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17 2010 154 verve, 17: 154-188, 2010 do governo dos vivos, 2ª aula 1 michel foucault Aula de 16 de janeiro de 1980. Comecei, na última vez, a esboçar a posição do pro- blema que concerne à relação entre o exercício de poder e manifestação de verdade. Vou tentar lhes mostrar que o exercício de poder não pode se fazer e se realizar plenamente sem algo que possamos denominar como manifestação de verdade. Eu havia tentado sublinhar que esta manifestação de verdade não pode ser compreendida simplesmente como sendo a constituição, a formação, a concentração de conhecimentos úteis para governar eficazmente, mas que se trata de outra coisa, tal como um suplemento desta ‘economia de utilidade’. O que é necessário sublinhar também é que, quando falo de rela- ção entre manifestação de verdade e exercício de poder, não tenho intenção de dizer que o exercício de poder tenha necessidade de se manifestar em verdade na irradiação de sua presença e de sua potência (puissance) e que ele tenha necessidade de ritualizar publicamente e manifes- tamente essa forma de exercício. Verve 17 Final com mudanças na heliografica.indd 154 5/10/2010 12:27:22 AM

Do Governo Dos Vivos 2 Aula 2010

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    154 verve, 17: 154-188, 2010

    do governo dos vivos, 2 aula1

    michel foucault

    Aula de 16 de janeiro de 1980.Comecei, na ltima vez, a esboar a posio do pro-

    blema que concerne relao entre o exerccio de poder e manifestao de verdade. Vou tentar lhes mostrar que o exerccio de poder no pode se fazer e se realizar plenamente sem algo que possamos denominar como manifestao de verdade. Eu havia tentado sublinhar que esta manifestao de verdade no pode ser compreendida simplesmente como sendo a constituio, a formao, a concentrao de conhecimentos teis para governar eficazmente, mas que se trata de outra coisa, tal como um suplemento desta economia de utilidade. O que necessrio sublinhar tambm que, quando falo de rela-o entre manifestao de verdade e exerccio de poder, no tenho inteno de dizer que o exerccio de poder tenha necessidade de se manifestar em verdade na irradiao de sua presena e de sua potncia (puissance) e que ele tenha necessidade de ritualizar publicamente e manifes-tamente essa forma de exerccio.

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    O que tentarei sublinhar hoje, aqui, , justamente, esta espcie de suplemento de manifestao de verdade, tanto em relao constituio de conhecimentos teis para go-vernar quanto manifestao necessria do poder por ele mesmo.2

    A relao entre exerccio de poder e manifestao de verdade, evidentemente, poderia ser feita a partir de uma considerao, uma anlise de etnologia geral, mas que me sinto, bem entendido, incapaz de faz-lo (je serais incapable de le faire). Desejo simplesmente, aqui, lanar mo de um exemplo que nos conduzir aonde eu gostaria que ele nos conduza, ou seja, ao que ser o tema preciso do tema do curso deste ano, quer dizer, um caso preciso e definido de relao entre exerccio do poder e manifestao de verdade. Este exemplo primeiro, se quiserem, o exemplo que vai servir de ponto de apoio, ponto de partida s an-lises que eu gostaria de fazer neste ano. Este exemplo e vou j me desculpando por duas razes: um exemplo muito banal (trs rbatu) e eu no vou lhes ensinar nada ao invoc-lo, pois um exemplo a respeito do qual eu j tratei, eu j falei um pouco, ao menos h uns dez anos, ou aproximadamente uns nove anos atrs e no acredito que haja muitas pessoas que se lembrem disso, e que, oxa-l, no fiquem a por nove ou dez anos (risos na sala).

    Trata-se, certamente, da histria de dipo-Rei. A histria de dipo-Rei que me parece colocar o proble-ma, e que se pe aos olhos de todos, de relao entre o exerccio de poder e a manifestao de verdade. O que lhes desejo propor, hoje e na prxima vez, uma leitura de dipo-Rei no como desejo e inconsciente, mas como verdade e poder, uma leitura althourgica (althourgique)3 de dipo-Rei.

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    Com efeito, toda tragdia grega uma althourgia, quer dizer, uma manifestao ritual de verdade. uma althourgia, por assim dizer, no sentido geral do termo (au sens gnral du terme), uma vez que, bem entendido, por meio dos mitos, do heri; por meio dos atores, das mscaras que trazem os atores, a tragdia d a entender o verdadeiro (du vrai), a ver o verdadeiro. Na Grcia, a cena, o teatro, constitui um lugar onde e como se manifesta a ver-dade ou, por outro modo, certamente, na ctedra (sige) de um orculo ou sobre a praa pblica, onde se discute, ou no [?]4 onde se faz justia, etc. A tragdia diz o verdadeiro, e , em todo caso, esse problema do dizer verdadeiro que Plato desenvolver uma reflexo, problema ao qual vol-tarei mais tarde.5

    Assim, em sentido amplo, toda tragdia uma althourgia, mas, igualmente num sentido mais preciso, se assim o quiserem, tcnico, e na sua economia interna, a tragdia tambm uma althourgia na medida em que no somente ela diz verdadeiramente (elle dit vrai), mas ela representa o dizer-verdadeiro (le dire vrai). Ela , nela mesma, uma forma de fazer aparecer o verdadeiro, mas tambm uma maneira de representar, na histria que con-ta, ou no mito ao qual se refere, a verdade que veio luz (la vrit qui est venue au jour). Refiro-me ao texto famoso de Aristteles, que diz que h dois elementos essenciais em toda tragdia: a peripcia (o movimento interno tragdia que faz com que a fortuna dos personagens se transforme (se renverse), que os potentes se tornem miserveis e que aqueles que aparecem sob a figura (dun ...?)6 se revelem, finalmente, ser os fortes e os potentes. Peripcia de uma parte e, de outra parte, o reconhecimento, o que Aristteles denomina anagnrisis (a=nagnw,risi), quer dizer, que no

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    curso da tragdia, no somente a fortuna dos personagens se transforma radicalmente, mas o que no se sabia no in-cio se encontra descoberto no fim. Nada mais do que per-sonagens que se apresentam ignorantes, no incio, e que, finalmente, segundo a tragdia, se encontram enquanto saber (se trouvent en tant que savoir); ou ainda aquele que se apresentava mascarado, velado e do qual no conhe-camos a identidade e que, finalmente, se desvela pelo que ele (pour ce quil est).

    Na tragdia, h, ento, a peripcia e h o reconhecimento. Na maior parte das tragdias, a peripcia que leva, de alguma forma, ao movimento do reconhecimento, pois h o movimento de volta da situao, uma vez que a for-tuna dos personagens muda, e, no final das contas, a ver-dade aparece, as mscaras caem e o que est escondido se desvela. o que acontece em Electra, em Filocteto, etc. Em dipo-Rei, podemos dizer que se d o contrrio. Podemos dizer que uma tragdia que tem algo em par-ticular: o mecanismo do reconhecimento; o caminho e o trabalho da verdade que vai, nele mesmo, levar ao re-verso (retournement) da fortuna dos personagens. Assim, dipo-Rei, como todas as tragdias, uma dramaturgia do reconhecimento; uma dramaturgia da verdade, uma althourgia, com algo de particular; uma althourgie in-tensa e fundamental, a mola propulsora (ressort) mesmo da tragdia. Tudo isso, claro, bem conhecido de todos.

    O que temos o hbito de sublinhar, o que concerne o reconhecimento em dipo, que esse reconhecimento, enquanto motor da tragdia, tem um carter, se podemos dizer, refletido. o mesmo personagem que tenta saber, que faz o trabalho da verdade e que se descobre, ao mes-mo tempo, como o objeto mesmo da pesquisa, da busca.

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    dipo ignorava no incio e, ao final, ele vai se encontrar no saber; o que ele sabe, que ele mesmo, o ignorante, o culpado que ele procurava. Foi ele que lanou a flecha e foi ele que se encontrou visado, atingido por ela. Ele se v (se sait) submisso, sem o saber, ao seu prprio decreto.

    Mas, o que quero sublinhar o outro aspecto da me-cnica do reconhecimento e no do ciclo do sujeito ao objeto, mas o problema da tcnica, dos procedimentos e dos rituais por meio dos quais se faz o reconhecimento nesta tragdia o procedimento desta manifestao de verdade.

    dipo-Rei, ns o sabemos, a tragdia da ignorncia ou a tragdia da inconscincia; , em todo caso, certa-mente, a dramaturgia da cegueira (de l aveuglement) mas tambm podemos ver a, sem que se pretenda fazer isso de uma maneira generalizada e imperialista, e falo isso a respeito de mim mesmo , uma dramaturgia de verdades mltiplas, de verdades abundantes (foisonantes), de verdade em demasia (de vrits en trop). Insiste-se sem-pre no problema de saber como que dipo podia no ver tudo o que ele tinha sob os olhos; insiste-se sempre no problema de saber como e por que dipo no podia ouvir tudo o que lhe fora dito, e procura-se a soluo, pre-cisamente, no que tinha de saber, e ele no podia recusar o [?], sem dvida. Mas, possvel colocar o problema de saber quais eram os procedimentos e como as coisas eram ditas; qual era a veridico ou quais eram as veridices que caminhavam, assim, atravs da Tragdia de dipo e que toma conscincia das ligaes estranhas que h no personagem de dipo, no discurso de dipo, bem como o exerccio de seu poder e a manifestao da verdade ou as relaes que ele prprio tinha com a verdade. No tanto

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    enquanto filho desejoso ou filho assassino, mas enquanto rei (tyrannos - tu,,ranno). , enquanto rei precisamente, que dipo tinha uma relao com a verdade, uma relao deformada (tordue), da qual ns j ouvimos muitas vezes falar.

    dipo-Rei. em torno deste tema da realeza de dipo que eu quero, um pouco, centrar as coisas (les choses).7

    Primeiramente, o encadeamento pelo qual se faz a des-coberta progressiva, entre aspas, de descoberta da verdade. um encadeamento submisso a uma lei de metades. por metades sucessivas que as coisas se descobrem ou, em todo caso, so ditas e que a verdade se manifesta. Por me-tades, com efeito.

    No incio, sabemos bem, a peste se espalhou sobre Tbas; enviou-se Creonte para consultar o Orculo de Delfos. face, metade peste, se assim podemos dizer, o Orculo de Delfos responde que o meio de anular a peste se faz sob o ritual de purificao. Binmio peste-purificao. Mas, purificao de qu? De uma impureza (souillure). Que impureza? Um crime. Que crime? Bem, do antigo rei (Lais). H a uma primeira metade do Orculo, em todo caso, uma primeira metade do que deve ser necessrio e suficiente para liquidar (percer) com a peste que tomou de assalto a cidade de Tbas. Quer dizer, a designao precisa do ato, do crime, do assas-sinato que provocou a peste. Temos, ento, uma metade, homicdio, uma metade crime, mas o Orculo no diz a outra metade, a metade criminosa: Quem matou Lais? A esta questo o Orculo no quis responder e, como disse dipo, se o Orculo no quer responder, no pode-mos for-lo a dizer (forcer le faire). Assim, o Orculo

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    deu uma metade da resposta. Falta agora a outra. Como conhecer essa outra metade e como se pode conhecer o criminoso de (Lais/tyranns?). A, duas vozes se apre-sentam. dipo e o Corifeu discutem. H uma primeira voz que prope, o prprio dipo que a voz do in-qurito (de l enqute). dipo diz, simplesmente, eu vou proclamar que toda pessoa que tenha uma informao, qualquer que seja, a respeito do assassino de Lais deve vir ma trazer para que a verdade, enfim, seja descoberta e para que a outra metade do orculo, a metade escondida do orculo seja, enfim, revelada.

    A esta proposio de dipo, o Coro lhe responde ob-jetando que no quer esse procedimento, pois isso equiva-leria a suspeitar do povo, equivaleria dizer que foi algum do povo que cometeu o crime. Isto, ele (o Coro) no quer. Resta, assim, uma segunda via, pois s h duas vias, no uma terceira. Trata-se de consultar o adivinho, o profeta, o adivinho divino: (qei-o ma,nti / Theis mntis): Tirsias. Este adivinho, que o mais prximo de Apolo, recebeu do deus o direito de dizer a verdade e a respeito do qual o tex-to diz que ele rei da mesma forma que Apolo, justapondo os dois personagens Foi-bo e Tirsias (a=na [?]).8 Este v as mesmas coisas que ele (que lui) e tem, por conseguin-te, o mesmo olhar e o mesmo saber [que o deus]. uma sorte de irmo de Apolo e tambm o complemento, uma vez que ele no cego e que, por meio da noite dos seus olhos que no veem, ele pode saber o que o prprio deus Apolo sabe (il peut savoir ce que le dieu Apolon, lui, sait), ou ainda o que esconde luz do deus que v tudo. Ele uma espcie de duplo (une sorte de double), o complemento, a outra metade de Foi-bo. Ele o duplo do prprio deus e , efetivamente, a este ttulo que ele trar a metade que

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    falta ao Orculo de Apolo. Apolo disse: de um crime que se trata, o homicdio de Lais, e Tirsias acrescen-ta a dipo: voc o criminoso. E, assim, ele completa a outra metade. Quer dizer, ele acrescenta uma metade suplementar; ele acrescenta que dipo fez ainda outras coisas ruins e diz: voc descobrir um dia as impurezas que te ligam a tua famlia. E isto, de alguma forma, uma metade como suplemento. No momento em que Tirsias diz: aquele que matou voc!, o conjunto do que est por saber advindo de Apolo e Tirsias. Eles disseram tudo e nada mais falta. Nada falta a estas duas metades que se completam e, no entanto, insuficiente. Mas, em que sentido? E a que o Coro e o Corifeu desempenham um papel muito importante nesta mecnica da althourgie, da descoberta e da verdade. O Corifeu, primeiramente, e depois o Coro, dizem: isso no suficiente. O Corifeu o diz, primeiramente, na conversa entre dipo e Tirsias. Tirsias no quer dizer o que ele sabe, mas, instigado por dipo, ele acaba dizendo (e veremos por meio de quais mecanismos); ele acaba dizendo e a cabo do que dipo lhe responde: mas, se voc me acusa de ser o criminoso de Lais, que voc tem pensamentos ruins em relao a mim; que voc animado por maus sentimentos; que voc tem raiva de mim e que quer atacar meu poder. Neste momento, o que diz o Corifeu? O Corifeu diz: as acu-saes de Tirsias no valem mais do que as suspeitas de dipo. Isso quer dizer que, entre eles, o adivinho e o Rei, o Corifeu se recusa a escolher e ele percebe tanto a fraque-za de um quanto a do outro. Eles falam, ambos (dipo e Tirsias), diz o Corifeu, sob o efeito da clera e a palavra dos dois colocam em questo um e outro. Aps a partida de Tirsias, o Coro, nesse momento, faz uso da palavra e

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    repete a mesma coisa que disse o Corifeu. Ele tambm recusa tomar partido entre os dois e acrescenta (il dit), em relao a Tirsias que acabou de sair: Eu no posso dizer que ele tem ou no razo (je ne peux lui donner ni tort ni raison). Primeiramente, diz o Coro, eu no fao parte des-sa espcie de gente que v longe diante de si ou que pode olhar longe atrs de si, eu no vejo seno o que eu tenho sob os olhos; eu no vejo mais que meu presente. Em segundo lugar, o adivinho no tem nenhuma prova, nem ao que concerne ao passado, nem ao que concerne ao pre-sente. Em terceiro lugar, o adivinho, que acabou de falar, apesar de fazer uso da palavra do deus, no deixa de ser um homem. Ele um homem como outro qualquer e, dessa forma, est submisso aos mesmos erros que qualquer ho-mem; e s mesmas exigncias de todo discurso de verdade proferido pelos homens. Ele deve, ento, apresentar suas provas. Finalmente, diz ele (o Coro), poderia acontecer que haja homens, com efeito, que saibam mais do que os outros e, talvez, o adivinho seja um desses homens que receberam um poder um pouco maior que os outros. E pode acontecer que esse adivinho seja contado como um desses homens. Mas, no deixa de ser verdade que dipo deu, no passado, um certo nmero de provas: provas de seu amor por Tbas e de sua capacidade de fazer o bem cidade, uma vez que ele salvou a cidade uma primeira vez. J que dipo deu suas provas, e com vistas existncia dessas provas, contrabalana bem o saber maior (le plus de savoir) que o adivinho poderia ter recebido do deus.

    Entre o dom divino que recebeu o profeta e as pro-vas dadas, efetivamente, no passado por dipo, h um equilbrio tal que o Coro se recusa a julgar. Ele se re-cusa a julgar porque, diz ele, nunca, antes de ter visto

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    dos meus olhos justificada a palavra do adivinho, eu no aprovarei as palavras divinas. dipo tem por ele coisas visveis (fanera, / fanerai). So elas que impedem, a mim, o Coro, de dar um crdito ou o necessrio e sufi-ciente s palavras divinas; para que eu aceite o que me disseram; pois que, entre elas (as palavras divinas) e as coisas visveis, h, atualmente, um debate que eu no posso encerrar (trancher); no o posso encerrar porque eu no vejo bem.

    , pois, o olhar do Coro que deve levar a seu termo (accomplir), entre eles, as coisas visveis e as palavras divinas. nessa instncia que o Coro deve provar; que ele deve par-tilhar as provas e, enquanto ele no o fizer, as coisas ficaro em suspense. simplesmente quando eu terei visto, que haver, diz o coro, a palavra justa (o=rqon e=po / orthon eps). A palavra justa se produzir to logo o discurso divino, as profecias divinas, as palavras oraculares sejam encaixados e encontrem seu complemento, sua realizao nas coisas vi-sveis e no que ter sido visto. Somente nesse momento, nessa complementao e nessa justeza que se produzir o orthon eps (o=rqon e=po), a palavra justa. Esta palavra ser aquela qual devemos nos submeter, uma vez que ela a verdade, a lei e a ligao, a obrigao prpria verdade. As-sim, o jogo, o casal, deus-adivinho, apesar de saber (a beau [?]) toda a histria, no disse toda a verdade. a passagem da histria verdade. na passagem desfeita e pronuncia-da, no discurso do adivinho e do deus, que tem a verdade em si, que se desenvolver todo o resto da tragdia.

    Assim, com o adivinho e o deus a metade divina e a metade proftica (a metade oracular) , se d a par-te mntica (divinatria) deste procedimento de verdade. A segunda parte, bem entendido, a metade humana do

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    procedimento de verdade, vai se dividir tambm em duas metades. A primeira metade ser consagrada morte de Lios; esta althourgia da morte (crime) de Lais; esta manifestao em verdade do crime de Lais, ir, por sua vez, se dividir em dois, uma vez que, de um lado, haver Jocasta. Jocasta veio para assegurar a dipo, debulhan-do (egrenant) suas lembranas, tentando mostrar a partir dessas lembranas, que o adivinho no disse mais do que mentiras. Jocasta diz o que se passou e se dirige a dipo dizendo: fique tranquilo, pois voc no matou Lais, uma vez que Lais foi morto no cruzamento de um caminho por malfeitores (brigands). Ela diz, por meio de lembran-as indiretas do que lhe trouxeram como notcia, do que ela ouviu. Ela diz uma metade do que se passou. Uma me-tade, de certa forma, referente ao crime, o lado do crime visto do lado dos Tebanos e do lado dos prximos do rei (de l entourage du roi), ao qual, por essas lembranas, dipo no teve que fazer mais do que ajustar suas prprias lem-branas e dizer que ali, efetivamente ele matou, tambm, algum no cruzamento dos trs caminhos. E , assim, que percebe o que ele mesmo fez e o que ele v de seus pr-prios olhos. Jocasta ouviu a metade das coisas. dipo viu e fez a outra metade. Podemos dizer, assim, que nesse mo-mento, de novo, tudo sabido (tout est su). Tudo sabido, toda histria, toda a metade-purificao que o orculo or-denou; metade esta que, enfim, veio luz. Sabe-se, ento, verdadeiramente o que se passou e quem foi o autor do crime. Tudo sabido, ou melhor, tudo seria sabido se no restasse, apesar de tudo, uma certa incerteza que mar-cada pela impreciso do saber por ouvir dizer (oui dire), por outras bocas, uma vez que Jocasta ouviu que foi por um grupo de malfeitores (brigands) que Lais foi morto,

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    ainda que dipo saiba que ele era o nico por quem Lais foi morto, uma vez que dipo sabia que estava s quando matou o velho rei. E , efetivamente, isto que ir enca- dear a segunda metade do processo humano de descoberta da verdade. Vo buscar aquele que era ignorado e que foi efetivamente a nica testemunha sobrevivente do que se passou. Antes mesmo que ele chegue, um mensageiro de Corinto entra em cena. O mensageiro de Corinto informa a dipo que Polbio, em Corinto, morreu. E acrescenta que Polbio no era verdadeiramente seu pai legtimo e que ele, dipo, no mais do que uma criana encontra-da; uma criana que confiaram precisamente a esse velho mensageiro e poca em que ele era pastor no vale do Citero. Metade revelada no do crime, mas do nascimen-to. Metade do lado do receptor, se assim o queiram. No entanto, agora se sabe que dipo no o filho de Polbio, mas uma criana encontrada. neste momento que chega um escravo, o ltimo escravo, aquele que foi testemunha do assassinato de Lais, mas tambm aquele ao qual con-fiaram dipo, logo que seus pais quiseram mat-lo. Este escravo chega como testemunha ltima. Ele, que se es-condeu no fundo de sua cabana para no dizer a verdade, trazido cena e bem aquele que obrigado a atestar que dipo foi entregue por ser exposto. Nesse momento, a metade formada por habitantes de Corinto e a metade de habitantes de Tbas vm se encaixar metade de Corinto. O mensageiro de Corinto diz: ele foi encontrado. O es-cravo diz: fui eu que o dei e fui eu que o recebi das mos de Jocasta. Eis a ltima metade que vem se encaixar, a l-tima pea que vem completar o conjunto e esses dois tes-temunhos oculares, do mensageiro de Corinto e do pastor

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    de Tbas, essas duas metades oculares vm completar o proferimento (proferation) ocular do deus e do adivinho.

    Esta complementao acontece simplesmente com duas pequenas fissuras (accrocs): primeiramente, sempre nesse problema de um e de muitos. Foi um ou foram mui-tos que mataram Lais? A questo ainda no foi resolvida. Ela no foi, alis, jamais resolvida no texto de dipo. Ain-da que, no limite, ns no o saibamos e nunca o saberemos se foi realmente dipo que matou Lais. Em segundo lu-gar, o escravo Tebano, que recebeu a criana que abando-naram, ouviu dizer que ela era a criana de Jocasta, mas ele no estava certo disso. E ali tambm, at o fim, e o texto no nos dir, se efetivamente dipo era o filho Jocasta, so-mente por ela poderamos saber, mas ela se matar. Assim, nunca o saberemos.

    Ainda que do lado das coisas visveis, mesmo do lado dessas fanerai, que foram chamadas a completar a pa-lavra oracular, e para constituir, totalmente, uma palavra justa, palavra correta; e mesmo a esse nvel, as coisas no sero nunca totalmente completas, por mais mltiplos que sejam os encaixes, restar uma certa fissura (accroc), cuja funo ser, bem entendida, ad aeternum.

    Deixemos, por um instante, esta pequena lacuna. Vimos, ento, claramente a mecnica dessas metades que vm se ajustar umas s outras. Metade divina, althourgia religiosa, proftica, ritual, com uma metade oracular, e outra metade divinatria, a metade Phoibs, a metade (parrhsi,,a / parresas). E, em seguida, uma metade humana, a althourgia individual da lembran-a e da pergunta (enqute); uma metade criminosa. Um fragmento definido por Jocasta e um fragmento

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    definido por dipo. E ainda uma metade nascimento; nascimento de dipo. Um fragmento vem de Corinto, trazido pelas mos do mensageiro, e na outra metade vinda de Tbas, um sinal escondido (fut cach) na caba-na de um escravo.

    Assim, ns temos seis detentores da verdade que vm se reagrupar dois a dois, para fazer um jogo de metades que se completam, se ajustam e se encaixam umas s outras. De alguma forma, um jogo de signo-metade. No nos faltou mais do que um signo-metade para que tivssemos a palavra verdadeira (o=rqon e=po), a palavra justa, a palavra correta que ser a realizao da althourgia.

    H, portanto, um jogo de signos-metade. Podemos, em seguida, notar duas coisas: primeiramente, a totaliza-o desses fragmentos se faz sob uma forma particular e facilmente reconhecvel. No se trata, entretanto, de uma adio aritmtica. No se trata de seis personagens que, um aps outro, conhecessem uma pequena parcela des-sa verdade, terminando por constituir o conjunto dessa verdade. Com efeito, trata-se de ajustes de fragmentos complementares que se fazem dois a dois, se quiserem, a cada nvel, a totalidade da verdade. Temos a totalidade da verdade que no fundo dita pelo deus. A totalidade da verdade, ela , seno totalmente dita, ao menos como tocada com o dedo por dipo e por Jocasta no momento em que eles lanam mo de suas lembranas; e, final-mente, a totalidade da verdade, ela , de novo, referida a um terceiro grupo, formado pelo servo e o escravo. Em cada grupo, se tem duas pessoas diferentes que detm, cada uma, um dos fragmentos da verdade. Primeiro, no nvel dos deuses, h a sucesso. O Orculo fala primei-ro e depois vem o adivinho. Depois, h dipo e Jocasta

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    que se afrontam num jogo da discusso e, depois, h os escravos que se encontram, de alguma forma, por acaso. Um chamado no momento em que o outro, por razes totalmente diferentes, vem de Corinto. De uma parte, a ligao entre o deus e o adivinho, uma vez que o adi-vinho recebeu seu poder de dizer a verdade do prprio deus. Ele investido por ele desta potncia. Em segundo lugar, certamente, entre dipo e Jocasta existem laos que sabemos e outros que no sabemos ainda, mas laos igualmente muito fortes; laos desta forma no mais di-vinos, mas jurdicos, uma vez que so marido e mulher. E finalmente, entre os dois pastores, h um lao, que o lao da amizade (phylia). Eles lembram, com efeito, o que vai dar fundamento ao seu testemunho: ambos eram pastores no Citero, onde eles se encontravam todos os invernos, e que laos de amizade os haviam ligado. Cada grupo ligado por uma sorte de pacto; pacto da amizade embaixo, pacto jurdico ao nvel mdio e, enfim, pacto de um lao religioso, ao nvel superior. O jogo dessas duas metades que vm se encaixar, entre duas personagens; que unidas entre laos de mesma natureza, vem consti-tuir o que o grego denomina symbolon. Esta figura, este objeto material, este caco de cermica (ce tesson de poterie), que vem se partir em duas partes, e que duas pessoas que possuem um pacto devem necessariamente autenticar, o pacto que aparece to logo um vem reclamar a outro o que dito ou to logo eles vm reativar o lao que existe entre eles. O ajuste das duas metades autentica o que se passou entre eles e valida a sua ligao. a autenticao de uma aliana privada entre duas famlias, o reconhe-cimento de um indivduo por um outro; a marca de validao de uma mensagem; tudo isso; essa frmula

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    que est em jogo em dipo-rei. E, alis, dipo o diz, no prprio texto, eu no poderei seguir durante muito tempo a pista do criminoso, se eu no tiver entre as mos alguns smbolos (symbolon). Smbolo no sentido de: se eu no tiver em minhas mos uma pea, um fragmento de pea, ao qual se possa ajustar o fragmento correspon-dente e complementar da mesma pea e que autenticar a verdade que se pretende obter. E ela no ser obtida a no ser por este jogo de symbolon, de uma metade, de um fragmento que vir se ajustar a um outro, a um outro que ser tido por algum que ligado primeiramente por uma ligao religiosa, jurdica ou de amizade.

    Esta circulao do symbolon o fio que conduz toda a pea de Sfocles. Ela se faz sob uma escala descendente que bem evidente, uma vez que temos o nvel do deus e de seu adivinho; em seguida, no nvel mdio, o Rei e Jocasta, que quase descobrem o crime, e, logo abaixo, te-mos os dois servidores, pastores e escravos: um servidor do Rei de Corinto, Polbio, o outro, servidor tebano de Jocasta e de Lais; servidores, pastores e escravos e so eles que vo, finalmente, operar as duas metades do symbolon, que vo ajuntar o que pertence a Corinto e o que pertence a Tbas; que vo ajuntar o crime e o nascimento; que faro coincidir o filho de Lais e o filho suposto de Polbio. E, se encontrando, por meio dos anos, a amizade do tempo em que eram pastores juntos no Citero, eles faro passar por meio de suas lembranas, de mo em mo, a criana dipo da qual, cada um deles, guardava de alguma forma uma metade na mo. E pode ser que dipo se reconhe-a, ele mesmo, neste symbolon. Este caco (tesson) quebrado em dois, com uma metade em Tbas e outra metade em Corinto, ele se encontrar no final da pea, em sua unida-

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    de que foi fragmentada ou ento se reencontrar em dois (en double). dipo de metade e ao mesmo tempo um ser duplo. A monstruosidade de dipo consistir, preci-samente, no que ele perpetuamente em dois (en double), uma vez que ele , ao mesmo tempo, o filho de sua me e o esposo de sua mulher, o pai e, ao mesmo tempo, o irmo de seus filhos. Cada vez que ele fala, que ele acredita dizer alguma coisa, com efeito, uma outra significao aparece (se glisse), de tal sorte que cada uma dessas palavras duplas faz de dipo esta personagem dupla este smbolo, cujas metades vm se sobrepondo e, ao mesmo tempo, faz descobrir sua unidade e revelar sua monstruosa verdade.

    Mas, esta outra questo pois isto toca precisa-mente a natureza do poder de dipo que eu gostaria justamente deixar de lado, hoje: o problema do saber de dipo e da relao que h entre o poder de dipo e o que ele sabe, para me debruar sobre dois outros nveis: o nvel superior e o nvel inferior, o lado dos deuses e o lado dos escravos.

    Ainda uma vez, o que espantoso nestes dois nveis que muito mais espantoso que o nvel de dipo e Jocasta, pois, em relao a dipo e Jocasta, pode-se, bem entendido, de um certo ponto de vista e colocando a questo em termo de conscincia e de inconscincia, in-dagar-se at que ponto dipo e Jocasta no sabiam (dos fatos) ver que esse comentarista ou compilador do texto de dipo-Rei, por meio do qual vemos pequenas notas, que Jocasta jamais contou a dipo como Lais morreu (o que verossmil). Mas, este um problema de verossimilhana que no parece ter eficcia para a anlise mesma do texto e que me parece colocar o problema de conscincia e de inconscincia, quando o que eu queria

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    mesmo era colocar o problema do saber em termo do ri-tual e da manifestao do saber, dito de outra forma, em termos de althourgia.

    Bem, se colocamos o problema nesses termos, pode-se dizer que, efetivamente, dipo e Jocasta dizem final-mente a verdade, sem o saber, e eles no so os principais vetores da althourgia, pois eles no passam de interme-dirios. Em revanche, a althourgia propriamente dita, quer dizer, a formulao ritual e completa da verdade, ela , efetivamente, realizada duas vezes. Uma vez, no nvel dos deuses, quer dizer, ao nvel de Phoibs e Tirsias e, uma segunda vez, ao nvel dos escravos e dos servidores. Ela se deu duas vezes, mas no efetivamente da mes-ma maneira. Eu creio que a comparao entre as duas althourgiai (aquela dos deuses e aquela dos escravos) permite, talvez, ou permitir recuperar, em seguida, qual a especificidade do saber de dipo.

    Assim, comparemos um pouco a althourgia divina e a althourgia dos escravos. Primeiramente, os deuses, tais quais os escravos, so instncias de verdade; so detento-res de verdade; so, se vocs quiserem, sujeitos de verdade, que se lhes interroga. Trata-se aqui de colocar questes. Bem entendido, a maneira de questionar no a mesma. O deus, ns o consultamos e esperamos sua resposta e, uma vez dada, dada e ponto. Ns no podemos fazer mais nada. No o podemos interrog-lo ainda mais. Por mais enigmtica que seja sua resposta, ou incompleta aos olhos daqueles que o escutam, e mesmo se ela se revela absolutamente completa, no podemos fazer mais nada. preciso se virar de outra forma e est fora de cogitao constranger o deus. O jogo questo-resposta com o deus

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    um jogo que jogamos uma vez por todas e, uma vez a partida jogada, preciso se virar com o resultado.

    Tirsias, da mesma forma que o deus, algum que consultamos, a quem colocamos questes, mas o sistema de constrangimento por meio do qual se extraem as res-postas ao question-lo, um pouco diferente. Tirsias foi forado a vir, ele no veio por sua espontnea vontade. Ele diz e no cessa de repetir: era melhor no ter vindo, eu no queria vir, eu no queria responder (o que quer que seja). No entanto, Tirsias solicitado e termina por responder. Por qu?

    Por duas razes: primeiramente, pois invocamos nele, aquele que encarregado, em relao cidade, de velar sobre um certo nmero de coisas e, mais preci-samente, ele o encarregado de dizer-verdadeiro (dire vrai) para que acontea o bem cidade. Se, numa cida-de, o adivinho se recusava a falar; se no momento em que uma cidade ameaada ou no momento em que ela j est na desgraa, o adivinho se cala e no cumpre seu papel como protetor da cidade (como aquele cuja tarefa de dar conselhos para que a cidade seja, efeti-vamente, bem governada e conduzida, certamente, ao porto sem naufrgio), ele no pode se furtar a cumprir seu dever e preciso, pois, que ele fale; e esta a pri-meira razo pela qual falou. Ele falou tambm por uma segunda razo. Ele falou no momento em que dipo, zangando-se com ele e se irritando com este falso fu-gitivo (faux fuiant), ou melhor, no momento em que ele se irrita to logo Tirsias lhe diz que ele, dipo, o criminoso. dipo se zanga e lhe diz Voc se apresen-ta como um adivinho, quando no passa de meu ini-migo e eu posso dizer contra voc um certo nmero

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    de coisas. Eu sou, enquanto rei, to poderoso quanto voc. Ao que, Tirsias responde: Se voc potente em relao a mim, eu tambm sou potente em relao a voc e eu no sou menor que voc.Eu sou, como voc, um rei. 9 De tal forma que vemos, no incio, Tirsias ser apresentado como um rei como Phoibs,10 como a contraface (rei no menos que o prprio dipo). E nesse desafio, nesse combate verbal (joute) entre esses personagens reais que Tirsias vai, finalmente, dizer a verdade e toda a verdade: voc, diz Tirsias, No, voc, diz dipo. E a responsabilidade de todo mal vem de dipo, diz Tirsias e o combate verbal (joute) deixa o problema em suspenso. Tirsias , pois, algum que interrogado, mas que interrogado diferentemente do que se passou com Phoibs. Tirsias, interrogado de poderio a poderio (puissance puissance), de rei a rei, num combate verbal (joute) de igualdade entre o sobe-rano e ele mesmo. Terceira extrao de verdade bem aquela qual iremos proceder, com os escravos e ser-vidores, pois vo tambm interrog-los. Certo, a ques-to colocada aos escravos no se d da mesma forma e nem obedecer ao mesmo procedimento da consulta ao deus ou s questes colocadas a Tirsias, o profeta. Um dos dois servidores foi interrogado como um mensa-geiro ao qual encarregamos de levar um certo nmero de notcias e ao qual perguntamos um certo nmero de informaes. Mas, o que surpreendente e interessante o interrogatrio do ltimo pastor. ele que detm o conhecimento de toda a verdade, uma vez que ele recebeu dipo, no executou a ordem de mat-lo e ain-da o deu aos habitantes de Corinto; finalmente, ele as- sistiu ao crime de Lais. Portanto, aquele que sabe tudo.

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    Aquele que do nvel simtrico do deus, aquele que sabe do caso, talvez, bem mais que Tirsias; aquele que no sabe menos do que Phoibs; bem, este, em questo, ser interrogado. E um interrogatrio, de certa forma, simtrico; da consulta oracular a qual no assistimos, mas que Creonte, no incio da pea, nos faz saber o re-sultado. Mas, este interrogatrio, em que consiste? Ele muito simples. Vai-se rapidamente reconhec-lo. Se seguirem o texto, primeiramente, lhe perguntam: Voc bem aquele que pensamos ser? Pedem-lhe para au-tenticar sua identidade. E perguntam ao habitante de Corinto, o escravo que acabaram de trazer ali: bem este do qual voc nos falou e que lhes deram dipo? Sim, diz o habitante de Corinto, esse mesmo que est diante de ti!. E assim, o tebano autentica sua iden-tidade ao dizer: Sim, eu sou um escravo comprado e nascido no palcio do rei. Perdo, no comprado, mas nascido no palcio do rei!11. Uma vez isto estabelecido, vo interrog-lo da mesma forma que se faz num in-terrogatrio. Perguntam-lhe (o habitante de Corinto): Que se lembra voc do que se passou? Quem te deu a criana que, em seguida, voc transmitiu aos habi-tantes de Corinto? A pessoa que lho deu, o fez com que inteno? E, enfim, por estar certo de arrancar dele toda a verdade que ele detm, terminam por amea-lo de tortura: Se voc no quer falar de boa vontade, diz dipo, falar fora! E, como o escravo hesita em falar, dipo diz: Amarrem suas mos s costas! E, enfim, em frente ao um novo desafio, dipo acrescenta: Se voc se recusa a falar, voc morrer!. Tal a consulta, se eu ouso dizer, do escravo ao responder ao interrogatrio do deus no incio da pea.

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    Eis o porqu das tcnicas de interrogatrio. H dife-renas, no somente no procedimento de extrao da ver-dade e, bem entendido, mesmo na modalidade do saber dos deuses em face do saber dos escravos. O saber dos deuses, no entanto, tanto quanto o saber dos escravos, de certa maneira o mesmo de compor o olhar e o discurso ou ainda de compor o ver e o dizer. Mas, a maneira do lado do deus e de seu adivinho, que compe o ver e o dizer, no , evidentemente, a mesma maneira do lado dos escravos. O deus, com efeito, ele prprio v. Isso quer dizer: ele v toda espcie de coisas. Ele v tudo porqu? Ora, porque ele a prpria luz que clareia todas as coisas e que as tornam todas visveis. O olhar de deus algo como conatural s coisas que so dadas a ver. a mesma luz que se encontra nos olhos do deus e que clareia o mundo. O mundo s visvel condio que h no olhar do deus uma luz que faz ver as coisas a ele e a todos os homens. Conaturalidade, consequentemente, entre a luz do olhar que habita o olhar do deus e a visibilidade das coisas.

    Do lado da palavra, poder-se-ia dizer a mesma coisa. Se a palavra do deus sempre verdica, h por trs disso uma boa razo, que essa palavra ao mesmo tempo algo como uma potncia que anuncia e uma potncia que pro-nuncia. Ela diz as coisas e ela faz com que as coisas acon-team. Ela diz que elas vo acontecer e ela liga os homens, as coisas, o que ir acontecer de tal maneira que tudo isso no pode no acontecer. Como, nessa condio, o deus no diria a verdade? Seu saber, o saber do deus, como luz e como discurso; o saber deus como ver e como dizer infalvel, uma vez que ele indissocivel do que torna as coisas visveis e do que as faz acontecer. a mesma fora que, ao mesmo tempo, permite o deus de ver e d as coisas

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    a ver. a mesma fora que permite o deus de dizer o que vai acontecer e que lhe permite for-las, efetivamente, a acontecer. Ele as fora a acontecer. a mesma fora. , nesse sentido, que Tirsias pode dizer, enquanto herdeiro do poder do deus (lui qui a hrit le pouvoir du dieu) em mim habita a fora do verdadeiro. A fora do verdadeiro, do lado da mancia (de la mancie),12 no a mesma for-a que permite ver antecipadamente o que vai acontecer; mas, a conaturalidade entre o poder de diz-lo e o poder de faz-lo acontecer. a conaturalidade entre o olhar que percebe e a luz que torna as coisas visveis. Fora da luz-olhar e fora do enunciado-ligao (lien). Entre os servi-dores, bem entendido, o olhar e o dizer so compostos de toda uma outra maneira e de uma outra natureza.

    Para os servidores, do lado dos escravos, o que o ver? No evidentemente tornar as coisas, ou melhor, ver as coisas que as tornamos, por ns mesmos, visveis. Ao contrrio, trata-se de um assistir impotentemente um espetculo que se lhe imposto do exterior. E, bem, pela vontade dos homens e pela deciso dos reis, por tudo o que lhe acontece. Eles (os escravos) no passam de ex-pectadores que veem tudo se apresentar (drouler) diante deles, em torno a eles, sem nenhuma conaturalidade com a lei, sem nenhuma proximidade em relao queles que comandam. Eles obedecem (um ou outro ponto sobre os quais ns nos voltaremos mais tarde). Mas, eles es-to l somente como expectadores impotentes. E, con-sequentemente, em que se vai enraizar a verdade de seu olhar? Bem, no fato de que, justamente, eles estavam l. Eles mesmos estavam l, vendo com os prprios olhos e agindo com as prprias mos. Todos os testemunhos presentes na cena final, entre o escravo de Corinto e o

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    escravo de Tbas, so muito caractersticos no que se re-fere ao vocabulrio. O escravo de Corinto, por exemplo, diz, ao se dirigir a dipo: fui eu que o encontrei no vale do Citero. Eu estava l porque eu guardava o rebanho. Sou eu que te desamarrei de teus ps transpassados. Foi a mim que um outro pastor te trouxe (ta remis). , pois, simplesmente e fundamentalmente a lei de presena que autentica o que pode dizer o escravo de Corinto. E no momento em que, interpelado incessantemente, lhe per-guntam: quem, pois, te deu essa criana, de onde vem essa criana que te deram?. Nesse momento, a lei de pre-sena o obriga, a ele, o escravo de Corinto, a dizer que ele no o sabe. Diz ele: Eu no sei! Mas, aquele que o colo-cou, voc, dipo, em minhas mos, que poder falar.

    E , nesse momento mesmo, que intervm o pas-tor do Citero. Aquele que deu dipo ao escravo de Corinto. Bem, o pastor de Tbas vai lhe responder da mesma maneira. Perguntam-lhe: no voc que deu a criana ao pastor de Corinto? E a resposta : Sim, sou eu que o colocou nas mos do pastor de Corinto!. Um pouco mais alm, ele diz: Foi a mim que Jocasta o deu! E ainda ele dir: Fui eu que recusei mat-lo, pois tinha piedade dele e fui eu quem o deu a um outro.

    Ora, toda a relao entre o ver e o dizer verdadeiro (dire vrai) no se articula em torno da potncia de fazer apare-cer as coisas em uma visibilidade que aquela da natureza mesma e que autoriza o olhar do deus a prev-lo, uma vez que ele o faz ver. Ora, toda a relao do ver o dizer verdadeiro se articula aqui em torno da presena dos per-sonagens, da identidade da testemunha. Do fato de que ele, ele mesmo, autos (heauto), que v e que fala. ele, em sua identidade, que a autenticao da palavra que

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    diz. No caso do deus e do adivinho, o caso da fora da verdade que os habitava e no havia, portanto, necessidade de estar ali. Phoibs est longe do que se passou. Ele est longe, quando o consultam. de longe que ele lana seus decretos sobre os homens. Tirsias est longe, no senti-do de que ele cego. E dipo o reprovar muitas vezes por isso. Mas, no caso dos servidores, a fora da verdade no os habita. So eles que se encontraram, como que por acaso, colocados sobre a cena da verdade. Eles esto na ver-dade (dentro da verdade), mas no so habitados por ela. So eles que habitaram a verdade, ou ao menos, so eles que esto ant (ante) uma realidade de fatos, de aes, de personagens sobre os quais eles podem fazer valer ou no (tenir ou non) sua identidade. Pelo fato de que so eles os mesmos, ou sempre os mesmos, que eles podem fazer, nessa condio, um discurso verdadeiro.

    Terceira diferena entre a althourgia dos deuses e a althourgia dos escravos, que decorre das duas primeiras e que concerne o tempo.

    O dizer verdadeiro do orculo e do adivinho se situa, bem entendido, sobre o eixo do presente e do futuro. Ele toma sempre a forma da injuno. Jamais o adivinho e o deus olham para passado. A dipo que procura a verda-de, nem o deus, nem o adivinho respondem, eis o que se passou!. Dizem sempre alguma coisa que se situa no eixo: presente-futuro e sob a forma da injuno. Primeiramente, eles dizem, por exemplo, o remdio que preciso utilizar: necessrio expulsar as impurezas (les souillures). E no se deve deixar crescer a impureza at o ponto que ela seja incurvel.13 Ou ainda, eles indicam a ordem qual se deve curvar. Eu te ordeno (je te somme)14 de te ater lei que voc mesmo proclamou e de no falar deste dia a quem

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    quer que seja, diz Tirsias a dipo. Ou ainda o adivinho e o deus descobrem o invisvel que ningum percebe ainda, mas o invisvel atual. Nem o adivinho nem o deus dizem a dipo: Foi voc que matou!, mas eles dizem: voc que , agora, o criminoso. Ou ainda, sem o saber, voc vive, atu-almente, num comrcio infame. E, enfim, certamente, eles falam em relao a um acontecimento que vai ocorrer. De ambos ele ouve: a maldio te expulsar de uma maneira terrvel (De deux cts, te chassera la maldiction aux pieds terribles).15 Frente a isso, o franco-falar (le dire-vrai) dos escravos se situa inteiramente sob eixo do passado. Se eles dizem o verdadeiro (sils disent vrai), porque eles se lem-bram e eles no podem dizer o verdadeiro (ils ne peuvent dire vrai) a no ser sob a forma da lembrana. Do futuro, isto certo, eles no dizem nada; do presente, o que ser dele seno a lei que se impe a eles ou a ordem, ou a ame-aa que se lhes impem (qui les surplombent) e que vem do rei e daqueles que lhes do ordens. Infelizmente, os escra-vos (Lasse, les esclaves...), eles no podem olhar seno em direo ao passado. O escravo Tebano tenta se refugiar por detrs do esquecimento para no ter que dizer a verdade e, face a ele, o mensageiro de Corinto no cessa de lhe dizer: mas, vejamos, desperte suas lembranas!, pois eu estou certo de que ele se lembra. Voc no se lembra de me ter dado a criana?.

    Ao passo que o orculo religa os homens, dizendo-lhes o que deve acontecer, uma vez que, o que deve acontecer a mesma coisa que o deus faz acontecer, a lembrana dos ho-mens, o dizer-verdadeiro dos homens, no pode fazer outra coisa que se curvar outra lei. No aquela que faz acontecer as coisas, mas a lei da memria e da lembrana, o peso do que deve acontecer e que no pode no acontecer, uma vez

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    que j aconteceu. Da, a palavra empregada para designar essa althourgia divina, a palavra empregada para designar essa althourgia, humana caracterstica dos escravos, a pala-vra empregada para designar a althourgia do discurso ora-cular : (fai,nein / fai,nw) phainein / phaino, que quer dizer, no simplesmente eu digo, mas eu proclamo, eu afirmo, eu decreto. Ao mesmo tempo, eu anuncio e eu pronuncio; eu digo que isto ser, e que isto se faa.16 Ao passo que do outro lado o homologueo (o`mologe,w), eu reconheo, eu confesso, bem assim que se passou e, sob a lei do que se passou, eu no posso me esquivar. Um proclama e decreta, o outro confessa e testemunha.

    Bem, dito isto, fcil de ver em tudo isso dois modos de manifestao da verdade; duas althourgias que so profundamente diferentes e que podemos reconhecer e denominar muito facilmente: uma, aquela do deus, que totalmente reconhecvel, pois ela diz claramente o que ela a althourgia religiosa e ritual da consul-tao oracular; a outra tambm facilmente reconhe-cvel, ainda que no seja nominada no texto, uma vez que ela faz parte das realidades histricas relativamente novas poca em que Sfocles escreveu sua pea. So simplesmente regras de procedimentos judicirios. Es-tas regras de procedimentos judicirios novos, que as constituies e as leis do fim do VI sculo at o incio do V sculo a.C. aplicaram num certo nmero de ci-dades gregas e, em particular, em Atenas. Althourgia judiciria que comporta um inqurito de todos aqueles que sabem e que so obrigados a depor, sob pena de punies e que implicam a convocao de testemunhas, que implicam um interrogatrio e a confrontao de testemunhas e que implicam, ainda, de uma maneira

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    muito precisa, a possibilidade e o direito de torturar um escravo para que ele diga a verdade. Na cidade ate-niense, o escravo era aquele para quem a morte poderia ser colocada na balana em relao verdade. Podia-se amea-lo de morte para que ele falasse a verdade (pour quil dise-vrai). E era o nico do qual se podia arrancar a verdade, sob a ameaa de morte. E assim, esse face a face demonstra um certo nmero de procedimentos por meio dos quais, na Grcia clssica, se definiu e se sus-citou a manifestao do verdadeiro, segundo regras que pudessem autenticar esta manifestao e garanti-la.

    Que se tratam de duas formas determinadas ou de-limitadas de althourgia (assignables de althourgie), ns encontramos facilmente a confirmao num peque-no episdio que se encontra bem no incio da pea, ao menos na primeira metade, a saber: o episdio entre Creonte e dipo. Vocs sabem que, aps Creonte ter tra-zido baila o orculo inquietante, mas ainda equivocado do deus; aps ter chamado Tirsias a apresentar-se dian-te deles, Creonte se v acusado por dipo de ter criado um compl contra ele: Se voc trouxe um orculo ruim e se, sobretudo, voc fez chegar at aqui Tirsias que me acusa, que voc quer tomar o poder em meu lugar (voltaremos mais tarde sobre esse poder de dipo). Mas, neste momento, como termina, nesta cena, o conflito en-tre Creonte e dipo? Vocs sabem, Jocasta intervm. Ela sai do palcio e diz: Cessais vossa disputa!. E Creonte, nesse mesmo momento, prope fazer um juramento ao dizer que no foi ele que inventou a mensagem do deus ou que entrou em cumplicidade com Tirsias, para di-zer essas palavras ameaadoras em relao a dipo. E efetivamente, Creonte faz o juramento solene, dizendo:

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    No sou eu. Ora, v-se a um procedimento judicirio, procedimento judicirio mais antigo que o inqurito, o interrogatrio, etc. , por excelncia, o procedimento pelo qual, na maneira mais antiga, o chefe da aristocra-cia liquidava seus prprios conflitos: um jurava e, conse-quentemente, se expunha inteiramente vingana dos deuses se ele no dissesse a verdade e, nesse mesmo mo-mento, aquele diante do qual se prestava o juramento, se encontrava obrigado a suspender sua acusao e de no mais continu-la e se transmitia ao deus o cuidado de se vingar do acusado caso ele tenha mentido, ao rejeitar parcialmente a acusao. um procedimento judicirio perfeitamente definvel e, particularmente conhecido. E que, justamente, este procedimento de enquete, de inter-rogatrio e etc. que tem uma tendncia a reprimir... Esse episdio entre Creonte e dipo, e a maneira pela qual o conflito deles apaziguado, (provisoriamente apazigua-do); este episdio, no entanto, tem um papel comple-mentar (completif)17 e estrutural na gradao dos deuses e aos escravos. O orculo veridico do deus; o juramento, a veridico dos reis e dos chefes; e o testemunho, veridic-o dos outros, a veridico dos que servem.

    E eu creio, e a me deterei, que a grande tenso que existe entre a veridico dos deuses e a veridico dos escravos, a althourgia oracular e a althourgia dos testemunhos, esta grande tenso, vem do fato de que a althourgia oracular e a althourgia do testemunho dizem exatamente a mesma coisa. Os escravos no dizem nem mais nem menos que os deuses, ou melhor, eles o dizem mais claramente e, consequentemente, eles di-zem melhor. Mas, sobretudo, a althourgia do deus, como pode ela ter-se produzido e, pode ter-se produzido at o fim e se constituir enquanto o=rqon e=po, uma manifestao comple-

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    ta e inevitvel da verdade, se no houvesse a althourgia dos escravos. E isto se joga em dois nveis, seguinte maneira: primeiramente, para que a palavra proftica do deus seja le-vada ao seu termo e para que, efetivamente, o que ele havia predito no momento do nascimento de dipo: ele mata-r seu pai e dormir com sua me; para que esta palavra seja efetivamente verdadeira, o que teve que acontecer ne-cessariamente? Foi necessrio um certo nmero de coisas, no centro do qual o que encontramos? Bem, a mentira dos escravos! Pois, se, efetivamente, o escravo ao qual Jocasta havia dado a criana, dipo, tivesse feito o que lhe haviam dito, ele teria matado dipo. Mas, se ele no o matou, ele desobedeceu [ ordem]. Ele confiou (il a remis) a um ou-tro escravo e ele no o disse. O outro escravo o conduziu [dipo] a Corinto (il l a ramen Corinthe), o deu a Polbio e ali, durante toda a infncia de dipo, ele no disse nada. E quando dipo deixou Corinto para no matar seu pai e sua me, o escravo continuou a no dizer nada. Desobe-dincia, mentira, silncio... , graas a isto que a palavra proftica do deus pde, efetivamente, se realizar. , justa-mente, por que houve um jogo de verdade e de mentira, no mbito do discurso dos homens e do discurso dos escravos, que a palavra do deus pde ter sido verificada. E, de alguma forma, lanando mo no da pea, mas do mito ao qual ela se refere, a verdade do vaticnio (prediction) de Foi-bo no pde passar seno por meio das mentiras, do silncio e da desobedincia dos homens (na pu passer qu travers les mensonges, le silence, la dsobissance des hommes). porque existe este jogo da verdade que o deus chega finalmente a ...[inaudvel/algum tossiu e cobriu a palavra final].

    Mas, na prpria pea, o que se passa? Passa-se isso (e ns vimos ao longo de toda a pea): a palavra do deus no

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    chegava a ser acreditada; a palavra proftica, a palavra oracular, permanecia enigmtica e ningum conseguia interpret-la. E, consequentemente, ter-se-ia permane-cido l e no se teria sabido de nada (et, par consquence, on tait rest l et rien ne serait su) e dipo teria sido rei e ningum teria sabido que ele tinha matado seu pai e dor-mido com sua me. Da mesma forma, a palavra do adivi-nho: ele havia, entretanto, dito as coisas, mas o Coro no queria ouvi-lo e no o ouvindo, a verdade no poderia vir luz do dia. E foi necessrio, consequentemente, que houvesse esta althourgia prpria aos escravos; foi neces-srio que houvesse este procedimento de interrogatrio; foi necessrio que houvesse a lei da memria impondo-se aos escravos e forando-os (en les contraignant) a di-zer o que eles viram; foi necessria a sua presena e que eles mesmos estivessem l, presentes novamente sobre a cena, para que a prpria pea se desenvolvesse como uma althourgia e o que havia sido dito, numa sorte de ver-dade enigmtica e em suspense no incio da pea, viesse a ser a verdade inevitvel, qual dipo obrigado a se submeter e que os expectadores devem eles prprios re-conhecer. Sem, portanto, o dizer-verdadeiro (le dire-vrai [parrsias]) dos escravos, o dizer-verdadeiro dos deuses no teria se sustentado (le dire-vrai des dieux naurait pas eu prise) e a pea no poderia ter ocorrido. Foi neces-srio, ento, de uma parte, o dizer-falso dos escravos (le dire-faux des esclaves), para que o dizer dos deuses viesse a ser verdadeiro, e foi necessrio o dizer-verdadeiro dos escravos para que o dizer-verdadeiro incerto dos deuses (le dire-vrai incertain des dieux) se tornasse uma certe-za inevitvel para os homens. Eis, portanto, se desejam, o encadeamento do mecanismo alethrgico (mcanisme

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    althourgique) que enquadra a pea de Sfocles. Resta, evidentemente, o problema de dipo: o que significa esta ignorncia de dipo e qual a sua ligao com esses dizeres-verdadeiros (ces dire-vrais) que o envolviam e o ameaavam e que, finalmente, o obrigaram a se curvar ao seu destino.

    ***Dito isto, Foucault, agradece a todos, dizendo que vol-

    taria a esse assunto na prxima aula.

    Transcrio e traduo do francs por Edelcio Otavianni.

    Notas do tradutor1 Du Gouvernement des Vivants. Cours au Collge de France (1979-1980). Transcrio realizada a partir dos arquivos sonoros depositados no IMEC (Institut de Mmoire et tudes Contemporaines) situado na Abadia dArdennes em Caen, Normandia. Este trabalho de transcrio e traduo foi feito sem nenhum recurso ao manuscrito, sob custdia de Daniel Defert, e, portanto, sujeito a certas imprecises, faltando-lhes os procedimentos de autenticao prprios s publicaes realizadas dos Cursos de Michel Foucault. Este trabalho foi realizado com vistas a uma pesquisa particular, mas que, graas ao empreendimento do Prof. Edson Passetti, pde tambm ser partilhado com outros leitores. Na medida do possvel, procurei redigir os vocbulos em grego, que Foucault utiliza em larga escala, seguido de sua transliterao. Aqueles cuja compreenso foi difcil, por causa da impossibilidade de se comparar com o manuscrito, foram substitudos por uma indicao salientando que se trata de uma expresso grega de difcil compreenso. Procurei tambm manter o original francs, cada vez que a traduo pediu a adaptao de uma expresso prpria lngua francesa lngua portuguesa. Aproveito a ocasio para agradecer a todas as pessoas que

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    trabalham no complexo abacial, do acolhimento, passando pela hospedagem e culminando no competente e simptico atendimento bibliotecrio e de acesso aos arquivos. Pessoas estas que fizeram dos dias passados ali uma lembrana inesquecvel e uma riqueza incalculvel para mim. 2 par lui mme o que parece dizer, uma vez que foi difcil de entender a finalizao da frase. Pressupe-se isso dentro do contexto.3 A palavra althourgique empregada por Foucault parece ter sua raiz no termo: a=lhqourgh,,, que quer dizer: qui agit franchement (que age francamente). Cf. Heraclite (gramtico). Allegories Homriques, 67 (a=lhqh,, e=rgon) apud Anatole Bailly. Dicionrio Grec-Franais. Paris, Hachette, 2000, p. 77. Mais adiante, como veremos, ele emprega o termo althourgia/althourgie no sentido de ritual de manifestao da verdade, que traz consigo, um agir franco. Por outro lado, segundo o mesmo dicionrio, a palavra: leitourgi,a, att. lh|tourgi,a,,,, a ((h`), num 4 sentido, pode significar servio do culto: leitourgi,a pro. tou. qeou. (Arist. Pol. 7, 10, 11) apud Anatole Bailly. Dicionrio Grec-Franais. Paris. Hachette, 2000, p. 1178. H quase uma fuso dos dois sentidos presentes nas palavras de som aparente, mas razes diversas (aquele que age francamente e serve ao culto (aos deuses). 4 Indico desta forma a palavra que se apresentou inaudvel ou incompreensvel para mim durante a transcrio.5 Aqui as expresses se sobrepem. Resumi o que acredito ter sido dito. A ideia, porm, que Plato desenvolve, num determinado texto, uma reflexo sobre esse tema ao qual Foucault se reportar mais tarde. 6 Palavra de difcil compreenso, mas que no contexto d entender algum frgil.7 O conjunto da reflexo.8 Foi-bo (outro nome dado a Apolo) e Tirsias (o que est em face de [?]).9 Sfocles. dipo-Rei v. 408.10 , / eis (que trazem) o divino adivino. (v. 298).

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    11 dipo-Rei, v. 1123.12 Aqui, Foucault emprega o termo mancie, em francs, que provm do grego manteia (faculdade de prever), da a expresso: quiromancia, em portugus, para dizer o dom de ler o futuro por meio das mos. Em A verdade e as Formas Jurdicas, Foucault fala de Tirsias como o Qeio ma,nti (advinho) cf. Michel Foucault.A verdade e as formas jurdicas. Traduo de Roberto de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro, NAU, 2009, p. 34. 13 Na conferncia, Foucault utiliza a seguinte frase: il faut chasser les souillures, il ne faut pas laisser crotre la souillure jusquau point en quelle soit incurble. 14 Aqui, Foucault utiliza um vocabulrio prximo ao jurdica: Uma espcie de ordem imperativa que engaja algum a uma prescrio de campo jurdico: Sommer qqn de () comparatre = assigner, citer cf. Le Nouveau Petit Robert: dictionnaire de Langue Franaise. V. Sommer. Paris, Dictionnaire Robert, 2003. 15 H uma dificuldade em traduzir esta expresso. A traduo foi feita de maneira livre, obedecendo ao contexto da frase, mas guardando ao lado o texto original. 16 La Dictionnaire Bailly apresenta ao menos trs definies para fai,nw: 1. fazer brilhar; 2. fazer aparecer, tornar visvel; mas tambm: 3. fazer conhecer, indicar, com os seguintes sentidos: a) revelar: ge,no, Soph. dipo-Rei 1059, seu nascimento. cf. Anatole Bailly. Dictionnaire Grec-Franais. v. fai,nw. Paris, Hachette, 1950, p. 2049).17 Petit Robert. Completif: se dit des propositions qui jouent le role de cmplement. Paris, Robert Dictionnaires, p. 491.

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    ResumoMichel Foucault prossegue no seu deslocamento analtico sobre a relao entre o exerccio do poder e a manifestao da verdade. Ao analisar a tragdia de dipo-Rei, Foucault problematiza as maneiras pelas quais o ver e o dizer de deuses, reis e escravos compem a manifestao ritual da verdade (althourgia). Nessa perspectiva, afirma, ento, que as relaes entre poder e saber no se inscrevem apenas no mbito da constituio de conhecimentos teis ao governo dos homens, mas tambm nas maneiras pelas quais se produz uma verdade e como ela manifesta nas prticas de governo.palavras-chave: althourgia, governo, verdade.

    Abstract Michel Foucault continues on his analytical shift about the relation between the exercise of power and the manifestation of truth. In analyzing the tragedy of Oedipus, the King, Foucault problematizes the seeing and saying of gods, kings and slaves as components of the ritual manifestation of truth (althourgie). Through this perspective, he stands that the relation between power and knowledge does not happen only in the production of useful knowledge to the governance of men but also by the means truth is produced and how it is manifested in the government practices. keywords: althourgie, government, truth.

    Indicado para publicao em 23 de novembro de 2010.

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