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Patrícia Ferreira Mota Freitas Do Escritor como Predador: Mistério e (Re)visões na Obra de Ana Teresa Pereira Dissertação de Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes Especialização em Estudos Comparatistas Sob orientação de Profa. Doutora Maria de Lurdes Morgado Sampaio Faculdade de Letras da Universidade do Porto Porto 2011

Do Escritor como Predador: Mistério e (Re)visões na Obra ... · Agradecimentos Para o João, por tudo o que é nosso Para a minha família, que é responsável pelo que de melhor

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Patrcia Ferreira Mota Freitas

Do Escritor como Predador:

Mistrio e (Re)vises na Obra de Ana Teresa

Pereira

Dissertao de Mestrado em Estudos Literrios, Culturais e Interartes

Especializao em Estudos Comparatistas

Sob orientao de

Profa. Doutora Maria de Lurdes Morgado Sampaio

Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Porto 2011

Agradecimentos

Para o Joo, por tudo o que nosso

Para a minha famlia, que responsvel pelo que de melhor h em mim

Para a Vivi, que apesar de ser a irm mais nova, o meu modelo

Esta dissertao no teria sido possvel sem a orientao da Doutora Maria de Lurdes

Sampaio. Quero por isso agradecer-lhe as suas preciosas sugestes e comentrios, os

esclarecimentos e correces, mas tambm a permanente disponibilidade, ajuda e apoio,

ao longo de todo este o trabalho, que , alis, em grande medida, o resultado das nossas

estimulantes conversas acerca de Ana Teresa Pereira e do policial.

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No ser un hombre, ser la proyeccin del sueo de

otro hombre, que humiliacin incomparable, qu vertigo.

Jorge Lus Borges

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0. Introduo

Da dificuldade de classificao da obra de Ana Teresa Pereira do conta

recenses, ensaios acadmicos e at blogues, desde a publicao do seu primeiro livro,

Matar a Imagem, em 1989. No mais recente trabalho de mbito universitrio acerca da

autora, por exemplo, Alm-sombras: Ana Teresa Pereira, que de resto a primeira tese de

doutoramento a centrar-se exclusivamente no seu universo, Duarte Pinheiro alude a este

aspecto em termos bastante claros, referindo-se-lhe como uma das mais latentes

questes (...) dos textos pereirianos, a do gnero. (Pinheiro, 2010: 7)

Mas se parece evidente que as fices da autora no encaixam de forma definitiva

em nenhuma categoria especfica, ainda assim possvel identificar alguns discursos com

os quais estas se relacionam de forma sistemtica, como o caso do policial. Este, ainda

que de forte substracto literrio, h muito transversal s artes, sendo portanto bastante

difundido e gozando de grande fortuna na cultura popular ou de massas. Assim, a forma

como a obra de Ana Teresa Pereira interage com o policial uma questo que se coloca a

todos os leitores dos seus livros, parecendo-nos interessante debat-la de forma mais

demorada do que tem sido feito em reflexes anteriores, que apesar de referirem

inevitavelmente este ponto, se centraram noutros aspectos. Alm disso, esta questo est

relacionada com uma das marcas mais estruturais da obra da autora e que se prende com

o facto de esta se construir num jogo permanente de referncias, remisses e actos

predatrios de apropriao, que visam tambm (mas no s) o policial.

certo que os seus livros comearam por ser editados numa coleco com esse

paratexto, para depois surgirem com o rtulo muito mais genrico de fico

portuguesa. Mas mais do que averiguar em que medida esta mudana de catalogao

corresponde de facto a alteraes significativas na sua obra, interessa sobretudo

esclarecer em que medida o facto de o policial ter constitudo um ponto de partida pode

ter contribudo para a emergncia de determinadas caractersticas na produo da autora.

Dada a dimenso da obra de Ana Teresa Pereira (36 livros at data),

impossvel num trabalho deste mbito abord-la na sua totalidade, pelo que se tornou

necessrio seleccionar um corpus mais restrito. Inicialmente, equacionmos a hiptese de

optar pelos seus primeiros romances, que, enquanto textos inaugurais, pressagiam muitos

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dos aspectos explorados e desenvolvidos em fases posteriores, o que alargaria de certa

forma o alcance das nossas reflexes relativamente a um super-texto j de si bastante

coerente e uno.1 No entanto, por um lado, da anlise de obras to prximas (no tempo e a

nvel de estratgias ficcionais) resultaria necessariamente alguma redundncia; por outro,

se o policial, como acreditamos, de facto favoreceu o aparecimento de algumas das

caractersticas da fico pereiriana, importa tambm considerar as ltimas obras, em que

esses aspectos, em princpio, sero j mais consistentes.

Centrar-nos-emos assim no seu primeiro livro, Matar a Imagem (com tudo o que

este prognostica relativamente aos seguintes), e em dois mais recentes: O Vero Selvagem

dos Teus Olhos e A Outra.

Mas antes de nos concentrarmos nos textos, e uma vez que comearemos por

perspectivar a sua obra em funo do paratexto de policial que lhe foi inicialmente

atribudo, ser pertinente reflectirmos acerca do prprio gnero.

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1 Rui Magalhes diz alis, acerca do primeiro livro de Ana Teresa Pereira, Matar a Imagem, que este supe j, na sua ntima existncia, a totalidade da obra posterior da autora. (Magalhes, 1999: 21)

1. A vertigem do policial

1.1. Marcos na histria e teorizao de um gnero

problemtico

Pensar qualquer obra luz do policial implica depararmo-nos com uma srie de

questes preliminares (relacionadas com a gnese deste, a propriedade do termo

policial, a delimitao de um corpus especfico e exclusivo, etc.), que apesar de

amplamente discutidas por vrios crticos literrios estrangeiros (sobretudo ao longo da

segunda metade do sculo XX), continuam hoje to problemticas como antes. No

essencial, estes aspectos so sintetizados e analisados por Maria de Lurdes Sampaio na

Primeira Parte da sua Histrica Crtica do Gnero Policial em Portugal (1870 1970):

Transfuses e Transferncias (2007), da qual nos socorreremos amide, mas ser ainda

assim conveniente determo-nos um pouco em alguns dos pontos mais importantes.

I. O primeiro prende-se com o prprio estatuto do policial dentro da literatura:

constituir ele um modo, um gnero, uma espcie ou categoria? Este , no entanto, um

caminho se no exaurido pelo menos resvaladio, como afirma Maria Joo Simes (a

propsito de um parente prximo, o fantstico), que ultrapassa em muito os objectivos e

ambies deste trabalho, sendo por isso necessrio contornar o problema sem resolv-lo,

o que faremos desde j e em termos prticos, assumindo-o como gnero, na linha de

muitos estudos anglo-saxnicos e em sintonia com a obra de Maria de Lurdes Sampaio j

referida. (Simes, 2007: 65)

Ainda assim, e recuperando a metfora de Maria Joo Simes, continuamos em

terreno movedio, porquanto se os textos so objectos concretos, (...) os gneros so

construes abstractas, ferramentas culturais (...), produtos scio-simblicos, que

interagem, muitas vezes de forma aleatria e incongruente, com a prpria literatura.

(Bozzetto, 2007: 7-8; traduo nossa) Resultam no apenas da fortuna da crtica, mas

tambm de hbitos, das opes dos livreiros, de prticas textuais por parte de autores,

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dos acasos da edio e do horizonte de expectativas que define as modalidades de

recepo. (idem, 9; traduo nossa) Assim, a dificuldade

no reside no facto de o rtulo literatura policial se circunscrever a um corpus de narrativas muito restrito - que tenha um polcia como investigador - mas, pelo contrrio,

de ele designar, empiricamente, um vasto e informe territrio de narrativas. (Sampaio, 2007: 52)

II. No , por isso, de estranhar, que seja to difcil chegar a uma definio de

policial. Por um lado, independentemente da perspectiva que adoptemos para a sua

gnese, parece certo que as razes do policial so em grande medida hbridas, e que este

foi ganhando forma a partir de uma literatura anterior e/ou sua contempornea em que o

mistrio era j um elemento essencial (memrias de polcias, romances de aventuras,

literatura gtica, folhetins ingleses e franceses) e de que nem sempre fcil destrina-lo;

por outro, as etiquetas e afixos que lhe foram sendo acoplados ao longo do tempo so

sintomticos de uma diversidade constante: police procedural (sobretudo nos EUA dos

anos 50, com Ed MacBain e Joseph Wambaugh); policial psicolgico (PD James, Peter

Lovesey e Ruth Rendell no Reino Unido e Patricia Highsmith do outro lado do

Atlntico); policial forense (Patricia Cornwell); thrillers legais (John Grishman);

policial histrico (Lindsey Davis, Steven Taylor e Ellis Peters); metaphysical detective

fiction (Paul Auster); policial futurista (Carbono Alterado de Richard Morgan e

tambm o filme Blade Runner de Ridley Scott).2

Mesmo no momento em que o policial parece ter sido ontologicamente mais forte,

durante os anos 20 e 40, do sculo passado, duas variantes concorriam com igual

popularidade: o romance de linha dedutiva, tal como foi desenvolvido no Reino Unido

por Carter Dickson (americano expatriado), Agatha Christie, Anthony Berkeley, Dorothy

Sayers e, nos E.U.A., por Ellery Queen, Stanley Gardner e S. S. Van Dine, ente outros; e

o romance hard-boiled ou noir, do outro lado do Atlntico, explorado por autores

famosos como Raymond Chandler, Dashiel Hammett e Mickey Spillane.

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2 Apesar de no contarem com designao especfica, existem tambm as histrias policiais centradas em profilers (como as da autora escocesa Val McDermid, por exemplo) e as que giram em torno de figuras que

em tudo se assemelham a monstros modernos, como a saga de Hannibal Lecter, de Thomas Harris.

Da que o melhor caminho talvez seja mesmo perspectivar o policial em funo da

sua diversidade, como sugere Maria de Lurdes Sampaio, recuperando a proposta de T.

Todorov no clssico estudo Typologie du Roman Policier, onde, em vez de avanar

com uma definio do gnero, o terico propunha uma abordagem a partir de tipos ou

subespcies: o policial clssico ou romance de enigma, o romance negro e o

romance de suspense.

No primeiro, tipicamente, a incompetente polcia local assistia enquanto o

protagonista, na sequncia da investigao, reunia todos os envolvidos num ambiente

acolhedor (cosy), para ir progressivamente eliminando suspeitos, at revelar o autor do

crime (geralmente, uma morte ocorrida em ambiente domstico e assptico, como a

biblioteca, a estufa ou a piscina de uma casa de campo e em espaos fechados ou

isolados: uma ilha, um barco, um comboio ou uma pequena aldeia). Este perodo

considerado a Golden Age do policial britnico, cujas caractersticas definiram o que

ainda hoje entendido como policial clssico, centrado na estratgia epistemolgica e

literria da deteco e em explicaes lgicas e racionais. Todorov caracteriza esta

subespcie desenvolvendo uma ideia inicial de Michel Butor, em funo de uma

dualidade: por um lado, a histria do crime (ou fbula, para usar a terminologia que os

Formalistas Russos aplicaram ao romance em geral), a que o leitor no tem acesso directo

e que anterior ao incio do livro, estando assim ausente; por outro, a da investigao (ou

intriga), que procura reconstituir a primeira e que coincide com a histria da prpria obra,

tendo um desenvolvimento lento e geomtrico, em que as pistas e indcios so

examinados um a um, numa lenta aprendizagem do detective (que goza de imunidade,

estando, em princpio, livre de qualquer risco) e, com ele, do leitor. Esta estratgia deu

origem a um mecanismo curioso, em que o narrador, para legitimar e caucionar o relato

da investigao, tipicamente um amigo do detective, como o caso dos aclitos de

Holmes e Poirot, Dr. Watson e Capito Hastings respectivamente, que reconhecem, de

forma explcita, estar a redigir um livro, onde relatam a histria da investigao, na

qualidade de testemunhas ou bigrafos. Segundo Todorov, neste tipo de policial, de

matriz lgico-dedutiva, o percurso do romance retrospectivo, caminhando, ao nvel do

discurso, do efeito para a causa, ou seja, do fim para o incio da narrativa, o que estimula

a curiosidade do leitor at surpresa final, reservada para as ltimas linhas do captulo.

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J no noir ou romance negro, que surgiu nas pulp e crime magazines (como a

Black Mask) norte-americanas, os escritores profissionais, cujo pagamento dependia do

facto de conseguirem agarrar os seus leitores, introduziram sexo, gangsters, femmes

fatales, private eyes violentos mas ntegros, num meio urbano hostil, poca considerado

como sendo mais realista do que o seu contemporneo ingls. Raymond Chandler

apelida, alis, os policiais dedutivos de artificiais, acrescentando que os norte-

americanos retiraram o crime do vaso veneziano, em que os outros o continham.

(Chandler, 1983)

Para Todorov, a diferena fundamental entre o noir e a genteel tradition inglesa

reside no facto de aquele suprimir a primeira histria (crime), dando vida segunda

(investigao), ao fazer coincidir a narrao com a aco. Assim, o hard-boiled evolui de

forma prospectiva, ou seja, da causa para o efeito, o que, segundo o terico blgaro,

potencia o suspense. Alm disso, o private eye no tem imunidade e arrisca com

frequncia a prpria vida, intervindo tambm no desenrolar dos acontecimentos. Os

factos assustadores so, no entanto, segundo Todorov, descritos sem nfase e com

cinismo. (Todorov, 1971: 63)

Finalmente, o romance de suspense seria uma espcie de sntese das

propriedades e caractersticas destas duas modalidades, servindo de transio entre

ambas. (Sampaio, 2007: 23) Conserva a dualidade passado / presente do romance de

enigma, mas d maior relevo segunda instncia e, semelhana do que acontece no

romance negro, o detective perde a imunidade. Todorov caracteriza ainda dois subtipos

do romance de suspense: a histria do detective vulnervel, na qual este deixa cair o

estatuto de observador para ser integrado no universo das outras personagens, e a

histria do detective-suspeito, que, acusado de um crime que no cometeu, se v

obrigado a procurar o verdadeiro culpado. Curiosamente, Todorov insere Hammett e

Chandler, commumente considerados autores de noirs, no primeiro subtipo, e um outro

autor norte-americano, William Irish (que uma das grandes referncias de Ana Teresa

Pereira), no segundo.

III. No mesmo artigo, Typlogie du Roman Policier, e apesar desta descrio

ainda hoje bastante produtiva, Todorov comeava por distinguir a literatura popular ou de

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massas, a que o policial pertenceria, da outra, a verdadeira, numa oposio axiolgica

sintomtica da condio de gnero menor, paraliterrio, de que o policial enfermou

durante muito tempo. A este facto no ser alheia a tentativa de legitimao que os

primeiros historiadores procuravam, ao descortinar antepassados remotos do gnero em

episdios bblicos, ou no Rei dipo, por exemplo.

Para Rgis Messac, o gnero policial ter evoludo de formas pouco elaboradas

para formas cada vez mais aperfeioadas, tendo atingido a sua expresso mxima nos

anos 20 do sculo XX, no romance de tipo dedutivo. (Sampaio, 2007: 12) J Jacques

Dubois, em sintonia com estudiosos que situam o seu aparecimento no sculo XIX, na

sequncia da industrializao e urbanizao do Ocidente, coloca a tnica nas relaes

entre o gnero e a modernizao da sociedade, como resultado dos progressos na

criminologia, imprensa, caminhos-de-ferro e o emergir do universo burgus com os seus

mistrios privados. (idem, 15) Martin A. Kayman, por sua vez, relaciona-o com a

secularizao das histrias de heris que defendiam as comunidades dos gigantes,

drages e maus espritos (cujo valor mtico o policial / histria de deteco

herda). (Kayman, 2001: 308)

IV. De uma forma ou de outra, mais uma vez, o que ressalta das mltiplas

perspectivas para a gnese e histria do policial a sua pluralidade, indiciada igualmente

pela oscilao de termos usados para design-lo no mundo anglo-saxnico, por exemplo,

onde este foi desde o incio particularmente popular e prolfero: os conceitos tradicionais

de mystery fiction ou detective fiction convivem com formas mais coloquiais

(whodunnit) ou gerais (crime fiction).

Em Portugal, o termo surgiu decalcado do francs roman policier, o que no

de estranhar, uma vez que se trata de um gnero claramente importado, que entrou no

pas atravs da traduo, feita nos anos 30 e 40, a partir de edies francesas. Esta

designao ter sido adoptada desde incios do sculo XX, com um sentido amplo e

difuso, no referindo, nem sequer em termos preferenciais, a narrativas com agentes da

polcia oficial como protagonistas ou como personagens secundrias. (Sampaio, 2007:

32-33)

Uma marca de diversidade to grande, to evidente e aos mais diversos nveis

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(definio, gnese, terminologia e corpus) pode fazer perigar a propriedade e

operacionalidade do conceito de gnero policial, que por vezes parece funcionar como

um espartilho onde no cabem as actualizaes diferenciadas da literatura ps-

kafkiana. (Simes, 2007: 71) No entanto, como Marjorie Perloff, acreditamos que apesar

do hibridismo caracterstico da era ps-moderna, continua a fazer sentido recorrer a

marcas genricas e prpria ideia de gnero, no estudo de casos concretos:

Indeed, however irrelevant generic taxonomies may seem in the face of the postmodern interdisciplinary of the arts (), however pointless it may seem to classify and label texts

that refuse to fit into the established categories, practically speaking, it is virtually impossible to read a given text without bringing to it a particular set of generic

expectations. [] It is the paradox of postmodern genres that the more radical the dissolution of the traditional generic boundaries, the more important the concept of

genericity becomes. (1984: 4)

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1.2. Alguns aspectos acerca do caso do policial em

Portugal e do policial portugus

Como argumenta Maria de Lurdes Sampaio no seu estudo Histria Crtica do

Gnero Policial em Portugal (1870-1970): Transfuses e Transferncias, o romance

policial foi, entre ns, um gnero importado e traduzido, a partir, sobretudo, de horizontes

anglo-saxnicos, depois da Segunda Guerra Mundial. Em 2001, num breve artigo sobre

este assunto, a investigadora afirmava j que at aos anos 80 do sculo XX impossvel

falar de um romance policial portugus. (Sampaio, 2001: 310) Quer no primeiro

trabalho referido, dedicado particularmente recepo crtica do gnero policial em

Portugal (questes de traduo, textos de reflexo terico-crtica e relao com o sistema

literrio), quer noutros estudos, Lurdes Sampaio refuta a tese dos que fazem remontar

uma histria do policial portugus a O Mistrio da Estrada de Sintra (1870) de Ea de

Queirs e Ramalho Ortigo, a suposta obra fundadora do gnero entre ns. Na sua

perspectiva, a resoluo do mistrio, que o prprio ttulo do livro destaca, resulta de

mtodos tradicionais do folhetim, como a confisso e os relatos melodramticos das

personagens, sendo ainda o polcia (...) uma figura ausente (nem personagem, nem

funo) da nossa fico oitocentista. (idem: 311). No estudo Histria Crtica do

Gnero Policial em Portugal, a autora afirma que, nos anos 30 e 40 do sculo XX, tero

sido publicadas em Portugal muitas obras com o ttulo de policial (ou com paratextos

que incluam esta designao), mas um simples olhar para alguns catlogos referentes a

essa poca e para listagem de coleces policiais desse perodo (como a da Romano

Torres e a da Clssica Editora) parece apontar para uma grande heterogeneidade e

hibridismo de gneros e subgneros: desde histrias de suspense e mistrio (na linha do

sculo XIX) a relato de aventuras e narrativas gticas, passando igualmente pelos

romances de espionagem e histrias passionais com ingredientes de violncia e mistrio.

J a dcada de 50 ter sido marcada por uma actividade intensiva de traduo de

narrativas anglo-saxnicas, em coleces de policiais clebres, como a Vampiro de Bolso,

a Xis e a Escaravelho de Ouro. Joel Lima, num artigo com o ttulo Sherlock Holmes em

Portugal, mas que no se circunscreve a Conan Doyle, refere-se a essa poca como

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sendo a Golden Age do gnero no nosso pas, dando importncia a alguns autores

nacionais que Lurdes Sampaio considera pouco significativos. o caso de Mrio

Domingues, Luso Soares, Francisco Branco, entre outros. Para esta estudiosa, a

popularidade do gnero policial (que se explica em funo de factores de ordem

literria e sociolgica) levou ao aparecimento das primeiras reflexes terico-crticas

acerca do gnero no nosso pas (da responsabilidade de Gaspar Simes, Verglio Ferreira

e scar Lopes, por exemplo), mas no ao desenvolvimento de uma literatura policial

portuguesa.3 Alis, esta reflexo parece ter sido estimulada pela atitude de receptividade

do gnero em Frana, por parte de intelectuais como Albert Camus e Andr Gide, e pela

divulgao de fragmentos das novelas policirias de Fernando Pessoa, que era tambm

um grande leitor do gnero. Se para a autora, os constrangimentos do prprio sistema

literrio portugus da altura (requisitos de interveno social e poltica dos escritores e

intelectuais) so, a par de proibies sobre narrativas criminais passadas em terras

lusitanas, fortes razes para esta ausncia de um romance policial portugus, j para

Francisco Jos Viegas, Modesto Navarro e Carlos Jorge Figueiredo Jorge, o regime

fascista e a censura sero factores decisivos na explicao deste fenmeno (ou da

ausncia dele). Na opinio destes autores, a escrita de histrias sobre crimes passados em

Portugal e com personagens e situaes relativas sociedade portuguesa, s poderia

desenvolver-se em situao de democracia. Carlos Jorge Figueiredo Jorge, por exemplo,

defende, em O policial Portugus. Geografia de uma Problemtica, que o policial tem

uma imensa sede de representao mimtica, de aproximao mxima do mundo

possvel da ficcionalidade do mundo historicamente reconhecvel como verosmil, perto

do emprico observado (Jorge, 1988: 118).4 Assim, seria impossvel ao escritor

portugus escapar s implicaes ideolgicas do tratamento do crime em Portugal, em

condies no democrticas.

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3 Para uma melhor compreenso desta questo, ver em Histria Crtica do Gnero Policial em Portugal

(1870-1970): Transfuses e Transferncias, os captulos 3 (Terceira Parte) - Aspectos da Recepo Crtica do Gnero Policial em Portugal e 1 (Quarta Parte) - Da (In)viabilidade do Romance Policial Portugus.

4 Sobre este assunto, cf. ainda Francisco Jos Viegas H um Problema com a Literatura Policial (1998:

7-9) e Maria de Lurdes Sampaio As vantagens de ser literatura menor e estrangeira: O gnero policial em Portugal como gnero mal policiado. ( 2009: 103-119)

De acordo com as concluses de Lurdes Sampaio, que aqui nos servem de guia,

ser precisamente uma certa crise do romance nos anos 50 (do Neo-Realismo), associada

ausncia de outras alternativas ficcionais, que, j na dcada de 60, estimular autores

portugueses a escrever romances policiais (embora com pseudnimos de lngua inglesa).

o caso de Ross Pynn (pseudnimo de Roussado Pinto), Dick Haskins (pseudnimo de

Antnio Andrade de Albuquerque), Strong-Ross (Rajanto Valrio de Azevedo) e Dennis

McShade (pesudnimo de Dinis Machado), entre outros. Desta forma, confirmava-se

ainda o estatuto de estrangeiro do gnero no nosso pas. Os romances destes autores

desviam-se, porm, da matriz racionalista subjacente ao policial lgico-dedutivo (mais

lido ao longo da dcada de 50), subvertendo-o com frequncia. Os textos desta poca

manifestavam uma grande permeabilidade relativamente a influncias diversas, como os

romances e filmes de espionagem ou as histrias de gangsters, e incidiam cada vez mais

sobre o crime e a perspectiva do seu perpetuador, explorando a reversibilidade do

binmio detective / criminoso, que na verdade estava j presente no gnero, pelo menos

de forma latente, em potncia, desde Poe (Dupin vs. Ministro D-). No , por isso, de

estranhar que, como defende Maria de Lurdes Sampaio, o romance policial dos anos

60 (...) [tenha colocado] problemas de definio do gnero que se estenderam at ao

presente. (Sampaio, 2001: 315)

Durante esta poca, o modelo norte-americano do romance hardboiled (na linha

de Dashiell Hammet e Raymond Chandler) afirma-se finalmente entre ns, sob a forma

de pastiche, como em Ross Pynn, por vezes, para abordar fantasmas, tabus e

representaes do imaginrio portugus da poca. (idem, ibidem). Caminhos diferentes

seguiram Dick Haskins, que continuou a explorar sobretudo o whodunnit, e Dennis

McShade, que apesar de ter explorado tambm o romance negro, o subverteu, pela via da

pardia, muitas vezes com distanciamento humorstico.5 Desta fase, Lurdes Sampaio

destaca a obra de Jorge Reis, Matai-vos Uns aos Outros (1961), uma vez que, na sua

leitura, se trata do primeiro romance portugus a fazer uso de frmulas e topoi do

policial, para encenar questes da sociedade portuguesa, funcionando assim como matriz

para os policiais dos anos 1980, que apresentaro objectivos claros de crtica e denncia

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5 Ambos os autores mereceram uma anlise longa e aprofundada na j referida Histria Crtica do Gnero Policial em Portugal (1870 1970): Transfuses e Transferncias (2007).

social.

De facto, s nessa dcada ser finalmente desenvolvido um policial portugus,

aps o vazio da dcada de 70, que em grande parte se deve prpria Revoluo e ao

perodo politicamente conturbado que se lhe seguiu, engolindo e chamando a si as

manifestaes intelectuais e artsticas do pas. Esta ser uma fase de publicao intensa

de autores nacionais (na maior parte das vezes, sem pseudnimo), com o aparecimento de

vrias coleces do gnero, sendo mesmo criado, em 1982, o Prmio Editorial Caminho

para a Literatura Policial que sete anos depois, ser atribudo ao romance inaugural de

Ana Teresa Pereira, Matar a Imagem.6

De uma forma geral, quando no envereda pela via mais ldica da pardia e do

pastiche, o gnero ir ento tematizar questes de natureza social e poltica, relativas a

Portugal. So assim problematizados, com frequncia, os mistrios da sociedade

portuguesa do ante e ps-25 de Abril (do trfico de drogas a actos terroristas, dos

segredos comunistas guerra colonial). (Sampaio, 2001: 317) Os autores que mais se

ocuparo destas questes portuguesas so Modesto Navarro e Henrique Nicolau

(pseudnimo de Antnio Damio), embora possam tambm destacar-se outros romances,

que ganharam notoriedade ao longo da dcada, como o caso de Adeus Princesa. Crime

Imperfeito, de Clara Pinto Correia (1985) considerado por Vasco Pulido Valente o

melhor romance destes ltimos anos. (idem, ibidem) A advertncia inicial (o romance

policial que se vai seguir tem coentros) , alis, sintomtica da centralidade, na histria,

de um meio muito portugus - o Alentejo rural, com contrabando mistura. De facto o

tema central da histria ainda de grande actualidade: o desemprego, a frustrao dos

jovens sem futuro, o atraso econmico e um universo provinciano fechado, de

complicadas intrigas locais. para Ana Isabel Briones, esse romance versa sobre a

desconfiana na Histria e o Alentejo apresenta-se como o lugar mtico do desengano.

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6 Este assunto tratado de forma panormica no ensaio de Ana Isabel Briones Gnero e Contragnero.

Tpicos do romance policial na narrativa portuguesa dos anos oitenta em via de reflexo histrica. A autora afirma que evidente que o gnero policial dos anos 80 surge num momento especfico de

coincidncias importantes (necessidade dos cidados, e dos intelectuais em particular, de reflectir sobre o passado histrico recente para recuperar a memria histrica), que est tambm associado a outros

factores, como o profundo debate internacional sobre os mtodos da historiografia e a suspeita relao entre a realidade e sua narrao. (Briones, 1998: 269)

(Briones, 1998: 277)

Tambm de desengano falam algumas obras de Henrique Nicolau, que se iniciou

em 1985, com O Trabalho Sagrado, e continuou, em vrios romances, a fazer uma

denncia crtica de problemas da sociedade portuguesa, a seguir Revoluo dos Cravos.

Arca do Crime, o seu quarto romance, publicado em 1988, um ano antes de Ana Teresa

Pereira publicar o seu romance de estreia, Matar a Imagem. As diferenas entre as duas

obras, ambas editadas na coleco Policial da Caminho, so bastante evidentes. Ao

contrrio de Matar a Imagem, que, de imediato, surpreende o leitor pela quantidade de

termos e citaes em lnguas diversas (latim, espanhol, ingls, alemo), destacadas a

itlico, A Arca do Crime parece querer enraizar-se numa tradio literria portuguesa,

referindo Camilo Castelo Branco, logo nas pginas de abertura. O modelo da

investigao o do romance hardboiled americano, no s pela atitude de crtica, mas

tambm em funo do meio social explorado (com uma prostituta negra a adquirir relevo

na aco). Sobre este romance, escreve Carlos Jorge Figueiredo Jorge palavras que, com

ligeiras alteraes poderamos aplicar aos romances que seleccionmos, na realizao

deste trabalho:

Nas malhas que o artista vai desvendando, um universo bem portugus, de sequelas coloniais e hipocrisias dos poderes institudos, que se vai construindo como viso em que,

mais do que o crime de assassnio, emerge o genocdio de uma gerao por uma outra que apregoa a austeridade, o recato e a origem de matriz bem salazarista, fazendo porm

cinicamente todos os gestos e complots que eram as verdadeiras mquinas de corrupo e de destruio da juventude, que condenava em nome da tica da ordem. (Jorge, 1988: 118)

Apesar de uma produo literria mais reduzida, no campo do policial, , porm,

Antnio Modesto Navarro quem maior interesse tem suscitado a quem se ocupa do

gnero em Portugal, a seguir ao 25 de Abril. O autor publicou, com o pseudnimo de

Artur Cortez, o seu primeiro romance, A Morte no Tejo, em 1981, sendo esse romance

acompanhado desde logo por um Posfcio da autoria de Manuel Gusmo. Seguiu-se a

publicao (j sem pseudnimo) de livros que criam, de imediato, a ideia de srie, com

ttulos como A Morte dos Anjos (1983), A Morte do Artista (1984), Morte no Douro

(1986), a par de outros (como Pntano), que no se enquadram na categoria de policial.

Em 1985, as suas trs primeiras obras (uma trilogia) eram j objecto de um estudo

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analtico e exaustivo, intitulado Antnio Modesto Navarro and the Birth of the

Portuguese Private Eye, levado a cabo por Frances King, na Universidade de

Birmingham. Nesse trabalho (uma espcie de tese de licenciatura), a autora defende,

como o ttulo sugere, que Modesto Navarro um autor pioneiro na transposio e

adaptao do romance hardboiled realidade portuguesa (no perodo ps-revoluo e de

descolonizao). O prprio detective criado por Modesto Navarro, Diplo, encarado

como uma verso portuguesa do heri americano, que surge nos romances de Hammett,

Chandler e mesmo de Hemingway (tambm referido): solitrio, com conscincia social,

cdigos de honra, valores tico-morais e em luta contra a corrupo poltica apesar de

muitos momentos de dilema tico. Frances King chama a ateno para a importncia da

urbanidade nestes romances (ou de cenrios portugueses como em Morte no Douro) e

analisa em detalhe o estilo vivo, coloquial, por vezes, potico e de humor negro, da

escrita de Navarro. Quanto aos temas especficos a tratados, escreve Frances King: The

themes in the trilogy encompass contraband of alcoholic drinks, the smuggling of both

diamonds and drugs, and terrorism. (King, 1985: 25)

Mais de uma dcada depois, a importncia de Modesto Navarro no quadro da

literatura policial portuguesa dos anos 80 volta a ser reafirmada, tambm pela mo de um

estrangeiro, que dedica o seu Mmoire de Master 2. a um estudo sociolgico e

narratolgico de grande flego das obras do escritor. Pierre-Michel Pranville apresenta,

em 2009, na Universidade de Paris 3 Sorbonne Nouvelle, uma tese intitulada Sept

romans policiers portugais rvls au bain de l Histoire; enqutes policires et qute d

identit: La littrature Policire de Modesto Navarro (1982-2002).

Na mesma linha de Frances King, Pranville considera que Modesto Navarro se

filia na tradio do romance policial americano:

Clairement, la littrature policire de M. Navarro appartient au roman noir: un dtective tortur au comportement de loser, une socit hostile et dchire, des institutions

dfaillantes, parmi de nombreux autres traits caractristiques du sous-genre. De plus, lunivers mis en scne est le plus souvent urbain et l histoire sociale et politique est

omniprsente. Dans les romans policiers de M. Navarro, la rvolution du 25 de Avril et ses consquences sont beaucoup plus quun fond d cran de toutes les intrigues. (Pranville,

2009: 8)

17

Mas Pranville, revelando um conhecimento profundo da histria de Portugal, da

vida poltica portuguesa do perodo anterior e posterior revoluo de Abril, prova como

Modesto Navarro se apropria, de uma forma muito pessoal, de frmulas estrangeiras,

para produzir uma obra, que partilha tambm de traos do romance histrico (tambm

objecto de reescrita). Na caracterizao do detective Diplo, escreve Pranville, Navarro

recorre ainda ao modelo do detective privado, mas acentua a vertente quixotesca do

investigador. Pranville procede ainda a um enquadramento rigoroso da obra de Navarro

no contexto cultural e poltico do seu tempo e discute a questo da demanda de

identidade, individual e colectiva, tratada ficcionalmente pelo escritor, luz das teorias de

Eduardo Loureno e de Jos Gil, sobre problemas identitrios portugueses. Num passo

deste verdadeiro tratado sobre Navarro, escreve Pranville:

La grille interprtative de M. Navarro est rsolument critique et pessimiste. Elle ne retient des faits historiques que leurs consquences les plus ngatives. De la Rvolution et de

lintgration l Europe sont gomms des acquis tels que le retour des liberts civiques, de la libert dexpression, ou la restauration des infrastructures, la consommation de masse

M. Navarro a prrgl sa grille interprtative sur un mode que nous dnommerions contre-pouvoir. (Pranville, 2009: 29)

De facto, esse pessimismo e negatividade no tratamento de episdios da vida

portuguesa por vezes, quase em registo de documentrio realista que ressalta da

leitura dos romance que seleccionmos, o que tornar mais evidente a profunda

divergncia de Ana Teresa Pereira relativamente a outros autores dos anos 1990 (e

posteriores), classificados como policiais.

Mesmo um autor como Francisco Jos Viegas, que publica o seu primeiro

romance, Crime em Ponta Delgada (1989), no mesmo ano de Matar a Imagem, e que tem

explorado as convenes do gnero de forma por vezes potica e cinematogrfica,

apresenta grandes diferenas em relao ao universo ficcional de Ana Teresa Pereira.

Pranville refere-se a Viegas como o criador de um subgnero policial em Portugal, le

roman policier mlancolique, tendo em conta as digresses das personagens criadas por

este escritor, a importncia dos seus estados de alma e das suas memrias. (idem)

Podemos ver claramente estes traos, e uma atitude de nostalgia, em As Duas guas do

Mar (1992), ou talvez ainda mais no seu ltimo romance, Mar em Casablanca (2009). De

18

qualquer modo, apesar de o espao interior das personagens assumir mais destaque do

que comum no romance policial, os enredos que Francisco Jos Viegas encena

(enquanto contador de histrias, como insiste em definir-se) so todos de carcter realista.

Por ltimo, na fico deste, h claramente uma histria de investigao de crimes, atravs

de uma dupla j famosa de polcias (Jaime Ramos e Isaltino Morais), e as questes

polticas e socio-culturais esto tambm presentes em diversos graus. Crime em Ponta

Delgada fazia j aluso corrupo poltica e a conflitos entre partidos na ilha dos

Aores, e Longe de Manaus (2005) vai ainda mais longe, ao tratar da expanso dos

portugueses pelo mundo. O tema da guerra colonial, que surge em Mar em Casablanca

(2009), a prova de que o autor procura combinar o tratamento da vida interior das

personagens com questes da sociedade portuguesa contempornea. Em entrevista a

Francisco Jos Viegas, a propsito do seu ltimo romance, Isabel Coutinho refere o

processo acentuado de reconstruo da Histria nos dois ltimos romances, a passagem

de Jaime Ramos por frica e a experincia deste na guerra colonial, e escreve a propsito

do romance:

A novidade, em relao obra de Viegas, que se at aqui o escritor mostrava que os portugueses ali tinham sido felizes, agora fala-nos dos traumas (o 27 de Maio de 1977 em

Angola, momento dramtico e ainda por esclarecer), conta histrias de quem foi para frica fazer a revoluo (uma personagem, Isabel, podia ser Sitta Vales, militante do PCP

que ter sido assassinada em Luanda em 1977) e daqueles que mais tarde regressaram a Portugal, os retornados. (Coutinho, 2009: 29).

Quando atentamos no percurso de Ana Teresa Pereira, verificamos uma tendncia

oposta de Francisco Jos Viegas e de outros autores nacionais do mesmo perodo. O

seu projecto de escrita afirma-se, logo a partir do romance de estreia, como um caso

particular dentro do contexto do policial portugus, no s por convocar de forma

insistente um cnone estrangeiro, mas tambm por se demarcar radicalmente de temticas

sociais, como tentaremos mostrar de seguida.

19

1.3. Matar a Imagem

Crtica Social?

Ao contrrio do que acontece na obra dos escritores atrs referidos, o universo

ficcional de Ana Teresa Pereira encontra-se, desde o incio, desvinculado de coordenadas

espcio-temporais especficas e de contextos socio-polticos - como que suspenso no

tempo e no espao. Para percebermos at que ponto as posies de crtica social esto de

facto ausentes da sua produo, importante determo-nos um pouco no primeiro

romance da autora, Matar a Imagem (1989), e vermos como funcionam as escassas

referncias ao contexto portugus que a vo surgindo.

No incipit da narrativa, encontramos a protagonista, Rita, uma jovem que desistiu

do curso de filosofia para escrever (e que viu todos os seus textos serem rejeitados pelas

editoras), no momento em que esta conclui mais um romance - e atente-se no paralelismo

invertido entre a situao da personagem, que acabou de escrever um livro, e a do leitor e

da escritora, que do nesse momento incio a um. O efeito de mise-en-abyme, to

recorrente nos textos pereirianos, faz aqui a sua primeira apario, indiciando desde logo

a importncia que os livros adquirem nas suas obras. Numa ida ao caf habitual, Rita

reencontra David, um antigo colega da faculdade, e na sequncia dessa reunio fortuita,

os dois acabaro por casar, mudando-se, de seguida, para uma casa isolada junto ao mar,

numa ilha. Esta primeira parte da histria decorre em Lisboa, tal como nos dito logo na

segunda pgina, mas para alm dessa simples referncia toponmica, a cidade, na sua

dimenso social e humana, est completamente ausente da narrativa. O deambular

ocasional de Rita ou David pelas ruas da capital no d sequer azo a qualquer tipo de

descrio do espao urbano, que no surge de forma nem muito nem pouco detalhada;

como se no existisse. Lisboa aqui pouco mais do que um nome, cuja funo parece ser

ancorar a aco numa moldura realista - a de um espao urbano com existncia

geogrfica emprica. Rita vai ao caf, ao cinema, percorre a Calada do Duque at

Trindade (mais nomes esvaziados de qualquer objectivo representacional), v a montra de

um alfarrabista, entra numa livraria, etc. Mas todos estes espaos esto despidos da sua

20

dimenso socio-civilizacional; so totalmente individualizados, preenchidos pelos

sentimentos e divagaes interiores da personagem, funcionando como cenrios para as

suas projeces psquicas.7 Quando, uma noite, David caminha pelas ruas da cidade,

mesmo dito:

No estava em Lisboa. Estava algures numa cidade irreal, labirntica, de ruelas estreitas que se bifurcavam noutras ruelas estreitas, sujas e molhadas.

Ou talvez estivesse a passear dentro de si mesmo. Talvez aquelas ruas molhadas no existissem numa cidade possvel, mas dentro da sua mente. Era uma hiptese. (...) No. A

explicao no podia ser aquela. Procurou outra.Ele era a personagem principal de um filme, a cmara seguia-o num longo travelling pela

rua deserta e um caixote de lixo quase o fez tropear.8 (Pereira, 1989: 43)

O papel destes espaos na histria parece assim ser de pura contingncia,

limitando-se a servir uma referencialidade simples e imediata, sem qualquer propsito

social mais complexo do que a induo momentnea de verosimilhana. Alis, tanto o

despojado quarto onde Rita vive, como o luxuoso apartamento de David, espaos

fechados e privados, merecem mais destaque, na narrativa, do que os lugares pblicos e

comunitrios da cidade, que partida ofereceriam um potencial maior de anlise social.

A prpria epgrafe do romance est em sintonia com esta opo narratolgica, fazendo

referncia a algum (Hamlet) bound in a nutshell, como as nossas personagens,

confinadas (ainda que de moto prprio) aos seus espaos particulares, em sentido literal e

metafrico. Quando Rita e David deambulam pela cidade, esto, na verdade, perdidos nos

prprios pensamentos e fantasias, divagam a nvel mental, dentro de si mesmos (e a

epgrafe faz tambm referncia a dreams, alis, a bad dreams), o que confere ao

espao exterior uma forte dimenso de interioridade. Assim, o meio em que a aco

decorre, ao invs de funcionar como condio de abertura do texto, configura antes o seu

fechamento em torno das personagens principais e destas sobre si mesmas.

21

7 Alis, a palavra cenrio, que designa precisamente um espao fictcio, um produto mental ou psquico, surge em diversos momentos da narrativa (cf. por exemplo, p. 32, p. 43 e p. 44).

8 Note-se que esta sequncia abre um dos captulos do livro e que a terceira pessoa discursiva mantida na indefinio durante bastante tempo. S alguns pargrafos adiante, o leitor ficar a saber que a personagem

em causa David.

Alis, se aqui ainda encontramos uma breve aluso cidade de Lisboa, esta tnue

referencialidade torna-se ainda mais diluda nos livros seguintes, estando os topnimos (e

com eles, o meio socio-poltico) praticamente ausentes da produo da autora: em Num

Lugar Solitrio, feita ainda referncia regio do Paul do Mar (que surge tambm

desprovida de qualquer dimenso social), mas o local onde a aco dos seus livros de

facto decorre essa casa antiga com jardim, junto ao mar, para onde Rita e David vo

viver, e que regressar, em quase todos os seus textos, com pequenas variaes: s vezes,

junto de um lago, s vezes, junto de um poo, s vezes, com uma torre (que pode existir,

de facto, na realidade da histria contada ou apenas nos sonhos das personagens), s

vezes, com uma pequena capela, s vezes, com um estdio anexo, etc., mas sempre de

localizao imprecisa e com fortes ressonncias literrias e flmicas. Desde Matar a

Imagem, estes espaos, fortemente associados a um mundo natural, ecoam lugares de um

imaginrio literrio ou cinematogrfico, com destaque para a manso Manderley, do

romance Rebecca, de Daphne du Maurier, e do filme com o mesmo ttulo realizado por

Alfred Hitchcock, e Bly, de The Turn of The Screw, de Henry James. Relativamente a

espaos urbanos, encontraremos tambm repetidamente uma cidade pequena, junto a um

porto, de ruas estreitas e mal iluminadas, com livrarias, alfarrabistas, um jardim pblico

ou parque e cuja localizao tambm no definida. Numa fase mais recente, as

histrias de Ana Teresa Pereira transitam at para a cidade de Londres ou para a Irlanda,

distanciando-se ainda mais do contexto socio-poltico portugus e afastando-se assim a

autora, definitivamente, dos escritores de policiais portugueses seus contemporneos,

como Maria do Cu Carvalho ou Francisco Jos Viegas. Essa Londres de museus, pubs

junto ao rio, alfarrabistas, teatros (onde esto em cena peas de Ibsen) e concertos luz

da vela na igreja de St. Martin-in-the-Fields, que encontramos em Mar de Gelo e Quando

Atravessares o Rio, por exemplo, apesar das referncias a espaos pblicos, continua a

ser uma cidade sem dimenso social, tal como a Lisboa de Matar a Imagem,

experienciada de forma completamente pessoal e subjectiva pelas personagens. Alis,

nesse ponto da produo de Ana Teresa Pereira, a questo afigurar-se- ainda mais

complexa do que neste primeiro romance: enquanto a Lisboa evocada em Matar a

Imagem tem uma existncia fsica, extra-literria, ainda que, como vimos, ela surja no

texto esvaziada da sua denotao social, no caso de Londres, para alm do filtro

22

subjectivo das personagens, a cidade recriada nos seus livros no remete exactamente

para o local fsico, com existncia geo-poltica, mas antes para um cone cultural, uma

Londres literria e portanto, fictcia, que foi sendo construda paralelamente cidade real,

atravs de livros e quadros, sobretudo. Vejamos um exemplo, de entre muitos possveis:

Desde os catorze anos que escrevia histrias passadas no nevoeiro de uma Londres imaginria. Deixara a Amrica com a fantasia de ser um outro Henry James... de

encontrar-se a si mesmo na paisagem nevoenta da velha Inglaterra.Mas descobrira que era mais fcil escrever sobre Londres do outro lado do oceano...

- O nevoeiro dos quadros de Whistler - murmurou. - As ruas onde caminhava Sherlock

Holmes. (Pereira, 2003: 12)

Regressando a Matar a Imagem, para alm das breves referncias espaciais,

encontramos tambm, no romance, hbitos, rotinas e vrios cones da

contemporaneidade, desde automveis a electrodomsticos, ou detalhes de vesturio,

jias, champs e gel de banho. Em livros posteriores, haver mesmo lugar para a meno

explcita a marcas de roupa e perfumes bastante populares.9 No entanto, mais uma vez,

estas referncias so meramente contingentes, no do lugar a qualquer tipo de reflexo

em torno do modo de vida actual ou da situao do homem moderno, sendo as

coordenadas temporais, alis, pouco especficas, como afirma Roslia Fonseca:

No tempo uma definio dada pela personagem de Se Eu Morrer Antes de Acordar (p.

130) e que se encaixa perfeitamente em toda a obra de Ana Teresa Pereira. No encontramos datas ou referncias concretas, a no ser aquelas que se perdem com o dia e a

noite, [a mudana das estaes] ou a idade das personagens que, mesmo assim, so sempre um talvez. (Fonseca, 2003: 14)

As menes a prticas ou objectos contemporneos esto sobretudo associadas a

uma estratgia simples de introduo de verosimilhana num universo ficcional de

contornos assumidamente vagos e pouco ntidos, ontologicamente fraco. Estas

referncias a aspectos prosaicos do quotidiano propiciam uma maior aproximao do

leitor s personagens, criando um efeito de real e potenciando assim, simultaneamente, a

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9 Em Se Nos Encontrarmos de Novo, por exemplo, as marcas Lncome e DKNY surgem ambas na pgina 55 e a Camel logo na seguinte.

inquietao e mal-estar provocados pela ameaa permanente de desintegrao ou eroso,

que emerge da histria.

Na segunda parte do romance, a aco desloca-se de Lisboa (espao, apesar de

tudo, preciso e identificado) para uma cidade numa ilha no identificada, tornando-se

assim o universo ficcional ainda mais brumoso e fechado sobre si prprio. certo que

possvel identificar esta ilha como sendo a Madeira: o facto de a autora ter nascido e

viver no Funchal e de os seus livros explorarem, com frequncia, o jogo ps-moderno da

pseudo-autobiografia conferem legitimidade a essa ilao, mas tambm a breve aluso,

por parte de Rita, ao presidente do governo [regional, que] a fazia invariavelmente

pensar no Animal Farm de Orwell. (Pereira, 1989: 15) Qualquer leitor minimamente

familiarizado com a vida poltica portuguesa da ltima dcada identifica, sem

dificuldade, o presidente da fico com o Dr. Alberto Joo Jardim. Esta comparao

pode eventualmente ser apontada como um resqucio ligeiro de comentrio socio-poltico

(o nico, no livro e em toda a sua obra). No entanto, para alm da aluso em causa no ter

qualquer relevncia no texto, estando totalmente desprovida de valor operacional para a

economia narrativa, esta feita de forma mediada e o medium que o livro utiliza para

atravessar as fronteiras entre mundos e saltar, por breves instantes, para fora da literatura,

outro livro. Este pormenor importante porque se os textos de Ana Teresa Pereira

apresentam, de uma forma geral, uma vocao referencial reduzida, evitando efeitos de

realismo, a citao, remisso, comentrio e apropriao, no fundo, referncia, a outros

livros e autores , pelo contrrio, constante. Alis, como vimos antes, os prprios espaos

dos seus livros (Londres, a casa que lembra Manderley, Bly ou Gull Cottage do filme The

Ghost and Mrs. Muir), ao invs de remeterem para locais com existncia extra-literria,

convocam antes lugares de criao (ou dimenso, no caso de Londres) cultural. Estas

referncias no se limitam ao universo da literatura, sendo filmes, actores de carne e osso,

quadros e at canes, constantemente convocados pelos seus textos. Assim, em Matar a

Imagem (um romance de 170 pginas), encontramos, numa lista que no chega a ser

exaustiva, as seguintes referncias (e note-se que Herberto Helder o nico nome

portugus includo):

- Escritores, pintores, realizadores, actores e cantores: Woody Allen (p. 9),

Leonard Cohen (pp. 10 e 54), De Quincey (p. 13), Kant (13 e 59), Rothko (p. 14), Ellery

24

Queen (pp. 21 e 121), John Dickson Carr (p.21), Dashiel Hammett (p. 22), Jorge Lus

Borges (pp. 22, 31 e 59), Ruth Rendell (pp. 22 e 94), Kafka (pp. 22, 59 e 97), Freud (p.

22), James Dean (p. 33), Dustin Hoffman (p. 40), Berkeley e Lewis Carroll (p. 44),

Truman Capote (p. 44), Henry James (p. 52), Neitzsche, Heidegger e Leibniz (p. 59),

Baudelaire, Valry, Cline e Shakespeare (p. 59), Chesterton (p. 67), Paul Klee (p. 84),

Fellinni (p. 93), Polansky (p. 95) e Poe (p. 122);

- Obras (livros, quadros, sries, filmes, etc.): Crtica da Razo Pura (p. 12), O

Gosto Solitrio do Orvalho, de Matsuo Bash (p. 13), Do Assassnio como Uma das

Belas Artes (p. 13), The Turn of The Screw (p. 14), Animal Farm (p. 15), As Asas do

Desejo, de Wim Wenders (p. 19), Os Sete Ratinhos, de Carol Kendall (p. 21), He Who

Whispers, Follow as the Night e The Room with Something Wrong (p. 21), Os Crimes da

Rua Morgue de Poe e O Mistrio do Quarto Amarelo, de Gaston Leroux (pp. 21 e 157),

If I Should Die Before I Wake e I Married a Dead Man, de William Irish (p. 22), O

Desconhecido do Norte Expresso e The Blunderer, de Patricia Highsmith (p.22), a srie

de TV Quinta Dimenso (p. 34), a msica do filme Casablanca, o quadro Noite

Estrelada de Van Gogh (p. 35), Blue Velvet, de David Lynch (p. 38), Hamlet (p. 44), As

Mil e Uma Noites (p. 58), As Magias, de Herberto Helder (p. 84), O Homem de Areia,

de Hoffman e Das Unheimlich, de Freud (p. 94), Notorious, de Hitchcock (p. 96), A

Aventura no Vale, de Enid Blyton (p.155), O Silncio Habitado das Casas de Matisse

(p. 167);

- Personagens: Dupin (p.14), Bill Bones (p. 14), Hercule Poirot (p. 21), Charlie

Chan (p. 21), Dr. Gideon Fell e Sir Henry Merrivale (p.21), Corto Maltese (p. 58).

Neste autntico catlogo de referncias literrias, artsticas e filosficas merecem

especial destaque, pela abundncia, as menes explcitas ao policial. Nalgumas pginas

do segundo captulo, Ana Teresa Pereira procede a uma quase enumerao de ttulos

policiais (uns em portugus, outros em lngua inglesa), como se elaborasse uma espcie

de antologia pessoal, que inclui, naturalmente, os autores que integram a Wunderkamera

da autora, e que surgiro de forma recorrente ao longo da sua produo: Edgar Allan Poe,

John Dickson Carr e William Irish. Estas referncias (com discriminao dos nomes de

alguns detectives famosos e breves notas metatextuais) reforam um modo de ler

associado ao gnero, que j havia sido desencadeado pela presena do rtulo policial na

25

capa do livro, e que a leitura do romance vem confirmar. No entanto, apesar de existir, de

facto, em Matar a Imagem, uma dvida para com o policial, esta manifesta-se de formas

diversas, mas no exactamente nos moldes tradicionais, como iremos de seguida analisar.

26

Topoi e estratgias do gnero

Comeando pelo enredo, o mistrio uma presena constante, desde o incio da

histria: os motivos para o casamento de Rita e David so muito pouco claros e

romnticos, parecendo tratar-se sobretudo de uma fuga no confessada de si mesmos,

atravs da opo pelo caminho socialmente mais convencional: casar, eventualmente ter

filhos, etc. No caso de David, a questo afigura-se ainda mais obscura, quando a

propsito da noiva, este confessa: Afinal, ela ou outra... no far grande diferena. (...)

S terei de fingir-me um pouco apaixonado durante os primeiros tempos e depois tudo

ser normal, um casamento como os outros e haver midos talvez.... (Pereira, 1989: 36)

Mais adiante, afirma mesmo, ainda acerca da jovem: Nem imaginas o que te vai

acontecer. - uma declarao ominosa, que potencia o efeito de suspense. (idem, 45) A

prpria Rita sempre o achou demasiado racional, demasiado normal, como se lhe

faltasse loucura. (idem, 15) E na verdade, estas palavras ecoam ainda na memria do

leitor, quando, algumas pginas adiante, ficamos a saber que David se descontrola ao

beber lcool; depois, ao assistirmos perseguio que move, noite, a uma mulher

desconhecida (que entretanto parte num carro), escondendo-se nas sombras, sem que se

perceba exactamente quais as motivaes para esse estranho comportamento; e,

sobretudo, nas reflexes de David acerca de Tom, nome que emerge abruptamente do

nada. Tom parece ser, afinal, uma espcie de amigo imaginrio, parte de si mesmo sobre a

qual no tem controlo, jogo mental doentio e involuntrio e, inequivocamente, duplo

invisvel, com quem convive desde mido. Assim, para alm do mistrio, tambm a

sugesto de loucura e, com ela, o caos e a desordem, surgem desde muito cedo na

narrativa. Estes elementos estiveram sempre intimamente associados literatura policial,

funcionando como ponto de partida para a histria da investigao, ou seja, para a

emergncia de uma narrativa, em demanda de outra histria oculta - a do crime.

Como lembra Gill Plain, crime fiction in general, and detective fiction in

particular, is about confronting and taming the monstruous. (Plain, 2001: 3) Em The

Murders in the Rue Morgue de Poe, por exemplo, o orangotango simboliza (entre outras

coisas) a intruso do caos, do irracional ou de foras primitivas, no cenrio urbano

civilizado da cidade de Paris. E no policial clssico, a erupo do crime tambm

27

apresentada como uma perturbao dessa instncia supostamente harmoniosa e estvel,

que a sociedade moderna, na perspectiva oitocentista herdada pelo gnero. A este

propsito, poder-se- porm objectar que enquanto no romance lgico-dedutivo, com a

identificao do criminoso, a anomalia isolada e removida cirurgicamente (e a

comunidade exonerada de qualquer responsabilidade ou culpa), em Matar a Imagem no

h reposio final da ordem, at porque esta era j inicialmente muito dbil. Atentemos,

ainda assim, no seguinte: mesmo no policial da Golden Age, de matriz positivista, apesar

do restabelecimento da normalidade no desfecho, o criminoso tipicamente one of us,

isto , um membro da comunidade. Todos os envolvidos so suspeitos (excepto o

detective) e at o narrador pode ser culpado, como acontece em The Murder of Roger

Ackroyd de Agatha Christie. O captulo final, em que o detective rene todas as

personagens, desvendando progressivamente o mbil de cada uma delas, para de seguida

as ilibar, at chegar ao criminoso, mostra isso mesmo. Alis, noutro romance clebre da

autora britnica, Murder on the Orient Express, todos os doze suspeitos (cidados

vulgares, normais) contribuem para a morte da vtima, todos so culpados. No de

admirar, portanto, que no seguimento da falncia da matriz positivista, que presidiu ao

aparecimento do gnero, o criminoso, que era desde o incio um elemento da tribo,

deixasse de poder ser erradicado e o mal, confinado. Afinal, como afirma Plain,

ironically it is the rapture of crime, rather than its safe resolution that provides the

genres common denominator. (idem: 4) E o crime, expresso mxima do caos (a nvel

legal, social, mas tambm, no caso do homicdio, a nvel existencial ou filosfico), surge,

em Matar a Imagem, sob duas formas: a violao de uma jovem da aldeia, Carolina, e o

assassinato de Rita.

Mas para alm da tnica permanente no mistrio e destas ocorrncias de crime,

encontramos tambm, no primeiro romance de Ana Teresa Pereira, outro topos

caracterstico do gnero: o locked room (e no so por acaso as referncias explcitas a

John Dickson Carr, autor de eleio de Ana Teresa Pereira, como se disse, e um dos

escritores que melhor explorou esta estratgia narrativa). A existncia de um quarto

fechado na casa isolada, para onde Rita e David vo viver na segunda parte do romance,

antecipada, aquando da chegada destes, pelo facto de, visto de fora, o edifcio ter todas as

luzes acesas, excepto a da ltima janela (que corresponder evidentemente ao quarto

28

fechado), no andar de cima. Este facto deixa de sobreaviso o leitor (sobretudo o leitor de

policiais, como Rita), que imediatamente o interpreta como um indcio (seguindo a lgica

de anlise de pistas caracterstica do gnero) de uma eventual perturbao maior. Logo de

seguida, surge no texto uma tentativa de justificao desse acontecimento algo estranho,

pela via da racionalidade (a lmpada pode ter fundido ou Edite, a empregada, esqueceu-

se de a acender), que igualmente uma estratgica tpica do policial em geral. Mais tarde,

Rita tentar, alis, fazer tambm valer explicaes racionais, formulando hipteses, boa

maneira positivista e cientfica, caracterstica do policial dedutivo, tanto para o facto de

esse quarto estar trancado, como para outros elementos inquietantes, que vo irrompendo

de forma cada vez mais insistente na histria:

A chave perdera-se e ningum entrava naquele quarto simplesmente porque no havia nada a fazer l dentro. (Pereira, 1989: 74); E se tivesse mesmo havido um assassnio l dentro?

Mas no... Era absurdo de mais. (idem, 79); Pensara David que o pai matara a me? (...) Rita ficou pensativa. Nada acontecera naquele quarto. Se algo acontecera fora na cabea do

menino de sete anos. (idem, 130); Estou a sonhar, pensou, estas coisas no acontecem. (idem, 75); absurdo. Estou-me a deixar levar pela imaginao. (idem, 79)

Curiosamente, a racionalidade aparece associada no texto figura feminina,

enquanto a fantasia, imaginao (delirante) e loucura esto do lado da personagem

masculina, registando-se assim uma aparente inverso da tradicional relao de foras

entre sexos, que , no entanto, ilusria, uma vez que, no final, David mata Rita. Se isso de

alguma forma parece configurar uma vitria do masculino sobre o feminino, representa

sobretudo uma afirmao do poder da imaginao sobre a racionalidade, que muito

importante, na medida em que nos livros de Ana Teresa Pereira, encontramos uma

supremacia do psicolgico relativamente ao emprico e material. Como afirma Todorov a

propsito das novelas de Henry James, uma das mais importantes referncias e obsesses

literrias da autora, nos seus livros e para as suas personagens, il ny a pas de ralit

autre que psychique. (Todorov, 1971: 191) O prprio facto do nico espao referencial

de Matar a Imagem, a cidade de Lisboa, estar sujeito s projeces subjectivas de Rita e

David j uma evidncia disso mesmo. Se neste romance ainda temos efectivamente

crime, a partir daqui estaremos tendencialmente limitados percepo, por parte de uma

personagem, do homicdio ou desaparecimento (j consolidados) de outra (geralmente,

29

Tom). E no sabemos o que acontece de facto, porque a histria s tem realidade na

mente da personagem. (Pereira, 2005b: 18)

Mas para alm da existncia na histria de um locked room, este topos tambm

objecto de tematizao enquanto artifcio literrio tpico do policial, na passagem em que

David diz a Rita lhe deu um quarto fechado, porque sabe que ela gosta de mistrios e

assim poder imaginar histrias durante algum tempo. O mesmo acontece, alis, com

outros elementos do gnero, que para alm de surgirem disseminados pela intriga, como

temos vindo a analisar, so reunidos em sequncias auto-reflexivas deste tipo, laia de

ensaio, num verdadeiro catlogo da morfologia do romance lgico-dedutivo: E ela

tambm escrevera histrias estranhas de crimes em quartos fechados, de estranguladores

que assobiavam ao afastar-se das vtimas, de detectives que jogavam xadrez e descobriam

assassinos sem sair de casa. (idem, 21) O facto de a autora respigar e comentar histrias,

personagens e modos de ler que o leitor j conhece, remetendo para eles, tem

evidentemente consequncias a nvel da economia narrativa, contribuindo para uma certa

brevidade das fices pereirianas, sempre muito fludas e com poucos momentos de

catlise; mas d tambm conta de uma certa perda de inocncia literria, caracterstica do

Ps-Modernismo, tal como condensada numa muito citada formulao de Umberto

Eco:

Penso na posio ps-moderna como em algum que ame uma mulher muito culta e que saiba que no lhe pode dizer amo-te desesperadamente porque sabe que ela sabe que estas

palavras j foram escritas por Liala. H porm uma soluo. Poder dizer: Como diria Liala, amo-te desesperadamente. Nesse momento, tendo evitado a falsa inocncia, e tendo

dito claramente que j no se podia falar de uma maneira inocente, ele ter, no entanto, dito mulher o que lhe queria dizer: que a ama, mas que a ama numa poca de inocncia

perdida. Se a mulher entrar no jogo, ter recebido igualmente uma declarao de amor. Nenhum dos dois interlocutores se sentir inocente, ambos tero aceite o desafio do

passado, do que j foi dito e no se pode eliminar e ambos jogaro conscientemente e com prazer o jogo da ironia. Mas ambos acabaro tambm por falar de amor. (Eco, 1991: 55-56)

Assim, este acaba por ser tambm um romance acerca da dificuldade genrica de

ser original, numa altura em que todos os enredos j foram contados de todas as formas

possveis, mas tambm acerca da impossibilidade mais especfica de escrever policiais

como os da Golden Age, agora que o leitor est inevitavelmente familiarizado com as

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estratgias, convenes e topoi do gnero. Este jogo cmplice, que tem por base um

universo cultural comum, levado ainda um pouco mais longe, na sequncia da conversa

entre Rita e David acerca do quarto fechado, acima referida, quando esta confessa que j

matou algumas pessoas nos seus livros, ou seja, com palavras. (Pereira, 1989: 64) Essa

alis uma das interpretaes possveis para o ttulo, Matar a Imagem, que pode

precisamente apontar para o facto de a morte neste romance, tal como em todos os outros,

no ser um facto real, mas um produto mental, algo que ocorre apenas ao nvel das

imagens que a leitura produz na mente do leitor. De qualquer forma, h aqui um assumir

da dimenso ficcional e, portanto, fatalmente fictcia, das mortes dos livros, que contribui

para uma condio ostensivamente livresca do texto, que resulta tambm do facto do

discurso se alimentar e, simultaneamente, reflectir acerca de clichs literrios e

cinematogrficos, como os degraus que rangem e imagens do tipo Tirou-lhe a camisola,

com gestos lentos ou Limitava-se a ver, como uma menina encantada com as luzes do

circo - bem como da citao constante e explcita de outros livros e autores. (idem, 25)

Curiosamente, essa dimenso de livro estava j muito presente no policial clssico

ingls, ainda que em moldes bastante diferentes, como prova Delphine Kresge, no ensaio

Fiction Policire et Palimpsestes Polics.

Nesse caso, como foi dito antes, o narrador, que era tradicionalmente um amigo

do detective, como Hastings e Watson, assumia explicitamente estar a escrever um relato

da investigao que ele prprio vivenciara, caucionando assim a (pseudo)factualidade da

histria pela via de expedientes realistas. Em Matar a Imagem, pelo contrrio, o narrador,

para alm de no estar presente na diegese, tambm uma instncia muito pouco

palpvel a nvel do discurso, e o emergir desse carcter ficcional da narrativa est

relacionado com um efeito de artificialidade, que problematiza os mecanismos

tradicionais da representao. De qualquer forma, encontramos aqui, em simultneo, um

ponto de aproximao relativamente ao policial e novo afastamento face s poticas de

matriz realista, que procuravam tornar o discurso transparente, simulando colocar o

prprio mundo diante do leitor.

Tambm o cenrio, que no policial clssico de linha dedutiva simultaneamente

(ou pode ser) o da urbanidade e o do espao insular (isolado), como mais uma vez

acontece em muitos romances de Agatha Christie, ajuda a justificar o paratexto de

31

policial. Como tivemos j oportunidade de ver, em Matar a Imagem a aco decorre, na

primeira parte, na cidade de Lisboa e na segunda e terceira, numa ilha de localizao

indefinida, mais precisamente, numa casa separada da aldeia mais prxima por um tnel,

acabando por funcionar como uma espcie de ilha dentro da ilha.

E precisamente a que a questo da identidade, central em todo o romance, e

presente no gnero pelo menos desde Poe, se torna preponderante.

Por um lado, encontramos o tema do duplo, personificado antes de mais pelo par

principal, Rita e David, que so o verso e reverso um do outro, como frequentemente

acontecer nos textos posteriores da autora, com outras personagens. Apesar das

diferenas aparentes (masculino/feminino, racionalidade/imaginao, etc.), ambos se

defrontam com a mesma dificuldade em encontrar o seu lugar, escolher um caminho e, a

dado momento, Rita repete mesmo uma frase proferida antes por David (e que ela no

ouvira): Isto no um tringulo. (idem, 152 e 156)

Para alm disso, Carolina, uma rapariga da aldeia, partilha muitos traos fsicos

com Rita, apesar de ser mais jovem e menos angustiada do que esta; e Miguel, um

professor que trabalha na escola primria da ilha e que ao apaixonar-se por Rita, vir pr

em causa a frgil estabilidade do casal de protagonistas, tambm perturbadoramente

parecido com David, que, alis, apresentado como tendo igualmente parecenas com o

pai e at com o carteiro. Mesmo entre os gatos h irmos quase iguaizinho[s] e

bonita boneca de porcelana de longos cabelos louros que [Rita] descobrira sobre uma

arca vem somar-se a outra, muito semelhante, que o marido lhe oferecera algum tempo

antes. (idem, 101 e 160) Este ser um dos principais vectores da obra de Ana Teresa

Pereira: o facto de as personagens, quando so quatro, serem na verdade duas, que at

podem, no fundo, ser apenas uma. Os protagonistas apresentaro quase sempre grandes

semelhanas fsicas entre si, que emergiro tambm nas figuras secundrias, que os

replicam: os mesmos olhos azuis, o mesmo cabelo louro escuro, todos altos e magros,

esguios e sensuais, o que tanto pode estar associado a uma vaga ideia de parentesco e,

portanto, incesto, como s metades complementares divididas, de um ser outrora uno.

Nunca saberemos exactamente quantos nem quem so estes seres indistintos, que se vo

desdobrando e fundindo, ao longo das histrias. De qualquer forma, isso conduzir, por

vezes, a um desejo de aniquilamento do outro, ficando a hiptese de homicdio iminente a

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pairar sobre a narrativa, porque duas coisas iguais no podiam existir no

universo. (Pereira, 2003: 73)

H tambm cenas de Matar a Imagem que surgem quase duplicadas, repetindo-se:

o encontro de Rita e Miguel, no caf da aldeia, durante o qual ambos vestem camisolas

verdes, ecoa em certa medida a passagem inicial do romance, em que esta e David se

cruzam, tambm por acaso, no caf de Lisboa, funcionando como uma espcie de remake

desse momento fundamental da histria, em que tudo comea. E quando Rita decide

oferecer peas de roupa suas a Carolina, recorda os primeiros dias de casada, em que

David lhe comprava vestidos e sapatos, tentando fazer dela uma senhora. (Pereira,

1989: 90) Tudo aparenta repetir-se, com ligeiras variaes, negando a existncia de uma

primeira vez.

Finalmente, temos, claro, Tom, que inicialmente parece surgir como um amigo

imaginrio da infncia de David, mas na terceira parte do romance adquire contornos

muito mais inquietantes. que Carolina e Miguel, ou mesmo o carteiro, devido s

semelhanas fsicas com os protagonistas, funcionam sobretudo como duplos materiais

destes, verses alternativas.10 Assim, o nvel de perturbao que introduzem na narrativa,

apesar de o duplo ser tradicionalmente um prenncio de morte, muito inferior ao

provocado pela apario de Tom, que assume desde o incio um estatuto bastante mais

dbio e difcil de pacificar ou controlar (como os captulos finais do livro se encarregaro

de demonstrar). De qualquer forma, de uma maneira geral, todos eles acabam por colocar

em evidncia o facto de o medo frequentemente tornar, no policial, os papis de vtima e

criminoso intermutveis, sendo difcil antecipar quem agir primeiro, quem ir matar ou

neutralizar quem. Mesmo que Miguel parea mais inofensivo do que David, h sempre a

hiptese de ele conseguir matar, em sentido metafrico, a relao do protagonista com

Rita. E at esta no est isenta de alguma duplicidade, como podemos constatar a dado

momento do romance, quando referido o seu outro lado, aquele inimigo que vivia

dentro dela e l fora, que era tudo o que ela no era, que era racional, frio, prtico e

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10 Este aspecto tambm importante, pelo que indicia relativamente produo posterior da autora, que seguir de forma recorrente a explorao de caminhos paralelos - verses ou revises ligeiramente diferenciadas - tanto de personagens e de histrias prprias, como de outros autores, numa malha to

apertada de relaes intertextuais, que se torna difcil destrinar o que exclusivamente seu da digesto e revisitao de um cnone literrio muito particular, como teremos oportunidade de ver depois.

cruel. (Pereira, 1989: 12) Os sentimentos da personagem so ambguos, como mostram

a hesitao entre a entrega absoluta escrita e a opo pela via mais convencional do

casamento, entre Miguel e o marido, ou ainda o jogo perigoso que enceta com Carolina.

Isso permitir at que, no captulo IV da segunda parte do romance, a jovem da

aldeia assuma o seu papel (apesar de Rita estar tambm presente), ao descer as escadas

com o vestido e o bton desta, numa passagem que recupera uma espcie de subcategoria

do duplo, tambm muito frequente no policial, e que consiste em tomar e usurpar o lugar

do outro.11 Recorde-se que no primeiro livro da srie Ripley, de Patricia Highsmith (que

referida explicitamente em Matar a Imagem), The Talented Mr. Ripley, Tom

(provavelmente, uma das principais referncias para a omnipresente personagem

pereiriana com o mesmo nome, cujo reverso ser at, muitas vezes, uma figura feminina

chamada Patrcia) mata o amigo Dickie Greenleaf, para de seguida se fazer passar por

ele.12

Por outro lado, o tema da identidade est tambm presente no percurso de Rita e

David, que parecem no conseguir abster-se de procurar algo de difuso em si mesmos e

na relao com o outro, numa espcie de inquirio ontolgica, que poder at ser

considerada uma derivao da tradicional investigao do policial ortodoxo. De resto,

nos livros de Ana Teresa Pereira, o amor com frequncia associado questo da

identidade - e esse sem dvida um dos motivos para que os protagonistas sejam tantas

vezes apresentados como duplos entre si (ou gmeos imperfeitos), mesmo (ou sobretudo

quando) encenam uma histria de amor: ou porque a convivncia com o outro obriga as

personagens a verem-se permanentemente confrontadas consigo prprias, o que acaba

por se tornar insuportvel, levando ao homicdio (como acontece, por exemplo, na

primeira histria de A Dana dos Fantasmas, em que a figura feminina mata o escritor

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11 Para os leitores familiarizados com as obsesses literrias da autora, esta passagem no pode deixar igualmente de lembrar o momento chave de Rebecca, de Daphne du Maurier, durante o baile de mscaras,

quando a nova Mrs. de Winter desce tambm as escadas, com uma fantasia em tudo semelhante da sua predecessora, para espanto e terror do marido, Max.

12 A propsito da centralidade da personagem Tom na obra de Ana Teresa Pereira, cf. Fonseca, 2003.

russo com quem vivia) ou ao afastamento;13 ou ainda porque os protagonistas vivem

demasiado enclausurados no seu mundo, presos ao seu passado e aos seus fantasmas, que

os impedem de comear algo novo com algum.14 A torre ou o poo que surgem em

muitas das histrias de Ana Teresa Pereira (desafiando interpretaes psicanalticas) so

emblemticas desse fechamento ou encarceramento.

Mas para alm dos elementos que temos vindo a analisar, h ainda uma outra

caracterstica do policial, que a produo da autora parece ter assimilado de forma

particularmente profunda e produtiva, e que est relacionada com as potencialidades

narrativas que este oferece. Como os tericos e escritores do nouveau roman cedo

perceberam, o policial (sobretudo de linha clssica), pela prpria dinmica que lhe

intrnseca, funciona como uma espcie de mquina de engendrar histrias. No decurso da

investigao, abrem-se vrias possibilidades, as verses para a histria do crime

multiplicam-se e mesmo que o desfecho consagre apenas uma delas, as outras continuam

no texto, no s de forma latente, mas realmente presentes, apesar de descartadas. Isso

particularmente evidente em Five Little Pigs, de Agatha Christie, onde cinco perspectivas

diferentes da mesma srie de acontecimentos so apresentadas de forma sucessiva. Mas

esta provavelmente uma das caractersticas mais persistentes do gnero: a partir do

mistrio, tal como em muitos contos de Jorge Lus Borges (que andou sempre bastante

prximo do policial e do fantstico e que diversas vezes referido em Matar a Imagem),

os caminhos bifurcam-se e muitas histrias podem ser contadas e recontadas, como Rita

reconhece: Um quarto fechado podia fazer nascer um milho de histrias. (idem, 63)

Pelo contrrio, Abri-lo seria matar o mistrio e todas as diferentes possibilidades

narrativas que surgem com ele. (idem, 157) Rita acaba mesmo por entrar no quarto, para

descobrir que se trata apenas disso mesmo, um quarto banal, como aquele onde dormira

com David at ento. Mas a porta que encerra os grandes mistrios do livro (quem so

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13 A prpria Rita de Matar a Imagem reflecte acerca dessa questo: - Eu pensava - disse Rita com voz rouca - que ia viver sempre sozinha. A proximidade de outra pessoa parecia-me impossvel de suportar.

Talvez fosse o medo de viver com um espelho, sempre... Como se s quisesse reflectir-me quando tivesse conscincia disso... quando, de certa forma, estivesse a actuar para o espelho. (...) Mas nunca pensei que

duas pessoas pudessem viver lado a lado, ver-se reflectidas uma na outra, sempre, sem se odiarem profundamente. (Pereira, 1989: 106)

14 A propsito da temtica do amor na obra de Ana Teresa Pereira, cf. Sardo, 2001a.

aquelas personagens e que mundo aquele), essa, nunca chega a ser aberta. que a

promoo de determinada verso da histria como verdadeira, no desfecho, em

detrimento de todas as outras, tradicionalmente da responsabilidade do detective -

figura que em Matar a Imagem simplesmente no existe, no havendo, alis, nenhuma

outra personagem que assuma essa funo. O prprio discurso do narrador, nosso guia no

universo ficcional, neste caso fortemente dubitativo, marcado pela incerteza e pela

atmosfera de irrealidade que se desprende da histria. O leitor v-se assim despojado do

seu correspondente ou enviado diegtico (o detective) e condenado a uma rede

dispersa de pontos de vista, que lembram as diversas hipteses que no policial se vo

abrindo, durante a investigao: a focalizao interna oscila entre a perspectiva de Rita,

de David, de Tom ou mesmo de Carolina, mas sem que da resulte uma viso panormica,

de conjunto, que nos permita chegar verdade, no final.15 O texto termina, alis, com

uma frase de suspenso, e no de encerramento (sendo as reticncias sintomticas disso

mesmo), o que permite que, tal como o mistrio, tambm a histria no morra - facto

que ser confirmado pela subsequente produo da autora, atravs, como foi dito antes,

do regresso obsessivo aos mesmos espaos, personagens e at mesma trama.

De qualquer forma, tanto a ausncia de detective e de closure, como uma instncia

de narrao pouco estvel parecem configurar um desvio relativamente ao esquema

actancial que o perodo dourado do gnero consagrou. E a estes aspectos vem somar-se

ainda outro, de igual sentido: o crime, que no policial lgico-dedutivo ocorre geralmente

no incio, despoletando a investigao, surge aqui no final, como consequncia ou

culminar da indagao existencial a que Rita e David se dedicam ao longo do romance, e

que de resto, como avanmos antes, a nica reminiscncia ainda visvel da habitual

inquirio detectivesca - um pouco imagem do que acontece no romance Les Gommes,

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15 A nvel estilstico, isso evidenciado pelo predomnio do discurso indirecto livre e da corrente entrecortada de pensamento. As estruturas sintcticas so lineares e convencionais, havendo mesmo frases

paractticas, e os adjectivos variam pouco. O que curioso que tanto as construes simples como um lxico banal, directamente extrado do quotidiano, estiveram durante muito tempo associados low

litterature, para que o policial era constantemente remetido. Note-se, no entanto, que a segunda metade do sculo passado assistiu assimilao deste tipo de discurso, em que a tenso deslocado do plano verbal

para um outro nvel (no caso de Matar a Imagem, a diluio das categorias da narrativa e o dilogo problematizante com o policial, por exemplo), pela literatura tout court, nomeadamente, pela poesia.

de Robbe-Grillet.16 Claro que sem investigao, no h tambm lugar para a dupla

histria, que Todorov defendia ser uma das principais caractersticas do gnero.

No entanto, o facto de o texto apresentar pontos de fuga evidentes, face a um

modelo cristalizado, poderia em si mesmo no ser particularmente significativo, uma vez

que o policial mostrou sempre, como comemos por ver, uma forte tendncia para a

diversidade: a teorizao de Todorov em torno de duas grandes variantes, assim como a

dificuldade unnime no isolamento de um momento fundador do conta disso mesmo. A

prpria centralidade do detective tem vindo a erodir-se progressivamente, ao longo das

ltimas dcadas, acompanhando uma incidncia cada vez maior no crime e no criminoso.

A questo, no caso de Matar a Imagem, como na fico pereiriana em geral, que apesar

de o romance partir de um esquema ainda reconhecidamente policial, integrando

elementos do gnero, estes parecem obedecer a um imperativo de diluio ou rarefaco,

organizando-se em funo de uma lgica que j no claramente a do policial, e

desembocando em territrios que uma matriz de tipo epistemolgico parece incapaz de

poder conter e explicar.

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16 O detective indaga um crime que s acontecer no final, sendo ele o criminoso (ao matar o prprio pai).

Ps-Modernismo

A este propsito, vale a pena recordar a forma como Brian McHale equaciona a

transio entre Modernismo e Ps-Modernismo, na sua obra de referncia, Postmodernist

Fiction, cuja anlise poder ser, para ns, bastante produtiva, a diversos nveis.

O terico comea por reconhecer que a fico ps-modernista est

inequivocamente associada a uma srie de caractersticas, j antes identificadas por

outros autores, e que duma forma geral se opem a traos ou marcas da potica

modernista: relativamente primeira, David Lodge, por exemplo, menciona a

contradio, descontinuidade, aleatoriedade, excesso e curto-circuito,

enquanto Fokkema fala em incluso, indiscriminao deliberada, ausncia ou quase

ausncia de seleco e impossibilidade lgica; j acerca do Modernismo, Ihab Hassan

refere o urbanismo, tecnologicismo, desumanizao, primitivismo, eroticismo

e experimentalismo, e Peter Wollen prope a transitividade narrativa, identificao,

diegese nica e encerramento ou concluso. (apud McHale, 2001: 7) Apesar de ser,

portanto, possvel (e fcil, at) encontrar diferenas especficas entre os dois perodos,

para Brian McHale, continua ainda por esclarecer de que forma estes se relacionam, a um

nvel mais abstracto, geral e abrangente, enquanto conjuntos organizados, e em que

medida pde a literatura, como um todo, evoluir do estado reflectido na segunda lista de

caractersticas, para o primeiro.

Com o objectivo de tentar colmatar essa falha, o crtico americano recupera o

conceito bastante anterior de dominante, dos Formalistas Russos, cuja autoria deve

provavelmente ser creditada a Jurij Tynjanov, mas que sobretudo conhecido atravs da

formulao de Roman Jakbson, num texto de 1935: o autor russo defende que tanto cada

a obra isolada, como o sistema literrio, so uma estrutura hierarquizada de elementos,

transformados e organizados em torno de uma componente central - a dominante.

Jakbson precisa ainda, relativamente evoluo das artes poticas, que no se trata tanto

do desaparecimento de determinados elementos e da emergncia de outros, novos, mas da

alterao na forma como estes se organizam, da mudana nas relaes mtuas, ou seja, da

mudana de dominante, que promove aspectos, antes secundrios ou opcionais, a

primrios e essenciais e vice-versa. (Jakobson, 1971) McHale rentabiliza este conceito,

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atribuindo ento, ao Modernismo, uma dominante de tipo epistemolgico, enquanto o

Ps-Modernismo obedeceria a um princpio estruturante de tendncia ontolgica. O

primeiro encenaria assim questes como How can I interpret this world of which I am a

part? And what am I in it? What is there to be known? Who knows it? How do they know

it, and with what degree of certainty?; e o segundo gravitaria volta de dvidas como

Which world is this? What is to be done in it? Which of my selves is to do it? What is a world? What kinds of world are there, how are they constituted, and how do they differ?

What happens when different kinds of world are placed in confrontation, or when boundaries between worlds are violated? (McHale, 2001: 9-10)17

Isto no significa, no entanto, que a dimenso ontolgica esteja completamente

ausente dos textos modernistas e que a epistemologia seja de todo alheia ao Ps-

Modernismo, at porque, como qualquer filsofo pode objectar, no possvel colocar

questes epistemolgicas, sem levantar inevitavelmente, tambm, questes ontolgicas e

vice-versa; mas h sempre um conjunto de interrogaes que tem de surgir antes do

outro, porque todo o discurso linear e temporal. (idem, 11) E exactamente isso que

acontece nas fices modernistas e ps-modernistas, que promovem para o primeiro

plano a epistemologia e ontologia respectivamente, secundarizando a outra. McHale

explica ainda que a incerteza epistemolgica se torna, a partir de determinado ponto,

instabilidade ou pluralidade ontolgica e que se forarmos ao limite as questes

ontolgicas, estas deslizam igualmente para o domnio da ontologia; ter sido assim,

alis, que o Modernismo derivou para o Ps-Modernismo: a explorao, at s ltimas

consequncias, do carcter intrinsecamente epistemolgico dos seus traos fortes

resvalou para uma dominante doutro tipo.

Regressando, depois deste breve excurso, a Ana Teresa Pereira e Matar a Imagem,

importa agora esclarecer em que medida a proposta do terico norte-americano pode

ajudar-nos a compreender a forma como o romance-estreia da autora se desprende ou

descola do policial e como o facto deste gnero ter sido um ponto de partida se revelou

determinante, na afirmao de algumas das caractersticas centrais da sua fico.

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17 Tanto num caso como noutro, McHale parte de questes j antes formuladas por Dick Higgins (as duas e trs primeiras), para acrescentar ele prprio as restantes.

Segundo Brian McHale, a detective novel o gnero epistemolgico por

excelncia. (idem, 9) O policial encena questes tpicas da epistemologia, e no de

forma metafrica ou simblica, como acontece na fico modernista em geral, mas

literalmente. A investigao em si mesma representa, no fundo, um processo lento de

aprendizagem (por parte do detective e do leitor), atravs da anlise minuciosa de pistas e

indcios, que claramente tematiza a prpria problemtica do conhecimento. Alis, para

demonstrar a operacionalidade da sua proposta, McHale recorre a duas fices do

Modernismo tardio (Absalom, Absalom! de Faulkner e The Crying of Lot 49 de Thomas

Pynchon), em que a transio entre dominantes est particularmente visvel, e ambas,

apesar de no serem romances policiais, se servem e aproximam da lgica do gnero -

como se o facto da dominante epistemolgica ser, no policial, particularmente evidente

fizesse dele a forma literria privilegiada de derivao para a ontologia, logo, para o Ps-

Modernismo. E de certa forma isso que acontece tambm em Matar a Imagem, onde os

topoi e estratgias do policial esto ao servio de uma dominante de tipo ontolgico, que

dete