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DO LAR À URNA: A MILITÂNCIA PELA PARTICIPAÇÃO FEMININA
IRRESTRITA DA VIDA POLÍTICA NO BRASIL
Aline Moschen de Andrade1
Resumo: Contrapondo o simbolismo feminino de meados do século XX, que consagrou à
mulher o título de "rainha do lar", esta pesquisa objetiva delinear os movimentos pela
participação irrestrita da mulher na política brasileira e o processo de emancipação feminina
durante o marco histórico de dezembro de 1930 a fevereiro de 1932, período de grande
movimentação em prol dos direitos femininos no país. A proposta consiste na análise de
acervo e utiliza como objeto de estudo o periódico Correio da Manhã, a considerar o
posicionamento de um dos principais veículos midiáticos da época sobre a militância pelo
reconhecimento do sufrágio igualitário e autonomia econômica da mulher. Trata-se de uma
breve análise epistemológica sobre a instituição da desigualdade de gênero, para pensar os
resquícios restritivos à atuação feminina que compõe a atualidade.
Palavras-chave: Emancipação feminina
Introdução
Este trabalho foi realizado através do Programa Nacional de Apoio à Pesquisa
(PNAP 2014) por incentivo da Fundação Biblioteca Nacional em parceria com Ministério
da Cultura, e é resultante de doze meses de investigação do acervo digital disponível no
site Hemeroteca Digital Brasileira2, no qual foram consultadas as edições publicadas
pelo jornal Correio da Manhã no marco histórico de dezembro de 1930 a fevereiro de
1932.
O periódico Correio da Manhã foi escolhido como objeto de estudo por sua
significância em âmbito nacional e por estar sediado na cidade do Rio de Janeiro - capital
da República dos Estados Unidos do Brasil, no contexto histórico pertinente à época.
Nesse ato, foi realizado o mapeamento de informações sobre a militância da
mulher pela participação no meio político e os movimentos que impulsionaram a
1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional pela UFES. Contato:
2Endereço do site Hemeroteca Digital Brasileira:http://bndigital.bn.br/hemeroteca-digital/
remoção das restrições ao voto feminino durante os quinze meses que compõe o corpus
documental da pesquisa, delineando os acontecimentos da reforma eleitoral que garantiu
o sufrágio igualitário no país.
Uma vez que essas informações não são do conhecimento da maior parte da
população, buscaremos retomar o cenário dessa passagem histórica objetivando uma breve
análise epistemológica da instituição da desigualdade de gênero e legitimação de leis
proibitivas ao sexo feminino, para pensar a permanência dos lugares de restrição construídos
socialmente e designados à mulher no contemporâneo.
Vamos começar por uma análise atual, pertinente ao mais recente período eleitoral que
vivemos, para que então possamos fazer a regressão ao contexto histórico que o abraça. Em
período próximo ao primeiro turno de votação para eleição a presidente do Brasil em 2014, a
Revista Veja da Editora Abril, publicou no dia 01 de outubro na capa da edição nº 2393 o
enunciado “Todos atrás dela – Mais mulheres do que homens estão entre os “órfãos do
primeiro turno”, que não vão eleger o seu candidato predileto mas definirão o resultado final
da eleição”.
A revista anunciava o editorial referente a uma pesquisa estatística em que a distinção
de sexos foi utilizada para dividir o público de eleitores, alegando que o resultado apontava
que mais mulheres do que homens contribuiriam para uma votação ineficaz, acarretando a
necessidade do segundo turno de votações. Além disso, a sátira presente na capa ilustrada por
uma imagem feminina “Eu era indecisa. Agora não tenho mais tanta certeza” denota que a
revista aponta como duvidosa a capacidade de decisão eleitoral da mulher.
Independente da eficácia de comprovação da pesquisa realizada, a escolha da equipe
de editoração em dividir o público de eleitores entre homens e mulheres revela a produção de
juízo de valor sobre a diferença na capacidade de decisão eleitoral com base no argumento da
distinção entre gêneros. Não iremos aprofundar-nos em questões sobre a forma como foi
apurado o quantitativo da mostra reunida de respostas, e a qual parcela do público de
mulheres e de homens brasileiros a pesquisa se referia, embora essas sejam reflexões
importantes. Vamos a uma questão primeira: “por quais motivos o gênero sexual foi
designado como critério de distinção no quesito eleitor, na pesquisa realizada pela revista?”
Através dessa indagação observamos que o posicionamento da Revista Veja não foi
neutro, uma vez que colocar em questão a capacidade eleitoral da mulher não é uma postura
isolada de sentido histórico. Pelo contrário, julgar o gênero sexual como competência política
foi um dos principais argumentos no debate acerca do mérito civil e da capacidade intelectual
da mulher em partilhar do cenário político, que marcou o período da reforma eleitoral
brasileira de 1932, acarretando muito esforço em prol da participação da mulher na vida
pública.
Por muito tempo as mulheres foram impedidas não somente de votar como também de
atuar fora dos domínios do lar, e a capacidade das mesmas - assim como os direitos - esteve
sob a tutela dos homens. A maneira como a mulher relacionava os setores públicos e privados
da sua vida não poderia condizer somente às escolhas individuais da própria, uma vez que a
autonomia da mesma estava submissa ao plano social e condicionada por lei restritivas do
Estado.
Além disso, deve-se considerar a produção do discurso social fomentada por
instituições como o Estado, a Família e a Igreja, que cerceavam a função social da mulher no
período ao qual se refere a nossa pesquisa. Nesse sentido, partilhamos do pensamento de
Foucault (1999) em “A ordem do discurso”, quando falamos da produção de discursos que
controlam e normatizam hábitos em uma cultura, determinando a organização da sociedade a
qual é intrínseca.
A dependência econômica, social e moral imposta à mulher
A produção do discurso social que designava “lugares” aos gêneros em meados do
século XX era justificada principalmente pelo plano científico da época, embasado pelo
positivismo de Auguste Comte. A lógica positivista afirmava a diferença entre o homem e a
mulher enquanto instância complementar. E, embora não a tratasse por classificações de
inferioridade ou superioridade, fundamentava-se na designação de competências distintas e
papéis sociais diferentes entre os gêneros afirmando-os como fenômenos biológicos e não
construções sociais, sendo contrária à igualdade.
Defendendo que os cuidados com o lar, a família e o exercício de educar os filhos
eram vocações biológicas inatas à mulher, e atividades tão nobres quanto a atuação masculina
na vida pública (uma vez que a mulher era responsável pela formação dos futuros cidadãos e,
por isto, essencial ao progresso do país) os ideais positivistas consagraram a atuação da “dona
de casa e mãe” como a verdadeira função social da mulher, papel pelo qual deveria realizar-se
enquanto cidadã.
Sobre isso, a historiadora Mônica Karawejczyk enfatiza que “é apropriado lembrar que
as mulheres foram reconhecidas como mães e não como irmãs e, sendo assim, como salienta
Christine Stansell, deveriam manter-se à margem da comunidade política, na segurança de
seus lares, sob o governo dos homens.” (KARAWEJCZYK, 2013, p. 42)
Podemos afirmar que a participação da mulher na vida pública também esteve limitada
pela legislação da Constituição Civil de 1891, que declara à mulher o título de “cidadã
inativa”, conforme vemos através do estudo de Cláudia Maia sobre o assunto:
A Constituição de 1891, por sua vez, estabeleceu a igualdade e a cidadania, mas sem
mencionar o gênero. Conforme observou Sueam Caulfied, na redação do texto foram
utilizados pronomes coletivos masculinos, fato interpretado pelos juristas de forma a
excluir as mulheres. Nesse sentido, o direito de votar e de ocupar cargos públicos,
que compreendia a “cidadania ativa”, foi restrito aos homens alfabetizados maiores
de 21 anos e em companhia de crianças, loucos, mendigos, analfabetos e índios
protegidos pelo Estado, as mulheres permaneceram cidadãs “inativas”, sujeitas às
leis republicanas, mas, sem o direito de participação cívica. (MAIA, 2007, p.93)
A luta pela emancipação política da mulher dependia diretamente da sua aprovação
como “cidadã ativa”, isso é, do reconhecimento do seu potencial enquanto geradora de lucros
para o Estado. Porém, a inserção da mulher no mercado de trabalho fazia parte de um
processo lento e corrompido pelo discurso científico sobre a incapacidade intelectual da
mesma, tornando esse âmbito dificilmente penetrável. Agravando o contexto, a mulher casada
só poderia trabalhar com permissão do marido, que tinha controle sobre todas as suas
finanças.
As mulheres eram consideradas cidadãs inativas uma vez que estavam sujeitas às
decisões dos homens sobre as suas faculdades e economias: na passagem da condição de
solteira para o estado civil de casada, a mulher transitava entre os domínios do “pátrio poder”
(tutela do pai) e do “poder marital” (tutela do marido), assim como consta no Código Civil
brasileiro anterior ao ano de 1916, quando foi reformulado.
Na reforma do Código em 1916, o Estado reduziu o número de restrições concedendo
alguns direitos pontualmente para mulheres solteiras e viúvas, mantendo as mulheres casadas
em situação anterior. Isso significa que no ato da reforma o Estado legislou e instituiu a
desigualdade entre as mulheres casadas e as mulheres sem marido - ainda tomando a relação
com o homem como um dispositivo de hierarquia, já que as decisões políticas da mulher
casada deveriam ser representadas pelo seu esposo e esta era vista como propriedade do
mesmo.
É válido salientar que apesar da concessão de alguns “benefícios” às mulheres que não
eram casadas sobre as demais, tais mulheres configuravam uma parcela minoritária da
sociedade, simbolizando a figura da mulher marginalizada, que não deveria ser tomada como
exemplo. Nesse sentido, o discurso social não elegia para a mulher solteira o lugar da
independência, mas o expunha à sujeição moral pelo não cumprimento das funções sociais
que lhe eram cabíveis. Dessa forma, vemos que a luta pela emancipação política e as
reivindicações pela independência econômica e social da mulher eram intrínsecas. E, dadas as
condições supracitadas, pode-se imaginar que as discussões sobre a participação da mulher
casada na vida pública traçam uma linha específica na militância pelo direito ao voto
feminino, tendo em vista que o poder marital só foi subtraído da legislação brasileira em
1962, por meio da lei nº 4.121, nomeada como Estatuto Jurídico da Mulher Casada, segundo
o estudo de Mônica Karawejczyk (2013).
Durante o processo de reforma eleitoral, o anteprojeto da nova lei em andamento que
prometia o sufrágio feminino, escrito por Assis Brasil e João Cabral, garantia o direito de voto
às mulheres solteiras desde que pudessem comprovar uma fonte de renda honesta, ao passo
que o exercício de voto das mulheres casadas estava condicionado a autorização do marido,
assim como também dependia da comprovação de independência financeira, desde que essa
decorresse de fonte de trabalho lícito. De acordo com esse anteprojeto, eram admitidas as
eleitoras que correspondessem às seguintes condições legais:
a) a mulher solteira ‘sui juris’, que tenha economia própria e viva do seu trabalho
honesto, ou do que lhe rendam bens, empregos, ou qualquer outra fonte de renda
lícita.
b) viúva em iguais condições.
c) a mulher casada que exerça efetivamente o comércio ou seja chefe ou gerente de
estabelecimento industrial, ou firma comercial, e bem assim a que exerça
efetivamente qualquer lícita profissão, com escritório, consultório ou
estabelecimento próprio, ou que tenha função devidamente autorizada, ou que se
presuma autorizada pelo marido, na forma da lei civil.
d) as operárias ou empregadas em estabelecimento fabril ou comercial, casada ou
não, contanto que tenha economia própria.
Ainda são alistáveis, nas condições do artigo antecedente:
a) a mulher separada por desquite amigável ou judicial, enquanto durar a separação.
b) aquela que, em consequência de declaração judicial de ausência do marido,
estiver a testa dos bens do casal, ou na direção da família.
c) aquela que foi deixada pelo marido durante mais de dois anos, embora esteja em
lugar sabido.3
Além das exigências apresentadas que restringiam o voto feminino, não poderia
inscrever-se como eleitora a mulher solteira que vivia sob teto paterno sem economia e a
viúva nas mesmas condições. Nesse caso, a exigência da independência financeira da mulher
e a comprovação do seu trabalho honesto funcionam como quesito indicador de mérito em
lugar do direito a um exercício de cidadania, enquanto ao gênero masculino nunca houvera
sido imposta tal condição.
Posteriormente ao anúncio das restrições acima, essa questão aparece em ampla
incidência nos debates das páginas do Correio da Manhã. Matérias como A emancipação
econômica e o conseqüente aperfeiçoamento moral da mulher (Correio da Manhã. Edição
11081, ano 31, 1931, p. 5 do Suplemento literário.4), demonstram que, apesar de já não irem
totalmente contra aos direitos políticos femininos, algumas opiniões ainda contribuíam para a
segregação entre mulheres: se antes estavam divididas entre casadas e solteiras, trabalhadoras
ou “do lar”, agora eram também classificadas entre mulheres de trabalho honesto e não
honesto, passíveis de exercer o direito de cidadania ou não; reforçando a imagem da mulher
“merecedora” de sua emancipação política, sob o aval de uma sociedade de moral patriarcal.
A militância pelo voto feminino sem restrições no Brasil
Apesar de uma comissão redatora formada por homens, a lei eleitoral que garantiu o
voto feminino sem restrições não se deve a atuação de outros, se não principalmente de
mulheres, que combateram exaustivamente a formação essencialmente masculina nos espaços
do cenário político. Já que, de acordo com o Código Civil vigente na época, nenhuma mulher
poderia exercer função em cargos públicos no país. 3 Transcrição do anteprojeto de reforma eleitoral. Nova lei eleitoral, edição 11271, ano 31, p. 2, notícia emitida
pelo jornal Correio da Manhã, 24 mai 1931. 4A página 5 do Suplemento literário corresponde à página 21 da edição 11081 no site Hemeroteca Digital
Brasileira
Por esta dificuldade de inserção nas atividades políticas, foi necessária a organização
de movimentos autônomos. Em prol dos direitos femininos e afirmando autonomia política,
foram fundadas a Alliança Nacional de Mulheres (ANM), presidida por Nathércia da Silveira;
e a Federação Brasileira Pelo Progresso Feminino (FBPF), presidida por Bertha Lutz. A
atuação dessas organizações feministas durante o andamento da reforma eleitoral é destacada
pelo periódico Correio da Manhã através de notas sobre reuniões com o presidente em
exigência dos direitos da mulher, da transcrição de áudios extraídos do programa social da
FBPF denominado Cinco minutos de feminismo na Rádio Sociedade, e da organização de dois
importantes eventos: o II Congresso Feminista, no Rio de Janeiro, pela FBPF; e o I Congresso
Feminino Mineiro, em Belo Horizonte, organizado por Elvira Komel em parceria com a
ANM.
Em 24 de maio de 1931 a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino publicou na
edição de número 11176 do Correio da Manhã um mapa indicador de países onde a mulher
“tem” e “não tem direitos” ao voto. Acima do mapa há a inscrição de que “150 milhões de
mulheres são eleitoras” no mundo, denotando que havia um movimento amplo e articulado
internacionalmente em prol do sufrágio feminino, envolvendo a militância e troca de
informações entre mulheres de diversos países, o que, cada vez mais, dava estímulo e amparo
a essa reivindicação. Portanto, não é incorreto afirmar que a comissão de elaboração do
projeto de reforma eleitoral brasileira não tomou esta medida por espontaneidade ou decisão
própria, mas sofreu pressionamento político nacional e internacional para o reconhecimento
do direito ao voto feminino.
A partir de então, deu-se início a nova mobilização em queixa das restrições previstas,
e solicitação de remoção das mesmas. Por conta desse movimento em busca da igualdade,
estaremos concentrados na análise das matérias que tratam desta causa. A seguir, buscaremos
retratar os principais argumentos sobre a remoção das restrições no projeto de reforma
eleitoral, utilizando somente as matérias de gênero opinativo que constam no periódico
acompanhado, dividindo-as em opiniões contra e a favor das restrições ao sufrágio feminino
no Brasil.
Em edição seqüencial à publicação sobre as restrições ao sufrágio feminino, o Correio
da Manhã publicou um artigo sem assinatura, de título Feminismo estrábico, em crítica ao
anteprojeto da nova lei eleitoral, uma vez que por não fazer iguais exigências aos homens não
se poderia considerar essa proposta igualitária, como podemos constatar através da transcrição
do seguinte trecho: “essas distinções provam que os autores do voto feminino continuam a
olhar as mulheres de esguelha.” (Correio da Manhã. Edição 11272, ano 31, 1931,p. 4)
Também foi encontrada uma entrevista do senhor Maurício Lacerda ao Correio da
Manhã: “uma lei de habilitação eleitoral, num ‘regimen’ representativo, não deve dizer quem
pode exercer o ‘suffragio’” e, a respeito da exigência de que a profissão da mulher eleitora
fosse considerada honesta, comentou: “não se precisava dizer que era honesta. Qual é a
profissão ‘deshonesta’, qual é ‘ella’, seja no homem ou na mulher, que se chame legal e
socialmente de profissão?” (LACERDA,1931,p. 3)
Posteriormente, Queiroz Lima publicou um artigo com descrição do que fora dito pela
senhora Carmen Velasco Portinho, presidente da União Universitária Feminina, no programa
Cinco minutos de feminismo, na Rádio Sociedade:
Praticamente, as restrições impostas pelos diversos numeros do art. 11, só serão
objecto de prova rigorosa quando for impugnada a inscrição ou se abrir processo de
exclusão, segundo as normas do cap. V. Como é natural, este esclarecimento dado
por um dos autores do projeto, trouxe-nos grande satisfação. Maior satisfação
teríamos entretanto, se o projeto eliminasse a distinção que faz entre os alistaveis
dos dois sexos.E para isso basta acrescentar apenas quatro palavrinhas no artigo que
concede o direito de voto aos cidadãos brasileiros, dizendo com mais justiça e
simplicidade “É eleitor todo cidadão sem distinção de sexo.” (PORTINHO,
1931,p.3)
No dia 16 de Outubro de 1931, Queiroz Lima conferiu palestra acerca das restrições
ao voto feminino no Instituto dos Advogados, no Rio de Janeiro. O Correio da Manhã trouxe
à tona o discurso de Lima, que afirmou serem injustas as restrições do anteprojeto,
especialmente a que se refere à comprovação de fonte de renda lícita exigida à mulher casada,
uma vez que:
Considera que a mesma não se justificaria, mesmo nesse caso, porque o fator
econômico não é superior aos outros factores sociaes, e que a contribuição
da mulher casada na economia domestica, na gerência da casa, no
aparelhamento do lar, é de tão alta significância como o papel
desempenhado pelo homem que apresenta a sua quota em moeda. (LIMA,
1931, p.2)
Em oposição aos argumentos acima e em postura favorável às restrições ao sufrágio
feminino, afirma o deputado Borges de Medeiros, que em entrevista de título Sobre o projeto
de Lei Eleitoral declara estar plenamente de acordo com o projeto e as restrições por ele
cobradas à mulher, acrescentando a ideia de que “o voto feminino fosse familiar, isto é, a
criação dos chamados conselhos de família, onde a mulher tivesse o voto deliberativo nas
questões de assistência social, ‘instrucção’ pública e ‘hygiene’” apenas. (MEDEIROS, 1931,
p. 2)
Também foi explicitado por artigo nomeado O eleitorado das avós, escrito por Julio
Dantas, a concordância com a opinião do deputado espanhol Ayuso em restringir ainda mais
as condições do direito da mulher ao voto. Com base na diferença biológica de funcionamento
entre o organismo masculino e feminino, Ayuso argumentava que a mulher só poderia votar a
partir dos 45 anos de idade, por conta da afetação provocada pelo calendário menstrual no
estado mental e emocional da mesma, o que lhe subtrairia qualquer capacidade política antes
da menopausa. Sobre isto, disse “a mulher só começa a existir como cidadão quando se
aposenta como mulher, e só se considera investida na plenitude de seus direitos quando a
natureza a exonerou dos deveres próprios do seu sexo.” (DANTAS, 1931,p. 4).
Durante o tempo em que continuava a ser redigido o anteprojeto de reforma eleitoral, e
enquanto acontecia o embate de argumentos sobre as restrições ao eleitorado feminino,
articulou-se um movimento que exigiu a mudança da escritura do projeto. No dia 10 de
dezembro de 1931, foi emitido um artigo da FBPF, intitulado A Federação Brasileira pelo
Progresso Feminino encerrou o seu ‘anno’ social, contendo o discurso de Alice Pinheiro
Coimbra, que antes de proclamar o período de férias da Federação especificou como estava
sendo organizado o movimento em prol da retirada de restrições, e os meios pelos quais
buscou estar articulado:
Iniciamos um movimento para que sejam retiradas do ‘ante-projecto’ as restrições
que vão cercear os direitos da mulher casada, privando-a de votar, se não tiver
fortuna ou renda proveniente do seu labor.
O movimento estendeu-se tambem por meio de palestras, às segundas-feiras, na
Radio Sociedade do Rio de Janeiro, sob a denominação de “Cindo minutos de
feminismo” e pela imprensa com entrevistas e artigos sobre o voto. Temos também
o apoio de illustres juristas e oradores de larga visão que, semanalmente, da tribuna
do Instituto dos Advogados vêm fazendo brilhantes conferências sobre o direito da
mulher ao voto, com criticas muito interessantes às restrições com que foram
estranhamente visadas as mulheres casadas. Essa serie de conferencias, promovida
pela Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, tem tido uma ‘selecta’
assistência de senhoras e cavalheiros. (COIMBRA, 1931,p.6)
No período em que observamos o Correio da Manhã, constam mais matérias sobre a
Federação Brasileira pelo Progresso Feminino do que sobre a Alliança Nacional de Mulheres,
uma vez que a própria FBPF mantinha publicações próprias no jornal regularmente. Isto não
quer dizer necessariamente que a atuação dessa, nesse movimento, foi maior ou menor, já que
o periódico disponibilizava as opções de “publicações a pedido” e “publicações pagas”.
Ao todo, tratando-se apenas das matérias opinativas, emitidas após a declaração das
restrições do anteprojeto da reforma eleitoral, foram encontradas doze matérias contra as
restrições ao voto feminino, e sete a favor. Contudo, apesar de conceder maior visibilidade
para matérias que defendiam a retirada das restrições à mulher na nova lei eleitoral, o que
pode ser considerada uma ação significativa, compreende-se, como resultado da pesquisa, que
o Correio da Manhã manteve-se neutro na emissão de opinião própria, pela inexistência de
editorial ou pronunciamento da equipe de editoração sobre esse assunto.
A Nova Lei Eleitoral
Em dezembro de 1931, foi comunicado o afastamento do senhor Assis Brasil,
principal redator do anteprojeto de reforma eleitoral que continha restrições ao voto feminino,
através de notícia no Correio da Manhã. Essa notícia informava que o ministro da Justiça,
Maurício Cardoso, presidia a comissão de redação do projeto, e que o grupo definitivo ficou
então formado por Adhemar Faria, Bruno de Mendonça Lima, João Cabral, Juscelino
Barbosa, Mario Castro, Mauricio Cardoso, Otavio Kelly, Sampaio Doria e Sergio de Oliveira.
Nesse caso, Sampaio Doria foi o substituto de Assis Brasil.
O afastamento do senhor Brasil deu-se por motivos de saúde e não por rompimento
político, o que tornou possível que ele acompanhasse o processo de elaboração da nova lei
eleitoral por telegramas. Em janeiro de 1932, foi emitida no Correio da Manhã a transcrição
de um telegrama enviado por João Cabral a Assis Brasil, deixando-o a par do andamento da
elaboração da nova lei. Cabral afirmava que todos os deputados concordavam com o sistema
que Assis Brasil havia deixado pronto previamente, no entanto, o senhor Sampaio Doria
pleiteava modificações.
No telegrama, João Cabral ainda relatava que o esboço do Sr. Sampaio Doria sobre a
nova lei modificara o anteprojeto, concedendo o voto às mulheres sem restrições, havendo
apenas o reparo de torná-lo facultativo. No entanto, esse direito não poderia ser considerado
igualitário, uma vez que o voto era obrigatório a todo homem com idade até 60 anos, e
facultativo à mulher. O deputado Sampaio Doria havia justificado o voto facultativo às
mulheres, alegando que não acreditava muito no sufrágio feminino, já que na opinião dele,
sendo uma opção facultativa, a maior parte das mulheres não se alistaria.
Pelo exposto acima, conclui-se que além de ceder a um pressionamento político, como
apresentado no capítulo anterior através das ações dos movimentos militantes, a comissão de
redação do anteprojeto de reforma eleitoral usou de um método que pensou poder manter
afastadas as futuras eleitoras, quando reconheceu o direito ao voto feminino. Tornando-o
facultativo e não obrigatório, a burocracia exigida para que uma mulher conseguisse alistar-se
seria muito mais trabalhosa, além de simbolizar um lugar de menor importância nas decisões
políticas.
Finalmente, em 28 de fevereiro de 1932, foi noticiada a publicação da Nova Lei
Eleitoral, vigente a partir de então, pelo seguinte trecho: “Art. 1º. Este Codigo regula em todo
o ‘paiz’ o alistamento eleitoral e as eleições ‘federaes’, estaduais e ‘municipaes’. Art. 2º. É
eleitor o cidadão maior de 21 ‘annos’, sem distinção de sexo, alistado na forma deste
Código.” (Correio da Manhã. Edição 11414, ano 32, 1932, p.2)
A essa conquista, devemos principalmente o desempenho dos movimentos feministas
militantes, assim como de todos os apoiadores, dentre homens e mulheres, que serviram de
articuladores com o poder público, no processo de conquista da igualdade política e não
restrição do sufrágio feminino. Em memória, podemos mencionar os nomes de Alice Pinheiro
Coimbra, Bertha Lutz, Carmen Velasco Portinho, Elvira Komel, Leolinda Daltro e Nathércia
da Silveira, destacados dentre todos os outros que também merecem o crédito, pela incidência
em matérias do jornal Correio da Manhã como militantes pelo sufrágio igualitário no Brasil.
Considerações finais
O que se pretendeu através desta pesquisa foi compreender o histórico de instituição
da desigualdade entre gêneros e legitimação das restrições da atuação feminina na vida
política, através do mapeamento dos principais argumentos utilizados a respeito da remoção
às restrições ao voto feminino durante o andamento reforma eleitoral de 1932, no Brasil.
Notou-se que o primeiro embate hierárquico pelo qual perpassou o pleito ao voto igualitário
dava-se pela inexistência de representação política feminina nas comissões redatoras dos
projetos de leis, em virtude da proibição à mulher exercer cargos públicos, o que exigiu
movimentação autônoma de fundações tais como a Aliança Nacional de Mulheres e
Federação Brasileira pelo Progresso Feminino.
Da atuação dessas organizações, constatou-se que os espaços públicos de fala ficaram
reservados aos veículos de mídia, distribuídos entre matérias pagas pelas próprias em jornais
tais como o Correio da Manhã, e anúncios na Rádio Sociedade. Tornou-se evidente que,
embora os veículos de mídia não fossem espaços políticos legítimos perante ao Estado, a
repercussão do debate público através dos mesmos ocasionou pressionamento político
nacional e internacional, que culminou na remoção das restrições ao sufrágio feminino no
país.
Através do acompanhamento das edições do periódico estudado, foi possivel observar
a ordem cronológica dos acontecimentos e os dispositivos criados pela comissão redatora do
anteprojeto da nova lei eleitoral para atrasar e dificultar esse processo. Fica claro que a
restrição do direito ao voto somente às mulheres que não eram casadas e economicamente
independentes foi uma estratégia da comissão redatora do anteprojeto da reforma eleitoral
para manter mínimo o número de eleitoras, uma vez que a estrutura social da época
organizada com base na filosofia positivista tornava inviáveis tais condições à maior parte da
população feminina brasileira.
Apesar da conquista feminina que desfecha esse marco histórico com a remoção das
restrições na nova lei eleitoral de 1932 e o direito ao voto sem distinção de gênero, a análise
das matérias consultadas revela ainda nomes de mulheres pouco conhecidas em relação aos
grandes feitos realizados em prol desse movimento, e mesmo outras até então não
mencionadas.
Hoje, o quantitativo de mulheres e homens ocupando os espaços de representação em
cargos públicos permanece desigual em comparativo – dado a parcela restrita de mulheres que
conseguem ser eleitas. A atuação feminina na vida política é freqüentemente colocada em
dúvida por diferentes veículos midiáticos, tornando premente a justificativa de evidenciar a
genealogia desse fato. Outra preocupação ética diz da não reprodução das narrativas que
apresentam a passagem histórica do sufrágio feminino como uma concessão do Estado à
mulher, ao que é importante ressaltar que o espaço de luta e reivindicação foi criado pelas
próprias interessadas – garantindo que a memória das principais atuantes dessa causa não seja
desvanecida.
Referências
COIMBRA, Alice Pinheiro. A Federação Brasileira pelo Progresso Feminino encerrou o
seu anno social. Rio de Janeiro:1931, edição 11347, ano 31, p.6, 10 dez. 1931. Artigo
publicado no Correio da Manhã.
CORREIO DA MANHÃ. Rio de Janeiro: M. Paulo Filho, 1900-1989, publicações encerradas,
período 1930-1932.Disponível em<http://bndigital.bn.br/hemeroteca-digital/> Acesso de fev a
dez de 2014.
DANTAS, Julio. O eleitorado das avós. Rio de Janeiro: 1931, edição 11134, ano 31, p. 4, 5
abr. 1931. Artigo publicado no Correio da Manhã.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Editora Loyola, 1999
KARAWEJCZYK, Mônica. As Filhas de Eva querem votar: dos primórdios da questão à
conquista do sufrágio feminino no Brasil (c.1850-1932). 2013. 398 f. Tese (Doutorado) -
Curso de História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, 2013.
LACERDA, Maurício. O ante-projecto eleitoral, Rio de Janeiro:1931,edição11274, ano 31,
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LIMA, Queiroz. Prova deficiente. Rio de Janeiro: 1931,edição11300, ano 31, página 2, 16 out. 1931.
Artigo publicado no Correio da Manhã.
MAIA, Cláudia de Jesus. A invenção da solteirona – Conjugalidade moderna e terror
moral – Minas Gerais (c.1890 – 1948). 2007. Tese (Doutorado) – Curso de História,
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MEDEIROS, Borges. Sobre o projecto de Lei Eleitoral, Rio de Janeiro: 1931, edição 11311,
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PORTINHO, Carmen Velasco. Federação Brasileira pelo Progresso Feminino.Rio de Janeiro: 1931,
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REVISTA VEJA, Rio de Janeiro: Editora Abril, edição 2393, ano 47, nº 40, 1 out. 2014.