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1 CIRROSE HEPÁTICA E HIPERTENSÃO PORTAL Prof. Dra. Ana LC Martinelli Dra. Andreza Corrêa Teixeira Dra. Fernanda Fernandes Souza A cirrose hepática é definida como uma lesão crônica do parênquima hepático, caracterizada por fibrose difusa e nódulos de regeneração que substituem o parênquima normal. É a via final comum de lesões hepáticas crônicas de diferentes etiologias. As principais etiologias da cirrose hepática são: alcoólica, hepatites virais, biliar, metabólica, auto-imune, medicamentosa ou tóxica, congestiva, e criptogênica. A etiologia alcoólica ainda é uma das principais causas de doença hepática crônica em várias partes do mundo. É conhecida como cirrose de Laennec, e é caracterizada por micronódulos de regeneração (cirrose micronodular). Entretanto, em fases avançadas, macronódulos podem ser encontrados (cirrose macronodular). A cirrose hepática por álcool geralmente ocorre quando há consumo significativo de álcool (>40g etanol/dia em homens e 20g etanol/dia em mulheres) por períodos de mais de 10 anos. Contudo, se houver associação com outros fatores agressores do fígado, tais como hepatites virais, síndrome metabólica, depósitos de ferro ou uso de medicamentos hepatotóxicos, o período e a quantidade de álcool necessários podem ser menores. Ressalta-se que a cirrose é apenas uma das inúmeras conseqüências do uso abusivo do álcool, bem como a neuropatia, a desnutrição, as insuficiências pancreáticas endócrina e exócrina, entre outras.

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CIRROSE HEPÁTICA E HIPERTENSÃO PORTAL

Prof. Dra. Ana LC Martinelli Dra. Andreza Corrêa Teixeira

Dra. Fernanda Fernandes Souza

A cirrose hepática é definida como uma lesão crônica do parênquima

hepático, caracterizada por fibrose difusa e nódulos de regeneração que

substituem o parênquima normal. É a via final comum de lesões hepáticas

crônicas de diferentes etiologias.

As principais etiologias da cirrose hepática são: alcoólica, hepatites

virais, biliar, metabólica, auto-imune, medicamentosa ou tóxica, congestiva, e

criptogênica.

A etiologia alcoólica ainda é uma das principais causas de doença

hepática crônica em várias partes do mundo. É conhecida como cirrose de

Laennec, e é caracterizada por micronódulos de regeneração (cirrose

micronodular). Entretanto, em fases avançadas, macronódulos podem ser

encontrados (cirrose macronodular). A cirrose hepática por álcool geralmente

ocorre quando há consumo significativo de álcool (>40g etanol/dia em homens e

20g etanol/dia em mulheres) por períodos de mais de 10 anos. Contudo, se

houver associação com outros fatores agressores do fígado, tais como

hepatites virais, síndrome metabólica, depósitos de ferro ou uso de

medicamentos hepatotóxicos, o período e a quantidade de álcool necessários

podem ser menores.

Ressalta-se que a cirrose é apenas uma das inúmeras conseqüências do

uso abusivo do álcool, bem como a neuropatia, a desnutrição, as insuficiências

pancreáticas endócrina e exócrina, entre outras.

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As hepatites virais também são causa importante de cirrose hepática em

todo o mundo. Os principais agentes são os vírus da hepatite B (HBV) e o vírus

da hepatite C (HCV). A hepatite B é altamente prevalente em países da Ásia e

da África; no Brasil, a prevalência estimada de infecção pelo vírus B é de 3,5 a

5%. O vírus C acomete cerca de 1,5-3% da população mundial; é responsável por

aproximadamente 40% dos casos de cirrose hepática. Acredita-se que na

hepatite C, a cirrose hepática se desenvolva em cerca de 20% dos indivíduos

com infecção crônica, e em geral, após 15-25 anos de infecção. Em mulheres e

crianças essa taxa é inferior.

A cirrose hepática biliar é conseqüência de agressão ou obstrução

prolongada das vias biliares intra-hepáticas ou extra-hepáticas, como ocorre

na cirrose hepática biliar secundária e na cirrose biliar primária. A cirrose

biliar secundária resulta da obstrução prolongada total ou parcial do ducto

hepático comum ou de seus principais ramos. A causa mais comum é a estenose

ou sub-estenose do ducto biliar comum pós-operatória ou causada por cálculos.

Outras causas obstrutivas incluem infecção, pancreatite crônica, colangite

esclerosante primária, atresia biliar congênita, fibrose cística, cisto de

colédoco, ou por medicamentos. A cirrose biliar primária é caracterizada por

colangite crônica destrutiva, não supurativa das vias biliares intra-hepáticas

(ductos biliares pequenos e médios), de causa desconhecida que cursa com

cirrose em sua fase final.

Dentre as causas metabólicas, destacam-se a esteato-hepatite não

alcoólica (“Nonalcoholic steatohepatitis” - NASH), a doença de Wilson

(acúmulo de cobre), a hemocromatose hereditária (acúmulo de ferro) e a

deficiência de alfa-1 anti-tripsina.

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A NASH é uma causa freqüente de doença hepática crônica, sendo

reconhecida, atualmente, como principal etiologia da cirrose classificada

anteriormente como criptogênica. Está associada com resistência insulínica e

síndrome metabólica, acometendo cerca de 2-3% da população mundial.

Caracteriza-se por depósitos de gordura no fígado, com inflamação e fibrose,

particularmente na zona 3 do parênquima hepático. Nas fases finais da cirrose,

a histologia é indistinguível de outras causas de doença hepática crônica.

A hepatite auto-imune também pode evoluir para cirrose hepática, e

nessa fase, os auto-anticorpos podem não mais ser detectados, dificultando o

diagnóstico etiológico.

Medicamentos e tóxicos devem sempre ser considerados potenciais

causas de doença hepática crônica e cirrose. Seu uso deve ser pesquisado

exaustivamente. Salienta-se a importância dos chás preparados com ervas

potencialmente hepatotóxicas.

A cirrose congestiva é uma conseqüência incomum da insuficiência

cardíaca crônica. Pode ainda ser observada em pacientes com obstrução da veia

hepática ou de seus ramos (Síndrome de Budd-Chiari). A avaliação

histopatológica é indistinguível de outras causas de cirrose.

As manifestações clínicas da cirrose são variáveis. A cirrose hepática

pode ser totalmente assintomática e o diagnóstico pode ser feito

incidentalmente em exames de rotina. Entretanto, as principais manifestações

se devem às complicações da cirrose. Salienta-se que essas complicações

independem da etiologia da doença hepática crônica. As principais complicações

são: hipertensão portal (manifestada por varizes esofágicas e gástricas,

gastropatia hipertensiva e esplenomegalia), ascite e peritonite bacteriana

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espontânea, encefalopatia hepática, síndrome hepato-renal e carcinoma

hepatocelular.

A gravidade da cirrose pode ser avaliada por vários métodos. O mais

conhecido e usado na prática clínica é a classificação de Child - Turcotte

modificada por Pugh, que utiliza parâmetros clínicos e laboratoriais, os quais

recebem valores (escores) (Tabela 1). A soma dos escores varia de 5 a 15, e os

pacientes são, então, classificados em A, B ou C. Essa avaliação tem valor

prognóstico e preditivo da taxa de sobrevida e da probabilidade de

complicações da cirrose. Assim, pacientes classificados como Child A tem

melhor prognóstico que os Child B, e estes por sua vez melhor que os Child C.

Tabela 1. Classificação da cirrose segundo Child- Turcotte modificado por Pugh

Parâmetro / escore 1 2 3

Bilirrubina* (mg/dl) < 2,0 2-3 >3

Albumina (g/l) >3,5 2,8-3,5 <2,8

INR <1,7 1,7-2,3 >2,3

Ascite ausente leve ou controlada moderada ou tensa

Grau de Encefalopatia ausente graus 1-2 graus 3-4

Classificação segundo soma de escores - Child A:5-6; Child B: 7-9; Child C: 10-15 *Cirrose biliar primária e colangite esclerosante primária: bilirrubina<4 (score1); 4-10: score 2; >10 score 3.

Hipertensão Portal

A hipertensão portal (gradiente de pressão venosa hepática >10 mmHg)

pode resultar do aumento da resistência ao fluxo portal ou do aumento do

fluxo sanguíneo portal, ou de ambos.

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Aumento de fluxo sanguíneo portal como causa primária de hipertensão

portal pode ocorrer, mas é um evento raro incluindo-se nessa condição as

fistulas arterio-venosas.

O aumento da resistência é o evento mais comum e pode ocorrer em

vários pontos, tendo como referência os sinusóides. Desse modo, é classificada

como pré-sinusoidal, sinusoidal e pós-sinusoidal.

Dentre as causas de aumento de resistência pré-sinuosidal podemos

citar a trombose da veia porta (obstrução extra-hepática) e a esquistosomose

mansônica (obstrução de ramos da veia porta intra-hepática). As causa pós-

sinusoidais incluem aumento de resistência por obstrução da veia cava inferior,

das veias hepáticas extra-hepáticas (Síndrome de Budd-Chiari), ou dos ramos

intra-hepáticos das veias hepáticas (Doença veno-oclusiva).

Na cirrose, o aumento da resistência é principalmente sinusoidal, mas

pode ocorrer em outros níveis. O aumento da resistência ao fluxo portal é o

principal evento nas fases iniciais da cirrose, mas em fases mais avançadas

ocorre também aumento do fluxo sanguíneo portal por aumento do fluxo

sanguíneo esplâncnico. A cirrose é a principal causa de hipertensão portal em

nosso meio.

As principais manifestações clínicas da hipertensão portal são:

hemorragia por varizes gastro-esofágicas ou gastropatia hipertensiva,

esplenomegalia, hiperesplenismo, ascite, encefalopatia hepática, circulação

colateral superficial (veias abdominais e peri-umbilicais) e varizes de reto.

O tratamento da hipertensão portal propriamente dita pode ser feito

utilizando-se shunts cirúrgicos (shunts porto-sistêmicos) ou por via percutânea

(TIPS- transjugular intrahepatic portosystemic shunt) que permitem alívio da

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hipertensão, ou por uso de medicamentos que reduzem o fluxo sanguíneo portal

(betabloqueadores não seletivos).

Varizes Esofagástricas e Gastropatia hipertensiva

Ruptura de varizes da junção gastro-esofágica é a causa mais comum de

sangramentos na hipertensão portal. Manifesta-se habitualmente por

hematêmese maciça seguida por melena, mas pode se manifestar apenas como

melena ou enterorragia.

A manifestação hemorrágica deve ser considerada uma emergência. O

paciente deve ser internado em um hospital, em regime de tratamento

intensivo ou semi-intensivo. Reposição da perda sanguínea para manter volume

intravascular deve ser avaliada; dois acessos calibrosos com reposição volêmica

(cristalóides) até transfusão sanguínea. A transfusão de concentrado de

hemácias deve ter o objetivo de manter hemoglobina > 8 mg/dl ou hematócrito

> 24%.

O paciente também deve ser submetido a tratamento medicamentoso

(uso de vasoconstrictores esplâncnicos como octreotide e terlipressina) e

endoscópico (endoscopia digestiva alta). As doses de octreotide e terlipressisa

sugeridas são descritas a seguir:

Octreotide: Bolus de 50 a 100 mcg IV em 10 minutos, seguido de infusão

contínua de 25 a 50 mcg/ hora por 5 dias.

Terlipressina: Dose de acordo com o peso do paciente. • < 50 kg: 1mg IV de 4/4 horas por 24 horas

• 50 a 70 kg: 1,5 mg IV de 4/4 horas por 24 horas

• > 70 kg: 2 mg IV de 4/4 horas por 24 horas

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Após, 1mg IV de 4/4 horas por mais 24 a 48 horas (máximo de 5

dias).

A endoscopia alta permite o diagnóstico do local do sangramento e a

intervenção terapêutica com ligadura das varizes sangrantes ou escleroterapia.

Colocação de TIPS ou shunts cirúrgicos deve ser considerada em pacientes

cujos tratamentos farmacológico e endoscópico não foram eficazes.

Profilaxia primária de peritonite bacteriana espontânea deve ser

realizada em pacientes com ou sem ascite. Naqueles com ascite, fazer punção

diagnóstica antes do início da dose profilática. Fazer norfloxacina 400 mg VO

de 12/12 horas por 7 dias, ou ciprofloxacina 200mg IV, 1 vez ao dia, até

conversão para norfloxacina VO.

Os agentes betabloqueadores (propranolol ou nadolol) devem ser

empregados na profilaxia secundária (prevenção de novo sangramento) ou

primária (paciente que nunca sangrou, mas tem risco de sangrar, como varizes

esofágicas de médio e grosso calibre desde que não haja contra-indicações. A

dose recomendada é aquela que reduz a freqüência cardíaca basal em 25%.

Esplenomegalia e Hiperesplenismo

Esplenomegalia pode ser totalmente assintomática ou causar

desconforto no hipocôndrio esquerdo. O hiperesplenismo pode ser detectado

por exames laboratoriais que mostram plaquetopenia, leucopenia e anemia

(podem ocorrer isoladamente ou em associação). Plaquetopenia pode ser a

manifestação pela qual o paciente procura o médico e a investigação permite o

diagnóstico de doença hepática.

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Não há nenhum tratamento específico para o hiperesplenismo.

Ascite

Ascite é definida por um acúmulo de fluido na cavidade peritoneal. Pode

ser a primeira manifestação da cirrose e hipertensão portal.

A ascite resulta do aumento da pressão hidrostática no sistema porta

(hipertensão portal), associado à diminuição da pressão oncótica

(hipoalbuminemia).

Na cirrose, evidências sugerem que a vasodilatação arteriolar

esplâncnica mediada pelo óxido nítrico resulta em hipovolemia relativa, ativação

do sistema renina-angitensina-aldosterona, liberação de hormônio aniti-

diurético e ativação do sistema nervoso simpático (Figura 1). Retenção de sódio

e de água são conseqüências desses eventos. Um componente de linfa hepática

pode contribuir para a ascite, particularmente quando há distorção e obstrução

dos sinusóides hepáticos.

A ascite é notada por aumento do volume abdominal. Ascite de grande

volume pode causar dispnéia e ortopnéia. Ao exame físico, é detectada por

macicez móvel (ascite de pequeno volume), semi-círculo de Skoda ou sinal do

piparote.

Todo paciente que apresente ascite pela primeira vez, ou quando

internado por quaisquer complicações, tais como: alteração da função renal,

encefalopatia hepática, sinais de infecção ou piora do estado geral, deverá ser

submetido a paracentese de pequeno volume para estudo do líquido ascítico. O

líquido deve ser coletado em condições assépticas, para contagem de células

(dois tubos de 10ml com citrato), cultura para aeróbios e anaeróbios (10ml em

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tubos de hemocultura), dosagem de proteína total e albumina (5ml em tubo

seco), e pesquisa de células neoplásicas (exame citológico – 5ml em tubo

contendo 5ml álcool 70%). Outras avaliações como dosagem de amilase, de

triglicerídeos, ou cultura para micobactérias, podem ser consideradas em

situações especiais.

O tratamento da ascite inclui dieta hipossódica (2g de sal/dia – 34 mEq

de sódio) e repouso. Se não houver resposta satisfatória ao tratamento,

diuréticos podem ser usados. A espironolactona é considerada primeira escolha

pelo seu efeito inibidor da aldosterona, uma vez que pacientes cirróticos têm

hiperaldosteronismo. A dose recomendada é de 100-400mg por dia, por via

oral. Se a resposta com espironolactona não for satisfatória, pode-se associar

a furosemida (40-160mg/dia).

O controle de resposta aos diuréticos deve ser feito com cuidado, a fim

de se evitar complicações. Recomenda-se perda de até 1 kg/dia em pacientes

com ascite e edema de membros inferiores, e de até 0,5 kg/dia nos pacientes

sem edema.

A paracentese é outra modalidade terapêutica e pode ser utilizada em

ascite de grande volume, para alívio dos sintomas. Após, pode ser instituído

esquema com diuréticos. Pacientes que não toleram diuréticos podem fazer

esquemas de paracentese de repetição para controle da ascite. Recomenda-se

a utilização de expansores de volume após paracentese de volumes superiores a

5 litros (exemplo: albumina humana 6 - 8g para cada litro de ascite removido,

por via endovenosa).

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Cirrose

Aumento da resistência vascular intra-hepática

hipertensão portal

vasodilatação esplâncnica

aumento do volume plasmático

circulação hiperdinânica hipotensão arterial aumento fatores neuro-humorais

retenção de sódio e água

ASCITE

Fig. 1 . Mecanismos de ascite na cirrose hepática

Peritonite bacteriana espontânea (PBE)

Os pacientes com cirrose e ascite podem desenvolver infecção

bacteriana aguda no líquido peritoneal, sem foco primário intra-abdominal,

denominada PBE. Sugere-se, atualmente, que a maioria dos episódios de PBE

seja resultado da translocação bacteriana de origem intestinal. Inicialmente, o

microorganismo migra para os linfonodos mesentéricos, passa pelo ducto

torácico, atinge a corrente sanguínea, e posteriormente, coloniza o líquido

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ascítico. Os fatores locais seriam incapazes de impedir a infecção,

progredindo para PBE.

A PBE deve ser suspeitada em todo paciente cirrótico que apresente

febre, dor abdominal, piora das condições gerais, alteração da função renal,

encefalopatia hepática ou hemorragia digestiva alta. Também deve ser

afastada em todo paciente cirrótico com ascite que seja internado por

quaisquer outros motivos.

O quadro clínico da PBE é variável. Sintomas típicos como febre, dor

abdominal e dor à descompressão brusca do abdome podem ocorrer, mas esses

sinais e sintomas podem faltar em muitos casos.

O diagnóstico é feito pela contagem de células do líquido ascítico (>250

polimorfonucleares /mm3 ) e por cultura positiva do líquido ascítico. A cultura

não é exame muito sensível, mas quando positiva, geralmente revela bacilos

gram negativos, particularmente a Escherichia coli. Entretanto,

microorganismos gram positivos também podem ser encontrados como

estreptococos, enterococos ou pneumococos. Os resultados de cultura

demoram pelo menos 48 horas, enquanto a contagem de células é método

simples e de fácil execução, e permite o diagnóstico rapidamente. Isso é

fundamental, uma vez que esses pacientes devem ser tratados o mais

precocemente possível para que se obtenha um melhor prognóstico. Assim, a

citologia do líquido ascítico é exame primordial para o diagnóstico precoce de

PBE, não se devendo aguardar resultado de cultura para tal.

Recomenda-se o tratamento com cefalosporinas de terceira geração

(cefotaxime ou ceftriaxone) ou amoxicilina com clavulanato ou ciprofloxacina.

Em nosso meio, dispomos e usamos de rotina a ceftriaxone (1g de 12/12 horas,

via intravenosa), que deve ser administrado por 5-15 dias, dependendo da

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gravidade e da evolução do caso. Recomenda-se o uso de albumina humana (1,5

g/kg no 1º dia e 1,0 g/kg no 3º dia, via intravenosa) para prevenir a síndrome

hepato-renal.

Recomenda-se a coleta de líquido ascítico para exame controle, 48 horas

após o início do tratamento, considerando-se resposta satisfatória se ocorrer

queda de 25% do número de polimorfonucleares comparado com os valores pré-

tratamento.

Uma vez feito o diagnóstico de PBE, recomenda-se a profilaxia

secundária com norfloxacina (400mg 1 vez/dia, via oral) ou ciprofloxacina

(750mg/semana por via oral) ou sulfametoxazol-trimetoprim (800mg-

160mg/dia, via oral) por tempo indefinido. A taxa de recorrência de PBE sem

profilaxia é de 70% em 1 ano.

Encefalopatia hepática (EH)

A encefalopatia hepática é definida como uma síndrome

neuropsiquiátrica complexa, caracterizada por distúrbios da consciência e do

comportamento, alterações na personalidade, sinais neurológicos flutuantes,

asterixis ou flapping e alterações eletroencefalográficas características (onda

lenta trifásica, alta voltagem, simétrica).

A EH pode ser aguda e reversível ou crônica e progressiva.

Acredita-se que a EH seja desencadeada por substâncias tóxicas que

atingem o cérebro. Essas substâncias não são detoxicadas pelo fígado devido à

função hepática muito comprometida, ou pela presença de shunts porto-

sistêmicos que impedem a detoxicação hepática. A principal substância

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envolvida nesse processo é a amônia. Outros compostos como mercaptanos,

ácidos graxos de cadeia curta, falsos neuro-transmissores (octopamina) podem

também estar envolvidos. Altos níveis de ácido gama-aminobutírico (GABA), um

neurotransmissor inibitório, no sistema nervoso central podem também ter

participação.

Os sintomas são inespecíficos e o diagnóstico de EH é geralmente de

exclusão, devendo-se afastar outras causas de encefalopatia. As

manifestações clínicas incluem alterações do nível de consciência e

comportamentais que podem evoluir de desorientação e confusão para torpor e

coma. Os sinais neurológicos incluem asterixis ou “flapping” (tremores

grosseiros das extremidades), rigidez e hiperreflexia.

As manifestações clínicas com os correspondentes estágios (graus de

EH) são mostradas na tabela 2. O estadiamento é importante para avaliar a

evolução do paciente e a reposta ao tratamento instituído.

A EH geralmente é desencadeada por fatores precipitantes, sendo os

mais importantes sangramento gastrointestinal, constipação intestinal,

azotemia, excesso de proteína na dieta, distúrbios hidroeletrolíticos e

metabólicos (hipocalemia, alcalose, hiponatremia, hipoxia, hipovolemia), uso de

drogas (diuréticos, benzodiazepínicos, sedativos, tranquilizantes), infecções,

cirurgias e shunts porto-sistêmicos. A correção desses fatores é fundamental

no tratamento da EH.

O tratamento da EH aguda é feito com restrição de proteínas na dieta

(0,5g/kg/dia; aumentar 10-20g/dia a cada 2-3 dias até alcançar 1,2g/kg/dia),

laxativos (lactulose 10-30ml por via oral, em 3-4 vezes/dia até atingir 3-4

evacuações pastosas por dia). Se a resposta não for adequada, pode ser

associado antibiótico de largo espectro por via oral (neomicina 0,5-1g/4x/dia

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ou metronidazol (250mg 3x/dia). Lavagem intestinal está indicada nos casos de

constipação intestinal e de hemorragia digestiva (enema com 900ml de soro

fisiológico 0,9% e glicerina 100ml).

Na EH crônica recomenda-se o uso de lactulose. Deve ser evitado o uso

prolongado de neomicina pelos efeitos nefrotóxicos e ototóxicos.

Tabela 2. Estágios da encefalopatia hepática

Estágio

Manifestações clínicas

I euforia ou depressão, leve confusão, fala arrastada, distúrbios do sono.

Asterixis pode estar ou não presente.

II letargia, confusão moderada. Asterixis presente

III confusão grave, fala incoerente, sonolento. Asterixis presente

IV Coma, inicialmente responsivo e mais tardiamente não responsivo.

Asterixis ausente

Síndrome Hepato-renal (SHR)

A SHR é definida como uma condição que ocorre em pacientes com

doença hepática crônica e hipertensão portal. É caracterizada por função renal

alterada e graves anormalidades na circulação arterial renal e na atividade de

sistemas vasoativos endógenos. Os rins são estruturalmente preservados.

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Acredita-se que a vasodilatação esplâncnica que ocorre em cirróticos

possa ser responsável pela intensa vasoconstricção renal.

As manifestações incluem azotemia, oligúria e hiponatremia. Outras

causas de disfunção renal devem ser afastadas como insuficiência renal pré-

nal, necrose tubular aguda, uso de drogas nefrotóxicas ou de contrastes

radiológicos.

Os exames laboratoriais revelam creatinina sérica >1,5 g/dl ou taxa de

filtração glomerular < 40ml/min, que não melhora com o uso de expansores de

volume (infusão intravenosa de 1.500 ml de solução salina) ou retirada de

diuréticos, exame do sedimento urinário normal, intensa retenção urinária de

sódio (concentração de sódio urinário muito baixa), proteinúria < 500mg/dia e

ultra-sonografia renal normal.

Dois tipos de SHR são reconhecidos e provavelmente representam

expressões distintas do mesmo mecanismo patogênico (figura 2).

A SHR tipo I é caracterizada por um aumento rápido e progressivo

da uréia e creatinina séricas (creatinina >2,5g/dl) dentro de um curto período

de tempo (duas semanas), oligúria, concentração de sódio urinário muito baixo,

hiponatremia e em alguns casos hipercalemia. Embora possa ocorrer em

pacientes com função renal prévia preservada, a SHR tipo I comumente

desenvolve-se em pacientes que já apresentam SHR tipo II expostos a algum

fator precipitante como infecções bacterianas, hemorragia digestiva,

cirurgias, paracentese sem utilização de expansores plasmáticos, dentre

outros. Quase todos os pacientes morrem 2-3 semanas após o início do quadro.

A SHR tipo II é caracterizada por redução moderada da função

renal (creatinina sérica entre 1,5 e 2,5 g/dl) que permanece estável durante

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meses. Ocorre geralmente em pacientes com função hepática relativamente

preservada, sendo que muitos desses apresentam ascite refratária.

O tratamento pode ser feito com vasoconstrictores esplâncnicos

(terlipressina: 0,5 - 2mg a cada 4 horas, via intravenosa) associados à albumina

humana (1g/Kg no 1º dia e depois 20-40g/dia, via intravenosa).

O “TIPS” parece ser também efetivo no tratamento de pacientes com

SHR. O principal efeito é diminuir a pressão portal. Na SHR tipo I, o “TIPS”

melhora a função circulatória e reduz a atividade dos sistemas

vasoconstrictores, resultando em aumento da perfusão renal e da taxa de

filtração glomerular, com queda nos níveis de creatinina sérica em cerca de

60% dos pacientes.

O prognóstico na SHP é muito ruim e a recuperação espontânea muito

rara. Na SHR tipo I, a sobrevida hospitalar é menor que 10% e o tempo de

sobrevida média é de duas semanas. Na SHR tipo II, o tempo de sobrevida é

maior, em torno de 6 meses em 50% dos casos.

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cirrose hepática

hipertensão portal

vasodilatação esplâncnica acentudada

estimulação dos sistemas vasoconstritores

vasocontrição renal

SHR tipo II

acentuação da hipoperfusão renal

isquemia renal

SHR tipo I Figura 2- Fisiopatologia da SHR.

Carcinoma Hepatocelular

O carcinoma hepatocelular (CHC) é um tumor primário do fígado,

altamente fatal que acomete aproximadamente 500.000 pessoas no mundo. A

grande maioria dos casos ocorre na África e Ásia, sendo a China o país de

HDA, PBE, INFECÇÕES

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maior prevalência. A América do Sul compõe área de baixa prevalência para o

CHC (< 5,0/100,000), e mais de 80% dos casos ocorrem em portadores de

doença hepática crônica. As principais causas de cirrose hepática nos pacientes

com CHC são as hepatites pelos vírus B e C, e a doença hepática alcoólica.

As manifestações clínicas incluem dor abdominal, massa palpável no

hipocôndrio direito, perda de peso, icterícia e ascite. Nos cirróticos, pode

haver piora da função hepática e as manifestações podem ser confundidas com

a própria evolução da doença.

A alfafetoproteína (AFP) é uma das ferramentas diagnósticas,

apresentando uma sensibilidade de aproximadamente 39 a 64% e uma

especificidade de 76 a 91%. Níveis séricos de AFP maiores que 400ng/ml e um

exame de imagem dinâmico mostrando lesão focal > 2cm de diâmetro com

hipervascularização arterial, é altamente sugestivo de CHC. Níveis crescentes

de AFP também sugerem CHC ou recorrência do tumor após tratamento

específico.

O rastreamento de lesão focal hepática deve ser realizado a cada 6

meses com dosagem de AFP sérica e US de abdome, em pacientes cirróticos de

qualquer etiologia ou em casos selecionados de portadores de infecção crônica

pelo vírus da hepatite B.

Os exames de imagem que são utilizados para o diagnóstico e o

estadiamento do tumor incluem: ultra-sonografia (US), tomografia

computadorizada (TC), ressonância nuclear magnética (RNM) e arteriografia

(angiografia de tronco celíaco e de artéria hepática).

O US é o exame usado de rotina em pacientes cirróticos, na tentativa de

se detectar precocemente o CHC. Lesões de até 3 cm de diâmetro são

geralmente hipoecóicas e as maiores que 3 cm podem ser hipo ou hiperecóicas.

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O US também permite a avaliação do número de lesões, invasão vascular ou de

ductos biliares e a presença de lesões metastáticas.

A TC deve ser helicloidal trifásica, e tipicamente observa-se

hipervascularização da lesão na fase arterial.

O achado típico na RNM é de lesão hiperintensa em T2, com sinais de

hipervascularização.

Na arteriografia, observa-se lesão hipervascularizada com vasos

tortuosos. Essa técnica é reservada para casos em que a TC ou a RNM não

foram capazes de definir o diagnóstico.

A biópsia e a citologia do nódulo hepático também podem ser utilizadas

no diagnóstico de CHC, principalmente nos casos em que o nódulo seja pequeno

ou os exames de imagem não possibilitarem o diagnóstico.

A abordagem diagnóstica do paciente com nódulo hepático está

esquematizada na figura 3.

USG abdome e AFP

Nódulo hepático Sem nódulo

1–2 cm > 2cm < 1cm AFP > 20 ng/ml AFP normal

biópsia/cito AFP>400ng/ml USG 3/3m** CT abdome*** + 1 imagem* ou 2 imagens*

CARCINOMA HEPATOCELULAR rastreamento US+AFP 6/6m

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Figura 3. Estratégia diagnóstica de CHC

* TC helicoidal trifásica, RNM ou angiografia (lesão focal > 2cm de diâmetro com

hipervascularização arterial).

** Se não houver evidência de crescimento da lesão focal e a AFP for normal por 1 a 2 anos,

continuar rastreamento com USG e AFP semestral. Se houver crescimento da lesão e/ou

aumento da AFP, solicitar TC de abdome.

*** Se encontrada lesão focal sugestiva de CHC, prosseguir investigação com RNM ou

arteriografia. Pode ser necessária biópsia/citologia. Se não for encontrada lesão focal,

prosseguir com rastreamento semestral com USG e AFP. (obs.: se houver aumento persistente

de AFP, discutir arteriografia).

Os principais locais de metástase do CHC são ossos, pulmão e adrenal.

O tratamento pode ser feito com ressecção cirúrgica em pacientes com

cirrose hepática, desde que em fase compensada da doença e sem complicações

(Child-Pugh A, com bilirrubina normal, tumor único menor que 5cm e na ausência

de hipertensão portal, de invasão vascular macroscópica e de metástases). A

recorrência tumoral com esse procedimento é de 70% em 5 anos.

O transplante de fígado pode ser indicado nos casos de cirrose hepática

Child-Pugh A que tenham contra-indicação à ressecção cirúrgica e nos casos de

cirrose hepática Child-Pugh B e C, desde que o tumor seja único e menor que 5

cm ou existam até 3 tumores, nenhum maior que 3cm, na ausência de invasão

vascular macroscópica e de metástases.

O tratamento percutâneo com alcoolização ou radiofreqüência está

indicado quando há contra-indicação de ressecção cirúrgica ou de transplante

de fígado. A quimioembolização arterial do tumor pode ser feita em pacientes

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com contra-indicação para ressecção cirúrgica, transplante de fígado e ablação

percutânea, desde que sejam Child-Pugh A ou B, com condição geral preservada

e ausência de metástases.

Bibliografia recomendada:

o Chung RT & Podolsky DK. Cirrhosis and its complications. In:

Harrisson´s. Principles of Internal Medicine. 16th ed. McGraw –

Hill, London, p. 1858-1868, 2005.

o Revista Medicina, volume 36, número 2/4, p. 294-306, 2003.