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Do sentimento de pertença: o princípio da auctoritas em Francisco Manuel de Melo Dra. Susana Scramim Universidade Federal de Santa Catarina 1. Francisco Manuel de Melo: viver entre dois mundos De Dom Francisco Manuel de Melo se diz que era um dos grandes escritores de seu tempo. Entretanto, seus contemporâneos não lhe atribuíam esta distinção. Homem pertencente a dois mundos, a duas grandes culturas promotoras da contra- reforma, Dom Francisco era visto pelos espanhóis com ressalvas porque era portu- guês e aos portugueses inspirava pouca confiança porque serviu ao rei espanhol durante os anos de 1580 e 1640, período em que o poder soberano português es- teve sob a égide espanhola. Foi somente no começo século XX que se ofereceu à obra de Dom Francisco uma oportunidade de releitura. Edgar Prestage, em 1931, ao coordenar a 3ª reimpressão das Epanáforas de vária história portuguesa, diz que era de se estranhar que alguns textos deste instigante autor ficassem sem reedição duran- te 200 anos. 1 Exemplo disso é o olvido em que caiu um conjunto de textos como as Epanáforas. Sabemos que o esquecimento não é ato fortuito e que, nesses 200 anos, os promotores da política conservadora na Península experimentaram operações de resgate de outros autores que lhes propiciassem a salvação somente de parte do que lhes interessava deste passado persuasivamente arcaico. Contudo, lembrando de uma reflexão desenvolvida por Jean-Luc Nancy sobre o gesto de dar adeus como um gesto que no mesmo movimento de despedida desvia e retorna àquilo que abando- na 2 , cabe perscrutar nesse abandono quais as motivações que o suscitaram? Da parte de quem ele emana? E que movimento executou o gesto de retorno a D. Francisco? Importa também perguntar o que foi descartado da obra deste autor binacional, per- tencente ao mesmo tempo à cultura portuguesa e espanhola? 1 Edgar Prestage, “Introdução” a Epanáforas de vária história portuguesa. Imprensa da Uni- versidade. Coimbra. 1931. 2 Jean-Luc Nancy. “Poema de l´adieu au poème: Bailly”, in Po&sie, n.º 89, 3.º trim. 1999, p.59-63.

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Do sentimento de pertença: o princípio da auctoritas em Francisco

Manuel de Melo

Dra. Susana ScramimUniversidade Federal de Santa Catarina

1. Francisco Manuel de Melo: viver entre dois mundos

De Dom Francisco Manuel de Melo se diz que era um dos grandes escritores de seu tempo. Entretanto, seus contemporâneos não lhe atribuíam esta distinção. Homem pertencente a dois mundos, a duas grandes culturas promotoras da contra-reforma, Dom Francisco era visto pelos espanhóis com ressalvas porque era portu-guês e aos portugueses inspirava pouca confiança porque serviu ao rei espanhol durante os anos de 1580 e 1640, período em que o poder soberano português es-teve sob a égide espanhola. Foi somente no começo século XX que se ofereceu à obra de Dom Francisco uma oportunidade de releitura. Edgar Prestage, em 1931, ao coordenar a 3ª reimpressão das Epanáforas de vária história portuguesa, diz que era de se estranhar que alguns textos deste instigante autor ficassem sem reedição duran-te 200 anos.1 Exemplo disso é o olvido em que caiu um conjunto de textos como as Epanáforas. Sabemos que o esquecimento não é ato fortuito e que, nesses 200 anos, os promotores da política conservadora na Península experimentaram operações de resgate de outros autores que lhes propiciassem a salvação somente de parte do que lhes interessava deste passado persuasivamente arcaico. Contudo, lembrando de uma reflexão desenvolvida por Jean-Luc Nancy sobre o gesto de dar adeus como um gesto que no mesmo movimento de despedida desvia e retorna àquilo que abando-na2, cabe perscrutar nesse abandono quais as motivações que o suscitaram? Da parte de quem ele emana? E que movimento executou o gesto de retorno a D. Francisco? Importa também perguntar o que foi descartado da obra deste autor binacional, per-tencente ao mesmo tempo à cultura portuguesa e espanhola?

1 Edgar Prestage, “Introdução” a Epanáforas de vária história portuguesa. Imprensa da Uni-versidade. Coimbra. 1931. 2 Jean-Luc Nancy. “Poema de l´adieu au poème: Bailly”, in Po&sie, n.º 89, 3.º trim. 1999, p.59-63.

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Edgar Prestage, um dos grandes lusófilos ingleses do final do século XIX e come-ços do XX e autor de uma das biografias de Dom Francisco Manuel de Melo, subli-nha na Introdução à edição das Epanáforas que os historiógrafos espanhóis moder-nos, não os contemporâneos de Dom Francisco, conferiram importância ao livro Historia de los movimientos, separación y guerra de Cataluña, pois que ali se confor-ma uma visão especial do império espanhol. Juan Estruch Tobella, no seu estudo in-trodutório à mesma obra, relembra que este livro está marcado por uma visão muito datada do império, pois se em finais de 1639, quando se encontrava em Flandres, lutando sob a bandeira espanhola, Dom Francisco se referia à coroa como uma “grande monarquia de Espanha”, no tratado sobre a guerra da Cataluña, que foi pu-blicado em 16453, expressa já uma visão bastante diferente do poderio espanhol. As baixas que o exército espanhol sofre nos enfrentamentos com os catalães são vistas por Dom Francisco como sinais de castigo divino à soberba espanhola. Até mesmo a derrota de Montjuic é vista como uma punição impingida pela divina Providência.

Había llegado ya aquella última hora que la Divina Providencia decretara para castigo no solo del ejército, mas de toda la monarquía de España, cuyas ruinas allí se declararon. Así dejando obrar las causas de su perdición, se fueron sucediendo unos á otros los acontecimientos, de tal suerte que aquel suceso en que todos vinieron á conformarse, ya parecía cosa antes necesaria que contingente. Pendía del menor desorden la última desesperación de los Reales: no se hallaba entre ellos alguno, que no desease interiormente cual-quiera ocasión honesta de escapar la vida.�

É certo que a esta altura do século XVII o prestígio militar da armada espanho-la bem como da monarquia já enfraquecera muito, com isso ocorre também a de-cadência dos tons épicos bem como das visões bastante sublimadas da nua reali-dade em que se encontrava a economia política à época de Felipe IV. Moralistas severos não se eximiam da tarefa de criticar o despreparo e a falta de investimentos

3 Embora a Guerra da Cataluña tenha sido publicada em 1645, o relato abarca apenas os acontecimentos ocorridos até 1641. O editor anota que muitos críticos deste livro justificam esse fato pela simples intenção do autor de narrar apenas aquilo que ele tenha vivido. No entanto, basta uma análise cronológica para invalidar esta explicação. Dom Francisco este-ve somente por dois meses na Cataluña – de novembro a dezembro de 1640 – de modo que nem os acontecimentos do primeiro livro nem os do quinto poderiam ter sido presenciados por ele. Isto ocorre porque considerava estes episódios em uma perspectiva literária. No texto que tem seu início com “Corpus de Sangre” e seu desenlace com a narração da batalha de Montjuic é gerada uma estrutura trágica que se abre e fecha com episódios que exemplifi-cam a derrota e humilhação do poderio espanhol. Com isso temos um autor cujo testemunho está muito mais próximo de uma zona de indeterminação entre memória e seleção do que de uma zona de determinação entre os papéis da autenticidade e criação individual. Juan Estruch Tobilla, Introducción, em Francisco Manuel de Melo. Historia de los movimientos, separación y guerra de Cataluña. Madrid: Castalia, 1996, p. 4.4 Francisco Manuel de Melo. Historia de los movimientos, separación y guerra de Cataluña. Edición de Juan Estruch Tobilla. Madrid: Castalia, 1996, aforismo 134, p. 43.

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na maquinaria militar espanhola, que perde de seus adversários por inadequação téc-nica. Essa decadência não escapará nem da frase severa de Baltasar Gracián que tenta-rá recolocar o antigo valor pessoal do soldado espanhol na ordem do dia cuja nua rea-lidade é a de estar em franca desvantagem frente à tecnologia de seus inimigos:

Antes, ahora – dixo Critilo – he oído ponderar que está más adelantado el valor que antes, porque ¡Cuánto más corazón es menester para meterse un hombre por cien mil bocas de fuego, cuánto más ánimo para esperar un tor-bellino de bombardas, hecho terreno de rayos! Ese sí que es valor, que todo lo antiguo fue niñería, ahora está el valor en su punto, que es en un corazón intrépido; que entonces, en un buen brazo, es tener más fuerzas que un gañan, en los jarretes de un salvaje.

Engañase de barra a barra quien tal dice: ¡qué dictamen tan exótico y errado! Pues ese que él celebra no es valor, ni lo conoce, no es sino temeridad y lo-cura, que es muy diferente.5

Esse valor pessoal do antigo soldado espanhol que tenta resgatar Gracián derivado da imagem de uma “bélica Hispania” fora projetado durante todo o século XV e XVI e não foram poucos os rastros deixados por essa imagem no universo das práticas literá-rias e nos espaços de representação plástica. Os rastros dessa época dourada funcio-nam, no século XVII, como figuras e fantasmagorias as quais conservam de sua potên-cia larvar, ou seja, sua possibilidade de vir a ser, a sua capacidade política de orientar a história como uma teologia política transcendente ou um governo das “católicas ar-mas”. As imagens literárias e plásticas continuam a ser projetadas como “fortalezas”, “castillos interiores”, “bastiones”, “ciudadela de Dios”, “moradas” e seus habitantes ou comandantes serão ainda os soldados de Deus. Fantasmagorias essas que os moralistas espanhóis não irão abdicar de invocar em seus tratados e preleções.

2. Soberania sem poder

Dom Francisco Manuel de Melo será um desses moralistas, não será exatamen-te um moralista espanhol nem certamente um moralista português no sentido estri-to desses adjetivos pátrios. A mudança de ponto de vista que se percebe nos seus textos não destaca tanto uma mudança de opinião a respeito de uma decadente vocação militarista espanhola proferida por um membro da nobreza ibérica, mas é marca de uma oscilação do próprio D. Francisco a respeito da monarquia. O fato é que essas imagens da “bélica Hispania” serão retomadas pelos textos de Dom Fran-cisco de um modo ambíguo e oscilante entre uma visão da monarquia como poder

5 Baltasar Gracián, El Criticón, Crisi Octava, Segunda Parte. Edición de Santos Alonso. Ma-drid: Cátedra, 2004, p. 442.

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soberano, fundamentado na transcendência da figura do rei cujo poder se baseia na mediação que emana da auctoritas6 como força política e uma visão da monar-quia como poder absoluto, mas ineficaz, fundado na força do rei apenas como fi-gura que legitima o gerenciamento do estado executado pela potestas�. Essa ambi-valência gera uma visão na qual se encontram indistintas as esferas do público e do privado. A alternância desses pontos de vista não ocorre quando o gênero textual muda, como por exemplo, das Epanáforas, que são cartas escritas como crônica histórica, para um tratado sobre a guerra da Cataluña, que é efetivamente um rela-to histórico, mas que possui estrutura que seu autor empresta do gênero trágico para melhor poder expressar seu julgamento sobre o fato. Num texto como Carta de Guia de Casados, publicado pela primeira vez em 1651, apesar de estar mais afinado com os pontos de vistas condizentes ao espaço privado, estão presentes os dois pontos de vista, bem como nos textos das Epanáforas, publicado em 1654, que, sendo um conjunto de crônicas históricas e seguindo as orientações textuais do gênero, analisam e julgam questões pertinentes à esfera do privado e, no entan-to, segundo a regra do gênero deveriam conter apenas o ponto de vista que enfo-casse os problemas da esfera do público.

6 Segundo Álvaro d´Ors, jurista espanhol admirador de Carl Schmitt com quem manteve relações estreitas de amizade intelectual, especialmente nas intensas conversas que manti-veram em 1944 em Granada e Santiago, o termo auctoritas, no direito romano clássico, se contrapunha ao de potestas ao que complementava e lhe definia os limites, após analisar vários casos de suas aplicações d´ Ors definiu a autoridade como o saber socialmente reco-nhecido. Contudo, com base na prerrogativa de que o conceito de autoridade é tipicamente romano, questões histórico-jurídicas, iniciadas com Augusto e culminadas com Adriano, fizeram com que houvesse uma indistinção entre auctoritas e potestas não somente no ter-reno dos fatos como também no âmbito da conceituação destes. O termo latino auctoritas foi assimilado em sua tradução para o grego ao longo dos séculos, especialmente na Idade Média, por authentia e declinado posteriormente no neologismo authenticum, derivado do adjetivo grego authentiko, que expressa a idéia de poder originário não delegado do qual dependem outros poderes. Dessa forma, veio a significar poder originário do qual dependem outros delegados. Daqui decorre que hoje em dia se tenda a chamar autoridade à instância superior de potestade que manda, mas não executa o mandato, pois esta função é própria dos agentes da autoridade. Para uma leitura mais atenta da teoria da auctoritas e da potes-tas em Álvaro d´Ors conferir: Elementos de Derecho Privado Romano. Estúdio General de Navarra: Pamplona, 1960; “Autoridad y potestad”, em Lecturas Jurídicas, n. 21, 1964, p 23-35; “Auctoritas-authentia-authenticum”, em Apophoreta philologica. Homenaje al Prof. Fernández-Galiano, Revista Estudios Clásicos, n. 88, Madrid, 1984, p. 3�5-381. � Giorgio Agamben acrescenta que é necessário que se compreenda “o sentido dessa con-fusão”, dessa indistinção entre auctoritas e potestas. Segundo uma observação feita por um outro estudioso espanhol, Jesus Fueyo, e citado por Giorgio Agamben, esses “dois conceitos que exprimem o sentido original pelo qual o povo romano havia concebido sua vida co-munitária” e sua convergência no conceito de soberania, “foram a causa da inconsistência filosófica da teoria moderna do Estado” e que essa confusão está “inscrita no processo real que levou à formação da ordem política moderna”. Jesus Fueyo, “Die Idee des ‘auctoritas’: Genesis und Entwicklung”, em H. Barion (org.), Epirrhosis. Festgabe für Carl Schmitt, Berlin, Dunkler&Humbolt, 1968, apud Giorgio Agamben, Estado de Exceção, tradução Iraci Poleti. São Paulo:Boitempo, 2004, p.116-11�.

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Nesse sentido, diríamos que esta oscilação pende entre o questionamento de uma teologia política – porque funda o poder absoluto sobre uma transcendência divina – inerente aos desígnios da monarquia a qual Dom Francisco estava filiado e a sua ponderação frente a uma teologia econômica – porque doméstica e ima-nente –, esta sim independente da transcendência a que ele se via obrigado na sua práxis no âmbito da teologia política8. Interessante notar que na esfera doméstica D. Francisco critica o maquiavelismo, o puro arbítrio régio, as intrigas de áulicos e até mesmo as devoções, contudo, no espaço público ele irá considerar esses mes-mos males e outros como a prostituição, a bastardia, e desigualdade social como males necessários. Não há no pensamento de D. Francisco uma clara distinção entre o público e o privado, contudo atribui valor positivo a esta distinção que, segundo ele, ofereceria um caminho para que a nobreza retomasse seu natural papel de mediadora entre o rei e os povos. Esse julgamento do papel da nobreza nada tem de ingênuo, pois que a avaliação que D. Francisco faz do levantamento de Évora, expressa na Epanáfora Política, ocorrida em 163�, é bastante contunden-te e a sua opinião era de que a revolta foi uma reação contra o incompetente fun-cionalismo composto de legistas e filhos da burguesia que, desde D. João II, afasta-ra a nobreza de sua função de intermediária entre o poder dos reis e o povo.

O uso immemorial de nossa nação havia constituído por cabeças de comarcas, em nome de corregedores, a homens leigos, prudentes e nobres; e a muitos dos que derramando seu sangue na mocidade, por defesa da pátria, como mais obrigados a ella, e ella mais dependente delles, agora na velhice se empregavão em conservalla e regella, com paz e justiças e bons costumes. Mas sucedendo no Reyno D. João, o II, Príncipe excessivamente zeloso da justiça, e duramente oposto á grandeza dos vassallos, acordou de mudar o estilo antigo, (que todavia se conservava em o resto de Espanha), e introduziu nas correições homens, professores de letras civis; gente que por meam entre os grandes e pequenos, pudesse moderar a autoridade dos senhores e castigar a insolência do vulgo. Este modo de regimento, por se mais em favor da monarquia que o passado, foi tam aprazível a todos os Reys sucessores de D. João, que nenhum se lembrou de restituir à nobreza estas dignidades que D. João lhes alheara; nem advertidos dos grandes inconvenientes que sobreviverão por essa causa ao Rey e repúbli-ca, tais que a todos puzeram perto da última ruìna. Porque os reys,(dizem os

8 Giorgio Agamben trata do conceito de economia com base na oposição de dois paradigmas: o da “teologia política, que baseia a transcendência do poder soberano no único Deus, e o da teologia econômica que substitui tal idéia com uma oikonomia como uma ordem imanente – doméstica e não política em sentido estrito, tanto da vida divina como da vida humana. Do primeiro paradigma derivam a filosofia política e a teoria moderna da soberania: do segundo, a “biopolítica” moderna, até o atual triunfo da economia sobre qualquer aspecto da vida social”. Confira em “Da teologia política à teologia econômica”, entrevista concedida a Gianluca Sac-co, publicada em Rivista online, Scuola superiore dell’economia e delle finanze, anno I, n.6/�, Giugno-Lulgio 2004, 0� pp. – http:/rivista.ssef.it/ , acessado em 24/0�/2004, tradução para o português de Selvino Assman), p. 3.

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que não aprovão esta mudança), amão o serviço dos letrados, persuadidos del-les mesmos, por lhes fazerem certo, que o ser da sua faculdade he sciencia do justo e injusto; donde procede que elles às vezes estendendo a jurisdição, cha-mão de continuo em seus excessos por autora a autoridade real, com cuja ofensa, (se assi he) dilatam seu poder à vontade da paixam ou cobiça, que tal-vez oprime o animo de muitos por ambição ou miséria. Até aqui pertence à queixa dos que julgarão inconveniente o governo dos jurisconsultos, de alguma sorte favorecida como o exemplo que escrevemos�.

A noção de poder soberano em D. Francisco deve passar por uma força de me-diação que impediria os excessos daqueles que desejassem exercer autenticamente uma função que apenas era atributo do rei devido a sua autoridade constituída pela política teológica. Interessante é observar na construção do argumento de D. Francisco que ele distingue como sendo um excesso a autenticação de qualquer ato jurídico fora da autoridade real. E que praticam esse ato excessivo os letrados, “os homens, profes-sores de letras civis”, destituindo definitivamente a nobreza dessa função que deveria ser exercida como uma dignificante força mediadora. Em nada dignificante é o que acontece quando os homens de letras civis assumem para si o poder da autoridade. Por isso, Dom Francisco irá de modo recorrente em seus tratados discutir essa função, ou seja, a função da autoridade no seio das monarquias portuguesa e espanhola. A auto-ridade será por ele compreendida como força de mediação cujo núcleo pode igual-mente ser percebido no tratado sobre política militar. Neste texto publicado em 1638, portanto, um ano antes de História de los movimientos y separación de Cataluña, em que perceberemos a mudança de ponto de vista em relação à capacidade de se auto-governar do poder soberano espanhol, D. Francisco se propõe a ensinar os capitães a dar ordens a seus mandantes, de modo que o tratado também poderia ter sido chama-do de A arte de governar, mas não o foi, e a escolha do título Política Militar é signifi-cativa para a reflexão que se quer fazer aqui.

Em Política Militar o objetivo não é escrever sobre preceitos civis da guerra ou sobre as ciências da guerra – por isso a opção é pela forma do aviso e não da lição – mas sim sobre o espírito da prudência dos comandantes gerais dos quais se cobra governar ações tão distantes de preceito como ocorre no desenrolar de uma bata-lha. Dessa forma, seria interessante perguntar se este tratado de Dom Francisco se insere na ordem do público ou do privado, ou ainda, no âmbito de uma política, conforme seu título atesta, ou estaria apontando para uma oikonomia, um regime de governo caracterizado pela administração da vida doméstica. Vale lembrar que Giorgio Agamben fala da indistinção entre auctoritas e potestas em sua origem pela reivindicação de Augusto da “auctoritas como fundamento do próprio status de princeps”10 como significativa para indistinção entre o público e o privado na for-mação do estado moderno. Nesse sentido, conclui Giorgio Agamben, “a vida ‘au-gusta’ não pode mais ser definida, como a dos simples cidadãos, pela oposição

9 Francisco Manuel de Melo. Epanáforas de vária história portuguesa, op. cit., p. 20-21.10 Giorgio Agamben, Estado de Exceção, op. cit., p. 123.

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público/privado”.11 O que, então, poderia significar, já no primeiro aviso aos co-mandantes, a afirmação de que seu objetivo é o de governar ações que estão sepa-radas do preceito?

Yo escribo ahora al espíritu y prudencia de los Capitanes Generales, por cuya cuen-ta está el gobernar acciones tan ajenas de precepto, que todas se afirman en la in-cierta disposición de la fortuna y en la ceguedad de la pasión humana; mayor em-presa es la mía que dar medios á la enseñanza común de las artes que digo12.

Teríamos, neste trecho, já configurada uma zona de indistinção entre o público e o privado nas orientações para o exercício da soberania? Se o preceito e a lei esti-vessem de antemão refletidos e definidos nos tratados e nas doutrinas, haveria dessa forma algo que escaparia aos tratados e doutrinas cuja essência Política Militar qui-sesse discorrer? Mais que isso é preciso interrogar sobre que política Dom Francisco deseja se referir? Arturo Cancela compara a empresa de Dom Francisco à de Descar-tes do Discurso do Método. A comparação os separa no que se refere à motivação de seus tratados. “Descartes se decide a pensar por su cuenta en vista de la confusión y contradicción en las opiniones de sus antecesores”13. O autor português estaria mo-tivado pela falta de documentos que orientassem e conformassem uma doutrina mi-litar para a marinha já que para a doutrina do exército havia já alguma orientação doutrinária. A resposta a essa questão pode não ser simples assim a ponto de pensar-mos que havia uma lacuna sobre a organização e orientação aos comandantes da batalhas navais e um satisfatório conjunto de regras para as batalhas em campo.

Como um moralista, talvez um pouco afastado do típico do austero pensamen-to português do século XVII, Dom Francisco cria uma artificiosa prática de argu-mentação que envolverá, no âmbito de um tratado sobre a administração das arma-das ibéricas, tanto uma economia dos afetos como uma política das paixões. Este método de reflexão o levará como pensador a invocar muitas das fantasmagorias que ajudaram a construir a idéia de Península Ibérica no século XVII. Contudo, seus conselhos e análises para as mais diversas facetas da vida ibérica nas suas di-mensões política e administrativa serão construídos de um modo que se avizinha muitas vezes da posição política que o próprio rei sustenta, ou melhor, que ele não sustenta. Em Política Militar há uma separação entre as concepções de Estado e de poder, uma vez que a análise de cada um destes assuntos foi disposta em dois avi-sos distintos, sucessivos, porém, separados. O “Aviso V”, “Del Estado”, trata da maneira como transmitir a autoridade dos comandantes e da discussão, por conse-guinte, da vantagem do comandante estar ou não casado e ter filhos durante o exercício do seu mandato o que daria para seus descendentes o direito de transmis-são do cargo do pai quando este não estivesse mais habilitado para exercê-lo.

11 Idem, p.126. 12 Francisco Manuel de Melo, Política Militar. Colección Cisneros. Madrid: Ed. Atlas, 1944, p.111.13 Arturo Cancela. “Nota preliminar”, em Francisco Manuel de Melo, Política Militar en avi-sos generales. Buenos Aires: Emecé, 1946, p. 14.

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Note-se que esta não é uma discussão que possamos compreendê-la como uma disposição de assuntos administrativos, mas sim políticos, que se limitam ao pro-blema da autoridade e de quem possui o direito a sua transmissão. No entanto, no “Aviso” subseqüente, o de número VI, intitulado “Del Poder”, podemos observar por sua vez uma discussão sobre o poder do comandante das armadas no que se refere as suas atribuições e a sua gestão administrativa.

El Capitán General, que (como habemos dicho) es el más eminente y poderoso oficio de las monarquías y repúblicas, después del Príncipe ó Senado de ella, y que, como éste, debe ser persona de tal satisfacción que sobre su ánimo y fide-lidad asienten justamente las mayores confianzas, no podrá jamás hacer la guerra con acierto á nación ó provincia distante de su patria, si los poderes con que sale de ella á gobernar la guerra le fueren concedidos con alguna limitaci-ón y en orden de consultar algunas resoluciones; porque los accidentes de la guerra son tantos y tan desemejantes, que no cabe la prevención de ellos en el entendimientos de los hombres, supuesto que en meditarlos se desvelen los más doctos y experimentados, de quienes se forman los Consejos de los Prínci-pes [...] Será dudosísimo el acierto de las acciones llevando abstenidos los po-deres el Capitán General que las gobierna en provincias remotas, donde nace el perderse ocasiones de gran importancia y que la fortuna ofrece raramente, y se da causa á disculpas de muchas omisiones, dorando la falta de cuidado con la del poder. Y supuesto que el Príncipe debe señalar al Capitán General la disposición de las cosas conforme al orden de ellas, no será justo negarle la plenitud de la potestad para los casos impensados, ni lo será también que el Capitán General, por temor ó por malicia, deje perder alguna conocida conve-niencia por faltarle la concesión del Príncipe ó la prevención para tal caso, porque va menos en la represión que en el desacierto.1�

Ao ler este aviso nos vemos diante de uma somatória de atribuições, de seu bom modo de conduzi-las e do julgamento de seus atos não previstos. Está presen-te a divisão entre os poderes, entre auctoritas e potestas, na análise de Dom Fran-cisco Manuel de Melo. Porém, quando diz que será injusto negar ao comandante a plenitude da potestade está considerando a possibilidade da exceção à lei, por-que melhor será reprimir um ato excessivo do que reparar um desacerto. O que parece mais instigante para nossa leitura da oscilação de ponto de vista desses tex-tos é que ao criticar a república quando ela tolhe os poderes do comandante geral não a julga em função de um improvável desconhecimento dos assuntos sobre as atribuições de poder dos mandatários, mas sim com base na sua reflexão de que “siendo cuerpos imperfectos vivem siempre celosos del poder absoluto y grande, de que se podia formar cabeza monstruosa á esse mismo cuerpo”15. Dessa forma, Dom Francisco julga, no século XVII, a república como aspirante à mesma finali-

14 Idem, p. 116-11�. 15 Idem.

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dade da monarquia: o poder soberano. No entanto, a justificação pelas leis repu-blicanas dessa autoridade que emana do poder soberano – aquele que autentica uma práxis e que na monarquia está baseada numa teologia política – está fundada num modus operandi administrativo.

O moralismo de Dom Francisco Manuel de Melo está relacionado à discussão que seus textos estabelecem com a questão do poder. Seus tratados, cartas, guias, epa-náforas e até mesmo alguns poemas dão testemunho dessa quase obsessão. Por sua vez, o poder é enfocado como um problema dependente de certa interioridade que lhe é exterior, quer seja, a auctoritas que deveria ser fundada num conjunto de tópicas, topoi, que seriam extrínsecas e intrínsecas, com a finalidade de conjugar o poder so-bredeterminado, transcendente, com o caráter do soberano, passa na visão de Dom Francisco a ser questionado na sua limitação a um exercício de soberania meramente administrativo, gerencial. Quando Walter Benjamin analisa o problema da soberania reportando sua conceituação ao problema da falta de capacidade de decidir do sobe-rano no século XVII o que se conforma é um conceito de soberania baseado na inde-cisão. No entanto, esta indecisão no século XVII é figurada na fúria característica do final de vida típico de alguns dos reis judeus, isto é, como seres possuídos, furiosos porque se encontram em uma situação em que estão incapazes de decidir.

O espírito do drama principesco se revela na circunstância de que nesse final de vida típico do rei judeu estão presentes os temas da tragédia dos mártires. Porque se a figura do governante, no momento em que ele ostenta o seu po-der da forma mais furiosa, simboliza ao mesmo tempo a manifestação da história e a instância que coíbe as suas vicissitudes, então algo pode ser dito em favor do César sucumbindo a seu delírio de poder: ele se torna vítima da desproporção entre a dignidade hierárquica desmedida de que Deus o inves-tiu, e a miséria da sua condição humana.16

Há algo de exterior que condiciona o poder soberano no século XVII. Se a indecisão é a sua principal característica, ela é motivada pela gradativa assimetria entre o poder místico de foi investido o rei ao assumir a função da auctoritas e a condição humana que lhe impediria de agir senão por “impulsos físicos vacilan-tes”1�. Esta assimetria entre transcendência e a imanência, entre razão e afeto, entre o fora e o dentro foi corrigida pela introdução de um novo modo de governo, que para Giorgio Agamben, é a oikonomia18. Dom Francisco Manuel de Melo escreve-rá contra e a favor desses impulsos físicos vacilantes da auctoritas do Príncipe que estará longe do campo de batalha, por isso seus subordinados comandantes de

16 Walter Benjamin. Origem do Drama Barroco Alemão, tradução, apresentação e notas Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 94. 1� Giorgio Agamben, “Da teologia política à teologia econômica”, entrevista concedida a Gianluca Sacco, op. cit., p. 3.18 Giorgio Agamben, “Da teologia política à teologia econômica”, entrevista concedida a Gianluca Sacco, op. cit., p. 3.

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campo não terão tempo hábil para consultá-lo frente ao imprevisto. Na reflexão sobre esses problemas Dom Francisco reafirma, ressaltando as qualidades do co-mandante geral das armadas, sua opinião de que os comandantes necessitam de um lastro mais amplo em que possam decidir estando longe do Príncipe. Nesse mesmo sentido concluirá que a imprecisão dos preceitos da Lei diante de fatos novos deverá conduzir ao aumento da potestas do comandante geral. Sendo assim, a idéia de soberania em Dom Francisco ratifica a posição de dentro e fora do Prín-cipe no âmbito das decisões, bem como o mantém inserido na ordem teológica, a da transcendência divina que lhe instituiu a auctoritas. Veja-se como exemplo dis-so a atribuição da derrota frente aos catalães ao castigo impingido pela Providência à arrogância e presunção espanholas, conforme já se referiu anteriormente neste estudo. Alguns analistas da obra de Dom Francisco não concordariam com esta leitura, uma vez que muitos afirmaram o caráter fortemente moralista unívoco de seu pensamento que julga os acontecimentos e atribui-lhes apenas um valor didá-tico moral. Esta moral de mão única apregoada por seus críticos condiz, numa análise historicista do século XVII, com o conceito de história como “mestre da vida” vigente nesse período.19

3. Auctoritas, autor

Sem invalidar o fato de que na obra de Dom Francisco encontra-se um estoi-cismo de tipo racionalista que conduz à moderação – e daqui decorre o caráter doutrinário de seu texto – é importante notar que o convite feito ao leitor para que siga o caráter exemplar de suas reflexões é sempre acompanhado por uma frase ou outra que desestimulam a observância da doutrina que se constrói. Num texto como Carta de Guia de Casados é possível perceber todo o sistema construído so-bre a inter-relação das contingências da vida conjugal e familiar com a vida social, sobretudo, aristocrática, no século XVII, estruturado por operações retóricas de seleção de ditos e exemplos e de disposição sintética, mas “aguda20”, dessas mes-mas sentenças ditadas para a vida prática, já que como um “discreto21” que escre-

19 Para aprofundamento desse ponto de vista crítico da obra de Francisco Manuel de Melo ver: Maria de Lurdes Correia Fernandes. Espelhos, Cartas e Guias. Casamento e espiritualida-de na Península Ibérica. 1450-1�00. Porto, 1995 e “Introdução à Carta de Guia de Casados”. Campo das Letras: Coimbra, 2003; Maria Lucília Gonçalvez Pires, “Homo homini lupus: um tópico da moral barroca na obra de D. Francisco Manuel de Melo”, em Atas I Congresso Internacional do Barroco, vol. II, Braga, 1990; Joel Serão, “Introdução a Epanáforas de vária história portuguesa”. Lisboa, INCM, 19��. 20 A agudeza, para Baltasar Gracián, que estava fundamentado em Aristóteles e nos tratados de Retórica da Idade Média, era um instrumento do qual deveriam se valer os autores para exprimir cultamente os conceitos, em especial pelo que se refere à sutileza do dizer com vistas a concentrar a profundidade do pensamento. Confira em Baltasar Gracián, Agudeza y arte de ingenio. Edición de Evaristo Correa Calderón. Tomo I. Madrid: Castalia, 2001, p. 22. 21 Na primeira parte de El Discreto, intitulada “Genio y ingenio”, são explicitadas as bases

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veu para “os discretos”, para os “entendidos e para os “prudentes”, Dom Francisco necessitava adequar-se às categorias textuais próprias do meio cortesão em que vivia. É aguda a expressão de seu conselho para que os maridos saibam regular o riso de suas mulheres menos com os preceitos antigos e mais com a prudência de avaliar cada situação em particular. “Não disse Platão, nem Sêneca, cousa melhor que o disserem as nossas velhas: ‘Muito riso, pouco siso’”22. Conforme se pode observar, ele não estava somente adaptado às formas de expressão do cortesão, era Dom Francisco, antes de tudo, um homem de seu tempo e, conforme assinalamos anteriormente, no século XVII, alguns conjuntos de símbolos já tinham entrado em franca decadência. E é nesse sentido que poderíamos dizer que podem ser encon-trados nessa economia discursiva alguns traços de sua subjetividade e idiossincra-sias como significantes pertinentes a uma figura como a de Dom Francisco, figura essa que mantém relações de pertencimento com vários lugares tanto discursivos como geopolíticos. Sabemos, no entanto, que no regime discursivo em que escre-veu não existia espaço para a função de autoria como portadora de alguma subje-tividade original tanto em relação à forma, isto é, a disposição das matérias no texto, quanto em relação à seleção e combinação das matérias do discurso. A efi-cácia do texto era, dessa forma, medida pela boa articulação entre o engenho em selecionar e combinar assuntos, a inventio, e a disposição desses assuntos durante a argumentação discursiva, quer seja, a dispositio. Mesmo compartilhando de mui-tos dos ideais do cortesão é igualmente possível ponderar em alguns textos de Dom Francisco sobre uma tentativa de sistematização de seu pensamento para além das balizas de gênero, portanto, de forma e conteúdo, impostas pelos tratados retóricos ao desempenho desses mesmos textos. Por exemplo, para construir seu argumento Dom Francisco lança mão de forma recorrente de provérbios e de refrões populares que talvez parecesse um pouco extravagante ao gosto dos discretos destinatários desse texto. Ao mesmo tempo em que compartilhava de provérbios e ditos agudos encontrados em muitos outros manuais como o Oráculo manual y arte de prudên-cia de Baltasar Gracián bem como de coletâneas várias de dicta e facta tão ao gosto ibérico dos séculos XVI e XVII que conjugavam o antigo e o moderno, Dom Francisco também se valia de refrões saídos da boca do povo.

Pois comecei com os meus adágios, hei-de acabar com eles. Ouvi um dia, caminhando, e não era menos que a chapado recoveiro (veja V.M. que enjei-tei os filósofos para citar estes autores), enfim, ouvi-lhe que Deus o guardasse de mula que faz him e de mulher que sabe latim. O riso e gosto com que lhe escutei esta engraçada sentença me faz agora lembrar dela. Não se julgue por

de um estilo conciso, aforismático, que não se ajustava a empregos vulgares. Não se escre-ve para todos, afirma categoricamente Baltasar Gracián. Os destinatários mesmos marcam, desde as primeiras páginas, o mistério e a sublimidade da matéria tratada. Eles são figurados como a capacidade de ajuizar com prudência e justiça a aptidão técnica da forma poética, valorizando o artifício aplicado. Confira em Baltasar Gracián, El Discreto. Edición Aurora Egido. Madrid: Alianza Editorial, 199�, p. 1�0-1�1. 22 Francisco Manuel de Melo, Carta de Guia de Casados. Campo das Letras: Coimbra, 2003, p. 98.

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indecente se é proveitosa. O ponto está em que o latim não é o que dana, mas que consigo traz de outros saberes envolto aquele saber.23

Não é somente por utilizar-se de refrões populares em vez dos “lugares co-muns” filosóficos que é possível atribuir alguma singularidade ao texto de Dom Francisco, sabe-se que Cervantes colocou na boca de Sancho Pança um sem nú-mero de provérbios e que, por não conter este personagem nada do “discreto”, utilizou-os sem nenhuma regra nem contenção – não é gratuitamente que Michel Foucault irá referir-se a Don Quijote no livro As palavras e as coisas como a primei-ra obra literária moderna24. Fazia parte dos instrumentos de captura do gênero doutrinário a utilização de aforismos peregrinos para que pudessem ilustrar os con-selhos ou figurar situações, aparentando certa espontaneidade discursiva. O fato é que o texto de Dom Francisco apresenta um consistente domínio das operações retóricas, como ressalta Maria de Lourdes Correia Fernandes, “aliado a uma crite-riosa seleção conceptual que conferem um gracioso colorido e, indiscutivelmente, uma amenidade conversacional que outras obras de caráter doutrinário não conse-guiram lograr.”25 Interessante observar que o tratado doutrinário Carta de Guia de Casados resulta num texto portador de uma leveza que não se pode facilmente encontrar no conjunto de textos pertencentes a esse gênero. Há um tom familiar nas frases compostas por Dom Francisco o que lhe proporciona um ponto de vista distinto frente a muitos temas que destoam de outros textos que enveredaram pelo já cansado gênero moralista da época. E é aqui que reside sua novidade em relação à lei do gênero vigente nos códigos poéticos desde a Idade Média. No entanto, com base na prática textual de Dom Francisco seria possível refletir que “um texto não pertenceria a nenhum gênero. Todo texto participa de um ou vários gêneros, não há texto sem gênero, sempre há gênero e gêneros, porém esta participação não é jamais de um pertencimento”26? Da mesma forma que a interpretação da obra do poeta brasileiro do século XVII, Gregório de Matos Guerra, feita por João Adolfo Hansen, não sem desencadear polêmica com o crítico e poeta concretista Haroldo de Campos, submete toda a tentativa de Gregório de Matos de desviar do regra-mento retórico da época aos enquadramentos poéticos vigentes, aqui também po-deríamos tentar estabelecer todos os preceitos dos gêneros textuais observados por Dom Francisco e interpretar seus possíveis desvios como explicáveis dentro da ló-gica do gênero. Contudo, essa não parece ser a interpretação mais adequada em função de todo o quadro que apresentamos até aqui. Seria ainda conveniente refle-

23 Idem, p. 95. 24 Dom Quixote é a primeira das obras modernas, pois que aí se vê a razão cruel das identi-dades e das diferenças desdenharem infinitamente dos signos e das similitudes: pois que aí a linguagem rompe seu velho parentesco com as coisas, para entrar nessa soberania solitária donde só reaparecerá, em seu ser absoluto, tornada literatura; pois que aí a semelhança en-tre numa idade que é, para ela, a da desrazão e da imaginação. Michel Foucault, As palavras e as coisas, tradução Salma T. Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 6�. 25 Maria de Lurdes Correia Fernandes. “Introdução à Carta de Guia de Casados”. Campo das Letras: Coimbra, 2003, p. 3�.26 Jacques Derrida. “La loi du genre”, consultado em Acts of Literature. Routledge: London, s/d.

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tir sobre uma das operações do discurso prevista nos códigos retóricos vigentes desde a Idade Média, a dispositio, como um dispositivo de captura desta singulari-dade, que estaria materializada pelo aparecimento de uma subjetividade como elemento constituinte do texto. Ao tratar da obscenidade dentro do gênero da sáti-ra João Adolfo Hansen nos diz que

exibida como efeito grotesco da aplicação de regras da fantasia poética para agredir rindo, é a obscenidade que abre este capítulo. Não deve provocar pru-ridos, senão os das cócegas de Quevedo, que fazem rir com enfado e desespe-ração, nem espantar, senão como maravilha do engenho, pois prescreve-se como técnica moral e política de afetar a vontade com a monstruosidade exem-plar. Lida segundo seu funcionamento retórico, que é histórico, a obscenidade se evidencia nos poemas como maledicência que hierarquiza tipos vis em nome do bem comum. Contra o vulgo, viu-se, é efetuada como diversão do mesmo, que se delicia com os mistos sórdidos e fantásticos. Tripla articulação, pois, em que retórica, moral e política se integram para mover e subordinar.27

Esta análise envolve um conceito de gênero pertencente a um cânone rígido que está muito longe de uma concepção de gênero em cuja estrutura pudesse aparecer algo como uma voz dissonante e torna sem sentido qualquer atribuição de individualidade em detrimento de uma sempre constante inclusão desta num corpo coletivo.

O que dizer, nesse sentido, do recurso não pertinente – um recurso impróprio – aplicado a um texto que deveria ser incluído no corpo coletivo que são os precei-tos a serem seguidos na construção discursiva de cada gênero? Cabe ainda pergun-tar pelos dispositivos de captura e pelas estratégias de desvio, se elas existem, em uma obra como a de Dom Francisco?

4. Inventio, Dispositio, Elocutio, Memória e Actio: o autor em cena

Como já dissemos Carta de Guia de Casados é um texto exemplar pertencente ao gênero narrativo de caráter doutrinário. As cinco operações discursivas previs-tas nas retóricas são executadas com maestria. Tanto é que poderíamos dizer com João Adolfo Hansen que a auctoritas do texto está relacionada ao efeito que se quer criar no receptor. Um texto de Dom Francisco, desse modo, não seria definido pela singularidade contida no nome próprio do autor, mas sim pelos dispositivos de gênero a que pertence.

2� João Adolfo Hansen. A sátira e o engenho. Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. 2 edição revisada. São Paulo: Ateliê Editorial; Campinas: Editora da UNICAMP, 2004, p. 389.

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Quando os códices manuscritos são examinados, evidencia-se que neles a função-autor é o ponto de convergência das diversas versões de poemas que realizam a auctoritas do gênero retórico-poético do qual eles eram, para quem os juntou em códices nos séculos XVII e XVIII, outras aplicações. A autoria aparece, nos códices, não como realidade psicológica, mas como dispositivo discursivo. Ela decorre da aplicação de esquemas táticos, retóri-cos, pressupostos pela recepção contemporânea, ao menos pela recepção letrada, que produzia e lia os manuscritos.28

Se a auctoritas servia para classificar segundo a adequação das regras da dispo-sitio o pertencimento a determinado gênero discursivo ou outro, bem como era atra-vés dessa observação que os ouvintes e leitores do século XVII apreciavam a signifi-cação dos temas tratados, a inventio, por sua vez, servia para ratificar a existência de alguma característica do auctor. É certo que o papel que cada uma das operações do discurso exercerá em cada época, isto é, a função histórica de cada uma das partes de technè rhetorikè, estará fortemente marcada pela importância que se ofereceu à idéia mesma de literatura. Roland Barthes em seu ensaio sobre a retórica antiga nos diz que as discussões e polêmicas sobre a relação entre a ordem de invenção, a dis-positio, e a ordem de apresentação (ordo) é notadamente desvio e orientação (con-tradição e inversão) das duas ordens paralelas, e possui portanto valor teórico: “c‘est toute une conception de la litterature qui est à chaque fois en jeu”.29 Se é toda uma concepção de literatura que se coloca em jogo, outra pergunta se impõe: que con-cepção de literatura João Adolfo Hansen põe em jogo quando afirma que a autoria aparece, nos códices, não como realidade psicológica, mas como dispositivo discur-sivo? E ainda: tal afirmação é feita com base em seu estudo sobre o poeta baiano dos seiscentos Gregório de Matos, contudo, aplicará o mesmo princípio para caracterizar “os cinco dos maiores autores desse tempo (o século XVII), Quevedo, Góngora, Viei-ra, D. Francisco Manuel de Melo e Sor Juana Inés de la Cruz” como dispositivos re-tóricos que se evidenciam através da “superioridade do engenho do intelecto agente nos autores, quando produzem o conceito engenhoso e, com isso, a presença irra-diante da Luz que os ilumina no mundo” . Claro está que para Hansen comete peca-do mortal do anacronismo a análise crítica que, motivada por questões de outra or-dem que não a do preceptismo historicista que fundamenta sua própria concepção de literatura, tenta colocar em jogo nos textos desses autores outra coisa que somen-te sua função de manifestar o pensamento da Contra-Reforma, manifestação essa que tecnicamente ocorre na emulação com outras auctoritas.

Na concepção de literatura esboçada por Hansen não encontra lugar uma possível reflexão sobre a transgressão à ordem do discurso vigente no século XVII. Tampouco será capaz de cogitar que, ainda sem terem meios para transgredir a

28 João Adolfo Hansen. “Barroco, neo-barroco e outras ruínas”, em Teresa. Revista de Lite-ratura Brasileira, Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, n. 2, 2001, São Paulo: Ed. 34, p.34.29 Roland Barthes, “L’ancienne rhetórique”, em O Euvres Complètes, Tome II. Paris: Éditions du Seuil, 1994, p. 928.

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relação entre as ordens discursivas paralelas de contradição e inversão, mas, se-gundo Roland Barthes, não excludentes, estes autores pudessem exercer a auctori-tas de um modo oscilante entre a ordem e a desordem, entre o dever de decidir e o pranto, entre o poder autorizado da exemplaridade e as confusões emotivas e os impulsos físicos vacilantes de que nos fala Walter Benjamin em sua teoria da sobe-rania, que não deixa de ser igualmente uma reflexão sobre a auctoritas.30 Cabe ainda dizer que para compreender esses autores com base na reflexão sobre a so-berania de Benjamin devemos concebê-los não já como transgressores, mas como operadores marginais dessas ordens, dessa forma, a inventio, a dispositio e a elocu-tio, para nos restringirmos apenas às operações retóricas referentes ao texto escrito, continuariam a ser executadas, porém, numa zona limítrofe, na borda entre a or-dem e a transgressão.

A inventio é a primeira das operações constituintes de um discurso, se consti-tui na busca e seleção dos conteúdos sobre os quais deve versar o discurso. Para esta operação a Retórica subministra um repertório de diferentes lugares comuns e de tópicos de argumentação, enriquecido sempre pela formação e pelos conheci-mentos do orador. A finalidade da inventio é estabelecer os conteúdos do discurso. Roland Barthes relembra-nos de que a operação inventio ou invenio não significa invenção ou criação, mas sim descoberta, é uma noção mais “extrativa” do que “criativa”, com base nessa noção, conclui que “au pouvoir de la parole finale cor-respond un néant de la parole originelle; l’homme ne peut parler sans être accou-chè de sa parole, et pour cet accouchement il y a une technè paticulière, l’inventio.”31 Interessante é observar que Barthes fala de um dar à luz, de um vir a ser da palavra, da linguagem por meio da técnica extrativa e não criativa que é a inventio. Se re-fletirmos sobre as declinações, no sentido de captura e abandono dessas noções, operadas ao longo dos séculos na operação da inventio, alcançaremos a noção pós-romântica de autor. Inventio, invenio, ingenio, gênio. Dessa forma se torna impossível não relacionar a leitura da retórica antiga publicada por Roland Barthes em 19�0 com a sua teoria do autor de 1968.

Com a inventio se dá à luz a linguagem que faz nascer o humano, de acordo com Roland Barthes. Ao completar a declinação da inventio em gênio ele chega à morte do autor. Barthes afirma que “se pode admirar a “performance” (isto é, o domínio do código narrativo), mas nunca o ‘gênio’. O autor é uma personagem moderna, produzida sem dúvida por nossa sociedade na medida em que ao sair da Idade Média, com o empiricismo inglês, o racionalismo francês e a fé pessoal da Reforma, ela descobriu o prestígio do indivíduo ou, como se diz mais nobremente, da ‘pessoa humana’”32. Barthes constrói o argumento da morte do autor com base na exaltação daquilo que ele chama escritura que vem a ser uma estratégia de re-colocação do leitor na performance do texto. E, exemplarmente, argumenta ope-

30 João Adolfo Hansen. “Barroco, neo-barroco e outras ruínas”, op. cit. p. 5�.31 Roland Barthes, “L’ancienne rhetórique”, op. cit. , p. 930.32 Roland Bathes. “A morte do autor”, em O Rumor da língua, tradução Mario Laranjeira. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. �0.

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rando a ordem de invenção, a dispositio, e a ordem de apresentação (ordo) como desvio e orientação (contradição e inversão). Inverte, dessa forma, o mito: para que a escritura, a literatura tenha futuro “o nascimento do leitor deve pagar-se com a morte do autor”33. Roland Barthes, nesse mesmo texto, comenta a reflexão de Va-léry sobre o autor, atribui o envolvimento deste com uma “psicologia do Eu” ao abrandamento que fez da teoria de Mallarmé. Não por acaso Barthes associará o gosto de Valéry pelo classicismo e pela retórica ao questionamento e à derrisão da idéia de autor operada por este. Giorgio Agamben ao refletir sobre a subjetividade, o sujeito vivente, em Genius, dá à luz, por talvez uma afinidade eletiva com Paul Valéry cujo eixo de convergência seria o amor à retórica, um questionamento da presença do autor pós-romântico que será completado em outro texto, “L’autore come gesto”. Roland Barthes nos diz que “l’homme ne peut parler sans être accou-chè de sa parole, et pour cet accouchement il y a une technè paticulière, l’inventio”34. Por sua vez, Giorgio Agamben apresenta uma teoria do sujeito que compreende a concepção do homem como implícita da noção de Genius e que isso significa pensar o homem não somente como Eu e consciência individual, mas que nele permanece um elemento impessoal e pré-individual desde seu nascimento até a morte. “Tutto l’impersonale in noi è geniale, geniale è innanzitutto la forza che spinge il sangue nelle nostre vene e ci fa sprofondaro nel sonno, l’ignota potenza che nel nostro corpo regola e distribuisce cosí soavemente il tepore e scioglie o contrae le fibre dei nostri muscoli.”35 Esse comentário marca a diferença entre a teoria do autor de Roland Barthes e a de Giorgio Agamben, ambas ligadas, pelo amor à retórica, à operação da inventio como discursividade que garante a não recaída de uma consideração do autor como propriedade privada garantida pela ordem econômica. Contudo, para Giorgio Agamben esse elemento impessoal não é somente a palavra, ou melhor, a linguagem para o filósofo italiano não é somen-te sistema, somente technè, como é para Roland Barthes, mas antes esse elemento impessoal de que se compõe o sujeito como Genuis é pré-individual, de algum modo está dado nas coisas e reside em uma zona incognoscível. A relação do Eu com o Genuis que resulta na subjetividade que se caracteriza em um modo impró-prio de ser do sujeito. “Ma questa zona di non-conoscenza non è una rimozione, non sposta e disloca un’experienza dalla coscienza all’inconscio, dove essa si sedi-menta come un passato inquietante, pronto a riaffiorare in sintomi e nevrosi. L’intimità con una zona di non-conoscenza è una pratica mistica quotidiana, in cui Io, in una sorta di speciale, gioioso esotorismo, assiste sorridendo al proprio sface-lo, e che si tratti di digestione o dell’illuminazione della mente, testimonia incredu-lo del proprio incessante venir meno. Genius è la nostra vita, in quanto ci appartie-ne.”36 Este Eu que assiste sorrindo a seu próprio esfacelamento e testemunha sua dissolução decorre de outra reflexão sobre a autoria esboçada na teoria de Giorgio Agambem sobre o testemunho.

33 Idem. 34 Roland Barthes. “L’ancienne rhetórique”, op. cit., p. 930. 35 Giorgio Agamben. Genius. 1. edizione. Roma: nottetempo. 2004, p. 10-11. 36 Idem, p. 11.

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Quando faz uma citação de Primo Levi na qual diz que os sobreviventes de Auschwitz não são os verdadeiros testemunhos já que estes não podem mais falar, Giorgio Agamben inicia uma reflexão sobre a ausência da autoridade ao falar em nome de outro que não seja si o mesmo inerente ao discurso. Portanto, se não é possível testemunhar desde o exterior e igualmente impossível o é desde o interior, resta uma lacuna na qual se encontra mais uma vez a questão: o que é um autor? O autor, assim como o testemunho, residiria nesta zona de indiferenciação entre o dentro e o fora, não como espaço de diálogo ou ponte entre pólos opostos, mas como lugar de abandono e captura. Giorgio Agamben faz-nos entender que toda escritura nasce como testemunho, nesse sentido, confirma sua distancia-se em re-lação à teoria do autor de Roland Barthes. “Y por esto mismo aquello de lo que testimonia no puede ser ya la lengua, no puede ser ya escritura: puede ser sólo lo intestimoniado. Éste es el sonido que nos llega de la laguna, la no lengua que se habla a solas, de la que la lengua responde, en la que nace la lengua. Y es la natu-raleza de eso no testimonio, su no lengua, aquello sobre lo que es preciso interro-garse. […] La huella, que la lengua cree transcribir a partir de lo intestimoniado, no es su palabra. Es la palabra de la lengua, la que nace cuando la lengua no está ya en sus inicios, baja de punto para – sencillamente – testimoniar: “no era luz, pero estaba para dar testimonio de la luz.”3� Diante desse argumento, migramos para outro texto no qual Giorgio Agamben produz mais reflexões frente ao problema da autoria. Em “L’autore come gesto”, nos defrontamos com um retorno à discussão sobre as operações retóricas que foram incrementadas com a discussão acerca da subjetividade gerada pela força impessoal do Genius, ou ainda, sobre a impossibi-lidade mesma dessa subjetividade aparecer sob forma de um nome próprio como se constata ao refletir sobre a infâmia do testemunho. No ensaio “L’autore come gesto” retornamos à história da infâmia e a sua comparação, desenvolvida pelo pensamento de Michel Foucault, com o princípio da “função-autor”, a qual tam-bém não deixa de ser igualmente uma declaração de amor à retórica, para nova-mente citar Roland Barthes ao referir-se a Paul Valéry e a sua salvação das garras da psicologia do autor. Agamben refere-se àquilo que Foucault encontrou na infâ-mia como a zona na qual a ilegibilidade do sujeito aparece por um átimo em todo seu esplendor; “eppure, come in quelle fotografie da cui ci guarda il volto remoto e vicinissimo di una sconosciuta, qualcosa in quell’infamia esige il proprio nome, testimonia di sé al di là di ogni espressione e di ogni memória.”38 O que interessa ver nessa reflexão são as relações que Agamben tece entre o Genius, este gênero de subjetividade impessoal, o testemunho, esta linguagem sem memória, o gesto sem expressão e os meios para que essa “função-autor”, que Giorgio Agamben chama de lugar-autor, diga-se, um lugar marcado pela sua ausência, venha a ser no texto. Esse lugar não é senão o testemunho de sua falta, lugar este que o leitor ja-mais poderá reocupar, nesse sentido, mais uma vez, distinguindo-se da teoria da

3� Giorgio Abamben. Lo que queda de Auschwitz. El archivo y el testigo. Homo Sacer III, tradução Antonio G. Cuspinera. Valencia: Editorial Pre-Textos, 2002, p. 39-40. 38 Giorgio Agamben. “L’autore come gesto”, em Profanazioni. Roma: nottetempo, 2005, p. 6�.

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autoria de Roland Barthes que vaticina o futuro da literatura pela ascensão de uma função-leitor que substitua o autor que estaria já morto; “para que a escritura, a li-teratura tenha futuro o nascimento do leitor deve pagar-se com a morte do autor”.39 Agamben dirá que o autor não está morto, está é ausente, e tampouco o leitor po-derá ocupar seu lugar. Resta senão ao leitor e ao próprio lugar-autor instituirem-se como fiador do jogo que se joga na zona de inderterminação entre uma presença e uma ausência, entre o testemunho e a falta da memória. Mais curioso ainda é o fato de que Giorgio Agamben oferece a um jogo que ele denomina de “um corpo a corpo com os dispositivos com os quais o texto estava jogando” a chave para que se possa compreender o que é isso que ele diz ser o lugar-autor. E com o que se joga neste ato de fazer o texto que é o próprio texto? “coi dispositivi. Poiché anche la scrittura è un dispositivo”40. E conclui que os dispositivos são antes de tudo pro-duzidos pela linguagem, na qual não há lugar para nenhuma subjetividade essen-cial, pois que ela inscreve-se a si própria como jogo. Recordemos a salvação do conceito de autor em Valéry de todo “Eu psicológico” que Roland Barthes atribui ao seu amor à retórica. Poderíamos dizer o mesmo de Giorgio Agamben? Podería-mos dizer que novamente uma reflexão sobre o autor como elemento do jogo da escritura foi operado por meio de uma paixão à retórica. O que é um dispositivo?

Quando falávamos nas operações do discurso mais afeitas ao texto escrito na discussão sobre o exercício da auctoritas em um autor como Dom Francisco Ma-nuel de Melo, analisamos com detalhes a inventio, contudo, pudemos ver que essa reflexão, fundamentada na leitura de Roland Barthes e Giorgio Agamben, deságua em outra operação relacionada tanto a inventio quanto a elocutio: a dispositio que diz respeito tanto à res quanto à verba, ou seja, ao significado e ao significante. A res se relaciona a duas operações diferentes, uma semântica e outra sintática, a primeira de conteúdo, extencional, vinculada a inventio, que forma o referente do texto, a segunda, intencional, própria da dispositio que forma a estrutura profunda do texto ou a estrutura profunda de significado textual. Dispositio é a palavra latina que Cícero utilizou para traduzir e adaptar o que Aristóteles dizia no Livro III da Retórica quando quis descrever a terceira questão relativa à composição do discur-so: como devem estar dispostas as partes do discurso?41 Vale dizer que o que está em jogo na dispositio é uma economia do texto. Nessa operação se deve adminis-trar o modo como se dizem as coisas, pois na inventio já foi definido aquilo que deve ser dito. Roland Barthes dirá que a dispositio é, antes de ser combinação entre os elementos discursivos, uma forma de corte. O que torna a comparação com a teoria do autor de Giorgio Agamben mais instigante pelo desdobramento por ela gerado, pois que o autor manifesta-se na obra num espaço, numa subjetividade, marcado pela ausência cujo resultado é o atestar, testemunhar, sua própria presen-ça. “Una soggetività si produce dove il vivente, incontrando il lingaggio e metten-dosi in gioco in esso senza riserve, exbisce in un gesto la propria irriducibilità ad

39 Roland Barthes, “A morte do autor”, op. cit., p. �0. 40 Giorgio Agamben. “L’autore come gesto”, op. cit., p. 80. 41 Aristóteles. Retórica. Introducción, traducción y notas de Alberto Bernabé. Madrid: Alian-za, 1998, p. 23�.

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esso.”42 Se por um lado a escritura é um dispositivo e o autor é um corpo a corpo com os dispositivos da escrita, quer dizer, do texto, o autor é então inventio, dispo-sitio, elocutio, memoria e actio, ainda mais uma vez baseados neste silogismo dirí-amos: o autor é Genius, o autor é Dispositivo, o autor é Voz, o autor é Testemunho, e o autor é Gesto. É somente com esses dispositivos que a subjetividade encontra sua linguagem, que a auctoritas encontrara a legitimidade de seu poder.

Questionar se o nome próprio Dom Francisco Manuel de Melo constitui um autor no sentido pós-romântico do termo autor talvez não faça sentido, é provável que seja mesmo um anacronismo deliberado, posição essa fortemente defendida por críticos como João Adolfo Hansen e Alcir Pécora. No entanto, interrogar se Dom Francisco foi um autor com os pressupostos definidos nos tratados de retórica ampla-mente utilizados como manuais do bem escrever desde a Idade Média até o século XVII é de fato uma tarefa que não chegará a nenhum resultado anacrônico. Neste sentido, caberia afirmar, de acordo com a análise das operações retóricas feitas por Roland Barthes e Giorgio Agamben nas suas formulações do conceito de autor, que Dom Francisco é um autor que se aplica aos séculos XVII e XX. E que a retomada da leitura de sua obra no século XX não significa um retorno à retórica clássica ou às operações discursivas do século XVII amplamente utilizadas na Península Ibérica. Ademais vimos que as operações que envolviam a dispositio não eram simplesmente recursos retóricos, funcionavam como lugares onde era permitido construir uma con-cepção de subjetividade, lugares esses que nos podem ser úteis para refletirmos sobre muitas questões candentes tanto nas relações peninsulares de hoje quanto nas rela-ções internas à América Latina, bem como nas relações entre a Península e o conti-nente latino-americano. Sendo assim o que importa perguntar aqui é qual o sentido, que não o do comentário apenas, que os textos de Dom Francisco têm para o mo-mento de sua releitura no início do século XX e qual seria o sentido que eles teriam para uma leitura do sentimento de pertença na cultura ibero-americana no século XXI. Arturo Cancela, responsável pela primeira edição em 1943 de Política Militar na Argentina, definiu Dom Francisco como “el más insigne ejemplo de la hermandad literaria de España y Portugal”.43 Além disso, Cancela atribui a este autor a caracterís-tica de ser mestre nos dois idiomas, daí que podemos estender esta atribuição para a de que Dom Francisco, ao conhecer e com maestria operar tanto na língua portugue-sa quanto na castelhana, pertencia aos dois mundos ibéricos.

O que resulta desta análise sobre a propriedade ou não do nome de Dom Francisco Manuel de Melo como um autor do século XVII desemboca em outra pergunta: qual a relação de pertencimento dessa autoridade original de quem fala, auctoritas, no seio da cultura Ibérica dividida entre um forte renascimento do sen-timento de uma existência própria portuguesa, desejosa da reconquista da autono-mia em relação à Espanha, e um já muito próprio sentimento castelhano que exer-ceu com propriedade sua auctoritas até o século XVII. O poder soberano com todas

42 Giorgio Agamben. “L’autore come gesto”, op. cit., p. 81. 43 Arturo Cancela. “Nota preliminar”, em Francisco Manuel de Melo, Política Militar en avi-sos generales, op. cit.

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as implicações dessa soberania no século XVI que já nas suas décadas finais não mais exerce sua capacidade de decisão descerra um processo de decadência, mili-tar e cultural da idéia mesma de império inaugurada por Carlos V.

Plus ultra, mais além, na América Latina há um outro ponto para o qual esta conclusão converge e novamente se abre para outra questão: como pensar as rela-ções de pertencimento e propriedade nessa fração ibérica do continente a partir da reflexão sobre a autoria? O que significa hoje ser um autor brasileiro ou ser um autor argentino no contexto dessas discussões?