Veiga-Danielle TMest Psic Governo Rose revisão 2010 (1)

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    Universidade do Estado do Rio de JaneiroCentro Biomdico

    Instituto de Medicina Social

    Danielle Silva Veiga

    A Psicologia como tecnologia de governo da subjetividade contempornea

    Rio de Janeiro2010

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    Danielle Silva Veiga

    A Psicologia como tecnologia de governo da subjetividade contempornea

    Dissertao apresentada, como requisito parcialpara obteno do ttulo de Mestre, ao Programade Ps-Graduao em Sade Coletiva daUniversidade do Estado do Rio de Janeiro. reade concentrao: Cincias Humanas e Sade.

    Orientadora: Prof.a. Dra. Cludia Maria Passos Ferreira

    Rio de Janeiro2010

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    CATALOGAO NA FONTEUERJ /REDE S IRIUS/CBC

    Autorizo, apenas para fins acadmicos e cientficos, a reproduo total ou parcial desta dissertao,

    desde que citada a fonte.

    _______________________________________ _________________________

    Assinatura Data

    V426 Veiga, Danielle Silva.A psicologia como tecnologia de governo da subjetividade

    contempornea / Danielle Silva Veiga. 2010.108f.

    Orientadora: Cludia Maria Passos Ferreira.Dissertao (mestrado) Universidade do Estado do Rio de

    J aneiro, Instituto de Medicina Social.

    1. Psicologia Teses. 2. Estado Teses. 3. Subjetividade Teses. 4.

    Governo. I. Ferreira, Cludia Maria Passos. II. Universidade doEstado do Rio de J aneiro. Instituto de Medicina Social. III. T tulo.

    CDU 159.9:35

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    Danielle Silva Veiga

    A Psicologia como tecnologia de governo da subjetividade contempornea

    Dissertao apresentada, como requisitoparcial para obteno do ttulo de Mestre,ao Programa de Ps-Graduao em SadeColetiva da Universidade do Estado do Riode Janeiro. rea de concentrao: CinciasHumanas e Sade.

    Aprovado em 29 de maro de 2010Banca Examinadora:

    ______________________________________________________________________Prof. Dr. Cludia Maria Passos Ferreira (Orientadora)Instituto de Medicina Social UERJ

    __________________________________________________________

    Prof. Dr. Jane de Arajo RussoInstituto de Medicina Social UERJ

    __________________________________________________________Prof. Dr. Luciana Vieira CalimanInstituto de Psicologia UFRJ

    __________________________________________________________Prof. Dr. Francisco Javier Guerrero OrtegaInstituto de Medicinal Social UERJ

    Rio de Janeiro2010

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    DEDICATRIA

    Quero dedicar este trabalho ao meu av Joaquim Silva (in memorian), que teria muito

    orgulho de saber at onde consegui chegar.

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    AGRADECIMENTOS

    Quero agradecer em primeiro lugar a Deus por ter me permitido a inspirao deste

    trabalho, comeando por uma idia confusa, partindo da minha prtica profissional como

    psicloga hospitalar e culminando nessa tese, fruto das minhas leituras e do refinamento que

    consegui obter a partir das orientaes.

    Agradeo tambm minha orientadora Cludia Passos, pela pacincia e por discutir

    comigo cada aspecto do trabalho, apostando na minha escolha terica. Foi muito bom ver o

    trabalho finalizado!

    Agradeo aos professores que participaram da minha banca de qualificao, Arthur

    Ferreira e Jane Russo, que foram meus professores durante o Mestrado e puderam me ajudar

    na caminhada desde o princpio, dando sugestes de bibliografia e de recortes tericos

    possveis.

    Agradeo minha famlia e aos amigos que sempre torceram para que eu passasse na

    prova do IMS, em especial, Mariana Bteshe que me deu todo apoio possvel, se

    disponibilizando para me orientar no que fosse necessrio.

    Agradeo aos meus colegas de mestrado, Marcos, Marina, Ana e Cynthia e ao Antnio e

    Miriam do doutorado do IMS. Foi muito legal a fora que vocs me deram. Foi bom

    compartilhar idias e v-los presentes na minha qualificao!

    Agradeo ao pessoal do Hospital Pedro Ernesto, onde eu trabalho, especialmente

    Elizabeth Maria Pini Leito, minha supervisora, que se props a ler minha dissertao e

    apontar alguns erros e Sandra Fortes, tambm minha supervisora, que me apoiou para que

    eu fizesse mestrado.

    Obrigada Leandra, que silenciosamente torceu pela minha vitria sem nem mesmo

    entender nada de Psicologia e Flvia Brasil, que disse que queria um dia ter essa minha

    coragem de fazer mestrado. Todas vocs foram um grande apoio na hora do desabafo.Obrigada a todos os annimos (bibliotecrios, secretrias, colegas) que me ajudaram

    nessa jornada. Aqui est o produto de tanto esforo!

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    A arte de viver, hoje, teraputica.

    Nikolas Rose

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    RESUMO

    VEIGA, Danielle Silva. A Psicologia como tecnologia de governo da subjetividade

    contempornea: um estudo sobre a Escola Inglesa de Governamentalidade. 2010. 108f.Dissertao (Mestrado em Sade Coletiva) Instituto de Medicina Social, Universidade doEstado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.

    O objetivo da dissertao explorar o uso da Psicologia como tecnologia de poder

    no governo das sociedades contemporneas a partir das anlises sobre o governo da Escola

    Inglesa de Governamentalidade. Primeiro, investigamos o conceito de governo em Foucault e

    sua importncia na compreenso das formas contemporneas de governo. Partindo da noo

    de governo como a conduta da conduta ou uma ao sobre aes, Foucault prope uma

    genealogia das formas de governar os homens nas sociedades ocidentais, que sedesenvolveram, com tecnologias que tornaram as prticas de poder cada vez mais indiretas,

    sutis e refinadas. A partir das formulaes foucaultianas, buscamos entender como a forma de

    governo contempornea est imbricada a outros campos da atividade humana, em particular

    as tecnologias psicolgicas. Os estudos sobre a governamentalidade da Escola Inglesa

    propem que o governo nas sociedades contemporneas est baseado na relao entre as

    racionalidades polticas, os programas e as tecnologias de governo. Em nossa anlise,

    apresentamos o papel da psicologia como tecnologia de governo e a funo da expertise nas

    aes governamentais. Os experts so aqueles que promovem a mediao entre as metas dasracionalidades polticas e os valores que estas desejam infundir e os desejos e aspiraes

    pessoais dos indivduos. Dentro do grupo de experts, destacamos os psiclogos, cujo saber

    especfico alterou o modo como os indivduos se auto-representam e representam o mundo.

    Por fim, apresentamos os aspectos centrais do saber e das prticas da Psicologia que

    contriburam para que a Psicologia se tornasse um instrumento das formas de governo

    contemporneas, na perspectiva da Escola Inglesa de Governamentalidade.

    Palavras-chave: Foucault, Michel. Governo. Psicologia.

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    ABSTRACT

    The objective of the dissertation is to explore the use of Psychology as a technology ofpower in the government of contemporary societies. At first, we investigate the concept of

    government in Foucault and its importance in the understanding of contemporary forms of

    government. Starting from the notion of government as the conduct of conduct or an action

    over other actions, Foucault proposes a genealogy of forms of government in western

    societies, that are developed as technologies that turn the pratices of power each time more

    indirect, subtle and refined. Based on foucaltian formulations, we have searched to understand

    how the contemporary form of government is linked a other fields of human activity, in

    particular, psychological technologies. This question is approached according to the analysesof the English School of Governmentality. English School studies in Governmentality

    propose that governing in contemporary societies is based on the relation among political

    rationalities, programmes and technologies of government. In our analysis, we present the role

    of Psychology as a technology of government and the function of expertise in governmental

    actions. Experts are those who promote a mediation role between the targets of political

    rationalities and values they wish to infuse and the desires and aspirations of individuals.

    Among the group of experts we underline psychologists, whose specific knowledge has

    altered the way in which individuals represent themselves and the world. At last, we analyze

    the main features of knowledge and practices of psychology that have contributed for

    Psychology to become a tool of contemporary forms of government, in the perspective of the

    English School of Governmentality.

    Keywords: Foucault, Michel. Government. Psychology.

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    SUMRIO

    INTRODUO.................................................................................................. 9

    1 A NOO DE GOVERNO EM FOUCAULT............................................... 16

    1.1 Diferentes formas de poder............................................................................... 18

    1.2 Formas de exerccio do poder: refinamento das tcnicas de poder............... 20

    1.3 As artes de governar.......................................................................................... 26

    1.4 A governamentalizao do Estado................................................................... 27

    1.4.1 O poder pastoral: matriz do governo moderno................................................. 28

    1.4.2 O dispositivo diplomtico-militar e o dispositivo de polcia............................... 32

    1.4.3 O liberalismo clssico.......................................................................................... 34

    1.4.4 O neo-liberalismo: escola Ordoliberal e a escola de Chicago............................. 37

    2 O GOVERNO NAS SOCIEDADES CONTEMPORNEAS........................ 42

    2.1 A governamentalidade nos estudos ps Foucaultianos................................... 42

    2.2 O governo das sociedades liberais avanadas................................................. 46

    2.2.1 Racionalidades polticas...................................................................................... 46

    2.2.2 Tecnologias de governo...................................................................................... 53

    2.2.2.1 Tcnicas risco e seguro....................................................................................... 55

    2.2.2.2 Tcnicas de inscrio (ao distncia).............................................................. 60

    2.2.2.3 Tcnicas do self................................................................................................... 62

    2.2.3 O indivduo empreendedor.................................................................................. 65

    2.2.4 Fenmenos de traduo....................................................................................... 69

    2.2.5 O papel da expertise nas novas formas de governo............................................. 72

    3 O PAPEL DA PSICOLOGIA NO GOVERNO DAS SOCIEDADES

    CONTEMPORNEAS..................................................................................... 77

    3.1 Psicologia e governo na tica de Nikolas Rose ................................................ 77

    3.2 Todos ns temos um self.................................................................................... 81

    3.3 A Psicologia e a dimenso tica da existncia .................................................. 873.4 De onde vem o poder da Psicologia?................................................................ 93

    4 CONCLUSO..................................................................................................... 101

    REFERNCIAS.................................................................................................. 105

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    INTRODUO

    Nos estudos clssicos da histria da psicologia, como os propostos por Schultz e

    Schultz (2005), o surgimento da psicologia como campo disciplinar1 descrito a partir da

    Histria das idias que remonta Grcia Antiga e segue at a constituio da psicologia como

    cincia e de seus sistemas tericos2. Esses estudos buscam reconstruir a linha temporal dos

    principais precursores que j desenvolveram estudos sobre a psicologia humana e que foram

    se aprimorando at chegar ao que hoje denominamos de cincia da psicologia. Segundo essa

    reconstruo histrica, a psicologia teria surgido no laboratrio como a cincia que investiga

    o funcionamento psicolgico normal dos seres humanos. A psicologia surge com vistas a

    pesquisar um objeto natural, dado, preexistente, que o psiquismo humano. Assim posto,

    conclui-se que o objeto de estudo da psicologia foi cientificamente descoberto, quando

    obtivemos as tcnicas adequadas a investigao do psiquismo (ROSE, 1985). Nessa

    perspectiva, o emprego social da especialidade psicolgica foi um efeito inesperado e fruto do

    acaso dos avanos do saber sobre a mente normal.

    Contudo, alguns autores vm discordando desta perspectiva, recusando o paradigma

    internalista de reconstruo linear da histria, e propondo uma outra hiptese para a

    consolidao da psicologia como disciplina cientfica. Para autores como Rose (1985),

    Gergen (1985) e Miller e OLeary (1987) buscam reconstruir uma histria externalista , que

    d nfase s correlaes com o contexto social em sua anlise, o surgimento da psicologia

    como campo disciplinar est diretamente relacionado a sua absoro no tecido social.

    Segundo Rose (1985), a constituio da psicologia como disciplina cientfica foi acelerada ou

    mesmo induzida por certos problemas prticos relacionados demanda social por interveno

    nos indivduos patolgicos e no pelos estudos dos indivduos normais. Os indivduos que por

    uma razo ou outra no funcionavam normalmente em relao normas institucionais

    foram tomados como alvo dos agentes psi. E foi a partir da interveno em indivduos

    desajustados que a psicologia se consolidou e se expandiu como campo disciplinar. Portanto,

    1 Existe uma diferena entre a psicologia como cincia (teorias e prticas psicolgicas) e a psicologia comoforma de mitologia (entendimento de si mesmo em termos psicolgicos). Este trabalho aborda as duas vertentesmas no se aprofunda nesta discusso. Para entender melhor sobre o assunto, sugerimos a dissertao de Ferreira(2000).2 A metodologia dos estudos das histria das idias se caracteriza pela busca no passado de primrdios do tema pesquisado,enxergando-o em outras prticas e traando uma linha contnua at os dias atuais. Na sistematizao histrica proposta porSchultz e Schultz (2005), um cnone da histria da psicologia, os resqucios da psicologia remontam filosofia de Plato,

    passando pela medicina de Hipcrates, at chegar ao magnetismo animal e frenologia do sculo XIX. Busca-se nessesestudos o embrio do pensamento psicolgico que viria a se desenvolver mais tarde com a existncia dos mtodos cientficosadequados.

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    essa anlise prope uma inverso de ambas as hipteses dos estudos tradicionais em histria

    da psicologia: A primeira a de que foi a partir dos estudos de casos patolgicos que surgiram

    as teorias sobre psicologia normal dos indivduos e a segunda a de que foi a partir das

    intervenes prticas dos agentes psi que se construram as teorias psicolgicas.

    A anlise externalista dos autores citados tem como um dos pontos de partida a

    constatao de que foi a partir das duas Grandes Guerras Mundiais que houve um incremento

    crucial no emprego de especialistas psi em um grande nmero de prticas administrativas e de

    reforma associadas ao governo dos estados. Tanto os agentes psi como uma variedade de

    tcnicas psicolgicas passaram a estar envolvidos na avaliao e diagnstico de problemas da

    conduta individual e grupal em instituies como hospitais, escolas, fbricas e o exrcito. Um

    conjunto de especialidades psicolgicas surgiu em torno destes campos institucionais de

    interveno: a psicologia clnica, a psicologia industrial, a psicologia escolar, entre outras.Houve uma rpida disseminao no tecido social desses novos saberes psicolgicos e das

    tcnicas de representao e regulao dos problemas da vida pessoal e social (ROSE, 1985).

    Com a formao da disciplina psicolgica, com suas credenciais e campo bem

    definidos, a psicologia buscou se estabelecer em instituies, alegando habilidade de lidar

    com os problemas de conduta disfuncional (ROSE, 1985). Porm, o que a psicologia fez em

    relao s condutas desajustadas no foi meramente encaix-la em teorias, conceitos e

    modelos, mas utilizar uma srie de mtodos de observao, investigao e experimentao

    que viriam a contribuir com o surgimento de fatos e evidncias psicolgicos, fornecendo umabase slida para a construo de explicaes atravs da anlise dos efeitos dos

    comportamentos. Este empreendimento a que se props a psicologia conferiu a ela o status de

    cincia. Consistiu num projeto intrincado de representaes e intervenes, resultante de

    especulaes, clculos, predies e construes de modelos, que organizaram as observaes

    e estimularam novas observaes. Favoreceu tambm a inveno de tecnologias capazes de

    criar novos fenmenos. A psicologia nasceu justamente da combinao da construo de

    modelos de representao do objeto que observa e prticas de interveno. E, segundo Rose

    (1985), o que resultou desta combinao de um objeto terico com um alvo experimental foiuma nova entidade: o sujeito psicolgico.

    O objetivo da dissertao mostrar a relao entre o saber da psicologia e sua

    apropriao como tecnologia de governo. Existem muitas formas diferentes de governar:

    podemos dizer que o professor governa o aluno, que o mestre governa o discpulo e que o

    padre governa os fiis. Mas, uma forma de governo caracterstica das sociedades atuais a

    que se d atravs de saberes cientficos, que detm um status de saber verdadeiro atravs de

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    experimentos sobre os fenmenos. Sabendo como se comporta cada fenmeno, a cincia pode

    orientar qual a melhor forma de lidar com ele. Com a psicologia no diferente. Enquanto

    saber legitimado em nossa sociedade, a psicologia uma das principais ferramentas no

    governo da subjetividade contempornea. O psiclogo um dos principais experts do

    comportamento, junto com o psiquiatra e o psicanalista. Sendo assim, a psicologia tambm

    influenciou profundamente o tipo de pessoa que somos e o campo de possibilidade de ao

    que possumos. Mas, para compreender melhor o papel da psicologia na cena atual,

    precisamos explorar melhor o que entendemos como governo.

    Os estudos sobre a governamentalidade remontam a Foucault. Para Foucault, o

    governo a conduo da conduta (FOUCAULT, 1982). Governar significa guiar,

    direcionar ou levar algum a uma dada direo ou objetivo, e inclui um tipo de clculo de

    como isto deve ser feito. A palavra conduta se refere a comportamentos ou aes. Nessesentido, podemos concluir que:

    o governo implica qualquer tentativa de moldar, com algum grau de deliberao, aspectos denosso comportamento, de acordo com um conjunto particular de normas e para umavariedade de fins3 (DEAN, 1999, p.10)

    Segundo Dean (1999), o governo uma atividade racional4 e calculada, que pode ser

    levada adiante por vrias autoridades e agncias, empregando formas variadas de saberes que

    moldam nossa conduta ao operar sobre nossos desejos, interesses e crenas, com resultados

    que podem ser inesperados. A noo de governo pode ser estendida ao modo pelo qual um

    indivduo questiona ou problematiza a prpria conduta para que possa govern-la melhor. Em

    outras palavras, a noo de governo inclui no apenas a forma pela qual exercemos autoridade

    sobre os outros ou como governamos entidades abstratas (o pas, a casa), mas como

    governamos a ns mesmos (DEAN, 1999). A idia do governo de si refere-se a uma pessoa

    autnoma e capaz de monitorar e regular vrios aspectos da prpria conduta. Nesse sentido,

    presumimos que os atores sociais sejam capazes de liberdade. Se o governo aquilo que

    molda o campo de ao do indivduo, ele tenta mold-lo na direo da liberdade. Osgovernados so livres quando podem agir e pensar de diversas formas e, muitas vezes, formas

    no previstas pelas autoridades que os governam. Os modos de governo que trabalham atravs

    e a partir da liberdade e das capacidades dos governados podem ser definidos como modos

    3 Government entails any attempt to shape with some degree of deliberation aspects of our behavior according withparticular sets of norms and for a variety of ends.4 O termo racional empregado aqui quer dizer qualquer tipo de pensamento que visa ser claro, sistemtico e explcito sobresua existncia interna e externa (DEAN, 1999).

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    liberais de governo. Estes modos liberais de governar concebem a liberdade dos governados

    como um meio tcnico de assegurar os objetivos do governo. Quer dizer, as mentalidades

    liberais de governo, normalmente tentam definir a natureza, fonte, efeitos e possveis

    utilidades das formas de pensar e agir dos indivduos. Ao mesmo tempo em que o indivduo

    livre, ele est sujeito ao governo. O exerccio da autoridade em nossas sociedades pressupe a

    existncia do indivduo livre com seus prprios desejos, direitos, interesses e escolhas. No

    entanto, sua sujeio tambm condio de sua liberdade: para que possa agir livremente, o

    sujeito primeiro precisa ser moldado, guiado e modelado como algum capaz de exercer essa

    liberdade responsavelmente atravs de sistemas de poder. nesse sentido que Dean (1999)

    afirma que a sujeio e a subjetivao esto sobrepostas, uma a condio da outra.

    A relao entre sujeio e subjetivao torna-se particularmente complexa quando

    analisamos o governo liberal. As prticas do governo liberal so prticas de liberdade nosentido que elas associam e dissociam continuamente a sujeio e a subjetivao, a

    dominao e a fabricao de identidades. De um lado, essas formas de governo contratam,

    consultam, negociam, criam parcerias e mesmo do poder e ativam formas de agncia,

    liberdade e escolha dos indivduos. Do outro, elas estabelecem normas, padres, indicadores

    de performance, controle de qualidade e padres ouro para monitorar, medir e tornar

    calculveis as performance dessas vrias agncias. (DEAN, 1999).

    H duas formas de analisarmos a iliberalidade5 do sujeito livre. A primeira diz

    respeito s prticas e racionalidades que dividem as populaes e excluem certas categorias depessoa do status de pessoa racional e autnoma, o que no ser abordado aqui. A outra forma

    o modo pelo qual o sujeito livre do governo liberal est ele mesmo dividido, pois a condio

    de uso responsvel e maduro da liberdade requer a dominao de certos aspectos do self.

    Valverde (1996 apud DEAN, 1999) afirma que existe uma forma de despotismo no corao

    do governo liberal anterior a qualquer diviso entre os que so capazes de tolerar as liberdades

    e responsabilidades da subjetividade madura e aqueles incapazes deste feito. Mas, esta diviso

    tambm supe que aqueles que tm dificuldades tambm podem se aprimorar. Dentro das

    formas liberais de governo, h uma longa histria de pessoas, que por uma razo ou outra, sotidas como desprovidas dos atributos necessrios para se exercer a liberdade responsvel,

    sendo ento, sujeitas a todos os tipos de intervenes disciplinares. Esta lista incluiria pessoas

    que conhecemos como: indigentes, degeneradas, homossexuais, delinqentes, perigosas ou,

    de forma geral, as minorias (DEAN, 1999).

    5 Iliberality, no original.

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    Foi dessas pessoas, em primeiro lugar, que a psicologia se ocupou. nesse sentido que

    Rose (1985) afirma que o destino da psicologia no era se tornar uma prtica clnica, mas sim

    uma tcnica administrativa:

    Desde o princpio at hoje, as psicologias individual, diferencial e psicomtrica buscam iralm de uma teoria do funcionamento psicolgico na direo de um meio de diferenciao(...). Derivar uma teoria da normalidade de uma concepo da normatividade dos processosde vida e da incidncia de patologia uma coisa. Derivar uma teoria da normalidade a partirda normatividade de uma mdia estatstica e da incidncia de variaes outra. Esse

    problema exacerbado se acontecer na prtica e por meio de uma tcnica que depende naomisso daquilo que os indivduos partilham, se atendo apenas quilo que os diferencia. E o

    problema ainda mais exacerbado quando o que conta como anormalidade definido poruma norma de adaptao s convenes de uma ordem scio-econmica. A sade, para a

    psicologia do indivduo no tanto a vida no silncio dos rgos quanto a vida no silnciodas autoridades (ROSE, 1985, p.2316)

    Segundo Rose (1998), a psicologia ganhou enorme poder social nas democracias

    liberais porque compartilha de sua tica de competncia e autonomia e porque prometesustent-la, respeit-la e restaur-la aos cidados que vivem nessas democracias liberais. A

    psicologia desenvolveu tecnologias da individualidade para produo e regulao do

    indivduo do liberalismo que o indivduo livre para escolher.

    A psicologia se ocupou no apenas regulao dos indivduos anormais, como no incio

    de sua criao como campo disciplinar, mas tambm, passou a se ocupar dos que esto

    atualmente frustrados pela prpria normalidade78 (ROSE, 1989, p. 218). Nos ltimos

    sessenta anos, o territrio da psicologia foi expandido para explorao, cultivo e regulao

    dos indivduos normais, o que resultou na incluso de tcnicas de valorizao do crescimentoe do potencial humano, abrindo espao para novas modalidades de terapia que prometem no

    apenas o alvio dos sintomas mas transcendncia da vida cotidiana.

    O que observamos nas sociedades liberais contemporneas que a linguagem

    psicolgica se expandiu para alm do consultrio e dos espaos privados tradicionais das

    prtica psi, tornando-se parte da mdia, das revistas com colunas de aconselhamento, dos

    documentrios de televiso e dos programas de rdio de consulta ao expert, com os quais

    partilhamos nossas dvidas mais ntimas e somos publicamente analisados. Para Rose (1989)

    6 From its inception up until today, individual psychology, differential psychology, psychometrics sought to extrapolate atheory of psychological functioning from a means of differentiation(...). To derive a theory of normality from a conception ofthe normativity of a life process and the incidence of pathology is one thing. To derive a theory of normality from thenormativity of a statistical average and the incidence of variations from it is another. This problem is exacerbated if it takes

    place within a practice; and by means of a technique, which depends upon discarding that which individuals share andattending only to that which differentiates them. And the problem is exacerbated further when what counts as abnormality isset by a norm of adaptation to the conventions of a socio-economic order. Health, for the psychology of the individual, is notso much life in the silence of the organs as life in the silence of the authorities

    7 Frustrated by their own normality.8 Ou seja, aquelas pessoas que desejam aprimorar suas capacidades apesar de no apresentarem nenhuma patologia.

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    isto no necessariamente ruim. Ele afirma que as relaes entre as psicoterapias e o poder

    poltico no revelam uma devastao de si mesmo, ameaando sua segurana, mas a

    fabricao de sujeitos autnomos como um elemento chave nas anlises da sociedade (ROSE,

    1989)

    Nas sociedades contemporneas, os indivduos habitam uma rede de montagens que

    pressupem, fabricam e estabilizam regimes particulares de pessoa, entendidos como um

    espao psicologicamente moldado dentro de ns, embora sua relao com o saber psi legtimo

    seja de bricolagem, traduo e hibridismo. esse meio subjetivado que fornece os repertrios

    ticos para aqueles que se tornaram profissionais de si mesmos, experts da prpria

    existncia. Esse espao psicolgico dentro de ns, entre a materialidade biolgica do corpo

    com seus nervos e fluidos e a complexidade moral da conduta humana com seus dilemas entre

    bom e mau, certo e errado, o que chamaremos de self:

    E, de agora em diante, todas as nossas receitas de estilos de vida, nossos sistemas ticos,nossas receitas para espantar o sofrimento e aprimorar a ns mesmos e nossa conduta,nossos julgamentos dos outros, tero que levar em conta as influncias do, e os impactossobre esse espao psicologicamente moldado (ROSE, 1989, p. 2669)

    O objetivo do trabalho investigar de que forma a psicologia se tornou uma tecnologia

    de poder das sociedades contemporneas e como se tornou aliada aos sistemas de governo das

    pessoas, desde o sculo XIX, com sua disciplinarizao, at os dias de hoje, tornando-se uma

    pea fundamental no modo pelo qual somos governados. A dissertao est dividida em trs

    captulos.

    No primeiro captulo, apresentamos, detalharemos o surgimento do conceito de

    governo na obra de Foucault e sua importncia na compreenso das formas contemporneas

    de governo. Partindo da noo de governo como a conduta da conduta ou uma ao sobre

    aes, Foucault prope uma genealogia das formas de governar os homens nas sociedades

    ocidentais, que se desenvolveram utilizando tecnologias que tornaram as prticas de poder

    cada vez mais indiretas, sutis e refinadas. A partir das formulaes foucaultianas, buscamos

    entender como a forma de governo contempornea est imbricada a outros campos da

    atividade humana, em particular as tcnicas psicolgicas.

    9 And from now on, all our recipes for styles of life, our ethical systems, our recipes of assuaging misery and for improvingourselves and our conduct, our judgements of others, will have to take account of the influences of, and impacts upon, this

    psy shaped space.

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    No segundo captulo, abordamos as anlises da Escola Inglesa de

    Governamentalidade. Os estudos sobre a governamentalidade propem que o governo nas

    sociedades contemporneas est baseado na relao entre as racionalidades polticas, os

    programas e as tecnologias de governo. Em nossa anlise, investigamos o papel da psicologia

    como tecnologia de governo e a funo da expertise nas aes governamentais. Os experts

    so aqueles que promovem a mediao entre as metas das racionalidades polticas e os valores

    que estas desejam infundir e os desejos e aspiraes pessoais dos indivduos. Dentro do grupo

    de experts, destacamos os psiclogos, cujo saber especfico alterou o modo como os

    indivduos se auto-representam e representam o mundo.

    No terceiro captulo, buscamos compreender o papel que a psicologia ocupa nas

    sociedades contemporneas. Apresentamos os aspectos centrais do saber e das prticas da

    psicologia que contriburam para que a esta se tornasse um instrumento tecnolgico dasformas contemporneas de governo. Nossa anlise privilegia as teses defendidas por Nikolas

    Rose, que tem se dedicado em seus estudos a investigar o papel da psicologia como

    tecnologia de governo das subjetividades contemporneas.

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    1 A NOO DE GOVERNO EM FOUCAULT

    O objetivo do captulo apresentar os estudos de Foucault sobre as formas de governo

    das pessoas, inaugurados no curso Segurana, Territrio e Populao (FOUCAULT,

    2008a), destacando as.noes de governo e governamentalidade, e sua relao com os modos

    de subjetivao nas sociedades contemporneas. A obra de Foucault est dividida em trs

    fases, de acordo com eixos temticos: Eixo do Saber e da Verdade (anos 60); Eixo do Poder

    (anos 70) e Eixo da tica (anos 80). Privilegiamos, em nossa anlise, o eixo do poder, no qual

    podemos identificar dois deslocamentos: O primeiro, no incio dos anos 70, com o uso da

    metfora da guerra para entender o poder; O segundo na segunda metade dos anos 70, com a

    problematizao do poder como governo (CALIMAN, 2002). Esse captulo est centrado na

    ltima dessas problematizaes: o poder como governo dos homens. a partir dessa noo degoverno que posicionamos nosso ngulo de viso sobre a psicologia, analisando-a como uma

    das tecnologias pelas quais se exerce o governo dos homens.

    A idia de governar os homens influenciando suas condutas no nova e podemos

    encontr-la mesmo na Antiguidade. Contudo, o que Foucault denomina como governo

    algo mais especfico. Para Foucault (2008a), governar conduzir a conduta das pessoas,

    influenciar suas aes em vista de um objetivo consciente. Essa prtica de governo das

    pessoas teve sua principal influncia no modelo do pastorado hebreu que postula a obedincia

    da ovelha aos comandos do pastor. O governante uma espcie de pastor que conduz osgovernados como ovelhas para uma meta que seja boa para toda a populao e para cada um

    em particular10. Quando se fala em governantes, no se fala apenas nos polticos ou

    representantes formais do Estado. Todos podem governar e ser governados. O professor, o

    mdico, o psiclogo, o arquiteto, tambm governam pois com suas intervenes, buscam

    levar o indivduo (seu cliente) a um determinado tipo de comportamento que crem ser o

    melhor.

    A partir do sculo XVIII, houve uma demanda por novas formas de governar as

    pessoas. Com o declnio da soberania e da disciplina, surge de uma forma de poder, na qual opoder exercido pelas autoridades era mais refinado e sutil, no usando apenas (ou

    principalmente) a represso e se dirigindo no mais a indivduos, e sim a populaes. As

    formas de poder at ento existentes que eram a disciplina e a soberania no foram

    10 Esta idia ser desenvolvida com detalhes mais adiante.

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    eliminadas mas reconfiguradas em um tringulo no qual o novo vrtice o governo

    (FOUCAULT, 2008a).

    Essa mudana na forma de poder foi correlativa s mudanas sociais mais amplas: o

    surgimento da teoria dos fisiocratas e posteriormente, da economia poltica, o destaque dado

    s anlises estatsticas a partir do sculo XIX, o surgimento do liberalismo no apenas como

    doutrina mas como arte de governar baseada no respeito liberdade e autonomia dos sujeitos,

    por exemplo. A nova forma de governo passou a se basear num conhecimento cientfico sobre

    aquilo que governado, conhecimento altamente valorizado em nossas sociedades. Passou-se

    a acreditar que de posse de um conhecimento verdadeiro, as autoridades (entre elas os

    experts na conduta humana) podem decidir o que melhor para os governados, aquilo que

    mais respeita sua natureza. Nesse contexto, os governados tambm tm o poder de decidir se

    querem ou no seguir o que lhes recomendado mas geralmente o fazem por acreditarem quetrar bons resultados pessoais, como poder, sade, sucesso e vitalidade. (FOUCAULT,

    2008a). Enquanto cada sujeito se preocupa com seu bem estar, as autoridades buscam um

    olhar tambm para a populao, agora concebida como o conjunto de vidas humanas que

    devem ser preservadas. Isso caracteriza o que Foucault (1988a) chama de biopoder, um poder

    que se centra nas vidas biolgicas dos sujeitos e que tem dois alvos de interveno conjuntos:

    a vida individual (cada um) e a vida coletiva/ populacional (todos). No exerccio do biopoder,

    as taxas de natalidade, mortalidade, casamentos, doenas, etc. da populao so controladas

    com o objetivo de implementar uma poltica que corrija os problemas estatsticosapresentados, buscando o crescimento populacional no apenas numrico mas na direo da

    sade, da prosperidade e da felicidade11 (FOUCAULT, 2008a).

    Correlativamente ao surgimento dessa nova forma de poder como governo, surgem

    tambm os dispositivos de segurana, baseados numa ateno cada vez maior dedicada aos

    fenmenos que sugerem algum risco aos indivduos: catstrofes naturais, instabilidades da

    economia, doenas, entre outros. A populao deve ser protegida contra os fenmenos

    acidentais que podem causar grandes perdas e danos. No entanto, o governo fornece apenas a

    proteo mnima ao indivduo (atravs da previdncia social por exemplo), sendo a maiorparte da responsabilidade atribuda ao indivduo autnomo e livre, que tambm deve ser

    prudente e planejar seu futuro atravs da contratao de mltiplas formas de seguro que

    garantam o bem-estar de sua famlia, propriedades e seu prprio bem estar (fsico,

    psicolgico). A idia de estar seguro e ser segurado uma das principais preocupaes das

    11 Essa idia foi inaugurada pela Razo de Estado, um dos tipos de arte de governar do sculo XVIII e posta em prtica pelodispositivo de polcia.

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    sociedades atuais, que une a importncia da preservao da vida biolgica com o incentivo

    responsabilizao e autonomizao do sujeito defendidas pelo liberalismo (FOUCAULT,

    2008a).

    1.1 Diferentes Formas de Poder

    Em Histria da Sexualidade: A Vontade de Saber (1988a), Foucault apresenta a

    hiptese repressiva do poder, que a idia de que o poder sinnimo de dominao, apenas

    restringe, subtrai e submete. Nessa acepo, o poder oculta a verdade dos dominados e esta

    verdade, quando descoberta, liberta-os do domnio do poder, pois a verdade

    intrinsecamente oposta ao poder e por isso, desempenha um papel de liberao (DREYFUS;

    RABINOW, 1982, p. 127)

    12

    . Essa acepo negativa do poder est presente na viso jurdico-discursiva do poder como nomeia Foucault, e dela deriva a idia de que o poder s produz

    limitao e falta. Nessa perspectiva, (o) poder, em ltima instncia, represso; represso

    em ltima instncia a imposio da lei; a lei em ltima instncia demanda submisso

    (DREYFUS; RABINOW, 1982, p. 130)13.

    Contrariamente a esta viso, Foucault formula a hiptese14 de um poder sobre a vida,

    que chamar de Biopoder1516. Para Foucault, o poder uma tecnologia poltica que opera no

    corpo social (FOUCAULT, 1976a; DREYFUS; RABINOW, 1982). Ele o avano dessas

    tecnologias tais como operam no cotidiano, no tempo e no espao. O poder no uma coisaque pode se possui, no um prmio, no um conjunto de instituies e nem uma

    racionalidade oculta (ideologia). Para entender como ele opera, necessrio se infiltrar em

    suas microprticas (FOUCAULT, 1976a; DREYFUS; RABINOW, 1982). E essas prticas

    tambm no so nicas assim como o poder no nico. No existe um poder nico mas

    poderes, formas de dominao diversas, formas de sujeio que funcionam com tcnicas

    especficas. A sociedade um entrelaamento de vrios poderes coordenados e

    hierarquizados. Nas palavras do autor: A sociedade um arquiplago de poderes diferentes

    12 Truth is intrinsecally opposed to power and, for that, plays a liberating role.13 Power int the last instance is repression ; repression in the last instance imposition of the law and law in the last instancedemands submission.14 A inteno de Foucault, jamais foi de formular uma teoria sobre o poder. Isso no quer dizer, que suas anlises sejamdescontextualizadas. Foucault afirmava que as teorias fixam uma essncia nas coisas, que as coisas parecem fora do tempo edo espao. Sua inteno, era, ao contrrio, analisar as relaes de poder em contextos especficos, para delas deduzir algunsmarcos, poder fazer algumas afirmaes. Por isso, Foucault analisou a priso, os asilos, o exrcito, com o objetivo deapreender suas relaes concretas (DREYFUS; RABINOW, 1982).15 Sobre as formas de exerccio de poder e seu contexto histrico, ver tpico 1.2.16 Segundo Caliman (2002) todo poder contemporneo um Biopoder, portanto, usaremos os termos poder e biopoder comosinnimos, quando tratarmos do poder contemporneo, para fins deste trabalho.

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    (FOUCAULT, 1976a, p.186). Esses poderes no derivam um poder central que os precederia.

    Ao contrrio, surgem os poderes regionais que se aglomeram para formar os grandes

    aparelhos de Estado. Os poderes regionais se dirigem a todas as direes do corpo social, de

    baixo para cima e de cima para baixo (FOUCAULT, 1975; FOUCAULT, 1976a; DREYFUS;

    RABINOW, 1982).

    Uma das primeiras coisas a entender que o poder no localizado no aparelho de Estado eque nada ser mudado na sociedade se os mecanismos de poder que funcionam fora dosaparelhos de Estado, abaixo, ao lado dele, a um nvel bem mais nfimo e cotidiano, noforem modificado (FOUCAULT, 1975, p. 58)

    Esses pequenos poderes no tm a funo primeira de proibir. Sua funo permitir

    a mxima eficincia com o menor custo, especializar, disciplinar, incidir sobre os corpos para

    retirar deles sua mxima utilidade. Segundo o autor, O poder como efeito, um poder que,em vez de se apropriar e retirar, tem como funo maior, adestrar, ou sem dvida, adestrar

    para retirar e se apropriar ainda mais e melhor (FOUCAULT, 1988b, p.153). O poder, como

    tcnica, pode ser aperfeioado, desenvolvido sem cessar (FOUCAULT, 1976a). O poder no

    uma coisa que alguns detm e outros no:

    (...) uma coisa que circula e que s funciona em cadeia. Jamais est localizado aqui ou ali,jamais est entre as mos de alguns, jamais apossado como uma riqueza ou um bem. Opoder circula em rede e os indivduos tambm. Eles se submetem ao poder ao mesmo tempoem que o exercem17. Eles no so o alvo inerte ou consentidor do poder, so sempre seus

    intermedirios (FOUCAULT, 2004, p. 35)

    No h exterioridade em relao ao poder, sempre se est preso em suas malhas,

    implicado em seu jogo, o que no implica em ser prisioneiro (SENELLART, 1995;

    FOUCAULT, 1976a). As relaes de poder so abertas e mveis, e implicam a desigualdade

    de posio mas que no fixada, quando a relao de poder deixa de ser mvel. Nesse

    sentido, podemos sim falar em dominao (DREYFUS; RABINOW, 1982; FOUCAULT,

    1984). Nas palavras do autor, Quando um indivduo ou um grupo social chega a bloquear um

    campo de relaes de poder, a torn-las imveis e fixas e a impedir qualquer reversibilidade

    de movimento, estamos diante do que se pode chamar, um estado de dominao

    (FOUCAULT, 1984, p.266). Para finalizar, as relaes de poder so intencionais mas no so

    diretamente guiadas em seu objetivo mais amplo pois o resultado final depende de uma ampla

    rede de poderes. No nvel local, por exemplo, os atores so conscientes, planejam e

    coordenam suas aes, e as direcionam para um objetivo determinado. Mas o efeito dessas

    17 Em outras palavras, o poder no uma substncia, um tipo de relao particular entre os indivduos (Foucault, 1981).

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    aes em outros nveis no podem ser previstas por estes atores. O entrecruzamento de vrias

    malhas de poder determina uma tendncia para um objetivo estratgico mas no h impulso

    de uma pessoa ou de apenas um grupo. As grandes transformaes histricas acontecem pelos

    cruzamentos nas malhas do poder que impulsionam para uma direo especfica (DREYFUS;

    RABINOW, 1982).

    Nessa acepo de poder, muda a forma como compreendemos a liberdade. A Hiptese

    Repressiva afirmava que bastaria romper a represso pelo conhecimento da verdade e pelo

    contato consigo mesmo que haveria um efeito de liberao. A novidade que Foucault afirma

    que para haver relaes de poder preciso haver liberdade. Mesmo quando se afirma que

    uma pessoa tem poder sobre a outra, ainda lhe resta a oportunidade, seno de fugir, de matar o

    outro ou se matar. Para haver poder necessrio haver resistncia. Nas palavras de Foucault,

    se h relaes de poder em todo campo social porque h liberdade por todo lado(FOUCAULT, 1984, p.277). Se o poder s tivesse a funo de reprimir, s poderia se

    exprimir pela censura, pela excluso e pelo impedimento, sendo assim, seria um poder muito

    frgil. Sua eficcia est em operar como um poder positivo, que produz efeitos (FOUCAULT,

    1975). Se existe liberdade e, assim, podemos resistir, o poder no algo necessariamente

    opressor do qual devemos nos libertar. No pode existir uma sociedade sem relaes de

    poder, se elas forem entendidas como estratgias, tecnologias polticas. O poder formado

    por jogos de estratgia nos quais um tenta influenciar aquilo que o outro faz. Para o autor, no

    h mal em algum ensinar o que fazer, transmitir um saber ou comunicar tcnicas. Oproblema evitar que essas prticas se tornem estados de dominao (FOUCAULT, 1984).

    1.2 Formas de Exerccio do Poder: Refinamento das Tcnicas de Poder

    Tradicionalmente, o pensamento poltico esteve preocupado em garantir a vida justa e

    boa. Baseado no entendimento amplo e metafsico do cosmos, este pensamento postulava apoltica como a arte que visava levar os homens a vida justa e boa pela imitao do governo

    de Deus sobre a natureza (DREYFUS; RABINOW, 1982). Assim acontecia na poca do

    feudalismo. A partir da Idade Mdia, nos sculos XVI e XVII, as monarquias administrativas

    se sobrepuseram ao sistema de organizao feudal. Esse processo ocorreu graas ao poder

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    soberano18, que estava baseado no sistema jurdico. Os tribunais, por exemplo, foram

    utilizados para a resoluo de conflitos sociais que antes eram resolvidos privadamente. O

    poder monrquico se fortaleceu e estabeleceu seus limites atravs deste edifcio jurdico

    (FOUCAULT, 1976a; FOUCAULT, 2004). Alm disso, a burguesia tambm se beneficiou do

    desenvolvimento das monarquias e das leis pois o sistema feudal era desvantajoso para seus

    negcios. Nessa forma de poder, o prprio poder tornado visvel, colocado constantemente

    mostra como poder do rei e oposto ofensa praticada como se esta fosse pessoal figura do

    rei. As multides so invisveis perto da figura brilhante do rei e do seu poder. um poder

    descontnuo, que age pela aplicao da lei quando h uma transgresso. um poder oneroso

    porque age por subtrao de bens, propriedades e at mesmo da vida (FOUCAULT, 1976a;

    DREYFUS; RABINOW, 1982).

    A partir do sculo XVII, surge uma nova forma de exercer o poder, impulsionadapelas necessidades do pr-capitalismo19 (DREYFUS; RABINOW, 1982). o poder

    disciplinar. A disciplina no era algo novo, tinha se iniciado nas instituies monsticas mas

    s se difundia em prticas especficas. A partir do sculo XVII, ela se torna a forma geral de

    poder (FOUCAULT, 1976a; FOUCAULT, 1988b). A disciplina no extinguiu o sistema

    jurdico da soberania como era de se esperar20 pois a soberania era um empecilho ao sistema

    capitalista e era um sistema oposto disciplina. O sistema jurdico era por demais oneroso

    para o capitalismo pois se baseava na extrao de rendas e propriedades, servindo como

    obstculo ao crescimento econmico. Por outro lado, era um sistema muito frouxo, poucovigilante e descontnuo, que deixava sem fiscalizao o contrabando, por exemplo

    (FOUCAULT, 1976a; FOUCAULT, 2004). Um dos motivos para o no desaparecimento da

    soberania foi que ela serviu como instrumento crtico contra a monarquia ainda nos sculos

    XVIII e XIX e tambm porque permitiu uma democratizao dos direitos soberanos. A

    poltica nas sociedades ocidentais era feita atravs deste jogo entre o direito pblico da

    soberania e uma mecnica polimorfa da disciplina (FOUCAULT, 2004).

    Vejamos como Foucault caracteriza o poder disciplinar. O poder disciplinar incide

    sobre o corpo humano, tornando-o dcil e obediente. Tende a cobrir toda a sociedade evaloriza a vigilncia em seus mnimos detalhes. A disciplina modifica a distribuio dos

    18 A soberania o poder baseado na pessoa do rei e no cumprimento das leis. Quando uma lei transgredida, o rei tem opoder de punir, inclusive eliminando a vida da pessoa, pois atentou contra a pessoa do rei (Foucault, 1988).19 Segundo Dreyfus e Rabinow (1982), as tecnologias disciplinares jazeram sobre o crescimento, a expanso e o triunfo docapitalismo. Sem a presena de indivduos ordenados e disciplinados na produo, as novas demandas do capitalismo noteriam sido atendidas. Essas mudanas no fizeram surgir o capitalismo mas foram as condies tecnolgicas de seu sucesso.20 A disciplina no substitui as outras formas de poder mas as coloniza ou investe (DREYFUS; RABINOW, 1982, p. 153).

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    indivduos no espao, tendo como local privilegiado os espaos fechados21 como o quartel,

    por exemplo, que a princpio visava se ocupar da massa ociosa e diminuir os conflitos urbanos

    (FOUCAULT, 1988b). Mesmo o espao aberto quadriculado de forma fina, favorecendo

    certas aes e coibindo outras. A vigilncia geral e individual ao mesmo tempo, colocando

    cada indivduo em seu lugar, fornecendo classificaes, comparando indivduos. A disciplina

    distribui os corpos em filas, setores, organizando um espao social onde havia multides

    desordenadas, inteis ou perigosas (...) tirando da multido o maior nmero possvel de

    efeitos (FOUCAULT, 1988b, p.137). A disciplina institui horrios para tornar o tempo til, e

    impe um ritmo controlado. Visa capitalizar o tempo dos indivduos de forma que sejam

    suscetveis ao aprendizado de capacidades que possam ser teis e controladas. A disciplina

    permitiu a formao e a manuteno das tropas, a formao de um exrcito competente e

    valioso; preveniu diversos distrbios civis, fortalecendo e promovendo a ordem interna. Adisciplina instaurou uma economia positiva do poder, que fabrica indivduos, produz

    capacidades, organiza e une as multiplicidades como numa mquina em que as peas so

    perfeitamente coordenadas. A coero fsica diminuiu para crescer a coero pelo olhar, pela

    ameaa da vigilncia annima e silenciosa.

    Diferentemente do sistema jurdico, a disciplina no age por meio da lei e sim, por

    meio da norma. A lei pune atos criminosos, a norma penaliza indivduos, criando uma

    natureza individual tendenciosa para o crime. A disciplina traa inmeras diferenas entre o

    normal e o anormal, compara performances, hierarquiza e exclui. Inclui uma gradao dediferenas entre os indivduos obtidas atravs de uma srie de testes. Foucault considera a

    disciplina uma antomo-poltica pois visa os indivduos at lhes anatomizar, incidindo sobre

    os corpos e sobre as atividades nos mnimos detalhes (FOUCAULT, 1976a; FOUCAULT,

    1988b).

    Posteriormente ao desenvolvimento do poder disciplinar, na metade do sculo XVIII,

    surge uma outra tecnologia de poder que visa o indivduo mas sob um outro vis: o indivduo

    inserido nas multiplicidades. Torna-se necessrio um poder que incida sobre a populao

    como um grupo de seres vivos atravessados por processos, leis biolgicas (FOUCAULT,1976a, p. 191). Descobre-se uma srie de regularidades na massa da populao: taxas, curvas

    normais, ndices de sade e natalidade. Para que a populao seja produtora de riquezas, bens

    e de outros indivduos, ela deve ser levada em considerao. Para tanto, o governo deve se

    preocupar com a vida biolgica, cuidando de problemas de moradia, sade pblica, conflitos

    21 A disciplina uma tcnica e no uma instituio, mas pode ser massivamente apropriada por certas instituies, ao mesmotempo, as instituies, como a escola, por exemplo, no se reduzem funo disciplinar (DREYFUS; RABINOW, 1982).

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    urbanos, alimentao, etc. No se trata mais de uma antomo-poltica mas de uma biopoltica.

    Para que a biopoltica funcione so necessrias tcnicas de observao e registro. Entre elas, a

    que mais se destacou foi a estatstica. O controle do corpo e da vida se tornou uma

    necessidade do poder um poder cada vez mais material e fsico (FOUCAULT, 1976a). Nas

    palavras de Caliman (2002; p. 3): o biopoder um poder exercido sobre as vidas individuais

    e coletivas, um poder vital, que ao se nutrir da vida, possibilita tambm sua perpetuao.

    Para Foucault, a disciplina e a biopoltica no so tcnicas opostas, mas trabalham em

    conjunto. Enquanto a disciplina individualiza, a tecnologia biopoltica totaliza, objetivando

    regular os fatores de conjunto que possam subtrair foras da populao e portanto, do Estado.

    Esses dois plos do biopoder se desenvolvem lado a lado no sculo XVIII e XIX e se

    aproximam atravs da temtica da sexualidade. Para Foucault, a sexualidade a dobradia

    que est na interseo entre o ser humano como espcie biolgica e o ser humano comoindivduo22. O sexo se torna a construo pela qual o poder conecta a vitalidade do corpo

    individual com aquela da espcie (FOUCAULT, 1976a; CALIMAN, 2002).

    No curso Em Defesa da Sociedade (2004), Foucault afirma que um dos fenmenos

    fundamentais do sculo XIX foi a tomada da vida pelo poder, ou a retomada do homem como

    ser vivo, espcie biolgica. Houve uma estatizao do biolgico. Enquanto o poder

    soberano tinha o poder de tirar a vida e deixar viver, o biopoder incide sobre a vida ao invs

    de pender para a morte (FOUCAULT, 1988a).23

    A biopoltica trata da populao como problema poltico, biolgico, cientfico e depoder (FOUCAULT, 2004). E se dirige a acontecimentos aleatrios, imprevisveis de uma

    dada populao que se repetem, tendo suas constantes conhecidas. Por este motivo, aplicam-

    se previses e estimativas sobre essas constantes que tentam determin-las para estabelecer

    mecanismos que mantenham o equilbrio e no deixem o nmero de mortes passar de um

    nvel aceitvel (FOUCAULT, 2004). O novo poder produz a vida ou devolve morte. A

    preocupao com aspectos biolgicos da vida sempre esteve presente na histria atravs do

    risco de epidemia e de escassez alimentar. No entanto, pela primeira vez, a vida passa a fazer

    parte do domnio do saber cientfico. Torna-se possvel prever e controlar o que antes nopodia ser sabido pela ausncia de conhecimentos pertinentes e instrumentos especficos. O

    fato de viver no exposto apenas nas pocas das grandes calamidades, quando se fazia a

    22 Para Foucault, a sexualidade no seria a nica dobradia, pois considera que a Medicina e o problema urano tambmpoderiam exercer esse papel, por exemplo.23 A morte torna-se aquilo que se deve evitar a qualquer custo. escondida e torna-se tabu na mudana das tecnologias de

    poder. A morte aquilo que escapa do domnio do poder, o indivduo morto escapa a qualquer poder pois volta a si mesmo, sua parte mais privada (FOUCAULT, 2004, p. 295).

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    contagem dos mortos. o poder que se encarrega da ameaa de morte, mais do que da morte

    real. Os indivduos no podem morrer porque so um Bem, Bem do Estado, que garante sua

    fora e a continuidade da produo (FOUCAULT, 1988a). Com isso, proliferam-se

    tecnologias que se ocupam da sade, da segurana fsica e econmica dos indivduos, e

    saberes que investem sobre as maneiras de viver. Para funcionar, o biopoder precisa dos

    indivduos vivos e distribudos corretamente na sociedade. Em funo disso, para o exerccio

    do biopoder, necessrio manter a vida a qualquer custo inclusive ao custo da morte de

    alguns (FOUCAULT, 1988a).

    Para entendermos o modo como o biopoder exercido, necessrio explicitar os

    mecanismos que acompanham seu surgimento. Em Segurana, Territrio, Populao

    (2008a), Foucault apresenta o surgimento dos dispositivos de segurana que acompanharam

    o surgimento do biopoder. Enquanto o mecanismo da soberania, predominante nos sculosXVII ao XVIII, criava a lei e estabelecia a punio, a disciplina, estabelecida a partir do

    sculo XVIII e presente nos dias atuais, cria a norma e corrige os desviantes. O dispositivo de

    segurana insere qualquer fenmeno em uma srie de probabilidades. Passa a existir um

    clculo de custo que busca avaliar, por exemplo, se vale a pena ou no punir os desvios. O

    dispositivo de segurana estabelece uma mdia tima para os fenmenos e, a partir disso,

    estabelece os limites do aceitvel e do no aceitvel. Os dispositivos de segurana consistem,

    em boa parte, na reativao de mecanismos jurdicos e disciplinares. Mas, os alvos a que cada

    um se refere so diferentes: a soberania visa um territrio, a disciplina visa os corpos dosindivduos e a segurana visa uma populao24. Outra caracterstica dos mecanismos de

    segurana que eles criam sries abertas, elementos indefinidos que se deslocam e se

    reproduzem, e que s podem ser controlados por uma estimativa de probabilidades (pessoas,

    objetos,). A segurana regula essas sries num contexto transformvel. Os dispositivos de

    segurana criam e organizam um meio, um campo de interveno com dados naturais e

    artificiais que atingem uma populao. uma tcnica poltica que se dirige ao meio. Qualquer

    efeito que se queira obter sobre as pessoas, depender do meio (FOUCAULT, 2008a).

    Os dispositivos de segurana esto diretamente relacionados ao surgimento de umateoria econmica: a dos fisiocratas25. As conseqncias prticas do aparecimento dos

    fisiocratas possibilitaram a instalao de dispositivos de segurana. Isto fica claro na relao

    24 O problema das multiplicidades era antigo, j que a soberania sempre se exerce sobre uma multiplicidade de sujeitos e adisciplina s se tornou possvel a partir do conjunto, mas a populao em si, como conjunto de indivduos de uma espcie

    biolgica que possui certas regularidades, s se tornou passvel de ser problematizada a partir do sculo XVIII (FOUCAULT,2008).25 Essa teoria postulava que os fenmenos tinham sua prpria natureza e que as intervenes governamentais s faziamdesnaturar esses fenmenos, gerando ao invs de uma soluo, justamente aquilo que era temido (FOUCAULT, 2008a).

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    desses dispositivos com um acontecimento que se visa evitar. Foucault utiliza o exemplo da

    escassez alimentar para mostrar como os mecanismos jurdico-disciplinares que tentavam

    evitar a escassez atravs de uma srie de medidas intervencionistas, acabavam por provocar o

    prprio fenmeno temido. Para os fisiocratas, a escassez alimentar um fenmeno natural a

    ser observado. A natureza do fenmeno deve ser conhecida para permitir que ele se auto-

    regule. A viso do governo no deve ser limitada ao mercado mas produo e a todo ciclo

    do cereal, expandindo o olhar para todo o sistema, inclusive para o mercado mundial. Busca-

    se atravs desse conhecimento, fazer clculos e previses para o futuro. Utilizando o princpio

    do laissez-faire, elimina-se o risco da escassez alimentar, proporcionada em ltima instncia

    pelas prprias medidas do governo (FOUCAULT, 2008a). Alm disso, o governo no deve se

    preocupar com o nvel individual. Se algumas pessoas tiverem que morrer de fome para o

    bem da populao como um todo, isso ocorrer. Surge a populao como sujeito poltico quese demanda que se comporte de determinada forma. No conjunto da populao, cada

    indivduo exerce um papel especfico.

    Da soberania em direo segurana, h um refinamento do poder, que passa de um

    poder coercitivo para um poder que respeita a liberdade dos indivduos, valor primordial em

    nossa sociedade. Como afirma Foucault, no h a era do legal, a era do disciplinar e a era da

    segurana (FOUCAULT, 2008a, p.11). O que muda, de um perodo para o outro, so as

    relaes entre os mecanismos. Enquanto os mecanismos disciplinares isolam um espao no

    qual seu poder funcionar sem limites, os mecanismos de segurana integram continuamentenovos elementos e novas variveis. A segurana no se preocupa com os detalhes com vistas

    a regul-los, pois utiliza o princpio do laissez-faire. Os mecanismos de segurana regulam a

    realidade, fazendo com que ela siga seu caminho de acordo com as leis, princpios e

    mecanismos que so o da realidade mesma (FOUCAULT, 2008a, p.63). O dispositivo de

    segurana s pode funcionar bem em liberdade, com possibilidade de movimento e

    deslocamento de coisas e pessoas, segundo sua prpria natureza. Esta liberdade essencial

    para o desenvolvimento do capitalismo.

    Enquanto a disciplina postula uma norma e classifica os indivduos utilizando a normapara avaliar quem est acima ou abaixo e precisa de medidas especiais, os dispositivos de

    segurana buscam um estudo da realidade para saber qual a norma. Os dispositivos de

    segurana s se tornaram possveis como estratgia generalizada de poder, a partir do

    surgimento do problema poltico da populao. Inicialmente, o problema da populao nas

    tcnicas de governo era postulado de forma negativa. A populao era tudo aquilo que se

    opunha depopulao, era o repovoamento de um territrio. As taxas de mortalidade s eram

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    calculadas nas grandes catstrofes. Foi somente no sculo XVII, com o mercantilismo 26 e o

    cameralismo, que a populao adquiriu um valor positivo como fora de trabalho e

    concorrncia que promovia salrios mais baixos e possibilidade de exportao. A populao

    era fonte de riqueza do Estado se fossem eliminados os vagabundos, incentivando a

    imigrao. Ainda assim, a populao era vista como um conjunto de sditos obedientes. J

    para os fisiocratas, no sculo XVIII, a populao um conjunto de processos que precisam ser

    administrados a partir de sua natureza que muda de acordo com as variveis como o clima, a

    economia, os hbitos, os valores. A natureza da populao no alterada pelas leis mas

    acessvel pelas tcnicas adequadas. O governo deve incidir sobre fenmenos distantes mas

    que afetam a populao como a economia, por exemplo. (FOUCAULT, 2008a).

    1.3 As Artes de Governar

    O governo era tido at ento como o poder do prncipe sobre o territrio. Mas Foucault

    (2008a) considera que a arte de governar uma outra coisa. Para Foucault, o prncipe no o

    nico a governar e o Estado apenas um tipo de governo. Enquanto Maquiavel enfatiza a

    descontinuidade entre o poder do prncipe e outros poderes, Foucault acentua a continuidade

    tanto ascendente como descendente. Nesse sentido, para Foucault, quem quiser governar bemo Estado deve governar bem tudo aquilo que est debaixo da sua autoridade (os bens, a

    famlia, a casa). Por outro lado, quando um Estado bem governado, os indivduos governam

    e so governados como convm. Isto mostra como a economia das relaes domsticas era o

    modelo do governo do Estado. Uma outra diferena a considerar entre a anlise de Foucault e

    a de Maquiavel que enquanto para Maquiavel, o fim do governo o territrio, nas artes de

    governar o objetivo a correta disposio das coisas, entendida como relaes entre os

    homens e as coisas (alianas familiares, bens, costumes). Governar visar um fim adequado.

    Enquanto o fim adequado na soberania a prpria lei, nas artes de governar h vrios finsespecficos. (FOUCAULT, 2008a). Um governador no deve usar a espada mas a pacincia,

    conhecendo as coisas que esto sob seu domnio e os objetivos que deve alcanar; deve ser

    diligente como o pai de famlia, zelando pelos governados. Isto foi possvel pelo surgimento

    26 O mercantilismo a doutrina que utiliza como princpio de organizao da produo e do comrcio o enriquecimento doEstado pela acumulao monetria. Alm disso, teoriza que o Estado s se fortalece atravs da concorrncia com outrosEstados e com o crescimento da populao (FOUCAULT, 2008b).

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    de uma srie de saberes, dentre eles a estatstica, mas tambm das doutrinas mercantilista e

    cameralista que foram uma tentativa de racionalizar o exerccio do poder (FOUCAULT,

    2008a). Esses saberes surgiram correlativamente implantao da monarquia administrativa.

    No foram criaes puramente tericas. O mercantilismo foi a primeira tentativa de instaurar

    um saber sobre o Estado para govern-lo de forma racional. Mas no obteve pleno sucesso,

    pois ainda predominavam os princpios de governo da soberania que bloqueavam o

    desenvolvimento dessas artes de governar. A amplitude e rigidez da soberania associada

    fragilidade e inconsistncia do modelo da famlia fizeram com que as artes de governar no

    pudessem se expandir. Como mostra Foucault (2008a), a expanso das artes de governar s

    ocorreu no sculo XVIII com o desabrochar do problema da populao27. A famlia no perde

    assim sua importncia mas se torna instrumento privilegiado do governo. A populao se

    torna a verdadeira meta do governo. S se governa racionalmente com o conhecimento daeconomia28 e de todos os processos que giram em torno da populao.

    1.4 A Governamentalizao do Estado

    Foucault (2008a) define Governamentalidade em trs sentidos diferentes:

    1) O conjunto constitudo pelas instituies, procedimentos, anlises, reflexes,clculos e tticas que permitem exercer essa forma de poder que tem por alvo principal a

    populao, por saber a economia poltica, e por instrumento tcnico os dispositivos de

    segurana.

    2) A tendncia no Ocidente que conduziu a este tipo de poder e que trouxe o

    desenvolvimento de aparelhos especficos de governo e de saberes ligados a eles.

    3) O resultado do processo pelo qual o Estado de justia da Idade Mdia nos sculos

    XV e XVI se tornou o Estado administrativo e viu-se pouco a pouco governamentalizado.

    Nosso objetivo explorar o primeiro sentido definido por Foucault. Para que isto sejapossvel, precisamos entender de onde surgiu esta noo de governo. Essa noo de governo

    dos homens no nova, os homens sempre foram governados de alguma forma, conduzidos

    por outros a alguma direo especfica. No entanto, este tipo de governo teve como matriz a

    27 Foucault se refere aqui ao surgimento da populao como uma preocupao poltica, como governar o ser humanoentendido como o conjunto de indivduos da mesma espcie, submetido a leis naturais.28 poca de surgimento da economia poltica que estuda as relaes entre populao, territrio e riqueza, abrindo um campocaracterstico de interveno do governo (FOUCAULT, 2008).

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    forma de relacionamento do povo hebreu com seus lderes, que foi posteriormente adotada

    pelo cristianismo e se refinou de tal forma, agregando novos elementos, que se caracterizou

    como hoje a encontramos. A seguir, detalharemos um pouco mais que forma de poder era essa

    e porque ela foi to importante no que buscamos compreender como governo poltico hoje

    em dia.

    1.4.1 O Poder Pastoral: Matriz do Governo Moderno

    A ao de governar dos sculos XIII ao XV tem sentidos diversos. Segundo a anlise

    de Foucault (2008a) de textos da poca, mencionava-se o governo dos filhos, da casa, governodo professor sobre o aluno, por exemplo. O que h de comum entre essas formas de governo

    que nunca se governava um Estado mas sempre os homens 29. A idia de governo dos homens

    no grega nem romana mas vem do Oriente pr-cristo, da Mesopotmia, especialmente dos

    hebreus. Foucault chama de poder pastoral essa forma de governo dos homens desenvolvida

    no Oriente.

    Nestas culturas, o rei ou chefe um pastor. O pastor o espelho de Deus que o

    pastor supremo. O pastorado a relao entre Deus e o soberano, este pastoreia os homens na

    terra mas depois deve prestar contas a Deus e devolver-lhe o rebanho (FOUCAULT, 1981;FOUCAULT, 2008a). O poder pastoral um poder que se exerce mais sobre um rebanho em

    deslocamento do que sobre um territrio. Os deuses gregos habitavam entre as muralhas da

    cidade mas o Deus dos hebreus se faz presente especialmente nos deslocamentos, mostrando a

    direo a seguir. O poder pastoral busca essencialmente o bem daqueles que governa. Todo

    poder tem o objetivo de fazer o bem mas normalmente apenas um dos traos associados ao

    poder, que tambm visa ganhar dos inimigos e conquistar riquezas. O poder pastoral busca

    apenas o bem do rebanho e a salvao no outro mundo. um poder de cuidado no qual o

    pastor zela para evitar a desgraa e procurar as ovelhas desgarradas e feridas. O pastor no definido pela honra mas pelo fardo. um poder individualizante, no qual o pastor conhece

    cada um pelo nome. O pastor sacrifica-se por uma nica ovelha. Est relacionado com a

    salvao, pois conduz os indivduosa ela , se relaciona com a lei porque para se alcanar a

    salvao necessrio se submeter lei de Deus e se relaciona com a verdade pois necessrio

    29 O que indica que a idia de governo dos homens no nova, no entanto, ainda no havia entrado de uma forma coerente eorganizada no discurso poltico (Foucault, 2008a)

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    se crer numa certa verdade. O pastor guia para a salvao, prescreve a lei e ensina a verdade

    (FOUCAULT, 2008a, p.221).

    O poder pastoral foi introduzido no Ocidente pela Igreja crist. Foi a Igreja crist que

    implantou esses mecanismos de poder no Imprio Romano. verdade que, em alguns textos

    gregos, j aparece a metfora do pastor, mas tem um sentido diferente. Em Plato, por

    exemplo, o pastorado no a essncia da funo poltica. Para ele, o pastor s se empenha

    quando possui um retorno, numa espcie de pastorado egosta. Alm disso, no h como um

    governante ser pastor pois h muitas subdivises na sociedade para se pastorear. O pastor

    possuiria tambm muitos rivais j que existem outros pastores e no s o homem poltico.

    Plato rejeita explicitamente a metfora do pastor como prottipo do poltico, substituindo-a

    pela metfora do tecelo, que trana inmeros fios, harmonizando-os, e afirma o pastorado

    apenas em pequenas tarefas como a do mdico, do agricultor, do ginasta e do pedagogo(FOUCAULT, 1981; FOUCAULT, 2008a).

    O tema do pastorado se difundiu atravs de pequenas comunidades filosficas e

    religiosas e s atingiu seu pice com o cristianismo. A pequena comunidade crist se tornou

    uma Igreja, uma instituio que aspira ao governo dos homens em sua vida cotidiana para

    lev-los vida eterna, no apenas um grupo mas toda a humanidade. O pastorado passou por

    inmeras transformaes mas nunca foi derrotado. Mesmo na Reforma foi fortalecido por

    dois grandes braos: o catlico e o protestante (FOUCAULT, 1981; 2008a). Contudo, o poder

    do pastorado permaneceu distinto do poder poltico. Apesar de ter efeitos polticos sobre agesto cotidiana das vidas e dos bens, e de se apoiar no poder poltico, eles permaneceram

    distintos. O rei e o pastor tinham seus postos em separado.

    Mas o pastorado passou por uma crise, houve uma srie de insurreies com o

    objetivo de propiciar outras formas de conduo. O prprio pastorado se formou contra certas

    seitas dos primeiros sculos, ele uma forma de contraconduta. Do sculo X ao XVII,

    aconteceram as grandes revoltas contra a era do pastorado. Mas, a partir do sculo XVII, elas

    diminuiram e o pastorado foi retomado no exerccio da governamentalidade. Os conflitos no

    deixaram de existir mas passaram a ocorrer muito mais do lado da poltica do que do lado dareligio.

    Da srie de revoltas contra o pastorado, o pice foi a Reforma Protestante

    (FOUCAULT, 2008a). Nesta poca, haviam se dispersado os dois grandes plos que

    prometiam a unificao da humanidade: a Igreja, que se dispersou em vrias, e o Imprio,

    abrindo um tempo infinito na histria. Novas relaes econmicas e polticas substituram a

    soberania feudal que j no dava conta das inmeras insurreies. (FOUCAULT, 2008a). O

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    pastorado no acabou nem as funes da Igreja se transferiram para o governo, ao contrrio,

    o pastorado religioso tornou-se mais atuante na vida cotidiana dos indivduos. Ao mesmo

    tempo, retornaram os questionamentos sobre como se conduzir e conduzir os outros. O

    problema da conduta se proliferou no sculo XVI: entramos na era dos governos. As

    contracondutas se multiplicaram buscando no o fim do pastorado mas um pastorado

    aprimorado. Neste contexto, colocam-se duas questes: que racionalidade deveria animar o

    governo do Estado e qual seria o objeto do governo. Este reflexo culminar no

    desenvolvimento da Razo de Estado, como veremos a seguir.

    At este momento, os princpios do governo eram baseados na religio, num

    continuum que ia de Deus aos homens. Essa relao de continuidade foi quebrada no sculo

    XVI quando a poltica comeou a definir uma forma de governo especfica do Estado sem a

    interveno da tradio e das leis divinas. Essa ruptura estava relacionada s descobertascientficas da poca sobre as leis universais da natureza que expunham a natureza inteligvel

    do mundo e questionavam o pastorado de Deus. Assim, vivendo fora de um mundo de sinais e

    prodgios, o soberano passou a ter a tarefa especfica de governar: a natureza se separa da

    religio e da mstica, o espao pblico passa a ser governamentalizado (FOUCAULT, 2008a).

    Surge ento um espao para a constituio de uma nova racionalidade de governo: a

    Razo de Estado30. A Razo de Estado sempre existiu como mecanismo pelo qual os Estados

    podem funcionar mas foi necessrio um instrumento intelectual absolutamente novo para

    detect-la e analis-la (FOUCAULT, 2008a, p.322). Apenas no sculo XVII, a polticapassou a ser definida como um campo de ao valorizado de forma positiva. O exrcito, o

    fisco e a justia j existiam. Mas, a partir da, o Estado torna-se uma prtica refletida dos

    homens, passa a ser compreendido racionalmente. O Estado como entendido hoje fruto de

    uma tcnica de governo:

    O Estado no na histria essa espcie de monstro frio que no parou de crescer e de sedesenvolver como uma espcie de organismo ameaador acima de uma sociedade civil (...) OEstado nada mais que uma peripcia do governo. (FOUCAULT, 2008a, p.33131)

    Definamos agora o que a razo de Estado. Foucault afirma que h um sentido

    subjetivo e objetivo para esta expresso. No sentido objetivo, a Razo de Estado aquilo que

    30 A Razo de Estado a racionalizao de uma prtica que se situa entre um Estado apresentado como dado e um Estado ase construir. Governar, segundo a Razo de Estado fazer com que o Estado possa se tornar slido e permanente, rico eforte diante de tudo o que possa destru-lo (FOUCAULT, 2008b, p.6). Segundo ela, o Estado uma realidade especfica eautnoma,seu governo deve seguir certo nmero de regras exteriores a ele.31 O Estado no possui uma essncia, no uma fonte autnoma de poder. Ele efeito de mltiplas negociaes quemodificam os tipos de controle e as relaes entre autoridades (FOUCAULT, 2008b).

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    necessrio e suficiente para que a repblica conserve a sua integridade (FOUCAULT,

    2008a, p.343). No sentido subjetivo, aquilo que leva o Estado sua conservao, ampliao

    e felicidade. interessante notar nessas duas definies no h referncia ao cosmo, ordem

    divina ou natureza. A razo de Estado a prpria essncia do Estado, ela conservadora,

    identifica o que necessrio e suficiente para que o Estado exista e se mantenha ntegro. Visa

    felicidade do Estado, sua riqueza, sua fora, seu aprimoramento. A razo de Estado no

    descontnua mas intervm todo o tempo para que o Estado sobreviva. Segundo Foucault:

    A fraqueza da natureza humana e a ruindade dos homens, fazem com que nada na repblicapossa se manter se no houver em todo ponto, em todo momento, em todo lugar, uma aoespecfica da Razo de Estado, garantindo, de maneira concertada e meditada, o governo(FOUCAULT, 2008a, p.346)

    Com o fim do Imprio e da Igreja nica, inaugura-se um novo tempo de governo. Emlugar da utopia de unificao do mundo, surge o objetivo da paz perptua numa configurao

    de multiplicidade de Estados em que nenhum Estado deve tentar dominar o outro. A salvao

    proporcionada pela razo de Estado a salvao do prprio Estado, que se utiliza das leis mas

    abre mo delas se a sobrevivncia do Estado estiver em jogo. Ela no usa o princpio do

    Omnes et Singulatim como o poder pastoral usava, mas sacrifica alguns em prol do

    desenvolvimento do todo, e, assim, torna-se violenta e mortfera (FOUCAULT, 2008a). O

    objetivo da Razo de Estado que este permanea em repouso, que se ajuste realidade,

    essncia imutvel do Estado, ou seja, a paz necessria para se ampliar e conservar umarepblica. o princpio de governo que evita que o Estado cresa e depois morra. O Estado

    precisa estar em competio com os outros Estados e isto s pode ser conseguido pela

    ampliao de suas foras. O foco deixa de ser a riqueza do prncipe para ser a riqueza do

    Estado (natural e comercial). A fora do Estado passa a ser mais importante que a ampliao

    do territrio, que as riquezas e as alianas matrimoniais.

    O pensamento poltico se prope a ser uma dinmica das foras. As sociedades

    ocidentais criaram dois grandes conjuntos de racionalizao dessas foras: o dispositivo

    diplomtico-militar e o dispositivo de polcia. Esses dois conjuntos visam manuteno de

    uma relao de foras entre os Estados e seu crescimento. A juno das duas racionalidades

    compe os mecanismos de segurana do Estado (FOUCAULT, 2008a), pois visam prever e

    assegur-lo dos perigos advindos tanto do interior (polcia) quanto do exterior (diplomacia e

    exrcito).

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    1.4.2 O Dispositivo Diplomtico-Militar e o Dispositivo de Polcia

    O dispositivo diplomtico-militar est relacionado defesa externa do Estado e manuteno da paz. preciso limitar os outros Estados em sua ambio e desenvolver o

    Estado sem provocar os demais. Est diretamente relacionado idia do sculo XVII de

    equilbrio da Europa, uma diviso geogrfica que no se pretende universal. A Europa plural

    e tem Estados com foras diferentes, o equilbrio significa que nenhum Estado pode ditar leis

    sobre os outros. A guerra pode ser um instrumento do equilbrio europeu na medida em que

    no mais uma guerra privada entre prncipes cujos direitos foram violados mas uma guerra

    que visa barrar o excesso de poder e funciona como continuidade da prpria poltica. Outro

    instrumento do equilbrio europeu a diplomacia, feita atravs de tratados que ajudam nasoluo dos conflitos. Criam-se sistemas de informao sobre as foras de cada Estado que

    so intercambiveis numa vigilncia permanente. As negociaes perptuas garantem o

    interesse de todos: a ordem e a liberdade. Os Estados passam a ser como indivduos que

    devem manter entre si um certo nmero de relaes que o Direito deve determinar e

    codificar (FOUCAULT, 2008a, p.406). Desenvolvem os dispositivos militares permanentes,

    com a profissionalizao do exrcito e a prontido deste para uma possvel guerra. Os Estados

    equipam-se com fortalezas e transportes de guerra.

    No sculo XVII, a polcia tinha um sentido bem diferente do que tem hoje. A polcia

    era a aplicao prtica da Razo de Estado no controle interno do Estado. Era o conjunto dos

    meios que possibilitava o crescimento do Estado, mantendo a ordem. A polcia uma tcnica

    que conjuga a ordem interna do Estado e o crescimento de suas foras (FOUCAULT,

    2008a, p.421). O objeto da policia o esplendor do Estado, sua beleza visvel e o bom uso de

    suas foras. Esta mantm relaes estreitas com o dispositivo diplomtico-militar. Para que

    haja equilbrio europeu necessrio que os Estados tenham uma boa polcia. Um Estado com

    pouca ordem interna pode favorecer o crescimento de outros Estados que venham a domin-

    lo. A polcia e a diplomacia tm um instrumento comum: a estatstica. A estatstica por

    excelncia o saber do Estado sobre ele mesmo e nessa medida que ela se encontra na

    articulao dos dois dispositivos.

    O desenvolvimento desses dispositivos no foi igual em todos os Estados. Na

    Alemanha por exemplo, houve um desenvolvimento sem igual da polcia, que acarretou o

    surgimento da especialidade que se difundir posteriormente por toda Europa: a cincia da

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    polcia (FOUCAULT, 2008a). A polcia se tornou a arte de governar absorvendo funes

    clssicas do Estado: a justia, o exrcito e as finanas. Passou a se ocupar da escolha

    vocacional dos jovens, da instruo das crianas, da sade pblica, dos acidentes, das causas

    de empobrecimento; passou a assistir os comerciantes, a regular o mercado e a produo, e a

    se ocupar dos bens imobilirios e das heranas. A polcia passou tambm a exercer a funo

    moral de designar a maneira como as pessoas devem se comportar32, formulando injunes

    que tm por alvo os prprios homens porque os homens so a riqueza do Estado33. Os homens

    so um diferencial nas foras do Estado, e as suas atividades devem ser teis para este

    (FOUCAULT, 2008a; FOUCAULT, 1981). Em ltima instncia, o objeto da polcia se tornou

    todas as formas de coexistncia dos homens e todas as suas formas de comunicao. Como

    mostra Foucault, consolidar e aumentar a fora do Estado, fazer bom uso dela e proporcionar

    a felicidade dos sditos, essa a articulao que especfica da polcia (FOUCAULT,2008a, p.440).

    A partir do sculo XVIII, a polcia comea a sofrer uma espcie de desarticulao a

    partir de crticas colocadas pela economia poltica. Uma delas o centramento da polcia na

    cidade, ignorando o problema do campo e da produo. Outra crtica feita sobre a

    generalizao da disciplinarizao. Os economistas afirmam que as coisas no so flexveis e

    no podem se dobrar vontade do soberano. A tentativa de desviar o curso natural das coisas

    causa mais transtornos do que se elas seguissem seu curso. A regulao intil pois a

    economia se regula por si mesma. Para os economistas, a populao no constitui em si umbem. A polcia visava aumentar o nmero de habitantes para que houvesse mais braos para o

    trabalho. Os economistas afirmam que o nmero de pessoas por si s no um valor, o valor

    relativo porque tem que ser visto em relao ao tamanho do territrio e necessidade da

    economia. A populao no um dado infinitamente modificvel, ela prpria se ajusta de

    acordo com a sua natureza (FOUCAULT, 2008a).

    O princpio de concorrncia entre os Estados ser substitudo pelo princpio de concorrncia

    entre os interesses particulares. Cada pessoa, ao buscar o lucro mximo e a venda de seu

    produto, traz um ganho para o Estado. O bem de todos assegurado pelo comportamento decada um, que ignora o sistema em que est inserido. Assim, a Razo de Estado no deixa de

    existir, mas modificada pelos economistas, que ganham ares herticos em relao ao Estado.

    32 A polcia passou a cuidar de detalhes da vida cotidiana, utilizando mais regulamentos do que leis, com a tarefa dedisciplinar a populao. O reino funciona como uma instituio fechada a ser disciplinada com perfeio. A polcia essencialmente urbana e mercantil, pensada em termos de urbanizao do territrio, resolvendo problemas da coexistnciadensa como a vagabundagem, por exemplo.33 Nas palavras de Foucault: A polcia visava encarregar-se da atividade dos indivduos at em seu mais tnue gro (2008,

    p.10).

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    A governamentalidade dos polticos vai culminar na polcia e a dos economistas vai inaugurar

    o liberalismo clssico (FOUCAULT, 2008a).

    1.4.3 O Liberalismo Clssico

    De forma geral, o Estado liberal tem por objeto a populao e no o territrio; governa

    atravs de saberes como a medicina e a economia, por exemplo, e tem como sua contrapartida

    a necessidade de dispositivos de segurana para proteger os indivduos dos custos do sistema.

    O surgimento deste mecanismo de poder coincide com o surgimento da biopoltica, uma

    espcie de racionalizao dos fenmenos da vida da populao (CASTRO, 2009). Vejamos as

    caractersticas centrais do liberalismo como prtica de governo34.

    O liberalismo se caracteriza por uma volta da naturalidade do mundo, oposta artificialidade da polcia35. Essa naturalidade buscada no a da ordem teolgica mas a

    naturalidade especfica das relaes dos homens entre si, que acontece espontaneamente

    quando esto juntos. No liberalismo, a naturalidade social se torna domnio de saber e

    interveno. a sociedade civil como complemento necessrio do Estado. Como esclarece

    Foucault, (o) Estado tem a seu encargo uma sociedade civil e a gesto desta que ele deve

    assegurar (FOUCAULT, 2008a, p.470). um governo cientfico, no qual o conhecimento

    dos fenmenos naturais da populao deve ser dar por meios cientficos. No mais um

    clculo de foras, diplomtico. O conhecimento cientfico desses processos indispensvel ao

    bom governo. No respeitar esses processos estar fadado ao fracasso. O conhecimento passa

    a ser externo ao governo, a cincia se separa do Estado e reivindica ser ouvida por este.

    Destina-se a uma populao como realidade especfica e relativa. Ela tem suas prprias leis de

    transformao e deslocamento. Existe uma naturalidade intrnseca a ela. Entre os indivduos

    se produzem interaes, vnculos que no so constitudos pelo Estado, so espontneos. A

    populao se compe dos interesses particulares. Por fim, o liberalismo caracterizado por

    um Estado que respeita os processos naturais da populao e os leva em conta, os faz agir ou

    age com eles. Abre-se todo um campo de intervenes possveis mas que tero um outro

    formato. O objetivo fundamental do governo vai ser garantir a segurana desses processos.

    34 Foucault analisa o Liberalismo no como doutrina econmica mas como racionalidade de governo (SENELLART, 1995;CASTRO, 2009).35 Ao contrrio de uma regulao intensa e constante dos objetos de governo (espaos e pessoas), o liberalismo admite a

    poltica do laissez faire: Deixar as coisas funcionarem segundo sua prpria natureza, acompanhando seu modo defuncionamento.

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