute uma formulaccedilatildeo que represente a essecircncia do objecto

mas a forma como aparece para noacutes A sua aparecircncia natildeo tem que ver com o aspecto meramente

epideacutermico pelo contraacuterio ao enlear-se agrave nossa subjectividade a aparecircncia constitui-se como um

invoacutelucro mais substancial porque mais rico e complexo do que a essecircncia A utilizaccedilatildeo de imagens

metafoacutericas por parte dos artistas funciona do mesmo modo que tais representaccedilotildees alusivas no

sentimento

865 O sentimento manteacutem-se mas apenas como plano de fundo

866 Natildeo estamos longe da perspectiva baumgartiana expressa pelo conceito de analogon rationis

319

raciociacutenio loacutegico influindo numa decisatildeo867

ele natildeo eacute o poacutelo oposto da racionalidade

Pelo modo de relaccedilatildeo esteacutetico haacute uma influecircncia ou complementaridade entre ambos os

modos de pensamento como aliaacutes pode ocorrer noutro qualquer modo de relaccedilatildeo

poreacutem durante a experiecircncia esteacutetica o pensamento conceptual dedica uma atenccedilatildeo

distinta ao sentimento empurrando-o para primeiro plano sem lhe coarctar nenhuma das

suas valecircncias e enriquecendo-o com uma nova imagem acerca de si mesmo868

Nesse

primeiro plano o sentimento continuaraacute a funcionar como uma estrutura pensante

sinteacutetica e continuaraacute a articular-se com o raciociacutenio loacutegico e com os seus conceitos

mas a sua primazia permite ao sujeito assumir uma atitude contemplativa particular que

conferiraacute agrave experiecircncia esteacutetica as duas caracteriacutesticas distintivas que anteriormente

apresentaacutemos

867

Os estudos neuroloacutegicos parecem confirmar que o sentimento emocional tem um papel bastante

relevante no processo de decisatildeo jaacute que permitem estabilizar o curso do raciociacutenio argumentativo

Deficiecircncias na capacidade em desenvolver respostas de cariz emocional condenam o sujeito a um

permanente estado de indecisatildeo face a situaccedilotildees baacutesicas relativamente agraves quais desenvolvem raciociacutenios

loacutegicos complexos prolixos enredando-se numa infindaacutevel teia de causalidades O caso de ldquoElliotrdquo

descrito por Damaacutesio em O erro de Descartes eacute disto ilustrativo jaacute que o paciente revelava nos testes de

inteligecircncia possuir um QI acima da meacutedia natildeo sendo poreacutem capaz de resolver correctamente questotildees

quotidianas concretas O seu deacutefice de sentimentos emocionais deveu-se uma cirurgia a um tumor no

coacutertex preacute-frontal na qual tiveram de lhe retirar tecido cerebral com enorme prejuiacutezo para todos os

campos da sua vida Cf Antoacutenio Damaacutesio ldquo O Phineas Gage modernordquo O erro de Descartes 23ordf ed

Lisboa Publicaccedilotildees Europa-Ameacuterica 2003 pp 54-70

868 Eacute graccedilas a este processo que os artistas satildeo capazes de materializar as suas ideias Natildeo deixa de haver

um processo conceptual subjacente mas tambeacutem natildeo eacute quebrado o modo iacutentegro como as coisas nos

aparecem e o proacuteprio aparecer das coisas eacute traduzido plasticamente com elas tal como com o nosso

modo de visatildeo Talvez seja a isto que corresponde o modo de ver as coisas sub specie aeternitatis referido

por Wittgenstein a partir de um conceito de Espinosa em Notebooks 1914-1916 71016 laquoEach thing

modifies the whole logical world the whole of logical space so to speak (The thought forces itself upon

one) The thing seen sub specie aeternitatis is the thing seen together with the whole of logical spaceraquo

Ludwig Wittgenstein Notebooks 1914-1916 G E M Anscombe (trad) New York Harper 1961 p 83

320

323 - A questatildeo do valor e a afinidade entre os domiacutenios esteacutetico e eacutetico

Na filosofia agostiniana o conceito de ordem assume especial relevacircncia para a

articulaccedilatildeo entre a unidade e a multiplicidade e consequentemente para o modo como a

razatildeo deve estabelecer a importacircncia dos dados da sensibilidade e o grau de atenccedilatildeo que

seraacute correcto dedicar-lhes Atribuir valor a algo eacute determinar-lhe uma posiccedilatildeo ordenada

numa escala que pelo simples facto de implicar uma gradaccedilatildeo de importacircncias

pressupotildee uma ideia de perfeiccedilatildeo de acordo com a qual deveratildeo ser norteadas todas as

acccedilotildees Essa ideia de perfeiccedilatildeo corresponde para Santo Agostinho a Deus que eacute a

medida de todas as coisas poreacutem natildeo eacute directamente a Ele que poderaacute fazer-se

corresponder a noccedilatildeo de valor As Ideias ou Formas existentes na Sua mente adequam-se

melhor a tal correspondecircncia jaacute que o valor eacute assumido como uma espeacutecie de regra

paradigmaacutetica que dita o modo como as coisas deveriam ser Santo Agostinho

subscreveria naturalmente uma perspectiva em que os valores morais e esteacuteticos tecircm

uma natureza absoluta impessoal natildeo dada a relativismos e passiacutevel de determinar

razotildees para a acccedilatildeo No que toca aos valores esteacuteticos as razotildees para a acccedilatildeo dizem

respeito a uma dimensatildeo motivacional relevante que natildeo eacute autoacutenoma da esfera moral

prescritiva do uso (uti)

Apesar da perspectiva agostiniana defender que tudo o que existe no mundo

temporal possui beleza e bondade ela tambeacutem pressupotildee uma concepccedilatildeo metafiacutesica dos

valores Assim a beleza e a bondade que caracterizam a criaccedilatildeo natildeo podem senatildeo ser

expressotildees derivadas de valor mas natildeo os proacuteprios valores Os valores natildeo satildeo

portanto caracteriacutesticas intriacutensecas dos objectos A relaccedilatildeo entre as propriedades

naturais dos objectos associadas agraves expressotildees derivadas de valor e os valores

propriamente ditos eacute estabelecida pelos numeri ndash propriedades relacionais que

funcionam como razotildees para a valorizaccedilatildeo do objecto ou situaccedilatildeo natildeo satildeo apenas

321

razotildees no sentido justificativo do termo mas no de uma proporcionalidade qualitativa

entre as propriedades naturais dos objectos e os valores propriamente ditos

Face agrave intangibilidade dos valores as teorias contemporacircneas tendem

precisamente a deslocar a abordagem para as razotildees869

o que natildeo invalida o

reconhecimento da dimensatildeo subjectiva e a relatividade implicadas no acto de

valoraccedilatildeo Mesmo para a perspectiva agostiniana eacute necessaacuterio que haja um sujeito para

atribuir valor a um objecto ou uma consciecircncia racional que reconheccedila os numeri pelo

que natildeo obstante o caraacutecter absoluto e impessoal do valor haacute sempre a implicaccedilatildeo dos

afectos no processo valorativo essa eacute precisamente a loacutegica do ordo amoris

Por natildeo ser inerente ao objecto ou situaccedilatildeo o valor esteacutetico natildeo pode considerar-se

como sendo aquilo que faz do objecto ou situaccedilatildeo merecedor de ser apreciado por si

mesmo870

Valorizar esteticamente um objecto ou situaccedilatildeo consiste em perceber que ele

eacute ou poderaacute vir a ser significativo para noacutes na medida em que promove uma abertura

no nosso modo de visatildeo correspondente agrave proacutepria abertura de sentidos entrevista no

objecto ou situaccedilatildeo Eacute ingeacutenua a pretensatildeo de que eacute por si mesmo que o objecto eacute

valorizado o seu valor esteacutetico encontra-se dependente do enriquecimento pessoal

cognitivo e sentimental que puder facultar ao sujeito Isto faz com que nem sempre a

beleza possa ser considerada como uma expressatildeo de valor esteacutetico Por vezes a sua

identificaccedilatildeo num qualquer objecto limita-se a assumir um cariz descritivo paralelo ao

de uma propriedade secundaacuteria sem qualquer capacidade para suscitar uma experiecircncia

esteacutetica Se natildeo for interrogativa a beleza constitui-se como uma mera constataccedilatildeo de

caracteriacutesticas convencionadas culturalmente ou de disposiccedilotildees formais que despertam

mecanismos perceptivos e emocionais ligados a processos homeostaacuteticos suscitando

uma sensaccedilatildeo de prazer em nada distinta da que eacute experienciada pela satisfaccedilatildeo de uma

qualquer necessidade baacutesica Contrariamente ao que Kant postularia a sensaccedilatildeo

provocada por um tal reconhecimento da beleza pode ser enquadrada na categoria do

agradaacutevel (das Angenehme) O proacuteprio Santo Agostinho parece reconhecer este duplo

modo de encarar a beleza quando falando acerca da philocalia diz que se a sua

869

Eacute o caso da buck-passing theory defendida por T M Scanlon segundo a qual x tem valor se tiver

outras propriedades natildeo valorativas que facultem razotildees para certas atitudes e acccedilotildees Cf Scanlon What

We Owe to Each Other Cambridge Mass London Belknap 1998 p 96 e 97

870 Esta eacute a definiccedilatildeo de valor esteacutetico proposta por Peter Kivy e por Alan Goldman Cf Peter Kivy

ldquoWhat Makes lsquoAestheticrsquo Terms Aestheticrdquo Philosophy and Phenomeno-logical Research 36 nordm 2

December 1 1975 p 211 Alan H Goldman Aesthetic Value Boulder CO Westview Press 1995 p 20

322

estimaccedilatildeo for tomada num sentido vulgar entatildeo estaraacute longe de poder ser considerada

como pertencendo agrave linhagem da filosofia poreacutem sendo tomada na acepccedilatildeo correcta

ela eacute sinoacutenima de amor ao conhecimento e subsume-se na proacutepria filosofia sem que se

possa considerar qualquer grau de parentesco pois a philocalia e a filosofia satildeo entatildeo

a mesma coisa871

O desejo de conhecimento alicerccedila tambeacutem a esteacutetica

A esteacutetica e a eacutetica constituem-se como dois modos de atribuir sentido ao que

nos rodeia a partir de uma perspectiva natildeo proposicional que tem o mundo como um

todo e natildeo nos situa apenas de um dos lados da fronteira entre o real e o aparente Esta

perspectiva eacute de certa forma uma afirmaccedilatildeo de liberdade e um modo de

transcendecircncia A esteacutetica agostiniana aponta claramente nesta direcccedilatildeo ao pressupor a

possibilidade da via per corporalia ad incorporalia ab inferioribus ad superiora na

qual a beleza assume uma funccedilatildeo reveladora conduzindo ao conhecimento dos numeri

e na qual a experiecircncia sensorial pode constituir um modo de aperfeiccediloamento da alma e

uma esfera de exercitamento das virtudes que por si pressupotildeem a estruturaccedilatildeo

hierarquizada do mundo

A visatildeo hierarquizada obriga-nos a lidar especificamente com dois poacutelos e com

a escala que haacute entre eles obriga-nos portanto a reflectir acerca das divisotildees que haacute no

mundo sem que assumamos uma posiccedilatildeo de neutralidade ndash o que aliaacutes seria impossiacutevel

Pela eacutetica tendemos a adoptar um posicionamento de estabilizaccedilatildeo e de conciliaccedilatildeo

com aquilo que acreditamos ser as diferenccedilas dos outros Pela esteacutetica damos especial

atenccedilatildeo ao nosso proacuteprio modo de ver e de ser propiciando a abertura agrave instabilidade e

agrave relatividade do sentido das coisas aleacutem de uma postura de revisatildeo face ao que temos

por adquirido Eacute para a impossibilidade de perspectivas uniacutevocas que o posicionamento

esteacutetico nos prepara Ambos os modos satildeo assim de caraacutecter altruiacutesta e reveladores da

consciecircncia de pertenccedila a algo maior que noacutes proacuteprios

871

Cf Retract I 1 3 Vide p 175

CONCLUSAtildeO

327

O iniacutecio deste projecto de investigaccedilatildeo previa uma leitura contemporacircnea da

esteacutetica de Santo Agostinho mais audaciosa do aquela que aqui se delineou Tal intento

revelou-se inexequiacutevel sem o suporte de um corpo teoacuterico que servisse de base a

consideraccedilotildees capazes de enquadrar o pensamento agostiniano nas novas linhas de

investigaccedilatildeo que a esteacutetica contemporacircnea tem vindo a desenvolver Esse corpo teoacuterico

eacute o que aqui se apresenta Seria agora possiacutevel fundamentar uma abordagem no acircmbito

da esteacutetica somaacutetica por exemplo partindo da reflexatildeo que Santo Agostinho

desenvolve acerca das sensaccedilotildees que acompanham o processo digestivo ou acerca dos

prazeres salutares de uma vida regrada Articulando as temaacuteticas agostinianas da

judicaccedilatildeo das percepccedilotildees sensiacuteveis e da beleza da criaccedilatildeo poder-se-ia agora extrapolar

a esfera do belo natural e explorar outros toacutepicos constitutivos da esteacutetica

contemporacircnea da natureza a partir da obra agostiniana Poder-se-ia ainda pensar a via

da interioridade como a de uma paisagem psicoloacutegica eivada de referentes passiacuteveis de

ser analisados agrave luz de uma hermenecircutica esteacutetica Qualquer uma destas leituras ficaraacute

em aberto Urdimos antes uma espeacutecie de trama entre diversos conteuacutedos que na obra de

Santo Agostinho se encontravam dispersos para propor uma direcccedilatildeo de leitura ao

longo daquilo que pode ser considerado o seu legado no acircmbito esteacutetico As

coordenadas para tal tessitura foram encontradas no diaacutelogo entre o alargamento

disciplinar que marca a esteacutetica na contemporaneidade e os lindes que a proacutepria

exploraccedilatildeo da filosofia agostiniana nos ia sugerindo Assim a questatildeo dos limites da

esteacutetica permitiu uma visatildeo mais ampla da pertinecircncia do contributo agostiniano no seu

seio na exacta medida em que esse contributo antes mesmo de lhe adivinharmos os

contornos em toda a sua extensatildeo nos ia facultando indiacutecios acerca das valecircncias da

aacuterea disciplinar em questatildeo

O tiacutetulo ldquoDo escondidordquo pretende traduzir as dificuldades associadas agrave esfera da

esteacutetica quer no que toca a claacutessica questatildeo da dificuldade da definiccedilatildeo do belo ndash tal

como conclui Platatildeo no Banquete ndash quer no que diz respeito a todos os meandros que

se delineiam no seio deste ramo filosoacutefico reclamando hoje reconhecimento e

328

pertinecircncia Nos nossos dias o belo parece sobreviver sobretudo enquanto designaccedilatildeo

abrangente que usamos para nos referirmos agravequilo que nos comove pelo enlace que

suscita entre a ponderaccedilatildeo do sensiacutevel e o afecto Esta beleza fundada na comoccedilatildeo e na

razatildeo natildeo eacute necessariamente oposta ao feio podendo ateacute abarcaacute-lo tornando-o como

seu constituinte Santo Agostinho tacteou estas asperezas testemunhando a demora em

alcanccedilar a amplitude da verdadeira beleza que como um discurso escondido da

natureza o exortava a entrar em si mesmo para no seu mais recocircndito a encontrar

Implicada nessa via interior estava a assunccedilatildeo de uma perspectiva capaz de

compreender os aspectos contraditoacuterios ou de aceitar como tal os aspectos misteriosos

da beleza do universo O reconhecimento da infinitude atraveacutes do particular eacute no que

culmina o exerciacutecio da procura da beleza Tal exerciacutecio eacute uma busca de sentido para as

coisas e para o ser e no fundo eacute indistinguiacutevel do exerciacutecio de procura da verdade

Alcanccedilar a beleza eacute alcanccedilar conhecimento daquilo que natildeo eacute dado senatildeo de modo

obscuro e especular Para Santo Agostinho a beleza constitui portanto um liame entre a

dimensatildeo temporal e a divina que espelha esta uacuteltima na primeira e que ao fazecirc-lo

cativa o homem para o seu lado mais puro originaacuterio O tiacutetulo desta tese adequa-se

tambeacutem agrave esteacutetica agostiniana jaacute que apesar de cativado pelo belo o homem soacute o

alcanccedila verdadeiramente apoacutes uma aacuterdua conquista Nesta perspectiva esteacutetica a beleza

eacute um sentido das coisas que se pressente a partir das suas formas e o prazer que lhe estaacute

associado esquiva-se do desejo e da acircnsia inquieta constituindo-se como um preacutemio

beatiacutefico destinado agravequeles que reservarem a fruiccedilatildeo para o que realmente merece ser

amado por si mesmo (se ipsam) votando ao uso tudo o que se presta agrave obtenccedilatildeo daquilo

que legitimamente se ama

O aliar das esteses ao conhecimento verifica-se na filosofia agostiniana quer pela

coincidecircncia entre a procura do belo e a da verdade quer pela funccedilatildeo sublimante dos

numeri que codificam as formas sensiacuteveis permitindo ao homem guindar-se a partir

delas para o plano da verdadeira realidade Os numeri estabelecem um elo entre tais

formas sensiacuteveis e as Formas inteligiacuteveis que satildeo elas proacuteprias seu modelo e que

consequentemente se constituem como dispositivo legislador da beleza materializada

nas configuraccedilotildees das coisas Eacute tambeacutem isto um indicador da continuidade entre as

categorias epistemoloacutegicas agostinianas de homem exterior e homem interior A

possibilidade de reconhecer as pulchritudinis leges cabe exclusivamente ao sujeito do

conhecimento inteligiacutevel mas se natildeo houvesse entre este e o sujeito do conhecimento

sensiacutevel uma transmeabilidade ao niacutevel das formas que satildeo objecto das respectivas

329

actividades cognoscitivas a funccedilatildeo remissiva que Santo Agostinho reconhece na beleza

corpoacuterea relativamente agrave beleza inteligiacutevel natildeo faria qualquer sentido jaacute que o homem

seria incapaz de ajuizar correctamente as belezas sensiacuteveis e de as reportar agrave matriz

inteligiacutevel Aquilo que poderaacute entender-se como uma forma de conhecimento inferior

constitui-se na verdade como uma propedecircutica para o alcance da beleza superior

equacionada de modo sapiencial

Foi nesta mesma senda de reabilitaccedilatildeo do modo de relaccedilatildeo esteacutetico

tradicionalmente tido como oposto ao processo de conhecimento que propusemos uma

anaacutelise do potencial cognoscitivo da experiecircncia esteacutetica capaz de a inserir no domiacutenio

da reflexatildeo filosoacutefica natildeo apenas como objecto mas como modalidade Assim

defendemos que a experiecircncia esteacutetica faculta um conhecimento particular das coisas

que vai para laacute da pura conceptualizaccedilatildeo uma vez que natildeo descarta a dimensatildeo

emocional nela envolvida O pensamento discursivo tende a deixar de lado os

sentimentos que o sujeito experiencia na sua relaccedilatildeo com as coisas e por se pressupor

objectivo tende igualmente a negligenciar os detalhes natildeo essenciais das coisas Numa

experiecircncia esteacutetica pelo contraacuterio haacute uma peculiar atenccedilatildeo aos detalhes e haacute

igualmente o propiciar de uma espeacutecie de autoconhecimento pela objectivaccedilatildeo da nossa

subjectividade ndash convertemos os nossos sentimentos tambeacutem em objecto do nosso

pensamento conceptual Haacute como que uma uniatildeo indiscerniacutevel entre pensar e sentir (um

ldquopensirrdquo) que eacute caracteriacutestico da experiecircncia esteacutetica Esta instaura um modo de reflexatildeo

que poderiacuteamos definir como episteacutesico jaacute que associa ao pensamento loacutegico a

dimensatildeo do pensamento emocional

Uma epistesia designaria portanto esse conhecimento hiacutebrido resultante da

experiecircncia esteacutetica no qual a compreensatildeo do objecto ou situaccedilatildeo integra uma espeacutecie

de introspecccedilatildeo atenta aos sentimentos que acompanham a imagem que construiacutemos

para noacutes desse objecto ou situaccedilatildeo A objectividade de tal forma de conhecimento

limita-se ao seu instante ao seu ldquoaqui e agorardquo poreacutem a epistesia subsistiraacute como uma

abertura na sensibilidade do sujeito capacitando-o cumulativamente para experiecircncias

esteacuteticas cada vez mais sofisticadas ou cada vez mais frequentes Aleacutem disso tal modo

de relacionamento cognoscitivo concorre para que se outorgue ao objecto um estatuto

natildeo-instrumental relativamente duradouro que faz com que o sujeito se sinta de certo

modo responsaacutevel quanto aos usos que lhe poderatildeo ser dados abrindo assim caminho

para uma postura eacutetica em relaccedilatildeo ao mesmo

330

A proacutepria abertura do sujeito agraves especificidades que o objecto pode assumir para

si e a compreensatildeo do caraacutecter cambiante de que a natureza dessa recepccedilatildeo se reveste

adestram-lhe a capacidade de lidar com a diferenccedila a outros niacuteveis da experiecircncia

humana Por exemplo haacute uma maior flexibilidade no reconhecimento da validade de

criteacuterios culturais distintos e consequentemente haacute uma relativizaccedilatildeo das noccedilotildees da

valor e de verdade que predispotildee a uma maior receptividade ao outro A objectivaccedilatildeo da

subjectividade que a experiecircncia esteacutetica propicia implica como que uma exteriorizaccedilatildeo

da mesma promovendo um certo distanciamento ou mesmo um descentramento do

plano individual Ao tornar-se um outro para si mesmo o sujeito deveacutem socialmente

mais cocircnscio O agir moral rege-se sobretudo pela leitura articulada que fazemos das

nossas emoccedilotildees com aquilo que supomos serem as emoccedilotildees dos outros as epistesias

favorecem tal capacidade de introspecccedilatildeo e de articulaccedilatildeo

Tambeacutem para Santo Agostinho a esteacutetica estaacute intimamente ligada a uma postura

eacutetica O reconhecimento dos numeri que compete agrave ratio superior parece pressupor a

disponibilidade do sujeito para assumir as limitaccedilotildees da sua perspectiva Eacute tal atitude de

autoquestionamento que lhe permite aceder aos numeri por detraacutes das coisas

assumindo-os como coordenadas para uma nova visualidade ou modo de compreensatildeo

de si e das coisas que desde logo determina uma nova conduta norteada pela recta

valoraccedilatildeo e recto uso daquilo que o rodeia Na perspectiva agostiniana a

instrumentalizaccedilatildeo das realidades temporais que atraem o sujeito consiste na assunccedilatildeo

de tal entendimento que as toma como expressatildeo de uma realidade superior agrave qual cabe

o meacuterito do poder de atracccedilatildeo e da vocaccedilatildeo significante reconheciacutevel nas coisas

temporais Soacute em relaccedilatildeo a tal matriz eacute correcto haver fruiccedilatildeo Ainda que natildeo abone a

favor da autonomia do objecto esta perspectiva natildeo eacute radicalmente oposta agravequela que

defendemos jaacute que ela presume que o modo de relaccedilatildeo esteacutetico que o sujeito pode

assumir em relaccedilatildeo agraves coisas funciona como uma janela aberta para uma acepccedilatildeo menos

trivial que sobre elas pende e eacute a tal entendimento que Santo Agostinho exorta quando

afirma que as belezas sensiacuteveis devem ser utilizadas ao inveacutes de fruiacutedas

O ordo amoris concorre tambeacutem para o entendimento da indissociabilidade entre

eacutetica e esteacutetica agostinianas uma vez que se funda numa categorizaccedilatildeo das coisas e das

acccedilotildees prescritiva quanto ao modo de relaccedilatildeo que com elas o sujeito deve manter Esse

processo valorativo tem por criteacuterio a relaccedilatildeo de proximidade que cada coisa manteacutem

com Deus e agrave qual cabe um comportamento afectivo especiacutefico por parte do sujeito

Estaacute em causa a interpretaccedilatildeo sentimental que o sujeito constroacutei tambeacutem racionalmente

331

face agraves coisas que o rodeiam e estaacute em causa o tipo de viacutenculo instrumental que com

elas estabelece Haacute um pragmatismo associado agraves possibilidades de deleitaccedilatildeo a

reconhecer nos objectos e nas situaccedilotildees que por um lado adia a plenitude da

fruiccedilatildeo mas que por outro lado permite legitimar uma relaccedilatildeo positiva do sujeito

com tudo aquilo que constitui a esfera sensiacutevel abrindo caminho a uma perspectiva

natildeo condenatoacuteria dos sentidos corpoacutereos e laudatiacutecia quer da beleza quer da

utilidade sui generis constitutivas de tudo o que existe temporalmente Santo

Agostinho procede assim como que a uma distinccedilatildeo entre o deleite dos sentidos e o

deleite pelos sentidos aleacutem de atender agrave ceacutelebre passagem biacuteblica na qual o Criador

constata a bondade da sua obra

Eacute do grego alexandrino καλός que as traduccedilotildees latinas da Septuaginta fizeram

derivar o qualificativo ldquobomrdquo com o qual Deus descreve a sua obra (Gn 1 21 1 25 e

1 31) A acepccedilatildeo claacutessica do termo (em grego aacutetico) estaacute directamente orientada para a

beleza exterior872

derivando deste o καλός biacuteblico (em grego alexandrino) adjectiva o

que eacute inerentemente bom todavia colocando a ecircnfase na beleza que se apresenta ao

olhar Santo Agostinho confessa preferir as traduccedilotildees latinas das Sagradas Escrituras

feitas a partir da Septuaginta agraves que eram feitas a partir dos textos hebraicos ndash assim o

afirma nas epiacutestolas 28 71 e 82 escritas entre 394 e 404 a Jeroacutenimo que nesse periacuteodo

se ocupava precisamente com uma traduccedilatildeo biacuteblica a partir do hebraico A bondade

associada agraves criaturas eacute portanto uma qualidade que traduz o seu valor absoluto

distinguindo-se do ldquobomrdquo que resulta da traduccedilatildeo do grego ἀγαθός Este uacuteltimo chama

a atenccedilatildeo sobretudo para aquilo que eacute bom graccedilas ao efeito positivo que desencadeia

por seu turno o ldquobomrdquo que deriva de καλός concerne mais precisamente agravequilo que eacute

admiraacutevel por ser belo nobre bem formado intriacutenseca e exteriormente Algo pode ser

meramente bom (ἀγαθός) mas se aleacutem de ser bom manifestar exteriormente essa

qualidade a sua bondade pertenceraacute ao acircmbito do καλός Assim natildeo obstante a

distinccedilatildeo que foi feita poderaacute considerar-se que o ἀγαθός estaacute subsumido no καλός

biacuteblico tambeacutem este veiculando um aspecto moral que ressuma da beleza Haacute quase um

caraacutecter intermutaacutevel entre beleza e bondade que eacute perceptiacutevel por exemplo na

derivaccedilatildeo latina do termo bonitas que acabou por perder a acepccedilatildeo de ldquobondaderdquo em

prol daquela de ldquobelezardquo nas formas portuguesas ldquobonitordquo e ldquobonitezardquo

872

Cf H G Liddell Robert Scott A Greek-English lexicon Henry Drisler (ed) NY Harper amp Brothers

1859 p 699 Pierre Chantraine Dictionnaire eacutetymologique de la langue grecque Histoire des mots

Paris Eacuteditions Klincksieck 1977 p 503

332

A iacutentima ligaccedilatildeo que o bom e o belo originalmente tinham no contexto biacuteblico e

que o neoplatonismo jaacute havia tambeacutem reconhecido marca toda a esteacutetica agostiniana

deixando transparecer a imagem de um Deus esteta cujo acto criador natildeo descura a

expressividade das aparecircncias expressividade esta que sempre ecoa a excelecircncia da sua

origem mesmo quando por exemplo a harmonia do corpo natildeo corresponde a um

iacutentimo virtuoso ndash ainda assim eacute a divina providecircncia a manifestar o seu esplendor

exortando a que o homem natildeo se quede pela esfera temporal onde o belo eacute sempre

fugaz e aspire a uma beleza superior agravequela que se configura nas coisas pereciacuteveis e

com elas se esvanece Natildeo se trata pois de um Deus que precisa das criaturas para

nelas se ver mas de um Deus que se oferece tambeacutem como beleza aliando agrave dimensatildeo

teofacircnica do belo as exigecircncias morais a que o homem deve atender para O desocultar

dentro de si mesmo Deus soacute se esconde no interior do homem pois em tudo o mais a

Sua presenccedila eacute declarada pela beleza ainda que natildeo seja imediato o reconhecimento que

o homem pode atraveacutes dela fazer Para O reconhecer tambeacutem a alma precisa de se

embelezar tornando-se virtuosa e auscultando o Mestre interior que a remete para a

beleza exemplar do Redentor Cristo eacute o elo entre o plano interior e o exterior sendo

tambeacutem ele o uacutenico mediador capaz de conduzir o homem da esfera sensiacutevel ateacute ao aacutepex

da esfera inteligiacutevel Natildeo eacute pois de estranhar que haja um papel de destaque para a

beleza nessa mediaccedilatildeo jaacute que o proacuteprio Cristo incarna a beleza de Deus O carmen

universitatis composto pela disposiccedilatildeo esteacutetica de tudo o que existe ndash e que natildeo deixa de

ser uma disposiccedilatildeo racional do sensiacutevel atraveacutes dos numeri ndash eacute como que o resultado de

uma linguagem divina soacute compreensiacutevel na sua plenitude pelo homem graccedilas ao Filho

A especulaccedilatildeo racional revela-se insuficiente e esteacuteril a menos que a feacute intervenha

desvelando atraveacutes do Redentor a forma Dei A auscultaccedilatildeo da beleza das coisas

sensiacuteveis leva o homem a procurar dentro de si o Criador encontrando na memoacuteria uma

imagem Dele ainda aberta agrave conformaccedilatildeo e encontrando a via para tal conformidade na

exortaccedilatildeo do Mestre interior A reformaccedilatildeo da imagem de Deus no homem eacute o

restabelecimento da beleza da alma diminuiacuteda aquando do pecado original e que o

Redentor vem concretizar exemplarmente pelo hibridismo paradoxal da fealdade

humana revelada pelo seu corpo fustigado e da beleza divina que incarna nessa entrega

amorosa agrave humanidade A compunccedilatildeo que assim desperta e o caminho remidor por si

revelado nascem da alianccedila entre a esteacutetica e a moral

A perspectiva esteacutetica de Santo Agostinho natildeo se reduz a uma teofania ainda

que a beleza seja sobretudo revelaccedilatildeo de Deus O modo como o homem lida com as

333

esteses eacute de igual importacircncia e conduz o filoacutesofo a uma concepccedilatildeo quase paradoxal da

transcendentalidade do belo jaacute que se pressuporia que o seu alcance determinaria o

desaparecimento de qualquer uma das suas expressotildees sensiacuteveis e no entanto o

movimento em direcccedilatildeo ao universal que a beleza propicia natildeo faz sentido se implicar a

perda do particular Ao alcance da verdadeira beleza soacute se associa o ganho ora natildeo

podendo haver um empobrecimento do universal nem uma desumanizaccedilatildeo do homem

(este natildeo deveacutem anjo nem Deus) todas as formas sensiacuteveis assumidas pelo belo na

esfera temporal marcaratildeo presenccedila na vida ressurrecta para serem contempladas pelo

homem cujo corpo renovado e embelezado manteacutem o uso dos seus sentidos agora

supeacuterfluos para deles se servir a seu bel-prazer Eacute a Deus que tais belezas satildeo devidas e

eacute como um louvor a Deus que satildeo sentidas pelo homem todavia natildeo deixa de haver

uma espeacutecie de celebraccedilatildeo da dimensatildeo sensiacutevel que se na sua espeacutecie era jaacute

considerada pelo Criador como muito boa tanto mais excelsa o eacute no acircmbito da

contemplaccedilatildeo a que o homem acede ao alcanccedilar a beata vita

Sem qualquer prejuiacutezo para os encontros inesperados e sempre entusiasmantes

que foram surgindo ao longo da tese muitas vezes nos pareceu estar a reorganizar a

teoria agostiniana como se esta fosse um puzzle passiacutevel de ser montado de vaacuterias

formas originando frequentemente a mesma imagem Natildeo nos parece que haja uma

conclusatildeo ou uma descoberta inovadora de uma qualquer parcela agostiniana Pelo

contraacuterio a filosofia agostiniana continua a mesma e ao percorrecirc-la chegaacutemos a

destinos que tantos outros jaacute antes haviam chegado Sentimos poreacutem que trilhaacutemos

percursos paralelos que por vezes iam interceptando as rotas mais habituais com um

misto de decepccedilatildeo por tatildeo trivial desembocadura e de aliacutevio por perceber que estaacutevamos

no bom caminho A esteacutetica permite estes passeios paralelos ao longo do legado dos

autores Mesmo que um autor natildeo pareccedila tecer quaisquer consideraccedilotildees acerca da arte

acerca das formas que a beleza assume ou acerca da sensibilidade mdash e estaacute longe de ser

o caso de Santo Agostinho mdash a nossa relaccedilatildeo com o pensamento desse autor poderaacute

sempre ser ela mesma uma relaccedilatildeo esteacutetica

Para a tese de que o meacuterito da esteacutetica natildeo tem sido suficientemente reconhecido

no meio filosoacutefico poderiacuteamos ter-nos socorrido de um qualquer outro pensador sem

filosofia da arte mas levou-nos a paixatildeo pelas Confissotildees e pelo seu autor Um dos

334

conceitos que sempre ressalta de qualquer perspectiva esteacutetica mais tradicional eacute o de

prazer Pudemos vivecirc-lo por inuacutemeras vezes ao escrever esta tese Natildeo foi uma tese

sofrida foi um prazer a cada percurso temaacutetico que esperamos poder partilhar

BIBLIOGRAFIA

339

Nota preacutevia No ponto I satildeo referidos os textos agostinianos utilizados nesta investigaccedilatildeo

sempre que possiacutevel retirados do Corpus Christianorum Latinorum embora pontualmente

tenham tambeacutem sido utilizadas as ediccedilotildees do Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum e

da Patrologia Latina Para aleacutem destas fontes o ponto I integra ainda uma aliacutenea com todas as

traduccedilotildees consultadas No ponto II encontram-se referenciadas as obras de autores antigos

citadas na presente tese Para o ponto III reservou-se a indicaccedilatildeo da bibliografia especiacutefica

subdividida em dois grupos o dos ensaios votados agrave esteacutetica abrangentemente considerada e o

dos textos que em concreto versam sobre a esteacutetica de Santo Agostinho No ponto IV

elencam-se todos os demais estudos sobre o pensamento e sobre a obra agostinianas que

serviram de suporte agrave nossa investigaccedilatildeo Por fim o ponto V eacute dedicado agrave bibliografia geral

compilando outros textos de cariz instrumental utilizados e citados nesta tese

I

OBRAS DE SANTO AGOSTINHO

a) Fontes

Confessionum libri tredecim L Verheijen CCL 27 Turnhout Brepols 1981

Contra Academicos W M Green CCL 29 Turnhout Brepols 1970 pp 3-61

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Tempsky 1891 pp 191-248

Contra Faustum J Zycha CSEL 251 Viena F Tempsky 1891 pp 249-797

Contra Julianum libri sex J-P Migne PL 44 Paris Migne 1845 cols 641-874

Contra Julianum opus imperfectum E Kalinka M Zelzer CSEL 851 Viena Verlag

der Oumlsterreichischen Akademie der Wissenschaften 1974

De anima et ejus origine J Zycha K Urba CSEL 60 Viena F Tempsky 1913 pp 303-419

De beata vita W M Green CCL 29 Turnhout Brepols 1970 pp 65-85

De bono conjugali J Zycha CSEL 41 Viena F Tempsky 1900 pp 187-231

De civitate Dei B Dombart A Kalb CCL 47-48 Turnhout Brepols 1955

De correptione et gratia J-P Migne PL 44 Paris Migne 1845 cols 915-946

De diversis quaestionibus octoginta tribus Almut Mutzenbacher CCL 44A Turnhout

Brepols 1975 pp 11-249

De doctrina christiana J Martin CCL 32 Turnhout Brepols 1962 pp 1-167

340

De fide et operibus J Zycha CSEL 41 Viena F Tempsky 1900 pp 33-97

De gratia et libero arbitrio J-P Migne PL 44 Paris Migne 1845 cols 881-912

De Genesi ad litteram J Zycha CSEL 281 Viena F Tempsky 1894 pp 3-435

De Genesi ad litteram imperfectus liber J Zycha CSEL 281 Viena F Tempsky

1894 pp 459-503

De Genesi contra Manichaeos J-P Migne PL 34 Paris Migne cols 173-220

De immortalitate animae W Houmlrmann CSEL 89 Viena Verlag der Oumlsterreichischen

Akademie der Wissenschaften 1986 pp 99-128

De libero arbitrio W M Green CCL 29 Turnhout Brepols 1970 pp 211-321

De Magistro K-D Daur CCL 29 1970 Turnhout Brepols pp 157-203

De musica J-P Migne PL 32 Paris Migne cols 1079-1194

De natura boni J Zycha CSEL 252 Viena F Tempsky1892 pp 855-889

De ordine W M Green CCL 29 Turnhout Brepols 1970 pp 89-137

De quantitate animae W Houmlrmann CSEL 89 Viena Verlag der Oumlsterreichischen

Akademie der Wissenschaften 1986 pp 129-231

De Trinitate W J Mountain F Glorie CCL 50-50A Turnhout Brepols 1968

De vera religione K-D Daur CCL 32 Turnhout Brepols 1962 pp 187-260

Enarrationes in Psalmos E Dekkers J Fraipont CCL 38-40 Turnhout Brepols 1956

Epistulae I-LV K-D Daur CCL 31 Turnhout Brepols 2004 LVI-C Daur CCL 31A

Turnhout Brepols 2005 CI-CXXXIX Daur CCL 31B Turnhout Brepols 2009

Ep CLXVI A Goldbacher CSEL 44 Viena F Tempsky 1904 pp 545-565

In Iohannis epistulam ad Parthos tractatus J-P Migne PL 35 Paris Migne cols 1977-2062

In Iohannis evangelium tractatus Radbodus Willems CCL 36 Turnhout Brepols 1954

Quaestionum in Heptateuchum libri VII John Fraipont CCL 33 Turnhout Brepols

1958 pp 1-377

Retractationum libri duo Almut Mutzenbecher CCL 57 Turnhout Brepols 1984

Soliloquiorum libri duo W Houmlrmann CSEL 89 Vienna Verlag der Oumlsterreichischen

Akademie der Wissenschaften 1986 pp 3-98

341

b) Traduccedilotildees consultadas

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Cartas 124-187 L Cilleruelo et al (trad) Obras completas de Sto Agustiacuten XIA BAC

Madrid Catolica 1987

Cartas 188-270 L Cilleruelo et al et al (trad) Obras completas de Sto Agustiacuten XIB

BAC Madrid Catolica 1987

Confissotildees Arnaldo Espiacuterito Santo Joatildeo Beato Maria Cristina Castro Maia de Sousa

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La citeacute de Dieu I Bochet (intr) G Combegraves ( trad) G Madec (revue et corrig) 3 vols

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342

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Augustin 11 2 Paris Institut des Eacutetudes Augustiniennes 1997

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La foi chreacutetienne De vera religione De utilitate credendi De fide rerum quae non

videntur De fide et operibus texte latin de lrsquoeacuted Beacuteneacutedictine J Pegon (intr trad)

Bibliothegraveque Augustinienne OEuvres de saint Augustin 8 Institut des Eacutetudes

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La Genesi difesa contro i Manichei Libro incompiuto sulla Genesi L Carrozzi (trad)

A Di Giovanni A Penna (intr) Nuova biblioteca agostiniana Opere de

SantrsquoAgostino IX 1 Roma Cittagrave nuova 1988

La Trinitagrave G Beschin (trad) A Trapegrave M F Sciacca (intr) Nuova biblioteca

agostiniana Opere de SantrsquoAgostino IV Roma Cittagrave nuova 1987

La Triniteacute texte de lrsquoeacutedition beacuteneacutedictine M Mellet et Th Camelot (trad) E

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OEuvres de saint Augustin 15-16 Paris Institut des Eacutetudes Augustiniennes 1955

La vera religione Utilitagrave del credere La fede e il simbolo La fede nelle cose che non si

vedono A Pieretti (trad) Nuova biblioteca agostiniana Opere de SantrsquoAgostino VI 1

Roma Cittagrave nuova 1995

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Bibliothegraveque Augustinienne OEuvres de saint Augustin 12 Institut des Eacutetudes

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Adimantum Contra epistulam fundamenti Contra Secundinum Contra Felicem

manichaeum Bibliothegraveque Augustinienne OEuvres de saint Augustin 17 Paris Institut

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343

II

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ARISTOTE Politique ndash livre VIII Tome III2 J Aubonnet (trad) Paris Belles Lettres

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Tome VII1 Paris Belles Lettres 1933

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Lettres 2002

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Belles Lettres 2010

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345

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IacuteNDICES

371

IacuteNDICE ONOMAacuteSTICO

AAHLBERG Lars-Olof 301

ADEODATO 205

ADORNO Theodor W 293

AGACINSKI Sylviane 276

ALFARIC Prosper 157

ALIacutePIO 259

AMBROacuteSIO (SANTO) 132

ANAXAacuteGORAS 44

ANSCOMBE E M 319

ANTONELLI Giuseppe 138

ARENDT Hannah 29 170 171

ARISTOacuteTELES 44 78ndash79 85 87

127 128 151 239 275

ARMSTRONG Arthur Hilary 135

ARMSTRONG Ivor Richrads 304

ARQUIMEDES 305

ASCHENBRENNER Karl 285

BACON Francis 282

BALTHASAR Hans Urs von 141

213 214

BARTHES Roland 282

BASCHET J 58

BASSOLS Lourdes 54

BATAILLE Georges 249

BAUMGARTEN Alexander Gottlieb

25 33 270 285ndash89 309

BAYER Raymond 32

BEARDSLEY Monroe 310

BEATO Joatildeo 173 174 185 341

BEAUCHESNE Gabriel 42 354

BELL Clive 316

BENSON J 302

BERGSON Henri 281

BERLEANT Arnold 302

BERNINI Lorenzo 200

BLANCHOT Maurice 305

BOURKE Vernon Joseph 88

BOUTON-TOUBOULIC Anne

Isabelle 155 351

BOYER Charles 42 354

BOYER Freacutedeacuteric 48

BRACHTENDORF Johannes 72 354

BRADY Jules 42 354

BROWN Peter 51 266 274 354 361

BRUNETTI Federico 138

BURKE Edmund 289

CANAL Pietro 138

CELSUS Aulus Cornelius 67

CHANTRAINE Pierre 331

CIacuteCERO 26 72 124 127 138 159

162

CILENTO Vincenzo 118

COLISH Marcia L 79

CONSEcircNCIO 122

COPLESTON Frederick 45 111

COSTA Marcos R N 45 282 355

CRISTINA (de Lorena) 98

DA VINCI Leonardo 248

DAMAacuteSIO Antoacutenio 272 282 319

DANTO Arthur 248 293 298

DELEUZE Gilles 33 282

DEMOacuteCRITO 44

372

DENKER Christian 298

DEODORO 275 276 277 280

DERRIDA Jacques 293

DEWEY John 302

DIAMANT Carole 276

DICKIE George 316

DINIS Alberto Pereira 170

DIOTIMA (de Maniteacuteia) 174

DOLBEAU Jean 228

DOSTOIEVSKI Fioacutedor 210

DOUCET Dominique 95 206

DRISLER Henry 331

ECO Umberto 28 249

ELISEU (pers biacuteblica) 76

ENTZENBERG C 300

EPICTETO 275

ERASIacuteSTRATO 67

EVOacuteDIO 65ndash66 79 81

FEINBERG Joel 307

FIacuteLON 44

FITZGERALD Allan D 138

FONTANIER Jean-Michel 49ndash50 151

FOUCAULT Michel 33 282

FRIBERG Carsten 301

GADAMER Hans-Georg 271

GAGE Phineas 319

GALILEU 98

GAUGUIN Paul 313

GILSON Eacutetienne 55 100ndash101 108

111 120 123 165 176ndash77 207

GOLDMAN Alan H 321

GOODMAN Nelson 316

GOUSMETT Chris 44 356

GUITTON J 157

HAAPALA Arto 301

HADOT Ilsetraut 139

HARRISON Carol 41 55 60 61

106ndash7 179 212 274

HATFIELD Gary 269

HEATH Peter 292

HEGEL G W Friedrich 33 289 292ndash

94

HEIDEGGER Martin 278ndash80 293

294 293ndash94 302 307

HELENA (mitologia) 60

HERMOacuteGENES 241

HEROacuteFILO 67

HINRICHSEN Luiacutes Evandro 116

HIRSTEIN William 305

HOLTHER William Benjamin 285

HOMERO 85

HOPPER Vincent Foster 127

HUME David 289

HUTCHESON Francis 289

HYMAN Gavin 46 357

IRENEU 217

ISAIacuteAS 120 210

JACOB (pers biacuteblica) 189ndash90

JEROacuteNIMO (SAtildeO) 52 54 55 110

331

JOAtildeO (SAtildeO) 189

JOB 75

JOOST-GAUGIER Christiane L 127

KANT Immanuel 33 196 201 289ndash

90 291 321

KATOcirc Takeshi 157

KENNEY John Peter 182

KEPLEC Peter 301

KIERKEGAARD Soslashren 282

KIVY Peter 321

KNOX T M 293

KYNDRUP Morten 300ndash301 301

LABAtildeO (pers biacuteblica) 189

LACAN Jacques 268

LAPOUJADE David 282

LEIBNIZ Gottfried Wilhelm 281

LEMOS F A Andrade 133

LEONDAR Barbara 316

LEVINSON Jerrold 302

LIA (pers biacuteblica) 189ndash90

LICEcircNCIO 138 139 140 240

LIDDELL H G 331

LIGHT Andrew 301

LIPPARD Lucy 249

LOUTH Andrew 213

LUCAS (SAtildeO) 59

LUKAacuteCS Georg 293

LYNEBORG Malte 301

MAALOUF Amin 158

MADEC Goulven 54

MANDOKI Katya 302

373

MANDOUZE Andreacute 121

MANFERDINI Tina 213

MANI 98 159

MARCEL Gabriel 282

MARIA (pers biacuteblica) 189

MAacuteRIO VITORINO 78

MARKUS R A 218

MARROU H-I 239

MARTA (pers biacuteblica) 189

MARTINS Maria Manuela Brito 93

151 268

MATTHEWS Gareth B 98

MCDONAGH Francis 213

MCGINN Bernard 188

MCKEOUGH John M 42 358

MCNEIL Brian 213

MELBERG Arne 301

MEURER Flaacutevio Paulo 271

MICHAUD Yves 276

MNEMOacuteSINA (perso mitoloacutegica) 85

MNESTHES 241

MODERATO 127

MONTCHEUIL Yves 54 365

MONTEIL P 49 365

MOREAU M 83 94

MUacuteCIO 241

NANCY Jean-Luc 276

NASCIMENTO Carlos Arthur do 98

NEBRIacuteDIO 227

NEPTUNO (pers mitoloacutegica) 229

NIETZSCHE Friedrich 280 282 294

NOURRISSON Feacutelix 209

OrsquoCONNELL Robert J 54 107ndash9

243

OrsquoCONNOR William P 54

OrsquoDALY Gerard 55 80 84

ONFRAY Michel 127

PANACCIO Claude 222

PARMEacuteDINES 282

PARRET Herman 85

PAULO (SAtildeO) 221

PEDERSEN Jacon Lund 301ndash2

PEDRO (SAtildeO) 189

PEREIRA J Dias 76

PERKINS David 316

PIMENTEL M C C M S 173 174

185 341

PITAacuteGORAS 109 126 127 240

PLATAtildeO 37 55 56 85 108ndash9 117

127 164 174 176 229 250 327

PLOTINO 37ndash39 45 48 57 60 77ndash

79 85ndash86 108 117ndash19 127ndash28

134 143 146 159 161 174 177

180 182ndash83 248 266 267 268

PORFIacuteRIO 37 55 118 133 159

QUERSIFRAtildeO 241

RAMACHANDRAN V S 305

RAQUEL (pers biacuteblica) 189ndash90

RATZINGER Joseph 210 213

REcircGO Marlesson C B do 282

REID Shelley 67

RICHES John 213

RICOEUR Paul 231

RITSCHL Friedrich Wilhelm 138 240

ROSA Joseacute Maria Silva 146 153 213

274 283

ROTHKO Mark 248

RUSSELL Bertrand 307

SAumlAumlTELA S 300

SAISSET Eacutemile 177

SAITO Yuriko 302

SAacuteNCHEZ-MIGALLOacuteN Sergio 170

SANDYS John Edwin 240

SANTO Arnaldo Espiacuterito 173 174

185 341

SARTWELL Crispin 302

SCANLON T M 321

SCHELER Max 169ndash70

SCHELLING Friedrich 33 279 289

290 292 294

SCHILLER Friedrich 33 289 290ndash91

SCHIMMEL Annemarie 133

SCHOPENHAUER Arthur 294

SCHWARZ R 290 291

SCOTT Robert 331

SCRUTON Roger 248

SHAFER-LANDAU Russ 307

SHAFTESBURY Anthony Ashley-

Cooper 197 289

SHANZER Danuta 139

SHUSTERMAN Richard 298 302

SIBLEY Frank 302

SILVA Paula Oliveira e 120 146 153

156

374

SLAVEVA-GRIFFIN Svetla 127 133

SMITH Jonathan M 301

SOacuteCRATES 109 174

SOLIGNAC A 157

SOMERS H 219

SPANNEUT Michel 79

STEINER Georg 299

STOLNITZ Jerome 316

SVOBODA Karel 157

TEOacuteFILO (de Antioquia) 41

TESKE Roland J 54 360

TESTARD M 79

TITO LIacuteVIO 259

TOMAacuteS DE AQUINO (SAtildeO) 28 43

VARGAS Guillermo 298

VARRAtildeO 138ndash40 159 240 242

VICENTE VICTOR 52 54

VIRGIacuteLIO 26 178

VITRUacuteVIO 138 151 239 241 344

VUILLEMIN Jules 275ndash77 280

WEISMANN F J 187

WELSH Wolfgang 302

WILES Maurice F 155 351

WITTGENSTEIN Ludwig 282 319

XAVIER Maria Leonor 121 146

YARNOLD E J 155 351

ZENAtildeO ( de Ciacutetio) 98 99

ZUBIRI Xavier 170

375

IacuteNDICE TEMAacuteTICO

ALMA 186 188 191 197 201 211

240 259 304 __ caiacuteda 108 __

ressurrecta 98 acccedilatildeo da __ na

percepccedilatildeo sensiacutevel 63 67 afecccedilotildees

e paixotildees da __ 71-72 315 anima

animus 100 180 atenccedilatildeo da __ 70

80 beleza da __ 60 166 180 201

210 bondade da __ 52 divinamente

iluminada 113 exercitatio animi

239 fundus animae 288 grandeza

da __ 62 163-65 imagem de Deus

110 imaterialidade da __ 52 62 66

84 imortalidade da __ 53 56

intentio animi 87 94 182 olhar da

__ (acies animi) 89 90 origem da

__ 53-55 parte mais excelsa da __

84 108 preacute-existecircncia da __ 108

110 reformaccedilatildeo da __ 61 relaccedilatildeo __

corpo 57 62 214 spiritus 101

AMOR 168 169 186 190 191 197

198 199 202 322 __ divino 172

173 179 __ pulchritudinis 175 __

sapientiae 175 appetitus 203

caritas 60 124 144 145 146 165

171 173 175 203 259 como

elemento da imagem trinitaacuteria na

alma 88 cupiditas 171 172 198

Espiacuterito Santo 88 179 ordo amoris

170 197 264 321 relaccedilatildeo entre __ e

beleza 175 181 relaccedilatildeo entre __ e

conhecimento 175 178 relaccedilatildeo

entre __ e felicidade 177

ARTE 37 193 241 296 298 316 __

e beleza 248 294 __ e natureza

292 actores 237 arquitectura 241

ars 163 ars (techneacute) 235 241 243

253 Ars divina 235 243 244 246

ars ou ideia 244 artes (scientia)

235 artes liberais 116 132 138

235 238 239 242 235-43 254 286

artes plaacutesticas 247 artes populares

302 artiacutefice 251 belas-artes 247

302 continuidade entre a arte divina

e a arte humana 245 246 danccedila

249 254 257 259 desmaterializaccedilatildeo

da obra de __ 249 diluiccedilatildeo das

fronteiras 300 disciplinas liberais

169 distinccedilatildeo schellinguiana entre

filosofia e __ 292 escultura 163

229 247 248 250 251 252 256

falsidade da obra de __ 250 filosofia

da __ 261 263 264 273 287 geacutenio

290 imagem do Deus pictor 155

lutas de arena e jogos circenses 257

mimesis 250 muacutesica 129 163 193

194 237 240 247 256 260 286

315 na perspectiva de Schelling

292 na perspectiva hegeliana 293

pintura 163 247 248 250 251 252

254 256 313 poesia 286 poetas

237 signo 255 teatro 193 254

257-59 315 valor heuriacutestico da __ 38

BELEZA 118 126 154 187 193 204

210 213 243 244 246 248 250

283 321 327 328 __ artiacutestica 37

251 __ como articulaccedilatildeo entre o todo

376

e as partes 147 __ da alma 60 162

175 180 __ da criaccedilatildeo 185 __ da

totalidade antiteacutetica 156 __ de

Cristo 209 210 __ do corpo 162

166 __ do corpo ressurrecto 162 __

e liberdade 291 __ e verdade 214

__ inteligiacutevel 117 159 211 242 __

sensiacutevel 39 230 292 330 carmen

universitatis 123 130 267 332

como via para Deus ou conversio 40

60 concepccedilatildeo formalista da __ 38

39 159 concepccedilatildeo transcendental da

__ 38 congruentia numerosa 39

criteacuterio ou regra da __ 199 260

descentralizaccedilatildeo do belo no seio da

esteacutetica 302 dialeacutectica entre aptidatildeo

e __ 160 dimensatildeo salviacutefica da __

210 escala de __ 160 167 212

identificada com Deus 174

interioridade como sede da __ 180

kalologia 289 papel admonitoacuterio da

__ corpoacuterea 213 perspectiva estoacuteica

38 perspectivaccedilatildeo moral da __ 93

prazer pela __ 119 pulchritudinis

leges 328 pulchritudo 49 164

relaccedilatildeo entre __ e amor 174 relaccedilatildeo

entre __ e bondade 160 161 167

331 relaccedilatildeo entre __ e sabedoria

175 relaccedilatildeo entre amor e __ 175

species 49 teoria do belo 263 vera

pulchritudo 176

Cf Categorias Esteacuteticas Species

CATEGORIAS ESTEacuteTICAS 31 147

239 aequalitas 151 analogia 151

aptum 69 148 158 coaptatio

congruentia 39 149 162

consonantia 150 correlationalitas

151 decor decus 148 gradatio

152 harmonia 149 245 medida

140 modulatio 148 modus 141

ordem 148 parilitas 151 152

pondus 141 proportio 150 151

pulchrum 69 157 158 rhythmus

150 simetria 119 204 209 241

similitudo 151 unidade 244

CONHECIMENTO 98 105 109 115

124 187 189 223 311 329 __

atraveacutes da experiecircncia esteacutetica 310

__ de Deus pela via da interioridade

185 __ de si noscere se 95 97 219

__ e amor 169 __ sempiterno

(scientia sempiterna) 223 __

sensiacutevel 186 alegoria da caverna

117 autoconhecimento 329

cognitio 188 como conversatildeo do

olhar 123 181 como officium da

razatildeo 114 como sapientia 113 114

115 165 185 196 como scientia

113 114 123 165 185 como

scientia actionis 114 definiccedilatildeo de

Zenatildeo 99 dicotomia homem

interior homem exterior 88 112

114 116 173 181 206 304 309

328 faculdade cognitiva inferior

287 relaccedilatildeo entre __ e amor 175

178 senciecircncia 103

CORPO __ celestial edeacutenico 57 73

__ ressurrecto 58-60 75 163 214

266 afecccedilotildees do __ 64 65 70

beleza do __ 149 157 162 195

como falsa unidade 212 esteacutetica

somaacutetica 70 272 298 299 327

estrutura triaacutedica do __ 212 paixotildees

do __ 85 passibilidade do __ na

percepccedilatildeo sensiacutevel 64 67 per

corporalia ad incorporalia 235 322

relaccedilatildeo alma __ 57 62 214 traccedilos

de unidade nos corpos 147 treino do

__ 239

Cf Sentidos Corpoacutereos

CRIACcedilAtildeO __ ex nihilo 40-47 beleza

da __ 185 bondade das criaturas

146 Demiurgo 40 fiat lux 48

mateacuteria informe 40 41 42 os trecircs

momentos da __ 42 razotildees seminais

42 43-45

CRISTO 125 172 179 184 189 190

191 205 226 259 como beleza de

Deus 61 179 332 como esplendor

da luz eterna 183 como luz

inteligiacutevel 206 Corpo de __ (Igreja)

189 forma servi e forma Dei 61 332

graccedila divina 61 Mediador 52 61

181 183 186 209 Mestre interior

111 182 184 332 Redentor 179

377

186 188 214 243 332 Sabedoria

183 totus Christus 188 tribunal de

__ 205 Verbo 111 183 185 186

209 210 214 222 223

EMOCcedilAtildeO 304 316 a __ na

perspectiva agostiniana 315 acccedilotildees

fisioloacutegicas desencadeadas pela __

316 distinccedilatildeo entre __ e sentimento

317 sentimento emocional 305 316

EXPERIEcircNCIA ESTEacuteTICA 297 304

305 309 313 317 __ do quotidiano

299 301 componente emocional da

__ 314 318 esteacutetica somaacutetica 298

299 no contexto artiacutestico 298 no

contexto da natureza 298 para laacute da

arte 295 pluralizaccedilatildeo da __ 295

299 302

FEacute 123-24 179 181 183 184 214

FELICIDADE 172 177 183 187 198

208 214 244 267 beata vita 124

como posse amorosa do bem 181

eudemonismo 268 relaccedilatildeo entre

amor e __ 171 177

FILOSOFIA 124 176 182 299 310

__ da arte 292 294 295 297 299

302 303 __ e filocalia 175 203

322 distinccedilatildeo entre __ e sabedoria

177 distinccedilatildeo schellinguiana entre __

e arte 292 reserva por parte da __

face agrave pluralizaccedilatildeo esteacutetica 297

FORMA 84 126 181 197 235 320

328 __ Dei 61 332 __ inteligiacutevel

arquetiacutepica 40 108 111 __e beleza

48 __e ser 48 __infabricata 40

__servi 61 aplicaccedilatildeo normativa da

__ 111 135 180 como

configuraccedilatildeo 40 deformaccedilatildeo 60

orientaccedilatildeo formal (Formtrieb) 291

Cf Ideias Razotildees

GRACcedilA 111 124 186

IDEIAS 110 112 115 250

Cf Forma Razotildees

IMAGEM __ de Deus no homem 60

88 95 110 112 181 183 217 218

220 243 332 __ mental 85 97

104 __ pertencente ao homem

exterior 104 alegoria 226 230

antropomorfismo 229 aparecircncias

99 como por um espelho e em

enigma 165 218 220-22 224

conhecimento imageacutetico 318

distinccedilatildeo entre __ e signo 225 230

distinccedilatildeo entre __ igualdade e

semelhanccedila 215 falsas imagens

227 Filho como __ do Pai 215 217

220 imagens corpoacutereas 106

imaginaccedilatildeo 104 phantasia 84 225

226 227 phantasma 225

positivaccedilatildeo de imagens negativas

atraveacutes da memoacuteria 92 questatildeo da

idolatria 227 realidades sensiacuteveis

como __ do inteligiacutevel 117 118

126 relaccedilatildeo de semelhanccedila na __

229 representaccedilotildees (figmenta) 251

simulacrum 228

Cf Semelhanccedila

INTERIORIDADE 174 182 183 184

201 212 327 como modo de

relaccedilatildeo 181 como sede do belo

180 extimidade 268 via da __ 111

180 183 185 188

JUIacuteZO 116 119 187 241 249 __

cognitivo 199 200 201 312 __ da

sensaccedilatildeo de prazer 187 __ das

percepccedilotildees sensiacuteveis 100 105 111

113 115 __ esteacutetico 180 193 194

196 199 201 211 212 289 290

327 __ moral 193 199 201 312

contacto com o inteligiacutevel no acto

judicativo 111 criteacuterio judicativo

105 111 204 205 207 erro de

judicaccedilatildeo 195 198 199 250

pulchritudines leges 180 questatildeo do

gosto 293 regras do belo 134

LUZ 110 173 __ da inteligecircncia 102

__ da verdade 115 __ divina 111

113 164 __ espiritual 101 __

fiacutesica 102 __ inteligiacutevel 112 124

378

206 __ interior 182 __ natildeo

corporal 102 Cristo como esplendor

da __ eterna 183 fiat lux 111

Iluminaccedilatildeo divina 101 108 110

111 208 214 lumen numerorum

134 visatildeo corporal visatildeo espiritual e

visatildeo intelectual 103 106 113

MAL 45 46 153-54 159 no dualismo

maniqueiacutesta 47 relaccedilatildeo com o livre

arbiacutetrio 187 relaccedilatildeo com o nihil 45

MANIQUEIacuteSMO concepccedilatildeo da alma

no __ 51 concepccedilatildeo do mal__ 47

criacuteticas ao Cristianismo 42

MEMOacuteRIA 85 88 89 104 163 173

178 207 227 230 246 256 309 __

involuntaacuteria 305 cogitaccedilatildeo 90

como arquivo de imagens mentais

87 como base da identidade 93

como dispositivo de positivaccedilatildeo de

imagens negativas 92 como venter

animi 93 conteuacutedos da __ 225

falsas memoacuterias 91 110 imagem de

Deus na __ 332 notiones 93 papel da

__ na espiritualizaccedilatildeo das percepccedilotildees

84 papel da __ na percepccedilatildeo sensiacutevel

82 94 papel da __ no conhecimento

111 presentificaccedilatildeo interior 83 94 95

privaccedilatildeo de __ 94 recordaccedilatildeo 92 108

recordaccedilatildeo e imaginaccedilatildeo 91 relaccedilatildeo da

__ com o sentido interior 87

Cf Alma

MENS 109 111 112 218 __ ratio e

intellegentia 101 associaccedilatildeo da __

ao homem interior 101 como parte

mais excelsa da alma 101 os trecircs

aspectos da __ 84 presenccedila

especular de Deus na __ 181 230

Cf Razatildeo

NEOPLATONISMO a memoacuteria na

concepccedilatildeo plotiniana 85 arte 37

beleza e purificaccedilatildeo da alma 60 117

conceito de substacircncia imaterial 52

concepccedilatildeo plotiniana de numerus

127 conversatildeo do olhar 117 criacutetica

agostiniana agrave teoria da reminiscecircncia

109 criacutetica agostiniana ao __ 120

dissenccedilotildees entre o __ pagatildeo e o __

agostiniano 174 183 dissenccedilotildees

entre o ___ pagatildeo e o __ agostiniano

146 emanaccedilatildeo 40 escala de beleza

119 esteacutetica 37 influecircncia do __ no

pensamento agostiniano 145 161

relaccedilatildeo entre beleza e bondade 332

teoria da reminiscecircncia 107 108

teoria neoplatoacutenica da sensaccedilatildeo 77

via esteacutetica do conhecimento 119

NUMERUS 112 115 126 147 148

149 150 158 160 162 166 174

181 187 196 197 201 207 212

227 230 236 237 238 240 242

245 246 248 251 253 257 260

261 264 267 268 306 320 321

322 328 330 332 __ e sabedoria

133 137 143 196 201 __ eterno

250 __ sine numero 143 146 como

brilho da luz divina 133 como

iacutendice de relaccedilatildeo 135 147 como

sinoacutenimo de beleza ou species 136

137 141 concepccedilatildeo plotiniana de

__ 127 congruentia numerosa 39

162 implicaccedilotildees do __ no processo

perceptivo 112 lex numerorum 135

numeri corporales 129 numeri

iudiciales 132 numeri occursores

129 numeri progressores 131

numeri recordabiles 132 numeri

sensuales 132 numeri sonantes

129 nuacutemero monaacutedico 128 129

nuacutemero substancial 128 numerorum

leges 187 197 prazer pela percepccedilatildeo

do __ 68 105 180 197

reconhecimento do __ pela razatildeo 69

summus __ 143 146 267 268

triacuteade medida nuacutemero e peso 140

141 146

Cf Beleza

ORDEM 118 127 140 141 143 148

152 154 158 159 160 178 202

320 __ concertada do universo

(carmen universitatis) 123 130 267

332 hierarquia das actividades e

estadios da alma 163 hierarquia de

seres 162 ordo amoris 7 170 197

379

203 258 264 321 330 ordo rerum

115 sistematicidade e __ 280

Cf Categorias esteacuteticas Beleza

PERCEPCcedilAtildeO SENSIacuteVEL 87 84-87

103 106 108 111 163 172 250

acccedilatildeo da alma na __ 64 71 172

194 aisthesis 289 audiccedilatildeo 67 68

82 83 dor 63 70 impressatildeo 85

papel da memoacuteria na __ 82 papel do

juiacutezo interior na __ 80 prazer 63

70 194 195 propriocepccedilatildeo 69 298

sensaccedilatildeo 62 65 70 73 92 194

201 204 309 sensaccedilotildees primaacuterias

187 195 198 270 sensaccedilotildees

secundaacuterias 187 195 270 sensus

communis 78 sentidos corpoacutereos 61

62 64 vestiacutegios da Trindade na __

89 visatildeo 65-66 68 69 74 75 83

Cf Corpo Sentido Interior Sentidos

Corpoacutereos

PRAZER 197 198 199 212 214 258

268 296 321 328 __ e desinteresse

197 266 290 295 297 __ e dever

291 __ esteacutetico 160 193 196 197

204 295 298 __ resultante da

consciecircncia dos estados corporais

198 __-ganho 299 na perspectiva

kantiana 289

QUALIA 267 268 305

RAZAtildeO 174 175 187 196 197 237

242 248 260 287 290 analogon

rationis 288 celeuma do primado da

__ sobre a feacute 120-24 como juiacutez do

sentido interior 81 dualidade __

sensibilidade 291 dualismo ratio

inferior ratio superior 112 113

114 116 123 126 137 198 330

educaccedilatildeo da __ e conversatildeo do olhar

119 intellectus e intellegentia 101

mens 84 olho interior 116 117

oposiccedilatildeo entre sensibilidade e __

309 papel da __ sobre os conteuacutedos

da feacute 122 percepccedilatildeo dos numeri pela

__ 147 vera ratio 114 115 120

Cf Conhecimento Mens Sapiecircncia

Sabedoria

RAZOtildeES 113 115 causas exemplares

108 imutabilidade das __ 112

Cf Forma Ideias

SABEDORIA SAPIEcircNCIA 97 102

104 177 187 212 222 244 245

Cf Conhecimento Razatildeo

SEMELHANCcedilA 226 230 252 __ de

Deus no homem 61 183 __ e

falsidade 251 __ e igualdade 218

__ e imagem 218 229

dissemelhanccedila 218 regio

dissimilitudinis 307 similitudinem

documenta 106

Cf Imagem

SENTIDO INTERIOR 86 114 309

como consciecircncia sub-racional 80

81 como luz da alma 102 distinccedilatildeo

entre __ e sentidos reflexivos 77

funccedilatildeo do __ na percepccedilatildeo sensiacutevel

80 85 paralelismo entre __ e

sentimento primordial 272 relaccedilatildeo

entre __ e memoacuteria 82 87 sensus

communis 78

Cf Percepccedilatildeo Sensiacutevel

SENTIDOS CORPOacuteREOS 69 114

126 212 227 __ no corpo celestial

edeacutenico 74 __ no corpo ressurrecto

73-76 265 __ superiores (visatildeo e

audiccedilatildeo) 68 69 como escravos da

alma 70 como mensageiros da alma

68 defesa agostiniana dos __ 69 70

99 judicium sensus 69 limitaccedilotildees

dos __ 156 mau uso dos __ 252

natildeo reflexividade dos __ 81

necessidade de sujeiccedilatildeo dos __ agrave

razatildeo 70 papel regulador durante a

infacircncia 70 vestiacutegios da razatildeo nos

__ 68 visatildeo 89

Cf Corpo Percepccedilatildeo Sensiacutevel

SIGNO 224 237 254 como marca da

presenccedila de Deus 230 distinccedilatildeo

entre __ e imagem 225 230 signa

naturalia 230 signa propria 224

signa translata 224

380

SISTEMATICIDADE 294 302 __ e

ordem 280 o dispositivo como

alternativa ao sistema 282

parcialidade dos sistemas 278 281

pluralidade filosoacutefica 275-78 razotildees

da assistematicidade no pensamento

agostiniano 273

SPECIES 137 181 306 __e ser 48

articulaccedilatildeo com pulcher 49 como

aparecircncia no processo de recordaccedilatildeo

90 como especificaccedilatildeo de forma 49-50

Cf Forma Beleza

TRINDADE 145 199 244 diferenccedila

entre a __ da alma e a __ divina 219

220 Espiacuterito Santo 88 89 143 144

146 179 184 190 217 estrutura

triaacutedica esteacutetica das criaturas 146

Filho 88 143 145 205 209 215

217 218 memoria intellegentia e

voluntas 219 mens notitia e amor

219 Pai 88 143 145 217 223

Santiacutessima __ 84 88 143 177 184

vestiacutegios da __ na cogitaccedilatildeo 89 91

vestiacutegios da __ na percepccedilatildeo

sensiacutevel 89

UTI-FRUI 158 167 172-73 191 320

328 330 dicotomia acccedilatildeo

contemplaccedilatildeo 188-91

VIRTUDES 120 164 188 197 322

como conteuacutedos da alma 105 feacute

cristatilde 60

VONTADE 186 187 __ e liberdade

187 como attentio ou intentio 186

227

381

IacuteNDICE DE OBRAS DE SANTO AGOSTINHO

Confessionum 19 41 48 79 93 115

130 133 144 153 157 173 185

208 242 257 264 339

Conf I 1 1 186

Conf I 6 10 95

Conf II 4 9 93

Conf III 2 2 257 258

Conf III 2 3 258

Conf III 4 7 138

Conf III 5 9 224

Conf III 6 10 160 209

Conf III 6 11 268

Conf III 10 18 160

Conf IV 13 20 158

Conf IV 15 24 159

Conf IV 15 27 159

Conf IV 16 28 78

Conf IV 16 30 242

Conf V 3 6 98

Conf V 10 18 51

Conf V 10 20 49

Conf V 11 21 49

Conf VI 5 8 224

Conf VI 8 13 259

Conf VII 1 2 49

Conf VII 10 16 46 61 218 307

Conf VII 12 18 46 153

Conf VII 16 22 46

Conf VII 17 23 79 111

Conf VII 20 26 120

Conf VII 21 27 120

Conf VII 9 13 120

Conf X 6 10 49

Conf X 6 8 173

Conf X 6 9 185

Conf X 12 19 93

Conf X 14 21 93 94

Conf X 14 22 93

Conf X 16 24 94

Conf X 16 25 93 94

Conf X 19 12 207

Conf X 20 29 208

Conf X 27 38 174

Conf X 33 49 130

Conf X 34 53 71 260

Conf X 35 55 71 258

Conf X 43 70 49

Conf XI 4 6 44 162 213

Conf XI 4 7 119

Conf XI 9 11 46

Conf XI 10 12 42

Conf XII 6 6 42 45

Conf XII 7 7 47

Conf XII 8 8 42

Conf XII 15 19 49

Conf XII 20 29 49

Conf XII 21 30 49

Conf XIII 9 10 144 178

Conf XIII 11 12 115

Conf XIII 12 13 60

Conf XIII 13 14 60

Conf XIII 31 46 48 190

Conf XIII 32 47 49

Contra Academicos 19 68 78 98 175

339

Contra Acad I 1 1 51

Contra Acad I 2 5 84

Contra Acad I 4 11 99

Contra Acad II 3 7 175

Contra Acad II 5 11 99

Contra Acad III 9 21 99

Contra Acad III 9 26 99

Contra Acad III 11 26 68 99

382

Contra Acad III 17 37 100

Contra epistulam Manichaei quam

vocant fundamenti 19 339

Contra ep fund 36 41 206

Contra Faustum 19 339

Contra Faust XXI 6 140

Contra Faust XXII 52 189

Contra Faust XXII 53 190

Contra Julianum 19 339

Contra Jul IV 14 72 176

Contra Julianum opus imperfectum 19

339

Contra Jul op imp II 68 53

Contra Jul op imp VI 11 187

De anima et ejus origine 19 53 54

339

De an et orig I 4 52

De an et orig I 21 57

De an et orig I 26 54

De beata vita 339

De beata vita 1 1 53

De beata vita 2 10 124

De beata vita 2 8 46

De beata vita 4 34 205

De beata vita 5 5 53

De bono conjugali 19 339

De bono con 16 18 195

De civitate Dei 19 39 41 59 72 129

133 149 166 177 188 243 253

339

De civ Dei I 8 177

De civ Dei I 20 200

De civ Dei II 6 260

De civ Dei II 21 149

De civ Dei IV 21 243

De civ Dei VI 2 138

De civ Dei VIII 4 177

De civ Dei VIII 5 69

De civ Dei VIII 6 180

De civ Dei VIII 7 69 78

De civ Dei IX 4 73

De civ Dei IX 5 73

De civ Dei X 14 61

De civ Dei X 17 61

De civ Dei X 6 61 188

De civ Dei XI 2 84 101

De civ Dei XI 16 69 162

De civ Dei XI 18 156

De civ Dei XI 19 224

De civ Dei XI 23 156

De civ Dei XI 25 168 177

De civ Dei XI 26 99

De civ Dei XI 27 69 80

De civ Dei XI 29 169

De civ Dei XII 3 104

De civ Dei XII 18 143

De civ Dei XIII 21 74

De civ Dei XIII 23 57

De civ Dei XIV 7 72

De civ Dei XIV 10 72

De civ Dei XIV 11 74 266

De civ Dei XIV 17 74

De civ Dei XV 10 150

De civ Dei XV 22 166 170

De civ Dei XVI 9 73

De civ Dei XVII 3 224

De civ Dei XVII 5 224

De civ Dei XVII 14 257

De civ Dei XIX 3 243

De civ Dei XIX 13 188

De civ Dei XX 17 224

De civ Dei XX 21 224

De civ Dei XX 29 265

De civ Dei XX 30 40

De civ Dei XXII 12 59

De civ Dei XXII 14 59

De civ Dei XXII 15 59

De civ Dei XXII 16 58

De civ Dei XXII 17 76

De civ Dei XXII 19 39 58 59 60 149

162 163 195

De civ Dei XXII 19 41 39

De civ Dei XXII 20 58 59

De civ Dei XXII 24 39 137 149 253

De civ Dei XXII 27 55

De civ Dei XXII 28 55

De civ Dei XXII 29 59 75 76

De civ Dei XXII 30 149

De correptione et gratia 19 339

De corr grat 8 17 186

383

De diversis quaestionibus octoginta

tribus 19 215 218 339

De div quaest 83 7 101

De div quaest 83 12 212

De div quaest 83 19 53

De div quaest 83 46 2 107 108 207

De div quaest 83 51 4 217

De div quaest 83 74 216

De div quaest 83 78 245

De div quaest 83 81 2 121

De doctrina christiana 19 27 129 167

170 272 339

De doct christ I 4 4 168

De doct christ I 27 28 170

De doct christ II 11 224

De doct christ II 1 2 230

De doct christ II 2 3 230

De doct christ II 7 9 165

De doct christ II 7 11 165

De doct christ II 10 15 27 224

De doct christ II 12 17 121 224

De doct christ II 17 27 229

De doct christ II 25 38 254

De doct christ II 25 39 254 255

De doct christ II 26 40 255

De doct christ II 30 47 256

De doct christ III 6 10 229

De doct christ III 7 11 229

De doct christ III 9 13 229

De doct christ III 25 35 224

De doct christ IV 2 3 243

De doct christ IV 6 9 224

De doct christ IV 7 15 224

De fide et operibus 19 340

De fide et op 18 33 260

De Genesi ad litteram 19 41 129 340

De Gen ad litt I 19 38 98

De Gen ad litt I 19 40 98

De Gen ad litt III 24 37 149

De Gen ad littVII 20 26 198

De Gen ad litt IV 4 8 143

De Gen ad litt VI 12 22 162

De Gen ad litt VI 2 2 46

De Gen ad litt VII 28 43 52

De Gen ad litt VII 5 7 46

De Gen ad litt VIII 9 17 43

De Gen ad litt IX 14 25 103

De Gen ad litt X 21 37 149

De Gen ad litt XII 16 32 68

De Gen ad litt XII 16 33 83 87

De Gen ad litt XII 19 41 198

De Gen ad litt XII 24 51 103 104

De Gen ad litt XII 25 52 100 104

De Gen ad litt XII 29 27 103

De Gen ad litt XII 31 59 105

De Gen ad litt XII 36 69 105

De Genesi ad litteram imperfectus liber

19 155 340

De Gen ad litt imp I 3 45

De Gen ad litt imp V 20 102

De Gen ad litt imp V 24 102

De Gen ad litt imp V 25 102 155

De Gen ad litt imp XVI 61 217

De Genesi contra Manichaeos 19 41

129 340

De Gen cont Man I 2 3 42

De Gen cont Man I 2 4 46

De Gen cont Man I 3 5 42

De Gen cont Man I 5 9 42

De Gen cont Man I 6 10 43

De Gen cont Man I 7 11 42

De Gen cont Man I 16 26 142 143

De Gen cont Man I 20 31 70

De Gen cont Man I 21 32 141

De Gen cont Man I 25 43 165

De Gen cont Man II 26 40 71

De Gen cont Man II 29 43 160

De gratia et libero arbitrio 19 340

De grat et lib arb 19 40 145

De immortalitate animae 19 48 56

340

De imm an 1 1 56

De imm an 1 2 56

De imm an 2 2 149

De imm an 4 5 56

De imm an 7 12 56

De imm an 8 13 49 56 60

De imm an 9 16 56

De imm an 12 19 57

De imm an 13 20 56

De imm an 13 21 56

De imm an 15 24 56

384

De imm an 16 25 56

De imm an 17 26 52

De libero arbitrio 19 53 54 68 77 79

80 111 129 133 136 18De lib arb

I 1 137 208 248 251 272 274

340

De lib arb I 12 24 55

De lib arb I 12 25 186

De lib arb I 13 27 208

De lib arb II 2 5 73 121

De lib arb II 2 6 121

De lib arb II 3 8 69 78 81

De lib arb II 3 9 81

De lib arb II 4 5 73

De lib arb II 5 12 69

De lib arb II 5 12 69

De lib arb II 6 13 81 84

De lib arb II 6 14 73

De lib arb II 8 20 130

De lib arb II 8 21 137

De lib arb II 8 22 147 150

De lib arb II 8 23 73

De lib arb II 8 24 130 137 150

De lib arb II 9 26 208

De lib arb II 10 29 207

De lib arb II 11 30 73 133

De lib arb II 11 32 73 134

De lib arb II 14 37 112

De lib arb II 14 38 68 112

De lib arb II 15 39 204

De lib arb II 15 40 208

De lib arb II 16 41 134

De lib arb II 16 42 248 250

De lib arb II 16 43 251

De lib arb II 16 44 135

De lib arb II 17 45 212

De lib arb III 3 7 188

De lib arb III 5 12 80

De lib arb III 5 13 114

De lib arb III 5 17 114 115

De lib arb III 20 55 53

De lib arb III 20 56 53 55

De lib arb III 20 57 54

De lib arb III 20 58 54

De lib arb III 21 59 55

De Magistro 19 27 205 272 274 340

De Mag 3 5 225

De Mag 3 6 225

De Mag 10 29 225

De Mag 10 30 225

De Mag 11 38 205

De Mag 14 46 205

De musica 19 63 64 66 67 69 80 82

111 129 130 132 136 138 140

148 150 180 194 225 235 236

260 340

De mus I 2 2 129 148 257

De mus I 2 3 148 249 260

De mus I 3 4 148 194

De mus I 3 4 257

De mus I 4 5 260

De mus I 4 6 240

De mus I 4 9 66

De mus I 6 11 260

De mus I 6 12 260

De mus I 11 18 151

De mus I 11 19 150

De mus II 4 4 150

De mus II 5 7 150

De mus II 6 10 150

De mus II 7 14 150

De mus II 9 16 150

De mus II 10 18 150

De mus II 11 21 150

De mus II 13 24 150

De mus III 1 2 150

De mus III 2 4 150

De mus V 17 56 61

De mus VI 4 6 64

De mus VI 4 7 64 129

De mus VI 5 10 63 66 80

De mus VI 5 13 58

De mus VI 5 15 64

De mus VI 5 8 62

De mus VI 5 9 63 64 70

De mus VI 7 18 69

De mus VI 8 21 82 83 84

De mus VI 8 22 91

De mus VI 9 23 69 82 112

De mus VI 9 24 129 257

De mus VI 10 27 69

De mus VI 11 29 130 156 196

De mus VI 11 30 196

De mus VI 11 32 225 226

De mus VI 13 38 196

De mus VI 13 39 71

De mus VI 14 46 131

385

De mus VI 17 56 137 143 147 154

De mus VI 17 57 151

De mus VI 17 58 161 181

De natura boni 19 140 154 155 340

De nat boni 3 140

De nat boni 14 160

De nat boni 16 154 155

De nat boni 22 143

De nat boni 25 46

De ordine 19 41 129 137 138 156

236 240 242 340

De ord I 1 2 156

De ord I 2 5 138

De ord II 5 16 145 177

De ord II 11 30 84

De ord II 11 31 62

De ord II 11 32 68

De ord II 11 33 68

De ord II 12 35 138 236 240

De ord II 12 36 236

De ord II 13 38 236

De ord II 14 39 68 237

De ord II 14 40 238

De ord II 14 41 238

De ord II 15 42 68 137 196 238

De ord II 15 43 239

De ord II 16 44 239 242

De ord II 19 49 241

De ord II 20 54 240

De quantitate animae 19 64 65 67

163 165 256 340

De quant an 14 23 57

De quant an 22 38 198

De quant an 23 42 65

De quant an 23 43 66

De quant an 25 47 62

De quant an 25 48 72

De quant an 29 57 70

De quant an 30 59 64

De quant an 30 60 66

De quant an 32 69 62

De quant an 33 70 163

De quant an 33 71 82

De quant an 33 72 256

De quant an 34 77 52

De quant an 36 81 163

De Trinitate 19 68 85 86 87 104

106 109 110 112 113 124 129

141 143 184 219 244 269 340

De Trin I 1 3 124

De Trin I 2 4 124

De Trin I 6 12 145

De Trin I 6 9 145

De Trin II 5 9 61

De Trin III 4 9 43

De Trin III 9 16 141

De Trin IV 2 4 149 150 214

De Trin IV 15 20 183

De Trin IV 16 21 98

De Trin IV 18 24 61

De Trin IV 20 27 184

De Trin V 2 3 78

De Trin V 7 8 78

De Trin V 15 16 144

De Trin VI 5 7 146

De Trin VI 10 11 61 143 245

De Trin VI 10 12 143 211 244

De Trin VII 4 7 62

De Trin VII 6 11 145

De Trin VII 6 12 217

De Trin VIII 3 4 207 208

De Trin VIII 4 5 69

De Trin VIII 4 6 178

De Trin VIII 4 7 226

De Trin VIII 6 9 225

De Trin IX 219

De Trin IX 4 5 269

De Trin IX 5 8 88

De Trin IX 6 10 105 106 211

De Trin IX 6 11 69 106

De Trin IX 12 18 88

De Trin X 1 1 178

De Trin X 5 7 87 98

De Trin X 8 11 97 186

De Trin XI 1 1 107

De Trin XI 2 3 85 86

De Trin XI 2 4 66

De Trin XI 2 5 85 87 88 89

De Trin XI 3 6 89 90

De Trin XI 3 7 89

De Trin XI 5 8 90 93

De Trin XI 5 9 89

De Trin XI 6 10 90

De Trin XI 7 12 94

De Trin XI 8 12 91

De Trin XI 8 15 84

386

De Trin XI 9 16 92

De Trin XI 10 17 91 226

De Trin XII 1 1 104 114

De Trin XII 2 2 69 104 112 180

De Trin XII 3 3 113 114 115

De Trin XII 8 13 114

De Trin XII 12 17 114

De Trin XII 15 24 101 102 109 110

De Trin XII 15 25 109

De Trin XIII 1 3 123

De Trin XIII 4 7 124 178

De Trin XIII 5 8 125

De Trin XIII 5 24 91

De Trin XIII 6 9 125

De Trin XIII 19 24 125 185

De Trin XIV 4 6 60

De Trin XIV 8 11 123

De Trin XIV 11 14 178

De Trin XIV 14 18 178

De Trin XIV 15 21 100 178 184

De Trin XIV 16 22 60

De Trin XIV 17 23 181

De Trin XV 2 2 121

De Trin XV 6 10 219

De Trin XV 7 11 62 84

De Trin XV 8 14 218 220

De Trin XV 9 15 221

De Trin XV 9 16 218 221

De Trin XV 10 18 221

De Trin XV 10 19 222

De Trin XV 10 20 218

De Trin XV 11 20 221

De Trin XV 14 23 222 223

De Trin XV 15 25 223

De Trin XV 16 26 224

De Trin XV 17 29 217

De Trin XV 21 41 144

De Trin XV 22 42 219

De Trin XV 23 43 219

De Trin XV 24 44 218

De vera religione 20 48 119 129 152

240 274 340

De vera relig 11 21 40

De vera relig 17 34 45

De vera relig 18 36 40 45

De vera relig 30 54 240

De vera relig 30 55 152

De vera relig 30 56 205 207 208

De vera relig 31 58 205

De vera relig 32 57 111

De vera relig 32 58 111

De vera relig 32 59 119 196 197

De vera relig 32 60 119

De vera relig 33 61 71 252

De vera relig 33 62 68 71

De vera relig 34 64 212

De vera relig 36 67 70 71 252

De vera relig 40 75 154

De vera relig 40 76 155

De vera relig 41 77 152

De vera relig 49 94 204

De vera relig 49 95 200

De vera relig 34 62 252

De vera relig 54 106 69

Enarrationes in Psalmos 20 340

En Psa XLIV 3 210

En Psa XXXI 9 101

En PsaIII 3 101

En PsaVIII 6 121

Epistulae 20 340

Ep 3 4 149 213

Ep 26 139

Ep 26 2 140

Ep 40 4 7 60

Ep 55 11 21 252

Ep 101 2 242

Ep 120 1 3 121

Ep 120 2 8 122

Ep 137 2 6 66

Ep 137 2 8 66 67

Ep 166 52 54 55

Ep 166 2 4 63

Ep 166 3 7 55

Ep 166 4 8 55

Ep 166 9 27 110

Ep 7 1 1 90 225

Ep 7 2 4 226

Ep 7 3 6 91

Ep 7 5 13 58

In Iohannis epistulam ad Parthos

tractatus 20 340

In Iohan ep Parthos IV 9 152

In Iohannis evangelium tractatus 20

340

In Iohan Evang tract I 13 46

387

In Iohan Evang tract XXIX 6 120

In Iohan Evang tract XXXII 3 162

Quaestionum in Heptateuchum 20 340

Quaest Hept IV 16 218

Quaest Hept V 4 217

Retractationum 20 109 175 203 235

340

Retr I 1 2 80

Retr I 1 3 176 203

Retr I 1 4 109

Retr I 3 2 242

Retr I 4 4 109

Retr I 6 235

Retr I 26 217

Retr II 15 2 226

Soliloquiorum 20 108 109 206 242

340

Sol I 1 3 105

Sol I 2 7 175

Sol I 4 12 84

Sol I 6 12 80 106 124

Sol I 8 15 206

Sol I 12 21 67

Sol I 13 23 106 117 211

Sol I 14 25 211

Sol I 14 26 211

Sol II 5 7 250

Sol II 6 10 251

Sol II 6 11 251

Sol II 8 15 251

Sol II 10 18 250

Sol II 15 29 252

Sol II 18 32 242

Sol II 20 35 109

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