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DO LAR À URNA: A MILITÂNCIA PELA PARTICIPAÇÃO FEMININA IRRESTRITA DA VIDA POLÍTICA NO BRASIL Aline Moschen de Andrade 1 Resumo: Contrapondo o simbolismo feminino de meados do século XX, que consagrou à mulher o título de "rainha do lar", esta pesquisa objetiva delinear os movimentos pela participação irrestrita da mulher na política brasileira e o processo de emancipação feminina durante o marco histórico de dezembro de 1930 a fevereiro de 1932, período de grande movimentação em prol dos direitos femininos no país. A proposta consiste na análise de acervo e utiliza como objeto de estudo o periódico Correio da Manhã, a considerar o posicionamento de um dos principais veículos midiáticos da época sobre a militância pelo reconhecimento do sufrágio igualitário e autonomia econômica da mulher. Trata-se de uma breve análise epistemológica sobre a instituição da desigualdade de gênero, para pensar os resquícios restritivos à atuação feminina que compõe a atualidade. Palavras-chave: Emancipação feminina Introdução Este trabalho foi realizado através do Programa Nacional de Apoio à Pesquisa (PNAP 2014) por incentivo da Fundação Biblioteca Nacional em parceria com Ministério da Cultura, e é resultante de doze meses de investigação do acervo digital disponível no site Hemeroteca Digital Brasileira 2 , no qual foram consultadas as edições publicadas pelo jornal Correio da Manhã no marco histórico de dezembro de 1930 a fevereiro de 1932. O periódico Correio da Manhã foi escolhido como objeto de estudo por sua significância em âmbito nacional e por estar sediado na cidade do Rio de Janeiro - capital da República dos Estados Unidos do Brasil, no contexto histórico pertinente à época. Nesse ato, foi realizado o mapeamento de informações sobre a militância da mulher pela participação no meio político e os movimentos que impulsionaram a 1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional pela UFES. Contato: [email protected] 2 Endereço do site Hemeroteca Digital Brasileira:http://bndigital.bn.br/hemeroteca-digital/

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DO LAR À URNA: A MILITÂNCIA PELA PARTICIPAÇÃO FEMININA

IRRESTRITA DA VIDA POLÍTICA NO BRASIL

Aline Moschen de Andrade1

Resumo: Contrapondo o simbolismo feminino de meados do século XX, que consagrou à

mulher o título de "rainha do lar", esta pesquisa objetiva delinear os movimentos pela

participação irrestrita da mulher na política brasileira e o processo de emancipação feminina

durante o marco histórico de dezembro de 1930 a fevereiro de 1932, período de grande

movimentação em prol dos direitos femininos no país. A proposta consiste na análise de

acervo e utiliza como objeto de estudo o periódico Correio da Manhã, a considerar o

posicionamento de um dos principais veículos midiáticos da época sobre a militância pelo

reconhecimento do sufrágio igualitário e autonomia econômica da mulher. Trata-se de uma

breve análise epistemológica sobre a instituição da desigualdade de gênero, para pensar os

resquícios restritivos à atuação feminina que compõe a atualidade.

Palavras-chave: Emancipação feminina

Introdução

Este trabalho foi realizado através do Programa Nacional de Apoio à Pesquisa

(PNAP 2014) por incentivo da Fundação Biblioteca Nacional em parceria com Ministério

da Cultura, e é resultante de doze meses de investigação do acervo digital disponível no

site Hemeroteca Digital Brasileira2, no qual foram consultadas as edições publicadas

pelo jornal Correio da Manhã no marco histórico de dezembro de 1930 a fevereiro de

1932.

O periódico Correio da Manhã foi escolhido como objeto de estudo por sua

significância em âmbito nacional e por estar sediado na cidade do Rio de Janeiro - capital

da República dos Estados Unidos do Brasil, no contexto histórico pertinente à época.

Nesse ato, foi realizado o mapeamento de informações sobre a militância da

mulher pela participação no meio político e os movimentos que impulsionaram a

1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional pela UFES. Contato:

[email protected]

2Endereço do site Hemeroteca Digital Brasileira:http://bndigital.bn.br/hemeroteca-digital/

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remoção das restrições ao voto feminino durante os quinze meses que compõe o corpus

documental da pesquisa, delineando os acontecimentos da reforma eleitoral que garantiu

o sufrágio igualitário no país.

Uma vez que essas informações não são do conhecimento da maior parte da

população, buscaremos retomar o cenário dessa passagem histórica objetivando uma breve

análise epistemológica da instituição da desigualdade de gênero e legitimação de leis

proibitivas ao sexo feminino, para pensar a permanência dos lugares de restrição construídos

socialmente e designados à mulher no contemporâneo.

Vamos começar por uma análise atual, pertinente ao mais recente período eleitoral que

vivemos, para que então possamos fazer a regressão ao contexto histórico que o abraça. Em

período próximo ao primeiro turno de votação para eleição a presidente do Brasil em 2014, a

Revista Veja da Editora Abril, publicou no dia 01 de outubro na capa da edição nº 2393 o

enunciado “Todos atrás dela – Mais mulheres do que homens estão entre os “órfãos do

primeiro turno”, que não vão eleger o seu candidato predileto mas definirão o resultado final

da eleição”.

A revista anunciava o editorial referente a uma pesquisa estatística em que a distinção

de sexos foi utilizada para dividir o público de eleitores, alegando que o resultado apontava

que mais mulheres do que homens contribuiriam para uma votação ineficaz, acarretando a

necessidade do segundo turno de votações. Além disso, a sátira presente na capa ilustrada por

uma imagem feminina “Eu era indecisa. Agora não tenho mais tanta certeza” denota que a

revista aponta como duvidosa a capacidade de decisão eleitoral da mulher.

Independente da eficácia de comprovação da pesquisa realizada, a escolha da equipe

de editoração em dividir o público de eleitores entre homens e mulheres revela a produção de

juízo de valor sobre a diferença na capacidade de decisão eleitoral com base no argumento da

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distinção entre gêneros. Não iremos aprofundar-nos em questões sobre a forma como foi

apurado o quantitativo da mostra reunida de respostas, e a qual parcela do público de

mulheres e de homens brasileiros a pesquisa se referia, embora essas sejam reflexões

importantes. Vamos a uma questão primeira: “por quais motivos o gênero sexual foi

designado como critério de distinção no quesito eleitor, na pesquisa realizada pela revista?”

Através dessa indagação observamos que o posicionamento da Revista Veja não foi

neutro, uma vez que colocar em questão a capacidade eleitoral da mulher não é uma postura

isolada de sentido histórico. Pelo contrário, julgar o gênero sexual como competência política

foi um dos principais argumentos no debate acerca do mérito civil e da capacidade intelectual

da mulher em partilhar do cenário político, que marcou o período da reforma eleitoral

brasileira de 1932, acarretando muito esforço em prol da participação da mulher na vida

pública.

Por muito tempo as mulheres foram impedidas não somente de votar como também de

atuar fora dos domínios do lar, e a capacidade das mesmas - assim como os direitos - esteve

sob a tutela dos homens. A maneira como a mulher relacionava os setores públicos e privados

da sua vida não poderia condizer somente às escolhas individuais da própria, uma vez que a

autonomia da mesma estava submissa ao plano social e condicionada por lei restritivas do

Estado.

Além disso, deve-se considerar a produção do discurso social fomentada por

instituições como o Estado, a Família e a Igreja, que cerceavam a função social da mulher no

período ao qual se refere a nossa pesquisa. Nesse sentido, partilhamos do pensamento de

Foucault (1999) em “A ordem do discurso”, quando falamos da produção de discursos que

controlam e normatizam hábitos em uma cultura, determinando a organização da sociedade a

qual é intrínseca.

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A dependência econômica, social e moral imposta à mulher

A produção do discurso social que designava “lugares” aos gêneros em meados do

século XX era justificada principalmente pelo plano científico da época, embasado pelo

positivismo de Auguste Comte. A lógica positivista afirmava a diferença entre o homem e a

mulher enquanto instância complementar. E, embora não a tratasse por classificações de

inferioridade ou superioridade, fundamentava-se na designação de competências distintas e

papéis sociais diferentes entre os gêneros afirmando-os como fenômenos biológicos e não

construções sociais, sendo contrária à igualdade.

Defendendo que os cuidados com o lar, a família e o exercício de educar os filhos

eram vocações biológicas inatas à mulher, e atividades tão nobres quanto a atuação masculina

na vida pública (uma vez que a mulher era responsável pela formação dos futuros cidadãos e,

por isto, essencial ao progresso do país) os ideais positivistas consagraram a atuação da “dona

de casa e mãe” como a verdadeira função social da mulher, papel pelo qual deveria realizar-se

enquanto cidadã.

Sobre isso, a historiadora Mônica Karawejczyk enfatiza que “é apropriado lembrar que

as mulheres foram reconhecidas como mães e não como irmãs e, sendo assim, como salienta

Christine Stansell, deveriam manter-se à margem da comunidade política, na segurança de

seus lares, sob o governo dos homens.” (KARAWEJCZYK, 2013, p. 42)

Podemos afirmar que a participação da mulher na vida pública também esteve limitada

pela legislação da Constituição Civil de 1891, que declara à mulher o título de “cidadã

inativa”, conforme vemos através do estudo de Cláudia Maia sobre o assunto:

A Constituição de 1891, por sua vez, estabeleceu a igualdade e a cidadania, mas sem

mencionar o gênero. Conforme observou Sueam Caulfied, na redação do texto foram

utilizados pronomes coletivos masculinos, fato interpretado pelos juristas de forma a

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excluir as mulheres. Nesse sentido, o direito de votar e de ocupar cargos públicos,

que compreendia a “cidadania ativa”, foi restrito aos homens alfabetizados maiores

de 21 anos e em companhia de crianças, loucos, mendigos, analfabetos e índios

protegidos pelo Estado, as mulheres permaneceram cidadãs “inativas”, sujeitas às

leis republicanas, mas, sem o direito de participação cívica. (MAIA, 2007, p.93)

A luta pela emancipação política da mulher dependia diretamente da sua aprovação

como “cidadã ativa”, isso é, do reconhecimento do seu potencial enquanto geradora de lucros

para o Estado. Porém, a inserção da mulher no mercado de trabalho fazia parte de um

processo lento e corrompido pelo discurso científico sobre a incapacidade intelectual da

mesma, tornando esse âmbito dificilmente penetrável. Agravando o contexto, a mulher casada

só poderia trabalhar com permissão do marido, que tinha controle sobre todas as suas

finanças.

As mulheres eram consideradas cidadãs inativas uma vez que estavam sujeitas às

decisões dos homens sobre as suas faculdades e economias: na passagem da condição de

solteira para o estado civil de casada, a mulher transitava entre os domínios do “pátrio poder”

(tutela do pai) e do “poder marital” (tutela do marido), assim como consta no Código Civil

brasileiro anterior ao ano de 1916, quando foi reformulado.

Na reforma do Código em 1916, o Estado reduziu o número de restrições concedendo

alguns direitos pontualmente para mulheres solteiras e viúvas, mantendo as mulheres casadas

em situação anterior. Isso significa que no ato da reforma o Estado legislou e instituiu a

desigualdade entre as mulheres casadas e as mulheres sem marido - ainda tomando a relação

com o homem como um dispositivo de hierarquia, já que as decisões políticas da mulher

casada deveriam ser representadas pelo seu esposo e esta era vista como propriedade do

mesmo.

É válido salientar que apesar da concessão de alguns “benefícios” às mulheres que não

eram casadas sobre as demais, tais mulheres configuravam uma parcela minoritária da

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sociedade, simbolizando a figura da mulher marginalizada, que não deveria ser tomada como

exemplo. Nesse sentido, o discurso social não elegia para a mulher solteira o lugar da

independência, mas o expunha à sujeição moral pelo não cumprimento das funções sociais

que lhe eram cabíveis. Dessa forma, vemos que a luta pela emancipação política e as

reivindicações pela independência econômica e social da mulher eram intrínsecas. E, dadas as

condições supracitadas, pode-se imaginar que as discussões sobre a participação da mulher

casada na vida pública traçam uma linha específica na militância pelo direito ao voto

feminino, tendo em vista que o poder marital só foi subtraído da legislação brasileira em

1962, por meio da lei nº 4.121, nomeada como Estatuto Jurídico da Mulher Casada, segundo

o estudo de Mônica Karawejczyk (2013).

Durante o processo de reforma eleitoral, o anteprojeto da nova lei em andamento que

prometia o sufrágio feminino, escrito por Assis Brasil e João Cabral, garantia o direito de voto

às mulheres solteiras desde que pudessem comprovar uma fonte de renda honesta, ao passo

que o exercício de voto das mulheres casadas estava condicionado a autorização do marido,

assim como também dependia da comprovação de independência financeira, desde que essa

decorresse de fonte de trabalho lícito. De acordo com esse anteprojeto, eram admitidas as

eleitoras que correspondessem às seguintes condições legais:

a) a mulher solteira ‘sui juris’, que tenha economia própria e viva do seu trabalho

honesto, ou do que lhe rendam bens, empregos, ou qualquer outra fonte de renda

lícita.

b) viúva em iguais condições.

c) a mulher casada que exerça efetivamente o comércio ou seja chefe ou gerente de

estabelecimento industrial, ou firma comercial, e bem assim a que exerça

efetivamente qualquer lícita profissão, com escritório, consultório ou

estabelecimento próprio, ou que tenha função devidamente autorizada, ou que se

presuma autorizada pelo marido, na forma da lei civil.

d) as operárias ou empregadas em estabelecimento fabril ou comercial, casada ou

não, contanto que tenha economia própria.

Ainda são alistáveis, nas condições do artigo antecedente:

a) a mulher separada por desquite amigável ou judicial, enquanto durar a separação.

b) aquela que, em consequência de declaração judicial de ausência do marido,

estiver a testa dos bens do casal, ou na direção da família.

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c) aquela que foi deixada pelo marido durante mais de dois anos, embora esteja em

lugar sabido.3

Além das exigências apresentadas que restringiam o voto feminino, não poderia

inscrever-se como eleitora a mulher solteira que vivia sob teto paterno sem economia e a

viúva nas mesmas condições. Nesse caso, a exigência da independência financeira da mulher

e a comprovação do seu trabalho honesto funcionam como quesito indicador de mérito em

lugar do direito a um exercício de cidadania, enquanto ao gênero masculino nunca houvera

sido imposta tal condição.

Posteriormente ao anúncio das restrições acima, essa questão aparece em ampla

incidência nos debates das páginas do Correio da Manhã. Matérias como A emancipação

econômica e o conseqüente aperfeiçoamento moral da mulher (Correio da Manhã. Edição

11081, ano 31, 1931, p. 5 do Suplemento literário.4), demonstram que, apesar de já não irem

totalmente contra aos direitos políticos femininos, algumas opiniões ainda contribuíam para a

segregação entre mulheres: se antes estavam divididas entre casadas e solteiras, trabalhadoras

ou “do lar”, agora eram também classificadas entre mulheres de trabalho honesto e não

honesto, passíveis de exercer o direito de cidadania ou não; reforçando a imagem da mulher

“merecedora” de sua emancipação política, sob o aval de uma sociedade de moral patriarcal.

A militância pelo voto feminino sem restrições no Brasil

Apesar de uma comissão redatora formada por homens, a lei eleitoral que garantiu o

voto feminino sem restrições não se deve a atuação de outros, se não principalmente de

mulheres, que combateram exaustivamente a formação essencialmente masculina nos espaços

do cenário político. Já que, de acordo com o Código Civil vigente na época, nenhuma mulher

poderia exercer função em cargos públicos no país. 3 Transcrição do anteprojeto de reforma eleitoral. Nova lei eleitoral, edição 11271, ano 31, p. 2, notícia emitida

pelo jornal Correio da Manhã, 24 mai 1931. 4A página 5 do Suplemento literário corresponde à página 21 da edição 11081 no site Hemeroteca Digital

Brasileira

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Por esta dificuldade de inserção nas atividades políticas, foi necessária a organização

de movimentos autônomos. Em prol dos direitos femininos e afirmando autonomia política,

foram fundadas a Alliança Nacional de Mulheres (ANM), presidida por Nathércia da Silveira;

e a Federação Brasileira Pelo Progresso Feminino (FBPF), presidida por Bertha Lutz. A

atuação dessas organizações feministas durante o andamento da reforma eleitoral é destacada

pelo periódico Correio da Manhã através de notas sobre reuniões com o presidente em

exigência dos direitos da mulher, da transcrição de áudios extraídos do programa social da

FBPF denominado Cinco minutos de feminismo na Rádio Sociedade, e da organização de dois

importantes eventos: o II Congresso Feminista, no Rio de Janeiro, pela FBPF; e o I Congresso

Feminino Mineiro, em Belo Horizonte, organizado por Elvira Komel em parceria com a

ANM.

Em 24 de maio de 1931 a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino publicou na

edição de número 11176 do Correio da Manhã um mapa indicador de países onde a mulher

“tem” e “não tem direitos” ao voto. Acima do mapa há a inscrição de que “150 milhões de

mulheres são eleitoras” no mundo, denotando que havia um movimento amplo e articulado

internacionalmente em prol do sufrágio feminino, envolvendo a militância e troca de

informações entre mulheres de diversos países, o que, cada vez mais, dava estímulo e amparo

a essa reivindicação. Portanto, não é incorreto afirmar que a comissão de elaboração do

projeto de reforma eleitoral brasileira não tomou esta medida por espontaneidade ou decisão

própria, mas sofreu pressionamento político nacional e internacional para o reconhecimento

do direito ao voto feminino.

A partir de então, deu-se início a nova mobilização em queixa das restrições previstas,

e solicitação de remoção das mesmas. Por conta desse movimento em busca da igualdade,

estaremos concentrados na análise das matérias que tratam desta causa. A seguir, buscaremos

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retratar os principais argumentos sobre a remoção das restrições no projeto de reforma

eleitoral, utilizando somente as matérias de gênero opinativo que constam no periódico

acompanhado, dividindo-as em opiniões contra e a favor das restrições ao sufrágio feminino

no Brasil.

Em edição seqüencial à publicação sobre as restrições ao sufrágio feminino, o Correio

da Manhã publicou um artigo sem assinatura, de título Feminismo estrábico, em crítica ao

anteprojeto da nova lei eleitoral, uma vez que por não fazer iguais exigências aos homens não

se poderia considerar essa proposta igualitária, como podemos constatar através da transcrição

do seguinte trecho: “essas distinções provam que os autores do voto feminino continuam a

olhar as mulheres de esguelha.” (Correio da Manhã. Edição 11272, ano 31, 1931,p. 4)

Também foi encontrada uma entrevista do senhor Maurício Lacerda ao Correio da

Manhã: “uma lei de habilitação eleitoral, num ‘regimen’ representativo, não deve dizer quem

pode exercer o ‘suffragio’” e, a respeito da exigência de que a profissão da mulher eleitora

fosse considerada honesta, comentou: “não se precisava dizer que era honesta. Qual é a

profissão ‘deshonesta’, qual é ‘ella’, seja no homem ou na mulher, que se chame legal e

socialmente de profissão?” (LACERDA,1931,p. 3)

Posteriormente, Queiroz Lima publicou um artigo com descrição do que fora dito pela

senhora Carmen Velasco Portinho, presidente da União Universitária Feminina, no programa

Cinco minutos de feminismo, na Rádio Sociedade:

Praticamente, as restrições impostas pelos diversos numeros do art. 11, só serão

objecto de prova rigorosa quando for impugnada a inscrição ou se abrir processo de

exclusão, segundo as normas do cap. V. Como é natural, este esclarecimento dado

por um dos autores do projeto, trouxe-nos grande satisfação. Maior satisfação

teríamos entretanto, se o projeto eliminasse a distinção que faz entre os alistaveis

dos dois sexos.E para isso basta acrescentar apenas quatro palavrinhas no artigo que

concede o direito de voto aos cidadãos brasileiros, dizendo com mais justiça e

simplicidade “É eleitor todo cidadão sem distinção de sexo.” (PORTINHO,

1931,p.3)

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No dia 16 de Outubro de 1931, Queiroz Lima conferiu palestra acerca das restrições

ao voto feminino no Instituto dos Advogados, no Rio de Janeiro. O Correio da Manhã trouxe

à tona o discurso de Lima, que afirmou serem injustas as restrições do anteprojeto,

especialmente a que se refere à comprovação de fonte de renda lícita exigida à mulher casada,

uma vez que:

Considera que a mesma não se justificaria, mesmo nesse caso, porque o fator

econômico não é superior aos outros factores sociaes, e que a contribuição

da mulher casada na economia domestica, na gerência da casa, no

aparelhamento do lar, é de tão alta significância como o papel

desempenhado pelo homem que apresenta a sua quota em moeda. (LIMA,

1931, p.2)

Em oposição aos argumentos acima e em postura favorável às restrições ao sufrágio

feminino, afirma o deputado Borges de Medeiros, que em entrevista de título Sobre o projeto

de Lei Eleitoral declara estar plenamente de acordo com o projeto e as restrições por ele

cobradas à mulher, acrescentando a ideia de que “o voto feminino fosse familiar, isto é, a

criação dos chamados conselhos de família, onde a mulher tivesse o voto deliberativo nas

questões de assistência social, ‘instrucção’ pública e ‘hygiene’” apenas. (MEDEIROS, 1931,

p. 2)

Também foi explicitado por artigo nomeado O eleitorado das avós, escrito por Julio

Dantas, a concordância com a opinião do deputado espanhol Ayuso em restringir ainda mais

as condições do direito da mulher ao voto. Com base na diferença biológica de funcionamento

entre o organismo masculino e feminino, Ayuso argumentava que a mulher só poderia votar a

partir dos 45 anos de idade, por conta da afetação provocada pelo calendário menstrual no

estado mental e emocional da mesma, o que lhe subtrairia qualquer capacidade política antes

da menopausa. Sobre isto, disse “a mulher só começa a existir como cidadão quando se

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aposenta como mulher, e só se considera investida na plenitude de seus direitos quando a

natureza a exonerou dos deveres próprios do seu sexo.” (DANTAS, 1931,p. 4).

Durante o tempo em que continuava a ser redigido o anteprojeto de reforma eleitoral, e

enquanto acontecia o embate de argumentos sobre as restrições ao eleitorado feminino,

articulou-se um movimento que exigiu a mudança da escritura do projeto. No dia 10 de

dezembro de 1931, foi emitido um artigo da FBPF, intitulado A Federação Brasileira pelo

Progresso Feminino encerrou o seu ‘anno’ social, contendo o discurso de Alice Pinheiro

Coimbra, que antes de proclamar o período de férias da Federação especificou como estava

sendo organizado o movimento em prol da retirada de restrições, e os meios pelos quais

buscou estar articulado:

Iniciamos um movimento para que sejam retiradas do ‘ante-projecto’ as restrições

que vão cercear os direitos da mulher casada, privando-a de votar, se não tiver

fortuna ou renda proveniente do seu labor.

O movimento estendeu-se tambem por meio de palestras, às segundas-feiras, na

Radio Sociedade do Rio de Janeiro, sob a denominação de “Cindo minutos de

feminismo” e pela imprensa com entrevistas e artigos sobre o voto. Temos também

o apoio de illustres juristas e oradores de larga visão que, semanalmente, da tribuna

do Instituto dos Advogados vêm fazendo brilhantes conferências sobre o direito da

mulher ao voto, com criticas muito interessantes às restrições com que foram

estranhamente visadas as mulheres casadas. Essa serie de conferencias, promovida

pela Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, tem tido uma ‘selecta’

assistência de senhoras e cavalheiros. (COIMBRA, 1931,p.6)

No período em que observamos o Correio da Manhã, constam mais matérias sobre a

Federação Brasileira pelo Progresso Feminino do que sobre a Alliança Nacional de Mulheres,

uma vez que a própria FBPF mantinha publicações próprias no jornal regularmente. Isto não

quer dizer necessariamente que a atuação dessa, nesse movimento, foi maior ou menor, já que

o periódico disponibilizava as opções de “publicações a pedido” e “publicações pagas”.

Ao todo, tratando-se apenas das matérias opinativas, emitidas após a declaração das

restrições do anteprojeto da reforma eleitoral, foram encontradas doze matérias contra as

restrições ao voto feminino, e sete a favor. Contudo, apesar de conceder maior visibilidade

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para matérias que defendiam a retirada das restrições à mulher na nova lei eleitoral, o que

pode ser considerada uma ação significativa, compreende-se, como resultado da pesquisa, que

o Correio da Manhã manteve-se neutro na emissão de opinião própria, pela inexistência de

editorial ou pronunciamento da equipe de editoração sobre esse assunto.

A Nova Lei Eleitoral

Em dezembro de 1931, foi comunicado o afastamento do senhor Assis Brasil,

principal redator do anteprojeto de reforma eleitoral que continha restrições ao voto feminino,

através de notícia no Correio da Manhã. Essa notícia informava que o ministro da Justiça,

Maurício Cardoso, presidia a comissão de redação do projeto, e que o grupo definitivo ficou

então formado por Adhemar Faria, Bruno de Mendonça Lima, João Cabral, Juscelino

Barbosa, Mario Castro, Mauricio Cardoso, Otavio Kelly, Sampaio Doria e Sergio de Oliveira.

Nesse caso, Sampaio Doria foi o substituto de Assis Brasil.

O afastamento do senhor Brasil deu-se por motivos de saúde e não por rompimento

político, o que tornou possível que ele acompanhasse o processo de elaboração da nova lei

eleitoral por telegramas. Em janeiro de 1932, foi emitida no Correio da Manhã a transcrição

de um telegrama enviado por João Cabral a Assis Brasil, deixando-o a par do andamento da

elaboração da nova lei. Cabral afirmava que todos os deputados concordavam com o sistema

que Assis Brasil havia deixado pronto previamente, no entanto, o senhor Sampaio Doria

pleiteava modificações.

No telegrama, João Cabral ainda relatava que o esboço do Sr. Sampaio Doria sobre a

nova lei modificara o anteprojeto, concedendo o voto às mulheres sem restrições, havendo

apenas o reparo de torná-lo facultativo. No entanto, esse direito não poderia ser considerado

igualitário, uma vez que o voto era obrigatório a todo homem com idade até 60 anos, e

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facultativo à mulher. O deputado Sampaio Doria havia justificado o voto facultativo às

mulheres, alegando que não acreditava muito no sufrágio feminino, já que na opinião dele,

sendo uma opção facultativa, a maior parte das mulheres não se alistaria.

Pelo exposto acima, conclui-se que além de ceder a um pressionamento político, como

apresentado no capítulo anterior através das ações dos movimentos militantes, a comissão de

redação do anteprojeto de reforma eleitoral usou de um método que pensou poder manter

afastadas as futuras eleitoras, quando reconheceu o direito ao voto feminino. Tornando-o

facultativo e não obrigatório, a burocracia exigida para que uma mulher conseguisse alistar-se

seria muito mais trabalhosa, além de simbolizar um lugar de menor importância nas decisões

políticas.

Finalmente, em 28 de fevereiro de 1932, foi noticiada a publicação da Nova Lei

Eleitoral, vigente a partir de então, pelo seguinte trecho: “Art. 1º. Este Codigo regula em todo

o ‘paiz’ o alistamento eleitoral e as eleições ‘federaes’, estaduais e ‘municipaes’. Art. 2º. É

eleitor o cidadão maior de 21 ‘annos’, sem distinção de sexo, alistado na forma deste

Código.” (Correio da Manhã. Edição 11414, ano 32, 1932, p.2)

A essa conquista, devemos principalmente o desempenho dos movimentos feministas

militantes, assim como de todos os apoiadores, dentre homens e mulheres, que serviram de

articuladores com o poder público, no processo de conquista da igualdade política e não

restrição do sufrágio feminino. Em memória, podemos mencionar os nomes de Alice Pinheiro

Coimbra, Bertha Lutz, Carmen Velasco Portinho, Elvira Komel, Leolinda Daltro e Nathércia

da Silveira, destacados dentre todos os outros que também merecem o crédito, pela incidência

em matérias do jornal Correio da Manhã como militantes pelo sufrágio igualitário no Brasil.

Considerações finais

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O que se pretendeu através desta pesquisa foi compreender o histórico de instituição

da desigualdade entre gêneros e legitimação das restrições da atuação feminina na vida

política, através do mapeamento dos principais argumentos utilizados a respeito da remoção

às restrições ao voto feminino durante o andamento reforma eleitoral de 1932, no Brasil.

Notou-se que o primeiro embate hierárquico pelo qual perpassou o pleito ao voto igualitário

dava-se pela inexistência de representação política feminina nas comissões redatoras dos

projetos de leis, em virtude da proibição à mulher exercer cargos públicos, o que exigiu

movimentação autônoma de fundações tais como a Aliança Nacional de Mulheres e

Federação Brasileira pelo Progresso Feminino.

Da atuação dessas organizações, constatou-se que os espaços públicos de fala ficaram

reservados aos veículos de mídia, distribuídos entre matérias pagas pelas próprias em jornais

tais como o Correio da Manhã, e anúncios na Rádio Sociedade. Tornou-se evidente que,

embora os veículos de mídia não fossem espaços políticos legítimos perante ao Estado, a

repercussão do debate público através dos mesmos ocasionou pressionamento político

nacional e internacional, que culminou na remoção das restrições ao sufrágio feminino no

país.

Através do acompanhamento das edições do periódico estudado, foi possivel observar

a ordem cronológica dos acontecimentos e os dispositivos criados pela comissão redatora do

anteprojeto da nova lei eleitoral para atrasar e dificultar esse processo. Fica claro que a

restrição do direito ao voto somente às mulheres que não eram casadas e economicamente

independentes foi uma estratégia da comissão redatora do anteprojeto da reforma eleitoral

para manter mínimo o número de eleitoras, uma vez que a estrutura social da época

organizada com base na filosofia positivista tornava inviáveis tais condições à maior parte da

população feminina brasileira.

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Apesar da conquista feminina que desfecha esse marco histórico com a remoção das

restrições na nova lei eleitoral de 1932 e o direito ao voto sem distinção de gênero, a análise

das matérias consultadas revela ainda nomes de mulheres pouco conhecidas em relação aos

grandes feitos realizados em prol desse movimento, e mesmo outras até então não

mencionadas.

Hoje, o quantitativo de mulheres e homens ocupando os espaços de representação em

cargos públicos permanece desigual em comparativo – dado a parcela restrita de mulheres que

conseguem ser eleitas. A atuação feminina na vida política é freqüentemente colocada em

dúvida por diferentes veículos midiáticos, tornando premente a justificativa de evidenciar a

genealogia desse fato. Outra preocupação ética diz da não reprodução das narrativas que

apresentam a passagem histórica do sufrágio feminino como uma concessão do Estado à

mulher, ao que é importante ressaltar que o espaço de luta e reivindicação foi criado pelas

próprias interessadas – garantindo que a memória das principais atuantes dessa causa não seja

desvanecida.

Referências

COIMBRA, Alice Pinheiro. A Federação Brasileira pelo Progresso Feminino encerrou o

seu anno social. Rio de Janeiro:1931, edição 11347, ano 31, p.6, 10 dez. 1931. Artigo

publicado no Correio da Manhã.

CORREIO DA MANHÃ. Rio de Janeiro: M. Paulo Filho, 1900-1989, publicações encerradas,

período 1930-1932.Disponível em<http://bndigital.bn.br/hemeroteca-digital/> Acesso de fev a

dez de 2014.

DANTAS, Julio. O eleitorado das avós. Rio de Janeiro: 1931, edição 11134, ano 31, p. 4, 5

abr. 1931. Artigo publicado no Correio da Manhã.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Editora Loyola, 1999

KARAWEJCZYK, Mônica. As Filhas de Eva querem votar: dos primórdios da questão à

conquista do sufrágio feminino no Brasil (c.1850-1932). 2013. 398 f. Tese (Doutorado) -

Curso de História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, 2013.

Page 16: DO LAR À URNA: A MILITÂNCIA PELA PARTICIPAÇÃO … · A lógica positivista afirmava a diferença entre o homem e a mulher enquanto instância complementar. E, embora não a tratasse

LACERDA, Maurício. O ante-projecto eleitoral, Rio de Janeiro:1931,edição11274, ano 31,

p. 3, 16 set. 1931. Artigo publicadono Correio da Manhã.

LIMA, Queiroz. Prova deficiente. Rio de Janeiro: 1931,edição11300, ano 31, página 2, 16 out. 1931.

Artigo publicado no Correio da Manhã.

MAIA, Cláudia de Jesus. A invenção da solteirona – Conjugalidade moderna e terror

moral – Minas Gerais (c.1890 – 1948). 2007. Tese (Doutorado) – Curso de História,

Universidade de Brasília, Distrito Federal, 2007.

MEDEIROS, Borges. Sobre o projecto de Lei Eleitoral, Rio de Janeiro: 1931, edição 11311,

ano 31, 29 out. 1931. Entrevista concedida ao Correio da Manhã.

PORTINHO, Carmen Velasco. Federação Brasileira pelo Progresso Feminino.Rio de Janeiro: 1931,

edição11286, ano 31, p.3, 30 set. 1931, Transcrição de áudio publicada no Correio da Manhã.

REVISTA VEJA, Rio de Janeiro: Editora Abril, edição 2393, ano 47, nº 40, 1 out. 2014.