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8/19/2019 Doméstica - Resenha Marco Antonio Goncalves
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Marco Antonio Gonçalves I
I Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, Brasil
DOMÉSTICA: UMA ETNOGRAFIA INDISCRETA
Doméstica. (2012). Direção de Gabriel Mascaro. 75 min.
ser e não ser da família, a inclusão ea exclusão, o afeto e a ordem, o la-
zer e o trabalho, a ajuda e a obriga-
ção são dilemas e contradições que
engendram o complexo significado
da profissão de doméstica. Esta con-
ceituação encontra plena significação
na fala de uma “patroinha”: “Ela mora
aqui, ajuda em casa, é da família”.
Ao se abordar o tema “empregada
doméstica” é comum projetar estainstituição brasileira como funda-
mentada na sociedade patriarcal e
escravocrata do século XVI, ressaltan-
do a continuidade da exploração nas
relações de trabalho doméstico até os
dias atuais. Gabriel Mascaro resiste,
felizmente, em se aproximar do tema,
enquadrando-o em uma narrativa so-
ciológica explicativa das relações so-
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Doméstica é uma palavra tão familiarna cultura brasileira que quem pro-
cura desvendar seu significado deve
fazer um verdadeiro exercício de es-
tranhamento. Um primeiro significa-
do nos remete a alguém que é “rela-
tivo à casa ou à família”, derivando
daí a noção de criada como um modo
de explicitar que alguém é criado no
espaço doméstico, adotado naquele
espaço, pertencente, de algum modo,à família. O outro significado de do-
méstica é atribuído ao espaço do lar,
aquela pessoa que “trata do amanho
de sua casa” sendo ou não remune-
rada. Parece que aqui reside a maior
ambiguidade de sua significação: do-
méstica pode ser a própria dona da
casa ou uma “mulher empregada no
serviço pessoal de uma família”. Este
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ciais e de trabalho no Brasil. O filme
aborda as domésticas através de um
mosaico de possibilidades, diferentes
experiências em que o espectador vai
se aproximando desta complexa ca-
tegoria social. Doméstica é um filme-
-documentário sobre as relações entre
patrões/patroas e domésticas na so-
ciedade brasileira contemporânea. Em
vez de buscar um significado, o filme
propõe uma desconstrução dos signi-
ficados do senso comum de modo arevelar, justamente, sua potência de
significação na sociedade brasileira.
Assim sendo, o diretor não assu-
me nenhum a priori sobre domésticas,
deixando emergir sua conceituação
das relações engendradas pelo pró-
prio filme. Doméstica não é atributo
de uma classe social específica, nem
mesmo de um gênero, como fica cla-
ro nas narrativas do filme, mas umconceito que, para além dos sujeitos
que o encarnam, revela uma condição
essencial para pensar as relações so-
ciais na sociedade brasileira.
O grande mérito de Doméstica é o
de escapar de um quadro explicativo
que banaliza a compreensão destas
relações de trabalho enquadradas co-
mo pertencendo a formas pré-capita-
listas de exploração. A lente subjetivaou uma “etnografia indiscreta” aposta
na própria mimésis do subjetivo co-
mo forma de descrição densa desta
relação, escapando do olhar alheio e
intruso, optando pela própria reve-
lação da relação através da câmera
que simula uma simetria apoiada no
terreno da subjetividade: patrões e
empregadas são, na verdade fílmica,
personagens, e este fato propicia o
melhor meio de compreensão desta
complexa relação.
Algumas curtas apresentações de-
finem o método adotado que irá nos
permitir adentrar no mundo das do-
mésticas. O dispositivo de filmagem
acionado em Doméstica se constitui
em passar a câmera para as mãos
dos “patrões”, os adolescentes que,
na condição mesma de personagens,
filmam, sobretudo, uma relação. Estetipo de dispositivo adotado por Do-
méstica não parece querer ser apenas
uma técnica de captura de imagens
centrada no ponto de vista dos “pa-
trões” como querendo revelar uma
“perspectiva”; tampouco segue a ten-
dência do cinema contemporâneo
que tem dado importância às “ima-
gens pessoais” produzidas pelos pró-
prios sujeitos fílmicos. A técnica decaptura de imagens em Doméstica está
a serviço de um método de investiga-
ção que é a potência do próprio filme:
revelar as domésticas a partir de uma
relação com aqueles que elas cuidam
e ajudam a criar.
Este ponto parece ser crucial não
apenas para o entendimento do filme,
mas para a compreensão de domésti-
ca como uma instituição. Quem filmanão são os “patrões” que pagam o sa-
lário das empregadas, mas os adoles-
centes que mantêm com elas uma re-
lação radicalmente subjetiva. É desta
subjetividade, de sua problematiza-
ção, que trata o filme. Apresenta uma
complexa rede de delicadas relações
apreendidas através de seu ponto ne-
vrálgico que é a subjetividade, qua-
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lidade por excelência desta relação
que nos convida a fazer uma reflexão
sobre o modo pelo qual os brasilei-
ros constroem a sociabilidade: entre
o próximo e o distante; entre o cor-
dial e o violento; entre a igualdade e
a hierarquia; entre a ajuda e a explo-
ração; entre a obediência e o mando.
Deste modo, a câmera subjetiva
em Doméstica, seu minimalismo, cap-
tura uma dimensão profunda e com-
plexa de uma relação social. Ao acio-nar o dispositivo da subjetividade nos
faz compreender de um modo apro-
priado o fenômeno “empregada do-
méstica” que atravessa séculos e re-
siste até os dias de hoje como pedra
fundamental da sociedade brasileira.
Mas como abordar um tema que pode
facilmente ser caricaturado a partir
da dimensão da exploração e sub-
missão? Não resta alternativa senãoa de abordá-lo em seu aspecto mais
central: no plano da subjetividade
que o engendra, o institui e o caracte-
riza como uma relação social basilar.
Evocamos aqui o paradoxo vivido por
Joaquim Nabuco, o grande abol ic io-
nista, que quando consegue extirpar
a escravidão confessa ter “saudade
do escravo”, significando uma relação
“protetora”, “afetiva”, eminentementesubjetiva, o que forjou a “relação so-
cial à brasileira”. A afeição, o cuidado,
a atenção, a ajuda é o que é enfati-
zado nestas relações entre patrões e
empregadas que se constituem a
partir do trinômio: afetividade, reci-
procidade e desigualdade (ver Velho,
2012: 20; Buarque de Holanda, 1936;
Freyre, 1933, 1936). Afetividade, neste
campo de contradições das relações
entre patrões e empregados, congre-
ga tanto a tensão e o conflito quanto
as concepções de amizade (Resende,
2001: 256-257).
Vejamos alguns destes persona-
gens e suas relações.
Vavá, Vanusa é motorista e empre-
gada da família de Neto há 17 anos.
Neto, procurando conhecer Vanu-
sa adentra em seu universo, em seu
quarto e, mais especificamente, emseu armário. Surge uma caixinha em
formato de coração e um livro que ela
lê para aprender a lidar com o sofri-
mento causado pelo envolvimento
de seu filho com as drogas. Neto for-
mula as perguntas com delicadeza e
parece que gosta, através do jogo da
câmera, de poder descobrir quem é
Vavá, de se aperceber dela de outro
modo, de inverter a relação de cuida-do, de atenção. O filme subverte as
relações quando põe o foco em Vavá.
A cegueira narcísica de uma supos-
ta violência exploratória é rompida
pela câmera que afirma o interesse
pela doméstica, por sua história, por
seu mundo. A câmera passa a ser es-
ta pedagogia de aprendizado sobre o
outro; agora, é a doméstica que está
em cena, é ela que fala e é falada porseus patrões. A câmera propicia este
conhecimento. Quem quer conhe-
cer as empregadas são os patrões e,
através de suas lentes, o espectador é
cúmplice deste processo de aprendi-
zado que o remete, irremediavelmen-
te, às suas próprias experiências com
as domésticas. Por outro lado, a câ-
mera e a posição assumida por Neto
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propiciam a Vanusa revelar, externar
suas emoções, compreendendo-se ao
compreender a natureza mesma da
relação subjetiva que engendra com
os patrões: ouve um poema do rádio
e repete os versos em uníssono com
o locutor; fala com o filho ao telefone
sobre o porquê deixou-o preso sem as
chaves de casa para sair; por um ins-
tante, antes de começar a guardar as
toalhas de banho no armário, pensa
em seu filho e se emociona; dirigindoo carro diz que “acha chique dirigir”;
fala sobre sua separação referindo-
-se a seu marido como o “pai dos
meus filhos”; durante os 24 anos de
casamento diz que o marido sempre
a traía; canta uma música de amor
quando está sozinha no carro e, sa-
bendo que a câmera continua ligada,
libera sua emoção ao cantar a dificul-
dade de ter um amor correspondido.Esta inversão de perspectiva, ao
coincidir com o “girar a câmera” na
direção das domésticas, ganha plena
potência quando uma das adolescen-
tes aparece diante da câmera usando
a lente como espelho, ajeitando seu
cabelo antes de começar a gravar a
entrevista com sua doméstica. O “gi-
rar a câmera” na direção da domésti-
ca encerra um gesto ritual que acio-na novas significações. A “patroinha”
formula a primeira pergunta: “como
chegou a São Paulo?” E ela respon-
de: seu pai vendeu dois bois e deu
o dinheiro para seu marido como
“dote” de casamento. O marido a de-
cepciona, aluga um quarto “debaixo
do chão”, não a deixa sair de casa e
o resto do dinheiro gasta em bebida.
Neste ponto a “patroinha” comenta:
“Que horror!”, tomando consciência
da história no momento mesmo em
que é narrada. A “patroinha” con-
tinua: “bem, o primeiro casamento
foi ruim, mas o segundo está ótimo,
não?” E a empregada diz: “não, não
está bem não...”, e se cala.
A empregada está na cozinha fa-
zendo um pão de trança. Coloca-o
no forno. A família senta à mesa e a
empregada ocupa um lugar de desta-que durante a cerimônia judaica que
se desenrola. O pai fala em hebraico,
uma moça explica para a empregada
o ritual do pão, revelando que ele es-
tá coberto para não ficar com ciúme
do vinho. A empregada come do pró-
prio pão que preparou para o ritual.
Mais tarde ficamos sabendo que o
fato de ela estar sentada à mesa é
derivado de um sonho que teve e foicontado para “patroinha”: no sonho,
participava da cerimônia do shabbat.
Propiciado pelo filme, seu sonho vira
realidade e ela está sentada à mesa,
comendo o pão e tomando o vinho.
Na mesma chave do conhecimento e
da inversão de papéis, a “patroinha”
pergunta à empregada como ela ima-
ginava que eram os judeus antes de ir
trabalhar naquela casa. Impulsiona-da por ocupar o centro da filmagem,
responde com franqueza: “achava que
era gente ruim... já tinha trabalhado
para uns judeus e tinha sido muito
ju diada” . Na cont inui dade, diz que
quando começou a trabalhar na casa
estranhou a comida, era fraca, não
sustentava, e depois foi se habituan-
do, gostando e, agora, faz a comida
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e diz que adora. Interessante ressal-
tar que este “se habituar” enfatiza
um processo de transformação que
sofre ao passar a conviver com sua
nova “família”, na casa em que passa
a trabalhar. O “habituar”, o “acostu-
mar-se” parecem categorias-chave na
experiência da doméstica que, reme-
tida ao universo da casa, da família,
da intimidade, pode se transformar
através de um processo de “familiari-
zação”, sendo, portanto, afetada, mu-dando de gosto, modificando seu mo-
do de compreender o mundo. Porém,
a transformação engendrada pela do-
méstica é de mão dupla: ao mesmo
tempo em que é criada (transformada
pela relação), cria (os filhos dos pa-
trões; a comida).
Uma outra doméstica, de toalha
na cabeça, escuta reagge e dança. A
patroa vem até a sala e pede para elaabaixar o volume. Aparece varrendo
debaixo do sofá, tirando o pó, arru-
mando a casa durante a madrugada.
A empregada passou a ter hábitos
noturnos, trabalha enquanto a casa
dorme. Este bloco revela a cumplici-
dade entre quem filma e quem é fil-
mada, uma relação de intimidade que
garante o sucesso desta personagem
que se mostra alegre, extrovertidae, ao mesmo tempo, triste e trágica.
Sua fala tem humor e violência, ab-
negação e crítica. Escuta no celular o
hino do seu time de futebol, dorme
apoiada na máquina de lavar e, às
23h54, dorme debruçada sobre o sofá
enquanto o limpava. Trabalha nesta
casa há 13 anos e diz que já passou
mais tempo na casa dos patrões do
que passou com sua mãe; tem sau-
dade de casa quando fica sozinha no
quarto, mas sua casa tem tanto pro-
blema que prefere ficar longe. Vai pa-
ra casa de 15 em 15 dias, dependendo
das necessidades da família. Diz que
ficou três meses sem tirar folga cui-
dando da avó da “patroinha”, e nunca
imaginou que estes seriam os últimos
meses de vida de seu próprio filho,
tragicamente assassinado. Faz quei-
xa, chora e diz que se sentiu rouba-da pelo trabalho. Mostra seu quarto,
apresenta o colchão ortopédico e o
ventilador que ganhou da patroa, di-
zendo que ali se sente em casa! Frase
proferida com ambiguidade e jamais
saberemos se está ironizando “o sen-
tir-se em casa” ou se está falando a
verdade, provavelmente as duas coi-
sas simultaneamente.
A adolescente diz que Lena, aempregada, é como se fosse uma ir-
mã, para quem conta seus segredos,
suas transas amorosas. A emprega-
da aparece arrumando o quarto da
adolescente enquanto a mãe des-
ta, a patroa, cuida do bebê, filho da
empregada. A adolescente recorda o
modo como sua mãe anunciou que a
empregada ia ter um filho: “a famí-
lia vai aumentar”. A empregada é fa-lada pela patroa, é quem narra uma
relação, contando que Lena, a em-
pregada, nasceu na fazenda de sua
família, viu Lena pequena e quando
cresceu a patroa a trouxe para Sal-
vador. A – “patroinha” complementa,
dizendo que a relação com a empre-
gada é muito boa, “não é uma rela-
ção de patroa/empregada, é mais do
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que isso, ela é da família, aqui não
tem isso, todo muito senta junto na
mesa...”. O quarto de Lena é apre-
sentado, com a ironia peculiar que
constitui esta relação, como “suíte
master”. O quarto fica fora da casa e
parece apertado através das lentes da
câmera: uma enorme tv, cama, berço,
estante, quadro contendo fotos de
sua filha, Fernandinha, desde que
nasceu. Fotos que revelam a relação
de proximidade com a família: a pa-troa trocou a primeira fralda, deu o
primeiro banho, e diz “Lena é minha
filha”, emociona-se ao falar do nas-
cimento de Fernandinha, concluindo
que quando se “dá para uma pessoa...
se entrega por inteira...”. Porém, nes-
te mesmo instante, retoma o discur-
so de patroa e diz que Lena “não é
eterna aqui, se os nossos filhos não
são eternos, quanto mais uma pessoaque ajuda...”. Admite que o trabalho
doméstico cansa, é repetitivo e que a
empregada, um dia, pode não querer
mais fazê-lo: “no momento em que
ela quiser sair a gente vai sentir mui-
to, mas sendo a vontade dela...”. Lena,
em seu quarto, passa creme hidratan-
te nas pernas enquanto assiste à tv,
pega a sua filha no berço e a põe para
dormir em seu colo.Agora estamos em um ambiente
popular, em um bairro periférico da
cidade de São Paulo. Uma menina ne-
gra chamada Bia é cuidada por Flávia
que é a empregada da empregada.
Este bloco coloca o paradoxo da “em-
pregada da empregada” que resume,
por si só, todas as contradições desta
complexa definição do que significa
doméstica na sociedade brasileira.
Flávia e Bia brincam no sofá escu-
tando rádio. Dá banho no menino,
irmão de Bia, que tem problemas de
locomoção. Flávia conta para Bia sua
estória: o marido a estava traindo
com uma garota de programa. Sofreu
muito nessa vida, ficou grávida de
trigêmeos, apanhou do marido, levou
chutes na barriga e perdeu os bebês.
Teve hemorragia na hora, ficou com
febre e desmaiou de dor, acordandono hospital. Depois deste episódio
não quer mais saber de homem. Diz
que a patroa é boa, e ela também é
empregada: “quando não vê as coisas
direitas reclama, mas me ajuda mui-
to”. Toma a cena, passa a ser o centro
do interesse do filme: segura o celu-
lar como um microfone e canta, dan-
do um show para a câmera e para as
crianças. Jeniffer, de 16 anos, faz o curso mé-
dio, tem aulas de teatro e diz que é
cuidada pelo seu “anjo da guarda”,
que é o empregado doméstico. O em-
pregado aparece limpando o cocô do
cachorro, as lixeiras do banheiro, la-
vando a louça. Jeniffer, por trás da câ-
mera, conta que ele chegou à sua casa
numa época complicada de sua vida,
tinha se separado da mulher, uma his-toria triste: “Minha mãe presenciou
tudo isso e chamou ele para cuidar de
mim”. “Ele não se abre, vive no mundo
dele”. Dia de Natal. O empregado está
presente na festa, todos se abraçam e
festejam, se beijam e comemoram.
Sérgio serve seu prato de comida, se
afasta e come sozinho na varanda. Es-
te bloco, mais uma vez, revira o signi-
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ficado de doméstica, um homem, um
“anjo da guarda” é quem realiza as
tarefas da casa.
Numa outra história, um adoles-
cente fala para sua empregada que
vai fazer um documentário sobre sua
vida e pede que ela assine a autori-
zação. Pergunta: “tudo bem?”. Ela diz
que sim, assina o papel e continua
secando os pratos. A patroa, quando
adentra a cozinha, pergunta sobre
o capítulo da novela que deixou deassistir. Sentada à mesa, pede um
garfo e uma faca, enfatizando o “por
favor”. A patroa diz que conhece Lu-
cimar desde que nasceu porque ela é
filha da caseira da sua bisavó. Mos-
tram fotos de Lucimar pequena com
a patroa, as duas de mãos dadas, de-
pois meninas, brincando juntas na fa-
zenda da bisavó. A patroa conta que,
quando ia passar férias em Valença,a primeira coisa que pedia era para
brincar com Lucimar e que jamais
imaginou que ela fosse um dia tra-
balhar como empregada em sua casa.
Reconhece que no começo foi difícil:
tinha que se impor como patroa, pois
a considerava uma amiga. Depois
o adolescente pergunta a Lucimar
quando foi que começou a trabalhar.
Ela diz que foi aos 14 anos, já sabia
arrumar, passar roupa, cozinhar. Lu-
cimar está tímida. O menino pergunta
o que ela sabe fazer melhor. Respon-
de que faz bolo muito bem. Ela sor-
ri. Ele pergunta se ela gosta de usar
uniforme, ela diz que sim. “Você se
sente incomodada de andar de uni-
forme na rua?” “Não, não sinto não”.
“A relação com minha mãe ficou es-
tranha depois que você veio trabalhar
aqui, depois da amizade?”. Lucimarfaz uma pausa e diz que a relação vai
amadurecendo e complementa que
tem a oportunidade de estar no Rio
de Janeiro, considera que tem liberda-
de e declara que “gosta disso”.
Olha o álbum de fotos que teste-
munham sua relação com sua amiga/
patroa e timidamente, sorrindo, pas-
sa as páginas devagar. Num momen-
to deste bloco, enquanto as imagenspercorrem as fotos da infância das
duas amigas, hoje patroa e empre-
gada, surge a música Blowin’ in the
wind, cantada por Bob Dylan, que re-
sume de uma só vez a pergunta pos-
ta pelo filme sobre o significado de
doméstica na sociedade brasileira:
“The answer, my friend, is blowin’ in the
wind, the answer is blowin’ in the wind”.
Recebida em 19/06/2015 | Aprovada em 10/07/2015
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Marco Antonio Gonçalves é professor do Programa de Pós-
Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (PPGSA-UFRJ), Pesquisador do
CNPq, Doutor em Antropologia pelo Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ.
Entre seus principais livros estão: Traduzir o outro: etnografia
e semelhança (2010); O real imaginado. Etnografia, cinema e
surrealismo em Jean Rouch (2008); O mundo inacabado: ação e
criação em uma cosmologia amazônica (2001).
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Janeiro: José Olympio.
Freyre, Gilberto. (1936). Sobrados e mucambos. Decadência do
patriarcado rural e desenvolvimento urbano . Rio de Janeiro:
José Olympio.
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Janeiro: José Olympio.
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chnir, Karina (orgs.). Mediação, cultura e política. Rio de Ja-
neiro: Aeroplano.
Velho, Gilberto. (2012). O patrão e as empregadas domésti-
cas. Sociologia, Problemas e Práticas, 69, p. 13-30.