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Domingo à tarde (Do diário de uma professora) Sol a nascer... E a rua cheia de vento faz lançar a poeira seca na berma dos passeios de cimento. Sai o garotio da televisão, numa revoada selvagem e barulhenta, e, por momentos, a porta da taberna é um vozear de coisas e ditos que ninguém entende. As mulheres arrastam os chinelos e gesticulam. Os homens chupam o cigarro da marca duvidosa; e as crianças, de olhos transparentes, narizes ranhosos e bocas untadas de mel dum rebuçado de tostão, desaparecem aos grupos nas cangostas laterais, sempre ligeiros, mas nunca silenciosos. É domingo à tarde. E é precisamente ao domingo que eu me perco em conjeturas, à janela, mirando a rua lés a lés, bisbilhotando comigo só. Não sou uma má língua. Mas gosto de bisbilhotar a sós com os meus botões... Às vezes, disponho da vida de cada um desses garotos, que saem da televisão atrás das mães, com os olhos cheios de imagens bonitas e a boca gostosa dum rebuçado barato... Se tivesse um punhado de estrelas, poderia espelhá-las nos olhos deles!... Dos pais... Dos pais, francamente, não gosto. Os pais, desculpem, mas estragam sempre tudo... «-Ó pai, vistes aquele home que inté deitava fogue por a boca?! Lindo num era?» «- Cala-te rapaz! Levas um bofetão que inté te biro!...» A criança emudece. Afasta-se. E se mora cá na rua, para os meus lados, caminha deixando o passeio todo ao homem, que Deus lhe deu como pai e que vai ali ao lado dela, encostadinha à parede a arrastar os sapatos comprados em segunda mão, de mãos nos bolsos, a fazer tilintar a navalha de bico e uma moeda de cinco escudos, com cara de pessoa crescida (crescida desde o berço) e ar de quem quer chegar com o nariz ao telhado do meu 1.º andar... As mães... As mães são mais compreensivas. «-Ó mãe, tu bistes aquela menina com aquela boneca tão grandi a andar pela mão... Quem me dera uma».

Domingo à tarde

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Page 1: Domingo à tarde

Domingo à tarde

(Do diário de uma professora)

Sol a nascer... E a rua cheia de vento faz lançar a poeira seca na berma dos passeios de cimento. Sai o garotio da televisão, numa revoada selvagem e barulhenta, e, por momentos, a porta da taberna é um vozear de coisas e ditos que ninguém entende. As mulheres arrastam os chinelos e gesticulam. Os homens chupam o cigarro da marca duvidosa; e as crianças, de olhos transparentes, narizes ranhosos e bocas untadas de mel dum rebuçado de tostão, desaparecem aos grupos nas cangostas laterais, sempre ligeiros, mas nunca silenciosos. É domingo à tarde. E é precisamente ao domingo que eu me perco em conjeturas, à janela, mirando a rua lés a lés, bisbilhotando comigo só. Não sou uma má língua. Mas gosto de bisbilhotar a sós com os meus botões... Às vezes, disponho da vida de cada um desses garotos, que saem da televisão atrás das mães, com os olhos cheios de imagens bonitas e a boca gostosa dum rebuçado barato... Se tivesse um punhado de estrelas, poderia espelhá-las nos olhos deles!... Dos pais... Dos pais, francamente, não gosto. Os pais, desculpem, mas estragam sempre tudo... «-Ó pai, vistes aquele home que inté deitava fogue por a boca?! Lindo num era?» «- Cala-te rapaz! Levas um bofetão que inté te biro!...» A criança emudece. Afasta-se. E se mora cá na rua, para os meus lados, caminha deixando o passeio todo ao homem, que Deus lhe deu como pai e que vai ali ao lado dela, encostadinha à parede a arrastar os sapatos comprados em segunda mão, de mãos nos bolsos, a fazer tilintar a navalha de bico e uma moeda de cinco escudos, com cara de pessoa crescida (crescida desde o berço) e ar de quem quer chegar com o nariz ao telhado do meu 1.º andar... As mães... As mães são mais compreensivas. «-Ó mãe, tu bistes aquela menina com aquela boneca tão grandi a andar pela mão... Quem me dera uma».

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«-Tem-me juige, mulhêre! Olha o dêmo, para que havia de dá-le à rapariga! Olha, eu num posso dar-te. Pêde-la ao teu pai...». E a miúda ri alto e salta. «- Ai, que bou ter uma bonequinha... Bou escrevêri ao pai pò Brazile...» E desaparece atrás da mãe. Possivelmente, a boneca não virá mais. E o pai também não. Mas o sonho ficou vivo na miúda. E há de crescer com ela numa promessa branca... Casará. Bonecos de carne virão encher-lhe os braços feitos berço. A mãe há de continuar agarrada a semana toda à gamela do peixe, a arrastar os chinelos, a sacudir as ancas fartas, a tirar da garganta um pregão rouco, apregoando a sardinha do nosso mar. A filha é engraçada. Loira e branca. E fica bem de tranças caídas e pés descalços. Mas eu temo, um dia vê-la transformada. E toda será outra diferente, igual a tantas que me passam à porta em dias de festa. E talvez me faça murmurar: Menina da lua De saia travada Travada e curtinha... Menina parada E toda a esquina De saltos tão altos Cinta tão franzina Boneca -menina Menina da rua!... E hei de ter pena... E saudades de vê-la como agora, de tranças caídas e pés descalços! Que o luxo destas meninas da lua pode significar a noite mais escura! Os moços, esses hão de crescer... Trigueiros, delgados, teimosos, rudes. Braços de ferro para dobrar redes... Olhos de fogo para espiar marés... Pobres, estouvados, invejosos, talvez. Mas barulhentos. Que a vida do mar é ruído, fadiga, sol, luz, imensidade e... perigo! Que a vida do mar é luta por um pedaço de pão e alguma alegria... E gosto de bisbilhotar... Chego a zangar-me com destinos imprevistos que a imaginação me traz.

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A eles, aos garotos, de nariz ranhoso, boca melosa dum rebuçado barato, queria vê-los sempre pequenos, a sair alegres da televisão, com os olhos brilhantes de imagens bonitas. Aos pais... Desculpem, mas os pais estragam sempre tudo!...

Maria Helena Amaro In, «Maria Mãe», 1973, p. 110-116.

Data da conclusão da edição no blogue – 27 de março de 2013

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