Document a Rio Performance

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DOCUMENTRIOS PERFORMTICOS: a incorporao do autor como inscrio da subjetividade

PATRICIA REBELLO DA SILVA

Universidade Federal do Rio de Janeiro Programa de Ps-Graduao Mestrado

Orientadora: Profa. Dra. CONSUELO LINS

Rio de Janeiro 2004

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DOCUMENTRIOS PERFORMTICOS: a incorporao do autor como inscrio da subjetividade

PATRICIA REBELLO DA SILVA Dissertao submetida ao corpo docente da Escola de Comunicao da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do grau de Mestre. Aprovada por: _______________________________ Profa. Consuelo Lins Orientadora Doutora _______________________________ Profa. Andra Molfetta Doutora _______________________________ Profa. Ivana Bentes Doutora Rio de Janeiro 2004

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Silva, Patricia Rebello da. Documentrios performticos: a incorporao do autor como inscrio da subjetividade / Patrcia Rebello da Silva. Rio de Janeiro: UFRJ/ECO, 2004, 186p. Dissertao Universidade Federal do Rio de Janeiro, ECO. 1. Cinema. 2. Documentrio. 3. Teoria 4. Produo de sentido. 4. Dissertao (Mestr. UFRJ/ECO). I. Ttulo.

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Dedico este trabalho a minha famlia, que me deu o apoio necessrio para que a pesquisa fosse realizada. Me, tia, avs, irm; essa dissertao no seria possvel sem a compreenso de todas vocs, minhas meninas.

5 AGRADECIMENTOS

Diversas pessoas estiveram presente e foram necessrias para que a pesquisa chegasse forma da dissertao. A Consuelo Lins, minha orientadora, obrigada pela compreenso, pela presena, pela sabedoria e por uma orientao que extrapola esses dois anos de curso. Foi seu trabalho a principal orientao e inspirao desse texto, e espero no t-la decepcionado. Aos professores, pela quantidade e qualidade de sabedoria que tanto colaboraram para que o trabalho se tornasse mais interessante. Aos senhores, Beatriz Jaguaribe, Beatriz Resende, Helosa Buarque de Hollanda, Ivana Bentes, Janice Caiafa e Muniz Sodr, meu eterno obrigada. Professora Raquel Paiva, mestra e coordenadora no Projeto Bolsista Integrado, obrigada pelo carinho e a ateno sempre. Nos diversos momentos deste trabalho, Amir Labaki, Jos Carlos Avellar, Joo Moreira Salles, Karim Ainouz e Kiko Goiffman, pelos filmes, as entrevistas e as informaes preciosas para a pesquisa. A Julio Csar de Miranda, da Polytheama Vdeolocadora, no apenas pela descoberta e indicao dos filmes que foram objetos de anlise, mas por ensinar a amar o documentrio no apenas como uma forma de cinema, mas como uma forma de expresso particularmente pessoal. Ao Dr. Fabrcio Braga, que trouxe paz ao ambiente ao redor, tornando possvel o trabalho de pesquisa. Obrigada pela amizade e ateno. minha famlia, que em nenhum momento deixou de me apoiar, em todos os sentidos para que eu pudesse me dedicar exclusivamente pesquisa.

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RESUMO

SILVA, Patricia Rebello da. Documentrios Performticos: a incorporao do autor como inscrio da subjetivade. Orientadora: Profa. Dra. Consuelo Lins. Rio de Janeiro: UFRJ/ECO, 2004. Diss.

Este estudo tem como objeto principal o filme documentrio especificamente, a descrio e anlise e discusso de um tipo especfico de filmes dessa forma de cinema, o documentrio performtico, tal como foi identificado pelo terico americano professor Bill Nichols. Os documentrios performticos caracterizam-se por uma abordagem essencialmente subjetiva, trazendo o prprio documentarista e seus questionamentos mais particulares para o centro do filme. A ficcionalizao da objetividade, a importncia da auto-representao, a incorporao do conhecimento e processos de auto-reflexo so algumas questes tratadas. Essa dissertao procura descrever o processo de criao da subjetividade no campo do filme documentrio, encontrando no performtico um momento emblemtico dessa representao. A dissertao se divide em 2 partes. Na primeira, trata-se de esclarecer as bases tericas do documentrio em especial, na metodologia definida por Bill Nichols criando bases para a absoro do conhecimento do documentrio performtico. A segunda parte concentra-se na anlise de filmes, divididos de acordo com as principais caractersticas identificadas. O estudo do documentrio performtico tem por funo instigar a descoberta de novas formas de linguagem para esse tipo de cinema, complexificando um campo terico que vem crescendo com fora.

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ABSTRACT

SILVA, Patricia Rebello da. Performatic documentaries: the embodiment of the author as the inscription of subjectivity. Adviser: Profa. Dra. Consuelo Lins. Rio de Janeiro: UFRJ/ECO, 2004. Diss.

These study has as its main objective the documentary film specifically, the analysis and description of a unique kind of film from these form of cinema, the performative documentary, as identified by the american theorist, professor Bill Nichols. The performative documentaries are mainly identified by an essencially subjective approach, bringing the documentarist himself and his most inner questions to the center of the film. The fictionalization of the objectivity, the high meaning of self-representantion, the embodiment of knowledge and process of self-reflection are some of the issues brought about in these research. These dissertation try to describe the methods of creation of subjectivity in the documentary film field, finding in the performative an emblematic moment in these representation. The dissertation is divided in 2 parts. In the first, we will search to clarify the theoretical bases of documentary in special, regarding the methodology defined by Bill Nichols creating some kind of bases for the absorbing of the knowledge of the performative documentary. The second part is focused in the analysis of films, separated according the main characters identified. The study of the performative documentary search to instigate the discovery of new uses for language in these form of cinema, disturbing a theoretical field that has been growing with full power.

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SUMRIO Introduo 1. Pintura Intima....................................................................................................... 11 2. Entre o autor e seu Personagem........................................................................... 16 3. Estrutura e metodologia........................................................................................ 21 Captulo I 1. Subjetivando uma percepo subjetiva............................................................. 27 2. A fico da objetividade........................................................................................ 31 3. Prazer em conhecer.......................................................................................... 35 4. Formas de realismo no documentrio.................................................................. 37 5. A construo da voz no documentrio............................................................... 41 6. Um modo afetivo de representao...................................................................... 44 Captulo II 1. Modos de representao no documentrio: estratgias e representaes de experincias 1.1 O estabelecimento dos modos de representao.......................................... 46 2. Os modos de representao de Bill Nichols 2.1 Modo potico................................................................................................ 50 2.2 Modo expositivo............................................................................................51 2.3 Modo de observao..................................................................................... 54 2.4 Modo interativo............................................................................................ 58 2.5 Modo reflexivo.............................................................................................. 62

9 Captulo III Documentrio performtico: nova forma, antigas questes........................................................................... 64 1. Gnese............................................................................................................. 66 2. Princpios de organizao do sujeito: o corpo do documentarista no centro.............................................................. 69 3. Princpios de organizao do mundo: a subjetividade social...................................................................................... 72 4. Princpios de organizao da experincia: afetos......................................... 75 5. Principais influncias e caractersticas......................................................... 76 Captulo IV Treyf, ou, Uma retrica da auto-etnografia................................................... 81 1. A ps-modernidade no discurso auto-etnogrfico......................................... 83 2. Treyf............................................................................................................. 87 Abertura....................................................................................................... 88 1 parte: ser ou no ser treyf?................................................................... 89 2 parte: obssesses..................................................................................... 91 3 parte: em Israel....................................................................................... 93 4 parte: a grande filmagem........................................................................ 96 5 parte: correspondncia afetiva............................................................... 98 Captulo V A expresso do afeto aproximando distncias: The Mighty Civic e Porto da Minha Infncia................................................ 101 1. Duas construes estimulantes..................................................................... 102 2. Escolhas de estilo, estruturas de afeto......................................................... 105 3. A lgica do afeto dominante......................................................................... 109 4. Porto da minha infncia: focalizao interna (cronotopo afetivo)......... 112 5. Civic: o afeto como experincia da distncia.......................................... 116

10 Captulo VI A auto-inscrio como performance: 33 e Os catadores e a catadora............................................................... 121 1. O narrador de Benjamin e o documentrio performtico........................ 124 2. Dois filmes, duas performances, dois mundos, um modo.............................. 129 3. Em busca de um tempo perdido (?): 33.................................................... 134 4. La Varda borralheira: Os catadores e a catadora................................... 139 Captulo VII A face oculta do performtico: ps-modernidade na fronteira entre fato e fico: Nicks movie Lightning over water............................... 144 1. Ps-modernidade no documentrio performtico......................................... 149 2. O amigo alemo........................................................................................ 152 3. O tempo presente de Lightning over water: Nicks movie............................ 156 4. O tempo fictcio em Nicks movie: Lightning over water.............................. 160 5. O uso do vdeo em Nicks movie: sintoma ps-moderno.............................. 163 Concluso 1. Um ltimo exemplo....................................................................................... 169 2. Por uma potica da subjetividade................................................................ 173 Bibliografia ..................................................................................................... 177 Anexos Representaes de experincias: outros modos 1. Gnese 2. Paul Rotha 3. Eric Barnouw 4. Stella Bruzzi

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INTRODUOA boa notcia quanto ao documentrio, acima de tudo, que a palavra (...) soa hoje em dia menos rgida; perdeu seu antigo aroma tosco, seu velho rtulo de autenticidade cem por cento verificvel. No entanto, o documentrio no trocou um limite por outro; no trocou seu perfume bruto de Realidade por aquele mais glamouroso da Arte. Ao contrrio, mil fragrncias se difundem (...) em torno dele, abrindo a palavra para alm dos limites de um gnero, de um gueto propriamente dito. Isso pode ser enunciado em uma frmula: o documentrio prospera no presente sem unidade nem definio a priori.1

1) PINTURA INTIMA Durante toda sua histria, o documentrio assumiu variadas formas de relacionamento com seu objeto de filmagem. Sejam essas formas determinadas pelas razes fundamentais de realizao do filme, das inovaes tecnolgicas nos equipamentos de registro ou das experimentaes, uma questo se mostrou dominante em todos esses anos: documentrios so filmes construdos em torno, ou a partir, de personagens sejam eles de carne e osso, sejam eles produtos de uma idia, uma teoria determinada a partir de um discurso dominante2. Se nos filmes de fico, os personagens so construes meticulosas onde o ator procura se esvaziar para a incorporao de um outro fictcio, no documentrio essa construo parte de um processo de enriquecimento desse ator onde ele cresce a partir de seu prprio contedo, concebendo assim um mtodo particular de inveno. A construo se d em uma direo diferente da ficcional: no lugar de se esvaziar, o ator do documentrio incorpora valores, virtudes e modos que esto a seu alcance: parte do seu ambiente, do seu tempo, da sua cultura; se acomodam ao instante presente como este lhe percebido. A longa tradio dessa forma de escrita cinematogrfica se distingue por tratar

La bonne nouvelle, por Emmanuel Burdeau, em Cahiers du Cinma (n594), outubro de 2004 Me refiro aqui aos filmes sobre cidades (Berlin - sinfonia de uma cidade), monumentos (A ponte, O rio) e eventos, como guerras (Coraes e Mentes). Os filmes so estruturados ao redor desses objetos, de forma que a organizao gira sempre em torno da construo de uma representao o que pode ser entendido como a criao de um personagem.2

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12 menos de temas, e mais de sujeitos mesmo que isso tenha acontecido de forma velada3. Seja obedecendo a uma gramtica de guerrilha, de reportagem, de observao, cientfica ou reflexiva, o filme documentrio sempre procurou discutir os grandes temas que afligem a humanidade a partir da descoberta e representao dos sujeitos que so os personagens da Histria. Nem sempre no proscnico, sob a luz dos holofotes; quase sempre sujeitos ocultos nas multides, o ser humano sempre foi o tema predominante nos documentrios. Estabelecer o documentrio como um filme de personagens significa, naturalmente, proceder a um recorte especfico de anlise ainda que isso no devesse restringir uma escolha de filme porque implica na maioria das vezes em uma forma peculiar de olhar para essas produes. Como colocado acima, mesmo os documentrios que se destacaram pela abordagem de temas maiores se concentraram sobretudo na reao esboada por homens e mulheres aos acontecimentos4. Filmar sujeitos necessariamente significa film-los em um lugar, em um tempo e momento; o cruzamento dessas variantes permite uma composio de ordem matricial: partindo do estabelecimento de uma individualidade, podemos instituir uma localizao no prprio mundo histrico, se o referencial obedecer a signos de indexicalidade; podemos viabilizar a produo de um cronotopo, de um tempo e um espao inventados que autorizam a criao de um contexto para a narrativa; ou podemos, entre todas as possibilidades, partir para um formato que se tornou extremamente rotineiro na produo contempornea de documentrio: os filmes-biografias predominante nos documentrio produzidos para a televiso5.

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Eis um trecho da crtica da revista Time sobre o filme Terra Espanhola (1937), de Joris Ivens: Desde o filme mudo francs A paixo de Joana DArc nenhum outro conseguiu fazer uso dramtico da face humana. medida que face aps face olham em direo tela, o filme se torna um tipo de portfolio de retratos da alma humana em presena de desastre e desarmonia. (...) Essas so faces de velhas mulheres retiradas de suas casas em Madri por segurana, olhando para o futuro negro e incerto, faces aterrorizadas aps um bombardeio (...) e faces cheias de dor, determinao e medo (apud BARNOUW,1993,p.136). Em Faces de Novembro (1963), documentrio sobre o funeral do presidente JF Kennedy, Robert Drew procurou uma forma de representar a dor do povo americano e encontrou-a no silencioso registro de faces atnitas da multido. 4 Humphrey Jennings, um dos nomes mais importantes da escola de cinema britnica renomada por sua preferncia pelo documentrio comentado, didtico e impessoal produziu documentrio extraordinrios ao se concentrar nos momentos de tenso vividos pelos cidados britnicos em torno da entrada da Inglaterra na 2 GM. Barnouw vai dizer que os filmes de Jennings esto repletos de pequenos e ordinrios momentos (1993,p.145) 5 importante entender a televiso como potncia para a produo e veiculao de documentrios. Mesmo que essa informao guarde o paradoxo de que se trata de um meio absolutamente escravo de regras formalistas (em funo do volume de capital envolvido) produzindo e patrocinando um gnero rico na experimentao e a transgresso de formas. No toa que os horrios de veiculao desses filmes so os mais desprivilegiados.

13 Filmes-biografias proliferaram em resposta a uma demanda por funcionalidade: seguindo a lgica da informao predominante nesse meio, as biografias so filmes (ou programas) onde a informao est organizada em torno do conhecimento sobre algum; fica estabelecido que todas as imagens, os depoimentos, todos os elementos constitutivos tm um ponto em comum: o referencial exterior, construindo uma estrutura de satlite. Cada imagem, bem como a fala, no corresponde a relatos de si, no constituem acontecimentos orais, mas um olhar sobre o outro. Assim, vozes e imagens so articuladas para a produo de uma representao sobre o mundo. Nos anos 60, o pesquisador JeanClaude Bernardet j identificava a presena dessa estrutura6 nos documentrios. Os filmes que identificou como modelos sociolgicos so caracterizados por uma exterioridade do locutor em relao experincia (BERNARDET,2003,p.18). A experincia (o filme) estruturada a partir da organizao de vozes, fragmentos e dados, que so reunidos ao redor do assunto principal. So filmes que pr-concebem uma teoria sua execuo, sendo o trabalho no campo a contabilizao de imagens, vozes e situaes que confirmam o conhecimento terico. A interao do documentarista com o filme pouco seminal, e a busca por uma abordagem neutra procura eliminar qualquer trao de autoria7 ou evocao. Assim, esses documentrios se tornam menos filmes de expresso que produtos da gerao de um conhecimento8. O perigo desse formato est na transformao desse conhecimento (um amlgama de partes) no substituto de um todo muito mais complexo, fragmentado e multifacetado, que aquilo que percebemos como a nossa realidade. No entanto, formatos tele-biogrficos correspondem a apenas uma das facetas na produo contempornea de documentrios; para alm dessa frmula, percebe-se cada vez mais o surgimento de ttulos diretamente ligados produo de filmes de inspirao biogrfica9. Uma olhada no catlogo do ltimo festival Tudo Verdade10 d uma

Em documentrios produzidos para o cinema, uma vez que a televiso ainda era um meio relativamente novo. 7 Em artigo publicado na Cahiers du cinma em novembro de 1983, Pascal Bonitzer faz a seguinte observao sobre a problemtica relao do cinema de autor com o pblico em geral: No h problema de autores, h problemas de standardizao. (p.9). Para Bonitzer, o pblico busca se reconhecer nos filmes; para isso, procura nas narrativas por determinados cdigos que j esto pr-estabelecidos na gramtica cinematogrfica. 8 Alm de representar o conhecimento de quem fala 9 Com isso, no quero dizer que a produo de filmes biogrficos maior que qualquer outra basta constatar a enorme quantidade de filmes de inspirao poltica produzidos nos ltimos 5 anos, em especial aqueles focados sobre o incidente no WTC em 11 de setembro e suas conseqncias.

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14 pequena mostra: dos cerca de 70 filmes exibidos, mais de 25 ttulos podem ser tratados como biografias, filmes cuja principal funo a produo de um registro de vida sobre o outro e sobre si. A proliferao dos filmes-biografias est diretamente relacionada a uma das principais discusses no campo da teoria do documentrio: a idia de que a produo de conhecimento nestes filmes estaria impregnada de uma noo de verdade, sempre em iminncia de, pretensiosamente, abranger a parte real que lhe inspira da todos os debates envolvendo questes de tica poltica, moral e educao que surgem a cada novo filme11. A questo da informao verdadeira no documentrio talvez, a mais antiga das discusses neste campo alcanando as primeiras anlises crticas. Em 1926, escrevendo sobre Moana, filme de Robert Flaherty, John Grierson considerado por muitos como o patrono da escola inglesa de documentrios utilizava pela primeira vez a palavra documentrio na qualidade de registro, prova, documento cultural; textualmente, um relato visual dos eventos da vida diria de um jovem polinsio e sua famlia (apud ROSENTHAL,1988,p.21). Posteriormente, a escola desenvolvida por Grierson se solidificou em torno da produo de filmes de carter didticos, que buscavam construir o retrato cultural e econmico de uma Inglaterra em expanso, atravessada pelas inovaes da Revoluo Industrial, mas tambm atenta no aspecto da tradio e dos conflitos blicos. At aqui, temos uma forma de cinema que prolifera em funo do contedo informativo que existe nos filmes; no por outra razo, durante os primeiros 50 anos o documentrio teve como tema grandes conflitos, questes sociais e culturas exticas. Uma discusso sobre a quantidade e a qualidade de verdade nestas construes pode ser formalmente estabelecida em torno do princpio dos anos 60, quando os filmes comeam a ser analisados a partir da constatao de uma linguagem especfica, gramtica e semntica prprias12 - nos Estados Unidos com o cinema direto e, principalmente na Europa, onde se desenvolve a escola do cinma verit. J no final dos anos 80 o pensamento terico do documentrio afirmava que discusses sobre uma pretensa verdade contida nesses filmes10

O Tudo Verdade: festival internacional de documentrios considerado o maior festival de documentrios da Amrica Latina. Desde sua ltima edio, em abril de 2004, acontece no Rio de Janeiro, So Paulo e Braslia. 11 No momento da redao dessa tese, o exemplo mais bvio e inequivocado o novo filme do documentarista americano Michael Moore Farenheit 9/11, um ataque fulminante ao presidente dos Estados Unidos George Bush com pretenses de evitar a reeleio para o cargo.

15 consistiria em exerccio estril, uma vez que tanto a semiologia como o estruturalismo j haviam estabelecido que, assim como o filme de fico, o documentrio utiliza mtodos de significncia que esto prontos a inscrever qualquer representao no campo simblico (ROSENTHAL,1988). Buscando equilibrar interpretaes objetivas e subjetivas, no incio da dcada de 90 o documentrio comeava a se distinguir pelo desenvolvimento do pluralismo esttico que hoje uma de suas maiores caractersticas; consolidava-se uma tendncia para a produo de filmes utilizando e ao mesmo tempo desafiando a linguagem do mundo e das pessoas que se propunha representar13. Entretanto, uma discusso terica do documentrio solicita mais que uma anlise da funcionalidade destes filmes como expresso de poca: uma anlise dos mtodos de significncia, uma vez organizados e agrupados, permite enxergar no apenas o porqu da existncia dos filmes, mas a forma como se organizam em relao aos valores cultuados pelo mundo onde existe. Estabelecem, assim, um modo de representao. O desenvolvimento de modos de representao significa menos o desaparecimento de tcnicas que a incorporao de estratgias desenvolvidas em um momento histrico. De acordo com Bill Nichols, um dos maiores pesquisadores do gnero e criador de uma das estruturas mais bem sucedidas para a compreenso do documentrio14, uma vez estabelecido atravs de uma srie de convenes e paradigmas, um determinado modo permanece disponvel para todos os outros (NICHOLS,2001,p.100). Ou seja, um modo corresponde a uma apropriao de formas de relacionamento convenientes. Essas escolhas determinam, periodicamente, o aparecimento de filmes que estabelecem e constroem uma forma de aproximao com o sujeito e com o mundo, alm de refletirem um tipo de relao que se institui com a imagem; ambos procedentes de um acmulo de procedimentos atravs

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preciso lembrar que, j no final dos anos 30, Paul Rotha, da escola de documentrio inglesa, definia em seu livro Documentary Film uma estrutura de classificao para os filmes similar quela que Nichols vir a desenvolver cerca de 50 anos mais tarde. 13 imprescindvel lembrar aqui o cinema produzido por Dziga Vertov no comeo do sculo. Da mesma maneira que o movimento surrealista gerou uma enorme quantidade de filmes com uma linguagem prpria Vertov produziu filmes altamente representativos do momento da Revoluo Russa. Da mesma maneira, o cinema de Jean Rouch e especificamente Crnica de um vero (1961), em parceira com Edgar Morin. Notadamente, o cinema documentrio latino americano devidamente marcado por uma veia poltica e militante, amplamente representativa dos movimentos de reao da poca. 14 No incio da dcada de 90, no livro Representing Reality, Bill Nichols estabele uma classificao para as formas de representao da realidade nos filmes documentrios, os modos de representao. Agrupados nos modos potico, expositivo, de observao, de participao, reflexivo e, mais recentemente, performtico, se tornaram a base fundamental de compreenso para a teoria do documentrio.

16 dos tempos. Assim, ressemantizando diferentes estratgias, desenvolvemos uma maneira de pensar atravs do documentrio. A incorporao de elementos e formas de aproximao, provocando uma interrelao entre os modos, tem produzido filmes de difcil classificao, to fragmentados e incertos como a prpria sociedade contempornea15. No entanto, em inmeras ocasies, ainda costume o documentrio se tornar fonte de discusso a partir do contedo dos filmes, quando, na verdade, a forma da abordagem tanto ou mais fundamental. H quem defenda, como o crtico e cineasta francs Jean-Louis Comolli, que o que interessa na reflexo e na prtica do documentrio a questo do dispositivo de produo (a estratgia de aproximao e relacionamento que se estabelece), e no o contedo. Documentrios so filmes ricos exatamente pela pluralidade de formas oferecidas para o desenvolvimento de um mesmo tema. Um debate sobre a tica no documentrio passa diretamente pela esttica escolhida para a representao, que difere exatamente por, deslocando a ateno do contedo, criar um ambiente onde o prprio pblico possa exercer uma funo intelectual. Os modos de representao desenvolvidos por Bill Nichols so estruturados em torno da forma de organizao do material no dos assuntos16. De certa maneira, no seria errado afirmar que o documentrio uma representao possvel para a forma como o documentarista se sente e existe no mundo. Seguindo esse raciocnio, podemos entender o quo pouco biogrficos so as telebiografias, e como a idia de criar um retrato (ou seja, biografar) passa necessariamente por uma construo do prprio auto-retrato do realizador, filtrado por uma interpretao e organizado em torno de uma representao. Podemos, dessa forma, ressemantizar tambm a idia de Grierson, ao afirmar que o valor documental dos filmes documentrios diz respeito produo de um documento sobre quem o realiza. Se todo filme traz a marca do realizador, o documentrio tambm, de certa maneira, seja sobre que tema for, uma espcie de pintura ntima.

2) ENTRE O AUTOR E O PERSONAGEM

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Assunto que iremos desenvolver no captulo 7 Ainda que os temas estejam ligados ao tempo do mundo porque representam a fonte de questionamento do documentarista.

17 O que nos interessa especificar nessa dissertao discutir uma vertente da tradio do documentrio que foi definida a partir da constatao de uma aproximao afetiva entre o realizador e seu objeto de filmagem, expressa necessariamente na primeira pessoa; obras que exprimem um duplo movimento de interpretao e representao do realizador. Os principais aspectos dessa pesquisa esto localizados na discusso de um certo tipo de filme que surge no rastro das inovaes perpetradas no documentrio a partir dos anos 60, e cuja organizao temtica e formal est centralizada na figura do prprio documentarista. So filmes auto-referentes, que tratam do prprio processo de produo da reflexo. Retomaremos aqui a noo criada por Bill Nichols a respeito dessa produo: documentrios performticos17. Bill Nichols uma das maiores autoridades do cinema documentrio e do filme etnogrfico. professor de cinema da San Francisco State University e diretor do Programa de Graduao de Estudos de Cinema. Sua classificao dos modos de produo de documentrio, estabelecida no livro Representing Reality, de 1991, assinala uma forma de estudo da teoria do documentrio18. Basicamente, Nichols impetrou uma srie de procedimentos que, juntos, funcionam hoje como uma teoria oficial do documentrio em relao qual a maior parte dos pesquisadores que trabalham com esse tipo de cinema necessariamente se refere, seja em procedimentos de retomada, negao ou discusso sobre uma ou vrias de suas caractersticas. Os modos por ele definidos procedem da seguinte maneira: primeiro, por uma classificao de desempenho dos atores sociais, personagens criados a partir dos procedimentos de aproximao e montagem do documentrio (a forma de representao dos sujeitos no filme); em seguida, de uma peridica reviso das formas de representao, sempre contrastantes, que surgem a partir de uma oposio entre mundo histrico e mundo do documentarista (o prprio filme enquanto representao do mundo). Em todos os modos, fica claro que estamos diante de uma construo cinematogrfica. O modo performtico corresponde ao ltimo dos modos identificados por Nichols. Os documentrios estudados nesta dissertao no cobrem, evidentemente, a totalidade do17

Se nos lembramos do primeiro texto de Grierson, como se estivssemos falando de um documentrio virtual, onde a performance se refere organizao do conjunto do material, produzindo uma fala especfica. Aqui, o termo performtico se aplica na forma de organizao das idias em relao a um dado tema.

18 filmes definidos pelo terico como performticos, mas so amplamente representativos da proposta de abordagem que encontra abrigo nesta definio. A razo para a delimitao do corpus do estudo simples: o documentrio perfomtico est inserido no movimento de filmes hbridos contemporneo, e suas caractersticas so de uma riqueza tamanha que o campo das influncias que incidem sobre ele talvez o maior em toda a histria do documentrio. Podemos citar alguns exemplos: o surrealismo dos anos 20, os movimentos de vanguarda dos anos 70, o cinema experimental, o cinema etnogrfico, o cinema de fico noir, os concertos musicais, as reportagens jornalsticas, entre outros19. Grande parte da inspirao nos filmes performtico est num desejo de explorar as potencialidades tanto dos aparatos tcnicos como das formas de representao do mundo. Com isso, quero dizer que o documentrio performtico representa a criao (ou inveno) do dilogo do documentarista consigo e com suas tcnicas. um embate particular na tentativa de criao de sentido: a autoreferencialidade previne a representao ilusionista da pessoa histrica como a representao de um personagem de narrativa ou cone mtico (NICHOLS,1991,p.261). Ou seja: para Nichols, a raiz do problema da representao no documentrio est na possibilidade de criao de verdades que podem vir a ser assimiladas como imponderveis. Procedimentos de reflexividade, escreve ele, podem amenizar o surgimento de um senso de realidade no acesso ao ator social e sua concepo do que seja o mundo. Assim, a produo de documentrios que, no lugar de se concentrarem em informaes sobre um outro, trabalham a questo da reflexividade em si aproxima-se muito de uma idia justa sobre o documentrio. No se trata mais da realizao de um filme que objetiva refletir sobre determinado tpico20: no performtico, o assunto quase uma desculpa para a realizao do filme. Trata-se de uma reflexo sobre a prpria necessidade da realizao, um processo que obrigatoriamente se encerra em si mesmo. Caso de filmes como 33, do antroplogo Kiko Goiffman, que narra a busca da me biolgica do diretor estruturada em mtodos de investigao adaptados s regras dos filmes clssicos de18

Identifica formas de aproximao, elementos e tcnicas de estrutura de pensamento, alm de agrupar frmulas de construo para a organizao de imagens e idias do mundo. 19 Foi na constatao dessa liberdade para misturar as estratgias dos outros modos que emerge um desejo de indagao dos documentaristas. 20 Um dos grandes estmulos dessa pesquisa foi criar um parmetro de delimitao entre o modo reflexivo e o performtico, na estrutura dos modos de Nichols.

19 detetive; The Mighty Civic, de Peter Wells, onde o documentarista recria uma antiga sala de cinema de sua cidade partindo de uma construo baseada na inveno e na memria, como um artefato onrico da infncia; Os catadores e a catadora, filme onde a diretora Agns Varda examina uma tradio cultural concomitante re-inveno de sua prpria imagem como catadora; Porto de minha infncia, onde o diretor Manuel de Oliveira percorre a cidade reencenando sua prpria infncia; entre outros que sero estudados nessa dissertao. Os filmes a serem trabalhados aqui envolvem especificamente aqueles narrados em 1 pessoa, onde o processo de organizao incide na construo de um corpo de conhecimento sobre o documentarista. A funo do narrador, como estabelecida pelo filsofo alemo Walter Benjamin, um dos recortes possveis de aplicao na metodologia desses filmes, na medida em que existe uma dimenso utilitria nessas narrativas. Elas so tecidas na substncia viva da existncia, como escreveu o filsofo alemo. Para Benjamin, a principal caracterstica do narrador retirar da experincia aquilo que conta. E, da mesma forma como o filsofo acreditava que a informao a morte da narrativa, o documentrio performtico define sua forma no resgate da experincia da auto-narrao, se distanciando de uma perspectiva informativa. Para Bill Nichols, a estrutura do documentrio performtico passa pela concepo de um conhecimento incorporado, uma assimilao de elementos facilitadores para a compreenso dos mecanismos operacionais de uma sociedade; para o autor, s existe a possibilidade do conhecimento de forma concreta e incorporada (ou concreta porque incorporada), baseada nas especificidades da experincia pessoal, na tradio da poesia, da literatura e da retrica (2001,p.131). Catherine Russel, em estudo sobre a prtica da etnografia experimental, ressalta a utilizao desses filmes como uma forma de inscrio pessoal num mundo de imagens. Assim, se trata menos de uma interiorizao do mundo pelo autor (como na literatura de Clarice Lispector) e mais de uma exteriorizao do documentarista. Para Russel, cujo estudo da auto-etnografia ps-moderna est situado na produo de filmes, a sociedade, hoje, vista a partir de um discurso televisivo e imagtico, e toda a questo de identidade atravessada pela determinao de um senso de localizao do self em um escopo cultural (Russel,2001). Grande parte dos filmes estudados por Nichols, e que formam o corpo de sua definio de performtico dialogam com temas

20 antropolgicos, como identidade e representao cultural (ainda que a anlise do terico no caminhe por terminologias e teorias antropolgicas21). Nesse trabalho propomos a descoberta dos elementos performticos num campo mais amplo22, analisando filmes no necessariamente vinculados rea. Apontamos como a maior contribuio destes filmes a incorporao da subjetividade como elemento mediador e integrador entre homem e mundo. Mas ao falar de subjetividade necessariamente preciso falar tambm de seu par antagnico: a objetividade. Para Alan Rosenthal, a percepo da objetividade est diretamente relacionada discusso das construes de verdade no documentrio. Para o autor, no pode haver objetividade, apenas afirmaes subjetivas altamente personalizadas do realizador (ROSENTHAL,1988,p.13). Mesmo na qualidade de registros do mundo, documentrios so resultados de escolhas: de ngulos, seleo, interpretao, ponto de vista, de rotinas, de evidncias e formas de observao sobre o objeto da filmagem. Documentrios so, tambm, consequncias de relacionamentos: o cinema de Robert Flaherty s tem existncia a partir do estabelecimento do forte sentimento de cumplicidade com seus personagens; os filmes de Robert Drew e dos irmos Albert e David Maysles s foram possveis com a construo de uma relao de confiana entre quem filma e quem filmado, o que faz com que a cmera seja incorporada no ambiente; a produo de Jean Rouch s conheceu os incrveis patamares de inveno narrativa enquanto sintoma da relao entre o diretor e os sujeitos que se submetiam cmera23; os filmes reflexivos s surgiram quando o documentarista decidiu criar um paralelo entre seus questionamentos e as representaes que o mundo faz de si. Ao escolher tratar o aspecto da subjetividade no filme documentrio, procuramos evitar o estabelecimento de ligaes que pudessem desvirtuar o estudo da evoluo da questo. Assim, no procuramos traar paralelos entre o documentrio e qualquer outra rea onde a subjetividade se revela um canal de interpretao (como a literatura, por exemplo).21

Nichols professor ativo de uma cadeira na rea de antropologia. No livro em que conceitua o modo performtico, um de seus artigos, denominado O conto do etngrafo tem uma dimenso desconstrutiva a respeito das prticas acadmicas no confronto com a inveno destes novos filmes. 22 Os referidos filmes realizados no campo da antropologia tm, infelizmente, distribuio restrita e muitas vezes ficam limitados aos circuitos de simpsios. 23 Existe uma corrente de pesquisa que ope o cinema direto americano ao cinma verit europeu. O vrit surgia como uma espcie de contraproposta pretensa objetividade do cinema direto; a nica verdade desses filmes seria a impossibilidade da objetividade

21 No entanto, o trabalho desenvolvido por alguns tericos, ainda que diverso do documentrio, pode acrescentar alguns elementos interessantes para a discusso do assunto. Assim, trazer para esse debate a figura do narrador de Walter Benjamin e o estudo da polifonia do discurso de Mikhail Bakhtin funcionaram como auxiliares no estabelecimento de uma definio de subjetividade. Da mesma maneira, trazer a discusso de Slavoj Zizek sobre o fim de todas as possibilidades de representao da sociedade ps-moderna criou um espao onde se tornou vivel a existncia de um tipo de documentrio que encerra em sua prpria auto-referncia um pouco da cultura e do mundo onde existe. O estudo em questo compreende o documentrio performtico como um formato hbrido (em funo da quantidade de elementos de diversas origens), que foi conceituado por Bill Nichols a partir de um estudo temtico, mas, fundamentalmente, na reunio de caractersticas distintivas24. Alm da recorrncia da primeira pessoa, esses documentrios apresentam uma estrutura bastante fragmentria: uso de material de arquivo (que inclui filmes e fotos antigos, revistas, livros, recortes, anotaes pessoais, objetos de uso pessoal), justaposio de imagens em divergncia a uma narrao, incorporao do prprio diretor no quadro, cartelas e legendas, reencenaes, construes fictcias, trilha sonora, entrevistas e edio videoclipada, entre outros. Todas essas caractersticas colaboram para a produo de um filme altamente pessoal, que necessariamente uma busca de adequao ao mundo e uma estratgia de comunicao pessoal.

3) ESTRUTURA E METODOLOGIA Essa dissertao procura discutir os filmes identificados por Bill Nichols como documentrios performticos enquanto explorao das possibilidades subjetivas do documentrio para produo de conhecimento. O objetivo identificar, a partir das caractersticas definidas por Nichols e da eleio de um corpo de filmes especficos, as possibilidades de organizao de formas de expresso subjetivas como um sistema que promove a expresso do documentarista: o documentrio em sua forma mais ntima porque literalmente caminhando na linha do pensamento do autor. O principal interesse em estudar

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Os modos de representao de Nichols so amplamente reconhecidos a partir da elencagem de um certo nmero de caractersticas que respondem pela designao de um tipo, possvel de classificao.

22 a manifestao da subjetividade como forma dominante de organizao desses filmes tentar entend-los como um sistema de localizao e incluso no realizador no mundo. Se durante boa parte de sua histria, o documentrio consagrou-se como representao do mundo, o filme performtico caminha no sentido oposto: ele se auto-proclama uma representao de si para o mundo. A riqueza destes filmes encontrar-se no delineamento de uma articulao entre tempo e espao, onde o centro referencial o prprio documentarista. Assim, o documentrio performtico se justifica na escolha de um modelo que mimetiza o mundo ps-moderno. A metodologia de classificao dos documentrios seguir, conforme exposto anteriormente, a sistematizao proposta por Bill Nichols em Representing Reality (1991). Sistemas de classificao funcionam como parmetros de avaliao, propostas de pensamento que auxiliam no raciocnio sobre as razes determinadas opes feitas pelo realizador. Nestes livro, Nichols agrupa o documentrio em quatro modos: expositivo, observao, interativo e reflexivo. A definio dos modos agrupa os filmes a partir da forma de organizao do material e pelas opes de registro. Alguns anos mais tarde, em 1994, em Blurred Boundaries, Nichols acrescenta um quinto modo, o performtico25, estruturado a partir da organizao do que designa por conhecimento incorporado a experincia de vivncia de uma situao26. A escolha do tema da dissertao surgiu a partir da necessidade de uma compreenso maior dos documentrios performticos; uma curiosidade que surgiu ao tomar conhecimento da classificao feita por Nichols27. Paralelo categorizao de Nichols, e no rastro das caractersticas por ele definidas, outros

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Em 2001. Nichols publica ainda um 3 livro, Introduction to documentary, onde realiza nova modificao no seu sistema de modos. Aqui eles aparecem divididos em poticos, expositivos, de observao, participativos, reflexivos e performtico. Entretanto, sua primeira diviso ainda permanece a mais utilizada. De todos os livros publicados pelo autor, aquela que apresenta de forma mais profunda a estrutura de organizao dos filmes. 26 Alm de ser reconhecidamente uma grande autoridade na teoria do documentrio, Nichols tambm tem trabalhos publicados na rea de antropologia, ciberntica, cinema de vanguarda e cultura visual no novo cinema iraniano. Nos anos 70, organizou uma antologia em duas partes (Movies and Methods) que foi fundamental para a definio dos parmetros da disciplina dos film studies. 27 O texto Performing documentary me foi apresentado pela professora Consuelo Lins, minha orientadora, durante o curso ministrado no programa de Ps-graduao da ECO/UFRJ, no final do ano 2003. Na ocasio, trabalhamos o texto a partir do documentrio Um Passaporte Hngaro (2002), de Sandra Kogut que, ao revelar os procedimentos burocrticos para obteno de um passaporte revela uma forma de existncia particular famlia de Kogut.

23 pensadores do documentrio foram surgindo no horizonte da pesquisa, e sua incorporao se tornou essencial para um enriquecimento da compreenso desses novos filmes28. Num primeiro momento, nosso trabalho procura tratar da compreenso do papel da subjetividade no documentrio como objeto de conhecimento. Necessariamente, estabelecemos como ponto de partida um dos temas mais delicados no estudo da teoria do documentrio: a percepo desses filmes a partir de uma premissa de formao de conhecimento - logo, filmes assimilados como mensageiros de uma mensagem, ou uma informao objetiva. No captulo 1 procuramos explicar a construo objetiva como uma criao fundamentalmente ficcional, cuja aparncia de verdade se revela conseqncia de uma estrutura edificada sobre tcnicas realistas. Bill Nichols vai estabelecer na identificao de formas de conhecimento realistas a possibilidade de produo de estratgias de reconhecimento e empatia utilizadas como uma maneira de instituir um canal entre espectador e filme. Essa concepo de realismo como forma do conhecimento vai ser discutida e reinventada pelo filme performtico; por isso acreditamos ser interessante institu-la como abertura do debate mtodo que tambm tem a vantagem de criar uma entrada para o reconhecimento das caractersticas que definem os filmes em questo29. Uma vez que nosso trabalho corresponde ao estudo de uma determinada estrutura de produo flmica (o documentrio performtico), acreditamos que relacionar os modos inventariados por Nichols permite um exerccio crtico de uma forma de apreenso da teoria do filme documentrio, j que eles organizam a forma de pensamento do autor30 e criam um panorama de estudo. Esse o tema do captulo 2, que procura relacionar as

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O estudo de Michael Renov sobre as formas de auto-representao no documentrio cria um interessante contraponto com os modos de observao (notadamente, os cinemas direto e verdade); Catherine Russel analisa a produo do filme auto-biogrfico em vdeo como uma nova forma de relao do documentarista com a imagem; Stella Bruzzi busca a caracterizao do que chama de novo documentrio a partir da influncias dos meios de massa. No Brasil, Consuelo Lins realizou um estudo absolutamente esclarecedor para Passaporte Hngaro, investigando as polticas de intimidade que regem a produo desse tipo de filme; j Jean-Claude Bernardet encontra em 33 de Kiko Goiffman um exemplo de estrutura do que chamou de documentrio de busca, apontando o carter experimental e arriscado que envolve a empreitada. Em maior ou menor escala, todos tiveram uma participao na elaborao do pensamento dessa dissertao. 29 Afinal, estamos na contramo de uma idia da utilizao do realismo. Ele no desaparece, mas recriado a partir da introduo do realizador em cena. 30 Por razes claras, optamos por no incluir o documentrio performtico nesse captulo, uma vez que ser discutido em um captulo parte, visto ser o objeto de estudo da dissertao.

24 caractersticas de cada modo de representao31. O captulo 3 trata especificamente do documentrio performtico, entendido como um modo alimentado pela incorporao de tcnicas dos vrios modos, privilegiando o tratamento subjetivo do tema. Mais que uma simples acumulao, idia de sobreposio de tcnicas de representao se agregam s influncias da vida moderna, notadamente as concepes de subjetividade e objetividade nas formas de interao contemporneas. Uma vez identificado e contextualizado o modo performtico a partir da exposio contgua aos outros modos, os captulos seguintes se dedicam anlise dos filmes propriamente dita. A organizao dos captulos concebeu uma escolha, arbitrria, de algumas chaves que acreditamos corresponderem aos elementos bsicos da construo dos filmes performticos, a partir das quais se tornou possvel a identificao das principais caractersticas e sintomas estabelecidos no captulo anterior32: a influncia de valores e hbitos desenvolvidos sob os auspcios da representao na cultura ps-moderna, a subjetividade, os procedimentos de auto-inscrio e ficcionalizao do realizador, entre outros. A experincia de Bill Nichols com os filmes provenientes do campo da antropologia, notadamente, da prtica auto-etnogrfica33 foi determinante para consolidar o modo performtico. A partir da identificao de conceitos como textualizao, uma transformao do sujeito-narrador em discurso, se tornando o prprio objeto da tese, e do questionamento de valores culturais, o captulo 4 rene elementos significativos para uma caracterizao do modo, como uma narrativa fragmentada e um sentido de manifesto em favor do estabelecimento de uma forma de existncia. Para fazer isso, escolhemos o filme Treyf (1996), das americanas Alissa Lebow e Cynthia Madanski. Treyf o filme dessa dissertao mais representativo do grupo escolhido por Nichols para a identificao do novo modo34: oriundo do campo da auto-etnografia e est dividido entre uma discussoAdjacente aos modos do professor Nichols, tambm procuramos identificar outras propostas de classificao para o documentrio. Elas so anteriores e posteriores metodologia de Nichols31, e a inteno de acrescent-las mostrar que a escolha dos modos para essa dissertao foi a opo considerada a mais adequada para nossos propsitos. Optamos por relacionar na seo Anexos algumas interessantes experincias. 32 As caractersticas identificadas no captulo 3 surgiram na experincia de assistir os vdeos e na prpria leitura do texto, onde Nichols tambm d algumas pistas sobre as provveis origens do performtico. 33 Em especial, o filme etnogrfico uma das principais influncias no modo de Bill Nichols 34 Como colocamos anteriormente, o objetivo da pesquisa no referendar a proposta de Nichols, mas sim mostrar o quanto ela permite de invenes numa abordagem intimista contempornea.31

25 cultural e comportamental (religio e opo sexual). Treyf procura articular pensamento e experincia, o que faz com que se aproxime de um formato ensastico. Estamos diante de uma montagem que representa a prpria organizao interna das documentaristas ou seja, remete a uma idia de exteriorizao de si. O captulo 5 procura discutir os aspectos investidos numa abordagem afetiva subentendidos neste tipo de documentrio. Essa abordagem induz cristalizao de uma lgica da subjetividade que se revela a lgica dominante do sistema de organizao e representao do modo performtico. Escolhemos analisar dois filmes para, a partir de sua anlise, decifrar a forma como se d esse processo: The Mighty Civic (1989), do neozelands Peter Wells e Porto da minha infncia (201) do portugus Manoel de Oliveira. Ambos os filmes tratam de situaes e aspectos especficos da vida dos realizadores: uma sala de cinema e a cidade natal. Ao evocar sensaes e imagens que estimulam a memria, Wells e Oliveira desencadeiam um processo de inveno que mistura passado e presente, memria e fato, estabelecendo a produo de lembranas a partir de uma construo afetiva. Desse caldeiro emergem figuras inslitas e onricas, e um retrato que s possvel na imaginao dos diretores, produto de aproximaes e reflexes apaixonadas. O captulo 6 se concentra na questo da reinveno do diretor a partir de sua incluso no relato catalizando um processo de duplicao, ao ocupar tanto o espao do narrador quanto o do sujeito narrado. 33 (2001), do brasileiro Kiko Goifman e Os catadores e a catadora (2000) da francesa Agns Varda se notabilizam pela produo de um tempo prprio para suas experincias, o que autoriza a inveno de um cronotopo, uma situao espao-temporal imaginada que estabelece um contexto para a narrativa. Em ambos os filmes, a fora da narrativa provm da experincia transformada em evento. Documentrios performticos sinalizam com a possibilidade de uma retormada da figura do narrador de Walter Benjamin, em detrimento de uma narrativa monolgica e histrica que foi estabelecida como a metodologia oficial de construo de conhecimento. O captulo 7 traz para o debate sobre os documentrios performticos um filme definitivamente especial em inmeros aspectos. Nicks movie (1979-80) do alemo Wim Wenders antecede cronologicamente35 numerosos questionamentos e antecipa vrias

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O filme de Wenders do comeo da dcada de 80. A mxima classificao que arriscaramos a de filme de autor.

26 estratgias e frmulas que sero estabelecidas como princpios no documentrio performtico quase 10 anos depois. Isso nos permite estabelecer que o projeto de Wenders no est vinculado a tendncias ou manifestaes polticas; foi uma escolha amplamente determinada pela relao de afeto entre o diretor e Nicholas Ray, protagonista da estria. Nicks movie refora a hiptese de que o filme performtico seja um movimento expressivo de auto-referencialidade, menos voltado para uma manifestao poltica e mais concentrado na criao de uma poltica de auto-expresso. Wenders vai misturar, de forma precoce, linguagem de fico e documentrio para contar a estria dos ltimos dias de vida que partilhou com o amigo doente. O processo de ficcionalizao, de autoinveno, a forma como se inscreve no registro, a mistura de suportes sugestiva e criadora de significados assentam Nicks movie em sintonia com a definio de Bill Nichols, e isso nos interessou sobremaneira no tratamento da questo. A anlise desse docu-fico abriu espao para que pudssemos situar o documentrio performtico no contexto da ps-modernidade, definida por Fredric Jameson como um termmetro do presente; e onde tambm se verifica a proliferao de narrativas marcadas por uma eroso de fronteiras entre conceitos de fato e fico. Na medida em que privilegiam a instantneidade do registro, documentrios performticos se inscrevem como a possibilidade de pensamento do presente, uma reflexo que, exatamente por no estabelecer uma distncia entre ela e o evento, forosamente coloca sua prpria vivncia como matria de especulao. Propomos como frase de abertura desta Introduo um trecho da reportagem de Emmanuel Burdeau, que estabelece a produo de documentrios contempornea sem unidade nem definio. Em meio proliferao de formatos que privilegiam o aspecto da intimidade, o documentrio freqentemente definido como um formato hbrido, misturando caractersticas pertinentes a diferentes modos de classificao. Ao optar trabalhar com os filmes performticos, estamos elegendo um recorte sobre essa irregularidade, tentando definir os aspectos que fundamentam uma abordagem subjetiva. Eles no representam a totalidade do que se produz; mas definitivamente, seu principal estmulo, a escolha da abordagem subjetiva em detrimento de uma observao distanciada, se inscreve de forma adequada nos tempos atuais. So, por definio, documentrios afetivos.

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I

O documentrio pede tcnicas especficas para dar tratamento cinematogrfico a encontros reais e eventos histricos, experincias e reflexes, pesquisas e argumentaes. (...) demanda formas especficas de estar em meio e parte daqueles; em ltima instncia, em palavras ou filmes. Pede ticas de responsabilidade, uma esttica de forma flmica e uma poltica de representao - Bill Nichols36

1) SUBJETIVANDO UMA PERCEPO OBJETIVA Desde os primeiros filmes, uma das principais cobranas que incidiram sobre essa forma de cinema diz respeito idia de que se tratam de filmes sobre a realidade. Em princpio, essa uma orientao que se estabelece a partir da forte relao de indexicalidade que as imagens registradas mantm com o referencial. Nos momentos iniciais da histria do documentrio, se agregavam idias de pureza e autenticidade na superfcie da imagem. Noes de recorte, enquadramento, fragmentao e contexto dificilmente eram consideradas nas anlises. Pelo contrrio: os filmes eram reconhecidos e elogiados por sua capacidade sensvel de retratao37. Documentrios, ou pelo menos o que se entendia como um documentrio, eram paradoxalmente percebidos como um tratamento objetivo aplicado a um tema, seja esse tema uma cidade, uma comunidade ou um povoado distante. Ao estabelecermos como marco simblico do surgimento do documentrio enquanto uma forma de cinema - o filme Nanook do Norte (1922), realizado por R. Flaherty, percebemos que esse nascimento localiza-se a meio caminho da criao do cinema propriamente dito (1895) e o estabelecimento de formas narrativas determinantes Representing Reality p. 180 vide bibliografia para referncia completa O prprio conceito do documentrio vai ser construdo a partir de uma situao parecida, quando Grierson escreve a crtica do filme Moana, de R. Flaherty, elogiando a sensibilidade do realizador.37 36

29 D.W. Griffith realiza O Nascimento de uma nao em 1916; Serguei Eisenstein filma O encouraado Potemkin em 1925. Neste mesmo perodo, o som tambm chega s telas (O cantor de jazz, 1927), inspirando realizadores e criando ainda maiores possibilidades e inovaes. Isto nos possibilita a seguinte afirmao: a idia da imagem como registro (estabelecida desde os filmes dos irmos Lumire), a possibilidade de dramatizao do mundo e do exerccio da retrica como elementos formadores da mensagem vo estar na raiz do documentrio, participando da estrutura dos primeiros filmes. At a metade do sculo XX, os documentrios sero fortemente marcados por uma funo de registro na forma de imagens; que, uma vez manipuladas por tcnicas e estratgias narrativas aplicadas sobre fragmentos do mundo, desperta em incautos espectadores uma vontade de fazer conhecer. A percepo implicada no ato de dar a conhecer, garantida pela qualidade indexical presente na imagem, se tornou responsvel por um sentimento de autenticidade nesses filmes. Entretanto, hoje, entender uma imagem como registro puro da realidade j no mais possvel38. Uma imagem produto de enquadramento, iluminao e foco escolhas e selees que acontecem a partir de um processo extremamente particular, dentro da cabea do realizador. Ao longo da histria do documentrio, diferentes aproximaes do sujeito e estratgias de representao foram sentidas no tratamento dados s imagens: elas foram desviadas, atravessadas, sustentadas e mediadas por estratgias e tcnicas que determinaram as relaes internas aos procedimentos de montagem. Essa manipulao criou leituras extremamente plsticas e sensveis irremediavelmente ligadas ao discurso daquele que as manipula. Assim, antes mesmo de serem um registro do mundo, imagens so registros de subjetividades redues a juzos de valores e realidades prprios a certos estados e atos de conscincias individuais. Isso nos permite admitir a subjetividade como elemento chave na negociao do texto dos filmes com a realidade filmada, uma construo arbitrada e fictcia do mundo. Discusses sobre objetividade e subjetividade sempre foram recorrentes nas anlises crticas do documentrio. Se, por um lado, admite-se o documentrio como uma38

Em um belo artigo, Jean-Louis Comolli questiona a autenticidade do registro; para ele o sujeito filmado constitui um sujeito em camadas: ele encoberto por sua roupagem social (enquanto membro e representante de uma classe) e transformado pela prpria conscincia da filmagem; filmar se torna assim

30 forma de cinema cuja matria prima so os registros do mundo histrico39, por outro uma construo que procede de manipulao, que permite criar sentido onde ele originalmente no existe. Ao contrrio do cinema de fico, que cedo se desvinculou das origens cientficas40, o cinema documentrio desenvolveu uma trajetria que est irremediavelmente ligada captao e representao da realidade. Da, a polarizao: o cinema de fico ganhava salvo-conduto para trabalhar a subjetividade, enquanto o documentrio deveria, por definio, ser objetivo. Uma concepo que obrigava os filmes a terminarem quase no ponto onde comeam: na superfcie da imagem confiante no grau de verdade das cenas e situaes. Essa percepo ignora as estratgias e tcnicas narrativas, bem como conceitos de montagem e edio. Ao estudar as novas formas de subjetividade no documentrio, Michael Renov fez uma importante observao sobre nossa compreenso dialtica entre subjetividade e objetividade. Para Renov, ocorre uma mudana substancial nesses conceitos no final do sculo 19, fruto das novas formas de percepo introduzidas pela expanso da escola positivista41, reorientando sentidos e percepes. Escreve ele:Enquanto nos sculos passados a viso escolstica predominante de subjetividade era das coisas como elas so (do sentido do tema como substncia) e da objetividade das coisas apresentadas conscincia, (atiradas frente mente) (...) hoje a objetividade deve ser construda como factual, justa (neutra) e tornada confivel; de forma distinta da subjetividade, (esta) baseada mais em impresses que em fatos, e tornada mais influenciada por sentimentos pessoais relativamente noconfiveis. (RENOV,2004,p.173 )

uma conjugao, uma relao, uma aproximao onde se trata de ligar ao outro a partir da forma. (p.154) vide bibliografia para referncia completa 39 Por mundo histrico estamos entendendo as qualidades concretas e reconhecveis como parte de nossas vidas. , por definio, o mundo onde habitamos. 40 Ainda no sculo XIX, tienne Jules-Marey e Eadweard Muybridge desenvolvem equipamentos com o propsito de decomposio do movimento para estudos. Esses equipamentos seriam incorporados e aprimorados pelos irmos Lumires, que j trabalhavam com instrumentos de fotografia. O pesquisador Michael Renov enxerga nesse antecedente a explicao para o potencial de observao e investigao de pessoas e fenmenos sociais e histricos. Renov desenvolve essa idia no artigo Toward a poetics of the documentary, no livro Theorizing documentary vide bibliografia 41 Segundo Renov, que utiliza o trabalho de Raymond Williams como referncia, a viso predominante de subjetividade at ento dizia respeito essncia natural do indivduo, o sujeito como substncia; assim, o processo de objetivao se produzia a partir de uma construo formal, fundada em conceitos racionais e difundidos na sociedade.

31 Essa reorientao na forma de lidar com as informaes em textos e imagens basicamente diz o seguinte: impresses subjetivas, fundadas nas particularidades do sujeito so retratos da realidade menos confiveis que impresses objetivas essas, produes adequadas de uma realidade compartilhada coletivamente. Esse pensamento vai se estabelecer em uma sociedade que comeava a compreender as imagens como formas de apreenso do mundo, percebido atravs de um enorme aparato tecnolgico. Assim, institua-se que olhar para imagens de forma justa significava uma eliminao do olhar individual, subjetivo; a subjetividade se tornava, dessa maneira, um elemento no desejvel - uma vez que significa, em ltima instncia, apenas uma viso particular (humana e no maqunica) em um momento em que mquinas se tornavam mais importantes que homens enquanto indivduos42. No entanto, discutir e definir o documentrio simplesmente a partir das aproximaes objetivas ou subjetivas nos coloca na qualidade de espectadores passivos. Enquanto pblico, interessa menos o tipo de abordagem a que se submete a tratamento um determinado tema que a forma como somos atingidos por esse tratamento. A passividade no encoraja questionamentos sobre as implicaes da forma como interferncia no ponto de vista. Por outro lado, quando canalizamos nossos esforos na anlise formal, na identificao de personagens e temas, na consolidao do discurso, nas estratgias de retrica que constroem e atribuem significados, nos tornamos aptos a perceber os movimentos de evoluo e reorientao das representaes. E percebemos que documentrios so negociaes entre o texto de uma narrativa e o referencial histrico que a matriz do pensamento; um discurso de domnio pblico refratado pela lgica de uma voz especfica - a voz do realizador. Isso nos permite pensar o documentrio como uma manifestao ligada s correntes e contra-correntes de pensamento do tempo histrico a que pertencem. um dilogo que ao mesmo tempo situa e questiona, pergunta e explica. H muito o que se cobrar de um filme que se prope discutir o mundo onde existe. Mas no so cobranas de uma ordem de verdade, cristalizadas em torno de uma teoria. Bons documentrios se afirmam pela coerncia de sua lgica interna, por uma relao de justia entre a representao e a idia42

Essa viso vai ser contestada por Dziga Vertov, cuja escola de documentrio prega uma integrao entre o homem e a mquina, a mquina como prtese do olho do homem. Seu filme mais notrio (O Homem com a cmera na mo, 1929) prope uma interao entre homem e mquina como nova forma de exerccio do olhar.

32 representada. Basicamente, uma anlise produtiva do documentrio deve buscar a funcionalidade de seu discurso enquanto comunicao de uma idia singular. Essa funcionalidade construda atravs de uma srie de escolhas arbitradas pelo documentarista durante todo o processo de produo. No entanto, por mais pessoal e nico que seja o trajeto das escolhas, ele atravessado por uma srie de cdigos que necessariamente partem de um todo maior e que j est estabelecido no imaginrio popular, certas formas de organizao, estratgias de discurso e instrumentos de trabalho.

2) A FICO DA OBJETIVIDADE No documentrio, assim como no cinema de fico, a construo de uma narrativa prev o estabelecimento de vises do mundo. So estrias que articulam ritmos, texturas, dilogos e referncias que situam-se no imaginrio do espectador como uma interpretao. Seja fico, seja documentrio, assistimos aos filmes com uma vontade de acreditar na estria que est na tela estria que est incorporada, construda em atores, cenrios e figurinos. No documentrio, em funo da tradio estabelecida, isso acontece mediante a criao de uma representao realista como forma de referncia e assimilao da imagem e do texto dos filmes43. Entretanto, mais que justificar imagens, a funo de um realismo documentrio subentende a negociao de um pacto entre um texto e um referencial histrico que possibilita a criao do filme como representao. Ou seja: se preciso ser objetivo, que se lancem instrumentos que possibilitem a simulao de uma objetividade. Assim, uma forma de compreender o realismo no documentrio atravs de consideraes sobre a objetividade articulada retrica do discurso o que institui a produo de um texto subjetivo, uma leitura privada do mundo feita por um autor. Ao escrever sobre a pr-histria do cinema, Arlindo Machado aponta como a idia de naturalismo que se emprestava s imagens incomodava uma proposta idealmente cientfica44. curioso notar que, como elemento de leitura das imagens em movimento, a43

Na histria do documentrio so freqentes as produes que recorrem a uma linguagem no-realista. Em ltima instncia, o performtico o modo que vai quebrar definitivamente com essa idia de realismo como projeto de afirmao. Entretanto, falamos aqui de uma compreenso do documentrio de maneira ampla. 44 Para Marey, a reconstituio naturalista do movimento era sentida como defeito, da por que ele se sentia incomodado pelo realismo da imagem cinematogrfica. Para combater essa iluso, ele inventava expedientes destinados a desnaturalizar a cena (MACHADO,2002,p.16)

33 concepo de uma associao realista era intensamente rechaada. Na verdade, os primeiros estudos e as primeiras experincias emprestando movimento s imagens previam a decupagem dos movimentos, no sua restituio. Assim, o uso da imagem nos estudos de movimento implicava em sucessivas tentativas de desnaturalizar, reduzindo ao mnimo uma possvel identificao e empatia entre a imagem mvel e o pblico. Se podemos falar de construo, subjetividade e autoria neste momento, so qualidades que funcionam na contramo da ordem contempornea. Entretanto, evidencia-se um mesmo esprito na tentativa: a manipulao de imagens com o fim de interferir na sua leitura e produzir um resultado, at certa medida, premeditado. Uma grande diferena separa o sentido e as implicaes do uso de tcnicas realistas no documentrio e na fico. Nesta ltima, o realismo faz parecer real um mundo plausvel, mas totalmente criado na mente do diretor; ns, na qualidade de espectadores, fazemos um pacto com o texto e s podemos assistir o filme na medida em que acreditamos na suposta verdade (ou possibilidade) daquela estria. Para Nichols, o realismo na fico um estilo que se auto-destri, que tira a nfase do processo de construo. A viso ou estilo de um diretor realista surge de (...) aspectos da mise-en-scne, movimentos de cmera, som, edio, e outros mais ()45 (NICHOLS,1991,p.165). Assim, o uso de tcnicas realistas no cinema de fico pode ser definido como um no-estilo; paradoxalmente, o ingrediente fundamental da iluso do pblico. J no documentrio, o realismo participa na estrutura da argumentao, na qualidade de constatao e, no de comprovao, do mundo real. Tcnicas realistas, segundo Bill Nichols, so construdas sobre uma apresentao de coisas como elas nos aparecem aos olhos e aos ouvidos no dia-a-dia. (...) Realismo tambm um ponto por onde olhar e se engajar vida (Ibidem,p.165)46. Em estudo publicado em 1997, William Rothman47 faz uma interessante comparao entre uma das escolas de documentrio (o cinema direto americano, criado nas dcadas de 50 e 60) e o cinema americano clssico de fico dos anos 3048. Para Rothman, ambos os45

inteteressante notar que os procedimentos descritos por Nichols como caractersticas fundamentais dos filmes de fico vo ser reapropriados pelo modo performtico que surge quatro anos depois da primeira configurao dos modos. 46 Da mesma forma que no cinema de fico, a construo realista no documentrio tambm produto do uso de luzes, distncias, ngulos, lentes e posies. 47 Vide bibliografia 48 Em seu estudo, a abordagem de Rothman inside num cruzamento de tempo e modo a comparao entre os tipos de cinema tambm feita em relao importncia que o som ganhou em cada poca: na fico a

34 cinemas dividem a ateno sobre o mesmo tema (o drama do dia-a-dia, os eventos e crises que permeiam o cotidiano da sociedade de classe mdia americana), alm da estrutura de narrativa e modo de filmagem similares: acompanhamento do personagem dentro de um perodo de tempo, edies de dilogos em campo e contracampo, cmera no-participativa e desprezo pelo comentrio em off). Segundo Rothman, o cinema direto americano buscou no cinema clssico dos anos 30 sua fonte de inspirao temtica e formal. Ambos tratam da representao de existncias humanas, de uma sucesso de acontecimentos que se desenrolam cronologicamente, da representao de ambientes, situaes e humores tpicos da poca; o que ficcional nos filmes clssicos est no seu carter de fico que s fico - o que ficcional nos filmes do direto est em seu carter de fico que no fico totalmente (ROTHMAN,1997,p.111). Na medida em que se quer um filme real, o cinema direto incorpora seu lado fico, j que no mais que uma construo49. Para Rothman, o cinema de fico tem como meta tornar a fico mais real, o documentrio, pelo contrrio, articula sua representao ao tornar o real mais ficcional. Realidade, para Rothman, representa um mundo de possibilidades mas nunca de possibilidades de inveno do passado. A nica forma de modific-lo, escreve ele, inscrev-lo sob uma nova perspectiva interpret-lo, criando possibilidades sobre o passado. Isso permite identificar o documentrio como uma forma de entrada no mundo a partir de uma representao, a partir de uma viso do mundo, uma viso de realidade. Pensamento que est em sintonia com Nichols, quando afirma que o realismo documentrio, mais que um estilo, um cdigo profissional, uma tica. Essa idia nos possibilita algumas definies: enquanto na fico, o realismo se manifesta a partir de uma esttica de sensibilidades de argumentos e tons que procuram criar um mundo plausvel e crvel, no documentrio ele incide sobre a construo de um argumento e funda uma lgica de pensamento. No documentrio, o realismo mapeia o territrio da constatao e refora a referncia indexical herdada da fotografia, que reconhece como real aquilo que est frente cmera pelo simples fato de l estar.novidade da possibilidade de sonorizao dos filmes; no documentrio, a possibilidade do registro do som sincrnico. 49 Legitimamente, o direto apenas uma tcnica, um mtodo oferecendo novas possibilidades que alteram a forma de filmar, e apenas de filmar, dos filmes; mas que no pode substituir a investigao e a anlise. uma descoberta, um progresso, mas no , em si, um outro tipo de cinema (Michel Euvrard e Pierre Vronneau, citado por Joan Nicks em Documenting the documentary (p.303) vide bibliografia para referncia completa

35 Da mesma forma que Rothman fez com os filmes dos anos 30, Bill Nichols vai enxergar nas propostas do cinema neo-realista italiano um indcio de vontade de documentar, fundado sobretudo em propostas ticas (mais que estticas)50. Havia, escreve Nichols, um comprometimento com a representao histrica no se tratava aqui da inveno de um mundo possvel, mas de uma representao sobre as condies de existncia naquele mundo (notadamente, a Itlia do ps-2 GM). O neorealismo, aceitou o desafio do documentrio de organizar-se em torno das representaes do dia-a-dia no apenas em termos de tpicos e tipos, mas na organizao de imagens, cenas e estrias (NICHOLS,1991, p.167) . Os personagens so menos protagonistas que o universo onde esto inseridos; eles no so smbolos de uma galeria de arqutipo, mas meras vidas que desfilam pela tela, submetidas a uma certa realidade histrica51. O capital cultural do contexto fornece as chaves para a compreenso do comportamento dos tipos. Entretanto, exatamente pela insistncia na caracterizao do real enquanto imagem bruta de uma realidade que tanto o neo-realismo quanto o cinema dos anos 30 acabam se aproximando ainda mais da fico que do documentrio. Para Nichols, a fundao da narrativa a partir das contingncias externas limitou a representao superfcie do visvel. Assim, toda uma gramtica de signos de subjetividade (cmera na mo ricocheteando, filmagem em ambientes naturais fora de estdio) se reduz a uma proposta esttica. Para Nichols, a fora desse cinema estaria justamente no uso de uma cmera que no produz subjetividade porque est isenta de opinies sobre seus personagens. Isso, segundo o autor, substitui uma alternativa centrpeta de construo de empatia entre a audincia e o personagem (Ibidem,p.169). A tcnica de construo de planos subjetivos no neorealismo, escreve Nichols, est fundada nessa produo de efeitos de real conforme atribuda por Roland Barthes52. Para o terico, isso no suficiente para a construo de uma lgica do documentrio. O neorealismo, escreve Nichols, demonstra como a narrativa pode ser

50 51

Ainda que o modo de filmagem dos diretores do movimento tenha dado origem a uma esttica realista. O que torna possvel entender esses tipos de fico a partir das relaes que mantm com uma linguagem documentria: enquanto o cinema de fico organiza sua narrativa em torno de temas e personagens, a tradio do documentrio constri seu texto a partir de argumentaes e dilogos que envolvem imagem, cena e estria. 52 No texto O efeito de real, Barthes identifica nos elementos menores das narrativas (aqueles que tm uma funo suprflua, de ilustrar a cena) como aqueles que determinam nossa relao de crena no texto. Prevalece a identificao de signos como prova da realidade do quadro.

36 colocada a servio do impulso documentrio ao admitir para a imagem e a filmagem um sentido de autonomia (NICHOLS, op. cit., p.169).

3) PRAZER EM CONHECER O que diferencia as cenas iniciais dos filmes Annie Hall (1977) e Manhattan (1979) de Woody Allen, de documentrios como Roger and Me (1989) e Tiros em Columbine (2002), de Michael Moore? Ambos os diretores comeam seus filmes a partir de uma exposio em primeira pessoa, imprimindo-se no corpo flmico, criando uma inquietao na linguagem tradicional. Nas fices de Allen, a primeira pessoa serve como sinalizador de uma narrativa de carter ntimo e privado, desaparecendo (ou decrescendo em importncia) em benefcio do desenrolar da trama enquanto estria plausvel; o narrador d a conhecer sobre si nos primeiros planos e depois desaparece a narrativa segue a gramtica do cinema de fico. J nos filmes de Moore, a voz da primeira pessoa incorporada posteriormente na figura do prprio diretor53, que organiza assuntos particulares a serem articulados para a formao de uma panorama mais amplo. Ao contrrio de Allen, a narrao em primeira pessoa nos filmes de Moore onipresente. Em parte, isso acontece por que a crena de que um bom documentrio (...) dirige ateno para um assunto e no para ele mesmo resultado dos fundamentos epistefilsticos (...). (NICHOLS,op. cit, p.179) Por fundamentos de epistefilia, Bill Nichols define um prazer de saber que marca uma forma distinta de engajamento social(NICHOLS,op. cit.,p.178). Da, a idia de que documentrios so propostas alternativas de dar a saber (e vir a saber) sobre o mundo. Dar a saber implica uma proposta de relato, o que levou essa forma de cinema a desenvolver uma esttica que inclui a preservao da distncia em relao ao seu objeto de representao. Entretanto, a iluso da transparncia das tcnicas realistas, escreve Nichols, perturba a percepo dessa distncia, justamente porque nega a existncia de que existe algum registrando. Notadamente, esse problema foi superado pelo documentrio a partir da constatao da necessidade de incorporar os documentaristas nos filmes54. Por outro53 54

Moore no aparece nas primeiras cenas dos seus filmes Um bom exemplo sobre essa incorporao pode ser encontrado no filme dos irmos Maysles Grey Gardens, sobre Edith Bouvier Beale e sua filha Edie. Durante o perodo da filmagem, inevitavelmente os

37 lado, vir a saber (o tal do prazer em conhecer) parte de uma relao de empatia que surge entre o espectador e o documentrio. Isso faz com que o texto destes filmes busque uma construo que desperte dinmicas subjetivas no espectador, sentimentos que se manifestam como produto de uma seduo - curiosidade, compaixo, alegria, solidariedade, riso, choro, tristeza, etc...- em relao aos temas. Todas as estratgias utilizadas para estabelecer uma forma de conhecimento, para estimular uma vontade de saber so, na verdade, produtoras de subjetividade. As dinmicas subjetivas do engajamento social so ativadas no confronto com a representao, por excelncia, o ato de seduo do espectador. Essa relao perturbadora eleva os documentrios categoria de forma de acesso ao real. Entretanto, escreve Nichols, essa produo frequentemente disfarada sob uma capa de objetividade, um leitmotiv que se atribui aos filmes: ao assisti-los, nos tornamos pessoas mais cultas e informadas. Assim, documentrios se cristalizaram como formas de conhecimento onde a produo criativa, a inquietao lingstica e as inovaes formais so menos solicitadas ou questionadas que o contedo. Mais que formas de conhecimento (no sentido de construo de uma viso), os sentimentos despertos funcionam como modos de engajamento a formas de representao do mundo que se estendem alm do momento da projeo, se incorporando praxe social (NICHOLS,op.cit.,p.178). Para Bill Nichols, esses sentimentos esto na fundao das subjetividades sociais, isto , subjetividade dissociada de um nico indivduo (NICHOLS,op.cit.,p.179). Nesse caso, a identificao produzida em termos de coletividade ainda que os sentimentos possam partir de registros individuais55. Um exemplo desse tipo de produo pode ser encontrado nos documentrios dirigidos por Leni Riefensthal; notadamente, Triunfo da Vontade, de 1935. Alternando planos abertos de multido com planos fechados das faces de soldados da SS, de civis e de crianas, a diretora consegue criar um sentido de unio e solidificao bastante prximos quele pregado pela ideologia nazista. Outro exemplo ilustrativo Faces de Novembro, de Robert Drew (1963), que procura representar airmos diretores desenvolveram um relacionamento com as protagonistas. Em um determinado momento da filmagem, a personagem da filha revela a existncia de uma cmera. Nesse instante, o realizador vira a cmera para o espelho, assumindo a artificialidade da estria enquanto produto cinematogrfico. Na edio em DVD, ao tecer comentrios sobre o filme, Maysles atenta para a inevitabilidade do relacionamento que se estabelece entre as partes. 55 Bill Nichols vai estabelecer os princpios da subjetividade social como as guias fundamentais do documentrio performtico. Elas vo representar o ponto de contato entre o indivduo e o mundo. Entretanto, o que muda fundamentalmente o referencial.

38 consternao do povo americano por ocasio do assassinato do presidente Kennedy. O curta metragem de 12 minutos um estudo do sentimento de perda atravs de imagens em close do rosto de civis, militares e parentes da vtima. Enquanto espectadores, no nos sentimos presos a nenhum dos personagens, mas indiscutivelmente somos levados a uma empatia com os sentidos estticos e rtmicos das movimentaes criadas pela e para a filmagem produto da montagem que articula texto e imagem: ns nos engajamos a um realismo histrico que representa a experincia coletiva subjetivamente (NICHOLS,op. cit.,p179). Realismo histrico que representa a coletividade de forma coletiva; realismo histrico criando uma representao subjetiva; realismo criando subjetividade. Na verdade, disto que tratam documentrios.

4) FORMAS DE REALISMO NO DOCUMENTRIO Ao definir o realismo como linguagem dominante na histria da produo de documentrios56, Nichols identifica variaes na forma de organizao das criao realista a partir de mecanismos de seduo que so estabelecidos para a produo de um relacionamento com o espectador. O terico vai identificar trs formas de criao de efeitos realistas que se articulam na construo e organizao de textos documentrios57: 1) realismo emprico, 2) realismo psicolgico e 3) realismo histrico. No so, necessariamente, excludentes; assim como os modos de representao propostos por Nichols, os tipos de realismo se incluem e complementam, estruturando a organizao de idias do documentarista e dos filmes. O realismo emprico foi a primeira fonte de construo das narrativas que vieram a consolidar o documentrio como uma forma de cinema: um tipo de realismo que est solidificado a partir da qualidade indexical da imagem fotogrfica e do som gravado. Surge como suporte da esttica desenvolvida nos filmes de reportagem dos irmos Lumire, que enviavam seus funcionrios pelo mundo, registrando novos pases e paisagens, pessoas e animais desconhecidos, situaes exticas, grandes acontecimentos. determinante, ainda,56

A proposta do realismo como figura predominante na produo de documentrios vai continuar at muito recentemente, quando novas formas de relao com a imagem em parte influenciadas e atravessadas pela influncia da TV e do vdeo vo reinserir novas percepes.

39 como sistema de compreenso nos filmes58 realizados pela dupla de irmos franceses, que registravam cenas banais do cotidiano - uma estao de trem, operrios saindo da fbrica, bbes se alimentando, jovens se divertindo. Um pouco mais tarde, surge tambm como agenda poltica e cultural, nos filmes de Dziga Vertov, R. Flaherty e John Grierson. O mundo real se tornava objeto de estudo, de curiosidade, de conhecimento e informao. Os primeiros documentaristas estabeleceram para o documentrio a funo de dar a conhecer especialmente a partir da eficcia da imagem. Em todos esses filmes, o sentido de uma imagem realista diz respeito relao de semelhana que o objeto registrado guarda com a matriz original. Mesmo que o aspecto da verossimilhana no d garantias de acuidade histrica, escreve Nichols, assegura um liame existencial entre a imagem e o referente (NICHOLS,1991,p.171). Estamos falando de certezas sobre as inscries dos objetos no mundo. H garantia da existncia daquela imagem fora da tela; entretanto, no do como nem de que forma ela existe. Construes empricas, assim, no separam o fato de seu valor social, o lugar que ocupa o objeto do registro dentro de uma determinada construo. Isso o mesmo que dizer que procuram ocultar diferenas objetivas e subjetivas, j que fatos no aparecem como produes de uma construo social. Assim, o realismo emprico se relaciona com o espectador na medida em que permite identificaes de inscrio entre a imagem na tela e o mundo histrico. O realismo psicolgico convida o espectador a se identificar com situaes e pessoas, desenvolvendo uma relao de empatia que est baseada na produo de uma troca sentimental. Por essa razo, os sentimentos que so despertados podem ser abstrados das situaes representadas e reapropriados pelo pblico, criando uma aproximao mais intensa: nibus 174 (2001) e As mes da Praa de Maio(1985)59, so filmes que constroem uma relao que vai alm do que aparece consolidado na superfcie do registro; tratam-se de filmes que criam eventos a partir de palavras e discursos, que se tornam acontecimentos na medida em que podem ser produtos de estmulos provocados pela57

Estamos considerando o realismo fora de uma perspectiva histrica, e sim em termos de construo de verossimilhana 58 No eram, exatamente, filmes, uma vez que no havia organizao narrativa e um roteiro. Limitavam-se a registros contnuos de cenas atuais da, os primeiros registros do cinema serem conhecidos como atualidades. Entretanto, a idia de estar testemunhando um acontecimento mundano consistia no principal motivo do registro.

40 interveno da cmera, ou da equipe de filmagem60. Representar a dor do outro pode se revelar menos como uma forma de ater ao acontecimento que sua leitura. Bill Nichols compreende o realismo psicolgico de uma forma ampla: para o terico, uma estratgia de representao que pode atravessar caractersticas naturalistas e se instaurar a partir do que h de mais subjetivo no documentarista. Com isso, quer dizer que qualquer forma de manifestao artstica poderia se enquadrar como uma produo de realismo psicolgico assim, tcnicas como o expressionismo, o surrealismo e o naturalismo so reais porque expresses legtimas de um sentimento, manifestaes de uma idia. Essa concepo de Nichols desloca a compreenso do realismo enquanto esttica para justific-lo como uma representao expressiva do autor. Entretanto, em sua grande maioria, o realismo psicolgico utilizado para a construo de um sentimento de identificao entre, de um lado, situaes e personagens e, de outro, o espectador. Segundo Nichols, isso acontece de uma forma em que os laos emocionais passam desapercebidos como construes, eles se inserem na complexa dinmica de suspenso de crena, ou numa aceitao de coisas que ns sabemos que so assim (NICHOLS,Ibidem,p.172). A tendncia acreditar na imagem construda, e no sentido a ela atribuido, uma vez que o realismo psicolgico se coloca como uma transparncia entre a representao e o engajamento emocional, entre o que vemos e o que (NICHOLS,op.cit.,p.173). Essa tcnica elimina a percepo do estilo em favor de sentimentos de comoo, que se prope produtos de uma identificao natural com a imagem, provedores de um acesso imediato realidade representada. O realismo histrico, por sua vez, est na base da produo de documentrios estruturados sobre a edio de evidncias. No se trata mais de uma questo de fidelidade referncia, ou de um engajamento emotivo; so filmes que esto enraizados em circunstncias contingenciais. O texto desses documentrios conquista seu espectador a partir de uma construo lgica na organizao de idias uma estrutura que est inscritaDirigidos respectivamente por Jos Padilha e Susana Blaustein Muoz e Lourdes Portillo. O exemplo mais clssico dessa tcnica est no filme Crnica de um vero de Jean Rouch e Edgar Morin (1961), quando uma das jovens filmadas, Marceline Loridan, revive dolorosos momentos de sua vida enquanto realiza um monlogo durante uma caminhada, acompanhada pela cmera. Em nibus 174, ao realizar as entrevistas com os refns do seqestro, o diretor Jos Padilha utilizou uma tcnica alternativa: ao invs de se limitar a uma conversa formal, editou pequenos filmes onde predominavam as situaes vividas pelos refns. Assim, cada filme contava com um protagonista diferente. Como resultado, conseguiu60 59

41 sobre conhecimentos produzidos no mundo histrico. Bill Nichols define que esse tipo de documentrio tem seu argumento construdo a partir da produo de subjetividades sociais, onde nossa prpria identificao trazida menos para com um indivduo que para com um senso de participao coletiva (NICHOLS, op.cit.,p.174). A principal funo das tcnicas realistas nesses documentrios a produo do desvio da ateno da estrutura formal dos filmes, organizadora de um saber, em benefcio da produo de um conjunto de informaes objetificadas. Uma construo realista onde predomina a qualidade histrica necessariamente concentra os elementos da sua estrutura em torno de tema, localizado fora do documentrio. So filmes organizados por dilogos, depoimentos, testemunhos e comentrios desincorporados de seus agentes e re-situados como uma pea dentro de uma engrenagem maior; falas esvaziadas em seus potenciais de inveno porque funcionais apenas enquanto testemunhos sobre um outro61. Esse tipo de documentrio foi incorporado definitivamente pela televiso, que utiliza o formato como parte integrante do segmento de programas jornalsticos62. predominante na TV o documentrio ser reduzido a uma frmula empobrecida, que consiste num arremedo de edio de entrevistas, textos em off e imagens de cobertura63. So filmes que constestam pouco (quando contestam), e se preocupam mais com a construo de um conhecimento slido do mundo a partir de arqutipos teorias prdefinidas. Esse tipo de narrativa, completamente dissociada de um formato cinematogrfico, tem a sua continuidade garantida em funo de uma lgica de comentrio, cujas imagens ilustram, se contrape ou metaforicamente estendem (NICHOLS,op.cit.,p.174). Para Nichols, ao insistir na criao de um ponto de vista isento de subjetividades, os documentrios que estruturam suas narrativas a partir do realismo histrico podem estender seu comentrio para alm da imagem isto porque concentram sua fora de organizao em testemunhos e narraes objetivas. Comentrios organizam imagens de diversos lugaresdepoimentos carregados de uma emoo legtima, produto da frescura de uma declarao dada pela primeira vez. 61 Ainda que seja possvel descobrir muita coisa sobre quem fala, quando fala de algum. 62 O exemplo mais prtico o Globo Reprter da Rede Globo. Na TV a cabo, os documentrios veiculados pelo GNT, Discovery, National Geographic, History Channel, People and Art tambm podem ser enquadrados. 63 H excees a essa regra: notadamente, a TV cabo vem trazendo produes bem interessantes, onde a liberdade artstica ainda permitida claro que desde o momento que se adeque linha editorial.

42 e tempos em funo da necessidade de articulao de um pensamento; isso faz com que saltos no tempo e no espao (...) podem, no documentrio que