Doméstica - Resenha Marco Antonio Goncalves

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/19/2019 Doméstica - Resenha Marco Antonio Goncalves

    1/9

    Marco Antonio Gonçalves I

    I Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

      Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, Brasil

      [email protected]

     DOMÉSTICA: UMA ETNOGRAFIA INDISCRETA 

     Doméstica. (2012). Direção de Gabriel Mascaro. 75 min.

    ser e não ser da família, a inclusão ea exclusão, o afeto e a ordem, o la-

    zer e o trabalho, a ajuda e a obriga-

    ção são dilemas e contradições que

    engendram o complexo significado

    da profissão de doméstica. Esta con-

    ceituação encontra plena significação

    na fala de uma “patroinha”: “Ela mora

    aqui, ajuda em casa, é da família”.

    Ao se abordar o tema “empregada

    doméstica” é comum projetar estainstituição brasileira como funda-

    mentada na sociedade patriarcal e

    escravocrata do século XVI, ressaltan-

    do a continuidade da exploração nas

    relações de trabalho doméstico até os

    dias atuais. Gabriel Mascaro resiste,

    felizmente, em se aproximar do tema,

    enquadrando-o em uma narrativa so-

    ciológica explicativa das relações so-

      s  o  c

      i  o  l  o  g  i  a  &  a  n  t  r  o  p  o  l  o  g  i  a

       |   r  i  o

      d  e  j  a  n  e  i  r  o ,  v .  0  5 .  0  2  :  5  9  9  –   6  0  7 ,  a  g  o  s  t  o ,  2  0  1  5

    Doméstica é uma palavra tão familiarna cultura brasileira que quem pro-

    cura desvendar seu significado deve

    fazer um verdadeiro exercício de es-

    tranhamento. Um primeiro significa-

    do nos remete a alguém que é “rela-

    tivo à casa ou à família”, derivando

    daí a noção de criada como um modo

    de explicitar que alguém é criado no

    espaço doméstico, adotado naquele

    espaço, pertencente, de algum modo,à família. O outro significado de do-

    méstica é atribuído ao espaço do lar,

    aquela pessoa que “trata do amanho

    de sua casa” sendo ou não remune-

    rada. Parece que aqui reside a maior

    ambiguidade de sua significação: do-

    méstica pode ser a própria dona da

    casa ou uma “mulher empregada no

    serviço pessoal de uma família”. Este

  • 8/19/2019 Doméstica - Resenha Marco Antonio Goncalves

    2/9

    600

    doméstica: uma etnografia indiscreta

      s  o  c  i  o  l  o

      g  i  a  &  a  n  t  r  o  p  o  l  o  g  i  a

       |   r  i  o

      d  e  j  a  n  e  i  r  o ,  v .  0

      5 .  0  2  :  5  9  9  –   6  0  7 ,  a  g  o  s  t  o ,  2  0  1  5

    ciais e de trabalho no Brasil. O filme

    aborda as domésticas através de um

    mosaico de possibilidades, diferentes

    experiências em que o espectador vai

    se aproximando desta complexa ca-

    tegoria social. Doméstica é um filme-

    -documentário sobre as relações entre

    patrões/patroas e domésticas na so-

    ciedade brasileira contemporânea. Em

    vez de buscar um significado, o filme

    propõe uma desconstrução dos signi-

    ficados do senso comum de modo arevelar, justamente, sua potência de

    significação na sociedade brasileira.

    Assim sendo, o diretor não assu-

    me nenhum a priori sobre domésticas,

    deixando emergir sua conceituação

    das relações engendradas pelo pró-

    prio filme. Doméstica não é atributo

    de uma classe social específica, nem

    mesmo de um gênero, como fica cla-

    ro nas narrativas do filme, mas umconceito que, para além dos sujeitos

    que o encarnam, revela uma condição

    essencial para pensar as relações so-

    ciais na sociedade brasileira.

    O grande mérito de Doméstica é o

    de escapar de um quadro explicativo

    que banaliza a compreensão destas

    relações de trabalho enquadradas co-

    mo pertencendo a formas pré-capita-

    listas de exploração. A lente subjetivaou uma “etnografia indiscreta” aposta

    na própria mimésis do subjetivo co-

    mo forma de descrição densa desta

    relação, escapando do olhar alheio e

    intruso, optando pela própria reve-

    lação da relação através da câmera

    que simula uma simetria apoiada no

    terreno da subjetividade: patrões e

    empregadas são, na verdade fílmica,

    personagens, e este fato propicia o

    melhor meio de compreensão desta

    complexa relação.

    Algumas curtas apresentações de-

    finem o método adotado que irá nos

    permitir adentrar no mundo das do-

    mésticas. O dispositivo de filmagem

    acionado em Doméstica  se constitui

    em passar a câmera para as mãos

    dos “patrões”, os adolescentes que,

    na condição mesma de personagens,

    filmam, sobretudo, uma relação. Estetipo de dispositivo adotado por Do-

    méstica não parece querer ser apenas

    uma técnica de captura de imagens

    centrada no ponto de vista dos “pa-

    trões” como querendo revelar uma

    “perspectiva”; tampouco segue a ten-

    dência do cinema contemporâneo

    que tem dado importância às “ima-

    gens pessoais” produzidas pelos pró-

    prios sujeitos fílmicos. A técnica decaptura de imagens em Doméstica está

    a serviço de um método de investiga-

    ção que é a potência do próprio filme:

    revelar as domésticas a partir de uma

    relação com aqueles que elas cuidam

    e ajudam a criar.

    Este ponto parece ser crucial não

    apenas para o entendimento do filme,

    mas para a compreensão de domésti-

    ca como uma instituição. Quem filmanão são os “patrões” que pagam o sa-

    lário das empregadas, mas os adoles-

    centes que mantêm com elas uma re-

    lação radicalmente subjetiva. É desta

    subjetividade, de sua problematiza-

    ção, que trata o filme. Apresenta uma

    complexa rede de delicadas relações

    apreendidas através de seu ponto ne-

    vrálgico que é a subjetividade, qua-

  • 8/19/2019 Doméstica - Resenha Marco Antonio Goncalves

    3/9

    601

    resenha | marco antonio gonçalves

    lidade por excelência desta relação

    que nos convida a fazer uma reflexão

    sobre o modo pelo qual os brasilei-

    ros constroem a sociabilidade: entre

    o próximo e o distante; entre o cor-

    dial e o violento; entre a igualdade e

    a hierarquia; entre a ajuda e a explo-

    ração; entre a obediência e o mando.

    Deste modo, a câmera subjetiva

    em Doméstica, seu minimalismo, cap-

    tura uma dimensão profunda e com-

    plexa de uma relação social. Ao acio-nar o dispositivo da subjetividade nos

    faz compreender de um modo apro-

    priado o fenômeno “empregada do-

    méstica” que atravessa séculos e re-

    siste até os dias de hoje como pedra

    fundamental da sociedade brasileira.

    Mas como abordar um tema que pode

    facilmente ser caricaturado a partir

    da dimensão da exploração e sub-

    missão? Não resta alternativa senãoa de abordá-lo em seu aspecto mais

    central: no plano da subjetividade

    que o engendra, o institui e o caracte-

    riza como uma relação social basilar.

    Evocamos aqui o paradoxo vivido por

     Joaquim Nabuco, o grande abol ic io-

    nista, que quando consegue extirpar

    a escravidão confessa ter “saudade

    do escravo”, significando uma relação

    “protetora”, “afetiva”, eminentementesubjetiva, o que forjou a “relação so-

    cial à brasileira”. A afeição, o cuidado,

    a atenção, a ajuda é o que é enfati-

    zado nestas relações entre patrões e

    empregadas que se constituem a

    partir do trinômio: afetividade, reci-

    procidade e desigualdade (ver Velho,

    2012: 20; Buarque de Holanda, 1936;

    Freyre, 1933, 1936). Afetividade, neste

    campo de contradições das relações

    entre patrões e empregados, congre-

    ga tanto a tensão e o conflito quanto

    as concepções de amizade (Resende,

    2001: 256-257).

    Vejamos alguns destes persona-

    gens e suas relações.

    Vavá, Vanusa é motorista e empre-

    gada da família de Neto há 17 anos.

    Neto, procurando conhecer Vanu-

    sa adentra em seu universo, em seu

    quarto e, mais especificamente, emseu armário. Surge uma caixinha em

    formato de coração e um livro que ela

    lê para aprender a lidar com o sofri-

    mento causado pelo envolvimento

    de seu filho com as drogas. Neto for-

    mula as perguntas com delicadeza e

    parece que gosta, através do jogo da

    câmera, de poder descobrir quem é

    Vavá, de se aperceber dela de outro

    modo, de inverter a relação de cuida-do, de atenção. O filme subverte as

    relações quando põe o foco em Vavá.

    A cegueira narcísica de uma supos-

    ta violência exploratória é rompida

    pela câmera que afirma o interesse

    pela doméstica, por sua história, por

    seu mundo. A câmera passa a ser es-

    ta pedagogia de aprendizado sobre o

    outro; agora, é a doméstica que está

    em cena, é ela que fala e é falada porseus patrões. A câmera propicia este

    conhecimento. Quem quer conhe-

    cer as empregadas são os patrões e,

    através de suas lentes, o espectador é

    cúmplice deste processo de aprendi-

    zado que o remete, irremediavelmen-

    te, às suas próprias experiências com

    as domésticas. Por outro lado, a câ-

    mera e a posição assumida por Neto

  • 8/19/2019 Doméstica - Resenha Marco Antonio Goncalves

    4/9

    602

    doméstica: uma etnografia indiscreta

      s  o  c  i  o  l  o

      g  i  a  &  a  n  t  r  o  p  o  l  o  g  i  a

       |   r  i  o

      d  e  j  a  n  e  i  r  o ,  v .  0

      5 .  0  2  :  5  9  9  –   6  0  7 ,  a  g  o  s  t  o ,  2  0  1  5

    propiciam a Vanusa revelar, externar

    suas emoções, compreendendo-se ao

    compreender a natureza mesma da

    relação subjetiva que engendra com

    os patrões: ouve um poema do rádio

    e repete os versos em uníssono com

    o locutor; fala com o filho ao telefone

    sobre o porquê deixou-o preso sem as

    chaves de casa para sair; por um ins-

    tante, antes de começar a guardar as

    toalhas de banho no armário, pensa

    em seu filho e se emociona; dirigindoo carro diz que “acha chique dirigir”;

    fala sobre sua separação referindo-

    -se a seu marido como o “pai dos

    meus filhos”; durante os 24 anos de

    casamento diz que o marido sempre

    a traía; canta uma música de amor

    quando está sozinha no carro e, sa-

    bendo que a câmera continua ligada,

    libera sua emoção ao cantar a dificul-

    dade de ter um amor correspondido.Esta inversão de perspectiva, ao

    coincidir com o “girar a câmera” na

    direção das domésticas, ganha plena

    potência quando uma das adolescen-

    tes aparece diante da câmera usando

    a lente como espelho, ajeitando seu

    cabelo antes de começar a gravar a

    entrevista com sua doméstica. O “gi-

    rar a câmera” na direção da domésti-

    ca encerra um gesto ritual que acio-na novas significações. A “patroinha”

    formula a primeira pergunta: “como

    chegou a São Paulo?” E ela respon-

    de: seu pai vendeu dois bois e deu

    o dinheiro para seu marido como

    “dote” de casamento. O marido a de-

    cepciona, aluga um quarto “debaixo

    do chão”, não a deixa sair de casa e

    o resto do dinheiro gasta em bebida.

    Neste ponto a “patroinha” comenta:

    “Que horror!”, tomando consciência

    da história no momento mesmo em

    que é narrada. A “patroinha” con-

    tinua: “bem, o primeiro casamento

    foi ruim, mas o segundo está ótimo,

    não?” E a empregada diz: “não, não

    está bem não...”, e se cala.

    A empregada está na cozinha fa-

    zendo um pão de trança. Coloca-o

    no forno. A família senta à mesa e a

    empregada ocupa um lugar de desta-que durante a cerimônia judaica que

    se desenrola. O pai fala em hebraico,

    uma moça explica para a empregada

    o ritual do pão, revelando que ele es-

    tá coberto para não ficar com ciúme

    do vinho. A empregada come do pró-

    prio pão que preparou para o ritual.

    Mais tarde ficamos sabendo que o

    fato de ela estar sentada à mesa é

    derivado de um sonho que teve e foicontado para “patroinha”: no sonho,

    participava da cerimônia do shabbat.

    Propiciado pelo filme, seu sonho vira

    realidade e ela está sentada à mesa,

    comendo o pão e tomando o vinho.

    Na mesma chave do conhecimento e

    da inversão de papéis, a “patroinha”

    pergunta à empregada como ela ima-

    ginava que eram os judeus antes de ir

    trabalhar naquela casa. Impulsiona-da por ocupar o centro da filmagem,

    responde com franqueza: “achava que

    era gente ruim... já tinha trabalhado

    para uns judeus e tinha sido muito

     ju diada” . Na cont inui dade, diz que

    quando começou a trabalhar na casa

    estranhou a comida, era fraca, não

    sustentava, e depois foi se habituan-

    do, gostando e, agora, faz a comida

  • 8/19/2019 Doméstica - Resenha Marco Antonio Goncalves

    5/9

    603

    resenha | marco antonio gonçalves

    e diz que adora. Interessante ressal-

    tar que este “se habituar” enfatiza

    um processo de transformação que

    sofre ao passar a conviver com sua

    nova “família”, na casa em que passa

    a trabalhar. O “habituar”, o “acostu-

    mar-se” parecem categorias-chave na

    experiência da doméstica que, reme-

    tida ao universo da casa, da família,

    da intimidade, pode se transformar

    através de um processo de “familiari-

    zação”, sendo, portanto, afetada, mu-dando de gosto, modificando seu mo-

    do de compreender o mundo. Porém,

    a transformação engendrada pela do-

    méstica é de mão dupla: ao mesmo

    tempo em que é criada (transformada

    pela relação), cria (os filhos dos pa-

    trões; a comida).

    Uma outra doméstica, de toalha

    na cabeça, escuta reagge e dança. A

    patroa vem até a sala e pede para elaabaixar o volume. Aparece varrendo

    debaixo do sofá, tirando o pó, arru-

    mando a casa durante a madrugada.

    A empregada passou a ter hábitos

    noturnos, trabalha enquanto a casa

    dorme. Este bloco revela a cumplici-

    dade entre quem filma e quem é fil-

    mada, uma relação de intimidade que

    garante o sucesso desta personagem

    que se mostra alegre, extrovertidae, ao mesmo tempo, triste e trágica.

    Sua fala tem humor e violência, ab-

    negação e crítica. Escuta no celular o

    hino do seu time de futebol, dorme

    apoiada na máquina de lavar e, às

    23h54, dorme debruçada sobre o sofá

    enquanto o limpava. Trabalha nesta

    casa há 13 anos e diz que já passou

    mais tempo na casa dos patrões do

    que passou com sua mãe; tem sau-

    dade de casa quando fica sozinha no

    quarto, mas sua casa tem tanto pro-

    blema que prefere ficar longe. Vai pa-

    ra casa de 15 em 15 dias, dependendo

    das necessidades da família. Diz que

    ficou três meses sem tirar folga cui-

    dando da avó da “patroinha”, e nunca

    imaginou que estes seriam os últimos

    meses de vida de seu próprio filho,

    tragicamente assassinado. Faz quei-

    xa, chora e diz que se sentiu rouba-da pelo trabalho. Mostra seu quarto,

    apresenta o colchão ortopédico e o

    ventilador que ganhou da patroa, di-

    zendo que ali se sente em casa! Frase

    proferida com ambiguidade e jamais

    saberemos se está ironizando “o sen-

    tir-se em casa” ou se está falando a

    verdade, provavelmente as duas coi-

    sas simultaneamente.

    A adolescente diz que Lena, aempregada, é como se fosse uma ir-

    mã, para quem conta seus segredos,

    suas transas amorosas. A emprega-

    da aparece arrumando o quarto da

    adolescente enquanto a mãe des-

    ta, a patroa, cuida do bebê, filho da

    empregada. A adolescente recorda o

    modo como sua mãe anunciou que a

    empregada ia ter um filho: “a famí-

    lia vai aumentar”. A empregada é fa-lada pela patroa, é quem narra uma

    relação, contando que Lena, a em-

    pregada, nasceu na fazenda de sua

    família, viu Lena pequena e quando

    cresceu a patroa a trouxe para Sal-

    vador. A – “patroinha” complementa,

    dizendo que a relação com a empre-

    gada é muito boa, “não é uma rela-

    ção de patroa/empregada, é mais do

  • 8/19/2019 Doméstica - Resenha Marco Antonio Goncalves

    6/9

    604

    doméstica: uma etnografia indiscreta

      s  o  c  i  o  l  o

      g  i  a  &  a  n  t  r  o  p  o  l  o  g  i  a

       |   r  i  o

      d  e  j  a  n  e  i  r  o ,  v .  0

      5 .  0  2  :  5  9  9  –   6  0  7 ,  a  g  o  s  t  o ,  2  0  1  5

    que isso, ela é da família, aqui não

    tem isso, todo muito senta junto na

    mesa...”. O quarto de Lena é apre-

    sentado, com a ironia peculiar que

    constitui esta relação, como “suíte

    master”. O quarto fica fora da casa e

    parece apertado através das lentes da

    câmera: uma enorme tv, cama, berço,

    estante, quadro contendo fotos de

    sua filha, Fernandinha, desde que

    nasceu. Fotos que revelam a relação

    de proximidade com a família: a pa-troa trocou a primeira fralda, deu o

    primeiro banho, e diz “Lena é minha

    filha”, emociona-se ao falar do nas-

    cimento de Fernandinha, concluindo

    que quando se “dá para uma pessoa...

    se entrega por inteira...”. Porém, nes-

    te mesmo instante, retoma o discur-

    so de patroa e diz que Lena “não é

    eterna aqui, se os nossos filhos não

    são eternos, quanto mais uma pessoaque ajuda...”. Admite que o trabalho

    doméstico cansa, é repetitivo e que a

    empregada, um dia, pode não querer

    mais fazê-lo: “no momento em que

    ela quiser sair a gente vai sentir mui-

    to, mas sendo a vontade dela...”. Lena,

    em seu quarto, passa creme hidratan-

    te nas pernas enquanto assiste à tv,

    pega a sua filha no berço e a põe para

    dormir em seu colo.Agora estamos em um ambiente

    popular, em um bairro periférico da

    cidade de São Paulo. Uma menina ne-

    gra chamada Bia é cuidada por Flávia

    que é a empregada da empregada.

    Este bloco coloca o paradoxo da “em-

    pregada da empregada” que resume,

    por si só, todas as contradições desta

    complexa definição do que significa

    doméstica na sociedade brasileira.

    Flávia e Bia brincam no sofá escu-

    tando rádio. Dá banho no menino,

    irmão de Bia, que tem problemas de

    locomoção. Flávia conta para Bia sua

    estória: o marido a estava traindo

    com uma garota de programa. Sofreu

    muito nessa vida, ficou grávida de

    trigêmeos, apanhou do marido, levou

    chutes na barriga e perdeu os bebês.

    Teve hemorragia na hora, ficou com

    febre e desmaiou de dor, acordandono hospital. Depois deste episódio

    não quer mais saber de homem. Diz

    que a patroa é boa, e ela também é

    empregada: “quando não vê as coisas

    direitas reclama, mas me ajuda mui-

    to”. Toma a cena, passa a ser o centro

    do interesse do filme: segura o celu-

    lar como um microfone e canta, dan-

    do um show para a câmera e para as

    crianças. Jeniffer, de 16 anos, faz o curso mé-

    dio, tem aulas de teatro e diz que é

    cuidada pelo seu “anjo da guarda”,

    que é o empregado doméstico. O em-

    pregado aparece limpando o cocô do

    cachorro, as lixeiras do banheiro, la-

    vando a louça. Jeniffer, por trás da câ-

    mera, conta que ele chegou à sua casa

    numa época complicada de sua vida,

    tinha se separado da mulher, uma his-toria triste: “Minha mãe presenciou

    tudo isso e chamou ele para cuidar de

    mim”. “Ele não se abre, vive no mundo

    dele”. Dia de Natal. O empregado está

    presente na festa, todos se abraçam e

    festejam, se beijam e comemoram.

    Sérgio serve seu prato de comida, se

    afasta e come sozinho na varanda. Es-

    te bloco, mais uma vez, revira o signi-

  • 8/19/2019 Doméstica - Resenha Marco Antonio Goncalves

    7/9

    605

    resenha | marco antonio gonçalves

    ficado de doméstica, um homem, um

    “anjo da guarda” é quem realiza as

    tarefas da casa.

    Numa outra história, um adoles-

    cente fala para sua empregada que

    vai fazer um documentário sobre sua

    vida e pede que ela assine a autori-

    zação. Pergunta: “tudo bem?”. Ela diz

    que sim, assina o papel e continua

    secando os pratos. A patroa, quando

    adentra a cozinha, pergunta sobre

    o capítulo da novela que deixou deassistir. Sentada à mesa, pede um

    garfo e uma faca, enfatizando o “por

    favor”. A patroa diz que conhece Lu-

    cimar desde que nasceu porque ela é

    filha da caseira da sua bisavó. Mos-

    tram fotos de Lucimar pequena com

    a patroa, as duas de mãos dadas, de-

    pois meninas, brincando juntas na fa-

    zenda da bisavó. A patroa conta que,

    quando ia passar férias em Valença,a primeira coisa que pedia era para

    brincar com Lucimar e que jamais

    imaginou que ela fosse um dia tra-

    balhar como empregada em sua casa.

    Reconhece que no começo foi difícil:

    tinha que se impor como patroa, pois

    a considerava uma amiga. Depois

    o adolescente pergunta a Lucimar

    quando foi que começou a trabalhar.

    Ela diz que foi aos 14 anos, já sabia

    arrumar, passar roupa, cozinhar. Lu-

    cimar está tímida. O menino pergunta

    o que ela sabe fazer melhor. Respon-

    de que faz bolo muito bem. Ela sor-

    ri. Ele pergunta se ela gosta de usar

    uniforme, ela diz que sim. “Você se

    sente incomodada de andar de uni-

    forme na rua?” “Não, não sinto não”.

    “A relação com minha mãe ficou es-

    tranha depois que você veio trabalhar

    aqui, depois da amizade?”. Lucimarfaz uma pausa e diz que a relação vai

    amadurecendo e complementa que

    tem a oportunidade de estar no Rio

    de Janeiro, considera que tem liberda-

    de e declara que “gosta disso”.

    Olha o álbum de fotos que teste-

    munham sua relação com sua amiga/

    patroa e timidamente, sorrindo, pas-

    sa as páginas devagar. Num momen-

    to deste bloco, enquanto as imagenspercorrem as fotos da infância das

    duas amigas, hoje patroa e empre-

    gada, surge a música Blowin’ in the

    wind, cantada por Bob Dylan, que re-

    sume de uma só vez a pergunta pos-

    ta pelo filme sobre o significado de

    doméstica na sociedade brasileira:

    “The answer, my friend, is blowin’ in the

    wind, the answer is blowin’ in the wind”.

    Recebida em 19/06/2015 | Aprovada em 10/07/2015

  • 8/19/2019 Doméstica - Resenha Marco Antonio Goncalves

    8/9

    606

    doméstica: uma etnografia indiscreta

      s  o  c  i  o  l  o

      g  i  a  &  a  n  t  r  o  p  o  l  o  g  i  a

       |   r  i  o

      d  e  j  a  n  e  i  r  o ,  v .  0

      5 .  0  2  :  5  9  9  –   6  0  7 ,  a  g  o  s  t  o ,  2  0  1  5

    Marco Antonio Gonçalves é professor do Programa de Pós-

    Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade

    Federal do Rio de Janeiro (PPGSA-UFRJ), Pesquisador do

    CNPq, Doutor em Antropologia pelo Programa de Pós-

    Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ.

    Entre seus principais livros estão: Traduzir o outro: etnografia

    e semelhança (2010); O real imaginado. Etnografia, cinema e

    surrealismo em Jean Rouch (2008); O mundo inacabado: ação e

    criação em uma cosmologia amazônica (2001).

  • 8/19/2019 Doméstica - Resenha Marco Antonio Goncalves

    9/9

    607

    resenha | marco antonio gonçalves

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    Buarque de Holanda, Sérgio. (1936). Raízes do Brasil. Rio de

     Janeiro: José Olympio.

    Freyre, Gilberto. (1936). Sobrados e mucambos. Decadência do

     patriarcado rural e desenvolvimento urbano . Rio de Janeiro:

     José Olympio.

    Freyre, Gilberto. (1933). Casa grande e senzala. Formação da

     família brasilei ra sob o regime da economia patriarcal. Rio de

     Janeiro: José Olympio.

    Rezende, Claudia Barcellos. (2001). Entre mundos: sobreamizade, igualdade e diferença. In: Velho, Gilberto & Kus-

    chnir, Karina (orgs.). Mediação, cultura e política. Rio de Ja-

    neiro: Aeroplano.

    Velho, Gilberto. (2012). O patrão e as empregadas domésti-

    cas. Sociologia, Problemas e Práticas, 69, p. 13-30.