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Gramsci, os intelectuais e a teoria do partido. Carlos Prado “Que todos os membros de um partido devam ser considerados como intelectuais é uma afirmação que pode se prestar à ironia e à caricatura; contudo, se refletirmos bem, nada é mais exato”. (GRAMSCI) Encontramos na vasta obra de Gramsci uma importante e necessária reflexão sobre o complexo da sociedade civil, na qual se destaca o papel exercido pelos intelectuais e pelos partidos políticos. O objetivo deste texto é apresentar a concepção de Gramsci sobre os intelectuais, destacando as funções que estes exercem, bem como o seu vinculo orgânico com as classes sociais. No mesmo sentido, abordamos as reflexões do filósofo sardo sobre os partidos políticos, pois para ele, um partido, entendido como o ‘moderno príncipe’, exerce a função de intelectual, realizando não apenas uma leitura concreta da realidade, mas também um trabalho ético-educativo e político. O conceito de intelectual tem sido amplamente utilizado, a partir dos mais variados contextos, por isso faz-se necessário observarmos exatamente como esse conceito é utilizado por Gramsci. Em seus escritos os intelectuais são os responsáveis por fazer a conexão entre a estrutura e

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Gramsci, os intelectuais e a teoria do partido.

Carlos Prado

“Que todos os membros de um partido devam ser considerados como intelectuais é uma afirmação que pode se prestar à ironia e à caricatura; contudo, se refletirmos bem, nada é mais exato”. (GRAMSCI)

Encontramos na vasta obra de Gramsci uma importante e necessária reflexão

sobre o complexo da sociedade civil, na qual se destaca o papel exercido pelos

intelectuais e pelos partidos políticos. O objetivo deste texto é apresentar a concepção

de Gramsci sobre os intelectuais, destacando as funções que estes exercem, bem como o

seu vinculo orgânico com as classes sociais. No mesmo sentido, abordamos as reflexões

do filósofo sardo sobre os partidos políticos, pois para ele, um partido, entendido como

o ‘moderno príncipe’, exerce a função de intelectual, realizando não apenas uma leitura

concreta da realidade, mas também um trabalho ético-educativo e político.

O conceito de intelectual tem sido amplamente utilizado, a partir dos mais

variados contextos, por isso faz-se necessário observarmos exatamente como esse

conceito é utilizado por Gramsci. Em seus escritos os intelectuais são os responsáveis

por fazer a conexão entre a estrutura e a superestrutura, ao traduzirem na forma de uma

visão de mundo a realidade material e os interesses das classes sociais. Em Gramsci o

conceito de intelectual não está desconexo da realidade econômica, pois existe um

vinculo orgânico entre estes e a esfera estrutural. Assim, os intelectuais aparecem como

direção político-ideológica das classes sociais, constituindo as concepções que se

chocam na sociedade civil, numa permanente disputa hegemônica.

Gramsci também destaca o papel dos partidos, que atuam como intelectuais,

produzindo projetos políticos, exercendo funções educativas e orientando ações

políticas reais. É verdade que não encontramos nos Cadernos do cárcere uma

concepção sistemática e definitiva de partido. Trata-se de um escrito inconcluso,

fragmentado que não foi preparado para publicação, mas mesmo assim, existe uma

articulação e uma linha de desenvolvimento que nos serve de base para investigar sua

concepção de partido. Essa teoria aparece como o ‘moderno príncipe’, uma vontade

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coletiva, capaz de conscientizar uma classe e transformar as relações de produção por

meio da luta de classes.

Partindo fundamentalmente da leitura dos Cadernos do cárcere e da análise de

alguns comentadores da obra de Gramsci, o presente artigo, num primeiro momento,

apresenta brevemente o conceito de sociedade civil, destacando as lutas hegemônicas e

o papel da ideologia. Posteriormente nos debruçamos sobre o conceito de intelectual,

discutindo não somente suas funções, como também seu caráter de classe. Por fim,

abordamos a problemática em torno dos partidos políticos, problematizando a relação

entre dirigentes e dirigidos, a conexão dos intelectuais com a base partidária e a crítica

de Gramsci a lei de bronze da oligarquização, evidenciando suas preocupações em

construir uma estrutura democrática no interior do partido.

Sociedade civil e luta hegemônica

Nos escritos de Gramsci o conceito de sociedade civil ganha contornos

diferentes daquele que tinha em Hegel e em Marx. Em ambos os autores,ele está

relacionado ao conjunto da estrutura econômica e social de uma determinada sociedade.

Mas na concepção gramsciana, a sociedade civil não está vinculada à estrutura,

complexo de relações econômicas e produtivas, mas relacionado à esfera da

superestrutura: “Podem-se fixar dois grande “planos” superestruturais: o que pode ser

chamado de “sociedade civil” (conjunto de organismos designados como privados) e o

da sociedade política ou Estado”.1 Assim, a sociedade civil aparece como um dos

momentos da superestrutura. Trata-se da esfera que abrange os conjuntos de

organizações privadas. Esfera esta, que juntamente com a sociedade política,

correspondem à função de hegemonia.2 Nessasistematização a sociedade política

aparece como o Estado, no sentido estrito do termo.

A sociedade civil, compreendendo todos os organismos privados, abrange um

campo bastante vasto que é o campo em que se constitui o domínio da ideologia. Não é

nossa intenção nos aprofundarmos no conceito de ideologia em Gramsci, para o

1 GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere, Vol. 2. Antonio Gramsci: os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 34.2“O exercício normal da hegemonia, no terreno tornado clássico do regime parlamentar, caracteriza-se pela combinação da força e do consenso, que se equilibram de modo variado, sem que a força suplante em muito o consenso, mas ao contrário, tentando fazer com que a força pareça apoiada no consenso da maioria.” GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere, Vol. 3. Antonio Gramsci: Maquiavel. Notas sobreo Estado e a política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 95.

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interesse do presente artigo, basta afirmamos que para o filósofo sardo, ideologia está

vinculada a uma “concepção de mundo” que se manifesta em diferentes momentos da

vida, seja no direito, na arte, na política, na economia, etc., enfim, nas mais diversas

atividades individuais ou coletivas.

Para Gramsci são fundamentais as ideologias orgânicas, ou seja, aquelas visões

de mundo que estão vinculadas organicamente aos interesses de uma classe social. A

ideologia da classe dominante, da classe burguesa, propaga-se do nível econômico para

todos os outros níveis sociais desenvolvendo um consenso. Essa propagação ideológica

ocorre em diversos ramos da sociedade a partir, fundamentalmente, da sociedade civil,

ou seja, dos organismos privados.

Assim, a ideologia está presente nas mais diversas áreas do campo social, até

mesmo em campos menos aparentes, onde ela não aparece de forma evidente. De

acordo com Portelli: “A consequência dessa concepção tão ampla da ideologia é que

nela são incluídas todas as atividades do grupo social dirigente, mesmo aquelas que

parecem menos ideológicas, particularmente as ciências”.3Como se vê, até mesmo as

ciências são carregadas de ideologia. Apesar dos métodos científicos de investigação,

elas não são neutras ou imparciais. Afinal, integram o complexo da superestrutura e,

portanto, refletem os interesses das classes sociais.

A superestrutura torna-se uma esfera central na análise gramsciana porque é nela

que se desenvolve a organização político-ideológica das classes sociais, ou seja, é nessa

esfera que a consciência de classe dos diferentes grupos sociais é formada.É na

superestrutura que a classe dominante difunde sua ideologia e seus interesses e alcança

a aceitação das classes subalternas mediante o funcionamento dos aparelhos de

hegemonia. As organizações que compõem a superestrutura, Gramsci chama de

“complexo de trincheiras”, são contra elas que o intelectual-partido deve lutar em busca

da sua independência política e teórica.

Gramsci analisa alguns desses aparelhos de hegemonia e aponta que a ideologia

da classe dominante é afirmada por três meios principais. Trata-se da Igreja, da

educação e do campo da comunicação social. Em vários momentos dos Cadernos

aparecem referência à influência exercida pela Igreja Católica. Isso se dá principalmente

porque Gramsci está partindo da análise da superestrutura italiana, na qual a catolicismo

tinha uma presença muito marcante nas primeiras décadas do século passado,

3 PORTELLI, H. Gramsci e o bloco histórico. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 23.

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participando ativamente da formação ética e moral das pessoas, difundindo valores por

meio da sua visão conservadora do mundo.4

A educação é outro campo superestrutural destacado por Gramsci. Seja sob o

controle do Estado ou de instituições privadas, a ideologia se faz presente nos

programas, nos currículos, na seleção de professores, na organização escolar, na

avaliação, etc. Outro campo também destacado é o da imprensa. Ainda no início do

século passado, Gramsci já percebia o potencial que a comunicação tinha para difundir

uma visão de mundo, seja de forma implícita ou explícita.5

É no interior dessa problemática que o filósofo sardo introduz a questão dos

intelectuais e suas funções sociais. Como já apontamos, existe uma ligação orgânica

entre a estrutura e a superestrutura. Essa vinculação aparece de forma mais clara na

influência que a base econômica exerce sobre a superestrutura, estabelecendo condições

para a sua formação e desenvolvimento. Assim, a ideologia que aparece na sociedade é

necessária à estrutura, ou seja, essas visões de mundo organizam as classes sociais e os

dirigem a partir das condições socioeconômicas. Mas a grande questão que surge écomo

se realiza concretamente essa colaboração orgânica?

Os intelectuais e as classes sociais

Diversas passagens dos Cadernos do cárcere ressaltam a importância da

sociedade civil e da hegemonia, juntamente com a direção cultural ideológica que os

intelectuais desempenham. Nessa perspectiva, o filósofo sardo elaborou um conceito de

intelectual que está imediatamente vinculado às relações sociais estabelecidas, o que

possibilita caracterizar essa atividade como elemento importante do espaço em que se

trava a disputa hegemônica.

Vejamos então, como o próprio Gramsci aborda o conceito de intelectual. Ele

argumenta que “todos os homens são intelectuais, mas nem todos os homens têm na

sociedade a função de intelectuais”.6 Essa passagem afirma que todos os indivíduos que

4 “A Igreja constitui ainda hoje, afirma Gramsci, uma verdadeira sociedade civil autônoma. Analisando as concordatas, Gramsci estima que se trata de compromissos fixados com os representantes da nova classe dirigente, que permitiram à Igreja conservar uma ampla faixa da sociedade civil”. PORTELLI, H. Gramsci e o bloco histórico. Op. cit., p. 23.5“A imprensa e a edição, assim como a organização escolar, assumem papel essencial, pois são as únicas a abranger totalmente o domínio da ideologia (livros e revistas científicas, políticas , literárias...) e seus degraus (livros e diários para a “elite”, para a vulgarização popular)”.Idem, ibidem, p. 29.6 GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere, Vol. 2. Antonio Gramsci: os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo. Op. cit., p. 18.

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estão inseridos em determinada sociedade são capazes de realizar uma reflexão sobre a

sua realidade social, mas nem todos desempenham na sociedade essa atividade

intelectual. Todos os homens constroem uma visão de mundo, mas nem todos realizam

atividades nas quais a principal função é produzir essa reflexão social. Gramsci explica

melhor:

Quando se distingue entre intelectuais e não intelectuais, faz-se referência (...) tão-somente à imediata função social da categoria profissional dos intelectuais, isto é, leva-se em conta a direção sobre a qual incide o peso maior da atividade profissional específica, se na elaboração intelectual ou se no esforço muscular-nervoso. Isso significa que, (...) é impossível falar de nãointelectuais, porque não existem não intelectuais. (...) Não existe atividade humana da qual se possa excluir toda intervenção intelectual, não se pode separar o homo faberdo homo sapiens.7

A separação entre intelectuais e não intelectuais ocorre apenas porque alguns

homens se especializam no exercício de uma atividade intelectual, tornam-se cientistas,

professores, jornalistas, políticos, escritores, etc., enquanto que outros desempenham

outras atividades, cuja função não é imediatamente reflexão sobre o contexto social no

qual está inserido.

Quando Gramsci fala de intelectuais ele não está se referindo apenas aqueles

indivíduos que cursaram uma faculdade e possuem uma formação científica ou

filosófica, esse intelectual pode ser diplomado ou não. Quando fala de intelectuais, ele

se refere a uma pessoa ou grupo de pessoas (partido, por exemplo) que sejam capazes de

realizar uma análise crítica da sociedade e construir uma concepção de mundo. Mas

Gramsci também fala em intelectual ‘orgânico’. E quando usa este termo, ele se refere

ao compromisso que os intelectuais possuem com determinada classe social em um

determinado bloco histórico. Orgânico se refere ao engajamento essencial que os

intelectuais podem possuir com uma classe social na disputa hegemônica em uma

dinâmica sócio histórica.8

A visão gramsciana dos intelectuais traz para o primeiro plano a relação destes

com as classes sociais, as quais estão vinculados. O que ele enfatiza é o vinculo

orgânico entre a superestrutura e a estrutura, vínculo que se realiza pela mediação dos

intelectuais. Analisa-se o papel desempenhado pelos intelectuais na dinâmica social,

7 Idem, ibidem, p. 52-53.8“(...) orgânico é o intelectual que, ao atuar em sua própria esfera, organiza a classe porque elabora e sistematiza a superestrutura através da qual a classe vê o mundo, se reconhece, organiza sua ação política sem a qual a classe não “se torna independente”. COELHO, Eurelino. Uma esquerda para o capital. Crise do Marxismo e Mudanças nos Projetos Políticos dos Grupos Dirigentes do PT (1979-1998). Niterói: UFF/PPGH. (Tese de doutoramento em História), 2005, p. 333.

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tendo como base a luta de classes, a disputa pela hegemonia, com vista a manutenção ou

derrubada de um bloco histórico. Tal caracterização deixa para um segundo plano o

engajamento de intelectuais com outros elementos, tais como o vinculo que estes podem

estabelecer com valores morais ou religiosos.9

Os intelectuais não constituem um grupo com características uniformes e coesas,

não são um grupo homogêneo, pelo contrário, Gramsci destaca diferentes categorias de

intelectuais. No meio dessa diversidade o papel do pesquisador é conseguir identificar o

vínculo implícito ou explícito que os ligam a uma classe.10Os intelectuais não

constituem uma classe social própria, pois não são independentes ou autônomos. “Não

existe uma classe social independente de intelectuais, mas cada grupo social possui sua

própria camada de intelectuais, ou tende a formá-la”.11Eles são uma camada social,

estão vinculados a uma determinada classe econômica e cumprem na superestrutura

uma determinada função político-ideológica. “Assim, formam-se categorias

especializadas para o exercício da função de intelectual, em conexão com todos os

grupos sociais mais importantes, e conhecem uma elaboração mais extensa e complexa,

na estreita relação com o grupo social dominante”.12

As classes sociais precisam traduzir suas condições de existência histórica na

forma de uma visão de mundo. Os intelectuais constituem a camada social que realiza

essa leitura, construindo uma consciência de classe, determinando funções e posições de

determinado grupo social dentro de uma totalidade histórica. Trata-se de um grupo

especializado, diferenciado que estão encarregados de gerir a superestrutura,

construindo uma concepção de mundo que seja homogênea e dê uma direção aos

indivíduos e suas classes.13

9 “Na primeira metade do século XX, Gramsci tratou dessa questão de maneira original, legando ao presente a possibilidade de distinguir o engajamento político mediado pela visão classista de outros tipos de engajamento, que podem ser intercedidos, por exemplo, por valores morais, espírito religioso, concepção filosófica, identidade de grupo (étnica, de gênero, opção sexual, faixa etária, etc.) , etc.” MARTINS , Marcos Francisco.Gramsci, os intelectuais e suas funções científico-filosófica, educativo-cultural e política. In: Pro-Posições,Vol. 22, n. 3 (66), p. 131-148, set./dez. Campinas,2011, p. 133.10 “O caráter orgânico do vínculo entre estrutura e superestrutura reflete-se exatamente nas camadas de intelectuais cuja função é exercer esse vínculo orgânico: os intelectuais formam uma camada social diferenciada, ligada à estrutura – as classes fundamentais no domínio econômico – e encarregada de elaborar e gerir a superestrutura que dará a essa classe homogeneidade e direção do bloco histórico. Evidencia-se assim, o caráter dialético do vínculo orgânico.”PORTELLI, H. Gramsci e o bloco histórico. Op. cit., p. 105.11GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere, Vol. 2. Antonio Gramsci: os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo. Op. cit., p. 20.12Idem, ibidem, p. 21.13 “Todo grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial do mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência de sua própria função, não apenas no plano econômico, mas também

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É importante afirmarmos que, apesar de estarem organicamente vinculados a

uma classe social, os intelectuais não se confundem com ela, mas tampouco lhe são

estranhos. Isso ocorre porque mesmo vinculados organicamente, existe certa autonomia

relativa. Nessa perspectiva, poderemos ter indivíduos de origem burguesa que se

transformam em intelectuais das classes subalternas, assim como o contrário.14

Os intelectuais são peça chave da sociedade civil e da sociedade política, pois

são eles que desempenham o papel de elaboradores da ideologia, de acordo com a

posição e os interesses da classe a qual estão vinculados organicamente. São os

intelectuais que atuando nas mais diversas esferas da sociedade civil, seja na escola, no

jornal ou no partido,constroem uma visão de mundo, dando forma a uma consciência

para as classes sociais. Se a sociedade civil é a esfera político-ideológico, os intelectuais

são aqueles que têm a função de animar e conduzir esse campo.

Mas a atuação dos intelectuais não se restringe à sociedade civil, eles também

marcam presença na sociedade política,também são agentes do Estado. São os

intelectuais que ocupam os cargos do executivo, legislativo, judiciário ou outras

repartições administrativas, como ministérios ou secretarias. Suas funções não são

apenas teóricas, mas também envolve uma prática administrativa na gerência do

aparelho do Estado e, por conseguinte, das forças armadas.

Gramsci dá destaque aos intelectuais orgânicos da classe burguesa e da classe

trabalhadora, pois são aqueles que representam as classes fundamentais das sociedades

ocidentais. Na sociedade civil se chocam duas visões de mundo antagônicas que

traduzem as condições e as contradições encontradas na esfera produtiva. Trata-se de

uma disputa hegemônica, onde as ideologias burguesa e operária se confrontam

buscando serem aceitas pelos indivíduos.

Nas trincheiras da sociedade civil, os intelectuais vinculados organicamente à

dominante constroem e difundem uma concepção conservadora, já que a função social

deles é a manutenção e reprodução do bloco histórico vigente. Nessa perspectiva, se

forja uma ideologia que busca camuflar a divisão de classes sociais. Utilizam do

discurso em torno da liberdade e da democracia para difundir a ideia de que todos são

iguais.

no planto social e político.” Idem, ibidem, p. 15.14Sobre essa problemática Gramsci cita um exemplo interessante: “Assim, cabe observar que a massa de camponeses, ainda que desenvolva uma função essencial no mundo da produção, não elabora seus próprios intelectuais “orgânicos” e não assimila nenhuma camada de intelectuais “tradicionais”, embora outros grupos sociais extraiam da massa camponesa muitos de seus intelectuais e grande parte dos intelectuais tradicionais seja de origem camponesa”. Idem, ibidem, p. 16.

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A ideologia dominante não se declara burguesa, pelo contrário, esse conteúdo de

classe é encoberto, por formas abstratas, como ‘povo’, ‘nação’ e ‘interesse comum’.

Apresentam os seus interesses como sendo interesses gerais.Assim, umaconcepção que

representa apenas a classe dominante, aparece como portadora de um conteúdo

universal. A luta de classes é ocultada e a visão de mundo burguesa se transforma em

interesse social, comum, independente da posição ocupada pelos indivíduos no processo

produtivo.15

A concepção de mundo burguesa, forjada e difundida por seus intelectuais tem

como objetivo manter a classe operária na condição de classe explorada e omissa,

conformada e passiva, como indivíduos que aceitam interesses particulares como seus

próprios interesses. De acordo com Gramsci essa condição subalterna de uma classe se

manifesta quando:

(...) um grupo social, que tem uma concepção de mundo, ainda que embrionária, que se manifesta na ação e, portanto, de modo descontínuo e ocasional – isto é, quando tal grupo se movimenta como um conjunto orgânico – toma emprestado a outro grupo social, por razões de submissão e subordinação intelectual, uma concepção que não é a sua, e a afirma verbalmente, e também acredita segui-la, já que a segue em ‘épocas normais’, ou seja, quando a conduta não é independente e autônoma, mas sim submissa e subordinada.16

Gramsci aponta que a classe subordinada, com uma visão de mundo ainda

difusa e não homogênea tende a tomar por empréstimo a visão social de outra classe. É

nesse processo que a classe subalterna, ainda incapaz de assumir uma concepção de

mundo própria, assume e ideologia da classe dominante como se fosse sua. Quando a

classe subordinada aceita como sua, a concepção da classe dominante, uma das

principais características a se desenvolver é o conformismo e a passividade com as

condições sociais estabelecidas, transformando-se em “homens massa”. De acordo com

Gramsci:

Somos conformistas de algum conformismo, somos sempre homens-massa ou homens coletivos. (...) Quando a concepção de mundo não é crítica e coerente, mas ocasional e desagregada, pertencemos

15 “Compreendemos, desde então, que os intelectuais burgueses cumprem perfeitamente o seu papel sem qualquer necessidade de recorrer à explicitação da sua posição de classe. Pelo contrário, é necessário ocultá-la: para que a concepção burguesa de mundo seja hegemônica ela deve ser apresentada não como uma concepção burguesa que de fato é, mas como uma concepção geral ou interesse geral, acima e independente dos interesses de classe.” COELHO, Eurelino. Uma esquerda para o capital. Crise do Marxismo e Mudanças nos Projetos Políticos dos Grupos Dirigentes do PT. (1979-1998). Op, cit.,p. 333.16 GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Vol. 1. Antonio Gramsci: introdução ao estudo da filosofia. A filosofia de Benedetto Croce. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p. 97.

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simultaneamente a uma multiplicidade de homens-massa, nossa própria personalidade é composta, de uma maneira bizarra.17

Se os intelectuais orgânicos das classes dominantes elaboram e difundem uma

visão de mundo que busca a passividade social e a continuidade do bloco histórico

vigente, os intelectuais das classes subalternas caminham na direção contrária. A partir

das condições sociais do proletariado, seus intelectuais elaboram e apresentam uma

visão crítica da realidade capitalista, evidenciando a situação de exploração e todas as

contradições inerentes às relações de produção estabelecidas.

As classes subordinadas devem gerar os intelectuais a ela organicamente

vinculadas para que estes elaborem sua própria visão da realidade concreta, construindo

uma nova concepção de mundo. Essa ideologia proletária deve ser fundamentalmente

crítica, elaborada a partir da análise dialética do bloco histórico vigente, assinalando

suas contradições, determinando seu viés exploratório e apontando para a sua superação

por meio de uma ruptura revolucionária.

Enquanto a concepção de mundo burguesa se utiliza de formas abstratas e

genéricas para esconder o seu caráter de classe dominante, a visão forjada pelos

intelectuais do proletariado deve trazer a tona o seu caráter de classe.18 Ao construir uma

visão crítica da sociedade, a concepção de mundo das classes subalternas deve enfatizar

as contradições da estrutura burguesa e evidenciar que a sociedade está dividida em

classes bem definidas por suas posições na produção da vida material. Partindo desse

pressuposto, de uma sociedade não somente fragmentada e dividida, mas também

exploradora e dominadora é que se desenvolverá uma consciência capaz de transformar

a realidade.19

Os intelectuais orgânicos da classe subalterna constroem uma visão de mundo

que busca a transformação social. Esses intelectuais almejam promover uma concepção

crítica que combata o bloco ideológico burguês, rompendo com o consenso liberal e que

17GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Vol. 1. Antonio Gramsci: introdução ao estudo da filosofia. A filosofia de Benedetto Croce. Op. cit., p. 94.18 “Se no caso dos intelectuais tradicionais o vínculo com a luta de classes fica mascarado pela aparência de autonomia, a situação dos intelectuais orgânicos é muito mais transparente. Estes são executores do mesmo tipo de função, mas seu vínculo com a classe é muito mais direto.” COELHO, Eurelino. Uma esquerda para o capital. Crise do Marxismo e Mudanças nos Projetos Políticos dos Grupos Dirigentes do PT. (1979-1998). Op, cit., p. 332.19 “A partir de Lênin (e Lukács) é possível formular de modo adequado o problema da consciência de classe. A classe, que é sempre consciente de si, torna-se consciente para-si(em termos de Gramsci: torna sua consciência “unitária e coerente”) na medida em que compreende sua própria situação de classe como momento de uma totalidade histórica, o capitalismo, e pode atuar politicamente (ou seja, estabelecer projetos e aplicá-los), em conformidade com esta compreensão, pela transformação radical da sociedade.” Idem, ibidem, p. 330.

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impulsione lutas por uma verdadeira transformação social.Assim, esses intelectuais,

cumprem a função de dirigir ético-politicamente as classes subalternas, em direção à

derrubada do sistema hegemônico em vigor.É a partir dessa perspectiva que Gramsci

desenvolve o conceito de “espírito de cisão”:

O que se pode contrapor, por parte de uma classe inovadora, a este complexo formidável de trincheiras e fortificações da classe dominante? O espírito de cisão, isto é, a conquista progressiva da consciência da própria personalidade histórica, espírito de cisão que deve tender a se ampliar da classe protagonista às classes aliadas potenciais: tudo isso requer um complexo trabalho ideológico, cuja primeira condição é o exato conhecimento do campo a ser esvaziado de seu elemento de massa humana20

“Espírito de cisão” é justamente esse despertar da “consciência da própria

personalidade histórica”. Para romper com o bloco ideológico capitalista, saindo do

julgo da classe burguesa e se transformando em classe hegemônica, as classes

subordinadas precisam construir seus próprios intelectuais orgânicos. Quer dizer,

organizar a sua própria direção político-ideológica. Essa direção para Gramsci, assim

como em Lenin cabe a um organismo específico que exercerá essa função de

intelectual; trata-se do partido político.

As funções dos intelectuais

Gramsci deixa claro que não são apenas os indivíduos isolados que exercem a

função de intelectuais. Essa função é desempenhada por associações de indivíduos,

nessa perspectiva, partidos políticos, sindicatos e outras organizações podem atuar

socialmente exercendo a função de intelectuais. Assim, o intelectual orgânico pode ser

um indivíduo ou uma organização social. Nessa perspectiva, os partidos políticos não

são apenas formados por intelectuais, mas enquanto organização de classe, exercem a

função de intelectuais. De acordo com a leitura de Martins (2011, p.140), os intelectuais

(partidos) exercem “três funções básicas: científico-filosóficas, educativo-culturais e

políticas”.21

A tarefa de cunho científico-filosófica são aquelas que têm por objetivo a

análise e a compreensão da realidade social em determinado período histórico. A partir

desse processo investigativo, cabe a esse intelectual orgânico do proletariado elaborar 20Idem. Cadernos do cárcere, Vol. 2. Antonio Gramsci: os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo. Op. cit., p. 79.21MARTINS , Marcos Francisco.Gramsci, os intelectuais e suas funções científico-filosófica, educativo-cultural e política. Op, cit., p. 140.

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uma concepção de mundo que seja capaz de traduzir a realidade e os interesses das

classes subalternas. Esses intelectuais apresentam uma visão de mundo que deve

questionar e colocar em cheque a ideologia burguesa, liberal e conservadora,

questionando o discurso dos interesses gerais e de valores universais, apontando a

divisão social em classes e a necessidade histórica de cessar com a exploração

capitalista.22

Os intelectuais, filiados em partido político, sindicatos ou em outras

organizações devem apresentar essa nova compreensão da realidade, mostrando a

viabilidade da transformação social. Surge assim, uma contra-hegemonia, outra visão de

mundo que busca romper com o consenso estabelecido pelo discurso dos intelectuais

burgueses, impulsionando o proletariado para a luta.

A tarefa científico-filosófica deve estar articulada a uma tarefa ético-educativa.

Não basta apenas elaborar uma nova concepção de mundo, é preciso difundi-la,

propagá-la. Elas precisam ser difundidas e assimiladas por uma coletividade. A

divulgação dessa nova concepção se dá por meio de um processo educativo, que não se

restringe à escola. Trata-se de um processo amplo, que se realiza por meio de cursos,

seminários, debates, publicação de jornais, revistas, elaboração de vídeos, etc.

A classe dominante educa as classes subalternas para continuarem na condição

de subalternidade.A tarefa dos intelectuaisvinculados aos explorados é atuar no campo

oposto, exercendo um papel educativo queabra espaço para uma nova visão de mundo.

Esta não é uma tarefa fácil, pois na prática, trata-se da construção de uma reforma moral

e intelectual que exige um processo de ruptura com antigos valores que são

permanentemente reafirmados pela ideologia burguesa.23 Em Gramsci: “Toda relação de

‘hegemonia’ é necessariamente uma relação pedagógica”.24 Quer dizer, nas sociedades

ocidentais, a permanente luta entre as classes na superestrutura se funda na divulgação e

imposição de valores ético-morais, de práticas e consensos sociais, de conhecimentos

que constroem uma visão de mundo.

22 “(...) ao intelectual orgânico às classes subalternas caberá, nesse processo, formular uma visão de mundo que seja condizente com as necessidades e os interesses históricos dos trabalhadores do campo e da cidade, disseminando-a na coletividade por diferentes meios, forjando outra cultura17 e as condições de produção de outro bloco histórico, este sob a hegemonia do proletariado, o que é indispensável para a superação do modo devida capitalista.” Idem, ibidem, p.140-141.23 “(...) para Gramsci, os processos de ensino-aprendizagem desenvolvidos na escola e fora delaestão articulados à disputa pela hegemonia entre as classes e, concomitantemente a isso, a política desenvolvida nas “sociedades ocidentais” exige que se ensinem os indivíduos e os grupos sociais a viver de acordo com as necessidades e os desejos da classe que é dominante economicamente.” Idem, ibidem, p. 142.24 GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Vol. 1. Antonio Gramsci: introdução ao estudo da filosofia. A filosofia de Benedetto Croce. Op. cit., p. 399.

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Outra questão importante é que esse processo educativo também se dá com os

intelectuais. Eles também precisam educar-se constantemente num processo de

autocrítica. Nesse sentido, sua visão de mundo ou o programa de um partido político

não sãoimutáveis, construídosmediante uma análise mecânica, pois resultam de um

processo permanente de avaliação conjuntural. Os intelectuais precisam estar sempre

readequando suas ideias, valores e práticas, para que consigam estabelecer e manter o

contato com a classe a qual estão vinculados.

Apenas para concluir a análise das três funções básicas dos intelectuais, cabe

afirmarmos algo que já ficou evidente, ou seja, as tarefas científico-filosófica e ético-

educativa culminam numa ação política, que é a luta pela derrubada do bloco ideológico

burguês e a posterior construção de uma sociedade para além do capital e da exploração

de classes. Nesse sentido, as tarefas dos intelectuais são subjetivas e também objetivas,

pois devem desembocar numa intervenção revolucionária concreta.

Em Gramsci a política não se restringe ao aparelho do Estado restrito. A sua

concepção de política é muito mais ampla, pois ela aparece como inerente à sociedade

civil. A permanente disputa hegemônica entre as classes, num processo que envolve a

construção de concepções científico-filosóficas e educativo-culturais também é uma luta

política.25

A teoria do partido

Para os intelectuais filiados ao marxismo, o partido não é uma simples

associação de indivíduos unidos por interesses semelhantes, o partido, desde Marx, mas

principalmente a partir de Lenin é um sujeito político coletivo que é forjado da própria

luta de classes, expressão necessária das classes sociais em luta.

De maneira geral, a concepção gramsciana de partido não estabelece

rompimentos com a concepção leninista. Em ambos o órgão deve ser o representante

máximo e direto da classe operária. A função do partido é aglutinar os melhores homens

(seus melhores intelectuais), elaborar uma concepção coerente da conjuntura histórica e

atuar educando as massas, difundindo uma visão crítica das relações sociais, divulgando

25 “(...) a política é vista por Gramsci como um processo que se efetiva não apenas por meio da coerção dos aparelhos de Estado (“sociedade política”), mas também pela formulação e consolidação de consensos sociais, produzidos e “cimentados” pelos aparelhos da “sociedade civil”, que guardam, assim, clara função educativa.”MARTINS , Marcos Francisco.Gramsci, os intelectuais e suas funções científico-filosófica, educativo-cultural e política. Op, cit., p. 143.

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suas contradições e impulsionando as classes subalternas para a luta contra a classe

dominante.

Mas em Gramsci, especialmente no caderno 13, aparece claramente a

influência de outro grande pensador; trata-se de Maquiavel. Fazendo uma referência

direta ao filósofo florentino, Gramsci afirma que “o moderno príncipe, o mito-príncipe

não pode ser uma pessoa real, um indivíduo, mas um organismo; um elemento

complexo da sociedade, uma vontade coletiva reconhecida pela ação.”E acrescenta:

“Este organismo já está dado pelo desenvolvimento histórico e é o partido político, a

primeira célula na qual se sintetizam germes de vontade coletiva que tendem a tornar

universais”.26O partido político aparece como o moderno príncipe que deve atuar como

representando de uma vontade coletiva, uma vontade de classe, difundindo uma nova

cultura. Para o filósofo sardo as características do ‘moderno príncipe’ deveriam estar

reunidas no partido comunista, que se apresentaria como o condottierodas classes

subalternas à conquista da hegemonia e da sociedade política.

É importante apontarmos que não existe em Gramsci uma teoria universal do

partido. Ele não trata essa questão de forma dogmática e mecânica estabelecendo leis

universais para sua organização e atuação junto às classes subalternas. Assim, a

construção de um partido deve sempre obedecer à realidade histórica, buscando traduzir

determinadas condições reais de luta. Não se trata da elaboração de um modelo geral,

canonizado e válido para as mais variadas situações, que pode ser elaborado a priori,

mas de uma elaboração a posteriori, a partir de uma análise investigativa das condições

da luta de classes em determinado período.27

Para as classes subalternas, o partido aparece como a organização capaz de dar

forma a uma consciência e uma identidade antagônica. É nesse sentido que o partido,

enquanto intelectual orgânico, elabore um programae construa um projeto político que

seja capaz de apresentar uma visão coerente da dinâmica social, respondendo a questões

políticas e econômicas precisas. Nessa perspectiva, o partido deve apresentar uma

análise da situação concreta das relações de produção, expondo a exploração de classes

e o caminho para a luta revolucionária. Em outras palavras, o papel do partido na

26GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere, Vol. 3. Antonio Gramsci: Maquiavel. Notas sobreo Estado e a política. Op, cit., p. 16.27 “(... ) não existe uma teoria marxista geral do partido político, pois a sua estrutura organizativa é determinada não só pelo contexto histórico internacional da luta de classes, mas também pelo quadro das relações de força existente entre as classes no interior de cada formação social particular: em suma, os modelos organizativos são fluidos, historicamente determinados e destinados a transformações constantes”. NERES, Geraldo Magella. DEL ROIO, Marcos. O ‘novíssimo príncipe’. Gramsci e a reconstrução da teoria marxista do partido. Tempo da ciência. Vol. 20. nº 40. Jul-dez, 2013, p. 143.

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tradição marxista e em Gramsci não é diferente é o de elaborar um projeto político que

seja um verdadeiro programa revolucionário para conscientizar e dirigir as massas.

A tarefa científico-filosófica do partido ganha vida na forma de um projeto

político. De acordo com Coelho: “projeto político seria pensado como uma explicitação

sistematizada das motivações e dos objetivos de um posicionamento ou uma

intervenção política coletiva, isto é, uma intervenção nos processos de disputa de

poder”.28Trata-se de elaborar um programa adequado a determinada concepção de

mundo. Tal projeto deve expressar e refletir dialeticamente a existência histórica das

classes sociais. Ele deve conter uma sistematização de um contexto preciso, revelando

as contradições e os conflitos das relações produtivas e de poder.

O projeto político não pode apresentar uma concepção difusa e prolixa. Ele

precisa trazer uma visão de mundo que contenha um elemento intencional e

organizativo. Coelhoargumenta que uma visão de mundo só se torna um projeto político

“a partir do momento em que exprime uma perspectiva consciente de mediação entre

teoria e prática, entre uma concepção de mundo e um plano de ação sobre ou com o

mundo, que procura estruturar-se adequando meios a fins”.29 Não basta uma

sistematização político, econômica e social que permaneça no nível da teoria, ela

precisa estar conectada com uma ação, necessita apresentar uma proposta política de

intervenção, ou seja, o projeto político se traduz numa mediação entre teoria e prática.

Na construção do projeto político, o partido deve se vincular apenas às classes

subalternas, mantendo afastada a influência de outras ideologias, como por exemplo, da

pequeno-burguesa, que foi muito influente durante a Segunda Internacional. O partido,

enquanto intelectual orgânico das classes subalternas, não é um órgão interclassista, ele

é um órgão fundamentalmente da classe operária.

Gramsci também deixa bem claro que o partido não pode ser um organismo

externo, afastado da classe. Essa direção não se dá “através de uma imposição

autoritária vinda de fora”.30 A relação do partido com a classe deve ser realmente

orgânica, por isso os intelectuais que atuam no partido devem estar inseridos na classe,

devem conhecer não apenas o funcionamento das relações capitalistas de produção, mas

também as condições reais de vida das classes subalternas, suas reivindicações e

necessidades mais urgentes. Caso o partido se mantenha distante da classe subalterna,

28 COELHO, Eurelino. Uma esquerda para o capital. Crise do Marxismo e Mudanças nos Projetos Políticos dos Grupos Dirigentes do PT. (1979-1998). Op, cit., p. 319.29 Idem, Ibidem, p. 320.30 GRAMSCI, Antonio. Escritos Políticos. Vol. 2. Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira, 2004, p. 356.

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ele não pode se impor como direção, pois ela não aceitará uma liderança exterior e

estranha. Para Gramsci, o partido só será aceito como representante da classe operária

na medida em que ele:

(...) efetivamente se revele capaz – enquanto parte da classeoperária – de se ligar a todos os segmentos de tal classe e deimprimir à massa um movimento na direção desejada e queencontre respaldo nas condições objetivas. Somente emconsequência de sua ação entre as massas é que o Partidopoderá fazer com que essas o reconheçam como seupartido (conquista da maioria); e somente quando talcondição se efetivar é que o Partido pode presumir que estásendo seguido pela classe operária.31

O partido deve ser parte da classe operária, deve ligar-se a ela para que

realmente possa ser reconhecido enquanto liderança. Caso o partido se coloque ou atue

como um órgão exterior e estranho, ele não será seguido pela classe, não conquistará a

confiança dos seus membros e assim, se mostrará totalmente incapaz de ocupar o papel

de direção revolucionária.

A organização do partido

O ponto de partida da reflexão gramsciana sobre os partidos é a sua própria

atuação política no período que precede a sua prisão. Quando discute a questão da

estrutura organizativa dos partidos ele tem em perspectiva a experiência do Jornal

L’OrdineNuovo, dos conselhos de fábrica e do PCI, bem como as relações com a III

Internacional Comunista.

Analisemos agora duas questões centrais que estão estreitamente relacionadas.

Trata-se, por um lado, da análise das condições para que se desenvolva um vínculo

orgânico entre o ‘moderno príncipe’ e a classe social que este representa e, por outro

lado, da crítica à estrutura interna de funcionamento da vida partidária. A teoria do

partido em Gramsci apresenta um grande esforço para que essa organização de classe

não siga o caminho da burocratização.

Quando Gramsci pensa a estrutura e a organização dos partidos políticos, ele

pensa na constituição dos partidos comunistas que devem estar organicamente

vinculados a classe operária. Esses partidos devem produzir uma estrutura própria e

original que seja diferente e que se contraponha ao modelo adotado pelos partidos

tipicamente burgueses. O ‘moderno príncipe’ não pode se adequar aos limites impostos

31Idem, ibidem.

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pela democracia liberal e pela vida burocrática do parlamento. Esse partido surge

justamente para se contrapor a essa estrutura burguesa com fins eleitorais. Nesse

sentido, não apenas no seu projeto político, mas também na sua organização interna, o

partido comunista deve ser a negação da lógica burguesa.

Gramsci se dedica a análise da estrutura organizativa do ‘moderno príncipe’, na

medida em que compreende a centralidade da criação de mecanismos internos que

garanta ao partido não apenas a existência de uma ampla discussão interna, mas também

a possibilidade de se manter vinculado organicamente às classes subalternas. Gramsci

compreende a centralidade da discussão em torno da estrutura organizativa do partido,

pois aquele que tende para a oligarquização, que se burocratiza, acaba impedindo a

participação das massas e se torna um partido estranho e exterior a própria classe.

A discussão se desenvolve a partir do questionamento às teses de Robert

Michels, sociólogo ítalo-germânico, que em 1915 publicou A Sociologia dos Partidos

Políticos, defendendo a ideiade que a oligarquização do partido é um processo

inevitável, no qual desembocará todo partido operário. O que Gramsci apresenta é

justamente uma reflexão que critica esse caráter mecânico e inexorável da

oligarquização, demonstrando quais caminhos e medidas organizativas o partido deve

seguir para construir uma organização essencialmente democrática.

Em sua obra, Michels lançou a expressão “lei de bronze da oligarquia”,

segundo a qual todos os partidos tendem, de maneira inevitável, a desenvolver uma

oligarquia. Nesse esquema, os dirigentes se tornariam membrosprivilegiados

queocupariam os principais cargos e impediriam que as organizações partidárias

funcionassem de maneira democrática.A lei de bronze da oligarquia tem seu cerne na

existência de uma oposição entre os interesses daoligarquia partidáriae os dos membros

da base. Dessa forma, o partido desenvolve uma oposição entre dirigentes e dirigidos,

constituindo uma estrutura que perde os instrumentos democráticos e constrói uma

hierarquia, na qual alguns membros dirigentes dominam as discussões e impõem suas

opiniões e interesses, sem ouvir ou respeitar a vontade ou necessidades dos dirigidos.A

principal crítica de Michels é quanto a formação de verdadeiras elites intelectuais que

por sua posição acabam dominando os principais cargos e hierarquizando os partidos.

Para Gramsci a oligarquização e burocratização dos partidos tem como

pressuposto um conteúdo de classe. Quando os dirigentes pertencem a uma classe

diferente daquela dos dirigidos, o partido realmente pode caminhar com certa facilidade

em direção a uma oposição entre intelectuais e base, que traduzirá essa diferenciação de

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classe já posta. A história da Segunda Internacional evidencia a burocratização dos

partidos socialdemocratas que tinham direções pequeno-burguesas. Para impedir esse

processo Gramsciafirma que:Se não existe diferença de classe, a questão torna-se puramente técnica – a orquestra não crê que o regente seja um patrão oligárquico – de divisão do trabalho e de educação, isto é, a centralização deve levar em conta que nos partidos populares a educação e o ‘aprendizado’ político se verificam em grande parte através da participação ativa dos seguidores na vida intelectual – discussões – e organizativa dos partidos.32

Fica evidente que o partido do proletariado deve ser constituído

fundamentalmente pela classe trabalhadora. Esse pressuposto já havia sido defendido

por Gramsci por ocasião do III Congresso do Partido Comunista Italiano em 1926, no

documento que ficou conhecido como “Teses de Lyon”. Mas a burocratização pode

realmente ser evitada apenas compondo o partido com uma única classe? A democracia

interna está garantida quando o partido é composto apenas por operários? Essa

composição proletária do partido é realmente capaz de impedir que os dirigentes se

distanciem da base social?

O partido deve se desenvolver a partir de relações estritamente democráticas.

Nesse sentido, Gramsci pensa a estrutura partidária como o momento que antecipa as

relações que deveriam se constituir na sociedade pós-capital. “No entender de Gramsci,

um partido comunista deveria iniciar já no cotidiano a prática da democracia direta,

tendo como objetivo gerar um novo tipo de relacionamento”.33O partido da classe

trabalhadora deve se desenvolver a partir de relações democráticas que superem a

dualidade entre governantes e governados. Caso a organização partidária não coloque

em cheque essa oposição histórica, ela apenas estará reproduzindo as relações da

sociedade burguesa.

Gramsci reconhece que a composição proletária do partido não é suficiente

para garantir o funcionamento democrático e impedir uma oligarquização partidária. Por

isso, ele também aponta a necessidade de se construir mecanismos inovadores para que

a estrutura do ‘moderno príncipe’ não se afaste das massas. De acordo com Neres e Del

Roio, o filósofo sardo faz a defesa da:

(...) célula profissional como base de organização do partido, capazes de formar um amplo estrato de dirigentes intermediários, extraídos da

32GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere, Vol. 3. Antonio Gramsci: Maquiavel. Notas sobreo Estado e a política. Op, cit., p. 243.33 PANSARDI, Marcos Viniciusi. SCHLESENER, Anita. Educação democrática, os partidos políticos e a globalização: reflexões sobre o pensamento politico de Gramsci. Trabalho e Educação. Vol. 16. nº 2. Jul-dez, 2007, p. 31.

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massa e que deveriam permanecer organicamente vinculados a ela, ainda que exercendo funções dirigentes.34

Um dos mecanismos apresentados por Gramsci é o de que a base social do

partido, aqueles se seriam os “dirigidos”, possam cada vez mais ocupar cargos de

direção. Tal pressuposto busca caminhar para a superação dessa oposição entre

dirigentes e dirigidos.

Gramsci desenvolve sua crítica à concepção oligárquica do partido de Michels,

evidenciando a contraposição entre o modelo do ‘centralismo democrático’ e o do

‘centralismo burocrático’. Em “Que fazer” de 1902, Lênin lançou as bases do

centralismo democrático, que almejava combinar a ampla discussão durante os

congressos e a rígida disciplina após a aprovação das teses. No contexto da Rússia

Czarista, o partido teve que se construir a partir de uma direção centralizada e pela

homogeneidade ideológica que era imposta de forma hierárquica pelo aparelho

partidário. Gramsci não abandona esse conceito de centralismo democrático, mas

amplia o seu conteúdo, a partir da percepção de novas realidades históricas.

Ao contrário do centralismo democrático, o burocratizado apresenta uma forma

enrijecida, imobilizada que não é capaz de acompanhar o dinamismo das conjunturas

históricas. Essa burocratização impede que os membros do partido se movimentem no

interior da organização. Assim, os dirigentes permanecem como ‘chefes’ partidários e

intocáveis, ficando cada vez mais distantes da base social, enquanto que os dirigidos,

por sua vez, não conseguem alcançar os postos intermediários e muito menos o vértice

da organização. O centralismo burocrático consolida uma hierarquização partidária,

deixando os intelectuais cada vez mais distantes da classe a qual deveriam estar

organicamente vinculados.

Na perspectiva oposta ao centralismo burocrático, Gramsci apresenta sua

versão ampliada do centralismo democrático. Se o primeiro apresenta como

característica o imobilismo de sua estrutura, este tem como característica a mobilidade.

Trata-se de:

(...) um “centralismo” em movimento, por assim dizer, isto é, uma contínua adequação da organização ao movimento real, um modo de equilibrar os impulsos a partir de baixo com o comando pelo alto, uma contínua inserção dos elementos que brotam do mais fundo da massa na sólida moldura do aparelho de direção, que assegura a continuidade e a acumulação regular das experiências: ele é ‘orgânico’ porque leva

34NERES, Geraldo Magella.DEL ROIO, Marcos. O ‘novíssimo príncipe’. gramsci e a reconstrução da teoria marxista do partido. Op, cit., p. 152.

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em conta o movimento, que é o modo orgânico de revelação da realidade histórica, e não se enrijece mecanicamente na burocracia.35

Para Gramsci é essencial que se construa uma estrutura que garanta o acesso

das bases partidárias aos postos de direção. Mas não se trata apenas de garantir o

movimento ou a troca no comando partidário, afinal isso só poderá ocorrer se o grupo

dos dirigidos realmente se sentir livre para contribuir e se expressar no interior das

discussões partidárias. É preciso que o acesso ao partido não seja de natureza exclusiva

e restritiva, mas inclusiva. Um partido operário não se constrói por meio de uma

vanguarda isolada e sem ligações com a base de sua classe.36

Para garantir que o partido tenha um funcionamento democrático é preciso que

a disciplina não seja aos moldes da obediência mecânica e da imposição inquestionável

do Comitê Central. É preciso desenvolver uma nova visão sobre a disciplina no interior

do partido. De acordo com Gramsci, essa disciplina deve se realizar “não como

acolhimento servil e passivo de ordens, como execução mecânica de tarefas (...) mas

como uma assimilação consciente e lúcida da diretriz a realizar”.37

A disciplina partidária não pode se realizar como uma imposição, como ordem

autoritária fixada por estruturas superiores e que, por isso, devem ser respeitadas e

executadas. Pelo contrário, a disciplina deve ganhar traços de convicção, já que a

autoridade deliberativa emana de um processo democrático. Trata-se de um consenso

ativo.38 Dessa maneira, o militante partidário executa as atividades e tarefas do partido

que ele mesmo ajudou a construir e a determinar. Não são ordens externas e estranhas,

35GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere, Vol. 4. Antonio Gramsci: Maquiavel. Notas sobreo Estado e a política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 1643.36 “(...) a distinção fundamental entre ‘centralismo democrático’ e ‘centralismo burocrático’ reside precisamente no tipo de relação que se estabelece entre líderes e liderados, na forma como se administra politicamente a inevitável conformação de diferenciações ou especializações técnicas que, forçosamente, deverão ocorrer no interior da organização em questão: se esta relação é de natureza inclusiva, se a atuação da vanguarda respeita e fortalece a ligação orgânica com a base de sua referência social, o tipo de organização dado às forças econômicas e políticas (o funcionamento do partido, do Estado, do sindicato etc.) será o ‘centralismo democrático’; se esta relação é de natureza restritiva, fundada no isolamento do grupo dirigente e na aplicação burocrática da linha política, o tipo de organização erigido só poderá se basear no ‘centralismo burocrático’.” NERES, Geraldo Magella. DEL ROIO, Marcos. O ‘novíssimo príncipe’. gramsci e a reconstrução da teoria marxista do partido. Op, cit., p. 153.37 GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere, Vol. 4. Antonio Gramsci: Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 1706.38 “A democracia operária, para Gramsci, concretiza-se inicialmente nas práticas internas do partido como um dos principais espaços de formação de um consenso ativo, gerado pela participação efetiva de todos no cotidiano político. A nova experiência democrática assim gestada e estendida à sociedade civil consolidaria o que Gramsci denomina “sociedade regulada” (socialismo).” PANSARDI, Marcos Viniciusi. SCHLESENER, Anita. Educação democrática, os partidos políticos e a globalização: reflexões sobre o pensamento politico de Gramsci.Op, cit., p. 33.

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são ordens que perpassa pela sua própria vontade e liberdade, pois o mesmo participou

da sua elaboração.39

Para Gramsci a “lei de bronze da oligarquia” só pode ser quebrada por meio de

uma estrutura partidária que permita que suas lideranças emerjam da sua base social. É

preciso formar uma camada média e ampla de militantes que esteja articulada ética e

politicamente com o militante de base. Nesse sentido, um permanente processo de

formação moral, intelectual e político dos militantes são indispensáveis. Mais uma vez

aparece o papel educativo do ‘moderno príncipe’. Nas palavras de Gramsci: “Uma

função fundamental dos partidos é elaborar os próprios componentes, elementos de um

grupo social, até transformá-los em intelectuais políticos qualificados, dirigentes,

organizadores”.40

Os intelectuais que dirigem o partido não podem ser externos, devem prover da

sua base social. O próprio partido deve formá-los por meio de cursos, publicações,

debates e etc.“Para alguns grupos sociais, o partido político é nada mais do que o modo

próprio de elaborar sua categoria de intelectuais orgânicos, que se formam assim

diretamente no campo político e filosófico, e não no campo da técnica produtiva”.41A

responsabilidade educativa, necessária para elevar a consciência das classes subalternas

é tarefa do partido político, pois essa formação não é técnica, não é uma especialização

produtiva, é uma educação que emerge diretamente do campo político, da luta de

classes, e é onde o ‘moderno príncipe’ deve atuar.

Considerações finais

As reflexões de Gramsci sobre os intelectuais e o partido político são muito

importantes e permanecem, ainda hoje, extremamente atuais, não somente para

discussão e compreensão das sociedades capitalistas, mas também para pensar a sua

superação. Os escritos do filósofo sardo evidenciam que os intelectuais não possuem

uma atuação independente ou autônoma, até mesmo a ciência não escapa das relações

produtivas, não escapa da divisão de classes e acaba reproduzindo um conhecimento

39“Gramsci manifestava claramente que, para ele, o controle e a diminuição do poder burocrático do partido provinha de uma relação contínua com a vida da classe operária, que deveria participar e intervir permanentemente nas políticas partidárias de modo efetivo e não apenas referendando a ação dos dirigentes”. Idem, Ibidem, p. 30.40 GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere, Vol. 3. Antonio Gramsci: Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política. Op, cit., p. 85.41 Idem, Ibidem.

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que não é ‘desinteressado’, mas influenciado pelas disputas hegemônicas. A partir do

conceito de intelectual orgânico desenvolveu-se uma teoria enfatizando o compromisso

que estes assumem explicita ou implicitamente com as classes sociais.

A grande preocupação de Gramsci é pensar a atuação, as tarefas e as funções

assumidas pelos intelectuais que se comprometem, assim como ele, com as classes

subalternas. É nesse interim que entra em discussão a teoria do partido, que ele

identifica como o ‘moderno príncipe’, órgão dirigente de uma vontade coletiva, de uma

classe social. O intelectual-partido, a partir da elaboração de um projeto político

coerente, não apenas analisa teoricamente a realidade concreta da produção

material,mas também cumpre tarefas educativas e políticas, elevando a consciência das

classes subalternas e impulsionando lutas políticas pela transformação social.

A partir da própria vivencia partidária, Gramsci alerta contra o perigo da

burocratização do partido e se empenha em negar a teoria da lei de bronze da oligarquia,

evidenciando que o surgimento da burocracia partidária pode ser sim evitada, pois não

se trata de um movimento natural e inexorável. Assim, aponta mecanismos para que a

estrutura interna do partido mantenha relações democráticas, educando e absorvendo em

sua estrutura os membros de sua base social. Gramsci enfatiza que o partido não pode

reproduzir a dualidade entre governantes e governados. Para aqueles que ainda

acreditam na transformação da sociedade, a obra de Gramsci permanece atual e

necessária.

REFERÊNCIAS

COELHO, Eurelino. Uma esquerda para o capital. Crise do Marxismo e Mudanças nos Projetos Políticos dos Grupos Dirigentes do PT (1979-1998). Niterói: UFF/PPGH. (Tese de doutoramento em História), 2005.

GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Vol. 1. Antonio Gramsci: introdução ao estudo da filosofia. Afilosofia de Benedetto Croce. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

______. Cadernos do cárcere, Vol. 2. Antonio Gramsci: os intelectuais. O princípioeducativo. Jornalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

______. Cadernos do cárcere, Vol. 3. Antonio Gramsci: Maquiavel. Notas sobreo Estado e a política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

______. Cadernos do cárcere, Vol. 4.Antonio Gramsci: Maquiavel. Notas sobreo Estado e a política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

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______.Escritos Políticos. Vol. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.

PANSARDI, Marcos Viniciusi. SCHLESENER, Anita. Educação democrática, os partidos políticos e a globalização: reflexões sobre o pensamento politico de Gramsci. In: Trabalho e Educação. Vol. 16. nº 2. Jul-dez, 2007.

PORTELLI, H. Gramsci e o bloco histórico. 6. ed. Trad. de Angelina Peralva. São Paulo:Paz e Terra, 2002.

MARTINS , Marcos Francisco.Gramsci, os intelectuais e suas funções científico-filosófica, educativo-cultural e política. In: Pro-Posições, Vol. 22, n. 3 (66), p. 131-148, set./dez. Campinas, 2011.

NERES, Geraldo Magella. DEL ROIO, Marcos. O ‘novíssimo príncipe’.gramsci e a reconstrução da teoria marxista do partido. Tempo da ciência. Vol. 20. nº 40. Jul-dez, 2013.