176
ano III n. 5 novembro 2009

DOMÍNIOS DA IMAGEM VOL 05

Embed Size (px)

DESCRIPTION

CONTEÚDO DA REVISTA DOMÍNIOS DA IMAGEM VOL 05

Citation preview

ano III • n. 5 • novembro 2009

Domínios da Imagem

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, NOVEMBRO 2009

Revista do Laboratório de Estudos dos Domínios da Imagem na História (LEDI)do Departamento de História e vinculada ao Programa de Pós-graduação em

História Social da Universidade Estadual de Londrina

ISSN 1982-2766

REITOR: Wilmar Sachetin Marçal

VICE-REITOR: Cesar Antonio Caggiano Santos

DIRETOR DO CENTRO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS: Ludoviko Carnascialli dos Santos

CHEFE DO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA: Cristiano Gustavo Biazzo Simon

COORDENADOR DO MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL: José Miguel Arias Neto

EDITOR RESPONSÁVEL: Ana Heloísa Molina – UEL

COORDENADOR DO LEDI: Alberto Gawryszewski – UEL

CONSELHO CONSULTIVO

Daniel Russo – Université de Borgnone • Eddy Stols – Katholieke Universiteit Leuven – Bélgica •Francisco Alambert – USP • Mauro Guilherme Pinheiro Koury – UFPB • Patrice Olsen – Illinois StateUniversity • Renato Lemos – UFRJ • Rodrigo Patto Sá Motta – UFMG • Terezinha Oliveira – UEM •Ulpiano Bezerra Menezes – USP

CONSELHO EDITORIAL E CIENTÍFICO

Agbenyega Adedza – Illinois State University • Ana Cristina Teodoro da Silva – UEM • Ana Maria Mauad –UFF • Annateresa Fabris – USP • Annie Duprat – Université de Versailles Saint-Quentin-en-Yvelines •Áureo Busetto – Unesp • Cláudia Musa Fay – PUC / RS • Darío Acevedo Carmona – Universidad Nacionalde Colombia • Luciene Lemkhul – UFU • Luiz Guilherme Sodré Teixeira – Fundação Casa de Rui Barbosa /RJ • Miriam Nogueira Seraphim – Unicamp • Miriam Paula Manini – UnB • Renata Senna Garraffone –UFPR • Solange Lima Ferraz – Museu Paulista • Vânia Carneiro Carvalho – Museu Paulista

PROJETO GRÁFICO E EDITORAÇÃO: Kely Moreira CesárioIMAGEM DA CAPA: Fotografia da região de Londrina. Década de 1930. Fotógrafo: José Juliani. Acervo Museu Histórico de Londrina

– Universidade Estadual de Londrina.

TIRAGEM: 500 exemplares

Universidade

Estadual de Londrina

Domínios da imagem / Universidade Estadual de Londrina. Centro de Letras e CiênciasHumanas. Departamento de História. Laboratório de Estudos dos Domínios da Imagemna História. Programa de Pós-Graduação em História Social. Londrina, PR.

Ano I – n. 1 – nov. 2007Semestral

ISSN 1982-2766

1. Imagem – Estudos – Periódicos. 2. Imagem – História Periódicos. I. UniversidadeEstadual de Londrina. II. Centro de Letras e Ciências Humanas. III. Programa de Pós-Graduação emHistória Social.

CDU 2

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

Todos os artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores, não cabendo qualquerresponsabilidade legal sobre seu conteúdo à revista.

Pede-se permuta • Pédese canje • On demande échange • We wask for exchange • Si richiedle lo scambio

Sumário

Uma origem para os carmelitas: a azulejaria do profeta Elias na Igreja de Nossa Senhora doCarmo da Paraíba colonial ............................................................................................................. 7André Cabral Honor

L’imagerie populaire ......................................................................................................................23Annie Duprat

Imagens de Babel na Idade Média: entre a arquitetura real e o imaginário da arquitetura .......33Artur Simões Rozestraten

“Lápices sin punta” – Imagens da infância e da adolescência na Guerra Civil Espanhola ........47Carla Damêane P. de Souza

Imagens da cidade, imagens construídas: as contradições da modernidade ..........................59Edilaine Custódio Ferreira

Novo Realismo e Internacional Situacionista: um estudo do questionamento da imagempictórica pelas neovanguardas francesas ....................................................................................67Gabriel Zacarias; Tiago Machado

Imágenes gráficas y fotografías en una experiencia escolanovista (Rosario, Argentina: 1935-1950) ..............................................................................................................................................83María del Carmen Fernández; María Elisa Welti; Rubén Biselli

De braços abertos num cartão postal? Duas favelas da zona sul carioca na “era dasremoções” pelas lentes do Correio da Manhã ...........................................................................95Mauro Henrique de Barros Amoroso

A fotografia numa pesquisa sobre a história do Carnaval de Salvador ................................. 109Milton Araújo Moura

Os símbolos do CNPq e sua construção imaginária ................................................................ 123Nancy A. Campos Muniz

A imagem de ou)rano&v e o providencialismo moralizante: platônicos, estóicos e epicúreosno último terço do século IV ...................................................................................................... 137Rafael Virgílio de Carvalho

Entre o contexto e a linguagem: o discurso fotográfico e a pesquisa histórica .................... 153Richard Gonçalves André

RESENHAS

BORTULUCCE, Vanessa Beatriz. A arte dos regimes totalitários do século XX. Rússia eAlemanha ..................................................................................................................................... 165por Renata Senna Garraffoni

MACHADO JUNIOR, Cláudio de Sá. Imagens da sociedade porto-alegrense: vida pública ecomportamento nas fotografias da Revista do Globo (década de 1930). ............................ 169por Zita Rosane Possamai

Imagem da capa

A foto de capa apresenta uma cena bastante representativa da história da ocupação do

norte do Paraná, e faz parte do acervo do Museu Histórico de Londrina, da Universidade

Estadual de Londrina. Trata-se de uma figueira branca, árvore de grandíssimo porte característica

da região, junto a qual posam trabalhadores e, provavelmente, colonos, na década de 1930.

Imagens como esta difundiram uma perspectiva de terra fértil e pujança que ajudaram a

construir o ideal de desbravamento da floresta nativa. Colonizada pela empresa Companhia

de Terras Norte do Paraná a partir de 1929, a região passou por um processo de desmatamento

que deu lugar à produção agrícola e aos centros urbanos.

José Juliani, filho de migrantes italianos, proveniente do interior do estado de São Paulo,

como muitos outros que vieram para Londrina em busca de oportunidades, trouxe, no entanto,

uma habilidade especial, a da execução de fotografias. Por isso foi contratado pela empresa

colonizadora.

No final dos anos 1970 seu acervo foi adquirido pelo Museu Histórico, principal centro de

documentação da região, contando, ao todo, 380 negativos de vidro e 435 fotografias. A

coleção é uma das mais importantes quanto a registros visuais do período, sendo especialmente

valorizada por apresentar as mudanças da paisagem.

Profa. Dra. Angelita Marques Visalli

Diretora do Museu Histórico de Londrina

Docente do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, NOVEMBRO 2009 5

Apresentação

A revista Domínios da Imagem em sua quinta edição vem confirmar um espaço de diálogo

que envolve professores e pesquisadores da imagem, em diversos suportes, propondo outros

olhares sobre o campo das visualidades, em recortes temporais abrangentes.

Nesse número, André Cabral Honor analisa a azulejaria na igreja de Nossa Senhora do

Carmo da Paraíba colonial apontando uma outra fonte para o estudo desse período da história

brasileira.

Artur Simões Rozestraten enfoca as imagens da Babel na Idade Média e sua relação com

o espaço arquitetônico.

Annie Duprat trata da difusão de imagens populares, entre outras, as publicitárias, na

construção dos imaginários sociais da população da França, a partir do século XVII.

Carla Damêane P de Souza propõe uma perspectiva da Guerra Civil Espanhola sob os

olhares de desenhos de crianças, poemas e filme, entretecendo fios da história e da memória.

Em “Imagens da cidade, imagens construídas: as contradições da modernidade”, Edilaine

Custódio Ferreira analisa o discurso produzido pelo jornal “O Diário do Norte do Paraná” a

partir do estudo da imagem fotojornalística.

Novo Realismo e Internacional Situacionista são os motes de Gabriel Zacarias e Tiago

Machado para o questionamento da imagem pictórica pelas neovanguardas francesas,

enquanto Maria del Carmen Fernández, María Elisa Welti e Rubén Biselli investigam as

imagens gráficas e fotografias da Escuela Serena, uma experiência escolanovista na Argentina

entre 1935 a 1950.

Pelo viés fotográfico, recortando o tema favela, Mauro Henrique de Barros Amoroso analisa

as representações sociais deste tema no Rio de Janeiro, pela cobertura fotojornalística do

Correio da Manhã, ao longo da década de 1960.

Milton Moura aborda as questões metodológicas relacionadas à utilização da fotografia

como documento em uma pesquisa sobre o Carnaval de Salvador.

Os símbolos do CNPq e sua construção imaginária no período dos governos militares são

os temas de Nancy Campos Muniz.

Rafael Virgílio de Carvalho verifica a representação da imagem do céu por platônicos,

estóicos e epicúreos, no último terço do século IV.

A fotografia, seu discurso e a pesquisa histórica são o campo em que Richard Gonçalves

André embrenha-se para refletir sobre essa fonte enquanto objeto de análise histórica.

Na sessão resenha, Renata Senna Garraffoni nos apresenta o texto de Vanessa Bortulucce

sobre a arte dos regimes totalitários do século XX, no caso, Rússia e Alemanha, enquanto, Zita

Possamai analisa o texto de Cláudio de Sá Machado Júnior acerca das imagens da sociedade

porto-alegrense, pelas fotografias da Revista do Globo, na década de 1930.

Nessa perspectiva de ampliação de olhares, desejamos a todos uma boa leitura!!

Ana Heloisa Molina

Isabel Bilhão

UMA ORIGEM PARA OS CARMELITAS: A AZULEJARIA DO PROFETA ELIAS NA IGREJA DE NOSSA SENHORA DO CARMO...

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 7-22, NOVEMBRO 2009 7

Recebido em: 09/06/2009 Aprovado em: 05/08/2009

Uma origem para os carmelitas: a azulejariado profeta Elias na Igreja de Nossa Senhora

do Carmo da Paraíba colonial

RESUMO:

Surgida no século XII, a Ordem do Carmo adota como seu fundador uma das figuras maisimportantes do Antigo Testamento e da história católica: o Profeta Elias. O lapso temporalentre o surgimento efetivo dos carmelitas e a aparição do profeta suscitou diversos debatesna Igreja Católica sobre a asseveração do profeta como fundador dos carmelitas. O presenteartigo procura realizar um estudo iconológico de dois painéis de azulejaria da Igreja de NossaSenhora do Carmo na cidade da Paraíba colonial – atual João Pessoa – que retratamimportantes passagens da vida do profeta Elias. Conectando essas imagens a outros elementosimagéticos da igreja é possível visualizar, dentro da cultura histórica carmelita, a importânciaque a figura do profeta Elias tem como afiançador da primazia da antiguidade da OrdemCarmelita.

PALAVRAS-CHAVE: azulejaria; carmelitas; iconologia.

ABSTRACT:

Appeared in century XI, the Order of the Carmo adopts as its founder one of the figures mostimportant of the Old Testament and history catholic: Elias Prophet. The secular lapse entersthe effective sprouting of the Armelites and the appearance of the prophet excited diversedebates in the Church Catholic on the affirmation of the prophet as founding of the Armelites.The present article looks for to carry through a iconologic study of two panels of tiling of theChurch of Ours Lady of the Carmo in the city of the “Paraiba colonial” – current João Pessoa– PB – that they portray important tickets of the life of Elias Prophet. Connecting theseimages to other imagetic elements of the church it is possible to visualize, inside of theCarmelite historical culture, the importance that the figure of Elias prophet has as warranter ofthe priority of the antiquity of the Carmelite Order.

KEYWORDS: tiles; carmelites, iconology.

André Cabral Honor

Mestre em História pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professor do Instituto de EducaçãoSuperior da Paraíba – IESP. Autor de, entre outros artigos, “Educação e preservação de sítiosarqueológicos”. História & Ensino, v. 13, 2007.

ANDRÉ CABRAL HONOR

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 7-22, NOVEMBRO 20098

Uma origem para os carmelitas:a azulejaria do profeta Elias na Igreja de Nossa Senhora doCarmo da Paraíba colonial

Um nascimento nunca é fácil. E nãopoderia ser diferente, já que este inicia o fiode uma História que se propagará por tempoindeterminado. Seja uma criança, umainstituição ou uma crença, o seu fim éinevitável, porém imprevisível. O historiador,muitas vezes movido pela paixão inicial quea disciplina suscita, tende a acreditar que porpossuir aquele fio de uma História inteiro emsuas mãos, seu trabalho de interpretação serácompleto e perfeito. O que talvez ele nãosaiba é que o mesmo decorrer de tempo quelhe permite colocar aquela linha em cima damesa de estudos é responsável por fragmentá-la. Olhando de perto, ele percebe que o fionão está inteiro: ele é feito de fiapos, merasfibras, quebradiças e subdivididas.

Olhando atentamente para essa linha, ohistoriador encontra mais dúvidas do querespostas concretas. Óbvio que, ao escreversuas suposições, ele irá preenchê-lo comargumentos e provas que lhe permitirãoconstruir um relato. Tal qual a linha históricadissecada, um bom texto historiográfico,quando analisado de perto, é cheio de pontasque podem levar por apaixonantes einusitados caminhos. Cabe ao leitor, leigo oucientista, aventurar-se a percorrê-los. Aorigem da Ordem Carmelita é uma dessaslinhas históricas extremamente fragmentadasem que mito e realidade se misturam. Nestesentido o profeta Elias aparece nas alegorias

da Igreja de Nossa Senhora do Carmo daParaíba colonial como um de seus fundadoresmesmo tendo atuado no ano IX a.C., ou seja,muito antes da constituição da própria IgrejaCatólica.

Em 1675 eram publicados os volumes daActa Sanctorum, uma espécie de compêndioda história da Igreja Católica Romana quecausou um verdadeiro escândalo dentro daOrdem Carmelita. Escritos por representantesda corrente ideológica intitulada de reaçãofeudal – que tinha como principal expoenteo historiador francês Conde de HenriBoulainvilliers (1658-1722), defensor danobreza feudal – os livros colocavam “[...] quea origem dos carmelitas não ia além do finaldo século XII, acrescentando que o padreBertoldo tinha sido seu primeiro general” 1. Areação dos carmelitas é imediata: os volumessão entregues ao Tribunal da Inquisição, querapidamente condenou essa contestação dapaternidade da ordem. Apesar dacondenação do Santo Tribunal, o PapaInocêncio XII não ratifica esta sentença.

A partir de então é criada uma controvérsiadentro e fora da Ordem Carmelita sobre suapaternidade e antiguidade. Para compreendera importância dessa questão para os carmelitase a necessidade que a ordem missionária tinhaem conciliar seus dois “fundadores”, énecessário ir até o lugar em que o santo e oprofeta realizaram suas maiores obras: umpromontório intitulado Carmelo.

1 Texto original: “[...] que el origen de los carmelitas no iba más allá de los fines del siglo XII, añadiendo que el padre Berthold habíasido su premer general.”. SEBASTIAN, Santiago. Contrarreforma y Barroco. Madrid: Alianza Forma, 1989, p. 240. As traduções emespanhol são de Maria Luiza Texeira Batista (DLEM/UFPB)

UMA ORIGEM PARA OS CARMELITAS: A AZULEJARIA DO PROFETA ELIAS NA IGREJA DE NOSSA SENHORA DO CARMO...

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 7-22, NOVEMBRO 2009 9

O Monte Carmelo se eleva entre os confinsda Galiléia e Samaria, na Palestina. Limitapelo norte com Haifa, cidade marítima; pelosul com as terras de Cesaréia; pelo leste coma planície do Esdrelon; e pelo oeste pelo MarMediterrâneo.2

Para o cristianismo o Monte Carmelo nãoé um lugar ordinário. Ele se encontra enraizadoà cultura cristã como um ambiente sagradopor ter sido o local em que o profeta de ação3

Elias comprovou a fé num Deus verdadeiro,Javé4.

Sobre as origens de Elias nada se sabe,exceto que ele foi um Thesbita; se originárioda Tisbe de Nephtali [1] (Tobit 1:2) [2] ou deThesbon de Galaad, como nosso texto indica,não há certeza absoluta, embora a maioriados acadêmicos, baseados no Septuagint[3] e em Josephus [4], considere a segundaopinião.5

Sua apresentação na Bíblia se faz deforma brusca. Sem nenhuma referênciaanterior, ele já surge como um importanteprofeta avisando ao rei Acab, que reinouIsrael de 874 a 853 a.C., que sua heresiaseria punida com um longo período de secano seu reino: “Elias, tesbita, um dos habitantes

de Galaad, disse a Acab: ‘Pela vida de Iahweh,o Deus de Israel, a quem sirvo: não haveránestes anos nem orvalho nem chuva, a nãoser quando eu ordenar”6.

Acab era filho de Amri – que de acordocom a Bíblia foi o rei que “fez o mal aos olhosde Iahweh, superando nisso todos os seusantecessores”7 – e assumiu o trono de Israelcom a morte de seu pai. Seus atos seriamainda mais pecaminosos do que os de Amri,agravados pelo fato de ter se casado comJesabel, filha do rei dos Sidônios, povo quecultuava o deus Baal.

Como se lhe não bastasse imitar os pecadosde Jerobão, filho de Nabat, desposou aindaJesabel, filha de Etbaal, rei dos Sidônios, epassou a servir Baal e adorá-lo. Erigiu-lhe umaltar no templo de Baal, que construiu emSamaria. Acab erigiu também um postesagrado e cometeu ainda outros pecados,irritando Iahweh, Deus de Israel, mais do quetodos os reis de Israel que o precederam.8

Elias pediu a um dos seus discípulos, denome Abdias, que fosse até Acab paraanunciar que o profeta se encontrava naregião e demandava uma audiência com orei. Acab aceitou o pedido e se encontrou com

2 SCIADINI, Frei Patrício. O Carmelo: História e espiritualidade. São Roque: Edições Carmelitanas, 1993., p. 11.3 Profetas de ação são aqueles que atuavam diretamente com a sociedade, distinguindo-se dos profetas escritores que faziam suas

profecias através de textos escritos.4 O Deus que aparecia para Elias pode ser chamado tanto Javé como Iawé. No hebraico antigo não existiam vogais, somente

consoantes, sendo assim, o nome do Deus bíblico era escrito como JHWH. Na fala—lembrando que, para os judeus, falar o nomede Deus era algo praticamente proibido devido a uma má interpretação do texto não usarás o nome dele em vão...—foramtransliteradas inúmeras formas sendo as mais conhecidas IeHoWaH (ou Jeová) e Iahweh (ou Javé), isso porque a junção da vogal,adicionada pela fala judaica com o “H”, formava o som do “J”. Portanto Javé e Iahweh se referem ao mesmo Deus. O nome Elias,em hebraico Eliyahu significa “JHWH é o meu Deus”. Fonte: BORRIELLO, L. et al. (dir.). Dicionário de Mística. Trad. Benoni Lemoset al. São Paulo: Paulus, 2003.

5 Texto original: “Of Elia’s origin nothing is know, except that he was a Thesbite; whether from Thisbe of Nephtali (Tobit 1:2) or fromThesbon of Galaad, as our texts have it, is not absolutely certain, although most scholars, on the authority of the Septuagint andof Josephus, prefer the latter opinion”. N.T. – [1] Naphtali (ou Nephtali) foi o sexto filho de Jacó e Bilhah. Também referido comouma das doze tribos de Israel. [2] Livro apócrifo da Bíblia. [3] Versão grega da Escritura Hebraica, datada do séc. III a.C., contendotanto a tradução do hebraico quanto material extra, considerado texto base do Velho Testamento nos primeiros anos da IgrejaCatólica Romana e ainda texto canônico para católicos ortodoxos. [4] General judeu e historiador que participou da revolta dosJudeus contra os romanos. Escreveu a História da Guerra Judaica, principal fonte sobre o Cerco de Masada (72-73). Fonte:KNIGHT, Kevin (Ed.). Catholic Encyclopedia. [S.l.: s.n.], 1907. Disponível em: <http://www.newadvent.org>. Acesso em: 26 abr.2008. As traduções do inglês são de Berttoni Cláudio Licarião (Yázigi-João Pessoa).

6 1 REIS. In: BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus, 2006. Cap. 17, vers. 1, p. 495.7 1 REIS. In: BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus, 2006. Cap. 16, vers. 25, p. 495.8 1 REIS. In: BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus, 2006. Cap. 1, vers. 31-33, p. 469.

ANDRÉ CABRAL HONOR

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 7-22, NOVEMBRO 200910

Elias que propôs uma espécie de desafio entreos dois deuses – Javé e Baal – no intuito dedesacreditar o baalismo.

Influenciado por sua esposa, Jesabel,Acab havia mandado matar todos os profetasde Javé9. Por ordem de Javé, Elias pediu aoRei Acab que reunisse os seus 450 profetasem frente ao Monte Carmelo, ondesacrificaria um novilho enquanto os profetasde Baal fariam o mesmo. Aquele deus queacendesse a fogueira com os pedaços dosacrifício seria o verdadeiro. Os profetas deBaal clamaram da manhã até o meio dia enada aconteceu. Somente após o visívelfracasso dos profetas de Baal, Elias decidiuagir:

Tomou doze pedras, segundo o número dasdoze tribo de Jacó, a quem Deus se dirigiadizendo: “Teu nome será Israel”, e edificoucom as pedras um altar ao nome de Iahweh.Fez em redor do altar um rego capaz deconter duas medidas de sementes. Empilhoua lenha, esquartejou o novilho e colocou-osobre a lenha.10

Ordenou que enchessem quatro jarrasgrandes de água e que as derramassem sobrea lenha e o holocausto por três vezes. Fez umaoração e o fogo caiu do céu queimando alenha, a carne, a pedra, o chão, secandototalmente a água da valeta. Aclamado, Eliasordenou à multidão que prendesse os 450profetas de Baal: “Elias lhes disse: ‘Prendei osprofetas de Baal; que nenhum deles escape!’e eles os prenderam. Elias fê-los descer paraperto da torrente do Quisom e lá osdegolou”11. No capítulo seguinte do relato

bíblico é dito que Elias matou todos os profetasà espada. Logo após, subiu ao alto do MonteCarmelo acompanhado de um servo, eprostrado no chão mandou que o mesmoolhasse por sete vezes seguidas em direçãoao mar. Na sétima vez o servo viu uma nuvem,era o fim da seca intensa que assolara aregião por três anos.

Toda essa seqüência de fatos encontra-serepresentada no painel E4 de azulejaria daIgreja de Nossa Senhora do Carmo, do ladoesquerdo12 abaixo de um púlpito (Figura 1).

Construída na segunda metade do séculoXVIII, ornamentada com elementos Barrocose Rococós, suas alegorias tem como objetivointrojetar dentro do cristão a cultura históricacarmelita no intuito de que sirva de modelode transformação do indivíduo na busca docaminho da salvação.

É possível ver ao centro, construído comdoze pedras, têm-se o altar, em cima do qualestão depositados os pedaços do novilhosacrificado, e ao seu redor a vala que Eliasmandou cavar. Dentro dela destacam-se afigura do profeta Elias de braços erguidos parao céu, e a imagem de três homens sem camisacom jarras nas mãos derramando a água sobrea vala e o novilho esquartejado.

Atrás se encontram os profetas de Baal,dois em destaque, muito bem vestidos, eminvocação ao seu deus num altar maior que odo plano principal (Figura 2). À direita está oRei Acab com a mão levantada usando umacoroa (Figura 3) e, ao fundo da imagem, nota-se a chuva torrencial que viria acabar com aseca imposta por Javé. Na parte inferior do

9 Apesar de Abdias falar que escondeu e cuidou de cem profetas de Javé (1 REIS, 18), Elias se declara o único sobrevivente dosprofetas de Javé. 1 REIS. In: BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus, 2006. Cap. 18, vers. 22, p. 497.

10 1 REIS. In: BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus, 2006. Cap. 18, vers. 31-33, p. 498.11 1 REIS. In: BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus, 2006. Cap. 18, vers. 40, p. 498.12 O referencial para localização dos painéis de azulejaria será a perspectiva de uma pessoa que entra na Igreja de Nossa Senhora

do Carmo pela porta principal. A letra é a localização, D (direito) e E (esquerdo), e o número (1 a 5) é a ordem crescente dos painéisna parede. Por exemplo: painel D4 - Quarto painel do lado direito.

UMA ORIGEM PARA OS CARMELITAS: A AZULEJARIA DO PROFETA ELIAS NA IGREJA DE NOSSA SENHORA DO CARMO...

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 7-22, NOVEMBRO 2009 11

painel vê-se uma pequena cartela, seguradapor dois pequenos anjos, com três pequenasflores (Figura 4) que podem ser identificadas

como orquídeas devido ao seu bulbo central(formação de pétalas no centro da flor que seassemelha a um cálice).

Figura 1. Painel E4 – Elias e os profetas. Acervo Pessoal.

Figura 3. Detalhe do painel E4 – Rei Acab.Figura 2. Detalhe do painel E4 – Profetas

ANDRÉ CABRAL HONOR

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 7-22, NOVEMBRO 200912

Segundo Chevalier e Gheerbrant, “SãoJoão da Cruz faz da flor a imagem das virtudesda alma, e do ramalhete que as reúne, aimagem da perfeição espiritual”13. Aorquídea, símbolo da fertilidade, alude à bemaventurança fecundada por Javé aos seusseguidores naquele momento. O própriosentido do verbo florescer é usado no AntigoTestamento como uma forma de união comDeus, como é possível ver nesta passagem:

Iahweh falou a Moisés e disse: “Fala aosisraelitas. Recebe deles, para cada casapatriarcal, uma vara; que todos o seus chefes,pelas suas casas patriarcais te entreguemdoze varas. Escreverás o nome de cada umdeles em sua própria vara; e na vara de Leviescreverás o nome de Aarão, visto que haveráuma vara para os chefes das casas patriarcaisde Levi. Tu as colocará em seguida na Tendade Reunião, diante do testemunho, onde eume encontro contigo. O homem cuja varaflorescer será o que escolhi; assim nãodeixarei chegar até mim as murmurações queos israelitas proferem contra vós.”14

O milagre operado por Elias, seguido doassassínio dos profetas de Baal, convenceuos súditos de Acab que Baal era um falso deus.Desta forma, o profeta restabelece, melhordizendo, faz novamente florescer em seu povoa união com Javé.

Após o milagre no Monte Carmelo, Eliasfoi obrigado a fugir para o deserto devido àsameaças de Jesabel. Segundo o relato bíblico,Javé apareceu para o profeta e ordenou quefosse até o deserto de Damasco e lá ungisseHazael como rei de Aram, Jeú como rei deIsrael e Eliseu, filho de Safat, como o profetaque iria lhe suceder. O primeiro encontro deElias e Eliseu não poderia ser mais significativo:

Partindo dali Elias encontrou Eliseu, filho deSafat enquanto trabalhava doze arapenes deterra, ele próprio no décimo segundo. Eliaspassou perto dele e lançou sobre ele seumanto. Eliseu abandonou seus bois, correuatrás de Elias e disse: “Deixa-me abraçar meupai e minha mãe, depois te seguirei.” Eliasrespondeu: “Vai e volta, pois que te fiz eu?”15

Figura 4. Detalhe do painel E4 – Cartela com flores.

13 CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1992, p. 437.14 NÚMEROS. In: BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus, 2006. Cap. 17, vers. 16-20, p. 228.15 1 REIS. In: BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus, 2006. Cap 19, vers. 19-20, p. 499.

UMA ORIGEM PARA OS CARMELITAS: A AZULEJARIA DO PROFETA ELIAS NA IGREJA DE NOSSA SENHORA DO CARMO...

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 7-22, NOVEMBRO 2009 13

O relato bíblico deixa claro que Eliseu seriao guia do povo do Reino de Israel, pois ele seachava conduzindo o décimo segundoarapene de terra quando Elias o encontrou,uma forma metafórica de se referir às dozetribos de Israel. O profeta Eliseu estavadiretamente ligado à tribo de Rúben,primogênito de Jacó, o que o faz descendenteda primeira ou da última tribo de Israel,dependendo da posição que se dê à tribo.

Ao vê-lo, Elias jogou seu manto sobreEliseu. O manto representa um ritual depassagem e um ato de proteção. O mongeou monja que veste o hábito da ordemrenuncia à vida terrena – Eliseu até se despedede seus pais – e se retira para junto de Deus.Como atributo dos reis, o manto alegoriza oato de “assumir uma dignidade, uma função,um papel, de que a capa ou manto éemblema”16. Naquele momento Elias atribui-lhe a função que Javé havia designado: a deseguir o profeta e protegê-lo para que depoispudesse substituí-lo. “[...]e o que escapar daespada de Jeú, Eliseu o matará”17, diz Javé aElias quando o manda tomá-lo comodiscípulo. A fala de Elias, “Vai e volta, poisque te fiz eu?”, reafirmava a importância dosimbolismo do manto como portador de umpapel, no caso, designado por Javé, que

também responde por proteger os profetasquando esses executam sua obra.

Acab morre com uma flechada numabatalha contra o rei da Síria e Acazias, seufilho, assume seu lugar como rei de Israel. Deacordo com a Bíblia18, ele também prestavao culto a Baal, seguindo os passos de seu paie de sua mãe, Jesabel. Logo após esteseventos Elias teria sido levado ao céu por Deusnuma carruagem de fogo envolta em umredemoinho:

E aconteceu que, enquanto andavam econversavam, eis que um carro de fogo ecavalos de fogo os separaram um do outro,e Elias subiu aos céus no turbilhão. Eliseuolhava e gritava: “Meu pai! Meu pai! Carro ecavalaria de Israel!”. Depois não mais o viu e,tomando as suas vestes, rasgou-as em duas.Apanhou o manto de Elias, que havia caído,e voltou para a beira do Jordão, onde ficou.19

Cena comum na iconografia religiosa, asubida do profeta Elias ao céu também seencontra representada na azulejaria da Igrejade Nossa Senhora do Carmo, maisespecificamente no painel D4 (Figura 5).Sentado numa carruagem puxada por cavalosque trotam sobre as nuvens, rodeados porsingelas labaredas de fogo (Figura 6), está Eliasusando o escapulário da Ordem Carmelita20.

16 CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1992, p. 589.17 1 REIS. In: BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus, 2006. Cap. 19, vers. 17, p. 499.18 1 REIS. In: BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus, 2006. Cap. 22, p. 503-505.19 2 REIS. In: BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus, 2006. Cap. 2, vers. 11-13, p. 508.20 O escapulário é uma peça de roupa, uma espécie de poncho oval e branco, que é usado por cima do hábito da ordem. Com o tempo,

foi substituído por pequenos cordões com duas imagens, uma em cada extremidade, chamados de bentinhos. Bastante popularesno Brasil, possuem o mesmo significado simbólico de proteção. Fonte: ALBUQUERQUE, Marcos Cavalcanti de. Hagiografiacarmelitana: espiritualidade. João Pessoa: A União, 2001.

ANDRÉ CABRAL HONOR

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 7-22, NOVEMBRO 200914

Ajoelhado perante a carruagem, usandouma capa comprida, encontra-se Eliseu debraços abertos recebendo o manto que Eliaslhe entrega. Ao fundo vê-se um rio,provavelmente o Jordão, local onde Eliseurealizou seu primeiro milagre como sucessorde Elias. Pouco antes de ser arrebatado parao céu, Elias havia aberto as águas do rio Jordãobatendo com seu manto em suas águas. Todaessa cena foi observada de longe porcinqüenta discípulos de Javé. Quando Eliassome no carro de fogo, Eliseu rasga as suasvestes, pega o manto caído e volta ao Jordão:

Figura 5. Painel D4 – Elias e Eliseu. Acervo Pessoal.

Figura 6. Detalhe do painel D4 – Labaredas.

Tomou o manto de Elias que havia caído delee bateu com ele nas águas dizendo: “Ondeestá Iahweh, o Deus de Elias?” Bateu tambémnas águas que se dividiram de um lado e deoutro, e Eliseu atravessou o rio. Os irmãosprofetas de Jericó viram-no a distância edisseram: “O espírito de Elias repousa sobreEliseu”; vieram ao seu encontro e seprostraram por terra, diante dele.21

Qualquer dúvida que pudesse pairar sobrea sucessão de Elias se extingue com aapropriação do manto de Elias por Eliseu,objeto que lhe permite realizar seu primeiromilagre. Como é dito pelos profetas de Javé,

21 2 REIS. In: BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus, 2006. Cap 2, vers. 14-15, p. 508.

UMA ORIGEM PARA OS CARMELITAS: A AZULEJARIA DO PROFETA ELIAS NA IGREJA DE NOSSA SENHORA DO CARMO...

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 7-22, NOVEMBRO 2009 15

“O espírito de Elias repousa sobre Eliseu”, oque torna a figura de Eliseu indissociável deseu mentor, tanto que, no altar-mor da Igrejado Carmo (Figura 7), os dois aparecem ladoa lado nas laterais do altar, dividindo a cena –nenhum santo tem essa honra – com NossaSenhora do Carmo. Contudo vale lembrar quesuas imagens encontram-se abaixo da santa,como se eles abrissem espaço para aglorificação da grande mãe dos carmelitas. 22

Na parte inferior do painel, existem doisanjos que seguram uma cartela com aiconografia de uma árvore (Figura 8). Elaconecta o céu à terra devido a seucrescimento vertical. Da mesma forma, acarruagem que arrebatou Elias também é umsímbolo de ligação entre o terreno e o divino,já que ela foi mandada por Javé para levar oprofeta ao céu. Como as folhas secam e caemdurante o outono para depois se renovarem,

Figura 7. Altar-mor. Acervo Pessoal.

Figura 8. Árvore – Detalhe da do painel D4.

22 À época da fotografia (fig. 7), a imagem de Nossa Senhora do Carmo havia sido retirada do camarim e transportada para a galeriade imagens sacras que se encontrava na parte superior do corredor lateral esquerdo da igreja. Com a desativação da galeria, etransformação do espaço na oficina de restauração das tábuas do forro da igreja, a imagem voltou ao seu lugar original.

ANDRÉ CABRAL HONOR

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 7-22, NOVEMBRO 200916

a imagem da árvore também está associadaà idéia de ressurreição e de vitória da vidasobre a morte. De acordo com Manfred Lurker:

A árvore, associada ao ritmo das estações eportadora dos frutos, convertia-se emrevelação de vida para os povos que viviamna orla de desertos e rondavam pelas estepes.Profundamente enraizada na terra, a árvoreatinge uma altura que ultrapassa a de todosos seres vivos, o que levou à idéia da árvoredo mundo que liga entre si o céu e a terra.23

Elias não morre, ele sobe ao céu. Tanto quenuma passagem da Bíblia que narra fatosposteriores a sua ascensão, ele envia uma cartaao rei Jeorão alertando que este não vinhaseguindo os passos do seu pai, Josafá, queandava se desviando do caminho de Deus24.

A descrição da passagem de Elias sobre omundo terreno está centrada no conflito entrea adoração a Baal, difundida por Acab eJesabel, e o culto a Javé, pregado por Elias.Em termos de alegoria, representa-se oeterno conflito entre a vida (Javé) e a morte(Baal). De acordo com Borriello:

Parece que à luz dessa polêmica entre vida(= o Senhor) e morte (= Baal) pode-secompreender melhor o fim misteriosoexperimentado por E. [Elias], ou seja, o seuarrebatamento ao céu sem passar pela morte.Sendo o herói do Deus vivo e doador davida, E. não morre como Baal e seus devotos,mas vive junto ao senhor da vida.25

A própria vinda da carruagem de fogo éuma antecipação da descida do Espírito Santoem forma de língua de fogo, “Apareceram-lhe, então, línguas como de fogo, que serepartiam e que pousaram sobre cada umdeles [os apóstolos]. E todos ficaram repletosdo Espírito Santo [...]”26. A representação deDeus como um fogo que não queima tambémpode ser encontrada no Antigo Testamentono primeiro encontro de Deus com Moisés“O anjo de Iahweh lhe apareceu numa chamade fogo, no meio de uma sarça”27, e nacoluna de fogo, “[...] tu, Iahweh, cuja nuvempaira sobre eles, que tu marchas diante deles,de dia numa coluna de nuvem e de noitenuma coluna de fogo.”28

Traça-se um paralelo situacional entre oarrebatamento de Elias e a ascensão de Jesusao céu, “Dito isto, foi elevado à vista deles [osapóstolos], e uma nuvem o ocultou aos seusolhos”.29 O paralelo entre Elias e Cristotambém está colocado na alegoria da árvoreda vida, pois ambos são “testemunhas doDeus vivo que dá a vida aos homens”30. Aárvore da vida está presente tanto no livro doGênesis, “Iahweh Deus fez crescer do solotoda espécie de árvores formosas de ver eboas de comer, e árvore da vida no meio dojardim [...]”31, quanto no Apocalipse, “Nomeio da praça, de um lado e do outro do rio,há árvores da vida que frutificam doze vezes,

23 LURKER, Manfred. Dicionário de figuras e símbolos bíblicos. 2. ed. Trad. João Rezende da Costa. São Paulo: Paulus, 2006, p. 16.24 2 CRÔNICAS. In: BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus, 2006. Cap. 21, vers. 12-15, p. 607.25 BORRIELLO, L. et al. (dir.). Dicionário de Mística. Trad. Benoni Lemos et al. São Paulo: Paulus, 2003, p. 351.26 ATOS DOS APÓSTOLOS. In: BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus, 2006. Cap. 2, vers. 3-4, p. 1902.27 ÊXODO. In: BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus, 2006. Cap. 3, vers. 2, p. 105-106.28 NÚMEROS. In: BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus, 2006. Cap. 14, vers. 14, p. 223.29 ATOS DOS APÓSTOLOS. In: BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus, 2006. Cap. 1, vers. 9, p. 1901. De acordo com BORRIELLO,

L. et al. (dir.). Dicionário de Mística. Trad. Benoni Lemos et al. São Paulo: Paulus, 2003, p. 351: “Trata-se de paralelos verbais egramaticais e de paralelos situacionais (isto é, situações semelhantes, e assim por diante): Lc 7, 11-17 (o filho da viúva de Naim)e 1Rs 17, 17-24 (o filho da viúva de Sarepta); Lc 24, 49-53 e At. 1, 1-12 (a ascensão de Jesus) e 2Rs 2, 1-14 ( O arrebatamento deE.); Jo 1, 43 (o chamado de Filipe) e 1Rs 19, 19-21 (o chamado de Eliseu); Jo 4, 1-26 (a mulher [sem marido] samaritana) e 1Rs 17,7-24 (a viúva de Sarepta); Jo 14, 13 (‘O que pedides em meu nome, farei’) e 2Rs 2,9 (‘Pede o que te devo fazer’); Jo 13, 33 e 2Rs2,15-18 etc.”.

30 BORRIELLO, L. et al. (dir.). Dicionário de Mística. Trad. Benoni Lemos et al. São Paulo: Paulus, 2003, p. 351.31 GENESIS. In: BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus, 2006. Cap. 2, vers. 9, p. 36.

UMA ORIGEM PARA OS CARMELITAS: A AZULEJARIA DO PROFETA ELIAS NA IGREJA DE NOSSA SENHORA DO CARMO...

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 7-22, NOVEMBRO 2009 17

dando fruto a cada mês; e suas folhas servempara curar as nações.”32 Na passagem datransfiguração de Cristo, Elias aparece ao ladode Moisés como um dos dois profetas maisimportantes do Cristianismo, “E eis que lheaparecem Moisés e Elias conversando comele [Jesus].”33

As duas representações encontram-seembaixo de púlpitos de madeira ornados comvolutas (Figura 9 e 10). O púlpito é umaderivação do ambom cristão. A presença dedois púlpitos numa Igreja remete a essasantigas tribunas de leitura, pois a do lado sul

servia para leitura das epístolas e a que ficavaao norte era usada para a leitura dosevangelhos. Como se pode ver na plantabaixa no Anexo II, o frontão da Igreja estávoltado para o oeste, portanto o púlpito quese encontra do lado direito com o painel doarrebatamento de Elias é o local ondedeveriam ser lidas as epístolas; do ladoesquerdo, onde se vê a representação domilagre de Elias no Carmelo, deveria ser lidoo evangelho. De acordo com Wilfried Koch34,desde a Idade Média, do lado direito ficavamos homens e do lado esquerdo, as mulheres.

Figura 10. Púlpito Esquerdo. Acervo pessoal.

32 APOCALIPSE. In: BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus, 2006. Cap. 22, vers. 2, p. 2166.33 MATEUS. In: BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus, 2006. Cap.17, vers. 3, p. 1735.34 KOCH, Wilfried. Dicionário dos estilos arquitetônicos. 2. ed. Trad. Neide Luzia de Rezende. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

Figura 9. Púlpito Direito. Acervo pessoal.

ANDRÉ CABRAL HONOR

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 7-22, NOVEMBRO 200918

Para os fiéis, que assistem ao ritual da missaem latim, o púlpito se coloca como um doslocais mais importantes da celebração. Alémda leitura dos evangelhos e das epístolas, opúlpito é o lugar onde o sermão acontece.Sua importância se dá não só por ele serproclamado na língua vernácula, mastambém porque abriga o momento, no rituallitúrgico, em que o pároco fala diretamenteao fiel. Escolher duas cenas da vida de Eliaspara compor um dos espaços maisimportantes dentro da igreja demonstra opeso que a imagem do profeta tem naconstituição da Ordem Carmelita. Portanto,trata-se de um local estratégico, para ondetodos devem olhar em determinado momentoda missa, reforçando a presença de Elias noimaginário da Ordem Carmelita.

De acordo com Heinz-Mohr, Elias “éconsiderado o primeiro eremita, tornando-separadigma dos padres do deserto do Egito edos monges gregos de Atos [Atos dosapóstolos] [...]”35. É por volta do século IX a.C.que o monte Carmelo torna-se um lugar deperegrinação e de meditação. Eremitas emonges migravam para o local no intuito demorar em suas cavernas e grutas, procurandouma vida de contemplação religiosa. A famado Monte Carmelo e das pessoas que láviviam espalhou-se pela Europa de tal formaque o imperador romano Vespasiano (69-79d.C.)36 se dirigiu ao local para obter doseremitas que lá viviam a benção divina paraempreender a Guerra da Judéia.

Esse fato, trazido por F. A. Pereira daCosta37, não deve levar à errônea conclusãode que o imperador romano Vespasiano eracristão. Em meados do século I, os evangelhosainda estavam por ser escritos e o cristianismoainda se encontrava em fase de expansão pormeio da ação dos apóstolos. Os eremitas doMonte Carmelo provavelmente eramseguidores do profeta Elias, porém a auramística que o local havia adquirido deve teratraído pessoas de outras crenças religiosas,como o então predominante paganismoromano. Posteriormente, parte desseshomens se converteria à fé cristã.

Mais tarde, quando os apóstolos espalharampelo mundo a luz dos Evangelhos, econvertidos então os carmelitas a fé cristã,refundiram o seu instituto segundo osprincípios da nova lei. Nessa fase do seudesenvolvimento histórico são eleschamados: ora Terapeutas, Eremitas ouAnacoretas, ora Solitários, Ascetas ouCenobitas. [...] Sob o abrigo das cavernas domonte Carmelo permaneceram ainda osreligiosos por dilatados anos, até que noséculo V, e antes da invasão dos sarracenos,fundaram, propriamente dito, um mosteiro

de anacoretas submetidos às regras de S.Basílio, ou, segundo outra versão, sob oregime de uma regra escrita no ano de 412,no idioma grego, pelo venerável João SilvanoXLIV, patriarca de Jerusalém – tal como foiditada pelos exemplos do profeta Elias. – Éesta a primeira regra dos carmelitas,historicamente comprovada.38

A tentativa de estabelecer a OrdemCarmelita como a mais antiga de todas está

35 HEINZ-MOHR, Gerd. Dicionário dos símbolos: imagens e sinais da arte cristã. Tradução de João Rezende da Costa. São Paulo:Paulus, 1994, p. 142.

36 Vespasiano foi o primeiro imperador da época intitulada “paz romana”, período de apogeu do Império Romano, inaugurando adinastia Flaviana. Militar de renome, além de reprimir violentamente a revolta dos judeus na Judéia (Guerra da Judéia), comandoua conquista da ilha de Wright, restaurou a finanças do Império, proclamou-se imperador no Egito, reprimiu revoltas, aumentou aarrecadação dos impostos pelo Estado e construiu o anfiteatro Flaviano, mais conhecido como Coliseu de Roma. Fonte: KNIGHT,Kevin (Ed.). Catholic Encyclopedia. [S.l.: s.n.], 1907. Disponível em: <http://www.newadvent.org>. Acesso em: 26 abr. 2008.

37 COSTA, F. A. Pereira da. A ordem carmelitana em Pernambuco. Recife: Arquivo Público Estadual, 1976.38 COSTA, F. A. Pereira da. A ordem carmelitana em Pernambuco. Recife: Arquivo Público Estadual, 1976, p. 18, grifo meu.

UMA ORIGEM PARA OS CARMELITAS: A AZULEJARIA DO PROFETA ELIAS NA IGREJA DE NOSSA SENHORA DO CARMO...

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 7-22, NOVEMBRO 2009 19

bastante clara no trecho citado acima. Nãohá indícios documentais que venham afirmarque os religiosos do Monte Carmelo tivessemadotado a regra de São Basílio39, ou mesmo aregra escrita por João Silvano XLIV. Quandoo autor afirma historicamente comprovada,deve-se entender que a regra escrita emgrego por João Silvano XLIV sobreviveu atéos dias atuais, enquanto que a regra de SãoBasílio perdeu-se no curso do tempo. O autortoma este indício como evidência queprovaria a antiguidade da Ordem Carmelita.

É certo que Maria foi escolhida, desde oprincípio, como patrona da ordem. Osfundadores do Carmelo viam na figura deNossa Senhora a personificação da maisperfeita união com Deus, já que esta seentregou de corpo e alma aos seus desígnios.Fundada a ordem, esses primeiros carmelitaspassaram a viver como ermitãos no MonteCarmelo, a exemplo da grande figurainspiradora do movimento, o profeta Elias. Elepassou a ser saudado como o fundador doscarmelitas, até mesmo por ter sido o primeiroeremita. No entanto, tal alcunha levanta umproblema temporal, pois os monges que noMonte Carmelo viviam só passaram a sereconhecer como pertencentes a uma Ordemreligiosa cristã, a de Nossa Senhora do Carmo,a partir do século XI d. C. e Elias viveu porvolta do século IX a.C. Quase dois mil anos

separam, portanto, o seu fundador dafundação efetiva de “sua” ordem.

Tal questão parece ter sido de extremapolêmica à época, já que foi necessária a“aprovação pontífica de Honório III e GregórioIX em 1229”40 para a confirmação de Eliascomo patriarca da ordem. Ou seja, o patriarcae fundador da Ordem Carmelita o é de direito,mas não o foi de fato. Contudo, durantealguns séculos a ordem o considerava “seuverdadeiro fundador no sentido estrito dapalavra”41.

Em algumas representações iconográficasde Elias, dentre elas a imagem do século XVIIIexistente no altar-mor da Igreja do Carmoem João Pessoa (Figura 11) e no painel D2(Figura 12) do mesmo templo, o profetaaparece segurando uma pequena Igreja emuma das mãos. Segundo Heinz-Mohr “comum modelo de Igreja na mão aparecem, alémdos eventuais fundadores, os grandesdoutores da Igreja [...]”42. Corrobora com aafirmação o fato que em 1725 permitiu-se“a construção de uma estátua de Santo Eliasna Basílica do Vaticano entre os fundadoresdas ordens”43 cujo custo foi repartido entreas seções da Ordem Carmelita.

Em 1571 o Padre Antonio Gonçalvesescreve o Compendio das Chronicas da Ordé

de Nossa Senhora do Carmo, que trata daregra carmelitana e da própria história da

39 Basílio (329-379 d.C.) foi padre da Igreja no Oriente chegando a ser, em 370 d. C., o bispo de Cesaréia. Abandonou o cargo paraviver de forma monástica e foi o criador das regras monásticas—eram apenas duas—que serviriam, mais tarde, de inspiração paraSão Bento. Fonte: KNIGHT, Kevin (Ed.). Catholic Encyclopedia. [S.l.: s.n.], 1907. Disponível em: <http://www.newadvent.org>.Acesso em: 26 abr. 2008.

40 MORIONES, Idelfonso. O Carmelo Teresiano: páginas de sua História. Trad. Vitória. Disponível em: <http://www.ocd.pcn.net/hp_1.htm#1>. Acesso em: 29 dez. 2007.

41 MORIONES, Idelfonso. O Carmelo Teresiano: páginas de sua História. Trad. Vitória. Disponível em: <http://www.ocd.pcn.net/hp_1.htm#1>. Acesso em: 29 dez. 2007.

42 HEINZ-MOHR, Gerd. Dicionário dos símbolos: imagens e sinais da arte cristã. Tradução de João Rezende da Costa. São Paulo:Paulus, 1994, p. 183, grifo meu.

43 Texto original: “[...] it permitted the erection of a statue of St. Elias in the Vatican Basilica among the founders of orders (1725)”.KNIGHT, Kevin (Ed.). Catholic Encyclopedia. [S.l.: s.n.], 1907. Disponível em: <http://www.newadvent.org>. Acesso em: 26 abr.2008.

ANDRÉ CABRAL HONOR

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 7-22, NOVEMBRO 200920

ordem. Mesmo sem expressar claramente, épossível perceber na escrita do padre apreocupação com o lapso temporal que existeentre o surgimento efetivo da ordem e apresença do profeta Elias no Monte Carmelo.No Capítulo 14, intitulado “No qual se declarao mistério da nuvem que o discípulo do profetaviu sair do mar no monte carmo, e comosignificou a virgem gloriosa nossa senhora”44,o autor realiza uma interessante explicaçãopara a atribuição da fundação da Ordem aElias. Segundo ele, a nuvem que o discípulode Elias vê, quando sobe no Monte Carmeloapós o massacre dos profetas de Baal, é umaalegoria para Nossa Senhora.

O autor realiza um estudo comparativolevantando, dentro das passagens bíblicas, os

momentos em que as nuvens aparecem comosímbolo divino e os autores que a relacionamcom a imagem de Maria:

Nam he isto meu: mas do sancto póntificeMedionalnenfe Ambrosio declarando aquellepasso de Esaias em que diz. O senhorassentando sobre a nuvem leve vem a egiptoque significa a aflição deste misero mundo,ao qual vem Deos pela virgem significadapela nuvem, e era leve porque era virgemsem alguma carga de corrupção. O bemaventurado Sam Crisostomo declarando omesmo lugar, entende por esta nuvem a carneque Christo recebeu no ventre virginal dagloriosa padroeira nossa, e ally o entendenicholao de lira. [...]. O docissimo SamJeronimo expondo o mesmo lugar de esaiasdiz. a nuvem leve, he o corpo da virgemgloriosa; [...].45

Figura 11. Estátua do Profeta Elias – Altar-mor.Acervo Pessoal.

Figura 12. Estátua do Profeta Elias – Painel D2.Acervo Pessoal.

44 GONÇALVES, Padre Antonio. Compendio das Chronicas da Ordé de Nossa Senhora do Carmo. [S.l.: s.n.], 1571, p. 57. Disponível em:<http://bibliotecadigital.fl.ul.pt/ULFL037727/ULFL037727_item1/>. Acesso em: 12 out. 2008. Obs: Para as citações de Gonçalves(1571) optei, para que haja uma melhor compreensão do texto, por desdobrar as abreviaturas e substituir as letras “f” por “s”,quando necessário.

45 GONÇALVES, Padre Antonio. Compendio das Chronicas da Ordé de Nossa Senhora do Carmo. [S.l.: s.n.], 1571, p. 57. Disponívelem: <http://bibliotecadigital.fl.ul.pt/ULFL037727/ULFL037727_item1/>. Acesso em: 12 out. 2008.

UMA ORIGEM PARA OS CARMELITAS: A AZULEJARIA DO PROFETA ELIAS NA IGREJA DE NOSSA SENHORA DO CARMO...

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 7-22, NOVEMBRO 2009 21

Se Maria é representada como umanuvem, na leitura alegórica das escrituras,Elias se torna o fundador de fato da OrdemCarmelita, pois é ele quem traz a amada mãepara o Monte Carmelo. Aquela área infértil,que sofria com uma seca de três anos impostapor Javé, frutificaria a partir da chegada danuvem de chuva.

Pois que mais fundamental causa se, pode acharque com mais razão possa dar nome, queaquelles frades fé chamem de Nossa SenhoraVirgem gloriosa Maria, cujo fundador emespirito prophetico a mostrou ao mundo, milannos antes que ella nascesse?46

Estabelecer um vínculo direto com Elias,se colocando como descendente de umacultura fundada pelo profeta, proporciona aOrdem Carmelita uma vantagem acima dasoutras. Seu fundador não poderia ser maisperfeito, comparando-se ao próprio Cristo.Soma-se a esse fato, a adoção, como matronada ordem, a maior figura feminina docristianismo: Maria. Em parte, isso explica oporquê das demais ordens religiosascontestarem a paternidade do Carmo aoprofeta Elias e a necessidade de os frades sereafirmarem como seus descendentesdiretos.

Como já foi dito, as alegorias da Igreja deNossa Senhora do Carmo na Paraíba colonialbuscam, por meio da História da OrdemCarmelita, introjetar um modelo de condutacristão que conduza o fiel pelo caminho dasalvação. Desta forma, o profeta Elias seapresenta como o exemplo máximo dededicação a Deus, sendo visto, até os diasatuais, como a figura que inspirou toda acultura histórica carmelita.

46 GONÇALVES, Padre Antonio. Compendio das Chronicas da Ordé de Nossa Senhora do Carmo. [S.l.: s.n.], 1571, p. 58. Disponívelem: <http://bibliotecadigital.fl.ul.pt/ULFL037727/ULFL037727_item1/>. Acesso em: 12 out. 2008.

Referências Bibliográficas

ALBUQUERQUE, Marcos Cavalcanti de.Hagiografia carmelitana: espiritualidade. JoãoPessoa: A União, 2001.

BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus,2006.

BORRIELLO, L. et al. (dir.). Dicionário de Mística.Trad. Benoni Lemos et al. São Paulo: Paulus, 2003.

COSTA, F. A. Pereira da. A ordem carmelitana emPernambuco. Recife: Arquivo Público Estadual,1976.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain.Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: JoséOlympio, 1992.

GONÇALVES, Padre Antonio. Compendio dasChronicas da Ordé de Nossa Senhora do Carmo.[S.l.: s.n.], 1571, p. 57. Disponível em: <http://b i b l i o t e c a d i g i t a l . f l . u l . p t / U L F L 0 3 7 7 2 7 /ULFL037727_item1/>. Acesso em: 12 out.2008.

HEINZ-MOHR, Gerd. Dicionário dos símbolos:imagens e sinais da arte cristã. Tradução de JoãoRezende da Costa. São Paulo: Paulus, 1994.

KNIGHT, Kevin (Ed.). Catholic Encyclopedia. [S.l.:s.n.], 1907. Disponível em: <http://www.newadvent.org>. Acesso em: 26 abr. 2008.As traduções do inglês são de Berttoni CláudioLicarião (Yázigi-João Pessoa).

KOCH, Wilfried. Dicionário dos estilosarquitetônicos. 2. ed. Trad. Neide Luzia deRezende. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

LURKER, Manfred. Dicionário de figuras esímbolos bíblicos. 2. ed. Trad. João Rezende daCosta. São Paulo: Paulus, 2006.

MORIONES, Idelfonso. O Carmelo Teresiano:páginas de sua História. Trad. Vitória. Disponívelem: <http://www.ocd.pcn.net/hp_1.htm#1>.Acesso em: 29 dez. 2007.

SCIADINI, Frei Patrício. O Carmelo: História eespiritualidade. São Roque: EdiçõesCarmelitanas, 1993.

SEBASTIAN, Santiago. Contrarreforma y Barroco.Madrid: Alianza Forma, 1989.

L´IMAGERIE POPULAIRE

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 23-32, NOVEMBRO 2009 23

Annie Duprat

Professora de História Moderna na Université de Cergy-Pontoise/ CICC – Laboratoire communicationet politique CNRS/ UPR 3255 – France. Autora de, entre outros livros, Révolutions et mythesidentitaires. Mots, molences, mémoire. Paris: Nouve Monde Éditions, 2009.

RÉSUMÉ

L’imagerie que l’on appelle « populaire » est à la fois bien connue et souvent ignorée. Largementdiffusée, surtout à partir du XIXe siècle, dans les milieux les plus divers, elle a participé à laconstruction des imaginaires sociaux des populations ; accompagnant l’exil de Napoléon Ier,elle a entretenu la flamme de la gloire impériale, créant de ce fait une véritable geste héroïque,ce que l’on a nommé la « légende napoléonienne ». Multiforme, elle est toujours claire ettrès lisible car son objectif est de toucher le plus grand nombre de personnes. Mais, sil’imagerie d’Épinal est bien connue, il existe un océan d’images pour lesquelles il est importantà présent de s’interroger. L’article présente quelques études de cas à partir de documentschoisis à travers les siècles.

ABSTRACT

The imagery is called “popular” is both well known and often ignored. Widely disseminated,especially from the nineteenth century in all walks of life, she has participated in the socialconstruction of imaginary people; accompanying the exile of Napoleon, She has maintainedthe flame of imperial glory, thereby creating a truly heroic, what has been called the “Napoleoniclegend”. Multifaceted, it is always clear and very readable because its goal is to reach as manypeople. But if Epinal imagery is well known, there is an ocean of images for which it isimportant to this inquiry. The article presents some case studies from documents selectedthrough the centuries.

Recebido em: 10/05/2009 Aprovado em: 05/08/2009

L’imagerie populaire

ANNIE DUPRAT

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 23-32, NOVEMBRO 200924

Un océan d’images méconnues

Tout le monde connaît les figures des cartesà jouer et celles des cartes postales ou encoreles belles joues roses et les boucles blondesdu bébé Cadum, un exemple parmi d’autresdes centaines de publicités qui s’étalent surtous les panneaux d’affichage. Mais si cesimages ont vocation à être largementdiffusées et, de ce fait, popularisées, lesconsidérons-nous comme des témoignageshistoriques et artistiques dignes d’intérêt? EnFrance, on les regroupe sous le terme“imagerie populaire”1? Images decatéchisme ou de confrérie, imagespublicitaires insérées dans les tablettes dechocolat ou reçues à l’école dès que lenombre des “bons points” acquis par un travailet une conduite irréprochables était suffisant,ou encore vignettes illustrées en tous genres,il existe un très grand nombre de ces figuresaux lignes simples et à la lisibilité clairecirculant dans toutes les couches de la sociétédepuis la fin du XVIIe siècle. Si l’on ne retenaitqu’un seul critère, celui de la mémorisationde ces figures par un public nombreux, nedevrait-on pas les considérer comme telles?Donner une définition unique qui soitpleinement satisfaisante pour tous les champsde la recherche sur l’imagerie populaire estdifficile; on s’accordera, dans le cadre très brefde la présente réflexion, à s’en tenir à une

L’imagerie populaire

définition large, délibérément très extensive:“Ensemble d’images faciles à comprendre etdestinées à une grande diffusion”. Pourtant,il est difficile, encore aujourd’hui, de classerces documents, le critère de la reproductibilitétechnique n’étant pas unique puisquel’imagerie d’Épinal fait une part importanteau lieu de fabrication, Épinal (ville de Lorraine,dans la région est de la France), dont le nomest devenu quasiment générique. On mettradonc sous le vocable “imagerie” uneproduction d’estampes destinées à êtrevendues à la feuille et à faible prix soit par deslibraires – qui sont souvent éditeurs-librairesjusqu’au milieu du 19è siècle étant donné laconfusion des métiers – soit parl’intermédiaire de colporteurs. Cetteproduction concerne le plus souvent des sujetsreligieux, mais elle peut comprendre desscènes d’actualité; ce sont des imagessanglantes ou extravagantes, extraites des“canards”, nom familier donné aux journauxpopulaires qui prolifèrent entre le XVIIe et leXIXe siècles ou des productions de laBibliothèque Bleue, ces livres peu onéreuxfabriqués et vendus à Troyes, ville deChampagne); ce sont aussi des portraits, dessujets de la vie quotidienne traités dans uneveine plus ou moins satirique, des thèmeslittéraires (récits traditionnels dérivant desfabliaux médiévaux, des proverbes ou desfables de La Fontaine par exemple).

1 Nicole Garnier, L’imagerie populaire française, vol. 1 Gravures en taille-douce et en taille d’épargne, ATP et RMN, 1990 ; vol. 2,Images d’Épinal gravées sur bois, ATP, RMN et BNF, 1996 (avec la collaboration de Maxime Préaud et de Suzanne Valladas). Unpremier état de mes recherches en ce domaine a été publié en 2001 : voir Annie Duprat, " L’imagerie populaire du GrandOuest ", Annales de Bretagne et des pays de l’ouest, tome 108, 2001, p. 45-66.

L´IMAGERIE POPULAIRE

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 23-32, NOVEMBRO 2009 25

L’imagerie populaire excelle dansl’hagiographie et dans une iconographiereligieuse providentielle et consolatrice2. Maiselle s’attache également à multiplier les rébus,les fables animalières ou les"mondes àl’envers “et autres "mondes renversés3”, lescomptines et les leçons de morale àdestination des enfants, ainsi que des histoiresamusantes ou moralisatrices. Lesconservateurs de musées et de bibliothèques,comme les collectionneurs, mettent encore àpart l’immense fonds iconographique descartes postales, encore peu exploité maisdont le contenu, des plus variés, estprometteur pour les historiens. De nos jours,on peut encore admettre que les différentslogos illustrés, les cartes de téléphone, les"magics" ou les "magnets", quelque soit lenom qu’on leur donne, jouent le même rôleque l’imagerie populaire traditionnelle, mêmesi leur fonction est le plus souvent publicitaire.

Enfin, la reproductibilité techniquemassive, qui a commencé au cours de laseconde moitié du XVIIe siècle avec leperfectionnement de la technique de l’eauforte et la multiplication du nombre d’éditeursd’estampes à Paris, puis avec la maîtrise destechniques de reproduction peu onéreuses(gravures sur bois, lithographie au XIXè siècle,photogravure, offset, héliogravure, impressionnumérique enfin). Ces changementss’accompagnant de l’accroissementconsidérable du public potentiel, les sujetstraités par l’imagerie populaire changentégalement; les masses acquièrent une culture

commune, en particulier dans le domaine del’Histoire, qui est faite du culte des héros etdes braves; les imagiers la maison Pellerind’Épinal contribuent à la création de cetteculture. Des modifications socialesimportantes s’opèrent alors et l’on passe del’atelier familial, où la femme vendait ce quel’homme fabriquait à des ateliers où lesouvriers se comptent par dizaines. Lorsque,autour des années 1850, la maison Pellerincommence à utiliser la lithographie, les tiragessont beaucoup plus élevés, la diffusion se faitplus large, les thèmes et public changent:"l’imagerie d’Épinal" acquiert le statut de "lieude la mémoire nationale" en produisant denombreuses scènes d’Histoire de Francedestinées aux enfants.

L’intérêt de ces images est immense;malheureusement, elles ont disparu ou sontpour la plupart dispersées, n’ont guère attirél’attention des historiens et des historiens del’art et ne sont pas mises en catalogues4.Témoin des imaginaires mentaux des sociétésanciennes, proche de nous par la chronologiemais très éloignée par les références et lespratiques culturelles, l’imagerie populaire apourtant été bien étudiée par les ethnologueset par les folkloristes5. Mais il existe encoretout un pan de la production, encore plusdifficile à saisir, qui consiste en dominoterie,papiers peints, calendriers, jeux de l’oie etautres. Nous avons choisi de privilégier ici lesusages sociaux de l’image. Ainsi allons-nousnous interroger sur les objectifs utilitaires desimages:

2 Christophe Beauducel, " À propos des images populaires. Étude d’une image caennaise ", Nouvelles de l’estampe, n°172, mars2000, p. 6-17, consacrée à l’image Cantique spirituel de St e Marie-Madeleine, produite à Caen à la fin du XVIIème siècle. La revueles Nouvelles de l’estampe a récemment consacré quelques précieux numéros pour cette question : n°185-186, déc. 2002-fév.2003 sur la gravure sur bois depuis 1400 et n°197-198, déc. 2004-fév 2005, sur la guerre 14-18 dans l’imagerie d’Epinal.

3 Voir le livre précurseur d’Achille Bertarelli, L’imagerie populaire italienne, Paris, Duchartre et Van Buggenhoudt, 1929.4 Jean Adhémar, L’imagerie populaire française, Milan, 1968. Mais les nombreux papiers de commerce avec des en-têtes illustrées

conservées à la B.N. Estampes dans la série Li ne sont jamais consultés.5 En particulier via les revues Ethnologie française et Terrains.

ANNIE DUPRAT

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 23-32, NOVEMBRO 200926

- L’image est-elle une source d’informationet comment opère-t-elle?

- L’image est-elle engagée comme on peutle voir dans le cas de certaines sériesiconographiques de l’époquerévolutionnaire?

- Dans quelle mesure participe-t-elle àl’édification pieuse de la jeunesse avecl’exemple d’une image de catéchisme?

Les usages sociaux de l’imagerie populaire

Pour être vues, les images doivent êtrefaites mais doivent également circuler, c’està dire être diffusées et exposées à la vue duplus grand nombre, être comprises et entrerdans la mémoire collective. L’imagerie,souvent en couleurs depuis le début du XVIIIe

siècle, s’adresse prioritairement à un publicpeu lettré d’où son caractère volontiersdidactique, le but visé étant davantagel’édification que l’esthétique; elleaccompagne les activités quotidiennes, sertà diffuser une culture commune allant del’astrologie aux proverbes et de la satire auxremèdes médiciaux; parfois, elle rend compted’une actualité héroïque ou enseigne desvaleurs morales ou religieuses6. Au cours desXVIIe et XVIII siècles, on observe l’apparitionde dynasties familiales d’éditeurs d’estampesqui diffusent leur production grâce à desbureaux de vente à travers tout le pays,comme l’avait signalé il y a longtemps JeanAdhémar qui insistait tout particulièrementsur l’Ouest de la France avec les Bonnemer àFalaise, les Hoyau à Chartres, les Sevestre, les

Perdoux et les Letourmi à Orléans, ainsi quedes ateliers dont le rayonnement est grand,comme pour l’imagerie chartraine qui estillustrée par la famille Garnier-Allabre àChartres ou les maisons Portier et Leloup auMans7. Au cours du XIXè siècle, la productiond’images, à présent devenue quasimentindustrielle, est essentiellement celle de l’estde la France, avec des centres de productiontels que Metz, Epinal, Nancy, ouWissembourg8.

Les sujets traités et le graphisme desimages populaires appartiennent à unetradition du dessin classique car toute rupturerisquerait de heurter le client. Au cours du XVIIe

siècle, lorsque s’est développée la gravure surcuivre à l’eau-forte, qui nécessitait des moyenstechniques supérieurs, donc un coût financieraugmenté, les imagiers se sont repliésuniquement sur la technique de la gravuresur bois. Sous l’Ancien Régime, les imagespopulaires ne requièrent pas l’autorisation dela Direction de la Librairie, à la différence del’écrit, sauf si elles sont assorties d’une lettreimportante. Cette particularité explique lelaconisme de beaucoup d’estampes, ainsi quela pratique d’inclure une image dans un cadreindépendant et réutilisable pour d’autrescomportant le texte (souvent une chanson ouune complainte traditionnelle). Enfin, notonsque la plupart des images produites enprovince font la part belle aux événementsparisiens, même lorsque des événementssimilaires se sont déroulés localement; citonsl’exemple flagrant de l’imagerie mancelleconcernant l’envol en ballon qui a eu lieu à

6 En 1688, Johannes Teyler obtient de faire protéger sa technique d’impression en couleurs dite " à la poupée " par un privilègedes Etats généraux de Hollande pendant 25 ans, Anatomie de la couleur. L’invention de l’estampe en couleurs, ss dir. FlorianRodari, Paris/Lausanne, BNF/Musée Olympique, 1996, p. 31.

7 Jean Adhémar, L’imagerie populaire, op. cit., supra ; René Saulnier, L’imagerie populaire du Val de Loire (Anjou, Maine, Orléanais,Touraine), Angers, 1945 ; Pierre-Louis Duchartre et René Saulnier, L’imagerie populaire, Paris, 1925 ; Pierre Casselle, “Recherchessur les marchands d’estampe d’origine cotentinoise à la fin de l’Ancien Régime”, Bulletin d’histoire moderne et contemporaine,1978, Paris, p. 75-93.

8 Dominique Lerch, Imagerie populaire en Alsace et dans l’est de la France, Nancy, 1992.

L´IMAGERIE POPULAIRE

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 23-32, NOVEMBRO 2009 27

Paris en 1783: l’imagier et marchandd’estampes Portier du Mans choisit dereprésenter cette scène en négligeant lachronique locale mancelle, en particulierl’envol qui se déroule au Mans le 3 mai 17849.On trouve des exemples de ce type àChartres, Tours, Orléans et sans doute dansde nombreux autres foyers de l’imageriepopulaire.

Les deux exemples développés ci-dessousseront placés sous l’exergue de la remarquede Champfleury, un érudit qui avait contribuéau cours du XIXe siècle à donner à l’imageriepopulaire ses lettres noblesse:

De l’imagerie découlent encore diversenseignements historiques et, si on ne jugepas digne de faire entrer, même au dernierrang, l’image dans l’histoire de l’art, elletiendra sa place au premier rang dansl’histoire des mœurs10.

L’image populaire sous l’ancien régime

Dès le début du XVIIe siècle, la productionde gravures abandonne le domaine politiquequi était prépondérant au siècle précédent àcause des guerres de Religion pour se tournervers le genre burlesque, la cocasserie, lessatires sociales et les proverbes moralisateursou acides. Un nouveau genre apparaît, celuides "Cris de Paris", qui met en scène avectendresse et amusement les petits métiers etla vie bruyante d’une grande ville11. Tandisque l’imagerie religieuse se renforce, avec laproduction de figures de saints et de récits demiracles, la littérature populaire de la"Bibliothèque Bleue", à cause de la couleurbleue du papier de couverture est souvent

illustrée (almanachs, horoscopes, remèdes demédecine, récits de crimes, contes, proverbeset facéties). L’atelier de Jacques Lagniet (vers1600-1675), "marchand-imagier" qui tientboutique à Paris sur la rive droite de la Seine,rue Saint-Martin, avant de s’installer sur le quaide la Mégisserie, est prépondérante au XVIIe

siècle, en raison du grand nombre et de lavariété de ses productions. Fabricant etmarchand de gravures sur bois, il est à la têted’un atelier comportant un grand nombre decompagnons, ce qui explique une productiontrès importante: un Recueil des plus illustres

proverbes, une Vie de Tiel Wlespiegle, lesAdventures du fameux Don Quixote de la

Manche et différentes planches isolées quicorrespondent parfois à des commandespassées par d’autres éditeurs d’estampes.Célèbre en son temps, son Recueil des plus

illustres proverbes est organisé en trois livres:des "proverbes moraux", des "proverbesjoyeux et plaisants" et une dernière partieannoncée en ces termes, "la vie des Gueuxen proverbes". Cependant, si le dessin esttoujours précis et la composition très inventive,l’habitude d’inclure des éléments de la lettreà l’intérieur de l’image, dans un désordreapparent mais qui correspond à la volontémaîtrisée de dire le maximum de choses demanière ludique, rend parfois difficile lacompréhension de l’image. Les estampes deJacques Lagniet ornent très souvent les livresd’histoire, sans que son nom apparaisse, tant cethomme, célèbre de son temps, a sombré dansun oubli dont sa production abondante est peut-être justement la cause. Il est vrai aussi que lalisibilité de ses estampes n’est pas immédiateaujourd’hui car il intègre des textes parfois trop

9 Annie Duprat, " L’imagerie populaire du Grand Ouest ", Annales de Bretagne et des pays de l’Ouest, tome 108, 2001, p. 45-66.10 Champfleury, Histoire de l’imagerie populaire (1821-1889) Paris, Dentu, 1869, rééd. Cœuvres, Ressouvenances, 2004.11 Vincent Milliot, Les cris de Paris ou le peuple travesti. Les représentations des petits métiers parisiens (XVIème-XVIIIème siècles),

Publications de la Sorbonne, 1995.

ANNIE DUPRAT

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 23-32, NOVEMBRO 200928

codés pour être facilement compréhensibles àl’intérieur même de l’image12.

La Révolution française

Un siècle plus tard, avec la Révolution, lesimages se multiplient et se font plus claires,plus directes, participant avec efficacité auxgrands enjeux du moment. L’assassinat d’unejeune fille de 19 ans le 22 mars 1796 dansdes conditions restées obscures dans la forêtde Blandouët (province du Maine) alorsqu’elle se rendait au marché a suscité unegrande émotion et généré de multiples imagesd’actualité en cette période troublée. Pasmoins de trois estampes sont produites, l’unepar Letourmy, l’autre par Portier du Mans, latroisième par Godard d’Alençon, sans que l’onpuisse distinguer un ordre chronologique entreces trois représentations différentes d’unmême événement13. La maison Letourmy, laplus célèbre des trois, installée à Orléansdepuis 1774, est exemplaire d’une croissanceextraordinaire au XVIIIe siècle puisqu’ellecompte une centaine de dépositaires danstoute la France. Les productions Letourmyobéissent presque toujours aux mêmes règles:une image coloriée au centre de la plancheentourée sur les quatre côtés de textes qui,soit explicitent la scène centrale en racontantl’événement, soit l’accompagnent par deschansons, des complaintes, des prières ou descomptines. Racontant des faits-divers, des viesde saints ou des événements marquants del’histoire de France, comme la prise de laBastille, les Letourmy jouent au XVIIIe siècleun rôle équivalent à celui que joueront lesPellerin avec l’imagerie d’Épinal au XIXe siècle.

Une gravure en couleurs de grand format(36 x 31 cm) issue de l’atelier de Jean-Baptiste Letourmy, Complainte véritable sur

la mort de Perrine Dugué, montre crûmentl’assassinat de Perrine Dugué. Si l’histoire estvraie, l’identité des criminels n’est pasclairement établie, mais une rumeur circulebientôt: "la sainte aux ailes tricolores"fait desmiracles, en particulier en guérissant lesfemmes stériles et en faisant marcher lesparalytiques…

La légende napoléonienne

La légende napoléonienne, qui s’estconstruite progressivement à partir del’abdication de Napoléon Ier, s’est renforcéeaprès sa mort le 5 mai 1821. Le principalvecteur de diffusion des images et des histoiresexemplaires destinées à composer unelégende de nature hagiographique à la gloirede l’Empereur est encore la maison Pellerind’Épinal. L’histoire de cette fabrique remonteau milieu du XVIIIe siècle lorsque NicolasPellerin (1703-1773) s’installe marchand-cartier à Épinal; lui succède son fils Jean-Charles (1756-1836), qui est en mêmetemps horloger (la proximité des métiers del’image avec ceux de l’orfèvrerie ou del’horlogerie est ancienne et se justifie par laminutie du travail). Dès les débuts de l’Empire,la maison Pellerin participe à une expositionorganisée à Paris par Napoléon. Condamnéen 1816 pour diffusion d’imagesbonapartistes, Jean-Charles Pellerin estcependant gracié. Dès lors, la fabrique Pellerinne cesse de se développer, surtout avecl’invention des cartons à découper14 par

12 Annie Duprat, Images et Histoire. Outils et méthodes d’analyse des documents iconographiques, Paris, Belin, 2007, p. 134. Voiraussi http://expositions.bnf.fr/bosse/reperes/index.htm ou encore le site du château de Sceaux, http://www.collections.chateau-sceaux.fr/PreviewsLis.htm?idlist=1&record=19104747313919229291 .

13 Annie Duprat, " Provinces-Paris ou Paris-provinces ? Iconographie et Révolution française ", Annales historiques de la Révolutionfrançaise, n°330, oct-déc 2002, p. 9-27, http://ahrf.revues.org/document738.html.

14 Ce sont des figurines illustrées.

L´IMAGERIE POPULAIRE

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 23-32, NOVEMBRO 2009 29

Charles-Nicolas (1827-1887) et le passageprogressif à la lithographie à partir de 1852.Pellerin, qui absorbe ses concurrents commela maison de Charles Pinot, acquiert un renomnational et même international; le succès desa production est sans doute dû aux thèmesiconographiques choisis, qui sont soit deshagiographies de facture simple, soit des récitshistoriques. L’imagerie Pellerin a beaucoupcontribué au façonnement des mentalitéscollectives au XIXe siècle.

Le document présenté ici (Figure 1)raconte la Bataille des Pyramides, qui s’estdéroulée lors de la campagne d’Egypte le 21juillet 1798, mais cette gravure sur boiscoloriée est bien postérieure à l’événementpuisque le dépôt légal atteste de la date du 7juillet 1830. De dimensions moyennes

(42cm x 63cm), elle est construite de façonparfaitement géométrique: à droite, lestroupes françaises autour de Bonapartecomposent une ligne brisée et ouvrent le feusur les mamelouks, les janissaires et les spahisautour de leur chef Mourad Bey qui, sabredressé, s’élancent vers eux. Au premier planet au centre de l’image, on voit trois victimesportant l’uniforme des mamelouks et destrophées d’armes. Le paysage au fond offredeux lignes de fuite: à droite, vers un fortin(barrières en bois) dont les bâtiments sontidentifiés par les croissants de l’Islam (l’ennemià vaincre), à gauche vers des pyramides(référence à une gloire ancienne à atteindre).La lettre, qui fait montre de beaucoup derespect à l’égard de l’adversaire, explique latactique des troupes de Bonaparte:

Figure 1. Bataille des Pyramides, par Georgin, 1838, Imagerie Pellerin à Épinal (collection Annie Duprat)

ANNIE DUPRAT

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 23-32, NOVEMBRO 200930

L’armée française, victorieuse à Chébreisse,arrive le 21 juillet 1798 au pied despyramides. Les Mamelouks, au nombre de13 000, appuyés sur le camp retranchéd’Embaleh, où se trouvent 20 000 janissaireset spahis avec 50 pièces de canon l’attendentavec confiance, le brave Mourad Bey à leurtête. Bonaparte fait de ses cinq divisions cinqbataillons carrés et se porte en avant en leurdisant: "Français, songez que du haut de cespyramides quarante siècles vouscontemplent". Les Mamelouks s’ébranlent etfondent rapidement sur eux. Le général françaisles laisse approcher pour les séparer du campet de manière à ce qu’ils se trouvent tout àcoup assaillis par le feu croisé de nos cinqdivisions. Les Mamelouks font des efforts inouïspour les enfoncer; ils périssent foudroyés parle feu de nos carrés, comme sous les mursd’autant de forteresses. Le camp des ennemisest enlevé à la baïonnette; ses trésors, ses richesbagages, 400 chevaux, des vivres dont lesFrançais manquaient depuis plusieurs jours,tombent au pouvoir des vainqueurs et lapossession du Caire est assurée.

Tous les détails de cette image réaliséepar François Georgin (1801-1863), le plusconnu des imagiers, auteur d’environ 200gravures sur bois, soit plus du dixième de laproduction Pellerin, contribuent à exalter lafigure du grand empereur triomphateur.

Les images de catéchisme

Le XIXe siècle a été le théâtre d’uneentreprise de reconquête catholique de laFrance par des missions, par l’organisation depèlerinages, la construction d’églises et lerenouvellement de la catéchèse. Des prêtres,mais aussi des particuliers, composent descatéchismes à destination des enfants quiassocient deux contraintes: dispenserl’enseignement de la doctrine chrétienne dela façon la plus efficace possible tout endélivrant des considérations morales fortes.

Les maisons d’éditions de ces livres decatéchisme dont la pédagogie est fondée surl’utilisation systématique d’imagesrencontrent un grand succès: la Bonne Pressepour Le Grand catéchisme en images en 1884et Tolra pour le Grand album d’images pour

l’explication du catéchisme en 1899. La

planche présentée ici (Figure 2) est extraitede l’album de la maison Tolra, qui choisit pourles enfants le registre de la morale davantageque celui de la doctrine; le projetpédagogique d’ensemble est "voir pourcroire". L’éditeur a d’ailleurs pris soin detransposer ses images sur des plaques de verreafin de permettre des projections et donc uncommentaire collectif15.

Le document, intitulé Péchés de langue estancré dans les représentations de la viequotidienne avec une référence àl’iconographie de la presse à grand tirage defaçon à créer chez le jeune une familiaritéavec l’objet et à stimuler un sentimentd’appartenance. Par ailleurs, cette image jouesur plusieurs registres, celui de la morale, dela pastorale mais aussi de l’histoire et dusouvenir des victimes de la Révolution de1789. Péchés de langue planche de grandetaille (35cm x 48cm) figure dans le chapitre"vérités, devoirs et sacrements". Sous la figuretutélaire de deux religieuses et d’un prêtre(que l’insertion dans un cadre transforme enfigures de saints), un groupe (qui ressemble àune famille) se promène paisiblement dansla forêt. Un homme, véritable paterfamilias

bourgeois et silencieux, marche seul en avant;deux jeunes femmes bavardent et l’une ledésigne du doigt à l’autre; une petite fille, prèsde la rivière où deux femmes aux visages ridéset peu amènes sont occupées à bavarder touten lavant le linge, est grondée par une jeunefemme que l’on suppose être sa mère. La

15 Isabelle Saint-Martin, Voir, savoir, croire. Catéchisme et pédagogie au XIXe siècle, Paris, Champion, 2003.

L´IMAGERIE POPULAIRE

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 23-32, NOVEMBRO 2009 31

lettre en bas de l’image explique que "unepetite fille a dérobé un fruit. Elle le cache. Samère veut lui faire avouer son larcin, elle nieeffrontément". En bas de l’image, dans troisrectangles on voit un chat, figure del’hypocrisie, des guêpes, figures de lamédisance, et, au centre, "une méchantelangue entourée de feu: la langue est commele feu, quels ravages elle cause". Le détail dela lettre donne des explications absolumentindispensables à la compréhension del’image: les religieuses sont des martyresmises à mort en Chine en 1879, le prêtre est"M. Durand et nombre de prêtres pendant laGrande Révolution qui ont refusé de se sauverla vie par un mensonge", comme on peut lelire sur l’image. On voit que, sans cesinformations écrites, le document seraitincompréhensible.

16 Jean-Yves Mollier (dir.), La lecture et ses publics à l’époque contemporaine. Essais d’histoire culturelle, Paris, PUF, 2001, 186 p.Traduction en portugais/brésilien, A Leitura e Seu Publico no Mundo Contemprâneo. Ensaios sobre Historia Cultural, Sao-Paulo,Autêntica, 2008.

Figure 2. Péchés de langue, extrait du Grand album d’images pour l’explication du catéchisme de la maisonTolra, 1899 (collection Isabelle Saint-Martin).

Le dossier de l’imagerie populaire estimmense car il peut être étendu à toutes lesillustrations figurant sur divers supports(timbres postes et billets de banque, publicitéscommerciales, logos institutionnels ou badges,liste non limitative). Parvenus à la conclusion dece bref article programmatique, noussouhaiterions appeler à une enquête quipourrait être conduite dans les grands fonds desimprimeurs éditeurs d’estampes de second rang;les hypothèses de classement et de travaildevant prendre en compte de façon premièreles usages sociaux de ces images (édificationmorale, connaissance de l’histoire, constructiond’une identité etc…). Une enquête de ce typeaurait le mérite de combler une lacuneimportante de l’histoire culturelle qui, pourtant,occupe un espace considérable dansl’historiographie contemporaine16.

Referências Bibliográficas

ADHÉMAR, Jean. L’imagerie populaire française,Milan, 1968.

BEAUDUCEL, Christophe. À propos des imagespopulaires. Étude d’une image caennaise.Nouvelles de l’estampe, n°172, mars 2000, p. 6-17.

BERTARELLI, d’Achille. L’imagerie populaireitalienne. Paris, Duchartre et Van Buggenhoudt,1929.

CASSELLE, Pierre. Recherches sur les marchandsd’estampe d’origine cotentinoise à la fin del’Ancien Régime. Bulletin d’histoire moderne etcontemporaine. 1978, Paris, p. 75-93.

CHAMPFLEURY, Histoire de l’imagerie populaire(1821-1889). Paris, Dentu, 1869, rééd.Cœuvres, Ressouvenances, 2004.

DUCHARTRE, Pierre-Louis; SAULNIER, René.L’imagerie populaire, Paris, 1925.

DUPRAT, Annie. Images et Histoire. Outils etméthodes d’analyse des documentsiconographiques, Paris, Belin, 2007.

______. L’imagerie populaire du Grand Ouest.Annales de Bretagne et des pays de l’Ouest, tome108, 2001.

______. Provinces-Paris ou Paris-provinces?Iconographie et Révolution française. Annales

historiques de la Révolution française, n°330, oct-déc 2002.

GARNIER, Nicole. L’imagerie populaire française,vol. 1 Gravures en taille-douce et en tailled’épargne, ATP et RMN, 1990 ; vol. 2, Imagesd’Épinal gravées sur bois, ATP, RMN et BNF, 1996(avec la collaboration de Maxime Préaud et deSuzanne Valladas).

LERCH, Dominique. Imagerie populaire en Alsaceet dans l’est de la France. Nancy, 1992.

MILLIOT, Vincent. Les cris de Paris ou le peupletravesti. Les représentations des petits métiersparisiens (XVIème-XVIIIème siècles). Publicationsde la Sorbonne, 1995.

MOLLIER, Jean-Yves (dir.). La lecture et ses publicsà l’époque contemporaine. Essais d’histoireculturelle. Paris, PUF, 2001.

RODARI, Florian. Anatomie de la couleur.L’invention de l’estampe en couleurs, ss dir. Paris/Lausanne, BNF/Musée Olympique, 1996, p. 31.

SAINT-MARTIN, Isabelle. Voir, savoir, croire.Catéchisme et pédagogie au XIXe siècle, Paris,Champion, 2003.

SAULNIER, René. L’imagerie populaire du Val deLoire (Anjou, Maine, Orléanais, Touraine), Angers,1945.

IMAGENS DE BABEL NA IDADE MÉDIA: ENTRE A ARQUITETURA REAL E O IMAGINARIO DA ARQUITETURA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 33-46, NOVEMBRO 2009 33

Recebido em: 09/06/2009 Aprovado em: 05/08/2009

Artur Simões Rozestraten

Doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP).Professor do curso de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário Moura Lacerda e dasFaculdades COC, ambas em Ribeirão Preto. Autor de, entre outros artigos “Representação doprojeto de arquitetura: uma breve revisão crítica”. Pós. Revista do Programa de Pós-Graduação emArquitetura e Urbanismo da FAU/USP. v. 25, 2009.

Imagens de Babel na Idade Média:entre a arquitetura real e oimaginário da arquitetura

RESUMO:No século XI artistas da Europa ocidental criaram as primeiras formas plásticas para representarBabel. Que formas plásticas foram usadas para compor este imaginário de Babel? Querelações existiriam entre essas imagens de arquiteturas e a arquitetura real da época? Aosubmergir em certos períodos da história da arte e aflorar em outros, as imagens de Babelevidenciam a kunstwollen de certos grupos sociais, e materializam relações poéticas entre aarquitetura vivenciada e a arquitetura de fantasia. Este artigo estuda as imagens desta cidade-torre na arte européia medieval entre o século XI e XV, procurando aproximar-se dos contextosnos quais foram criadas, e das poéticas e visões de mundo que as originaram e que delasafloram continuamente.PALAVRAS-CHAVE: iconografia da arquitetura, imaginário e arquitetura, representação daarquitetura.

ABSTRACT:At the XIth century Eastern European artists created the first artistic forms for Babel. Whatplastic forms had been used to compose this Babel’s imaginary? What relations did existbetween these architectural images and the real architecture at the time? Submerging incertain periods of the history of the art and arising in others, the images of Babel evidence thekunstwollen of certain social groups, and materialize poetical relations between the livedarchitecture and the fantasy architecture. This article studies the images of this city-tower inmedieval European art between the XI and the XV centuries, looking for the contexts in whichthey were created, and the poetics and worldview that originated them, and continuouslyarise from them.KEYWORDS: architecture iconography, architectural imaginary, representation of the architecture.

ARTUR SIMÕES ROZESTRATEN

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 33-46, NOVEMBRO 200934

Babel é aqui

Eis que a língua dos arquitetos deixa de sera mesma dos entalhadores de pedras,e a destes a mesma dos pedreiros...Cada corporação se vê presana especificidade incomunicávelde sua práticaPaul Zunthor (1997, p.94)(Tradução do autor)

As mais antigas imagens de Babel

atualmente conhecidas são iluminuras

datadas entre os séculos XI e XV. São imagens

em tamanho reduzido, miniaturas, que têm a

função de iluminar, ilustrar ou ornar, textos

manuscritos, dispostos ao seu lado, em geral

de conteúdo religioso.

Estas imagens de uma arquitetura

mitológica são formas artísticas que dialogam

com dois universos distintos e

complementares: o universo das arquiteturas

reais vivenciadas pelos artistas e o universo

de arquiteturas fantásticas inventadas pela

imaginação. E assim como as arquiteturas

reais, a imaginação sempre alça vôo a partir

de um certo contexto cultural, social e

histórico.

Tratando-se de imagens tão intimamente

relacionadas à palavra, o estudo da relação

entre imagem e texto, certamente se

constituiria em um tema denso para cada

uma das iluminuras existentes.

Estariam estas imagens a acompanhar o

texto do Gênesis, ou outras passagens? Que

conteúdos tensionariam texto e imagens?

Ao se concentrar exclusivamente nas

Imagens de Babel na Idade Média:entre a arquitetura real e o imaginário da arquitetura

imagens este artigo – que é parte de uma

pesquisa mais ampla sobre a iconografia de

Babel – não se aprofunda nas relações entre

texto e imagem, seus desdobramentos e

aspectos literários, o que, sem dúvida, pode

ser feito, com mais propriedade por

pesquisadores de outras áreas. Fica o registro

desta sugestão de enfoque que certamente

poderá contribuir à compreensão do

imaginário da Europa ocidental na Baixa Idade

Média.

Mas, independentes de seus textos

anexos, as imagens autônomas de Babel

podem ser interrelacionadas e associadas,

sincronicamente, à arquitetura real da época.

E é isto o que se fará aqui.

Nas iluminuras em foco predomina a

representação de Babel como torre, e não

exatamente como cidade, muito embora no

livro do Gênesis haja menção a uma cidade e

uma torre. Estas torres em miniatura são

edifícios independentes, isolados, com

aspecto militar, diferentes das torres de igreja.

Tratando-se de um tema associado ao texto

bíblico, em pleno gótico, poderia se supor o

predomínio de imagens de torres

campanárias, mas não é o que a iconografia

mostra.

As formas arquitetônicas desenhadas nos

manuscritos da Europa ocidental até o século

XVI são muito semelhantes às torres

medievais da época, comuns da Itália à

Inglaterra. Como exemplo: as torres francesas

do castelo de Foix (séc. XI) (Figura 1), das

muralhas de Carcassonne e Aigues-Mortes

IMAGENS DE BABEL NA IDADE MÉDIA: ENTRE A ARQUITETURA REAL E O IMAGINARIO DA ARQUITETURA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 33-46, NOVEMBRO 2009 35

(séc. XIII), do castelo de Vincennes (séc. XII-

XIV), e de La Rochelle (de la Lanterne, do séc.

XV, e de la Chaine e St. Nicolas, de fins do

séc. XIV); e a torre de Londres, na Inglaterra

(séc. XI).

Os castelos de pedra, na história da

arquitetura medieval, associam-se ao declínio

do Império Carolíngio e, conseqüentemente,

à transferência forçada do poder político

centralizado para vários vassalos, ocorrida em

torno do ano 1000. Substituindo o antigo

castellum medieval feito de madeira e terra

com paliçada, os edifícios em pedra afirmam

a força da ascensão da vassalagem ao poder.

Nestes castelos, como um aperfeiçoamento

da engenharia militar, foram introduzidas

torres cilíndricas, a partir do séc. XII, por sua

maior resistência aos impactos comparadas

com as antigas torres quadrangulares (BUR,

1998).

Assim como na arquitetura real, as

variações sobre a imagem da arquitetura da

torre consideram plantas quadradas ou

plantas circulares. Já a volumetria destas

torres de Babel nas iluminuras é prismática

reta, ou então escalonada1, também

chamada telescópica, por ter pisos sucessivos

com tamanho decrescente2 (Figuras 2 e 3).

1 Entre a torre com volumetria escalonada e o zigurate há uma diferença: a rampa externa espiralada. Na iconografia esta soluçãode rampa externa só se apresentada na iluminura da Bible Historiale de Jean de Berry, na França, entre 1390 e 1400, e marca umsegundo momento da história da imagem.

2 A representação de torre escalonada, rara na arquitetura medieval, introduz na imaginário de Babel um viés de fantasia queganhará força no séc. XVI à medida que as imagens da torre se distanciarão das arquiteturas reais da Europa.

Figura 1. As três torres do Castelo de Foix, em Foix, França.Fonte: Disponível em < http://www.frenchtours.com.au/cex1.php> Acesso em 07/01/09

ARTUR SIMÕES ROZESTRATEN

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 33-46, NOVEMBRO 200936

A ní t ida ident i f icação com a

arquitetura t ípica do lugar onde foi

gerada a iconograf ia sugere uma

transposição imaginária do mito de Babel

ao contexto da Europa medieval; em

outras palavras, “Babel é aqui”.

A imagem de Babel como uma típica torre

medieval européia é contextualiza no

presente dos artistas e dos leitores dos

manuscritos. As iluminuras sugerem que

Babel não é uma lenda distante, pois ela está

aqui, próxima da vida cotidiana, entrelaçada

no tempo (passado-presente-futuro) e nos

lugares (Sinar-Babilônia-Europa) e, portanto,

viva no dia-a-dia e na memória daqueles que

atuam, pensam e constroem.

Figura 2. Hortus Deliciarum do Abade Herrad Von Landsberg (1167-1195), séc. XII.Fonte: Arquivo fotográfico do Instituto Warburg, Londres.

Figura 3. Iluminura do séc. XII, sem identificação, França.Fonte: Arquivo fotográfico do Instituto Warburg, Londres.

IMAGENS DE BABEL NA IDADE MÉDIA: ENTRE A ARQUITETURA REAL E O IMAGINARIO DA ARQUITETURA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 33-46, NOVEMBRO 2009 37

Tudo indica que esta localização

geográfica de Babel na iconografia é

intencional, e não conseqüência de um

desconhecimento do Oriente Próximo, pois

as imagens medievais são posteriores às

Cruzadas, e contemporâneas à descrição de

zigurates de Benjamim Tudela (1178)3

O primeiro movimento na história da

iconografia de Babel – considerando que o texto

bíblico a situa no Oriente –, é trazê-la para perto,

e situá-la como uma arquitetura semelhantes

às construídas na Europa medieval.

E sendo a construção metáfora de grande

amplitude de sentidos, a ênfase no aspecto

construtivo da torre é evidente nas iluminuras.

As composições plásticas privilegiam os

construtores, e suas ações no canteiro de

obras. Estes, não raro, estão em primeiro

plano e têm, em cena, presença tão

importante quanto a própria arquitetura.

Também estão presentes na imagem

ferramentas, esquadros, andaimes, esteios,

cordas, rodas e roldanas associadas como

máquinas-elevadoras para subir materiais.

Alta tecnologia da época. Há homens a

carregar pedras, outros a talhar, outros a subir

escadas ou rampas. As obras estão em

andamento. A torre está em construção

(Figuras 4 e 5).

3 Escrita em hebraico, diga-se de passagem, e que a partir de 1540, com a imprensa terá 26 edições em latim e outras línguaseuropéias (ZUMTHOR, 1997).

Figuras 5. Afresco na igreja de Saint-Savin-sur-Gartempe, França,c.1100-1133.Fonte: Arquivo fotográfico do Instituto Warburg, Londres.

Figura 4. Iluminura c. 1250-1275, Dijon, França.Fonte: Arquivo fotográfico do Instituto Warburg, Londres.

ARTUR SIMÕES ROZESTRATEN

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 33-46, NOVEMBRO 200938

Trata-se de um trabalho coletivo4,

envolvendo diferentes funções que convergem

na montagem da alvenaria da torre. E a técnica

da alvenaria é explícita na maioria das imagens.

A obra envolve a disposição de peças, blocos

regulares, fiada a fiada, unidos entre si com

argamassa, dispostos em amarração

(deslocados a cada fiada).

Os desenhos registram a atenção dos

artistas aos elementos arquitetônicos, e à

tectônica, como lógica construtiva.

Estão presentes na imagem: arcos plenos

e arcos ogivais, colunas lisas, capitéis

bizantinos, grades reticuladas em janelas,

frisos externos de arremate de estruturas de

piso, ameias, cunhais, contrafortes,

alargamentos das bases das empenas como

sapatas corridas. Registro artístico da

realidade arquitetônica de uma Europa

tensionada entre a herança romana e a

invenção do gótico.

Na iconografia produzida entre o séc. XI e

XIII não é visível nenhuma estrutura para o

deslocamento vertical interno à torre. Isto é,

não há escadas nem rampas permanentes,

apenas as estruturas provisórias do canteiro

de obras, externas à torre. A introdução de

sistemas de circulação vertical permanentes

– que irão se associar definitivamente ao

imaginário da torre – pode ser percebida em

exemplos do séc. XIV, mas só será nítida nas

iluminuras de fins do XIV, início do XV, como

as imagens do folio 2 da Bible Historiale de

Jean de Berry, 1390-1400 (Figura 6), do folio

93v da Cidade de Deus de S.Agostinho, e do

folio 17v do livro das Trés riches heures do

Duque de Berry, datado entre 1414-1423

(Figura 7).

4 Como bem ressaltou Paul Zumthor (1997), o mito de Babel, diferente dos gregos, não afirma o herói individual, mas sim o heroísmocoletivo e anônimo (p.12).

Figura 6. Imagem na Bible Historiale de Jean de Berry, MS Ludwig XIII 3,folio 2, Paris, 1390-1400.Fonte: Disponível em <http://babelstone.blogspot.com>Acesso em 07/01/09.

IMAGENS DE BABEL NA IDADE MÉDIA: ENTRE A ARQUITETURA REAL E O IMAGINARIO DA ARQUITETURA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 33-46, NOVEMBRO 2009 39

Esta imagem de Babel no manuscrito do

Duque de Berry sintetiza com grande

qualidade artística vários elementos

inventados no imaginário europeu medieval

da torre.

A forma arquitetônica materializada nesta

imagem será uma referência importante para

a principal imagem renascentista da torre.

Aquela feita para o Breviarium Grimani

c.1500 e, portanto, faz a passagem entre a

iconografia de tradição medieval e as

expressões renascentistas e barrocas que se

apropriarão de certos elementos,

acrescentarão outros, e transformarão o

imaginário de Babel.

No enquadramento das iluminuras, a

arquitetura ocupa quase todo o espaço da

imagem. A cena é concentrada, desenvolve-

se no primeiro plano, há pouquíssima

profundidade, e as torres não são construções

monumentais em tamanho sobre-humano, e

nem se encontram ao fundo, na paisagem.

São construções com tamanho próximo ao

das figuras humanas, e próximas também do

observador, junto ao primeiro plano: “Babel

não é longe, é aqui mesmo”. As torres

medievais de Babel são construídas pelos

homens, no lugar onde estes vivem, e têm,

nas imagens em miniatura, o tamanho destes

homens (Figura 8).

A tradição medieval da iconografia de

Babel firma, assim, uma relação realista com

seu contexto histórico, e as imagens da Torre

são pautadas tanto pelas formas da

arquitetura real, quanto por seus

procedimentos técnico-construtivos.

O vínculo com o contexto parece estar na

contramão das interpretações mais

difundidas acerca da passagem cultural do

mundo medieval para o mundo

renascentista5. Ao contrário do óbvio, a

iconografia medieval de Babel é realista,

referencia-se no mundo cotidiano, enquanto

a renascentista é fantasiosa e explora um

distanciamento da realidade na construção

de outros mundos.

Como se vê, a imagem não é,

necessariamente, uma redundância

ilustrativa de certas idéias e visões de mundo

que se têm como típicas de um determinado

período artístico. Nem toda arte medieval é

idealizada e transcendente, assim como nem

toda imagem renascentista é realista ou

cientificista. A iconografia de Babel é um

Figura 7. Imagem no Trés riches heures do Duquede Berry, folio 17v, Paris, 1414-1423.Fonte: Arquivo fotográfico do Instituto Warburg,Londres.

5 A Renascença aqui em foco não é a italiana, mas a flamenga que produziu um acervo de dezenas de imagens de Babel.

ARTUR SIMÕES ROZESTRATEN

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 33-46, NOVEMBRO 200940

exemplo deste desajuste da imagem, ao

inverter, paradoxalmente, aquilo que se

considera ser a postura típica da cultura

artística da Idade Média e da Renascença.

A iconografia de Babel, justamente por

seu vínculo inequívoco com o texto do

Gênesis, exemplifica não só a autonomia das

imagens com relação ao texto, como também

com relação à kunstwollen predominante do

período artístico no qual foi gerada.

Quanto ao enfoque realista, este não

deixa de ser simbólico, e confere a cada torre,

em particular, o papel universal de signo de

cidade.

Babel é uma cidade-torre. As cidades

medievais também: civitas muradas, urbs com

torres. Estas cidades, “renascidas”6 a partir

do ano 1000 (LE GOFF, 1998), têm nas torres

seu elemento vertical mais visível, seu marco

na paisagem, sua identidade arquitetônica

que migra do mundo real para as

composições miniaturizadas nos folios dos

manuscritos, em cores e linhas pacientemente

desenhadas, e carregadas de ambigüidades

entre a afirmação de um novo humanismo e

os mistérios dos desígnios divinos. E em meio

ao predomínio de imagens medievais de

Babel como torre, o afresco de Cimabue,

pintado em 1283 na Basílica de S.Francisco

de Assis, em Assis, na Itália, inaugura a

tipologia de imagens de Babel como cidade.

Este enfoque artístico da cidade-muralha

possui raras expressões no séc. XIV, como o folio

16r da Bible Historiale (c.1320-1340) (Figura

9) e no séc. XV, como o folio 51 do Livre du

Trésor (1425) (Figura 10), mas sinaliza para as

expressões artísticas dos séculos posteriores,

uma nova possibilidade compositiva.

Figura 8. Iluminura do séc. XI-XIII, sem identificação, França.Fonte: Arquivo fotográfico do Instituto Warburg, Londres.

6 O tema da sobrevivência de cidades romanas na Europa medieval continua a intrigar os pesquisadores e poderia ganhar umacontribuição importante com uma participação mais intensa de historiadores do urbanismo.

IMAGENS DE BABEL NA IDADE MÉDIA: ENTRE A ARQUITETURA REAL E O IMAGINARIO DA ARQUITETURA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 33-46, NOVEMBRO 2009 41

Figura 10. Imagem em Le Livre du Trésor, folio 51, Florença, 1425.Fonte: Disponível em <http://babelstone.blogspot.com> Acesso em 07/01/09.

Figura 9. Imagem na Bible Historiale, folio 16r, Paris, c.1320-1340.Fonte: Disponível em <http://babelstone.blogspot.com> Acesso em 07/01/09.

ARTUR SIMÕES ROZESTRATEN

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 33-46, NOVEMBRO 200942

Se a imagem da cidade corresponde

historicamente à afirmação de um novo

humanismo citadino, especialmente na

França do séc. XIII, os paradoxos do

imaginário medieval da época não se

ausentam e personificam em cena seres

transcendentais.

Embora a maior parte das iluminuras

retrate apenas homens, diretamente

envolvidos nas operações construtivas, há em

algumas imagens, outras figuras presentes:

seres alados, Deus como um personagem

aureolado e barbado, demônios, e outras

manifestações como “o verbo” em fita

serpenteante, e a natureza em ação

destrutiva, etc.

Nas iluminuras do séc. XI e XII o confronto

mitológico é encenado dispondo Deus, de um

lado, em uma extremidade do campo visual

da imagem, e os homens, do outro. No

entanto, a presença de seres celestiais é breve,

e rara, assim como é rara a imagem da torre

sendo destruída. Em geral é a construção que

se apresenta, e a destruição é uma

possibilidade futura, ainda ausente, que será

gerada pelo construir.

Nos canteiros de obras da iconografia de

Babel a partir do início do séc. XIV há

composições que associam ao grupo de

trabalhadores outro grupo de homens que

observam e, às vêzes, parecem conversar a

respeito da obra, apontam e gesticulam. Entre

estes homens há sempre um personagem

principal, que se coloca à frente do grupo.

A caracterização do grupo e deste

homem, na primeira metade do séc. XIV, é

feita com barbas e mantos, e ele leva, às

vezes, um cajado ou uma vara na mão.

No início do séc. XV surge uma variação

com o personagem principal coroado, e o

grupo armado como soldados (Figuras 11 e

12).

Figura 11 . Imagem de Michiel van der Borch naRhimebible de Jacob van Maerlant, folio 9, Utrecht,1332. Fonte: Disponível em <http://babelstone.blogspot.com> Acesso em 07/01/09.

IMAGENS DE BABEL NA IDADE MÉDIA: ENTRE A ARQUITETURA REAL E O IMAGINARIO DA ARQUITETURA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 33-46, NOVEMBRO 2009 43

No último quartel do séc. XV várias

imagens retratam esta figura principal com

mantos e capas luxuosos e exagerados,

chapéus extravagantes, e sapatos

pontiagudos em uma nítida caracterização

oriental.

A entrada em cena destes “Nimruds”

aponta um deslocamento geográfico no

imaginário de Babel 7. Uma guinada oriental,

conjugada à ruptura na homogeneidade

coletiva da obra arquitetônica.

Afirma-se, agora, um indivíduo à frente do

grupo que trabalha no canteiro de obras. E

este é retratado como um homem mais alto

que se veste de maneira exótica, e comanda

os demais (Figura 13). Arquiteto, mestre-de-

obras ou empreendedor, Nimrud, personaliza

o novo “filho dos homens” renascido. Herói

ou anti-herói?

A partir de 1500, a relação auto-

referenciada da iconografia da torre com a

arquitetura medieval da Europa ocidental se

romperá, e seu reposicionamento geográfico-

espacial será concomitante ao ganho de

profundidade nas imagens.

As composições que, já desde a primeira

metade do séc. XV, sugerem profundidade,

ganharão com a perspectiva linear um

aprofundamento do espaço da imagem, que

acrescentará à cena da construção da torre

uma paisagem. E sobre esta representação

espacial a pintura a óleo dará à atmosfera

envoltória da torre uma textura aérea densa

e vibrante de brilhos e cores.

Nas telas flamengas as ambigüidades e

paradoxos de Babel ganharão espaço na

vibração tensa da incongruência entre

paisagem “natural” – ora típicas de Flandres,

ora fantasia de outros lugares – e arquiteturas

fantásticas – com formas próximo-orientais e

até mesmo asiáticas – onde se encena o

drama humano (Figura 14).

7 Parrot (1954, p.24) faz menção a uma imagem da associação entre Nimrud e a torre, pintada sobre madeira, em Veneza, atribuídaa Jan Swart (1470-1535).

Figura 12. Imagem na History Bible, KB 78 D 38 I, folio 16 v, Utrecht, c.1430.Fonte: Disponível em <http://babelstone.blogspot.com> Acesso em 07/01/09.

ARTUR SIMÕES ROZESTRATEN

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 33-46, NOVEMBRO 200944

Figura 13. Imagem no La Bouquechardière de Jehan de Courcy, MMW 10 A 17, folio184r, Rouen e Carlat, anterior a 1477.Fonte: Disponível em <http://babelstone.blogspot.com> Acesso em 07/01/09

Figura 14. Óleo I de Lucas van Valkenborch (1535-1612), Galerie de Jonckheere, Paris,1568.Fonte: Disponível em <http://babelstone.blogspot.com> Acesso em 07/01/09.

IMAGENS DE BABEL NA IDADE MÉDIA: ENTRE A ARQUITETURA REAL E O IMAGINARIO DA ARQUITETURA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 33-46, NOVEMBRO 2009 45

Houve uma ruptura do eixo cultural que

interligava a Europa medieval, a partir do

Mediterrâneo, no sentido norte-sul, e uma

afirmação, cada vez mais intensa, reforçada

pelas navegações oceânicas, de um eixo

leste-oeste, oriente-ocidente.

Neste mundo novo de amplos espaços, a

racionalidade e a imaginação aliam-se para

o domínio estratégico do Atlântico, para a

exploração das colônias, e para a reinvenção

de Babel em um mundo ampliado na

paisagem profunda e azulada das telas.

Na região de Flandres, ao longo do séc.

XV, o desejo de pintores e seus clientes

construirá dezenas de imagens da cidade-

torre mitológica que, desde então, existem

em um lugar imaginário: no fundo dos nossos

olhos.

Babel, agora, é lá.

Referências bibliográficas

HÉRODOTE. l’Enquête, livre I à IV, AndréeBarguet, Gallimard, 1964.

BAZIN, G. Le crépuscule des images. Paris:Gallimard, 1946.

BIELINSKI, P. Gustave Doré et la Ziggurat deBabylone. In: Le dessin d’architecture dans lessociétés antiques. Anais do colóquio deStrasbourg, 26-28 de Janeiro de 1984.Strasbourg: Université des Sciences Humaines deStrasbourg, Centre de Recherche sur le Proche-Orient et la Grèce antiques, 1985. p.59-62.

BORGES, J.L. Ultima nota su Babele in L’ombradella Torre, FMR, Edizione italiana. 1989, n.68.p. 15.

BUR, M. A guerra e a arquitetura: a mota e ocastelo. In: DUBY, G.; LACLOTTE, M. (org.). AIdade Média – História Artística da Europa, TomoII. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.

CONTENAU, G. Le déluge babylonien : suivi deishtar aux enfers la Tour de Babel. Paris : Payot,1941.

GRESSMANN, H. The tower of Babel. Nova York:Jewish Institute of Religion Press, 1928.

GUBEL, E.; CARDON DE LICHTBUER, D. In deSchaduw van Babel/A l’ombre de Babel. Leuven:Peeters, 1995.

LE GOFF, J. Por amor às cidades: conversaçõescom Jean Lebrun. Reginaldo Carmello Corrêa deMoraes (trad.). São Paulo: Fundação Editora daUNESP, 1998.

MARTIN-JACQUEMIER, M. L’Âge d’or du mythede Babel 1480-1600. De la conscience de l’alteritéà la naissance de la modernité. Mont-de-Marsan:Editions InterUniversitaires-Eurédit, 1999.

PARROT, A. Ziggurats et tour de Babel. Paris:Michel, 1949.

__________. La Tour de Babel. Neuchâtel:Delachaux & Niestlé, 1954.

RYKWERT, J. A casa de Adão no Paraíso. São Paulo:Perspectiva, 2003.

SAXL, F. La vida de las imágenes. Madrid: AlianzaEditorial, 1989

VICARI, J.; BRÜSCHWEILER, F. Les Ziggurats deTchogha-Zanbil (Dur-Untash) et de Babylone. In:Le dessin d’architecture dans les sociétés antiques.Anais do colóquio de Strasbourg, 26-28 deJaneiro de 1984. Strasbourg: Université desSciences Humaines de Strasbourg, Centre deRecherche sur le Proche-Orient et la Grèceantiques, 1985. p.47-57.

ZUMTHOR, P. Babel ou L’Inachèvement. Paris:Éditions du Seuil, 1997.

“LÁPICES SIN PUNTA” – IMAGENS DA INFÂNCIA E DA ADOLESCÊNCIA NA GUERRA CIVIL ESPANHOLA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 47-58, NOVEMBRO 2009 47

Recebido em: 09/05/2009 Aprovado em: 05/09/2009

“Lápices sin punta” – Imagens da infância eda adolescência na Guerra Civil Espanhola

RESUMO

Este artigo busca analisar os discursos alternativos sobre a história da Guerra Civil Espanhola(1936-1939) a partir do poema España, aparta de mí este cáliz (1939), de César Vallejo, dofilme El Espinazo del diablo (2001) de Guilhermo del Toro, e em alguns desenhos de criançase adolescentes feitos na ocasião da guerra. O artigo apresenta que as imagens podemdemonstrar diferentes situações da infância e da adolescência, vítima e testemunha da história.PALAVRAS-CHAVE: história; memória; arquivos; Guerra Civil Espanhola.

ABSTRACT

This article analyses history’s alternative discussions regarding the Spanish Civil War (1936-1939). The questions proposed regarding the discussions of the poem España, aparta de míeste cáliz (1939), by César Vallejo, in the movie El Espinazo del diablo (2001) by Guilhermodel Toro and in the some of the designs the children made during the war. The article attemptsto demonstrate that these images have the ability to portray different circumstances ofchildhood and the adolescence depicts as victims and witnesses in history.KEYWORDS: history; memory; files; Spanish Civil War.

Carla Damêane P. de Souza

Mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisadorado Núcleo de Estudos em Letras e Artes Performáticas (NELAP) – UFMG. Autora de, entre outrosartigos, “A experiência metacrítica em César Vallejo: implicações sobre uma arte socialista, por umanova poética”. Revista Litteris, v. 1, p. 1-14, 2008.

CARLA DAMÊANE P. DE SOUZA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 47-58, NOVEMBRO 200948

Em um texto bastante curioso sobre aexperiência de Marcel Duchamp quandovivia em Buenos Aires, logo depois daPrimeira Guerra Mundial (1914-1919), opesquisador Raúl Antelo empreende atarefa de explicar a obsessiva idéia doartista francês em executar uma obra quetrouxesse à arte contemporânea umaperspectiva tetradimensional, umapluridimensionalidade espacial queexpressasse simultaneidade temporal comose fosse uma espécie de palimpsestomemoralístico. Tratava-se de o Grande Vidro

ou, A noiva desnudada por seus celibatários.Antelo considera que neste objeto, em cadafração de duração dos quadros de vidro,encontra-se o exemplo do que seria a durée

“Lápices sin punta” – Imagens da infância e daadolescência na Guerra Civil Espanhola1

bergsoniana. Na medida em que todasestas pequenas partes relacionam-se afraturas passadas e futuras, constrói-se umaespécie de presente com múltiplasdurações.

Sobre o Grande Vidro de Duchamp, RaúlAntelo nos diz que “laberinto [espacial] ypalimpsesto [temporal] son así las imágenesde un pensamiento de lo plural que juzgaaislar en lo infraleve el pasaje de lo uno a lootro” (ANTELO, 2006, p.12). A reflexão deRaúl Antelo está ainda associada aopensamento de Nietzsche, ao que se refereà Teoria da História, desenvolvida pelofilósofo alemão, em que são enfatizadas asidéias de “hiperhistoricismo” e “eternoretorno”. Antelo alude, singularmente, à

1 Fotografia do Natal de 1938 em um abrigo para meninos em Valencia. Disponível em: “La derrota Republicana”. In: Imágenes dela Guerra Civil Española. Memória Republicana. Sociedad Benéfica de Historiadores, Aficcionados y Creadores. Acesso em: 11 defev. 2009. Disponível em: <http://www.sbhac.net/Republica/Imagenes/FotoDerrota/FotoDerrota.htm>.

“LÁPICES SIN PUNTA” – IMAGENS DA INFÂNCIA E DA ADOLESCÊNCIA NA GUERRA CIVIL ESPANHOLA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 47-58, NOVEMBRO 2009 49

metáfora do inseto preso em uma massaviscosa a que considera como sacrifical.

O raciocínio de Antelo é pertinente à idéiade que podemos, de maneira analógica,referirmo-nos a objetos artísticos diferentesque amparam um tema comum. Algo comose, inseridos neste labirinto de memórias daGuerra Civil Espanhola, pudéssemosaproximar as imagens de pensamentosplurais que se encontram individualmente, etemporalmente, separados. No entanto, sãoimagens que podem trazer alguma outrainterpretação sobre a história. Desta forma,referimo-nos ao tema de nosso trabalho e aosobjetos que trazem tais imagensemaranhadas cada qual, em seu específico“presente de múltiplas durações”.

Diante da aproximação de objetosdistintos pretende-se refletir sobre osdiscursos alternativos da históriademonstrados tanto pelo registromemoralístico da Guerra Civil Espanhola(1936-1939) no momento de suaemergência, como é o caso do poemaEspaña, aparta de mí este cáliz (1939)escrito por César Vallejo, tal como, pelaficcionalização de uma situação específicadaquele conflito através do filme El Espinazo

del diablo (2001) de Guilhermo del Toro, eatravés da exposição “Apesar de Tododibujan: la Guerra Civil vista por los niños”organizada pela Biblioteca Nacional daEspanha entre os dias 29 de novembro de2006 a 18 de fevereiro de 2007.2

¿Qué es un fantasma?

O personagem Carlos interpretado porFernando Tielve, em El Espinazo del diablo

(2001), é um órfão da Guerra Civil Espanhola.O garoto é levado por seu tutor a um orfanatoem Santa Lucía, local de resistênciarepublicana protagonizado pelo ProfessorCasares, personagem de Federico Lupi, e peladiretora Carmen (Marisa Paredes). Carmencarrega em seu corpo sequelas da guerravisivelmente demonstradas pelo uso de umaprótese mecânica em lugar da perna. Levaconsigo um molho de chaves entre as quaisestá aquela que abre o cofre que se encontrano refeitório e é onde está o ouro responsávelpor financiar a resistência republicana emBarcelona. O ouro escondido é motivo decobiça para Jacinto (Eduardo Noriega),porteiro e ex-interno do orfanato. Homem deíndole misteriosa, durante todo filme juntocom Jaime (Iñigo Garcés) também interno, éo único que sabe o que aconteceu a Santi(Andréas Muñoz), criança que desaparece namesma noite em que é lançado um míssil nopátio do colégio.

A chegada de Carlos no orfanato marca oinício do esclarecimento sobre o mistério emtorno de Santi que vive uma realidade paralelaao mundo dos vivos, e tenta se comunicarcom Carlos, sensível aos seus chamados. Oque nos chama atenção durante todo o filmediz respeito a esta manifestação do fantásticocomo princípio esclarecedor de algo real.Além de que, o mistério que envolve Santiserve de metáfora metonímica para algo queacontecia na própria Guerra Civil Espanhola.

Internamente, sabemos que se trata deum evento complexo onde focos deideologias diversas entraram em choque. Asociedade espanhola estava dividida entrenacionalistas e republicanos, e vários paísestiveram uma participação decisiva desde oinício do conflito. Entre os mais evidentes,

2 A exposição até hoje pode ser visitada através do site da Biblioteca Nacional da Espanha no endereço <http://www.bne.es/esp/actividades/apesardetododibujan8.htm>. Acesso em 10 de fev. 2009.

CARLA DAMÊANE P. DE SOUZA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 47-58, NOVEMBRO 200950

podemos citar a Alemanha, a Itália, a exUnião Soviética,3 além da participação devoluntários estrangeiros, que movidos poruma sinergia específica relacionada àpossibilidade de uma revolução marxista-lenista na Espanha, foram às frentes e lutaramem defesa da República.

España, aparta de mí este cáliz (1939), élivro póstumo de César Vallejo (1898-1938).Escritor peruano, Vallejo viveu em exíliopolítico e de certa forma tambémcompulsório, durante 15 anos na Paris dasdécadas de 1920 e 1930. Diverso ao projetoliterário inicial de sua carreira, a influência dopartido comunista exerceu uma fortemudança na sua forma de escrever, tornandosua poética caracterizada internamente poruma dialética entre o estético e o ético. Suaaproximação com a Segunda RepúblicaEspanhola fez com o que, diante do conflitoque se iniciou em 1936, se posicionasse emfavor da resistência antifascista e na defesada República, a exemplo de outros artistasestrangeiros, como Pablo Neruda, AlexisTolstoy, Tristan Tzara.4

Consideramos que España, aparta de mí

este cáliz (1939), pode ser lido segundoconsidera Paul Ricœur em seu livro, A

memória, a história, o esquecimento (2007),como um tipo de arquivo memoralísticooperante junto à constituição historiográficada Guerra Civil Espanhola. Operante porqueatravés deste tipo de arquivo podemosadquirir conhecimentos sobre variadasversões e discursos da história em questão.Distinto dos rastros cerebrais ou afetivos, o

arquivo memoralístico escrito ocupa paraRicœur, além de um lugar físico e espacial,também um “lugar social” (RICŒR, 2007,p.177).

Este “lugar social” é que norteia a relaçãoestreita do arquivo com a epistemologiahistoriográfica. Ainda que não façam parteda historiografia oficial, muitos arquivosliterários tornam-se importantes naconstrução de novas perspectivas históricas,na medida em que suscitam memóriasrecalcadas e discursos de atores sociais quenão possuem um lugar de enunciaçãolegitimado. Ao romper com a tradição detestemunhos orais, o testemunho arquivadode acordo com Ricœur (2007, p.178),“assume em primeiro plano a iniciativa deuma pessoa física ou jurídica que visa apreservar os rastros de sua própria atividade;essa iniciativa inaugura o ato de fazer história”.

A curadoria da exposição “Apesar de Tododibujan: la Guerra Civil vista por los niños”explicou que entre 1.127 desenhos infantistiveram que escolher os que melhorrepresentassem as impressões de crianças ede adolescentes diante de tal emergênciahistórica. Foram, por isso, classificados deacordo com os temas a que remetem, porexemplo, “La politización de los niños” “Laguerra en Madrid” “La vida antes de laguerra”. Ao resgatar estes desenhos, aBliblioteca Nacional da Espanha, emboratenha exposto um número restrito dos tantostrabalhos que possui em seu acervo, permiteque este arquivo venha se não iluminar, pelomenos indicar-nos um caminho de segurança

3 Ver em THOMAS, Hugh. A guerra civil dentro da Guerra Civil. In: THOMAS, Hugh. A Guerra Civil Espanhola. Vol. 2. Rio de Janeiro:Editora Civilização Brasileira, 1964. Entre outros conflitos internos apontados por Thomas, as negociações com os nacionalistas,entendemos como a participação dos estados totalitários italiano e alemão foram decisivos no decorrer da Guerra Civil Espanhola,tal como, o Pacto não Agressão entre Alemanha e União Soviética que mudou decisivamente a participação da União Soviéticaque passou a restringir a atuação das milícias tornando-as ilegais quando não, reprimindo violentamente, os civis espanhóis.

4 Aqui fazemos alusão à participação de César Vallejo no Segundo Congresso Internacional de Escritores Antifascistas para aDefesa da Cultura, celebrado em Madri em julho de 1937. Na ocasião do Congresso, César Vallejo leu seu célebre texto “Laresponsabilidad del escritor”. Entre muitos escritores presentes, Pablo Neruda, Alexis Tolstoy, Tristan Tzara, citados em nossotexto, também estiveram presentes no Congresso.

“LÁPICES SIN PUNTA” – IMAGENS DA INFÂNCIA E DA ADOLESCÊNCIA NA GUERRA CIVIL ESPANHOLA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 47-58, NOVEMBRO 2009 51

no qual podemos compreender o passado pormeio de olhares que estão suspensos emrelação à consciência sobre a guerra. Sobreestes desenhos, eles são documentoshistóricos que fazem parte das memórias daGuerra Civil Espanhola dentre tantas outrasmanifestações que não podemos dizer queforam realizadas com intuito de resistir aoesquecimento, mas que são atualmentetratados por pesquisadores como arquivos.Resistem ao tempo e através deles, podemosadquirir conhecimentos sobre variadasversões e discursos da história em questão.

No poema España, aparta de mí este cáliz

(1939), por exemplo, além de o escritorregistrar ficcionalmente um testemunho sobresua experiência na Guerra Civil Espanhola –assumir um posicionamento intelectualenquanto aquele que se posicionaresponsavelmente diante da história, –apresenta-o de maneira dialética,escrevendo-a como indivíduo que faz partedeste ato de fazer história, enquanto que ascrianças registram-se na história por meio deseus desenhos, atribuindo a eles testemunhode que viveram naquele momento.

El Espinazo del diablo (2001), por outrolado, vem a serviço de um trabalho queposterior a escrita da história da Guerra CivilEspanhola, suscita debates ao referir-se aopassado através da construção de discursos eprojeções de imagens que trazem a bailamemórias não hegemônicas, ou, aquilo quenão foi visto, mas passível de interpretaçãograças aqueles que sobrevivem para contarou seja, graças as marcas que são deixadaspelos arquivos como acontece no caso dasfotos e desenhos.

Daniel Muchnik (2004) em seu livro Gallo

rojo, Gallo negro. Los intereses en juego en la

Guerra Civil Española, nos diz que 30.000

crianças espanholas tiveram que deixar o paísdurante o conflito, sendo que outras 70.000também deixaram o país após o fim oficial daguerra e a vitória do fascismo. Fatalmenteórfãs, a maioria destas crianças foram levadasàs casas de abrigo ou antigos semináriosemergentemente transformados em colégiosnos vários países que as receberam, desde oMéxico até a Rússia.

No filme de Guilhermo del Toro, a situaçãoda criança e do adolescente no contexto daGuerra Civil Espanhola é demonstrada pelarelação constituída entre elas e estes abrigospara onde eram levadas, ainda que em El

Espinazo del diablo (2001), o orfanato estáem território espanhol. A presença do míssilfincado no pátio do orfanato é durante todanarrativa a incisão de que a Guerra está ládentro junto à tensão produzida pelas relaçõesentre os adultos que ali vivem. EnquantoProfessor Casares e a Diretora Carmen sepreocupam com a situação da Guerra, –fazem comentários sobre a ocupação deBarcelona, e sobre o assassinato derepublicanos perto da região onde seencontra o orfanato, por homens do exércitonacionalista –, Jacinto preocupa-se emencontrar o ouro que Carmen usa parafinanciar a resistência republicana.

Neste mesmo contexto temos os garotosque entre uma ou outra aula, reconhecem-sesozinhos, entendem e sofrem a situação mas,a exemplo de Carlos, encaram o momentobravamente enfrentando todo e qualquerfantasma. Santi, que é o fantasma da história,é a metáfora viva, o inseto preso em âmbar,ou na massa viscosa a que se referia Nietzschealiada a fala inicial e final proferida peloProfessor Casares:

¿Qué es un fantasma? ¿Un evento terriblecondenado a repetirse una y otra vez? ¿Un

CARLA DAMÊANE P. DE SOUZA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 47-58, NOVEMBRO 200952

instante de dolor quizá? ¿Algo muerto queparece por un momento vivo aún?... Unsentimiento suspendido en el tiempo comouna fotografía borrosa… como un insectoatrapado en ámbar.5

A própria memória podemos considerá-laa partir desta relação fantasmagórica quandoa lembrança se demonstra pelas ruínas, selemos as relações problemáticas entreesquecimento e história no contexto dasrecentes guerras do século XX. Reflexões jáexploradas por Walter Benjamin6 em textoscomo “A obra de arte na era de suareprodutibilidade técnica”. Vale salientar aquiuma consideração de Walter Benjamin(1994) referente à produção e popularização,no começo do século, dos livros infantis, talcomo os brinquedos e todo tipo de artifícioque inventado pelo adulto, de algumamaneira serviu e serve até hoje parafamiliarizar a criança ao seu mundo. Benjamin(1994) diz que, desde o Iluminismo ospedagogos se esforçavam por criar meios dedistração para as crianças posicionando-asdiante das imagens de um mundo de gentegrande já pronto, mas que por outro lado,estas sempre foram seduzidas por algo que –diverso do que já encontram nos livros ebrinquedos – elas mesmas pudessem construir.Daí, a explicação dada por Benjamin (1994),com relação ao prazer da criança emfrequentar oficinas de produção:

Elas se sentem atraídas irresistivelmentepelos detritos, onde quer que eles surjam –na construção de casas, na jardinagem, nacarpintaria, na confecção de roupas. Nessesdetritos, elas reconhecem o resto que omundo das coisas assume para elas, e sópara elas. Com tais detritos, não imitam omundo dos adultos, mas colocam os restos

e os resíduos em uma relação nova e original.Assim, as próprias crianças constroem seumundo de coisas, um microcosmos nomacrocosmos (BENJAMIN, 1994, p.238).

Pensando na consideração de Benjamin(1994) pergunto-me se o desenho destascrianças e adolescentes não seriam tambémuma forma de apresentar um “microcosmosno macrocosmos”? Os desenhos expostosconstituem restos de um tempo passado,restos porque não foram considerados,naquele momento, como uma apresentação“macro” – filme, fotografia, relatos, todas asfontes canônicas da história da guerra civil –que regiam os discursos ecoados dosacontecimentos. De que lugar falava estacriança? Sob qual céu acompanhavam osbombardeios? Como podemos conferir aestes desenhos, se não por sua qualidade dearquivo, o status de monumento e ouconstrução de uma consciência da criança edo adolescente a respeito da guerra?

Se Vallejo o faz através da projeção de seuideal revolucionário nestas criança eadolescentes que sobrevivem à guerra, nopoema eles são interlocutores junto ao texto:

Niños del mundo,si cae España, – digo, es un decir –si caedel cielo abajo su antebrazo que asen,en cabestro, dos láminas terrestres;niños, ¡qué edad la de las sienes cóncavas!¡qué temprano en el sol lo os decía!¡qué pronto en vuestro pecho el ruido anciano!¡qué viejo vuestro 2 en el cuaderno!(VALLEJO in: VÉLEZ, 2000, p.285).

No filme de del Toro fica a sugestão deque as crianças e adolescentes são aquelespara os quais é dada a chance de sobreviver

5 Transcrição minha. Fala inicial e final do Professor Casares em El Espinazo del Diablo.6 Ambos os textos citados encontram-se em BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história

da cultura. VOL. I. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

“LÁPICES SIN PUNTA” – IMAGENS DA INFÂNCIA E DA ADOLESCÊNCIA NA GUERRA CIVIL ESPANHOLA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 47-58, NOVEMBRO 2009 53

ao conflito. Estes garotos fariam parte dageração que construiria a narrativa bélica pósGuerra Civil Espanhola.

Buscar Espanha

O poema que dá título ao livro de CésarVallejo é escrito como uma carta.Ligeiramente cuidadoso o poeta vem falar àscrianças do mundo, e não somente às criançasespanholas. A preocupação, o receio e o aviso,“si cae España” refere-se à Guerra CivilEspanhola. Diante das crianças do “mundoenfermo” resta para Vallejo lamentar em seupoema a sina de cada uma delas “las de lassienes cóncavas” as crianças que envelhecempela obrigatoriedade de enfrentar temposdifíceis à custa de sua própria educação.Podemos perceber que cada um dosdesenhos, foi feito sob residências infantis ouorfanatos. Se de um lado temos o poeta cientedo que acontece com estas crianças – suacondição de orfandade – por outro lado osdesenhos respondem de que forma cada umadelas compreende o que está acontecendo.

No desenho de Rafael Cerillo, umadolescente de 13 anos, tarefas rotineirascomo ir comprar o leite torna-se uma aventuracatastrófica.

Ameaçado pelos bombardeios aéreos, seudesenho, “Bombardeio na fila do leite”7 é omodo de referenciar a guerra civil, onde ele eseus compatriotas tinham que lidar comsituações de risco. O desenho independe dequalquer explicação. Mas Vallejo, em seupoema, explica as crianças diagnosticando oque acontece na Espanha:

¡Niños del mundo estála madre España con su vientre a cuestas;está nuestra madre con sus férulas,está madre y maestra,cruz y madera, porque os dio la altura,vértigo y división y suma, niños;está con ella, padres procesales!(VALLEJO in: VÉLEZ, 2000, p.286).

O escritor lamenta a efeito deprognósticos, as possíveis consequênciasadvindas com a queda da RepúblicaEspanhola: o envelhecimento precoce juntoà falta de perspectiva para as crianças eadolescentes que sobrevivessem ao conflito,a desilusão por tê-lo experienciado e setornarem sobreviventes, a busca de um lugarpara onde pudessem seguir em exílio.Continuar na Espanha poderia significar esteprognóstico vallejiano de não poder parar notempo, “¡cómo vais a cesar de crecer!” eainda, a impossibilidade de, com a queda daEspanha, seguirem vivendo em um mundomais justo. A queda de Espanha Republicanasignifica, afinal, retroceder aos velhos dogmase tradições.

Os personagens do filme de del Toropassam por transformações semelhantes.Lembremos que a ameaça que Jacintorepresentava a eles, fez com o quedesenvolvesse certa desilusão, por parte deJaime e de Carlos mais precisamente. Os dois

7 Desenho de Rafael Cerillo. 13 años. Bombardeio na fila do leite. Teruel. Colônia escolar Germán de Araujo, Alcañiz. Encontra-sena sessão “A ruptura do mundo da infância”. Faz parte da exposição na Biblioteca Nacional “A pesar de todo dibujan.” Acessoem 10 de fev. 2009. Disponível em: <http://www.bne.es/esp/actividades/apesardetododibujan8.htm>.

CARLA DAMÊANE P. DE SOUZA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 47-58, NOVEMBRO 200954

decidem tomarem armas e se defenderamjunto aos outros garotos quando Jacinto passaa representar perigo. Juntos, as criançasacabam também se tornando criminosas, caipor terra à imagem desta Espanha que é mãee também mestra. Pensa-se na figura daprofessora Carmen, que para os meninospoderia assumir a função desta mãe mestrefisicamente debilitada que inclusive, possuirelações viciosas com Jacinto. Como mestre,os garotos vivem uma situação ondeaprendem uma lição que excede, já empalavras de Vallejo, “as grades do alfabeto”.

Si cae – digo es un decir – si caeEspaña, de la tierra para abajo,Niños ¡cómo vais a cesar de crecer!¡cómo va a castigar el año al mes!¡cómo van a quedarse en diez los dientes,en palote el diptongo, la medalla al llanto!¡Cómo va el corderillo a continuaratado por la pata al gran tintero!¡Cómo vais a bajar las gradas del alfabetohasta la letra en que nació la pena!(VALLEJO in: VÉLEZ, 2000, p.286).

Ao mesmo tempo o escritor declina suafala e parece murmurar, como se o medo,como se a ameaça “si cae España” fosse,porque era real. Todo o futuro estaria nasmãos das crianças, filhos de milicianos quesofriam sua tragédia. Crianças como Hamleta conversar com uma caveira, tentandoapaziguar sua dor pela esperança de umpossível triunfo:

Niños,hijos de los guerreros, entre tanto,bajad la voz que España está ahora mismorepartiendo

la energía entre el reino animal,las florecillas, los cometas y los hombres.¡Bajad la voz, que está con su rigor, que esgrande, sin saberqué hacer, y está en su manola calavera hablando y habla y habla,la calavera, aquélla de la trenza,la calavera, aquélla de la vida!(VALLEJO in: VÉLEZ, 2000, p.286).

A referência feita a Shakespeare, já haviasido apontados por Júlio Vélez (2000, p. 286),como proposta de leitura e interpretação dapresença da caveira falante. Mas diferenteda caveira com quem Hamlet dialoga a dopoema vallejiano, apesar de representar ummau presságio, é ela quem presentifica a vida,ou seja, é uma personificação da morte quefala às crianças sobreviventes como umfantasma.

Este caráter oracular existe também emEl Espinazo del Diablo (2001). Santi haviajá feito um prognóstico a Carlos sobre aexplosão causada por Jacinto e que foiresponsável pela morte de muitos dosinternos, da morte de Carmen econseqüentemente, da morte de Conchitae do Professor Casares. Sem deixarmos deconsiderar ainda, que a presença do míssilseja um indicativo de tensão, como sequalquer coisa pudesse acontecer dentro doorfanato.

O poemário de guerra de César Vallejo,em suma, não nos deixa uma mensagempessimista diante da guerra, como acontecenos desenhos, cujas imagens são temerosas.Acontece por exemplo, nos bombardeiosdesenhados em sua emergência por LuisAparicio Alonso:8

8 Desenho de Luis Aparicio Alonso. 10 anos. Valencia. Escuela Hogar Antella. Apresentado no tema “La presencia de la guerra” naexposição “Apesar de todo dibujan.” Acesso em 10 de fev. 2009. Disponível em: <http://www.bne.es/esp/actividades/apesardetododibujan8.htm>.

“LÁPICES SIN PUNTA” – IMAGENS DA INFÂNCIA E DA ADOLESCÊNCIA NA GUERRA CIVIL ESPANHOLA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 47-58, NOVEMBRO 2009 55

Nos poemas de Vallejo há uma mensagempositiva: é nas crianças e adolescentes que opoeta consegue enxergar uma forma de porfim a guerra, de apaziguar a tragédia, de vera Espanha derrotada e seu “lápis sem ponta”como metáfora viva de ruína e perda dasilusões, tal como a relação que podemosperceber entre o Professor Casares e osmeninos que ao fim da película, sobrevivemà explosão e deixam o orfanato:

!Bajad la voz, os digo;bajad la voz, el canto de las sílabas, el llantode la materia y el rumor menor de laspirámides,y aúnel de las sienes que andan con dos piedras!¡Bajad el aliento, y siel antebrazo baja,si las férulas suenan, si es la noche,si el cielo cabe en dos limbos terrestres,si hay ruido en el sonido de las puertas,

si tardo, si no veis a nadie, si os asustanlos lápices sin punta, si la madreEspaña cae – digo, es un decir – ,salid, niños del mundo; id a buscarla!...(VALLEJO in: VÉLEZ, 2000, p.16).

A presença da guerra na infância eadolescência além de acarretar na interrupçãode um processo natural de aprendizageminstitucional, vem de forma abrupta, por meiodo terror, requerer seu precoceamadurecimento. É, como escreve Vallejo,“tornar tão cedo ancião, o ruído de seu peito”.

Arthur Nestrovski (2004) desenvolveu umraciocínio muito pertinente sobrerepresentações da Shoah, partindo de umestudo comparado entre o filme Shoah, deClaude Lanzmann e alguns poemas de PaulCelan. Para nós, importa refletir sobre asinferências que podemos fazer a partir do queNestrovski diz com respeito à construção dossignificados que um determinado eventohistórico pode adquirir no poema, e sobre quepapel caberia à imagem em um filme quereferenciasse esse mesmo evento histórico.Sabemos que se trata de um terreno bastantepantanoso este de aproximar dois objetos quemais sugerem que apresentam qualqueridéia, o cinema e poesia. Por isto, aludir aotexto de Nestrovski. Para ele, sendo a imagemcinematográfica construída por umespectador tal como a literária por um leitor,fica claro que o filme de Claude Lanzmanndialoga “à possibilidade ou legitimidade deuma construção metafórica daquele evento”(NESTROVSKI, 2004, p.165).

Não queremos comparar o estudo deNestrovski com o nosso, entretantopartilhamos do mesmo consenso, a partir dospoemas de César Vallejo e do filme deGuilhermo del Toro, ou seja, construirmetaforicamente o que historicamente estápara ser referenciado como manifestação de

CARLA DAMÊANE P. DE SOUZA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 47-58, NOVEMBRO 200956

uma memória que vem ao nosso encontro.Se imaginarmos que durante os anos deditadura franquista na Espanha, o cinemaespanhol durante 35 anos foi controlado pelavigilância estatal 9 não teríamos muito querememorar sobre a história dos vencidos.

Contemporaneamente, o cinema nos tempresenteado com produções que nos dizemum pouco mais desta história. Filmesinteligentes, a exemplo de El Espinazo del

Diablo, 2001, temos ainda El Laberinto del

fauno, 2006, também dirigido por del Toro eLa Lengua de las Mariposas, 1996, de JoséLuís Cuerda. Todos reverenciando a presençade crianças junto a tramas que amparam aGuerra Civil Espanhola. Outras produçõescomo Land and Freedom, 1995, de Ken Loach,Silencio Roto, 2001, de Montos Almedáriz, eSoldados de Salamina, 2004, de Davi Trueba,ainda que não tragam discussões sobre asituação da criança frente à Guerra suscitamdebates que também podem ser aliadas àsalusões feitas nos poemas de Vallejo quereferenciam temas como a participação demilicianos, a guerra dentro da guerra, entreoutros.

Em geral, artistas de todos os gêneros, damúsica às artes plásticas, do cinema aoteatro, utilizam meios de dialogar com aposterioridade e intervir no campo cultural pormeio da catalogação de imagens afecções, ede descrições de sensações que sãoreproduzidas em quadros, músicas, filmes,peças de teatro, livros. Por outro lado, de quemaneira os desenhos infantis, a exemplo dosfeitos pelas crianças espanholas, sãotransformados em monumentos, expostos emmuseus e bibliotecas? De que forma

compreender de fato, a importância doarquivamento para a atualização de novosdiscursos sobre a história buscando comoexemplo desenhos infantis?

Aproximando texto, desenho, cinema epoesia o trabalho pretendia demonstrarformas distintas de discursos da históriarepresentados por imagens. Objetos artísticose arquivos históricos que apresentam aemergência de um evento, – Guerra CivilEspanhola – e que nos trazem ecos destaguerra transmitidas pelas imagens emmovimento, seja nos versos de Vallejo, sejanas cenas reproduzidas por del Toro, ou, pelosdesenhos e fotografias que nos ajudam aconstruir uma interpretação mais ampla sobreesta história a partir do olhar sobre a infânciae a adolescência em tempos graves.

Referências Bibliográficas

ANTELO. Raúl. Maria con Marcel. Duchamp enlos Trópicos. Buenos Aires: Siglo XXI, 2006.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte epolítica: ensaios sobre literatura e história dacultura. Vol. I. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet.7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

MONTEDER, José Enrique. A olhada interior: AGuerra Civil Española nas telas da Espanha(1939-96). In: Olho da História. n. 2. UniversidadeFederal da Bahia. Disponível em: <http://www.olhodahistoria.ufba.br/o2monter.html>.Acesso em: 02 de out. 2008.

MUCHNIK, Daniel. Gallo rojo, Gallo negro. Losintereses en juego en la Guerra Civil Española. 1ªed. Buenos Aires: Grupo Editorial Norma, 2004.

NESTROVSKI. Arthur. Shoah: Catástrofe eRepresentação. In: MACIEL, Maria Ester eSEDLMAYER, Sabrina. (Org.). Textos a flor da tela:relações entre literatura e cinema. BeloHorizonte: Núcleo de Estudos de Crítica Textual/Faculdade de Letras da UFMG, 2004.

9 Ver MONTEDER, José Enrique. A olhada interior: A Guerra Civil Española nas Telas da Espanha (1939-96). In: Olho da História. Nº2. Universidade Federal da Bahia. Disponível em: <http://www.olhodahistoria.ufba.br/o2monter.html> . Acesso em: 02 de out.2008.

“LÁPICES SIN PUNTA” – IMAGENS DA INFÂNCIA E DA ADOLESCÊNCIA NA GUERRA CIVIL ESPANHOLA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 47-58, NOVEMBRO 2009 57

RICŒR, Paul. A memória, a história, oesquecimento. Tradução: Alain François [et al.]. –Campinas, SP. Editora da UNICAMP, 2007.

THOMAS, Hugh. A Guerra Civil Espanhola. Vol.1. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira,1964.

______. A Guerra Civil Espanhola. Vol. 2. Rio deJaneiro: Editora Civilização Brasileira, 1964.

VÉLEZ, Julio. César Vallejo: Poemas en Prosa,Poemas Humanos, España, aparta de mí este cáliz.1ª ed. Madrid: Cátedra, 2000.

Filmografia:

EL Espinazo del diablo. Direção de Guilhermo delToro. México e Espanha, 2001. DVD. 143. min.

IMAGENS DA CIDADE, IMAGENS CONSTRUÍDAS: AS CONTRADIÇÕES DA MODERNIDADE

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 59-66, NOVEMBRO 2009 59

Recebido em: 19/07/2009 Aprovado em: 15/09/2009

Imagens da cidade, imagens construídas:as contradições da modernidade

Edilaine Custódio Ferreira

Mestre em História pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Educadora social da PrefeituraMunicipal de Maringá. Autora de, entre outros artigos, “Raízes do Brasil: uma interlocução entreSimmel, Weber e Sérgio Buarque de Holanda”. Revista Urutágua (Online), n. 5, 2004.

RESUMO

O objetivo deste artigo é analisar o discurso produzido pelo jornal “O Diário do Norte doParaná” a partir do estudo da imagem fotojornalística, observando o papel da fotografiautilizada pelo jornal, compreendendo-a enquanto produtora de sentido. Contempla-se umadiscussão metodológica atrelada à imagem veiculada pelo jornal e a notícia a ela relacionada.O recorte temático privilegiará uma breve discussão a respeito de uma imagem publicada noreferido periódico.PALAVRAS-CHAVE: fotojornalismo; metodologia de análise; Jornal “O Diário do Norte do Paraná”.

ABSTRACT

This article aims to analyze the discourse produced by the local newspaper “O Diário doNorte do Paraná” from the study of the photojournalistic image, considering the photographrole in the newspaper and understanding it as a meaning producer. A methodological approachis pondered regarding the image and the new observed on the newspaper. The mentionedtheme focus a brief discussion about a picture published in the journal.KEYWORDS: photojournalism; methodology of analysis; newspaper “O Diário do Norte doParaná”.

EDILAINE CUSTÓDIO FERREIRA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 59-66, NOVEMBRO 200960

Imagens da cidade, imagens construídas:as contradições da modernidade

Olhar apenas para uma coisa não nos diz nada. Cada olhar leva a uma inspeção, cada inspeçãoa uma reflexão, cada reflexão a uma síntese, e então podemos dizer que com cada olhar atento,estamos teorizando. Goethe

Utilizar o fotojornalismo como recurso parao trabalho do historiador implica emreconhecer esta documentação enquantoportadora de discursos, que traz em si anecessidade de decodificação. Faz-senecessário a utilização de metodologiasespecíficas que possibilitem um olhar alémdas representações midiáticas, identificandoos desvios e distorções no documento(ZANIRATO, 2005, p.16-17).

Zanirato (2005, p. 18-19) observa que aleitura da imagem é um processo criativo. Lera imagem significa dispor da informaçãocultural de que o leitor porta. Este usará todoo repertório destas informações. O trabalhode leitura da imagem deve levar em contauma gama de competências e habilidades:sensoriais, perspectivas, psicológicas,culturais, históricas, cognitivas, entre outras.São necessárias algumas convenções paraaprofundamento da análise da fotografia paradecodificação de uma imagem fotográfica.

Neste artigo, inicialmente, serão feitasalgumas considerações teóricas a respeito dotratamento metodológico que tal fonte requere, em seguida, a análise propriamente dita.

No texto A Teoria da Imagem Periodística,Lorenzo Vilches chama a atenção para anecessidade de aprofundamento e desistematização dos estudos sobre a imagem,principalmente a relação imagem/leitor. Oautor atribui a falta de estudos a dois fatores:

O primeiro situa-se no vazio interdisciplinaronde a semiótica e a retórica da imagemainda estão buscando autonomia econsolidação teórica e por outro lado, adificuldade de se produzir nessas disciplinas,trabalhos que sejam acessíveis a um públicoamplo, que reduzam ao mínimo aterminologia e a explicação teórica, e que aomesmo tempo possam assentar-se sobrebases solidamente científicas (VILCHES,1993, p.15).

Por conseguinte, a fotografia deve sertratada como um “material” carregado deinformações, símbolos e idéias que chegamaté nós a partir de nossa concepção dasquestões sociais. Para Vilches, cada leitorentende a mensagem imagética de umadeterminada forma, identifica-se com ela deacordo com suas experiências de vida. Porisso é que em alguns casos a emoção podeaté mesmo causar ilusões ópticas, pois, “o quevemos, nem sempre é o que o nosso olhoregistra” (VILCHES, 1993, p.16).

De acordo com Lorenzo Vilches (1993,p.169) o jornal é um veículo de discurso social,portador de opiniões e idéias, é, portanto, umveículo do “saber” sobre o meio social, quese encontra modalizado por diversasestruturas discursivas, entre elas as de “fazercrer”, o que constitui a base da persuasão.Além disso, segundo esse mesmo autor, operiódico representa e transmite escala devalores e modelos de comportamento social,

IMAGENS DA CIDADE, IMAGENS CONSTRUÍDAS: AS CONTRADIÇÕES DA MODERNIDADE

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 59-66, NOVEMBRO 2009 61

moral, político, etc., “pelo que também sepode caracterizar como um discurso sobre o“saber fazer”.

Por detrás de toda notícia registrada háuma “visão de mundo” dos jornalistas e dosproprietários do jornal, de modo que asreportagens precisam ser avaliadas enquantolinguagens produtoras de significados emrelação a uma situação contextualizadahistoricamente (CAPELATO, 1989).

Embora a fonte jornalística não possa sertomada como verdade, não significa quepossa ser classificada como um documentofalso em si, mas “como uma construção quepretende ser verdadeira” (ALVES, 1996,p.34). Para isso é importante perceber comoe por que a notícia foi produzida, quais foramas condições de sua produção, qual aconjuntura em que esta aconteceu.

O jornal é um meio de comunicaçãosocial, portador de estratégias comunicativase persuasiva que se manifestam através daarticulação texto/imagem, de modo que asfotografias que acompanham as reportagensnão são meramente ilustrativas, masnarrativas que clamam pela eficácia doconvencimento (ESSUS e GRINBERG, 1994,p.141). Essa questão remete a necessidadede se conhecer também os procedimentosmetodológicos para o trato com as fotografiasem geral e com as fotografias jornalísticas,em particular.

Segundo Vilches, a aparentemecanicidade da câmera fotográfica acabareforçando as “possibilidades de ficção eilusão” da realidade,

“[...] porque a máquina fotográfica é umobjeto privilegiado para produzir sentido,para dar significado às coisas; é também uminstrumento semiótico, como a palavra,como a escrita” (idem, p.20).

Nesse sentido, um estudo a respeito só é

possível através de um trabalho que leve emconsideração não apenas a imagem fixadano material fotográfico, mas também que sefaça leitura da fotografia como um textoligado ao contexto de sua produção, ou seja,a fotografia pode cristalizar um discursoproduzido pelo poder oficial.

De acordo com Jacques Aumont, o estudoda relação espectador/imagem, de formaalguma pode ser abordado a partir de umaconcepção universal, pois os sujeitos vivemem tempos e espaços construídoshistoricamente. Desse modo:

além da capacidade perceptiva entram emjogo o saber, os afetos, as crenças que porsua vez, são muito modeladas, pelavinculação a uma região da história (a umaclasse social, a uma época, a uma cultura).Entretanto, apesar das enormes diferençasque são manifestadas na relação com umaimagem particular, existem constantesconsideravelmente trans-históricas e atéinterculturais, da relação do homem com aimagem em geral (AUMONT, 1995, p.77).

É a partir da possibilidade dessa perspectivageral que Aumont analisa o espectador,partindo de um questionamento que nos éessencial: “O que as imagens nos trazem? Porque elas existiram em quase todas associedades humanas? Como são olhadas?”.

Para Aumont, a imagem nunca éproduzida sem finalidade, porém com umdeterminado fim, seja para uso individual oucoletivo. Procurando entender maisprofundamente a produção das imagens, oautor a vincula ao “domínio” do simbólico,pois acredita que a simbologia sirva demediadora entre espectador e a realidade.Procurando responder as três questões acima,Aumont atribui três características à imagem:a simbólica, a epistêmica e a estética. Arespeito do campo simbólico (e aqui o autor éum tanto quanto incisivo), argumenta que

EDILAINE CUSTÓDIO FERREIRA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 59-66, NOVEMBRO 200962

“inicialmente” as imagens teriam sidoutilizadas apenas como símbolos religiosos.

No campo epistemológico, a imagemsitua-se como portadora de “informaçõessobre o mundo, que pode assim serconhecido, inclusive em alguns de seusaspectos não visuais”. No que se refere àestética, acredita que a imagem sejadestinada “para agradar seu espectador, aooferecer-lhe sensações específicas”.

Desse modo, o caminho trilhado porAumont é o de que, imagem e espectadorsão parceiros e atuam juntos num jogoduplo, em que “o espectador constrói aimagem” e em contrapartida, “a imagemconstrói o espectador”. É justamente a partirdesse ponto de vista inspirado na teoriaproposta por Gombrich (1965), sobre asformas de investimento psicológico queatuam na imagem: reconhecimento erememoração, que Aumont desenvolve suaconcepção de imagem, acreditando queela tenha “por função primeira, garantir,reforçar, reafirmar e explicitar nossa relaçãocom o mundo visual”. Assim sendo, adicotomia entre reconhecimento erememoração:

coincide com a distinção entre funçãorepresentativa e função simbólica, de que éuma espécie de tradução em termospsicológicos; uma, puxando mais para amemória, logo para o intelecto, para asfunções de raciocínio, e a outra para aapreensão do visível, para as funções maisdiretamente sensoriais (AUMONT, 1995,p.81).

Em síntese, para Gombrich:

o papel do espectador é extremamente ativo:construção visual do reconhecimento;emprego dos esquemas de rememoração,função de uma com a outra para a construçãode uma visão corrente do conjunto daimagem. Compreende-se porque esse papel

do espectador é tão central para toda a teoriade Gombrich: é ele quem faz a imagem(AUMONT, 1995, p.90).

Segundo Boris Kossoy, a análise maisaprofundada da fotografia requer que se façauma divisão em dois campos: o técnico e oiconográfico. Todavia, adverte que tal divisãodá-se apenas para fins didáticos. Na verdade,tanto a análise técnica, quanto a iconográficasão importantes recursos de um mesmoprocesso de pesquisa, processo esse que nospossibilita obter alguns elementos do passado,para que possamos criar hipóteses a respeitode um determinado lugar ou época. Noentanto, essa “confirmação”, só é possívelatravés de um cruzamento de informações,de fontes de teorias.

Utilizando os estudos de Pierre Bourdieu(1965), Leite entende que é possível captarinformações que não são visíveis nafotografia. Assim:

Um conhecimento preexistente da realidaderepresentada na imagem mostrou-seindispensável para o reconhecimento doconteúdo da fotografia. Essa apreensãorequer, além de aguçados mecanismos depreservação visual, condições culturaisadequadas, imaginação, dedução ecomparação dessa com outras imagens paraque o intérprete possa se constituir umreceptor competente. É que, entre a imageme a realidade que representa, existe uma sériede mediações que fazem com que aocontrário do que se pensa habitualmente, aimagem não seja restituição, masreconstrução – sempre uma alteraçãovoluntária ou involuntária da realidade que épreciso aprender a sentir e ver [...] (LEITE,1998, p.40).

Segundo Miriam Leite, a fotografiapermite que se lhe atribua diferentessignificados “que interferem na codificaçãoe nas possíveis decodificações da mensagemtransmitida”. De acordo com a autora, aanálise da prática fotográfica e dos

IMAGENS DA CIDADE, IMAGENS CONSTRUÍDAS: AS CONTRADIÇÕES DA MODERNIDADE

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 59-66, NOVEMBRO 2009 63

significados da imagem podem revelarcomportamentos coletivos e experiências devida, portanto, esse recurso enriquece emgrande parte a pesquisa na área das CiênciasHumanas.

Maria Sylvia Porto Alegre acredita que umdos problemas centrais que ainda precisa serenfrentado pelo pesquisador se refere àquestão da objetividade/subjetividade. Muitospesquisadores utilizaram esse recurso deforma positivista, ao conceber a fonteimagética enquanto “documento-verdade”.Porto Alegre ressalta a importância do estudosemiológico para o tratamento da imagem.Desse modo entende que:

Precisamos dominar melhor a problemáticavisual do símbolo e sua linguagem paraalcançar uma compreensão mais adequadado lugar da imagem na consciência humana ena cultura [...] das funções ícones na vidasocial (ALEGRE, 1998, p.79).

Análise da imagem

A imagem que analisarei a seguir foipublicada no jornal O Diário do Norte do

Paraná no dia 17 de abril de 2004, em um

final de semana (sábado).A fotografia é de um jovem que se

encontrava apreendido e, segundo o jornal,seria dependente de substâncias psicoativas(Thinner). É o destaque maior da primeirapágina acompanhado da manchete: Viciado

fere vítima para se drogar, logo abaixo,aparecem duas fotografias menores, umaabordando a questão dos acidentes detrânsito, que vem tornando-se um graveproblema na cidade de Maringá, resultandonum crescente número de vítimas (fatobastante noticiado no momento). A foto aolado aborda protestos de motoristas que nomomento estavam enfrentando demasiadademora para descarregar a carga de soja noPorto de Paranaguá. A manchete principal“Vacina previne gripe em idosos”, aparecesem destaque, seguida pela foto aquianalisada.

O ângulo escolhido pelo fotógrafo dádestaque às mãos do jovem que aparecemem primeiro plano entre as grades da cela.As mãos apresentam-se bastante feridas equeimadas, devido ao uso contínuo deThinner, segundo a reportagem. O rosto dojovem aparece em segundo plano, com uma

Fotografia publicada em 17 de abril de 2004. Fotógrafo Walter Fernandes

EDILAINE CUSTÓDIO FERREIRA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 59-66, NOVEMBRO 200964

expressão sonolenta, cabisbaixo, causando aimpressão de ainda estar sob efeito dosolvente. A temática da fotografia, reforçadapelo ângulo em que essa foi produzida e pelasubmanchete (olho da notícia), causa-nos aimpressão da imagem ter sido posada, soborientações do fotógrafo. Note-se que odestaque refere-se às marcas que o Thinnerteria deixado nas mãos do jovem, segundoinforma a reportagem: “Nas mãos de LuizCarlos.” As marcas evidenciam o consumodiário de Thinner – ele diz que começou a sedrogar aos dez anos de idade”.

A afirmação de que a foto pode ter sidoposada fundamenta-se no fato de que asmãos do jovem ainda que apareçam emprimeiro plano não escondem seu rosto. Naverdade essas deixam sua face no centro daimagem, porém no fundo, uma vez que asmarcas mais aparentes que reforçam aexpressão “viciado” encontram-se cravadasnas mãos. As mãos também aparentam sermuito grandes. A imagem, além da manchetee do olho da notícia, vem acompanhada dealgumas informações a respeito do fato queteria levado à prisão do jovem, salientandoque este teria ferido um mecânico em umbairro da cidade de Maringá para roubar umalata de Thinner. Enfatiza ainda que após omesmo ter sido apreendido na 9º Subdivisãode Delegacia Policial, estaria temendo sermorto por rivais, finalizando com a seguintefrase: “Apesar das mãos queimadas peladroga, faz planos de voltar ao vício assim quedeixar a cadeia”.

Na reportagem do sábado seguinte, 24de abril de 2004, a foto foi novamentepublicada pelo jornal, porém, no interiordeste, em tamanho menor, em preto e branco(a fotografia publicada na semana anterior,destaque da primeira página é colorida, comopodemos ver acima), acompanhado damanchete: “Consumo de Thinner aumenta

com fácil acesso. Logo abaixo da fotografiaapresenta-se a seguinte frase: “Luiz Carlos deSouza mostra as mãos queimadas peloThinner”. Como se tal atitude fosse um atoespontâneo, o que não parece ocorrer de fato.A reportagem é iniciada salientando arespeito do aumento de ocorrências policiaisenvolvendo adolescentes e adultos usuáriosdo solvente. Esta reportagem expõe a históriade um jovem de 22 anos que teria ferido seugenitor após fazer uso da substância. Logoabaixo expõe novamente a história do jovemde 31 anos, da manchete do dia 17 de abril,afirmando que o mesmo seria viciado emdrogas desde os 10 anos de idade. Noentanto, a reportagem não menciona outrotipo de droga em momento algum. A ênfaseatribuída pela reportagem relaciona o usodesta substância à crescente marginalidadena cidade de Maringá, praticada poradolescentes e jovens.

Destaca-se que as imagens forampublicadas em dois finais de semana, parachamar a atenção para o fato de que atiragem deste jornal ser maior nos finais desemana, e a possibilidade de propagação deidéias e valores pretendidos pelo jornal terum maior alcance. Grande parte dasreportagens do jornal, desde março de 2004até o fim do referido ano, questionaram oaumento de população em situação de ruana cidade de Maringá, como a manchete dodia 28 de março destaca: “Mendigos estãomais visíveis”. Trazendo ainda o subtítulo: “Apresença de mendigos tem incomodado apopulação...” Nessa mesma página (logoabaixo) há uma reportagem sobre a eleiçãopara escolha dos novos conselheiros tutelaresda cidade. Nessa reportagem o destaqueprincipal é dado à crise entre este órgãodeliberativo e a Secretaria de AssistênciaSocial de Maringá (SASC). Nessa reportagemhá uma imagem que mostra um adolescente

IMAGENS DA CIDADE, IMAGENS CONSTRUÍDAS: AS CONTRADIÇÕES DA MODERNIDADE

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 59-66, NOVEMBRO 2009 65

descalço, sentado próximo ao que demonstraser (pela movimentação dos carros), umsinaleiro, ponto em que crianças eadolescentes passam parte do dia pedindodinheiro ou vendendo doces (fato tambémmuito anunciado pelo jornal em questão). Faz-se importante considerar que este é um anoeleitoral e o grupo proprietário do jornaldefende um grupo político oposto ao que estáno poder e que vai tentar a reeleição nacidade.

Dessa forma, neste período, convémdivulgar notícias como a de aumento damarginalidade, de crise entre órgãos públicos,de aumento de população em situação derua, dentre diversas outras possibilidades dereforçar idéias manipuladas. Não está seafirmando que tal agravamento deproblemas sociais não esteja ocorrendo, maso que está em pauta é que essas idéiassomente serão divulgadas ao público leitorse for de interesse do grupo ao qual pertenceo jornal, sejam estes interesses políticos,econômicos ou outros. Os meios decomunicação têm esse poder de controlar emanipular as notícias e o farão de acordo comseus interesses. No entanto, há de se considerarque este jornal, desde a sua criação, (décadade 1970), vem relacionando pobreza emarginalidade, independente da políticapartidária, conforme comprovam os estudos deCrishna Mirella de Andrade Correa, queanalisou o processo de desfavelamento nacidade na década de 1970.

Nesse sentido, cabem ainda algumasconsiderações a respeito da cidade, para quese compreenda esse contexto mais amplo, noqual as questões aqui discutidas encontram-se inseridas. Fundada em 1947 pela CiaMelhoramentos Norte do Paraná, a cidadede Maringá foi planejada para ser um grandenúcleo urbano, deste modo cresceu

rapidamente. A fala a seguir reflete bem essaintenção:

A empresa colonizadora reservava a zonacentral de sua extensa gleba, um localprivilegiado para o estabelecimento de umacidade que polarizaria a parte mais ocidentalde suas terras, dividindo com Londrina aliderança regional; serviria dessa forma,como centro propulsor de progresso parauma vasta e promissora área agrícola (LUZ,1999, p.10).

A crença na modernidade, naindustrialização que constrói cidadesplanejadas e ordeiras, acaba por traçartambém o perfil a quem se destina essacidade, com certeza não é para um usuáriode Thinner, infrator. O espaço desse jovemestá delimitado no discurso do jornal, aosistema prisional. Veja que o jovem, segundoinformações do periódico, teria sidoapreendido devido ao fato de ter ferido outrojovem para furtar um frasco de Thinner. Aindaconforme a síntese da notícia que acompanhaa fotografia, logo na primeira página, a vítimateria sido socorrida, porém, não apresentava“risco de morte”. No entanto, o jornal reforçaque “Xiru foi preso e agora teme ser mortopor rivais”. Como quem induz que tal pessoaseria perigosa para o convívio em sociedade,embora essa idéia não esteja explícita nojornal, mas é construída na relação texto/imagem, afirmando ainda que: “Apesar dasmãos queimadas pela droga, faz planos devoltar ao vício assim que deixar a cadeia”.

Diante dessa questão é importantedestacar que o jornal não consiste em umveículo que narra os fatos de uma maneiraimparcial, mas “como um agente a olhar eregistrar o cotidiano social a partir de valoresdefinidos”. Todo jornal tem uma perspectivaque orienta o modo de produzir a notícia, deveicular a informação, de propagar idéias e

EDILAINE CUSTÓDIO FERREIRA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 59-66, NOVEMBRO 200966

valores culturais, “os fatos registrados não seconstituem em verdades, mas sim emconstruções humanas, onde há toda umasubjetividade implícita” (ZANIRATO, 1999,p. 327).

Portanto, as imagens da cidade, amodernidade urbana, seja a representada porfotógrafos ou pintores, são construçõeshumanas, compostas a partir de determinadasvisões de mundo. Essas representações fazemparte do contexto em que pessoas queregistram tais imagens estão inseridas. Assim,as imagens da cidade, a modernidade urbananão estão apenas restritas ao registro dopatrimônio arquitetônico, mas também aoregistro da imagem dos sujeitos históricos quevivenciam a confusão dessa modernidade(como é o caso do jovem que teve suaimagem divulgada em “O Diário”).

Bibliografia

ALVES, Paulo. Experiência de investigação:pressupostos e estratégias do historiador notrabalho com as fontes. In: DI CREDDO, et al.Fontes históricas: abordagens e métodos. UNESP:Assis, 1996.

AUMONT, Jacques. A Imagem. Campinas:Papirus, 1995.

ESSUS, Ana Maria Mauad de S. A.; GRINBERG,Lúcia. “O século faz cinqüenta anos”: fotografiae cultura política em 1950. In: Revista Brasileirade História. São Paulo, ANPUH/Marco Zero, vol.

14, nº 27, 1994.

CORREA, C. M. A.; ZANIRATO, Silvia Helena.Imagens do desfavelamento: discursos e olharesda imprensa maringaense. In: VIII EncontroRegional de História da ANPUH-Paraná. 150anos de Paraná: história e historiografia, 2004,Curitiba. Anais do VIII Encontro Regional deHistória da ANPUH-Paraná: história ehistoriografia. Curitiba: Aos Quatro Ventos,2004, v. 1.

FELDMAN-BIANCO, Bela e LEITE, MiriamMoreira (orgs). Desafios da Imagem. Campinas,São Paulo: Papirus, 1998.

GROMBRICH, Ernst H. Arte e Ilusão: um estudoda psicologia da representação pictórica. SãoPaulo: Martins Fontes, 1986.

KOSSOY, Boris. Fotografia e História. São Paulo:Ática, 1989.

LUZ, France. O fenômeno urbano numa zonapioneira: Maringá. Maringá: s/e, 1997.

MARTINS, Sílvia Helena Zanirato. Imagens daPobreza Urbana na Imprensa Paulista. O Estadode São. Paulo. 1933-1942. Diálogos: Maringá.Pr., v. 3, n. 3, p. 323-340, 1999.

VILCHES, Lorenzo. La Teoria de la ImagenPeriodistica. Barcelona, Paidos, 1993.

ZANIRATO, Silvia Helena. A documentaçãofotojornalística na pesquisa histórica. Trajetos:Revista de História UFC. Fortaleza: UFC, vol. 2,nº 4, 2005.

Fonte:

Jornal O Diário do Norte do Paraná: ediçõesdos dias 28 de março, 17 e 24 de abril de 2004.

NOVO REALISMO E INTERNACIONAL SITUACIONISTA: UM ESTUDO DO QUESTIONAMENTO DA IMAGEM PICTÓRICA...

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 67-82, NOVEMBRO 2009 67

Recebido em: 09/04/2009 Aprovado em: 25/08/2009

Novo Realismo e Internacional Situacionista:um estudo do questionamento da imagempictórica pelas neovanguardas francesas

Gabriel Zacarias

Bacharel em História pela Universidade de São Paulo (USP). Autor de, entre outros textos, “Aberturasob a mira de canhões”. In: FUSER, Igor.. (Org.). História Viva - Japão: 500 anos de História, 100 anosde Imigração. 1 ed. São Paulo: Duetto Editorial, 2008.

Tiago Machado

Mestre e doutorando em História Social pela FFLCH-USP. Atualmente desenvolve pesquisas sobre acrítica da arte moderna e contemporânea.

RESUMO:Em meados da década de 1950, o campo da arte conheceria um novo fenômeno com osurgimento daquilo que Peter Bürger batizou de grupos de “neovanguarda”. Segundo o autor,as neovanguardas recuperavam a luta das vanguardas históricas contra a obra de arte “orgânica”e a autonomia da “instituição arte”. Nosso objetivo é o de resgatar o sentido histórico dealgumas destas experiências, principalmente na França com o Novo Realismo e a InternacionalSituacionista. Trata-se, sobretudo, de salientar como estas experiências buscam atualizar ocampo da visualidade contemporânea nas artes plásticas, recolocando em xeque a autonomiaputativa do plano pictórico através do uso de elementos que passam a integrar a vidacotidiana no capitalismo avançado.PALAVRAS-CHAVE: Neovanguarda; Novo Realismo; Internacional Situacionista

ABSTRACT:In middle of the decade of 1950, the field of the art would know a new phenomenon with thesprouting of what Peter Bürger baptized of groups of “neo-avantgarde”. According to author,“neovanguardas” recouped the fight of the historical vanguards against “the organic” work ofart and the autonomy of the “institution art”. Our objective is to rescue the historical directionof some of these experiences, mainly in France with the New Realism and the SituacionismInternational. It is treated, over all, to point out as these experiences search to bring up to datethe field of the visuality contemporary in the plastic arts, appointmente in scene the putativeautonomy of the pictorial plan through the use of elements that start to integrate the daily lifein the advanced capitalism.KEYWORDS: Neo-Avantgarde; New Realism; Situacionism

GABRIEL ZACARIAS; TIAGO MACHADO

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 67-82, NOVEMBRO 200968

Novo Realismo e Internacional Situacionista:um estudo do questionamento da imagem pictórica pelasneovanguardas francesas

Introdução: sobre o conceito de

neovanguarda

Em 1974, com a publicação de seu livro“Teoria da Vanguarda”, Peter Bürger introduznas análises da arte contemporânea umtermo muito influente: “neovanguarda”. Comeste termo ele procurava dar conta de explicaros movimentos artísticos que retomam, a partirdo fim dos anos 50, alguns dispositivos típicosdas vanguardas da primeira metade do séculoXX, que procuravam alterar os modos deprodução consagrados nas artes visuais, taiscomo os monocromos, os readymades, ascolagens e as performances. Contudo, paracompreendermos devidamente o peso de seudiagnóstico, seria conveniente, antes deenveredarmos pelo texto de Bürguerpropriamente dito, analisarmosprimeiramente uma influente definição dearte de vanguarda fornecida por aquele quepode ser considerado como o mais influentecrítico da segunda metade do século XX,estamos falando de Clement Greenberg. Istoporque sua definição de vanguardareorganizou a produção artística no imediatopós-guerra ao influenciar diretamente e deforma decisiva tanto o campo artístico norte-americano quanto o europeu, funcionandocomo um divisor de águas após a interrupçãoforçada das experiências radicais efetuadasentre 1917 e 1936.

Em linhas gerais, sua definição de arte devanguarda procurou ligar de formaindissociável a arte de vanguarda com a formacrítica de organização da obra. ParaGreenberg a forma crítica consagrada pela

estética modernista norte-americana, podeser resumida em duas característicasfundamentais. Primeiramente destaca-se arecusa ao caráter mimético da arte. A artemodernista teria por princípio não reproduzirimagens retiradas da natureza, mas sepautaria pela criação de um sistema devalores autônomos, ou seja, valoresperceptíveis a partir da própria organizaçãointerna ao plano da pintura. Isto, por sua vez,implicou para o modernismo norte-americanonuma orientação de pesquisa voltada paraseu próprio meio, seguido pelaessencialização das divisões categoriais dasartes plásticas (pintura e escultura). Emsegundo lugar, mas não menos importante, omodernismo, segundo Greenberg, se apoiariasobre a constatação histórica destemovimento progressivo rumo à forma crítica,movimento este empreendido, sobretudo,pelo artista de vanguarda, cujo aparecimentodataria de meados do século XIX. Tal narrativaredundou em um modo peculiar deorganização das múltiplas tendências dapintura de vanguarda.

A história da pintura de vanguarda,escreve Greenberg, é a de uma progressivarendição à resistência de seu meio; resistênciaesta que consiste sobretudo na negativacategórica que o plano do quadro opõe aosesforços feitos para atravessá-lo em busca deum espaço perspectivo-realista.(GREENBERG, 2001, p.51)

Deste modo, no conjunto de sua obraGreenberg fez algo até então inédito. Ele ligou

NOVO REALISMO E INTERNACIONAL SITUACIONISTA: UM ESTUDO DO QUESTIONAMENTO DA IMAGEM PICTÓRICA...

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 67-82, NOVEMBRO 2009 69

o conceito de vanguarda com a perseguiçãoda arte pela arte, isto é, com a investigaçãoprópria ao meio no qual determinada arteopera. Em outras palavras:

A marca distintiva dos movimentosmodernos que ele chamou de vanguarda [...]seriam a constante busca por uma autonomiaou independência cada vez maior [...]. Isto éo que foi entendido como ‘modernismo’, outradição de ‘vanguarda’, onde estes doisnomes foram tomados efetivamente comosinônimos (WOOD, In: EDWARDS, 2004,p.3).

O esforço de Greenberg visava, sobretudo,manter a arte separada do campo dasexperiências cotidianas, uma vez que o autorjá havia detectado em seu famoso texto“Vanguarda & Kitsch”, escrito em 1939, aimpossibilidade da revolução socialistaconjugada com a tendência totalitária docapitalismo avançado (Cf. GREENBERG,2001). A tentativa de elaboração de um solode legalidade própria para as obras de arte,com a clara intenção de dissociar a arte devanguarda, com a ênfase em seusmecanismos internos de produção de sentido,de seu antípoda o Kitsch, que emula os efeitosda obra de arte em um ambiente mercantil,resultou na imposição de uma narrativaunívoca sobre o desenvolvimento da artemodernista. As pesquisas visuais estariam,segundo este esquema, limitadas pelo própriomeio consagrado pelo sistema artístico, eespecificamente a pintura estaria limitada àsuas convenções (tela esticada, chassi, tinta,etc...).

O caráter problemático e redutor de talorganização certamente ficará mais claro seretornarmos à definição de Peter Bürguer.Segundo o autor alemão os movimentosartísticos de vanguarda atingiram seu ápicena Europa durante a primeira metade doséculo XX. Cada uma das diversas tendências

vanguardistas trabalhou com práticaspeculiares de formalização do materialartístico. Tanto assim que numa primeiraaproximação seria difícil juntar na mesmacategoria movimentos como o Dada Zurique,o Construtivismo Russo ou Neoplasticismo. Adiferença específica instaurada pelasvanguardas, o elemento comum a todas é,segundo Bürger, melhor compreendida pelaentrada em cena de uma noção nomeada“instituição arte”:

Com o conceito de instituição arte, refiro-me, escreve Bürger, tanto ao aparecimentode produção e distribuição da arte quanto àsidéias dominantes em arte numa época dadae que determinam essencialmente a recepçãodas obras. A vanguarda dirige-se contraambos os momentos: contra o aparelho desubmissão a que está submetida a obra dearte e contra o status da arte na sociedadeburguesa, descrito pelo conceito deautonomia (BÜRGER, 1993,p.52).

Deste modo, as vanguardas históricasestariam, segundo Bürger, orientadas nãoapenas para uma reflexão autocrítica, mas, –e esta seria sua grande distinção – estariamatentas para o processo de significação quefundamenta a determinação da própria obrade arte como tal. Em última análise, asvanguardas se posicionariam contra aautonomia que coordena a recepção da obrana sociedade burguesa via “instituição arte”.Assim, as principais vanguardas históricas nasprimeiras décadas do século XX, ao levarema experiência modernista à suas últimasconseqüências, questionaram o conceitoidealista de obra de arte (como portadora decategorias como autonomia, autoria eoriginalidade) – visariam, em últimainstância, o fim da obra de arte orgânica, econseqüentemente o fim da instituição artee a reintegração revolucionária da arte coma práxis vital.

GABRIEL ZACARIAS; TIAGO MACHADO

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 67-82, NOVEMBRO 200970

Todavia, curiosamente, sua análise não sefurta a um duro juízo em relação a estasexperiências, quando realizadas no territórioda Arte contemporânea, vinculando-as amera reprodução de expedientes jáinofensivos:

A restauração da instituição arte e arestauração da categoria de obra indicam quehoje a vanguarda já passou à história.Naturalmente, verificam-se na atualidadetentativas de continuar a tradição dosmovimentos de vanguarda[...]; tais tentativas,porém como por exemplo os happenings –que poderíamos designar comoneovanguardistas – já não podem atingir ovalor de protestos dos atos dadaístas,independentemente de poderem serconcebidos e realizados com maior perfeição.A razão disto está em que o meio propostopelos vanguardistas perdeu desde então,uma parte considerável de seu efeito dechoque. [...]. A recuperação das intençõesvanguardistas e dos próprios meios devanguarda já não pode, num contextodiferente, voltar a atingir o efeito restrito dasvanguardas históricas. Enquanto o meioatravés do qual os vanguardistas esperamalcançar a superação da arte obteve com otempo o status de obra de arte, a suaaplicação já não pode ser legitimamentevinculada à uma pretensão de uma renovaçãoda práxis vital (BÜRGER, 1993, p.105).

Assim, para Bürger, os meios utilizadospela arte neovanguardista não seriamsuficientemente críticos, ou seja, não estariamsuficientemente distanciados, paradesmontar o aparato da “instituição arte”, eintegrá-la, dissolvendo-a em uma práxis vitalrenovada. Em outras palavras, a forma críticatende a esgotar-se, pois a realidade, que neste

caso específico é composta pelos diferentesfatores da instituição arte, internalizou asestratégias da crítica. O que é detectado aquipoderia atender pelo nome de declínio daforma crítica como modo privilegiado deorganização das obras.(Cf. SAFATLE, 2008,pp.179-200) Bürger entende a arte devanguarda do século XX como um modo decrítica à ideologia, na medida em que o objetoartístico é compreendido como um fenômenoque se mostraria a si próprio, recusando umsentido reificado, o que significa dizer,negando-se a assumir um papel ideológico.Ao invés de se apresentar como modo denaturalização da representação dos entes, aobra revelaria antes a sua estrutura decomposição. A arte moderna seria um pontoimportante de crítica à ideologia, pois exigiriade seus produtores e observadores uma buscapelo sentido construtivo da obra, movimentocuja culminância é o ato vanguardista quepassa a questionar a sua própria recepção nasociedade burguesa. Por analogia a obra dearte assumiria, assim, um caminho similar aoda crítica.

Apesar da narrativa de Bürger apresentarum maior grau de complexidade em relaçãoa Greenberg, ela desvaloriza o retorno doquestionamento do sistema da Arte, atravésde instrumentos já utilizados pelas primeirasvanguardas do século XX 1. Algo que passa asurgir graças às pesquisas plásticas do finaldos anos 1950 e que atravessam toda adécada de 1960, as quais em sua maioria jánão se utilizam mais das grandes narrativasorganizadoras do modernismo e do primadoda divisão categorial das obras de arte 2.

1 Para o caso de Greenberg, Cf. BOIS. Yves-Alain. As emendas de Greenberg. Revista da Gávea, nº 12. Dezembro de 1994. Já parao caso Bürger Cf. FOSTER, Hal. The return of the real. Massachusetts: MIT Press,1996. p.8-15. Entrementes, vale a pena lembrarque ambos são ou foram (Greenberg) considerados críticos de esquerda, inspirados na teoria do funcionamento da ideologiadesenvolvida por Karl Marx.

2 Donald Judd, um dos maiores expoentes daquilo que viria a ser conhecido como minimalismo, chega a afirmar em seu texto/manifesto: “Agora a pintura e a escultura são menos neutras, menos continentes, mais definidas, não inegáveis. [...] Grande parteda motivação subjacente aos novos trabalhos é livrar-se de tais formas.” “Não é como um movimento; de qualquer modo, movimentosjá não funcionam mais, além disso, a história linear de algum modo se desfez.”. JUDD, Donald. Objetos Especificos. In: FERREIRA,Glória; COTRIM, Cecília (org.). Escritos de Artistas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. p.96-97”

NOVO REALISMO E INTERNACIONAL SITUACIONISTA: UM ESTUDO DO QUESTIONAMENTO DA IMAGEM PICTÓRICA...

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 67-82, NOVEMBRO 2009 71

A condenação de Bürger está baseada emuma posição bipolar que oscila entre aautenticidade e a farsa. Se por um lado elecompreende a diferença contida nestarepetição neovanguardista, por outro ladoparece incapaz de se confrontar com adiferença implicada neste retorno aosdispositivos utilizados no entre guerras frentea uma relação histórica profundamentemodificada. Segundo seu esquemaexplicativo as obras neovanguardistas ao nãoproduzirem mais o efeito do “choque” estariamafastadas de suas posições críticas, e fatalmentecondenadas a reproduzir as vanguardashistóricas como mero entretenimento. Esteveredicto, durante muito tempo impediu, e talvezainda impeça, um exame mais adequado doque realmente esteve em jogo nas experiênciasneovanguardistas. Conforme afirma Hal Foster:

Este tropo da tragédia seguida pela farsa ésedutor [...] mas dificilmente resiste comoum modelo teórico, sem falar de uma análisehistórica. Além disto, ele permite atitudesmuito difundidas em relação à artecontemporânea, onde primeiro se constrói ocontemporâneo como pós histórico, ummundo-simulacro, de falsas repetições epastiches patéticos, e então condena-se estemundo como tal a partir de um mítico lugarda crítica posto além de todas estas questões(FOSTER, 1996, p.14).

Segundo Foster, o mero ato da repetiçãodos dispositivos criativos, típicos dosurrealismo, dadaísmo ou do construtivismo,efetuado pelas neovanguardas mereceanálise cuidadosa, pois, se por um lado elepode servir para a estetização do não-estético,através da adaptação das condições

institucionais contemporâneas que já fazemum uso controlado do “choque ”; por outrolado, as intervenções acontecem em umtempo histórico muito diferente, ou seja,confrontando uma sociedade e uma“instituição arte” profundamente modificadasem relação à primeira metade do século XX.(Cf. BUCHLOH, 2002, pp.xii-xxiii)

Assim, o gesto repetido, neste segundomomento da compreensão, implica relaçõesqualitativamente diferentes e muitas vezesreflexivas. Neste sentido, Foster chega adetectar diferentes correntesneovanguardistas – que incluem a pop art, ominimalismo, a arte conceitual, o GrupoFluxus nos Estados Unidos; o nouveauréalisme e a institutional critique, na Europa,entre outras – que trabalhariam nacoordenação de dois eixos. Em primeiro lugar,no nível diacrônico, as neovanguardaspropõem uma recuperação experimental dosdispositivos das primeiras vanguardas doséculo. Em segundo lugar, no nível sincrônico,procuram atualizar a sua questãofundamental, cujo eixo gira em torno doproblema do estatuto da obra de arte nacontemporaneidade. Neste modelo teórico,não se trata em absoluto de imputar um fimpré-estabelecido para as pesquisas artísticascontemporâneas, ou estabelecer uma simplesrelação de continuidade, ou ainda defendera originalidade das neovanguardas. Antes,tais práticas nos forçam a repensar essascategorias, pois, em última análise, arepetição dos dispositivos utilizados naspesquisas das vanguardas históricas –readymade, monocromo, colagens, etc. –nada tem a ver com reprodução.3

3 “Eu quero defender, contra Bürger, que a suposição de um momento de originalidade histórica na relação entre vanguardahistórica e a neovanguarda não permite uma compreensão adequada da complexidade desta relação, pois, nós somos confrontadosaqui com práticas de repetição que não podem ser discutidas somente em termos de influência, imitação ou autenticidade. Ummodelo de repetição que poderia descrever melhor esta relação é o conceito freudiano de repetição que se origina na repressãoe denegação”. BUCHLOH, Benjamin. Primary Colors p. 43. apud. FOSTER, Hal. The return of the real, p.237-238. Ainda sobre estadelicada questão metodológica V. FOSTER, Hal. Psychoanalysis in modernism and as method. In.: idem; et al. Art Since 1900.London: Thames & Hudson, 2004. pp. 15-21.

GABRIEL ZACARIAS; TIAGO MACHADO

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 67-82, NOVEMBRO 200972

Desta forma um modo de compreenderalgumas das mudanças nos materiais emétodos na produção da Arte no pós-guerraé vê-la como uma seqüência interna deinvestigações, por vezes sucessivas ousimultâneas. Num primeiro momento éconduzida uma investigação dos meiostradicionais da pintura, tal como elaboradapela forma crítica defendida por Greenberg;depois sobre as condições perceptivas de umobjeto de arte como na Minimal Art; sobre asbases materiais de tais fazeres e percepções,como na Art Povera, Process Art e Body Art eo trajeto paralelo da Arte Conceitual quedesviou sua atenção dos meios específicosda pintura e da escultura para questões geraisda “arte-enquanto-arte” ou da arte comovinculada ao lugar institucional onde seapresenta. (Cf. FOSTER, 2004, p.624)

Em suma, é possível dizer que oquestionamento da obra modernista da quala pintura americana (defendida porGreenberg) é um caso modelar, dá ensejo àretomada múltipla e sistemática das pesquisasefetuadas no período de entre guerras (quepor sua vez é condenada por Bürger), em ummomento de profunda alteração do campoartístico e das práticas culturais no final dadécada de 1950, nos dois lados do Atlântico.Assim, frente às modificações de longoalcance nos padrões de sociabilidade no pós-guerra, principalmente entre os paisescapitalistas avançados,

em quase todos os casos, estes paradigmas(o monocromo, o readymade, etc) aparecemagora como voltados para articular aexperiência fundamentalmente diferente dosobjetos e dos espaços públicos sob umarecém formada sociedade de espetáculo,controle e consumo (idem, p.434) .

Portanto, trata-se de investigarexatamente a ambigüidade inerente àposição ocupada pelas neovanguardas. A

articulação da experiência contemporâneanão pode ser formulada pelo distanciamentoda forma crítica que, entre outras coisas,dependia implicitamente do caráter daautonomia relativa do campo artístico. Asneovanguardas ocupam antes uma posiçãointermediária entre a crítica de seuspressupostos, através da utilização dosexpedientes antiestéticos apresentados pelasvanguardas históricas, e a agenda afirmativada Indústria Cultural que passa a se expandirde modo a englobar todas as esferas dacirculação cultural no cenário contemporâneo.(Cf. BUCHLOH, 2002). É exatamente estaposição que seria importante investigar, poisé dela que emergem as experiências maisradicais da visualidade nascente.

Os novos realistas

“Nós somos mesmo os vampiros dasensibilidade do mundo”

Yves Kein, 1960

Um estudo de caso desta posição deambigüidade poderia ser feito a respeito doNovo Realismo francês. O movimento foicriado de forma oficial em 1960 mediante aassinatura da seguinte declaração: “Os novosrealistas se conscientizaram de suasingularidade coletiva. Novo Realismo =novas abordagens perceptivas do real.Assinado: Arman, Dufrêne, Hains, Klein,Raysse, Restany, Spoerri, Tinguely e Villeglé”.Rapidamente, o núcleo inicial do movimentoé expandido, ganhando a adesão dos artistasCésar (1921-1998), Gérard Deschamps(1937), Mimmo Rotella (1918), Niki de Saint-Phalle (1930 – 2002) e a simpatia do búlgaroChristo (1935). Esta definição sintética é deresponsabilidade do crítico Pierre Restany,que trabalhou arduamente na divulgação dogrupo, procurando coesão em meio a umaexperiência com múltiplos materiais. Talvez

NOVO REALISMO E INTERNACIONAL SITUACIONISTA: UM ESTUDO DO QUESTIONAMENTO DA IMAGEM PICTÓRICA...

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 67-82, NOVEMBRO 2009 73

seja possível ir além desta formulaçãosintética dada pelo crítico francês, na medidaem que se pode verificar em todos os artistasvinculados ao movimento a consciência dacrise dos meios tradicionais da arte e,principalmente, do esgotamento da pinturaabstrata (lírica, informal, geométrica,expressionista-abstrata, gestual etc.), com suaforma crítica, sendo este diagnóstico doestado da Arte o ponto do qual o movimentoparte e no qual fundamenta sua ação. Osnovos realistas reclamam a criação de umaexpressividade, à altura de uma realidadesócio-cultural caracterizada pela hegemonianorte-americana no pós-guerra, pelamáquina, pela cultura de massa e informação,pela publicidade, pelos avanços tecnológicosque modificam o ambiente mais prosaico davida cotidiana como os novos objetos queinvadem a vida privada tais como oseletrodomésticos, por exemplo, e,politicamente, pela realidade da Guerra Friae pelos movimentos anticoloniais.

Tomando como ponto de partida a“antiarte” dadaísta, os artistas ligados aomovimento buscaram se desvincular danecessidade de uma proposta estética defundo modernista, o que tornou possível aentrada, no campo do estético, de novosmateriais próprios à sociabilidade cotidiana.Os novos realistas advogavam, então, anecessidade de um novo passo:

O espírito dadá se identifica com um modode apropriação da realidade exterior domundo moderno. O ready-made já não é ocúmulo da negatividade ou da polêmica maso elemento de base de um novo repertórioexpressivo.4

As atividades do grupo não acontecemapenas no espaço consagrado do circuitoartístico. Apesar de não desconsiderá-loapostam em algo mais do que a via de mãodupla entre a galeria e o estúdio. Isto aparecede maneira clara em uma declaração de YvesKlein, ao comentar a obra do artista norte-americano Rauschenberg, ainda consideradopor ele como preso à lógica da forma-pintura,numa entrevista concedida em 1960, juntocom Arman e Martial Raysse:

KLEIN: Esse foi um dos pontos que desde oinício me inspirou, pois eu cheguei a pegarum rolo para me distanciar do pincel; umrolo muito mais anônimo, a cor estava em simesma.ARMAN: Eu também, com meus ‘carimbos’ou minhas ‘espécies de objetos’, tenteisuprimir o pincel.KLEIN: Como Martial também, que vai aoUniprix [supermercado] e saqueia asprateleiras...(In.: FERREIRA, 2006, p.56)

Assim, os novos realistas procuram atuarem ambientes ampliados, utilizando o próprioespaço modificado pelas instituições docapitalismo tardio como um meio ou comomanancial de materiais.

A produção inclui colagens, instalações ehappenings, num claro desenvolvimento dauma releitura de Duchamp e Schiwitters,entre outros. Hains, Villeglé e Dufrêne,dilaceram grandes cartazes publicitáriosencontrados na rua e aplicam seus resíduosna composição das obras. Através de umautilização não ortodoxa da colagem(décollage) desfazem o sentido expresso dascampanhas publicitárias, restando delas suapura materialidade, pronta para serretraduzida ou reutilizada.

4 O excerto é do segundo manifesto do grupo, de maio de 1961, intitulado Quarenta graus acima de dadá. Cf. RESTANY, Pierre. Osnovos realistas. São Paulo: Perspectiva, 1979, pg.146.

GABRIEL ZACARIAS; TIAGO MACHADO

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 67-82, NOVEMBRO 200974

Arman, em 1958, inicia a sua sérieAccumulations, composta de um grandenúmero de um mesmo tipo de objetoenvolvido em plexiglas. O ponto culminantedestas pesquisas é sua “exposição” de 1960Le Plein na galeria Íris Clert em Paris, cujoespaço é preenchido por completo porobjetos acumulados e oriundos da cidade. Osobjetos são amontoados de tal forma queparecem forçar as janelas, único ponto devisibilidade da “obra”, em direção ao exterior.Os passantes não podem deixar de associaro espaço, antes organizado e organizador dagaleria, com um enorme depósito de lixo.Resíduos absolutamente incongruentes senão fosse pela presença de um continente,nova função da galeria, que lhe assegura umsentido, que impede que todos aquelesobjetos acumulados simplesmente desabemsobre eles.

Já Christo opera diretamente sobre apaisagem urbana, não entende a cidadeapenas como manancial de materiais, mascomo um cenário para intervenções. Nocapitalismo intensificado do pós-guerra, oespaço das ruas, monumentos, prédios quecompõem a cidade por onde o sujeitotransitava e vivia se transformam, eles própriosnum campo ampliado para as especulaçõesdo processo de valorização do capital, queacontece às costas dos habitantes, envolvidosque estão pela normalidade aparente da vidacotidiana. Frente a este cenário Christo“envolve em plástico monumentos e atétrechos de paisagem, quase recriando umestado de curiosidade em relação a fatoresambientais que haviam se tornadocostumeiros e, portanto, desinteressantes”(ARGAN, 1992, p.589). Além dos“empacotamentos”, com suas ressonânciacom o modo como os produtos sãoapresentados/velados no universo doconsumo contemporâneo, Christo também

utiliza o “empilhamento”. Modo através doqual faz uso de barris encontrados nas docasde Paris para reutilizá-los em outros pontosda cidade. Tal como na célebre instalação naRue Visconti, epicentro dos movimentosanticoloniais empreendidos pelos imigrantesargelinos em Paris. Feita em parceria com suaesposa Jeanne-Claude, a instalação de 1962foi intitulada “Cortina de Ferro”, na qual umaparede de barris foi erguida impedindo porhoras a passagem dos transeuntes. Asrelações desta instalação com o clima políticoda época são evidentes. Sob a liderança deGaulle, o homem símbolo da resistência anti-fascista durante a II Guerra, a Françaperseguia interesses petrolíferos na Argélia,acionando todo o mecanismo de dominaçãocolonial. Ao passo que do outro lado do murode Berlim, erguido na calada da madrugadade 13 de Agosto de 1961, Moscou endureciaseu regime no Leste Europeu. (Cf.KODDENBERG, In: NEUBURGER, 2005)Neste mesmo contexto, vale lembrar que em1956 a União Soviética já havia invadido eocupado Budapeste, cidade natal de Christo.

Para todos estes artistas trata-se, em suma,de uma ampla tentativa de religar a esferada arte ao mundo fora dela, ou seja, asinstituições, espaços e lugares que acircundam, baseando-se na introdução doselementos da realidade cotidiana nostrabalhos de arte. Com isso a esfera davisualidade não está mais vinculada aoprimado do meio específico, a imagem nãoadquire sentido pleno somente a partir de suaprópria esfera autônoma de valores, com sepensava no modernismo greenbergniano. Aimagem suporta propostas multisensoriaisque, no limite, ao transformarem-se em objeto,investigam o regime de consumo, circulaçãoe divisão das coisas, dos lugares públicos e asfunções das galerias, revelando limitespolíticos e institucionais antes fora do alcanceda Arte.

NOVO REALISMO E INTERNACIONAL SITUACIONISTA: UM ESTUDO DO QUESTIONAMENTO DA IMAGEM PICTÓRICA...

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 67-82, NOVEMBRO 2009 75

Contudo, poderíamos afirmar que asexperiências do Novo Realismo francês ao sedesfazerem da negatividade inerente àspesquisas das vanguardas históricas secomprometem, mesmo sem o saberemcompletamente, com as instituições vigentesao mesmo tempo em que as evidencia comoelementos essenciais na determinação davisualidade. As placas de publicidade aindaestarão lá no dia seguinte às intervenções,estas inevitavelmente dependem dasprimeiras para gerar a sua proposição. Nestesentido, mesmo repleta de entulho uma galeriaainda é uma galeria, a obra depende destatautologia para gerar o seu próprio sentido.Lembremos também que o termo “novorealismo” já havia sido utilizado por FernandLéger em 1936 para designar o mundomoderno, repleto de objetos industrializados,de máquinas, aberto às modificaçõespermanentes do progresso técnico.

A Internacional Situacionista: as

experiências de Guy Debord

A Internacional Situacionista é,certamente, um dos exemplos maisintrigantes das neovanguardas francesas.Estudá-lo não é tarefa das mais fáceis, dadoo caráter ainda incipiente das pesquisas arespeito de sua produção, iniciadas com maisênfase apenas na última década.Insuficientemente problematizado é ainda opensamento de Guy Debord, figura centralcujos gestos delinearam os contornosunificadores do grupo. Deste modo, nossoobjetivo será apenas o de salientar asrespostas oferecidas pela InternacionalSituacionista aos problemas já levantados,marcando sua proximidade e distanciamento

para com as alternativas repisadas pelosNovos Realistas.

Antes de tudo, convém retomar um poucoda trajetória de Debord e seu grupo.

A trajetória de Debord inicia-se maisprecisamente em 1951, com sua adesão aoLetrismo, grupo vanguardista parisiense quese reunia em torno do autor romeno IsidoreIsou. Ainda garoto, residente em Cannes,Debord assiste à intervenção do grupo de Isouno Festival de Cinema. Prontamenteidentifica-se com estes jovens “si résolus dansleur volonté de détruire le cinéma”(BOURSEILLER, 2001, p.66). A partir daí, ocinema guardaria um lugar privilegiado namotivação das reflexões de Debord. Em 1952Guy Debord realiza sua primeira obra, que éjustamente um filme: Hurlements en faveurde Sade. No mesmo ano, uma discordânciasobre Chaplin motiva sua ruptura com Isou,seguida da fundação da Internacional Letrista.Debord e seus colegas estavam longe de tero ator inglês em alta conta, como Isou quelhe pagara tributo em seu filme “Traité deBave et d’Éternité” (1951)5. O primeiroescândalo da Internacional Letrista foi, assim,um ataque publico à Chaplin quando esteestava na França para lançar Limelight (idem,p.79). O manifesto dos acusadores, “Finis lespieds plats”, agradou tanto a René Margritteque acabou por motivar algumascontribuições de Debord na revista editadapelo pintor belga, La carte d’après nature(DUWA, 2008, p.57) .

A aproximação com Margritte, emboratenha durado apenas dois anos, demonstravauma opção estratégica do grupo recém-fundado por Debord. Tratava-se, em suma,de buscar pontos de apoio que o permitisseguardar distância do grupo surrealista de

5 O filme de Isou encontra-se disponível na internet através do seguinte endereço: http://www.ubu.com/film/isou.html

GABRIEL ZACARIAS; TIAGO MACHADO

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 67-82, NOVEMBRO 200976

André Breton. O surrealismo parisiensereconstituíra-se no pós-guerra, mas nãocontava mais com a mesma radicalidadepolítica, sendo agora reconhecido no interiordas instituições artísticas. A juventude letristaentendia como sua a missão de retomaraspirações que os surrealistas haviamabandonado.

Desta forma, a ação letrista se abre àexploração do espaço urbano através daderiva e da psicogeografia, noções queguardavam relações diretas com experiênciasanteriores do surrealismo (Cf. ANDREOTTI eCOSTA, 1996, p.40). Ao mesmo tempo, aprática dos escândalos que tinham como alvosprivilegiados a arte oficial, tão pertinente aoDadá e ao Surrealismo do entre-guerras, eraatualizada pelo grupo de Debord. Agora,porém, os próprios surrealistas tornavam-sealvos, compreendidos como incorporados aoscânones estéticos.

Neste primeiro momento, Debord buscouafastar-se da figura de André Breton atravésde uma aproximação com os surrealistasbelgas que haviam rompido com o escritorfrancês. Assim foi com Margritte, quando esterompeu temporariamente com Breton. Maisduradoura, porém, foi a aliança com o grupode Les lèvres nues. No periódico homônimoeditado por Marcel Mariën foram publicadosalguns dos textos fundamentais que Debordproduziria com a Internacional Letrista. Textoscomo “Mode d’emploi du détournement”,escrito em 1956 com Gil Wolman, no qualDebord apresentava aquela que seria suaprincipal proposta de ação estética, odétournement 6. Como veremos mais adiante,o détournement continuaria a ocupar umpapel central na produção artística da

Internacional Situacionista, grupo que,formado pouco depois, partia de novasalianças, marcando o afastamento entreDebord e o grupo belga – o qual foi dissolvidoem 1958 (DUWA, 2008, p.79).

A Internacional Situacionista (IS) foifundada em 1957 com a união dos gruposartísticos que à época se reuniam em tornode Asger Jorn e de Guy Debord, o MovimentoInternacional por uma Bauhaus Imaginista(MIBI) e a Internacional Letrista (IL),respectivamente. Nos primeiros periódicos daIS encontramos importantes referências etextos destes e outros grupos precedentes,como o grupo CoBrA animado por Jorn emfins da década de 1940. Até a década de1960, a atuação da IS esteve quase quecircunscrita ao campo da arte, e outros grupose artistas viriam a aderir ao movimento, comoo arquiteto holandês Constant e o grupoalemão Spur. Porém, em 1962 o grupo teveuma última debandada de artistas e, com aentrada de Raoul Vaneigem, o debate políticotornou-se o eixo de suas publicações. Nestemesmo ano, Jorgen Nash, irmão do pintorAsger Jorn, tentou ainda reagrupar os ex-situacionistas em torno de uma dissidênciavoltada para a produção artística. A “SegundaInternacional Situacionista” durou até 1966,produzindo uma publicação em inglês a“Situationist Times”. As exposições que, desdefins dos anos 1980, tem revisitado a obra dossituacionistas costumam incorporar otrabalho de Nash e seu grupo.

Enquanto isso, Guy Debord e seu grupovoltaram-se decididamente ao pensamentopolítico. A Internacional Situacionista seenvolveria então em debates com os gruposde Arguments de Edgar Morin, e Socialisme

6 O artigo foi publicado em maio de 1956 no oitavo número de Les lèvres nues. Na capa do periódico o texto era anunciado comode autoria de Breton e Aragon. Cf. DEBORD, Guy. Oeuvres. Paris: Gallimard, 2006, p.221.

NOVO REALISMO E INTERNACIONAL SITUACIONISTA: UM ESTUDO DO QUESTIONAMENTO DA IMAGEM PICTÓRICA...

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 67-82, NOVEMBRO 2009 77

ou Barbarie de Cornelius Castoriadis7. Essecaminho resultaria na publicação dostrabalhos mais célebres de Debord eVaneigem – La société du spectacle e Traitede savoir-vivre à l’usage des jeunesgenerations, respectivamente – e naconseqüente importância do grupo nosacontecimentos do Maio de 68. Alguns anosmais tarde, e em parte por conta danotoriedade adquirida em 68, Debord optariapela dissolução do grupo. O autor voltaria,então, à atividade cinematográfica, a qualhavia interrompido no início da década de1960.

No que diz respeito, mais especificamente,a relação entre o grupo de Debord e o NovoRealismo, é pertinente acreditar quesituacionistas e novos realistas, atuantes nadécada de 1950, cruzaram-se por diversasvezes nos meios da avant-garde parisiense. Éo caso de Debord e François Dufrêne, quepertenceram ao grupo letrista de Isidore Isou,ou ainda de Debord e o mais notável membrodo Novo Realismo, Yves Klein. SegundoBourseiller, houve um período em que Deborde Klein nutriram certa afinidade. Klein chegoua pedir a Debord que prefaciasse uma de suasexposições dos Monocromos, enquanto esteteria cogitado a integração de Klein na IS.Porém, o misticismo militante de Klein pareceter sido o ponto de impasse. Em “L’absenceet ses habilleurs”, texto de 1958, Debordesclarece suas diferenças com as posturasmísticas de importantes personagens docenário artístico como o crítico Michel Tapié,o músico californiano John Cage e o próprioYves Klein (Internationale Situationniste,p.38). A diferença é tanto mais necessária se

pensarmos na aproximação possível entre astelas monocromáticas de Klein, a músicasilenciosa de Cage e o filme letrista de Debord,Hurlements en faveur de Sade, realizado em1952 (mesmo ano em que Cage apresentava4’33'’).

Mas a questão que se colocaria, então,seria a seguinte : como intenções distintaspoderiam determinar, todavia, experimentosartísticos semelhantes? Seria necessáriobuscar categorias capazes de dar conta dessemesmo movimento geral da arte do pósSegunda Guerra, mas que não incorressemnuma qualificação universal que suprimissea diferença específica dos diversos intentos.

Nesse sentido, teríamos que notar aincongruência patente entre as proposiçõesgerais formuladas por Peter Bürger a respeitodas “neovanguardas” e o que há de maisnotável na experiência situacionista. Parecebastante evidente que toda reflexãosituacionista, notadamente aquela formuladapor Guy Debord, coloca-se como umareflexão atenta ao momento histórico que lheé específico. As proposições de Debord sobrea arte tomam como ponto de partida aconstatação de um processo de alteraçãoradical nas formas de sociabilidade, a partirdo segundo pós-guerra. É em meio a essastransformações que Debord assinala acentralidade da cultura como novo “campode batalha” do político, o que significava queuma tomada de posição política deveria serentão compreendida como uma tomada deposição frente à produção cultural, queràquela ainda confinada aos limites de umaarte institucionalmente reconhecida, queràquela validada a partir das intenções

7 Debord esteve próximo ao grupo de Socialisme ou Barbarie entre 1959 e 1960. O resultado desse encontro foi o escrito conjuntocom Daniel Blanchard, Préliminnaire pour une définition de l’unité du programme révolutionnaire. Porém, mais voltado àspreocupações estritamente políticas, o restante do grupo, ao contrário de Blanchard, parece não ter se animado muito com opensador situacionista. Cf. BLANCHARD, Daniel. Debord dans le bruit du caractère du temps / suive de Prélimiaires pour unedéfinition de l’unité de programme révolutionnaire. Paris, Sens & Tonka éditeur, 2000.

GABRIEL ZACARIAS; TIAGO MACHADO

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 67-82, NOVEMBRO 200978

utilitárias da Indústria Cultural. Tudo istomarcará as opções estéticas do grupo, bemcomo a formulação teórica de Debord, a qualacabaria por se sobressair com A sociedadedo espetáculo.

Entrementes, vale observar ainda mais umponto no que concerne ao trabalho de Bürger.Este e Debord conservam algumas premissasafins no que diz respeito a suas bases teóricas.Ambos encaram o campo do estético a partirda atualização de questões caras ao marxismoocidental. E é quando deixam entrever asressonâncias de uma filosofia da história queos autores incorrem no risco de apreciaçãoindevida do objeto. Ávido leitor que fora dasobras de Marx, Debord ficaria surpreso aosaber que o “18 Brumário de Luís Bonaparte”forneceria o modelo para que Bürgerdesqualificasse os intentos situacionistascomo “farsa”.8 De toda forma, Debordtambém não deixou de, por vezes, descartaros intentos de seus contemporâneos a partirde uma atualização do “fim da arte”hegeliano. Seu gesto, porém, era mais claroque o de Bürger, já que se tratava de formularargumentos vivos para uma disputa em jogo,e não uma teoria acadêmica retrospectiva.Além disso, as proposições teóricas de Deborda respeito da arte não podem ser tomadasisoladamente, compondo na verdade umconjunto com as propostas experimentais dossituacionistas, bem como com a teoria doespetáculo.

É preciso ter em conta que asneovanguardas francesas não ignoravam adistância que as separavam das vanguardashistóricas. Isto é verdade tanto para aInternacional Situacionista quanto para oNovo Realismo. Enquanto aqueles adotaramcomo postura fundadora uma relação

conflituosa com o Surrealismo, estes optarampor enunciar um laço problemático com oDadá. Em outros termos, os passos iniciais deambos os grupos tinham sido marcadosjustamente por um acerto de contas com opassado das vanguardas históricas. Masnenhum dos dois o fizera descuidadamente.

Assim, como os grandes filósofos darepetição insistem em nos mostrar, arepetição não é nunca o retorno do idêntico,implica necessariamente numa mudançaqualitativa. Tal mudança era explicitada nospropósitos dos grupos, e é justamente aí quepodemos vislumbrar suas diferenças depressupostos. Para os novos realistas, tratava-se de recuperar o gesto Dadá, gestooriginalmente negativo, e torná-lo umapossibilidade positiva. Eles entendiam, então,que a crítica dirigida pelas vanguardas àinstituição arte havia cumprido seu papel, asaber: permitir a renovação das possibilidadesexpressivas exigidas pela modificaçãomaterial da sociedade.

Os situacionistas, sem dúvida, tambémguardavam relações de continuidade paracom os procedimentos do Dadá. Asfotomontagens e filmes de Debord são dissotestemunhas. Mas sua proposta deapropriação de materiais diversos era distintadaquela dos novos realistas. A medida dessadiferença pode ser dada justamente peladistância que o grupo tentou marcar para como Surrealismo. Se os novos realistas tinhamuma proposta de atualização dosprocedimentos estéticos do Dadá, ossituacionistas queriam retomar justamente ogesto antiarte de negação da instituição. Eenquanto os novos realistas espelhavam-senuma vanguarda que se perdera no passadoe que era, em suas próprias palavras, um

8 É bom deixar claro que o termo “farsa” não é empregado por Bürger, que tampouco faz qualquer referência direta aos situacionistas.Tomamos aqui a já mencionada interpretação tópica que Foster faz de Bürger, colocando-a em relação com nosso objeto deanálise.

NOVO REALISMO E INTERNACIONAL SITUACIONISTA: UM ESTUDO DO QUESTIONAMENTO DA IMAGEM PICTÓRICA...

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 67-82, NOVEMBRO 2009 79

“mito”, os situacionistas tentavam acertarsuas contas com um surrealismo atuante.Reconhecido nos meios culturais parisienses,o grupo dirigido por Breton era, para ossituacionistas, protagonista de uma “amargavitória” (Internationale Situationniste, 2004,p.3). As críticas situacionistas tinham porobjetivo reavivar a demanda da realizaçãoda arte que o grupo de Breton abandonara.

IS vs. NR

Podemos dizer que para os situacionistas,a reconversão da arte em direção à práxisvital – apenas para ficar nos termos de Bürger– era ainda o problema central, uma vez queeste objetivo vanguardista não havia sidoatingido. Neste sentido, os situacionistasestavam na contramão dos novos realistas quelevavam a “realidade exterior do mundomoderno” para dentro das galerias.Realmente na contramão, se lembrarmos queo Novo Realismo se articulou alguns anosdepois que a Internacional Situacionista e,com experiências passadas em comum,acabou significando uma experiênciainstitucionalmente bem-sucedida depropostas já ensaiadas anos antes pelossituacionistas.Talvez por isso a ascensão doNovo Realismo seja contemporânea doafastamento da Internacional Situacionista daarte institucional, com sua guinada para odebate político.

Essa abertura para além dos limites da artefora já o motor das atividades internacional-letristas nos anos 1950, período em queDebord formula as concepções que dariambase às atividades posteriores dossituacionistas. Seu grupo tinha por objetivoprincipal desenvolver uma nova relação como espaço urbano. Crítico da arquiteturafuncionalista que tinha em Le Corbusier seuexpoente, o grupo entregava-se à “deriva”:

uma longa deambulação casual que tinha porfim repensar uma organização afetiva doespaço urbano, capaz de romper com a lógicautilitária das comunicações. Esse deambularcasual pela cidade, embora de clarainspiração surrealista, não apostava, porém,na revelação do inconsciente. Pelo contrário,tratava-se da tentativa de estruturar aquiloque seus praticantes entendiam mesmo umanova ciência, a qual chamaram de“psicogeografia”(Cf. BERENSTEIN, 2003).

Mais tarde, a psicogeografia seria a noçãode base para os trabalhos de Raymond Hains,outrora membro de uma dissidência letrista,que como membro do Novo Realismonotabilizou-se por suas colagens elaboradascom cartazes extraídos das ruas. Essemovimento de deslocamento de material,como o dos cartazes das ruas, era tambémaparentado a outra proposta elaborada porDebord ainda em 1956, a qual receberia onome de “détournement” (desvio).

O détournement tornou-se, para a IS, oelemento unificador de trabalhos diversoscomo os de Pinot-Gallizio, Constant, AsgerJorn e Guy Debord. Este simples procedimentode desvio consistia no esvaziamento dosentido original de um produto culturalseguido de sua ressignificação a partir dainserção num novo contexto. Logo, emcomparação com aquela “apropriação doselementos da realidade exterior”, advogadapelo Novo Realismo, o détournementsituacionista apresentava uma diferença.Como bem notou Hal Foster, enquanto odétournement pregava uma dialética dedesvalorização/revalorização do elementoartístico desviado, o Novo Realismo sepautava apenas por uma acumulação deprodutos (FOSTER, 2005, p.390).

Para a Internacional Situacionista, aliberação do material proporcionada pelacrítica vanguardista – o que os novos realistas

GABRIEL ZACARIAS; TIAGO MACHADO

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 67-82, NOVEMBRO 200980

chamaram de o “não” Dadá – fazia de todoproduto cultural um material esteticamenteválido, de acordo com sua ressignificação. Jornpodia então construir novas obras – ou“modificações” – sobre quadros baratoscomprados em mercados urbanos, bem comoAnna Karina podia ser desavisadamentedeslocada de um anúncio de sabonetes paraum filme de Debord (trata-se de Sur le passagede quelques personne à travers une assez courteunité de temps de 1959). A partir daí, aproposição fixada por Jorn era simples econtundente: “tous les élements du passéculturel doivent être “réinvestis” ou disparaître”.(Internationale Situationniste, 2004, p.78)

Percebemos, então, um conjunto dequestões comuns no debate estético francêsdesta época, que permeavam as ações dosgrupos aqui analisados. O Novo Realismo,como movimento articulado por um críticode arte em ascensão, Pierre Restany, tendia aapresentar tais questões sob a forma de açõesartísticas institucionalmente válidas. Assim, amesma idéia de “deriva”, tão importante paraDebord e os grupos estéticos que capitanearanos anos 1950, reapareceria em grandesações coordenadas por galerias, como aquelaorganizada pela Galerie Légitime na cidadede Paris em 1962, ação que contava aindacom obras de outros artistas renomados comoCage, Higgins, Brecht e La Monte Young (Cf.NEUBURGER, 2005).

O objetivo situacionista, porém, não era oda constituição de obras de arte, mas oemprego experimental de elementosartísticos. A proposição central daInternacional Situacionista era a “situaçãoconstruída”, uma unidade espaço-temporalmarcada pelo emprego experimental eunitário de todos os meios artísticos. Às obrasde arte era novamente restituído seu valor deuso. Aparecia aqui uma nova pintura cujoslimites não eram mais o da tela – basta pensar

nos imensos rolos de pintura industrial dePinot-Gallizio – e cuja autonomia era negada:toda arte deveria ser apenas “cenário” paraum “jogo de acontecimentos”. (InternationaleSituationniste, 2004, p.11)

Conclusão

Nas “neovanguardas” francesas aquianalisadas (Novo Realismo e InternacionalSituacionista) aparece claramente atendência à destituição da potência daimagem como portadora única de sentido.Apesar dos desacordos entre os doismovimentos, a questão central que envolveuas pesquisas girou em torno de um temavanguardista semelhante: qual seria o sentidode uma obra de arte e qual o seu lugar nomundo contemporâneo.

Enquanto o Novo Realismo tendia cadavez mais a introduzir um solo de legalidadepara os novos materiais e procedimentosdentro da esfera da instituição arte, aInternacional Situacionista, por sua vez,passou a se afastar das experiências estéticasem favor de uma atuação política maiscontundente. Todavia, em ambos os casos, aspesquisas apontaram para um alargamentona compreensão da função da imagem numasociedade cada vez mais dominada pelosmassmedia. No caso mais específico dasformas estéticas, e sobretudo da pintura, apósas constantes inversões entre as séries deobjetos da vida cotidiana e do sistema artístico,tornou-se claro que a imagem não poderiamais ser tratada de maneira autônoma.Mesmo a forma crítica consagrada pelomodernismo estaria alicerçada sobre umainstância produtora de sentido, um invisívelque produz suas condições de visibilidade. Aimagem produzida no campo da arte surge,então, como uma prática material dotada desentido provisório.

NOVO REALISMO E INTERNACIONAL SITUACIONISTA: UM ESTUDO DO QUESTIONAMENTO DA IMAGEM PICTÓRICA...

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 67-82, NOVEMBRO 2009 81

Referências Bibliográficas

ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo:Companhia das Letras, 1992.

ANDREOTTI, Libero e COSTA, Xavier (org.),Situacionistas: arte, política, urbanisme =Situationists: Art, Politics, Urbanism. Barcelona:Museu d’Art Contemporani de Barcelona/ACTAR,1996.

BLANCHARD, Daniel. Debord dans le bruit ducaractère du temps / suive de Prélimiaires pourune définition de l’unité de programmerévolutionnaire. Paris: Sens & Tonka Éditeur, 2000.

BERENSTEIN, Paola (org). Apologia da deriva :escritos situacionistas sobre a cidade. Traduçãode Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro : Casada Palavra, 2003

BOURSEILLER, Christophe. Vie et mort de GuyDebord : 1931-1994. Paris : Plon, 2001

BUCHLOH, Benjamin. Neo-Avantgarde andCulture Industry. Cambridge: MIT Press, 2002.

BÜRGER, Peter. Teoria da Vanguarda. Lisboa:Veja,1993.

DEBORD, Guy. Oeuvres. Paris: Gallimard, 2006

DUWA, Jérôme. Surréalistes et situationnistes,vies parallèles. Paris : Editions Dilecta, 2008.

EDWARDS, Steve; WOOD, Paul (edit). Art ofthe Avant Gardes. New Haven and London: YaleUniversity Press, 2004

FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília (org.).Escritos de Artistas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,2006

FOSTER, Hal. The return of the real.Massachusetts: MIT Press,1996

______; et al. Art Since 1900. London: Thames &Hudson, 2004.

GREENBERG, Clement. Clement Greenberg e oDebate Crítico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,2001.

INTERNATIONALE SITUATIONNISTE (obracoletiva). Internationale Situationniste (texte intégraldes 12 numéros de la revue, édition augmentée).Paris: Librairie Arthème Fayard, 2004.

NEUBURGER, Susanne. Nouveau Réalism.Catalog Museum Moderner Kunst StiffungLudwig Wien, 2005

RESTANY, Pierre. Os novos realistas. São Paulo:Perspectiva, 1979

SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica.São Paulo: Boitempo, 2008

Periódicos

Revista da Gávea, nº 12. Dezembro de 1994

Art Journal, Vol. 64, no.4, Winter 2005.

IMÁGENES GRÁFICAS Y FOTOGRAFÍAS EN UNA EXPERIENCIA ESCOLANOVISTA (ROSARIO, ARGENTINA: 1935-1950)

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 83-94, NOVEMBRO 2009 83

Recebido em: 08/05/2009 Aprovado em: 25/08/2009

Imágenes gráficas y fotografías en unaexperiencia escolanovista

(Rosario, Argentina: 1935-1950)

María del Carmen FernándezMagíster en Educación, con Mención en Historia y Prospectiva por la Universidad Nacional de EntreRíos (Argentina). Docente en la Escuela de Ciencias de la Educación, Facultad de Humanidades yArtes, UNR – Argentina y Núcleo Histórico Epistemológico de la Educación. Autora de artículospublicados en revistas especializadas referidos a Historia de la Educación.

María Elisa WeltiMagíster en Educación por la Universidad Nacional de Entre Ríos (Argentina). Profesora Adjunta enel Núcleo Histórico-Epistemológico de la Educación y en la cátedra de Curriculum y Didáctica de laEscuela de Ciencias de la Educación de la Universidad Nacional de Rosario (Argentina). Autora deartículos referidos a la Historia de la Educación.

Rubén BiselliProfesor de Enseñanza Media y Superior en Letras por la Universidad Nacional de Rosario (Argentina).Profesor Adjunto de la Cátedra de Lenguajes I de la Carrera de Comunicación Social de la UniversidadNacional de Rosario. Co-autor del libro Introducción a los lenguajes: la fotografía y de artículos sobretecnologías comunicacionales y dispositivos mediáticos.

RESUMEN

Este artículo presenta parte de una investigación centrada en la actividad educativa de Olga yLeticia Cossettini en la ciudad de Rosario (Argentina) entre 1935 y 1950. Tomamos aquí unaspecto singular y destacado de esta experiencia desarrollada en la Escuela Dr. Gabriel Carrascode la ciudad de Rosario durante el período analizado: el registro fotográfico – y gráfico – de lasactividades educativas cotidianas. Las numerosas fotografías que dan cuenta de la experiencia noson ajenas, desde nuestra perspectiva, a la singular articulación entre imagen y enseñanza que seevidencia en otros aspectos de la propuesta pedagógica. El avance efectuado en esta investigaciónnos permite además reflexionar acerca de cuestiones teórico-metodológicas relativas al análisisde fuentes gráficas – imágenes o fotografías – en la investigación histórico-educativa y evaluar elaporte de diversas disciplinas como la semiótica de las imágenes o la historia de las tecnologíascomunicacionales en la apreciación de dichas fuentes.

ABSTRACT

This paper can be interpreted as part of the investigation on Olga and Leticia Cossettini’seducational activity in Rosario (1935-1950). In this article, we will focus on a particular andprominent aspect of the experience that took place at “Dr. Gabriel Carrasco” School in Rosarioduring the period of analysis: the photographic record of daily educational activities. Fromour point of view, the many photographs that account for the experience are not free from thesingular articulation between images and teaching, also evident on other aspects of thepedagogic proposal. The progress in this investigation also allows us to reflect on severaltheoretical and methodological problems concerning the analysis of graphic sources –photographs, images in general – in the field of History of Education Research.

MARÍA DEL CARMEN FERNÁNDEZ; MARÍA ELISA WELTIN, RUBÉN BISELLI

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 83-94, NOVEMBRO 200984

Introducción

Este artículo presenta parte de unainvestigación centrada en la actividadeducativa de Olga y Leticia Cossettini en laciudad de Rosario (Provincia de Santa Fe,Argentina) entre 1935 y 1950. Tomamosaquí un aspecto singular de esta experienciadesarrollada en la Escuela Dr. Gabriel Carrascode la ciudad de Rosario durante el períodoanalizado: el registro fotográfico – y gráfico –de las actividades educativas cotidianas.

Las numerosas fotografías producidasdurante el desarrollo de esta experiencia noson ajenas, desde nuestra perspectiva, a lasingular articulación entre imagen yenseñanza que se evidencia en otros aspectosde la propuesta pedagógica: la presencia deimágenes de diverso orden constituyó, sinlugar a dudas, un elemento ineludible de lamisma.

En este peculiar contexto se destaca laimagen que funciona como registro, comohuella de la experiencia escolar: nos referimosa las imágenes producidas por los alumnosen cuadernos o láminas que remiten aacontecimientos vividos en la escuela (talescomo bailes, actos, visitas, etc.) y a lasfotografías tomadas en diversas escenas dela vida institucional2.

Imágenes gráficas y fotografías en una experienciaescolanovista (Rosario, Argentina: 1935-1950)1

La importante cantidad de fotos de laEscuela Serena puede ser pensada einterpretada de diversos modos. Por un lado,parece extenderse al ámbito escolar lapráctica de fotografiar instantes de locotidiano, o de lo extraordinario en locotidiano, que comenzaba a generalizarseentre las clases medias y las populares, y quepuede relacionarse con la vocación de laExperiencia por articular la escuela con suentorno y su época. Por otro lado, se evidenciauna clara intención de registro sistemático delas actividades escolares; intención quereafirma la cualidad fundacional quecaracterizaba la puesta en marcha de lasinnovaciones pedagógicas que seimplementaban.

La escuela y sus protagonistas en el

contexto y la época

A mediados de la década del 30 OlgaCossettini3 es nombrada Directora de laEscuela Nº 69 Dr. Gabriel Carrasco, en esemismo año se otorga al establecimiento elcarácter de “escuela experimental”. Esteensayo pedagógico se conoce con el nombrede Escuela Serena.

Es importante señalar el marco en el quese desarrolla esta experiencia: poco antes, en

1 Una primera versión de este artículo fue presentada como ponencia en las V Jornadas De Investigación En Educación “Educacióny Perspectivas: Contribuciones Teóricas y Metodológicas en Debate”, Córdoba (Argentina), Julio de 2007.

2 A este análisis se refiere el proyecto de investigación “La experiencia de la Escuela Serena en Rosario: la fuerza de la articulaciónentre imagen, historia y pedagogía” desarrollado entre 2004 y 2006 por los autores de este artículo.

3 Olga Cossettini (1898 – 1987) fue una maestra y pedagoga argentina reconocida por sus ensayos y experiencias escolanovistasdesarrollados entre 1930 y 1950 en las localidades de Rafaela y Rosario de la Provincia de Santa Fe.

IMÁGENES GRÁFICAS Y FOTOGRAFÍAS EN UNA EXPERIENCIA ESCOLANOVISTA (ROSARIO, ARGENTINA: 1935-1950)

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 83-94, NOVEMBRO 2009 85

el año 1934, se aprueba la Ley Nº 2364 quetenía como propósito regular la educación enla Provincia de Santa Fe. Esta nueva leyestablecía algunas disposiciones y principiosque interesa destacar por su implicancia parael desarrollo de esta experiencia: en primerlugar, la obligatoriedad de neutralidadreligiosa, con el declarado objetivo deasegurar “la libertad de conciencia del niño”4;en segundo lugar, la imposición de laeducación común mixta, que rompe con latradición provincial de crear escuelasseparadas para niñas y niños; por último, labúsqueda de una enseñanza “conforme a losmétodos activos” que contemple las“actividades recreativas y estéticas, juegos,deportes, cantos, música y declamación”.

Por otra parte, esta ley prescribe tambiénla descentralización en el gobierno de laeducación. En ella se postulan dos niveles deconducción: el provincial, a cargo del DirectorGeneral de Escuelas, designado por elecciónpopular, y el local, a cargo de los ConsejosEscolares de Distrito: cuerpos colegiadosintegrados por entre 3 y 5 miembros, elegidospor el voto popular cada dos años. Entre lasfunciones de los Consejos se encontrarían elnombramiento de maestros y directivos deacuerdo a una nómina enviada por laDirección General, la creación de nuevasescuelas y la administración de los recursospropios y los asignados por la DirecciónGeneral5. Es dentro de esta normativa queOlga Cossettini es designada por el ConsejoEscolar de Distrito correspondiente como

directora de la Escuela “Dr. Gabriel Carrasco”de la ciudad de Rosario.

Más adelante, y una vez que se deja delado la reforma educativa implementadadurante el breve gobierno de Molinas, elConsejo General de Educación ratifica laautonomía didáctica de la escuela y disponesu dependencia de la Inspección General deEscuelas. La escuela continúa comoexperimental hasta 19446 en que se le quitaesta condición. Finalmente, en agosto de1950, Olga Cossettini es separada de ladirección del establecimiento.

Ideas estéticas y escolanovistas en la

propuesta pedagógica

La experiencia cuenta con una notableabundancia de imágenes en diversosformatos y soportes (cuadernos, láminas,fotografías, filmaciones) producidas en elmarco de su implementación; cuenta tambiéncon una gran cantidad de imágenesdesarrolladas a posteriori sobre ella7. Creemosque esta abundancia de imágenes se inscribeen una peculiar articulación entre estética ypedagogía que sostienen Olga y LeticiaCossettini8.

En las ideas de estas pedagogas seadvierte, por ejemplo, una particularpreocupación por la articulación entrelenguaje, ciencia y arte infantil: “En la cienciaincipiente estaba el ejercicio de la libertad yel ejercicio de las manos que hacen,construyen e inventan”9. Rechazan, además,

4 Esta disposición marca un quiebre con la ley anterior vigente desde 1886 que establecía la enseñanza religiosa como contenidoobligatorio.

5 Ver Pérez, A. Navegar contra la corriente: la Ley de educación común, normal y especial (Santa Fe, 1934), en Boletín de la SociedadArgentina de Historia de la Educación, Rosario, Laborde Editor, 2000.

6 Se encontraba entonces a cargo del Consejo General de Educación el escritor Leopoldo Marechal.7 Nos referimos particularmente a los documentales que se han elaborado sobre la experiencia: La Escuela Serena: un modo de

escuela activa, IRICE, Rosario, 1988; Querida Leticia, IRICE, Rosario, 1989; La Escuela de la Señorita Olga, dirigida por Mario Piazza,Rosario, 1991.

8 Leticia Cossettini (1904 – 2004), hermana de Olga, fue maestra de la Escuela Carrasco durante el período en que Olga sedesempeñó como directora, destacándose por su sensibilidad estética.

MARÍA DEL CARMEN FERNÁNDEZ; MARÍA ELISA WELTIN, RUBÉN BISELLI

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 83-94, NOVEMBRO 200986

la educación tradicional, entendiendo que elpositivismo había penetrado en la cultura yen la escuela a través no sólo de los programas,sino también de los libros y los métodos,reduciendo el conocimiento estético a unasimple distracción o juego. A ello contraponenel espíritu como actividad: “Ese hacerespiritual significa vida, creación, emoción,ciencia, arte y moralidad”10.

En la propuesta pedagógica se diluyen loslímites entre la ciencia y el arte. Para esto setorna necesario transformar rutinas y prácticasescolares: horarios, programas, temas,métodos11.

En el marco de un proyecto educativo parael cual “los valores estéticos estáníntimamente ligados a los valores morales,físicos e intelectuales”12, la enseñanza y lapráctica del canto y del dibujo dejan de seruna cuestión menor: contribuyen de maneraesencial a la formación del “niño artista”. Porun lado, conducen a la consolidación dehábitos de belleza; por otro, permiten, junto ala palabra escrita, la expresividad de los“estados de alma” peculiares e irrepetiblesde cada uno de los niños y niñas, fundamentoesencial de su “expresividad creadora”.

Dicha “expresión creadora” infantil seráprecisamente el tema del libro El niño y su

expresión que se publica en 1940. El libroincluye una conferencia pronunciada porOlga Cossettini y trabajos de los alumnos dela Escuela Experimental “Dr. GabrielCarrasco” expuestos en el Museo Castagnino

de la ciudad de Rosario: poemas,reproducciones de acuarelas, dibujos ytrabajos prácticos de los alumnos13.

En dicha conferencia, Olga señala que

la expresión creadora del niño es el resultadode una inspiración espontánea, que no emanade un orden, que está cargada de un potencialafectivo, que tiene como fin una imagen arealizar, una idea, que es el elementointelectual de la creación, que se expresamediante una actividad del espíritu y delcuerpo, y que es una expresión relativamentenueva, no una imitación.

Es por ello que la escuela nueva debe actuaren sentido estrictamente contrario a la maneraen que lo hiciere la escuela tradicional, ytransformarse, por ende, en un espacio ideal queposibilite, incentive y concrete el desarrollo:

cuando el medio didáctico ejercita laactividad imaginativa ayudándolasimplemente a crecer y a manifestarse,sabemos de cuánto es capaz el alma del niño,abierta a la emoción y a la belleza del mundo.Los claros dibujos que ilustran sus trabajos,sus canciones, la danza y el juego, la músicacon que alegran sus paseos, los librosserenos, poesía fresca, ciencia amena, dan ala infancia savia de crecimiento, sin turbarla,sin ajarla, ayudándola a crecer14.

Las páginas de los cuadernos escolares delos alumnos de la Escuela Serena evidencianla importancia que la expresión gráfica tuvoen la experiencia. En todos los cuadernosrelevados aparece una sobreabundancia de

9 Entrevista a Leticia Cossettini, Novedades Educativas nº 91, Buenos Aires, Julio de 1998, p. 52.10 Cossettini, O. Sobre un ensayo de Escuela Serena en la provincia de Santa Fe (1935) en Olga Cossettini y Leticia Cossettini, Obras

Completas, AMSAFE, Santa Fe, 2001, p. 22.11 Ya en la Escuela Normal Provincial de Rafaela Olga y Amanda Arias habían adaptado los horarios fijados por la Dirección de

Escuelas Normales a las actividades escolares que allí desarrollan12 Cossettini, O. Op. cit, 2001, p. 66.13 La publicación corre por cuenta del gobierno de la provincia y el prólogo lo escribe el entonces Ministro de Instrucción Pública y

Fomento Juan Mantovani, quien señala que la iniciativa partió de la Dirección Municipal de Cultura y de la Dirección del MuseoMunicipal de Bellas Artes “Juan B. Castagnino” de Rosario, luego de comprobar el interés que entre los educadores y los artistashabía generado una muestra de dibujos, ilustraciones y pinturas de los niños. Mantovani señala allí que el trabajo realizado enla Escuela muestra “la libre expresión del quimérico mundo interior del niño y de su fértil y animada fantasía”.

14 Ibídem, p.198.

IMÁGENES GRÁFICAS Y FOTOGRAFÍAS EN UNA EXPERIENCIA ESCOLANOVISTA (ROSARIO, ARGENTINA: 1935-1950)

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 83-94, NOVEMBRO 2009 87

imágenes que presentan, además, originalescaracterísticas. Por ejemplo, se puede señalarque las imágenes realizadas por los alumnosen sus cuadernos de clase, además depretender representar gráficamentecontenidos escolares, asumen la función deregistrar las actividades escolares. Algunasimágenes constituyen una forma gráfica ysistemática de registro de prácticas deobservación desarrolladas por los alumnos.Éste es el caso de los calendarios mensualesen los que se asienta el estado del tiempo, laorientación del viento o las fases de la luna.

O el de aquellas imágenes que registranpaso a paso la secuencia de los experimentosrealizados. Otras imágenes, en cambio,registran pormenorizadamente lasactividades escolares desarrolladas fuera deledificio escolar: paseos por el barrio, visitas adiferentes lugares, entrevistas con personajesde la zona. Finalmente, se encuentranimágenes que suponen el registro deactividades institucionales como bailes,representaciones teatrales, títeres o visitas depersonas ilustres a la escuela (como GabrielaMistral, Javier Villafañe, Juan Ramón Jiménez,etc). En general estas imágenes sepresentaban acompañadas de relatos acercade las impresiones subjetivas vividas por losalumnos en el evento al que se alude.

A partir de lo dicho, podemos pensar quela imagen deviene en los cuadernos de clasede la Escuela Serena – y en la experienciamisma – un operador privilegiado tendientetanto a reforzar la función de registro de lasactividades escolares diarias, como aconsolidar una experiencia que liga la escuelacon el barrio, su gente y el entorno naturalcon su fauna y su flora.

Esta cualidad de las imágenes seencuentra directamente relacionada, sindudas, con la declarada intencionalidad defavorecer la expresión libre y creativa del niño,intencionalidad inscripta en los principiosescolanovistas que animan la experiencia. Elniño es reconocido y alentado como autor15.

Además, los cuadernos de clase de losalumnos de la Escuela Serena evidencianalteraciones en las pautas de uso promovidastradicionalmente por la escuela16. La rupturade la frontera que representan los márgeneses un claro ejemplo de ello. Las imágenesinterrumpen, en buena parte de ellos, lanoción y la función del margen, se constituyenen el núcleo organizador de las páginas delos cuadernos. En muchos casos son lasmismas imágenes las que operan como límitepara la escritura, las que se constituyen enmargen irregular de la palabra escrita. Laescritura se extiende en los espacios libres quelas imágenes dejan en las hojas de loscuadernos, la escritura envuelve de este modoa las imágenes, las acompaña y no a la inversa.Por otra parte, cabe señalar que las imágenesde los cuadernos carecen de “marco”, no seencuentran encuadradas ni cercadas porlíneas divisorias. Las imágenes habitan loscuadernos libremente.

Ahora bien, en esta experiencia la fuerzapedagógica de la imagen no alcanza por iguala todos los tipos de ilustraciones: lapotencialidad de la imagen tiene que ver, eneste caso, con el hecho de que sea producidapor los mismos alumnos, es precisamente este“hacer la imagen” lo que parece asumir unafunción pedagógica. Esto ofrece una claravinculación con la preponderancia que laactividad del niño ocupa dentro de las ideas

15 Este lugar de autor es reconocido también en la obra “El niño y su expresión” - a la que nos hemos referido antes - que, comoindicamos, presenta precisamente textos escritos por los niños de la escuela, e imágenes desarrolladas por ellos.

16 Cfr. Gvirtz, El discurso escolar a través de los cuadernos de clase. Argentina 1930 - 1970. Buenos Aires, Eudeba, 1999.

MARÍA DEL CARMEN FERNÁNDEZ; MARÍA ELISA WELTIN, RUBÉN BISELLI

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 83-94, NOVEMBRO 200988

pedagógicas de las Cossettini y delmovimiento Escuela Nueva en general.

Además de las imágenes presentes enlos cuadernos de clase, la experiencia de laEscuela Serena ofrece otro nutrido grupode imágenes: láminas realizadas por losmismos niños. En ellas encontramospaisajes del barrio y de la ciudad; dibujosrealizados después de haber escuchadoalguna pieza de música clásica o despuésde escuchar lecturas, cuentos, relatos,leyendas; impresiones de color luego dehaber asistido alguna actividad organizadapor la escuela, a una obra de teatro, o parala escenografía de ella.

La importante cantidad de láminas,relacionadas con estas actividadesinstitucionales, da cuenta del valor otorgadoa la imagen en la propuesta educativa, peroademás ratifica la función que en el marcode esta experiencia se le otorgaba a la imagencomo forma privilegiada registro de lasactividades escolares a la que nos refiriéramosmás arriba. En esta centralidad asumida porlas imágenes e ilustraciones confluyen lapreocupación por la formación estética, laespontaneidad y libertad infantil, la idea delaprendizaje basado en la actividad; en suma,diversos aspectos relevantes en las propuestasescolanovistas de la época. Al mismo tiempolas láminas constituyen una forma de registrosistemática e intencional de las innovacionespedagógicas que en la Escuela Serena sedesarrollaban.

El relato fotográfico

Las numerosas fotos que registran laexperiencia nos muestran también – al igualque las láminas y los cuadernos – las diversas

actividades de la escuela: obras de teatro,visitantes ilustres, teatro de títeres, festejos,concurso de barriletes, recreos, elecciones delCentro Cooperativo de la Escuela, MisionesCulturales, Coro de Pájaros e inclusive laautorrepresentación del mismo hecho defotografiar estas actividades.17. En general nose trata de retratos, sino de fotos que dancuenta de un instante de lo cotidiano o de loextraordinario en lo cotidiano.

Por su naturaleza icónica e indicial, por suposibilidad de transmitir acontecimientos,momentos, sucesos, la fotografía desarrollauna relación singular con el tiempo: se vinculacon el tiempo pasado devolviéndole a laimagen una historia y con el tiempo presentearmando el relato que las imágenes permiten.

Ahora bien, podemos preguntarnos cómoapreciar este segmento de imágenes de estasingular experiencia pedagógica. En primerlugar, las fotografías de la Escuela Serenapueden ser reconocidas como documento ytestimonio en la medida que registran lasdiferentes actividades escolares,fundamentalmente aquellas consideradasinnovadoras. También pueden serconsideradas como una forma peculiar demodelar una memoria de la experiencia entanto que narran hacia el futuro losacontecimientos de un modo particular.Podría pensarse que la escuela entrega a lafotografía su propuesta innovadora con laintención de eternizarla y de reafirmar de estemodo el sentimiento de unidad (Bourdieu,1980) en este caso de corte institucional. Eneste sentido, estas fotografías tomadas enpleno desarrollo de una propuestapedagógica renovadora son algo más que eltestimonio gráfico de ellas en su devenircotidiano, son ellas mismas algo histórico(BURKE, 2005, p. 28).

17 Hemos encontrado en el archivo una singular fotografía de uno de los fotógrafos que han ejecutado estas escenas de registroen el acto mismo de tomar una foto.

IMÁGENES GRÁFICAS Y FOTOGRAFÍAS EN UNA EXPERIENCIA ESCOLANOVISTA (ROSARIO, ARGENTINA: 1935-1950)

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 83-94, NOVEMBRO 2009 89

Además, la fotografía siempre remite a lopúblico, en la medida que en ella se posará lamirada de los otros. La fotografía es entoncesuna imagen de sí para los otros, una imagenprivada volcada hacia el afuera y por lo tantoexpuesta a la mirada ajena y a lo social.Seleccionar qué fotografiar supone elegir unamanera de dar cuenta de la historia y suponetambién elegir una estética, un estilo,proponer un modo de lectura determinado.

Las imágenes son tomadas para ser vistas,examinadas, comparadas: de ello tenían totalconciencia los protagonistas de estaexperiencia al decidir establecer un registroinstitucional y personal que diera cuenta delas innovaciones presentes en su propuestapedagógica. De este modo, creemos quedirigieron su mirada hacia algunos aspectosde la vida escolar y los seleccionaron paratransformarlos en imágenes fijas. Eligieron unpunto de vista desde el cual narrar laexperiencia escolar a través de la fotografía.Esta elección le otorga carácter deacontecimiento a la escena, al espacio y almomento que se fotografía, le otorga unsignificado y un modo de ser visto.

Si realizamos un recorrido por lasnumerosas fotos que guarda el archivo de estaexperiencia podemos identificar tres grandesrelatos que muestran esta selección: elprimero alude a las producciones artísticas delos alumnos, el segundo concierne alregistro de actividades escolares realizadasdentro y fuera de la escuela y, el tercero,remite a otras experiencias pedagógicas ovitales que, por diferentes motivos,intersectan con la Escuela Serena.

Las fotografías de producciones artísticasde alumnos presentan láminas, dibujos yesculturas realizadas por ellos, en suma, dancuenta de diferentes expresiones gráficas.Hay numerosas fotos también que muestranrepresentaciones teatrales, de títeres yespectáculos de música y danzaprotagonizados por los niños. Buena parte deestas presentaciones se llevaban adelante enel escenario del Museo Castagnino de laciudad de Rosario y quedaron registradas enfotos tomadas por fotógrafos profesionales18.Probablemente esto no sea ajeno a losdebates de los años 30 y 40, que hacían focoen la relación problemática y enriquecedoraa la vez entre arte y fotografía19.

Además, encontramos numerosasfotografías que dan cuenta de diferentesactividades realizadas en el marco de laexperiencia tanto dentro como fuera deledificio escolar. El universo temático de estasfotos remite a las “misiones culturales”desarrolladas en el barrio de Alberdi, a fiestasde la escuela, a visitas ilustres efectuadas porpersonajes destacados de la cultura de laépoca, a actividades de los alumnosinnovadoras para la época.

Un último grupo de fotos alude a unconjunto de actividades vinculadas con laexperiencia y con sus protagonistas que no sellevaron a cabo en el marco espacio-temporalde la misma. Entre ellas se destacan laimportante cantidad de fotos de viajesrealizados por Olga Cossettini,particularmente a Estados Unidos,Latinoamérica y Europa. Algunas de estas

18 Todas las fotografías de la experiencia tomadas por fotógrafos profesionales pertenecen al Estudio y Galería Renom, queanteriormente era Witcomb. La Galería Witcomb, que funcionaba en la ciudad de Buenos Aires desde fines del siglo XIX, instalauna filial en Rosario en la segunda década del siglo XX, en calle San Martín 874. En la década del 40 Witcomb transfiere su estudioy galería, que toma el nombre de Galería Renom con domicilio en calle Córdoba 916. Así como en Witcomb expusieron en la décadadel 20 Pettorutti y Xul Solar, por ejemplo, en Rosario expondrán en su local Berni, Vanzo y Spilimbergo.

19 En tal sentido cabe recordar las exhibiciones fotográficas que Horacio Coppola y Grete Stern (amigos de Walter Peterhaus,director del Departamento de Fotografía de la Bauhaus en Berlín) en los salones de Editorial Sur en 1935, invitados por VictoriaOcampo. En esa exposición se presenta un manifiesto que postula la fotografía como un nuevo modo de conocimiento.

MARÍA DEL CARMEN FERNÁNDEZ; MARÍA ELISA WELTIN, RUBÉN BISELLI

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 83-94, NOVEMBRO 200990

fotos registran visitas de Olga a lugares einstituciones en los que se desarrollabantambién propuestas escolares alternativas einclusive algunas de ellas son fotos de difusión,explícitamente tomadas con el propósito dedar a conocer estas experiencias.

Podemos decir que la abundancia de fotosde la Escuela Serena y sus actividades ladistingue simbólicamente de otrasexperiencias educativas de la época de lasque apenas quedan registros visuales. Cabeinterpretar esta cuestión, creemos, en dosdirecciones simultáneas. Por un lado, reafirmauna vez más la ruptura de límites entreescuela y entorno social que la experienciano cesa de proponer en todos los niveles. Demanera sin dudas cotidiana y gozosa, laEscuela Serena incorpora una práctica querecién comienza a generalizarse entre lossectores medios: la práctica de la fotografíainstantánea ejercida por aficionados pararegistrar su cotidianeidad20. Por otro, tornaevidente la clara intención de las protagonistasde registrar sistemáticamente la vida escolar;intención que da cuenta de la claraconciencia que ellas seguramente tenían desu labor al mismo tiempo pionera yfundacional. De hecho creemos que esteminucioso registro es consecuente con lasnumerosas publicaciones y presentacionesrealizadas por Olga y Leticia Cossettini endiversos ámbitos culturales y académicos quetenían como finalidad difundir masivamentelas innovaciones que la escuelaimplementaba.

Así, las imágenes producidas en el marcode esta experiencia – nos referimos tanto alas que fueron por entonces elaboradas por

los alumnos como a las fotografías ofilmaciones – se constituyen en corpusfundamental del análisis de esta propuestapedagógica, en portadoras de sentido y dematerialidad que abren nuevas dimensionesen la construcción de su historia.

Bibliografía

BARTHES, R. La cámara lúcida. Nota sobre lafotografía. Buenos Aires, Paidos, 2003.

BENJAMIN, W. La obra de arte en la época de lareproductibilidad técnica, en DiscursosInterrumpidos I. Madrid, Taurus, 1973.

BIANCO, A. La escuela Cossettini. Santa Fe,Ediciones AMSAFE, 1996.

BISELLI, R. Tecnologías comunicacionales yprocesos culturales modernizadores: El lugar dela fotografía en la revista Sur durante la décadadel ’30, en La trama de la comunicación (AnuarioNo7 del Dpto. de Ciencias de la Comunicaciónde la UNR). Rosario, Laborde Ed., 2002.

BOURDIEU, P. (comp.) La fotografía, un arteintermedio. México, Nueva Imagen, 1980.

BURKE, P. Visto y no visto. El uso de la imagencomo documento histórico. Barcelona, Crítica,2005.

CLARKE, G. The Photograph (Oxford History ofArt). Oxford, New York, Oxford University Press,1997.

COSSETTINI, O. – Cossettini, L. Obras Completas.Santa Fe, AMSAFE, 2001.

CUARTEROLO, M.; LONGONI, E. El poder de laimagen. Buenos Aires, Zoom, 1996.

DUBOIS, Ph. El acto fotográfico. Barcelona,Paidós, 1994.

DURAND, R. El tiempo de la imagen. Ensayo sobrelas condiciones de una historia de las formasfotográficas. Salamanca, Ed. Univ. de Salamanca,1999.

20 Cfr. FACIO, S. La Fotografía en la Argentina desde 1840 a nuestros días. Buenos Aires, La Azotea Editorial Fotográfica, 1995; PRIAMO, L. (1999)“Fotografía y vida privada (1870-1930)”, en DEVOTO, F.; MADERO, M. (dir.) Historia de la vida privada en la Argentina. Buenos Aires, Taurus.Tomo 2.

IMÁGENES GRÁFICAS Y FOTOGRAFÍAS EN UNA EXPERIENCIA ESCOLANOVISTA (ROSARIO, ARGENTINA: 1935-1950)

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 83-94, NOVEMBRO 2009 91

FACIO, S. La Fotografía en la Argentina desde1840 a nuestros días. Buenos Aires, La AzoteaEditorial Fotográfica, 1995.

FREUND, G. La fotografía como documento social.Barcelona, Gustavo Gilli Ed, 1976.

GAUTHIER, G. Veinte lecciones sobre la imageny el sentido. Madrid, Cátedra, 1986.

KOSSOY, Boris Fotografía e historia. Buenos Aires,Biblioteca de la mirada, 2001.

LEMAGNY, Jean Claude: La sombra y el tiempo. Lafotografía como arte. Buenos Aires, La Marca, 2008.

PELANDA, M. La escuela activa en Rosario: laexperiencia de Olga Cossettini. Rosario, EdicionesIRICE, 1996.

PACOTTI, A. Olga Cossettini y la escuela serena.Rosario, Ediciones de Aquí a la vuelta, 1992.

GVIRTZ, El discurso escolar a través de loscuadernos de clase. Argentina 1930 – 1970.Buenos Aires, Eudeba, 1999.

GVIRTZ, S. MENIN, O.; NUNES, C.;NARODOWSKI, M. y otros, Escuela nueva enArgentina y Brasil. Visiones comparadas. BuenosAires, Miño y Dávila Editores, 1996.

FILHO, L. Introducción al estudio de la EscuelaNueva, Buenos Aires, Kapelusz, 1966.

PÉREZ, A. Navegar contra la corriente: la Ley deeducación común, normal y especial (Santa Fe,1934), en Boletín de la Sociedad Argentina de Historiade la Educación. Rosario, Laborde Editor, 2000.

PINEAU, P.; DUSSEL, I.; CARUSO, M. La escuelacomo máquina de enseñar. Tres escritos sobre unproyecto de la modernidad. Buenos Aires, Paidós,2001.

PRIAMO, L. Fotografía y vida privada (1870-1930), en DEVOTO, F.; MADERO, M. (dir.)Historia de la vida privada en la Argentina. BuenosAires, Taurus, 1999. Tomo 2.

PUIGGRÓS, A. (dir.) Sujetos, disciplina y currículoen los orígenes del sistema educativo argentino.Buenos Aires, Galerna, 1991.

PUIGGRÓS, A. (dir.) Escuela, Democracia y Orden(1916 – 1943). Buenos Aires, Galerna, 1993.

PUIGGRÓS, A. (dir.) La Educación en lasProvincias y Territorios Nacionales (1885 – 1945).Buenos Aires, Galerna, 2001.

SCHAEFFER, J. La imagen precaria. Madrid,Cátedra, 1990.

SONTAG, S. Sobre la fotografía. Buenos Aires,Sudamericana, 1980.

SORLIN, P. Los hijos de Nadar Buenos Aires, LaMarca, 2004.

SOULAGES, F. Estética de la fotografía. BuenosAires, La Marca, 2005.

TRACHTENBERG, A. Classic Essays onPhotography. New Haven, Conn., Leete’s IslandBook, 1980.

VILCHES, L. La lectura de la imagen. Barcelona,Paidos, 1992.

MARÍA DEL CARMEN FERNÁNDEZ; MARÍA ELISA WELTIN, RUBÉN BISELLI

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 83-94, NOVEMBRO 200992

Figura 1. Cuaderno de un alumno de la Escuela Serena, 1943. Archivo Cossettini, IRICE, Rosario, Argentina.

Figura 2. Cuaderno de un alumno de la Escuela Serena, 1940. Archivo Cossettini, IRICE, Rosario, Argentina.

IMÁGENES GRÁFICAS Y FOTOGRAFÍAS EN UNA EXPERIENCIA ESCOLANOVISTA (ROSARIO, ARGENTINA: 1935-1950)

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 83-94, NOVEMBRO 2009 93

Figura 3. Fotografía de la Escuela Serena: Alumnos en la Huerta, Sin fecha. Archivo Cossettini, IRICE,Rosario, Argentina.

Figura 4. Fotografía de la Escuela Serena: Alumnos trabajando en el patio de la escuela, Sin fecha. ArchivoCossettini, IRICE, Rosario, Argentina.

MARÍA DEL CARMEN FERNÁNDEZ; MARÍA ELISA WELTIN, RUBÉN BISELLI

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 83-94, NOVEMBRO 200994

Figura 5. Fotografía de la Escuela Serena: Fiesta en el Barrio Alberdi. Fotógrafo tomando una foto. Sin fecha.Archivo Cossettini, IRICE, Rosario, Argentina.

Figura 6. Fotografía de la Escuela Serena: Juegos rítmicos en una Misión Cultural en la Plaza del Barrio Alberdi. Sinfecha. Archivo Cossettini, IRICE, Rosario, Argentina.

�����N������3����.��7�3O��)��3 ]��.��:�� ����[����. �7���7���X����������N���Y���

����������������� ����������������������)����+/�0��������������� ��

��&�B�����"4�/�J��J��������������������� !�������"4���J��J����

� �!�$���! ������������%������ N�����A ���(����� ���������G ���

� ��$O �H�� �� �� ���+��� ��� � -��%

��'!��$�#!�R'�������!!���"�!���

����!�� �"�$���%!��� �(��.#���!������� :���!�(� :('"�#�#��� �.::��� )!�L����!� ���7�#�!��.#���!���G!��'*'���������� �.���.����'��!����� �#�!���'�!��� �!��*���� X� L���(�� L�(��'�#�� L���4� �� &�B�!�'!�������"�#��� ��� ��#���#�^#��� �(��� (�#���� ���7�!!���� �����#6-Y��5���������� �.::��� ��� /Z�� �����

,)�&-�'������!��*���#�(����!� !���#��,W�����&�������B!��L���(�������������=�#��!��� !�#&� �("�#����(6������!�*�����)!�������)�#����#��&�B�!�'!��L���U�!#�(@���&�����X7�!!���������#6-Y�����(�#*�����>&�������2�����#�!�������� &�#��K���� �� �!&� ,-�� ��&��(� ���� L���(��� ���&'(����� �(� �!�%��&����!��>�����(�#*'�*�"����L���*!�L������"@����!�"������#�,W������L!�*�(�������&�"L�!��������&��,W�������(�"�#���6'"�#��&�"��� !�&�!��������������G!�������6�B���,-��������� �� ��� &�#��!',-�� ����� ��!� L�&���� ��B� �� ('<� ��� ��>�� ����(%*�&�� �#�!@#��&�� T� ���������U�!#�(@���&��� �#&('������"��'����!��#������'�(�� �#R'�#��� �" �!��#���"������� �!�#�"���-�������W������"'#����� U'@<��������(�!��������!����� �&@L�&��������&�������) ���+7$��4�L���(��\�L���*!�L��\�X7�!!���������#6-Y�

#.�/,#+/

36����!��&(���#�(D<�����&��(�!� !���#�����#���#��('"�R'�!��!���L��������=�#��!���"��#(D��6���(6������!�*����#��)!�������)�#����('"����#��6��X7�!!���������#6-Y� 6����&���!�#*���6!�'*6�'��6����&�����L�2����#������L��6���&�#��K����6����&��(� �!&� ���#��L��6���('"�� !� �*�����L�!��6� �!����&��#���6!�'*6��6��(�#*'�*���L��6��"����� 6���*!� 6���#����6��L!�*�(��D��(�*6��9#�C(��*��C��6� ��!�#*� ����&�����#���L� �6��6'"�#��(�"�#��C��6� �6�� !�&�!��'�#�����L� �6���� �!�����L6�B������#��36����D ���L�&�#��!'&���#�"'���B��L�&'��'#��!��6��(�*6���L��6���#�!�#��&�����(�*�&�(B��������6��U�'!#�(����&��&�����D���(����#��������'�(���'!&���C6�(���" �!��#��6�(L��L��!�#�"�����#��L�����#���L��6��C�!(���#��U'�*"�#����L���('���L�� �&�L�&���&��!���#��'!���&���D�F�I5����4��('"�\� 6���*!� 6\�X7�!!���������#6-Y�

�.���$����H.�����������������

����������������� ����������������������)����+/�0����������������2

� �!�$���! ������������%������ N������A ��(����� ���������G ����� ��$O �H�� �� �� ���+��� ����-��%

�� !���#����!��*����"� �!��BU��������B���!!� !���#��,W��� !��'<����� �(��"@���� ��L���(��� (�&�(�<����� #�� <�#�� �'(� ������� ��=�#��!���'!�#�������#���/�2���)�!�� ��#���L�!�"� ��(�&��#����� �'��� ��(��� #-��"����K����#���4��(6�������!�*�����)!�������)�#���"B���L�!�"��!!���&�����#��L�#�(���� �!@����R'���B�!������&'U��&�#U'#�'!��L���"�!&��� �(�� �(@��&����� !�"�,W���� �#�-�� �������&�"�� ��(',-�� �!�� �� !�B(�"G��&�6�B���&��#�(� ���� L���(����� ��&�(6�������� �!���#G(���������'� �(���'��(�&�(�<�,-���"�� �,�������(�����(�!�<�,-�� �"�B�(�G!�����""������&>(�B!���X&�!�W��� ������Y����&������&�"���� �*������!�*�����:!�����������B��!!�� �B(�#� �� � �#�"��� �(>"� ��� � ��%���� �(Q"�&������(���!�(�&��#�����

����@&'(������" !�#�����(�&��#���� �!��#G(����L�����7�!!���������#6-���U'���L�&����� �!�� ��(� ��&�(6�� L��� �� � �(���� ��#*'�!������" �#6���� �(�� �R'� ����� !� %!��!��L���*!GL�&��������� �!�%��&���R'�����(�#*�����'�� 6���%!��� ��" !�� ��� ��L�!,�'� �(�&�#��!',-�����'"���'��+�"�*�"������L�#��!����X�#��!��������� ���Y�������� !�L�����#���'��(�<�!�"���&�!G��!� �(���Q"�&������"�*�"L���*!GL�&��&�"��L�!!�"�#������!��>*�&����&!@��&�� ��� !�*�"�� �� T� &�#�'!�� �" ����� T�" !�#���� 7�"� !�(�,-�� T� &�B�!�'!�� ���!�"�,W������L���(������R'�����#����"'������<��� >� �� &�#��!',-�� ��� !� !���#��,W��#�*������� ��� L!�*�(������ �� !�"��&'�����"�!�(�� ������� T�� &�#��,W��� ���"�!�!��!�(�����������"�!���!����������G!����

#� ����$%�����A ���(����� �� � �� ����+��� ����-��%'������������������

�'!�#����� !�*�"��"�(���!�� L��� &!������"/�20�� �!���&!����L���!�(����7�" �#6�����$�B���,-�� ��� �#��!����� ��&��(� ��� ?!�����!� �(���#�� ���!�#������� ��� =�#��!��7$������� !�#&@ ����&�#L�!"��=��)�!("�#����� ��������L'#,-�����7$������'B�!��#��������#&����&��#�(����$�B���,-�����$�����!��� �#��� &��!��#�!� ��� 7�" �#6���� ��$�B���,-��)� '(�!��7�$������'�#�B�!������������� =�#��!�����#�!���'�!���%!*-�����#���R'��� �!>"�������������� ����!�"�������!��� �(@��&��!�"�&��#��������7$�������BU������������L����!!���&�!����������L���(������������=�#��!����>�/�12�����'������(�*�� !�*������!�&' �!�,-��6'"�#�����"�!���!���L���(�� �(��!�&' �!�,-��L@��&�+�� �&��(���'��U��� �(��!�"�,-�����"�#���!�R'�����"��,�����!!���&�,-���������"'(�!������#�����"�#���"��'�� !% !���"�!�������R'�����'�Q#&�����&�#��,W����K����#&�������*#��� �!����&�����&�"�� '"� ����� ��� ����� �!� �#� �!M#&����#&�" ��Q#&�����"�#� '(�,W��� �(@��&��� �! �!��������������������&��������)�� ���/�11������">������'��(�<����� �(��7$����!�"�����("�#����!B��!G!�����'"����<�R'��� �@�� ����#&����� '"� ������� ��� �K&�,-��'��(�<�#��+������!� !���-�� �(�&��(����!���!�� �!����!!'B���������B�!!�&���&'U�����#���#-����������"���� �&�!��� &�"� ��� !�"�,W����*'�("�#���� �"B�!�� #-�� 6�U�� !����

�����N������3����.��7�3O��)��3 ]��.��:�� ����[����. �7���7���X����������N���Y���

����������������� ����������������������)����+/�0��������������� �1

&�#&!�����R'����� (�*'�"���'"� !�� �#�G��(�� �&@L�&���#-�� ���"����K�!������!�&���������X�#&Q#������&���#����Y��&�"�����!G*�&��&������)!�������)�#�����"�/�2���

�� L�"@(���� ���#*����� �!� ����� �(@��&�L�!�"� !��(�&����� �"� (�&���� ���(����� �� ���&�������L�&'(������ ������� T� !�B(�"G��&�&�B�!�'!�����G!��� �(����!��,������!�#� �!�� SB(�&��� &�"��'� �!>���7������(������&!��>!���� ��������� #-�� &�#����!���"� ��!�(�,W����� (�,������&�� �!�,-��"S�'���'"���� !�#&� ����L���!������'��(�<�,-�����L���(�&�"��"�������!�����Q#&���T��K (�!�,-�����!'�'!�(�"�����!������L�!���� ��#���� �#&('������ L�"@(���&�#��#*j@#���� �� �!����� � �����~� �����/�10������/�20���/�1��� �#���"�R'�� L���B�#��#���� �!� �#���B�(������ L�#�#&��!��� � �(@��&������!�"�,W��������'"���(������"������2�� L���(��� ����!'@���� �� &�!&�� ��� &�"�"�( �������!�"��������)��� :��~��I��[)�������� ���Z������ ��� !���(�'�'"�L!�&�����#�"�������"�R'��#-�� �" ���'���&!��&�"�#��#�"��!!���&�'���L���(����� ����*�"�'!B�#�&�!��&�� ��� ��*'#��� =�#�&�� )�!("�#�� �� !�"���!� �� ��*!�*�,-�� �%&��+�� �&��(� ��L���(����� �#��� &�#�!�B'�'� �!�� L�!"�!��"�!*�#�(�R'����� !���#�����(�"�#�!�/�

�U'���L�&������ �!���� �(@��&��!�"�&��#���� ���'@���G!�����% �&����&�"�����#��!,-����&��(�� &'(�'!�(� �(�� !�"�,-�����'"��"�!������*#�������B�#�L@&�������>��&�����'!B�#@���&�� �!�� �� &������� )�!>"�� "������� "�#��6'"�#��G!����� &�"�� �� �� �&'(�,-��"�B�(�G!���� ��!�"��� �^#�&��� '"�� ��<�R'��&�#L�!"���B�!����� �!�)�!("�#���� !���#�����!��� ��� �K&('�-�� ��� L���(���� #-�� �!��#��*!�("�#��� �G(����� ���� ����� �!��&� ������� �G!���� ��L�!���� �&�#^"�&��� &'(�'!�(� ��(����!�(�����&������#�����&������� �!>"�#-�&�"��"�!*�#�(��"��� &�"�� �K (�!���� �

� !�"����� �� (�#�U�"�#��� ��� �(@��&�!�"�&��#����� �*#�!���� R'�(R'�!� �#��!����!�(�����������'� !���#��� !�#&� �(�B�#�L�&�G!���'"����<�R'�������(��������� �!�'#����������" !�*��������*���,-���%&��+&'(�'!�(�R'���(���#�������"�����3�"B>"�&!�����*������R'�'(�!� ������"� ��'� �!,�"�#���� &�"��K&���#���� &�"� �!�#� �!���� �!���� �*�!������#��� (�&�(� ��� �!�B�(6��� �&�!!���#�����*����� ��&�(%*�&�� �� &�#���� !�(������� �&�#��"@#���� G*'��� ('<�� ��*����� �(>"� ��� !����,W��� ����"�!������ R'��� ��*�+��� �� ����*�"�� �!�"� �#�!�*'��� �"� >���"��&�#��,W����3�����������L���!���(���!�"���'"�(���*!�'�����#���" (Q#&������� !����,W������� �!��"�#��������&�#U'#����6�B���&��#������R'��� ����!��!"�#���� �&�B�!��� �!� ��(�!� ������#����� �(@��&�����!�"�,W���

��L���(������)!�������)�#���������(6������!�*��� L�!�"��#L���<����� #����B���� �R'�!��(�<���� �!�&�#�������������&�#��&�"�#���R'��"�!&�!�"��'���!!���&�,-�4�'"��#&Q#������ &�'���� �#�K (�&����� �� '"���� �!�&�"�#��� �(@��&��� !�� �&����"�#����)!�������)�#����T�> �&����!��'"������"���L�"����� ��"���� � '(����� ��� &������� UGL�<�#��� �!������'"��"�*�#G!���'!B�#����(6������!�*���� �!>"�� #-�� ������� ��� '"�L���(�� �R'�#�����R'�(���"@����#-��&���'"�����(�*�!�"'���� ���#,-��� �'�� !���#,�� #�� G*�#������7�!!�����#-��"'����&�"'"��" �!@������#��!��!���� ������!�U'���L�&���� �(�"�B�(�<�,-�� &�#�!�� �'���!!���&�,-���� �(����� �!�&�"�#������� !�#&� ���� (���!�#,��!�� �#�G����� �(�� �!��&'(�,-�� �����!�����Q#&���

3�"�"���&�"���K�" (���� !� �!��*�"�#&�#�!����#��X�!�&�Y�����������*�������/�21�� 3�(� !� �!��*�"� #-�� ���'@�� ('*�!&�#�!�(�#�����,-����#&�#�!�#��+���#��&�#��

/ ."�� !�������L!�&������"��" ���!���&!��&�"�#������L���(��6�B����#��L�������R'���� � '(�,-��L���(���� ����'����/2����"�/�2�����P�����"/�1������ � '(�,-��&�!��&���)�� ����/�11�� ��Z/��

�.���$����H.�����������������

����������������� ����������������������)����+/�0����������������0

��� G*�#��T���!��������R'�"�(Q����!�&�!���R'�#��� &6�"�� �� ���#,-�� ��� !�L�!�� ���� ����S(��"��� �!G*!�L����"B��K�����L���*!�L�����'"�"�#�#���#���!�&6���#L�!��!�T���!������3�(L���*!�L���>����(�"�#���R'��&6�"�������#,-���� (����!� R'��� � %�� L���!� �� �"�*�"�� >��!�&��#���� �!�� �� ��K��� �B��K�� ��(��� a�" �!��#����"����'"����<�����#��!� �!����L������"��>!���(�&�(�<�!+���#��&�('#��X�!�&�Y���R'�� �!�����%�UG�!���(��'"�U'@<�������(�!���B!���(� L���(��� �#R'�#��� !�B(�"�� �� ��!�!!���&���� �(��&����������������!�&6�"������#,-����*'�("�#���� �!����!�(�,-���#�!���L����������K������#���R'���� !�"��!���&' �'"��G!��� &�#����!���("�#���"���!�R'�����*'#���� �� R'�� !���(�� �� !�L�!Q#&��� �(��(�"�#������'�(����&�#��!',-�����#��@&��������6��!�!R'�����"B>"� ������!� �!&�B���� �(�L�������L���*!�L����#&�#�!�!+����&�"����� �!����&!�������R'����(>"����UG�&������ !� �!,-��(����T� �'�� �!&� ,-�� !�"��!��R'���� �!����&!����� 3�"B>"� >� �#��!����#��� #���!� � ���,-�� !���(�*��������L���*!�L����R'���&' ���P��G!������ !�L�!Q#&��� �!��(�&�(�<�,-����

L���*!�L����� &�#L�!"�� ��R'�"���<���� �! �!�#<����(&6��� ��� 7$���� /�01�� �� 2�����*'�"���B��K�����L���*!�L�������"�*�"��� G*�#���#������(�&�(�<����#��@&�������R'����"��&!����#��&�('#�4

X3!������"'�����!�����>��� ����*�"����� !�"��!� (�#����"���(�K���"��B'#�M#&���#��L������L�!"�#��,-�� ���R'�� &�#�����"���#�� (�&�(���K�(�#����#�' �!�G��(����!�������*'#���'""�#�#�����#�#�� ��� L���(�� &!����� #�� (�K��7�"�� Q(��� ���&��� &�#��#��� ��� &!��#,��� �-�&!������#��(�K�����L���(�����)!�������)�#����"�(6�!��� #�� (�K�� ��� �'�!��� L���(���� ��#6�!*���!#���!���&�B�"���&�"� ����*�#���*'�����R'�����'(*�"��� �!��� �#L�(�<"�#���� #���� ���!�����!*�#6��������������"�*!�#����G!�����!!���!������"���� �#�B�(��������#���*!�#���#S&(����!�����#&����� ���!-����!�&�#��!'@����� �B!�*����� ��� ���� ����"�#�#��� ��� (�K��&�B�"��� ��� '"�� ��<� �!� ������ &�"� �L���(�� ��� )!���� ��� )�#���� ��*�!����� ��"�#��� &�#�!�� �� #����� �B!�*�,-�� ������"'#6����� �#���������� *���!#�"�#��(���#6�!�*���!#���!�� ��#,�������L�&'(������ ��&�B�������<�&�"����"�#�#���&!������#��(�K��&�"�������!"���R'��#�(�����!� !��'<�"� �!�&���-�� ��� L�!"�#��,-��� ��"���� ��#6�!*���!#���!��"�#�#�+(�K����"B>"�>�*�#�����Y

� �����&�('#������� �!��BU��������#'#&��!� !�B(�"����������!������ >&����!�(�&��#�����T�&����������������=�#��!���&�B!�#�������'��!������� SB(�&�����(',W���

:���4� !R'������&��#�(�� :'#��J7�(�,-�4� 7�!!���� �����#6-������4� �1J�1J/�21� :��%*!�L�4� �'�#�

�����N������3����.��7�3O��)��3 ]��.��:�� ����[����. �7���7���X����������N���Y���

����������������� ����������������������)����+/�0��������������� ��

�)!�������)�#����R'�����(�&�(�<���� !%K�"�T� �*������!�*�����:!��������'!*�'�#���#@&������>&�������/�Z���&�"����!!�#��"�#�������!!�#�����76G&�!�����7>'��#��G�����7�"������!!�#��"�#�������"�!���!���������(�&�("�*!�!�"� �!����#S&(���R'�� ��� ��!#�!��� �L���(���R'��&6�*�'�����!�'"������"���!������������=�#��!�����>���'�L�"��"�/�2����L�����B������ !��!���� '"� "�#�#�� R'�� #-�� �!�#�����!�"�������&�#&���#��� !%K�"���B�&����&�"�!�' ����(�K�����(�K���R'���&' �*!�#��� �!��� ��� G!��� !��!������� &6�"�B����#��� ���#,-�� �!�� R'�"� �B��!��� ��"�*�"���#*(�B�#�����&!��#,����!�L�!,�#������>������L!�*�(������ ������� �(��&�#�!�����#�!�����(������(�K���B'#��#��"�#��� !���#�������� �"�*�"�>� !�L�!,���� �(�� ��K��� �� ������!���� �('�W��� T� &�#���Q#&������ &!��#,��&�"� (�K�� �"� L���� ��� L�!"�#��,-����!"�#�#���&�"���� �(��T���'��!������� �!�R'����U��!��(�<��������(��,-������X"�#�#��+(�K�Y�����"��#���+���'"���L�!,���������&��,-���!�����#�!�����#���@�'���"��'��L����"����L!G*�(��#LM#&��������"��>!���&�" (�����!� !���#���� �(��(�K��

'�<� #��#��� ��&6���� ��� ��(������&�!!�#��� ��B!�� ��R'���-����� L���(�� #���" ����L�!"��R'���������!���X��#&���Y���'��U����('������L����R'��� ���!������#S"�!����#������������!!���&�,-�� �(�� ���!� SB(�&���� L���(�� &�#��#'�� !���#��� �"� #���� ����*�"�'!B�#�P��)�!>"�� (�*���� ���� �(��('���T�L!�*�(���������&�#�@������&��(������'�6�B���#���� �"� #����� ��&�������� )�!��#��#��!"�����(����'�,-���>� !�&����B'�&�!���!�@<���6���%!�&������&�#��!',-����� �!&� ,-���&��(�����6�B���#�������L���(����B�"�&�"���� �*�#���� �� �#��!������ �#��(������ #����

!�&��������&6���������(��� �!&�B����L���(�&�"���K !���-���������*'�(�������&��(�����'"�� &�����#��� �K&('��#���� !���!����L!�*"�#�������6��!�!R'�<�������#�!������� !�&������������� �,��>���L�#���� �!�����!������!��� '#�&�"�#��� �(�� L�&�� ��� �'��&�!Q#&������"B�!����U��'"��� �,��&�" (�K�&�"�'"�� !���� ��&��(� R'�� �#��!�*�� &�"����&������� ��� "�#��!��� ����!����� #-� ���'�#��� '#�&�"�#��� &�!Q#&���� �� #�"��#���������'"�&�! ��6�"�*Q#��� ��� ����������'� ��U��� #���+��� '"� ��L�!,�� �� �!&�B�!���"�!���!����L���(�� �!�'"��������"-��S#�&�����R'��&�#����'��'"����L�&'(�����>!��� �!����!���(',-�������'�� !�B(�"���"���BG��&�����������#L!�+���!'�'!��6�B���&��#�(���>�#��!,-��#��"�!&������� �!�B�(6�� Z�� �� ����&�#��!',-�� ��"B%(�&�� '#@��&�� �&� !�#&� �("�#��� �!��*#�!�!��� ('!�(��������'"�'#���!����" (��

7�"�� ���� ��!��B��!������6G��(*'"����"�(6�#,��� �#�!�� �� �� �(�*��� ���!� !���#��,W��� �B�!����� #�� �&�!��L���U�!#�(@���&�� ���7�!!���� �����#6-� �� �&�#&� ,-����� !�B(�"G��&��6�B���&��#�(���L���(��R'���"B���'���� �(@��&������!�"�,W�����&�!#��&�"'"������B�!��*�#�� !������#�&�#����'�,-�����'"��'U�������&��("�#���L!G*�(��"�'"�� ���'�,-�����"�!*�#�(������ �%&��+ �(@��&��� �&�#^"�&�� �� &'(�'!�(�� $G��*'�("�#���� '"�� ����&��,-�� �#�!�� � !�&�!���������� �#L!�+���!'�'!������� �,�6�B���&��#�(��R'����B������������'U������R'�#�(��6�B���"��� �!��!��������&�#&� ,W����L��!��(�<���� '"�� �(@��&�� ��� ��*!�*�,-��� �&��(�R'���K&('�'���� !�&�������&��%!������(�B�!�,-�� ��� ��!��!�<��� ��� !�#&� ����#��!�������4� ��� 6�B���#���� ��� L���(���)�� ����/�11��� �����~� ������/�10��

P ���#�Q#&���T�&�#��(���,-�����L���(���"�#�����&�������&�!!��#��L�#�(������#���/�1�����#@&�������/�0���&�"����B�#��#������ �(@��&��!�"�&���#���������� �!"���-���#�� !�"��!��*���!#����� ��#�(��!�<�(������&�#��!',-���"��(��#�!���

Z �"B�!���������!�L�����'"����L�!�#&��,-���#�!��&�#U'#�'!���6���%!�&���� ������'�("�#�����#R'�#�����L���(��>���&��("�#���� !��#���� �(��%��&�����&!�"�#�(�����������X"��GL�!�����*'�!!�Y����B!��'��� �(��"@����� ��3����������#�� �!@���� �!�"�"� ��R'��������( �!&� ,-��&�!�&��!�<���+���"'����"���� �(�� L!�*�(��������&��(��"�!�(��� �#&� �&����������'��#�"�����&��%!���� &�#L�!"����!G� !�L'#��������(�#*�������K���

�.���$����H.�����������������

����������������� ����������������������)����+/�0���������������/��

��D"�#��5�((��"����L�#��&�"��'"����� !�#&� ����&�!�&��!@���&�����������"����&��(����#��!+!�(�,W��� �"B!�#&����� �#�!�� !G��&����&������&'(�'!�������&�#^"�&����5� �������������#�!�������� �!� �&������#&�#�!�+��� �� L�&�� ��� �#G(���� #�&���G!��� ���"B���"�#��� �!����&�" �!�,-���#�!����U'���L�&���������� �(@��&��!�"�&��#�����'��(�<��� �(�� ���!� SB(�&�������!� !���#��,W�����B!�L���(��� �� ��'��"�!���!��� ���&'(����� �(�L���U�!#�(��"�����7�!!���������#6-����L������ 6���!� ��"�(6�#,��� �#�!�� �����'BU����������� �'B(�#6�� ��� �#��!+!�(�,W��� �#������ �!� 5�((��"��� B�"� &�"�� ��" �!�M#&���������'��������'�,-�����"@���#����� !�&����� ��� &�#��!',-�� ���'BU����������� ������ &������� L���(�� &�"��BU���� ��� ���'���� �� �#G(���� ��� ����� �#��!+!�(�,W������L�<�#�&���G!����������T��'��L�!,�#���"�*�#G!���&�(������� �����(��>��!��&'(���&�"��L�����!� !���#��,-���� !�B(�"�� SB(�&���� ���������

)������!��B�!�������&��������#&Q#������)!�������)�#����� ��%����R'���#�!�'� �!����"�*�#G!������&������ �!��'���!�"���&�������� �#&Q#���� �&�!!�'� �"� /�J��J/�2��&�"�,�#������"��!'*���� �� �#��� ��>� ��"�#6-����#���R'�����*'#������� '(�'���U�!#�(�&�!&�����Z�"�(� �������L�&�!�"�����B!�*������-�������B�����&�!�����&�'������ �#&Q#�����"B�!����!� �!��*�"��L�!"��R'�����#&Q#�����#6�� &�"�,���� �&���#��("�#��� �!

#�*(�*Q#&�������(*'"�"�!���!� �7����������$���/�2�����)�!>"������+���(���!�"�&�#����!�,-��R'����L���(���#&�#�!���+���"�G!�����(�!�<������6�����&�!���!�&����R'�6�'������!�����Q#&�������"�!���!����"����!���L���(����&�!!�#���"�B�(�<�,-����"�(6�#�����&������� �(6�������!�*��� �7����������$���/�2���2�

7�"�!�(�,-��T�&�B�!�'!��L���U�!#�(@���&�����#&Q#������(����"�'���&� ��������,-����7�!!���������#6-����*'�"��!�� �&����"�#�����&� ��������,-������L���*!�L����!�&�!!�#��������'��!��������(��#��#����������#&Q#����

3�(��"�*�"�"���!��'"�6�"�"��#��#�� �!��#�!����&�"B!�������#&Q#������*'!�#����'� �#��!'"�#���� '"� &���R'�#6��� )�(���!�����������#&���#����&�!!�������(�L�*'!�,-��&�B�����'"�#���'"���"� ���!��&�����'!!��(�!�L�!,���� �(��(�*�#������L���4�X�#��!'"�#�����L�*�4��� ������� �!��!��'���R'����#6����L���(������#��+��������L���������#&�#�!�!���'��(6���"�*�����&���R'�#6�Y������>�� ���!��&�R'��!��!������&6�"�������'"��&�#��&�"�#��*!�����#��(����"� ����B�(��������'� ������ �!��'���!�*�"�>���&�!�&��!@���&��������L��������"�"���� '"�� ��<� !�L�!,�+��� �� �"�*�"� ��L!�*�(������!�"���#�����&�" (�����#&� �&���������' �!�,-������������!������� �!��#�&������ !% !���� L�#�(�� ��*'#��� �� U'@<�� ��� ��(�!!��(�<���� �(��B�#^"���L���*!�L��J(�*�#�����&���&�������L�!����� �!������&��������R'���+ �!�����������

� 3�(� �#��! !���,-����������"����&��(��'"�#�����#���"��������&� ������#G(�����'"����<�R'��!�(�&��#������#��!������ �!��!G������L�!�#���� !G��&��� �!��#&�#��������L�!�����&��(���&�#^"�&����&'(�'!�(��������"����� !���(�*��+�����&�" (�K�����������'�,-������L�!�#�������!�����&������ !� �&��#���'"���#G(����!�&����� !�B(�"G��&��������'���6���%!�&�������&������������ !�B(�"G��&�����L���(���

2 �#�!���#������ !% !���U�!#�(�!�(���'������!�#6�<�����!� ���<�&�"���R'�(���#��'+�����#��!�����!!�#���#���L�&������)!�������)�#���

�����N������3����.��7�3O��)��3 ]��.��:�� ����[����. �7���7���X����������N���Y���

����������������� ����������������������)����+/�0��������������� /�/

3�"B>"�>� �#��!����#���#���!� �� !�(�,-��� �&��(� �#�!�� �� L���*!�L��� �� �� �(�"�#����&!����&�#&�!#�#���T�"��>!����)!�"��!�"�#����� G!��� ��� &� �� ����&���� ��� �#&Q#���� ��L���(��>�����*'#���"���!���%���!G�����#��@&���#��!#�&��#�(�� 3�(� ���'�,-�� !���(�� ��" �!�M#&��� ����� ��� �&�#��&�"�#��� #����&'!������ �!�%��&���(�"B!�#���R'���%���L������!� �!��*�"�����!�#��&� ��UG���#��������"��"�� �" �!�M#&������ ����� >� #�&���G!�����#��!� �!�����@�'(�����&6�"����X�#&Q#���(�R'���� L���(�Y�� &'U�� ��"�#6�� ��� L�#��'��(�<����� ����"� &�"���� ���&��#�"�#������K��&(�!����R'���&�#��&�'��� ���!����#-��� �&�L�&�!��� (�&�(��������!�(�,-������@�'(�&�"��� �"�*�"� ��"B>"� !�L�!,������ �&�� ���!��&�������*#�L�&�,-�����"��>!���� ���������K�!� &(�!�� �� �� �� ��� ���'�,-�� �&�!!�����#&Q#������"�!&���� �(��*!����������Q+����L��������#���@�'���L�!�����'"��"B��#�����!��&�����*'!�#�����'��#��!'"�#�����L���*!�L�� ���'�� '"� ����" �#6�� &�#�!�(� �!�� �&�#��!',-�����#��@&���� &�#L�!"�� ���� ��!�B��!����� �(�� ��"�#6�� �!��(���&' ����

&�#����!���("�#���"���!� R'�� �� ��K���� T�K&�,-������@�'(��

3�(� !� !���#��,-�� #-�� &�#��<� &�"� ���!�������������'�,-������*!��������&�"��R'�(���(����#���&�#��(���'+���#��"�"%!�����"�!���!������ L���(����"��"�����R'��#-�6�B���!�"���)!�������)�#����7�"���K�" (����"��� �� �� ��"�#��� ��� (B�!��� =�&�B�!� %!��!�L���*!GL�&�� !�"��������K+"�!���!���7���&'"B�4�X�����(���)!�������)�#�����!��'"�*!�#���L���(��R'����&�!�"�L�*�����'�!��&������#&�#���!�"���L���(�������6�(�&% ��!���R'���B!������"��� L���(�� !����� R'�� �!�&��"U�*�!�G*'���"�&�"�� !����� !��� �*�!���L�*�����&�#�!G!����&�"B'��@��(� !��R'��"�!�"���B�!!�&��� ��#��Y� ��� ��"�#��� ���(B�!��=�&�B���������3�(�&�!�&��!�<�,-���!�&�!!�#���"��'�!����� ��"�#�������"�!���!�����L���(��� ��� <�#�� �'(� ��� > �&��� !�L�!,�� ��"�*�"� ���"�!*�#�(�<�,-�� L�!,���� ���� �,�� '!B�#�� ��� �'�� !% !��� &������&�#��!'@����� �!��!�����*�#�����K��!#����"'"�����'�,-����&��(�"����L���!G��(��7�"����6�B���#�������L���(���#-���Q"��&�������"����

:���4�!R'������&��#�(�� :'#��J7�(�,-�4�7�!!���� �����#6-�����4� //J��J/�2�:��%*!�L�4���(��#

�.���$����H.�����������������

����������������� ����������������������)����+/�0���������������/��

���!�����Q#&����#����'&��#�(���(��!���������!��>����&�#��!',-������'�� !% !���"�"%!����'"�X"�"%!��� �'B��!!M#��Y� �)� F�� /�0����B!�����&�#��&������"�&�#�!� �#���T���!�-�������L�&��(�

�'�!��L���!�R'��&�#�!�B'�� �!����&!���&��������� ��%��������#&Q#�������)!�������)�#���>���>!������ �#��!������ �!����!G������!!���&�,-�������L���(���R'����#6����L!�#���!�����Q#&��� �! �!��������'��"�!���!����)���"��������&�!���� �&'(�,-���"�B�(�G!���� !�#&� �("�#���#��R'���<�!�� �����T� !% !���7$�����R'��'��(�<�!������!B���B����� �(��&�#&�!!Q#&������(�&���,W����� &�#��!',-�� ��� � �!��"�#���� ('K'����#����� ��(�!�<���� ��!!�#�� �!�� �K�*�#�!L�#�#&��!�"�#�����'� !�*!�"�4

� (�B�!�,-�� ��� ��(�!�<��@���"�� G!��� �#���K����'� �� L���(�� ��� )!���� ���)�#��� �!"���'R'����*���!#�� '������T���#������ (���������!!�#����� SB(�&��������U���'L�!�#���!�&'!��� �!�� �� &�#��!',-�� ��� #����� #S&(���6�B���&��#���� � '(�!���� ������������3�����.�����/�2��� ��2��

��A������ ���%��A����'������� �� �������

)�!�� "�(6�!� � !�L'#��"�#��� �����&'��-�� �R'�� !��(�<���� >� #�&���G!��� ��#��#��"�#��� ���� "�&�#��"��� R'� ����B�(���"� �� ��L�!�#&��,-�� �!�"���� ��&�#��!',-������'BU������������#�!����L�!�#���&���*�!���� ��&������ B�"� &�"�� ���@�����#��!������ �!��!G�������� !�&��������!B�!��(������=�� ���&����#�&�!�&��!�<�"��� !�#&� �(

�(�"�#������ ����*"���<�,-�� �� ��*!�*�,-�&�"����#��������L�!�#&�������� ���!���'���U��B�#��"���!������� ��"B%(�&��� �!��#&�#�������*"�#������&�����6��!�!R'�&�"�#���"�(6�! ���&��#�����#����&���������!��>����� �������������L�!�#&�������� ���!����� ��*"�#��� !���(�*�������R'���(�������&����#���#�"�#�"�"���'����'������&�������X����B�(�&����Y�&�#��*'�"���L�&'(��!��J�'�B�!!�!����&������B�#����&�������#�!�#��&�"�#���������� !G��&��>� !��(�<����'"���L�!,������(�B�!�,-��� �! �!��� ���� X����B�(�&����Y�� ��� '"�� �'��+�"�*�"�����' �!��!������6'"�#���"�!�(���"���!"��������(���!��������#��!+*!' �(�� �!��!� ������ ����*"���<�,-��� �&�!!�� '" !�&����� ��� �K&('�-�� �� ��#�������� �����(�"�#����"�'"�"������&��(���(>"����R'��� !% !�����*"�#������#*���� �!��������L�!,���#����� �#��!#�(�<�!� ����� �"�*�"�#�*�����&�#��!'@����� ���~��7�3�����������1�

7�"�!�(�,-��T�&�#��!',-����� �!&� ,-����6�B���#������L���(��� ���+����L�!"�!�R'������ #-�� �!��&� �'� ������ !�&�����U'���"�#��� ������� T� ���'�,-�� ��&��(� ���'B�!��#�,-�� �� �'�Q#&��� ��� ����� ����L�!�#&�������� ���!����!��'(������#�&��(������&�#��!',-��!�"�����T�&�#��,-��L@��&�+�� �&��(���"�!�������(�*�(��������&(�#�����#����������� &!@��&�� "�!�(� T� !�"��&'������ ���&�#��,W�������������� ������������(�&��#���T�R'���-�����'��(�<�,-�������L�!�#&����� �� ���!� ���G� �� �#��#&��#�(��������� ��'�'����B��!��"����� L���*!�L���� �B��K��� L!�#��� ���!���� ��� �'��!��� ���)�"�#��(� �"��/J��J/�2��� 'B(�&����#��������*'�#��������������4

1 �"B�!����(�L����#-����!"�#����!�(�,-�����#�&����������K����#����#�!��*!' ������X����B�(�&����Y������ ��� �����&��������L���(�����<�#���'(�#���>&�������/�2�����(�#�&���������>��K�" (�L�&���� �(��'��(�<�,-�������'��6�B���#����&�"��"-������B!��#��!����6���(��!��!����'!�#������&('B���(�&������(>"�����&��������L�"@(���

�����N������3����.��7�3O��)��3 ]��.��:�� ����[����. �7���7���X����������N���Y���

����������������� ����������������������)����+/�0��������������� /�P

��� ��&�#��� �� !�(�,W��� ��� �!�B�(6�� � !G��&��� &������#���#�� ��L�!����� !��',-�&'(�'!�(�� ��D"�#��5�((��"�� ���#��� �!����"B!�&�"�#��� �#�!�� &�#��,W��� �� !� !�����������"�������� !��',-�� ��������(�!��"�#��� ���� !��'��!��� ��!������ T�K&�,-�����&������� �&������&�"����U�!#�(��"��(��!#��������������"�������(�L����&�#��&��#������ !��',-�� T� �#L('Q#&��� ��� L���!�� �!��#&�#���� T� �!��"� �(@��&��"���� *�!�(��&�#^"�&��� �� &'(�'!����� $G�� ����"�&�" ���B�(�������#�!���� !��',-�����#��!�������"�#�#��������!��"���&��(��5� �����������

)�!��#��������"���&6�"�!����#,-�� �!��� !�(�,-�� �#�!�� ��� !��'��!��� ��!�����#��(������ #�� �(�B�!�,-�� ��� �&�!��L���U�!#�(@���&�� ��� 7�!!���� ��� ��#6-�!� %!��!���L���*!GL�&���������R'� �������!��(������S(��"��������� �(��!�� L�#�(� ��B!��R'�(L��������!���&�" �!����"��>!�����B�"�&�"��'�� ���,-��#�� �*�#�,-�� L�#�(� ��� ���,-���(>"� ���� (�*�#����� ����+��� ��!� �" �!� �&����� �� �K&�(Q#&��� ��� &�! �� ��!� %!��!���L���*!GL�&������7�!!���������#6-�B�"�&�"����'��(�<�,-����� L���*!�L���&�"��(�"�#��� �!��&!���&�!���!�*�"��"�(���!������"��"�� ��" ���B'!(�!��� !�*�!����&�#�'!��T�" !�#�������"����L���*!�L������B!��'���#��>&���� ��� /�2��� �K�!&�'� '"� � �(

���!��>*�&��&�#�!�(� �!���� U�!#�(���� ���'�''"�� ��(�!�<�,-�� R'�� *�!�("�#��� #-�� �!�&�"'"��#�!����'��&�#&�!!�#������ ������/��2��

������ L�!"��� ��� ��&�(6��� �����!����!��(�<����� #�� &�" �� ���� !� �!��*�#�L���*!GL�&���&�#����'@�"�'"����L�!����&��%!���" �!��#���#��&������#�����7�!!���������#6-�&�"� �'�� �" �!�M#&��� �(&�#,�#����*'�("�#���� �� &�!G��!� !� !���#������� �� �&�#��!',-����� U'@<���&�!&������BU������ ��!�B�!����� �(���!� �!��*�#����L�����L!�#������!���� �"�R'���-��>�'"�B�(�� �K�" (�������-������!� ������� �(�����!��!�<��������!������� �!�%��&����B!����L���(���7�"�� ������!�B��!����� �(�� &�!�"B�� ��� &�#�!�(�� ��"���!��(�L���*!GL�&���#����!������L���*!�L�����(� L���� ��<� !�� ����� T� &�B�!�'!�� ��� '"�#&Q#����#��:���(�������R'�(������"��/�������"B!�� ��� /�2�� �� 'B(�&���� #�� �����*'�#�����L����!��!����'"��"'(6�!����'��&!��#,��� �R'�#����"�L!�#�����!'@#�����!����������U�(�����"���!���������(��#�!����� �(6������!�'#��������#&Q#���������!Q�����-�� !%K�"��T���&�(���� �!������&�"����!'@#������L'#����� &!��#,����(6�"� �!���� (������ ��"'(6�!(����'"������"-���T�B�&����"�'"���"�*�"R'�� ���� !���&�!��#��! !���,W����"B@*'������#>!&��� �!�#��������'�,-������!�����'���

:���4� !R'������&��#�(�� :'#��J7�(�,-�4� 7�!!���� �����#6-������4� �/J��J/�2�:��%*!�L�4� )�"�#��(

�.���$����H.�����������������

����������������� ����������������������)����+/�0���������������/�Z

!�L(�K-����� �!�#��+���R'�(���!G���X !%K�"� ����Y� �� ��!� !��(�<�������� &�" �#�#������'������'���U�����"'(6�!�������'���&!��#,����"� ���'�,-�� ��� �"�B�(��"�� �� �S������ �'!�L(�K-������ �!�� �"-��T�B�&�����"'(6�!� �!�#��� '"�� ���'�,-�� ����!��� ��#&Q#����� �������#�!���'�!�����*#�L�&������ !�L�!,�!���"�*�"���� L!�*�(������ �� �#&� �&���������'��#�"�����&��%!����T��� �!�����'"��*�#�� !���#��"�#���&�" ���#��� �!����!���(',-�T��'�����'�,-�����!��&�����B�#��#����&��(�0�

3�(� L�!"�� ��� !� !���#��,-�� !� ���+��&�#���#��"�#��� #�� �#G(���� ��� �&�!��L���*!GL�&�����7�!!���������#6-�� �"B�!��&�!!�"��(*'"��� �K&�,W��� ��!�B'@���� �����L�!�#���� �'U������ �� U'@<��� �#��(������ #��(�B�!�,-����!����������� �"�*�#��� )�!>"�&�#L�!"���#��!��!"�#�����B�����������L�!�L�#�(������&��-��>�!�(�*����T��R'� �������!��(��� #�� L���� �"� �#G(����� ���G� �� �(�"�#��&�#&!���� R'�� !���(�� �� !�L�!Q#&��� �������&�(6��������!������L���*!�L����K�����'"��>!��� ��� �#���,W���� !��(�<���� �(�!�� �#�G��(� �(�����,-��L�#�(����"���!��(�R'���!��� ���&'(���� #�� ���,-�� ��� �!�%��&��(*'"����#���,W����-������!��"� '!�"�#���>&#�&��� #�� �#��#���� �� R'�� !�#��� #�������#,-�� >� '"� &�"�#�G!��� (�&�(�<���� (�*��&�"�����&�!�"B�����&�#�!�(������'��!���������"�� ��� L���*!�L��4� X%��"�`Y�� 3�(�"�!&�� !�*�����T�L���*!�L��� �(��!�� �#�G��(� �!�'�� ��&�(6�� �� ���,-�� !���(�� �� ��!-�� ����(�,-�� !�#&� �(� �!�� �� "���(�� ��!� !���#��,-�� �� ��!� ���&'(���� ��B!�� ���"G��&������L���(����������'�6�B���#����3�("���(�� �&�B�!��� �!� ��� &�#����'�!� �"�'"�(�"�#���R'��&� ��� �!�'"��(6�!�'#@��&��'"'#���!��� ����#&��("�#��� &�" (�K��� �� �����(6�!�&�!�&��!�<�+��� �(����&�(6���!B��!G!������(�"�#���� L�*'!�������� &�"�� �� L�*'!�L�"�#�#��������&!��#,����&�#L�!"���� !% !��

R'�#��L�&�,-������&�" �#�#�������'������"&�#L�!"�#���� ��#��� R'�� #-�� ����� ��!�*#�!���� �� ��#�Q#&��� T� �!�#�L�!Q#&��� �� !�&�!������� ��� �� �,�� L@��&�� �!�� ��(�"�#��� 6'"�#��� !�L�!,�#��!� !���#��,W������L!�*�(���������#&� �&���������'��#�"�����&��%!���

."�&�����"B(�"G��&���&�!!�����'!�#���� �(@��&��!�"�&��#�������� �!@����"�(���!��"��R'����#�!���#����#-���#�!�'� �!�����"�*�#G!��'!B�#������������ =�#��!�� &�"���� &������)!�������)�#���� L����� !�"�,-����� L���(�����(6�������!�*���������L���(��&�#����'@�+����"'"�� �R'�#��L��K������!����(�&�(�<�������(������7('B��7��,�!���� R'�#��� �!� ��(��� ���>&���� ��� /�P��� &�"�,�'� �� ��L!�!� '" !�&���������(�!*�"�#��� �!�"����������!!��!��(�<����� �!��#�&������� !% !��������'��L'�'!��"�!���!�����'�������������!�B�(6���"�#��&('B������ !�*�-���� !�"�,-�������� L���(��&�!!�'��"�L���!��!�����/�2����"�"������G!���� !����������'"����#����������!�����Q#&���!*�#�<���� �!� �!�������'������&��,-����"�!���!����&�"� �!��&� �,-���" (�������' !�����#����7�!(������ =��'��� �� L�!�"� L������G!����&�B!�#,���!�L�!�#����T�� !�"��������&�" �#6�������*!-����� �"�����#-����! !����*'�"�#���T��!�"�,W����7����������$���/�20����/�20B������"�!���!����� �(6�� ���� �!�*��� �&�B�!�"� ��#��!�"������� �!��&�#U'#����&�"��7����������'����7������(���

a� �#��!����#��� �B��!��!� R'�� ������ ��L���*!�L���� !���#����#���!R'����L���*!GL�&����7�!!���������#6-���B!���(6�������!�*��L�!�"�!��(�<������#�!������"B!�����/�20��L���!��!�����/�2��������!���(��R'�������L���(�#-���!��������� �(��"@�������#-����!��� �!��!����'��&�" (�&����!�"�,-���R'���&�!!��#���� �!@�����7���� !�"�,-�� �� �&@L�&�� L��� '"� ��%����&�#L(��'�����*�!�("�#��� !�&�����

0 )�!>"��>��#��!����#���#���!�R'����(���L�!,�����&�!�&��!�<�,-���&�!!�����'"��L�!"��"�#����*!����������R'�������X"�#�#�+(�K�Y�

�����N������3����.��7�3O��)��3 ]��.��:�� ����[����. �7���7���X����������N���Y���

����������������� ����������������������)����+/�0��������������� /��

��� !�������� ��"�B�(�<�,-�� �(@��&�� ���6�B���#��������L���(������������������K�" (�>� ���#&��(�<����#��&��������(6�������!�*����"� R'�� �� "�B�(�<�,-�� �(�� !�����Q#&��&� ���#����� �!�(@��!���&�"'#��G!����(���'��'"���'!��!� !���-�������X���� �!�&�"�#�� �(@��&�Y� ������� !�#&� ���� (���!�#,���� 3�(���'�,-���&�B�'������!#�#���'"�"�!&������&!>�&�"������ !����������"�B�(�<�,W���"����%(��������!�����Q#&�����!�"�,W����'"����� !�#&� ���� ��!��!�<��� ��� &�#*!����� ��:���!�,-���������&��,W������ :���(��� ������������'�#�B�!���::����!��(�<�����"/�20��)�� ����/�11��

3�(����'�,-���������!���#&'(����T�!�(�,-��#�!����� !��'��!�����!������������"�*�"�����R'� �������!��(��B�"�&�"�������&�(6��������S(��"�� ��B!�� ��"���!��(� L���*!GL�&�� �� ��!���&'(�������K�" (���������#���+���"����'"���<����K�" (����� !�L�!Q#&���������&'(�,-���� U'@<��� ��� ��(�!� ��� !�&�!������� �L!�*�(��������K�!� �(�#��������&�!�&��!@���&������� �,��L@��&�� �!����M"B��������#���@�'��

&�#L�!"��L���*!�L������ '�<�)�#�����!�����"/J��J/�2���� 'B(�&����#��������*'�#����&�"����*'�#���(�*�#��4�X�'��#,�����L���(����L�����>����"�#6-������!��,W���#-��L�!�"������ �U�Y�

�����"��>!��� ������!�&�#����!����&�"� ���'���!�����&�#����!G��(��" �!�M#&���#� �!�%��&��� ����(�&�(�<�+����"�'"�� G*�#�@" �!� � �� P�� � '"� ���� �� �,��� "�����(�!�<����� ��� '"� U�!#�(� ��>� �(���#'#&��#���� �:.�3����3���7�3���~ .7���/��Z����!� �!��*�"��&�"�� �����!� �B��!����� #�� G*�#��� ��� (���� ��L���*!�L���� ���G� ���&��#���� #�� G!�� !�L�!�#&��(� �!���(�&�,-�����L���*!�L������*'#���&�!�&��!�<�,-����� �!�#<����(&6���� "��>!��� L��� 'B(�&���� &�"� �� �@�'(�X:���(�����&�!���T��P6� �!����!�&���Y��"L�#��������"�#6�����L���*!�L�������(������"��"��� ������ "����� R'�#��� �� (����! �!&�B�����@�'(���6G�'"������&��,-����!���&�"���&!��#,��&6�!�#���#��L���������&�!��&�"������*!�"�,-�����!� �!��*�"�

:���4�!R'������&��#�(�� :'#��J7�(�,-�4�7�!!���� ����#6-�� ����4� �/J��J/�2�:��%*!�L�4� '�<� )�#��

�.���$����H.�����������������

����������������� ����������������������)����+/�0���������������/�2

��'�Q#&������&!@��&��#��&�" �����&'(�'!����'�(� #-�� ����� ��!� �*#�!����� 7�#L�!"��B�!����� �!���#�����!��<������>&��������/�2���/�1���-���� �!@�����"�R'�����#�S��!���&'(�'!�(���&�#��(�������L����#���!���(��7�"��������&�!!��&�#&�"���#��"�#���� �� ��(���L�&�,-�����'" SB(�&��&�#�'"���!� �!������� �#�S��!����"����!������L�!�����#&('����������G'���+���'�(��3�(L���� ������!����!�*'���� �(�� !�*!���-����#S"�!����� L��%*!�L��� ���#�!�����R'���� ���#&('�"����!� %!��!���L���*!GL�&�����"�#���� �@�4��"�/����� �@#6�"���1���/� L��%*!�L��� ����#�����(�#S"�!�� �!��/P�P�1���"�/�2�\

�!�����Z�P���"�/�1����� �!��Z0������"/�0�����3�[��/��/�� ��/ZP������"���"�'"R'��!��"�����" (�����&�#��(���,-������#�S��!��&'(�'!�(�#���!���(��������'� SB(�&��&�#�'"���!��#&�#�!�+����#��!��������L�!�����&'(�'!�����'�(���#���&�"�!�(�,-��T��'�� !��',-��R'�#�������'�&�#�'"���B�"�&�"���'��&�#����'�,-��&�"�&�" �������*#�L�&�,-��

�'�!�� L����R'�� ���� ��!� �#��!����#����"��"�����&'��-�� �&�!&�� ��� &�B�!�'!�� ��!�"�,-����� �(6�������!�*��� >� �� ��*'�#�����"B>"�����'��!������ '�<�)�#�����"�//J��J/�2�4

:���4� !R'������&��#�(�� :'#��J7�(�,-�4� 7�!!���� ����#6-������4�//J��J/�2�:��%*!�L�4� '�<� )�#��

�����N������3����.��7�3O��)��3 ]��.��:�� ����[����. �7���7���X����������N���Y���

����������������� ����������������������)����+/�0��������������� /�1

3�(� L���*!�L��� >� '"�� &�!���!��� &�"� ���"��� �B��!��!�� ��� "�"B!�� ��7�#L���!�,-�� �� @!���� ."B�#������ ���'�#��� �� ����#��'!�� �� �� L���� ��� ��' !�����#����7�!(�����#�������=��'����'���U����"��"�� ������R'�� !�������������&��,-����"�!���!��� ��� �(6�� �����!�*���� �@��"�� ��X���� �!�&�"�#��� �(@��&�Y�U'#���&�"��'�!��(@��!��� &�"'#��G!���� (�&�������7�!!���� ����#6-�#-�� ��*'�'��"� ��(Q#&��� �!�#��� ��(L����� ��#���R'��T�> �&�� UG� ��� ���&��#���&�"�� &!@��&�� ��� !�*�"��"�(���!� �� ��� ��'��K&������� :�!�"� !��(�<����� !� �!��*�#���#'#&��#��� ��(� ���'�,-���� &�B!�#���'"���(',-�� �!� �!������ ���!� SB(�&���7����������$O�� /�2���� /�2�B�� /�2�&���)�!>"�������&'(�,-�������(�L���*!�L����R'��#-��&�!!�'���!�!���'"�&�" �#�#�����"B%(�&����&!@��&��"'����"�����%(�����'"����<�R'����!��'"�!��������#�"��7�!(�����#������� =��'��6'"�#�<�#�����#���"���������'�,-�� �!���(>"���'"�#�"����&!����#��U�!#�(��������"������L��������'��&�!���!�����"�"B!�+ !�����#����� 7�#L���!�,-�� �� @!���� ."B�#������&�!!���!��� �"� '"�"���!� ���#&��(� ��&�"�,-�� &�"� !�(�,-�� ��� ��'���� �!�&�"�#��������� &�#L�!"�������� ��(L����#'#&��&6�*�'�����!����&'(��������'�,-�!@*�������&�#�'!��#����� �!@������(��<�L����'"�����&'( �� (�'�@��(�����#-��L����� �(��L������7�!!���������#6-���#R'�#���� �����!���!�*�"��"�(���!�� 'B(�&�!��'�!���L���*!�L������&�#��S����-���'�"����&!@��&��&�"�!�(�,-������K&��������������'!���� L���*!�L��� &6�*�'"��"���� ��!�'"� �" �!��#����� ���!��>*�&��#��!'"�#��� �!�� ��#��!� B'!(�!� �� &�#�'!��" ����� �� "�#��!� �� &!@��&�� ��� !�*�"��� �������/��2��

7�"��#G(�������� L���*!�L���� !��(�<����� ���+��� �B��!��!� R'�� �� &�B�!�'!�L���U�!#�(@���&�� !��(�<���� �(��7�!!���� ��

��#6-�#����&�#���T��L���(���)!�������)�#�����(6�� ���� �!�*��� >� !���"�#�#��"�#��&�#�!����#���(�"�#���6'"�#�������"�&�"���&�B�!�'!��������"����L���(���!��(�<������(�#*������>&�������/�2�������+�����"�'"�&�#&� ,-�� ��"�(6�#��� T� ��*�#��� �(���>&#�&��������������'�#����#���(�B�!�,-���� �(@��&�� 6�B���&��#�(�� '"� ��L�!,�� ���!��&'(�,-�� �#�!�� !� !���#��,W��� �� !�&�!������������#L!�+���!'�'!��'!B�#������6�*��#���!�L�!�#��������� �,��L���(���������'6�B���#����"�!�("�#��� !�&G!���� !�"@�&'��L!G*�(�� �#&� �<� ��� �K�!&�!� '"�� &�����#���'�^#�"�� �� ��������� �!�� ��� �� �!�� ���&��������������"�����6G�'"����#�Q#&���T&�#��!',-�� 6�"�*�#��<���!�� ��!� !���#��,W��� ��B!�� ��� L���(��� �� ��'6�B���#���� L�&����#�� !�&�!�������"�!�(� ��#&� �&��������� �'��#�"��� ��&��(�����"�R'�#��� &�" �!���� T� &�B�!�'!�� !��(�<��� �(�����"�#��������#���#�^#����&�#�!���"�U�!���!��"�#��� #�� ���&'(�,-�� ��!� !���#��,W������ !�*!�������#�� !���(>*����� �(�"�#��� �� �&��(� �� �>&#�&��� �� R'�� ���B��!���>����'�!���K�!�"�4���'��(�<�,-�����(�"�#���6'"�#�� �!�������&'(�,-�����'"��������������� ����!��>������!�#�"���-���� !� !���#��,W��� ��� !�&�!������!��'(��#��������� ,W���!��(�<����� �(���R'� ������!��(���� �!�%��&��

.�! ������

����������'!���;��������� ��� ��$���U[��"�*�"����L���(�� �(��� (�#�������7�!!��������#6-�������!��,-�����"���!���� �"�$���%!���))$+.::�A�����!%������2�

���3����)�'(����B�!������������� �!@������ !���"�&!���<�,-�4� �(@��&�� ��� '!B�#�<�,-����#����������(6���/�1Z+/�0����#4�� ����&��!��!*�������>1��$�#���" �(@��&��� �!�����L���(������������=�#��!���/�Z�+/�0�����������=�#��!�4������<����/�02�� ���/+/P��

� ='#���&�"�7�!(�����#�������=��'����"B>"����� �!�&�!�"� �'!��#����!��#���=�-����B��!�����("���������&�#�!������

�.���$����H.�����������������

����������������� ����������������������)����+/�0���������������/�0

7�����������$O��:���(��L�#&���� >���#-�R'�!�"'��!���������=�#��!�4���J��J/�20�

oooooo����!���!������ �(6�������!�*��� !��*�"��� (�#�����7$��������� ��� =�#��!�4� �ZJ��J/�20�

oooooo��:���(��������*!-�4�!�"�,-�� �!����<�#�#�!���#-��>�����(',-����������=�#��!�4��ZJ��J/�20�

oooooo�� �'"����� ��� Z� L���(����� R'�� �(@&��(���'���������=�#��!�4��J��J/�2��

oooooo����*!-������L�<�!�L�!,�� �!���&6�!�(@��!��L���(������������� =�#��!�4�//J��J/�2��

oooooo�� :���(�����R'�!�"� ��'�� &6�L��� (��!��� �� �(�"�����*!-����������=�#��!�4�/�J��J/�2�

oooooo�� �#&Q#���� (�R'���� L���(���������� =�#��!�4//J��J/�2��

oooooo��� ��#��� (�*�� G!��� ��� L���(��� ���� ��=�#��!�4�/PJ��J/�2��

��)�����3�����(B�!���=�&�B��ZJ�0J�����

� ���� ��!B�!�� ~� �7�3����� =�6#�� �� 7 � ��������� �� ��� ��� "��&��(�*�������!�(�,W����� ���!��� �!��!����'"�� �R'�#��&�"'#�������������=�#��!�4�=�!*��[�6�!�����������

:.�3����3���#��#����7�3����)�'(��7>��!~� .7��� ��&�!��� =�� ��� ���@���+�!�B'#�(�� &�#��!',-�����&'!�����������(Q#&��4���&������������� =�#��!���5�������>1� 2 ,��������� ���� ��=�#��!�4����/��#�����/��Z�� ��/��+/Z��

������������3�����.��������� ���>1�$�#����'�#�B�!�4���&!���!���������������'�#�B�!���/�2��

��3����G!&�����#�!�����#�����'�(��"��������(���!������4��(�"������ �(@��&�������&�����#���#���������=�#��!����#� ��0�� �������5�O���� 4����� ���-��)�'(�4����/��#��/Z���'��������� ��ZP+���

������#�6�#D�~� �������(�<�B��6��� ����������0�� ��K��������������=�#��!�4�=�!*��[�6�!�����/�10�

� ��������(���&�#�����<�������� ��#�� �#� "�� !�*�"��"�(���!� ���� L���U�!#�(��"�����7�!!������ ��#6-� �/�2Z+/�2���� �����!��,-�� ��"���!�����"�$���%!����))$+.::������!%���/��2�

��3�[����#����������������>1���� ��������P������-��)�'(�4������!���(��#����/��/�

)��� :����'(&�� �~��I��[)����G!����)���! SB(�&�� �� L���(��4� '"�� !�(�,-�� ��(�&����� �#4� ������� S&��� � �� ��!*����5���"6���%!��� �����L������������=�#��!�4�:��������� ���P0+����

)� F����&6��(����"%!���� ��R'�&�"�#��� ���(Q#&����� ��� �� ������ ��������#��P��/�0��

�� ��� '�<�#�^#�����&6���������&�#��#'�������� !�B(�"�� L���(��� �#4�� ������� S&��� � ���!*����5���"6���%!���������L������������=�#��!�4:��������� �����+�P1�

� ����&��!\���N ����� =�!*����&�!����� �!@���� �'��!��G!������ !�"�,W��4� ����!'�#��� ��'��+&�#��!',-�� �!�� X�#��#�!Y� �� �'��+�U'���/�2�+/�1P���#4�� ����&��!������>1��$�#���" �(@��&��� �!�����L���(�������������=�#��!���/�Z�+/�0�����������=�#��!�4���<����/�02�

�� 7$���� �!�#<��� <����� � �� ������ ����� ������ ��!&�(�#�J�'�#��� �!��J�>K�&�����&��#���)�������/�01�

A FOTOGRAFIA NUMA PESQUISA SOBRE A HISTÓRIA DO CARNAVAL DE SALVADOR

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 109-122, NOVEMBRO 2009 109

Recebido em: 29/04/2009 Aprovado em: 14/08/2009

A fotografia numa pesquisa sobre ahistória do Carnaval de Salvador

Milton Araújo Moura

Doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).Professor Associado do Departamento de História da UFBA. Autor de, entre outros artigos, “Notassobre a presença da música caribenha em Salvador, Bahia”. Revista Brasileira do Caribe, v. IX, 2009.

RESUMO

Abordam-se questões metodológicas acerca da utilização da fotografia como documentonuma pesquisa sobre o Carnaval de Salvador. Inicialmente, tomam-se de Le Goff, Kossoy eMauad algumas pistas de reflexão. Em seguida, desenvolvem-se itens diretamenterelacionados à investigação, destacando-se a relatividade da fotografia como documento,entre o registro do momento vivido no passado, a recriação do momento pela lente dofotógrafo e as interpretações possíveis do pesquisador.PALAVRAS-CHAVE: fotografia; Carnaval; Salvador; metodologia; diversidade.

ABSTRACT

Through research on Carnival in Salvador, Brazil, this paper explores methodological questionsconcerning the use of photographs as historical records. It starts with some brief reflectionsbased on the work of Le Goff, Kossoy, and Mauad. It then develops a line of argumentdirectly related to this investigation, highlighting the relativity of photographs as historicalrecords, as they are at the same time representations of moments lived in the past, recreationsof those lived moments through the lens of the photographer, and possibilities for laterinterpretations by researchers.KEYWORDS: photography; Carnival; Salvador; methodology; diversity.

MILTON ARAÚJO MOURA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 109-122, NOVEMBRO 2009110

Introdução

O Carnaval de Salvador tem sido tratadopor dezenas de pesquisadores, tanto deinstituições locais quanto de outros centrosdo Brasil e do exterior. Nos últimos trinta anos,os estudos sobre a emergência do afro e amontagem da axé music tomaram oproscênio da reflexão. Neste cenário, podem-se destacar o trabalhos de Marcelo Dantas(1994) sobre a constituição do Olodum comoinstituição moderna, bem como o de Ari Lima(1997) e Goli Guerreiro (2000) sobre oexplosão do fenômeno afropop em Salvador.Michel Agier (2000) concentrou-se sobre acriação e consolidação do bloco afro Ilê Aiyê.Um número crescente de pesquisasacadêmicas vem se debruçando sobre oCarnaval dos últimos vinte anos, destacando-se Marilda Santana (2007) com seu estudosobre as estrelas da axé music.

Em contrapartida, as experiênciasanteriores não somente têm sido menosestudadas, como permanecem reféns desuposições que passaram a compor umdiscurso “oficial” acerca da história da maiorfesta soteropolitana, praticadofreqüentemente pela imprensa, pororganizações não-governamentais e por nãopoucos intelectuais, de forma mais ou menosassociada a essas referências institucionais.Em se tratando das décadas anteriores à de1970, destacam-se os trabalhos de RaphaelVieira Filho (1995;1997), sobre os blocosnegros do período da Velha República, e Fred

A fotografia numa pesquisa sobre ahistória do Carnaval de Salvador

de Góes (1982), sobre o surgimento do trioelétrico.

Esta contribuição, por sua vez, colocaalgumas possibilidades de pesquisa ligadasaos registros imagéticos. Desenvolveproblematizações sobretudo de ordemmetodológica, agrupadas em alguns itensque podem sinalizar encaminhamentos desolução tanto de questões de construçãoconceitual quanto de problemas técnicosdiretamente ligados a procedimentos depesquisa.

A interrogação de que se nutre seudesenvolvimento se deve a Jacques Le Goff(1994). Trata-se de sua conhecida afirmaçãode que o documento é monumento, nosentido de que as sociedades históricas erigemalgumas informações em lembranças einstruções que alcançam se perenizar. Le Goffdistingue entre este tipo de documento, quetem uma conotação testamentária, e aqueleoutro tipo constituído enquanto tal pelopróprio trabalho do historiador. Referindo-seao questionamento original de Foucault(2002) sobre a “segregação dos desviados”,o autor insiste em que cabe ao pesquisadoruma desconfiança radical com relação a todoregistro, seja aquele herdado como tal, sejaaquele “descoberto” pelo profissional dodesvendamento do passado. Cada sociedade– ou melhor, cada setor social que reúnesuficiente poder para fazer lembrar a si própriopelos presentes e futuros – elabora um acervode imagens e registros acerca de si. Estesmonumentos são testemunhos de poder.

A FOTOGRAFIA NUMA PESQUISA SOBRE A HISTÓRIA DO CARNAVAL DE SALVADOR

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 109-122, NOVEMBRO 2009 111

O documento não é qualquer coisa que ficapor conta do passado, é um produto dasociedade que o fabricou segundo as relaçõesde forças que aí detinham o poder. Só aanálise do documento enquanto monumentopermite à memória coletiva recuperá-lo e aohistoriador usá-lo cientificamente, isto é, compleno conhecimento de causa (LE GOFF,1994, p. 545).

Nesta reflexão, tomamos também comointerlocutores Ana Maria Mauad e BorisKossoy. A partir de olhares (inter)disciplinaresdistintos, esses autores oportunizam umaproblematização radical da utilização dafotografia como documento de pesquisa,sobretudo de pesquisa histórica.

Boris Kossoy chama freqüentemente aatenção sobre o caráter da fotografia aomesmo tempo fixo (no sentido de momentofixado) e relativo a distintas possibilidades detemporalidades. A fotografia é memória:

[...] enquanto registro da aparência doscenários, personagens, objetos, fatos:documentando vivos ou mortos, é semprememória daquele preciso tema, num dadoinstante de sua existência/ocorrência. Éassunto ilusoriamente re-tirado de seucontexto espacial e temporal, codificado emforma de imagem” (2007, p.3).

Desdobrando esta premissa, o autorinsiste sobre o caráter ficcional da fotografia,que convive com seu caráter indiciário. Ofotógrafo é criador, no sentido de que suaimaginação e sua posição única, irrepetível eirreversível como o próprio momento e aprópria cena fotografados, constituem o atode fotografar e, assim, participam dodelineamento de contornos das fotografias.Assim, afirma que se pode tomá-las:

[...] como objetos de pesquisas históricas eteóricas e [...] como fonte de informaçõesreferentes a diferentes áreas deconhecimentos. Objeto e fonte sãodesconstruídos e reconstruídos em camadasinterpretativas, abrindo-se muitaspossibilidades de articulação e análise (idem,ibidem, p. 33).

Segundo ainda Kossoy (2002), dentre osmuitos aspectos da fotografia, apenas um éexplícito e chega a parecer evidente: a faceiconográfica. Entretanto, a partir de umcuidadoso trabalho de rememoração a partirda fotografia objeto, como insiste Mauad(2008), é possível situar a fotografia numadinâmica complexa de atitudes, posturas einteresses. Na obra da autora, o fascínio diantedo documento fotográfico é transparente,constituindo-se como um guia na ânsia deperscrutar as entrelinhas das figuras retratadase tomadas como objetos de pesquisa.

Colocadas estas observações iniciais,passamos a algumas problematizações sobreo uso da fotografia numa pesquisa sobre oCarnaval de Salvador; trata-se de “Beduínocom Ouvido de Mercador – um documentáriomultimídia sobre o Carnaval de Salvador dosanos 50 aos 80”1. O corpus que referenciaesta reflexão corresponde ao acervo daFundação Gregório de Matos – FGM 2, que,no contexto da pesquisa, destaca-se pelariqueza de sua documentação fotográficarelativo ao período da pesquisa, como daqualidade técnica de seu conteúdo. Inclui ascoleções referentes à própria produçãofotográfica da Prefeitura Municipal doSalvador, do Diário de Notícias e do Estado de

São Paulo. A pesquisa considera outras fontesimagéticas, como os periódicos A Tarde e

1 Pesquisa vinculada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia e realizada pelo Grupo dePesquisa O Som do Lugar e o Mundo, sob a coordenação do autor. Apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia– FAPESB.

2 Órgão da Prefeitura Municipal de Salvador encarregado da guarda de arquivos históricos e da organização de festejos cívicos epopulares, entre outras atividades.

MILTON ARAÚJO MOURA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 109-122, NOVEMBRO 2009112

Tribuna da Bahia, bem como inúmerosregistros de entidades carnavalescas e dememória oral. Não têm menor importânciaalguns registros fílmicos, alguns deles aindanão publicados. Entretanto, para efeito dopresente estudo, toma-se como corpusapenas as fotografias mantidas nos arquivosda FGM.

As problematizações seguem distribuídaspor eixos temáticos tomados comooperacionais na condução dos trabalhos.

Música

As práticas especificamente musicaisestão no centro de todo tipo de festacarnavalesca. A presença dos diversos tiposde instrumento e o posicionamento daspessoas com relação a estes assumeimportância fundamental. De início, épraticamente impossível discernir, em boaparte das fotografias, o que as pessoas estãodizendo ou cantando. Torna-se difícil distinguirse as pessoas estão rindo, cantando, gritandoou simplesmente extasiadas (o que podecorresponder à abertura da boca), lançando-se sobre o pesquisador o risco da conjeturaou grosseira inferência. Neste sentido, então,o acionamento dos instrumentos musicais quese torna visível na fotografia deixa essepesquisador mais próximo da cena capturadana fotografia.

A centralidade da combinação entresopros e percussão, que dominou o períodocorrespondente aos anos 1950 e 1960,resulta evidente nas séries fotográficas. Poroutro lado, nos tipos de bloco carnavalescoque se desenvolveram a partir do final dosanos 50, como as escolas de samba; a partirdo final dos anos 60, como os blocos de índio;e a partir dos anos 70, com os blocos afro, osinstrumentos de percussão chegam adispensar o uso daqueles de corda e sopro. É

interessante notar que, mesmo que osinstrumentos de percussão fossemfundamentais na música de compasso bináriobem marcado – boa parte das vezes umamarcha ou um samba de batucada –, estesinstrumentos não são exaltados na fotografia;simplesmente ocorrem. Com o ressurgimentoe consolidação do modelo musical,iconográfico e coreográfico do bloco afro, osinstrumentos de percussão são realçados nasua aparição em fotografias.

Isto pode ser matizado conforme se tratede uma ocasião mais oficial e formal, como opróprio cortejo nos dias do Carnaval, ou setrate de um festejo menos controlado pelaslideranças e autoridades, como é o caso daslavagens, gritos e batucadas. Pode-se ver umacombinação mais frouxa entre os diferentesnaipes, além de uma improvisaçãointeressante, sobretudo no caso da percussão,com a incorporação de latinhas, xequerês,chocalhos, etc. Entretanto, no cortejo oficialdos blocos afro, os tambores reinam no centrodas fotografias, associados a coreografiasemblematizadas como africanas e a umdeterminado tipo atlético e altivo de negro/negra.

No que diz respeito ao trio elétrico,observam-se diferentes montagens, commenor ou maior quantidade de instrumentosde percussão. A própria disposição destesinstrumentos varia consideravelmente notempo. De início, vinham no andar inferior dotrio; a partir dos anos 1970, começam aganhar o andar superior, inclusive pelainiciativa inovadora dos Novos Baianos. Aosinstrumentos acústicos, vêm-se somar, nosanos 80, os eletrônicos. Os trios variamtambém de tamanho e observam-semontagens especiais com motivoscomemorativos, como a famosa Caetanave,homenagem do trio elétrico Tapajós aCaetano Veloso no seu retorno de Londres,

A FOTOGRAFIA NUMA PESQUISA SOBRE A HISTÓRIA DO CARNAVAL DE SALVADOR

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 109-122, NOVEMBRO 2009 113

no Carnaval de 1972. O que se podeobservar, a partir dos anos 1980, é a difusãodos instrumentos eletrônicos e a inclusão, nasbandas mais poderosas e associadas aosintérpretes e vocalistas mais famosos, deinstrumentos de sopro que passam tambéma executar solos e vinhetas, a diminuir aimportância relativa dos instrumentos depercussão. Tais constatações abrem caminhopara a compreensão de uma série demudanças na composição das bandas, namontagem do repertório e na sucessão dasmodas rítmicas.

Indumentária e alegorias

Nos dias do Carnaval propriamente ditos,a indumentária é o elemento que, junto comas alegorias do bloco, o identificam perante amultidão. Mesmo os blocos mais pobres emenos especializados internamente, emtermos de cargos e desempenhos, têm pelomenos um membro que se encarrega daconcepção das fantasias e das alegorias.Revela-se aí, de forma menos problemáticaque quando se trata da dimensão musical, omotivo fantástico. Esta noção assumeimportância central na pesquisa. Trata-se davisibilização, de forma recriada enecessariamente circunstancializada pelascondições econômicas e técnicas derealização, das referências de mundosfantásticos sem as quais o Carnaval nãopoderia acontecer como uma festa dedescontinuidade, que permite irromper nocotidiano elementos de outro(s) mundo(s).

Pode-se ver o vigor e o brilho dasreferência dos filmes de inspiração orientalistanas fotografias de blocos como Mercadoresde Bagdá, Cavaleiros de Bagdá, Filhos deGandhi, Filhos do Mar e Filhos de Obá, bemcomo nos afoxés Filhos do Congo e Impériode África. Algumas constantes na imagética

deste tipo de cinema, a exemplo dos guarda-sóis que protegem as autoridades, dosturbantes, dos sapatos com bico volteado, dascalças folgadas e pregueadas presas comelástico nos tornozelos, são recriadas sejasobre o chão, seja sobre os carros alegóricos.Em alguns casos, sobretudo nos blocosMercadores de Bagdá, Filhos de Obá eCavaleiros de Bagdá, algumas cenas eramcuidadosamente recriadas, como a corte dospaxás, com serviçais e odaliscas e, às vezes,figurações de animais exotizados, comocisnes, elefantes, serpentes e camelos,intensificando o clima de realeza e distinçãodesse ambiente, como num paraíso onírico.

As escolas de samba procuravam copiaras entidades congêneres do Rio de Janeiro,como dizem com freqüência os cronistas doCarnaval dessa época. Isto se faz evidentenos trajes que lembram os protótipos da cortefrancesa dos séculos XVII e XVIII e emmesuras e gestos de vassalagem, deferênciae reverência. As figuras do mestre-sala e daporta-bandeira são emblemáticas desteaspecto. Entretanto, na periferia dosdestaques, vêem-se figuras originais,apontando a intenção de particularizar aescola. Observam-se inovações comosambistas de tubinho nos anos 1960 oupandeiristas fazendo evoluções circenses numestilo bem distante do rigor do modelosperformáticos de diversos tipos. É possívelperceber que alguns fotógrafos preferiramcaptar as cenas mais “corretas”, quais sejam,as exibições mais afinadas com o modelocarioca. Outros fotógrafos, por sua vez,mantêm-se atentos a cenas especiais esingulares.

Os blocos de índio procuraminsistentemente recriar a figura do índiochamado “norte-americano”, que apareciaabundantemente nos filmes de cowboy – oswesterns – nas décadas de 1960 e 1970.

MILTON ARAÚJO MOURA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 109-122, NOVEMBRO 2009114

Elementos como as franjas das calças, oscocares, os machados, os adereços em vidroe metal, os esparadrapos fazendo as vezes depinturas tribais, trazem também para as ruasdo centro da cidade os motivos fantásticos docinema. A diferença maior é a corpredominante de cada bloco, junto com obranco. Esta semelhança aparecenitidamente quando se comparam asfotografias de diferentes blocos da mesmacategoria.

0 Ilê Aiyê, o bloco afro que primeiro senotabilizou e que plasmou o próprio nome dogênero, apela para uma África ancestral,emblematizada por escudos de pele, torçoscuidadosamente trabalhados, objetos decerâmica, sisal e palha. Este modelo é seguidoquase sempre pelos blocos afro que surgematé o início dos anos 1980. Somente com ocrescimento e explosão do Olodum, em1986, é que se observam modificações nospadrões das indumentárias e adereços. Ascoreografias, contudo, permanecem aquelasdo início, com ênfase nos movimentos dosjoelhos, ombros e braços. Este tipo de dançaé conhecido, normalmente, como dança afro.

Até o final dos anos 1980, os blocos deembalo, quais sejam, aqueles que não seremetem a uma temática específica,investem em mortalhas, traje de duas peçascom poucas costuras que deixa o corpo maislivre para evoluir e facilita o movimento dosbraços, resultando numa sensação de levezae liberdade. A partir de então, alguns blocoscomeçam a trocar as mortalhas poruniformes como macacões e outros, numaconcepção mais esportiva e mais afinada como figurino da época, em que se divisava umcompromisso com a liberdade do gesto e ainfluência de padrões mais urbanos euniversalizados pelo cinema norte-americano.Este tipo de indumentária não dura mais quealguns anos. No final dos anos 1980, todos

os blocos de embalo, já então chamadosblocos de trio, aderem ao short com abadá,traje esportivo, mais econômico e rentável.Segundo os figurinistas desses blocos, o abadá“deixa os movimentos mais livres”; ora,movimentos semelhantes àqueles praticadosnas academias aeróbicas. É significativo que,a partir desse momento, as própriasacademias passam a ministrar sessões de umritmo que se passa a chamar de swing baiano,oferecidas especialmente nos meses do verãoe freqüentadas com notável excitação pelosturistas e pelos estudantes de classe médiaem férias.

Pode-se perceber, em algumas fotografias,a prática de modas coreográficas queduravam um, dois ou mais anos. Estetratamento demanda um tratamentocomparado entre as notícias associadas àsfotografias. Além disto, uma fotografia apenasde uma determinada cena não permitevisualizar a coreografia. É preciso, então,recorrer ao estudo serial da mesma cena, oque raramente é possível no caso dasfotografias de arquivos.

Padrões de beleza

Os padrões que demarcam o que seria ounão o belo variam muito conforme a época eo tipo de bloco. O que se verifica, no estudoatento das fotografias das escolas de sambae blocos de índio, bem como dos blocos deinspiração orientalista, é uma acentuadaindependência com relação aos padrõesocidentais convencionais propagados pelasrevistas e pelo cinema, como a esculturalidadedo corpo correspondente a tais referência, a“boa” altura e a “integridade” do rosto. Vêem-se homens e mulheres de dentiçãoincompleta como destaques de escolas desamba, homens e mulheres com gorduras àmostra, homens e mulheres de baixa estatura

A FOTOGRAFIA NUMA PESQUISA SOBRE A HISTÓRIA DO CARNAVAL DE SALVADOR

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 109-122, NOVEMBRO 2009 115

e de rosto muito comum, o que jamaisaconteceria entre nós, hoje, em quase todosos modelos de bloco carnavalesco. Ospadrões da beleza ostentada no carroalegórico do bloco e sobre o palanque daPraça da Sé ou da Praça Municipal eram maispróximos da gente comum dos bairros deSalvador, podendo-se destacar aí indivíduoscomuns nas ruas destes bairros.

A partir dos anos 1970, dois tipos deentidade carnavalesca vão selecionar seusdestaques pela aparência politicamentecorreta, o que se evidencia no cotejamentode fotografias.

Um desses tipos corresponde aos blocosafro – sobretudo o Ilê Aiyê –, que escolherãoentre seus membros destacados aqueles queapontam um negro altivo, forte, figurando umrei, um guerreiro, um sacerdote africano. Suasdançarinas mostram quase sempre a mesmaindumentária, os mesmos adereços, asmesmas posturas coreográficas. Não severifica uma continuidade entre estesaspectos e uma iconografia anterior, comono caso dos blocos de inspiração orientalista,das escolas de samba e dos blocos de índio,permanecendo impreciso o conhecimento daorigem e padronização desses movimentos.

Outro tipo de bloco carnavalesco irrompena história do Carnaval de Salvador com as duasdissidências do Fantasma no final dos anos1960, quais sejam, os Internacionais e osCorujas; ambos selecionam homens de peleclara, procurando colocar nas coreografias eperformances apresentadas no palanque, bemcomo nos carros alegóricos, indivíduos quesinalizam um modelo de eurodescendênciamatizada; não chega a ser um arianismo, masuma distinção de membros mais claros e da

famosa “boa aparência”. Isto resulta evidentenas fotografias, sobretudo naquelas que trazemalegorias e coreografias especiais, quasesempre desempenhadas no palanque da Praçada Sé 3.

Espacialização

O estudo das fotografias desse períodoevidencia uma diferença fundamental comrelação ao período atual: a densidade defoliões por metro quadrado era muito menor.Isto se vê tanto no interior dos blocos comonos lados externos às cordas, e mais aindanas praças e outras áreas adjacentes. Eminúmeras fotografias, pode-se ver o chãoenquanto um bloco se apresenta na rua,inclusive nas fotografias do Campo Grande eda Praça Castro Alves, o que a um jovem declasse média pareceria hoje bizarro,indesejável ou inviável; quem sabe, algopouco higiênico.

Relacionado a este aspecto está o registrodo movimento com deslocamento. Havendoespaço, o folião pode evoluir como deseja,pode deslocar-se. Este aspecto daespacialização no Carnaval se remetediretamente às práticas coreográficas. Doismovimentos podem ser verificados aí,recursivamente: a elevação dos braços e aimpulsão pelos tornozelos, com a flexão dosjoelhos para a frente. Isto resulta mais nítidose compararmos estes movimentos àquelespróprios das coreografias criadas nos anos1980. As modas coreográficas inventadas acada ano, a partir dos sucessos de Luiz Caldas,Gerônimo e Sarajane, se apresentavam comouma solução para a carência de espaço quejá se fazia sentir. O folião passa a movimentar-

3 Epicentro da apresentação dos blocos em geral nos anos 1960-1970, enquanto a Praça Castro Alves tinha a mesma função no que se refereaos trios elétricos.

MILTON ARAÚJO MOURA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 109-122, NOVEMBRO 2009116

se com pouco deslocamento, ou mesmonenhum. O eixo desse movimento, então,passa para o giro dos joelhos e da cintura.

Este tipo de observação é especialmentedelicado, e necessita a verificaçãocomparativa de um bom número defotografias, já que se trata de movimentos. Aobservadores que experimentaram esteperíodo, a coreografia parece evidenciar-sena imagem parada, enquanto outrospercebem a necessidade de um cotejamentomais cuidadoso de fotografias da mesmacena.

Intertextualidades e interseções

A abundância de trabalhos sobre oCarnaval de Salvador, seja de pesquisadores,seja de jornalistas, seja ainda de produtoresculturais da iniciativa privada ou do próprioaparelho estadual de governo, fixou certasconstantes que, ao longo das últimas décadas,adquiriram o status de “realidades”, passandoa integrar uma narrativa com aromas desagrado que, ao invés de problematizar,apresenta como simplesmente factual asucessão dos modelos de organização dasentidades carnavalescas.

Por exemplo, tornou-se lugar comumafirmar que todos os trios elétricos descendemde alguma forma da velha fobica de Dodô eOsmar, que saiu à rua pela primeira vez em1950, assim como afirmar que o primeirobloco afro foi o Ilê Aiyê, cujo primeiro cortejoaconteceu em 1975. Uma contextualizaçãomais cuidadosa, bem como um resgate maisexigente de informações, permite matizarestas máximas. Um aspecto em que estapostura se revela fecunda é a percepção dediferentes matrizes estéticas, sociais etecnológicas nos diferentes modelos.

O próprio trio elétrico era, desde 1950,um automóvel eletrizado. Ora, a cidade do

Salvador começava lentamente a modernizar-se; o trio elétrico pode ser pensado como aalegoria da rodoviarização e da eletrificaçãoda cidade. Uma análise de fotografias dasdécadas de 1920-1940 permitecompreender a centralidade dos automóveisnos cortejos. O próprio desfile das grandessociedades, sobretudo o Fantoches daEuterpe, o Cruz Vermelha e o Innocentes emProgresso, se baseava no brilho e nacriatividade de carros alegóricos queconsistiam em caminhões e automóveisreconfigurados para o Carnaval. Até os anos1940, usavam-se as pranchas, ou seja, carrosalegóricos para o desfile de moças das elitesconstruído sobre o tabuado dos bondes.Tratamentos assim das fotografias permitemenxergar em cada modelo, e mesmo em cadaentidade, elementos de diferentes matrizesestéticas, de diferentes recursos tecnológicos,enfim, diferentes inspirações originais. As“invenções absolutas” passam a soar comodescontinuidades de ritmo e intensidade dedeterminados aspectos ou características emprocessos contínuos de desenvolvimento.

Alguns blocos de índio traziam seuscomponentes usando o cabelo black power,elemento que se tornou emblemático dosprimeiros cortejos dos blocos afro. Pode-setraçar, a partir também de fotografias,interfaces muito interessantes entre os doismodelos de bloco carnavalesco. Pode-severificar – e isto é especialmente instigante –que um mesmo traço de comportamento,indumentária ou iconografia é reportado pelofotógrafo ou pelo legendador da fotografia(às vezes o editor do jornal ou do caderno,outras vezes o autor da matéria) comoemblemático de um modelo e não de outro,ou mais de um modelo que de outro.

Outra cena em que é possível perceberacentuada intertextualidade é a homenagemque um bloco rende a outro, ou a um aspecto

A FOTOGRAFIA NUMA PESQUISA SOBRE A HISTÓRIA DO CARNAVAL DE SALVADOR

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 109-122, NOVEMBRO 2009 117

relacionado a outro bloco. No início dos anos1970, os Internacionais tomaram comomotivo fantástico a nação Apache. Ora, nadamais distinto, enquanto extração social, queos componentes dos Internacionais e dosApaches do Tororó. Entretanto, a força domotivo fantástico correspondente aos índios“norte-americanos”, num momento em queos filmes de cowboy eram a principal atraçãoda juventude de Salvador, interfaciou os doismodelos. Assim, os Internacionais ostentaramum imenso cavalo malhado no seu cortejo,enquanto seus componentes envergavam umtraje de certa forma semelhante ao dos blocosde índio. Isto veio evidenciar a força dosApaches do Tororó, mediante a louvação desua referência fantástica justamente pelo seupólo antitético. Em contrapartida, osInternacionais também assimilavam, ao seuacervo de tipos, um ícone relevante da culturacinematográfica.

Os modelos que parecem se prestar maisa esta leitura são os blocos de inspiraçãoorientalista e os afoxés.

Os primeiros não hesitavam em misturarreferências a diferentes mitologiascinematográficas, constituindo uma imagemao mesmo tempo difusa e nítida do Orienteno Carnaval da Bahia. Referências ao mundoárabe, à Índia e à África se mesclavam semproblemas, tanto entre si como ainda commotivos iconográficos de outros mundos,como, por exemplo, um barco vikingapresentado em miniatura. Este processo sedava ao sabor da freqüência de seus foliõesàs casas de exibição.

Os afoxés, ao contrário do que de vez emquando ainda se ouve afirmar, não sereferiam apenas às origens africanas damaioria da população de Salvador e seuRecôncavo, ou à tradição dos orixás. Pode-sever, nas fotografias encontradas, associaçõesentre adereços de orixás e elementos

emblemáticos do mundo oriental ou mesmode outras matrizes fantásticas veiculadas pelocinema. A partir de 1949, com a fundaçãodos Filhos de Gandhi, os afoxés não estavammais necessariamente ligados a umadeterminada casa de santo, emborapermanecessem ligados à tradição dos orixás.Isto provavelmente favoreceu uma maiorplasticidade deste modelo carnavalesco,como se pode visualizar nas fotografias.

O exame das fotografias permite verificarainda o vigor de algumas modas que, por nãoserem tão passageiras como normalmente secostuma pensar uma moda, podem serpensadas como uma onda temática. É o casodo mundo hippie, com sua estética dedespojamento e relaxamento. Inúmerasfotografias dos anos 1970 permitem afirmarque boa parte dos foliões mais jovenstransformava o Carnaval numa ocasiãoespecial de afirmação de uma estética e umaética de inspiração hippie. Isto pode serverificado na indumentária como no gestual.Esta influência não se faz notar nos blocospropriamente, mas nos grupos de foliõesjovens que se aglutinavam em locais como oCampo Grande e, mais que todos, a PraçaCastro Alves. A presença vigorosa deelementos da estética hippie nasapresentações dos Novos Baianos noCarnaval não parece motivo de discordância.

Uma questão de ótica

Retomando os questionamentoscultivados na interlocução com os autorescitados na introdução deste artigo, podemosentão arrematar algumas reflexões sobre autilização da fotografia numa pesquisa sobreo Carnaval de Salvador. Deve-se, de antemão,advertir para que estas reflexões só fazemsentido enquanto as fotografias sãodevidamente contextualizadas e

MILTON ARAÚJO MOURA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 109-122, NOVEMBRO 2009118

consideradas no seu conjunto, e que opesquisador deve ampliar ao máximo ouniverso de fontes consultado, no sentido deescolher como objeto operacionalpropriamente dito aquelas fotografias quemais se prestam à discussão da problemáticada pesquisa, sem perder, contudo, a atençãoao todo.

Um passo a ser dado nas nossas pesquisassobre o Carnaval de Salvador é a constituiçãode um banco de imagens provindas dearquivos pessoais ou familiares, o que poderáampliar consideravelmente o próprio corpusda investigação, bem como a sua diversidade,considerando que as fotografias tomadasnum clima de espontaneidade, galhofa ebrincadeira não precisam corresponder àsexigências do politicamente correto, oumesmo às exigências técnicas da fotografiade “boa qualidade”. Registros em quetransborda a comicidade, boa parte delesconstando de homens travestidos eembriagados, são dos mais encontradiças emarquivos particulares, soltas em caixas decamisa ou misturadas a outros documentosem gavetas de cômodas.

Continua fazendo sentido a pergunta pelocaráter “reflexivo” ou “consciente” do ato defotografar ou seu caráter “espontâneo” ou“casual”. Alguns fotógrafos dirigem a cena,sugerindo posturas dos indivíduos para “sairmelhor na foto”. Outros afirmam que captama cena na forma como se oferece. Ora, opróprio fotógrafo que captura cenas“espontaneamente” costuma fazer, logodepois da revelação ou ainda quando namemória da câmera, sua seleção,descartando o que “não ficou bom” eelegendo, inevitavelmente, as fotografias“boas” e “pertinentes”.

Uma discussão que se coloca cada vezmais como exigência, na nossa pesquisa, dizrespeito à relação entre o ponto de vista do

fotógrafo – o que vem equivaler ao que estátomado como imagem – e a interpretaçãoque podemos fazer da fotografia. O própriofotógrafo, ao escolher entre seus resultadosaqueles que vai publicar, está realizando umainterpretação e condicionando aspossibilidades de interpretação a partir destaseleção. Isto pode ser desdobrado na cadeiacompleta que leva – ou não – a fotografiadesde o momento de sua tomada até suavisibilização pelo leitor do jornal ou pelo foliãoque guarda uma lembrança daquela folia. Aseleção das cenas desejadas – ou desejáveis– não é apenas do fotógrafo, cabendotambém ao editor do caderno, aoprogramador gráfico e, finalmente, ao redator-chefe. Se uma fotografia não pareceapropriada aos efeitos do perfil do jornal, nãochegará ao público. Quem sabe vai parar emalguma pasta de arquivo, cabendo aopesquisador, então, desvelar sua existência e,assim, a existência daquele momentocapturado pelo obturador. É umaoportunidade preciosa de desvendamento datrama da eleição de fotografias “cabíveis” ocotejamento entre as fotografias quechegaram a ser publicadas no periódico eaquelas que adormecem no arquivo, à esperade que um pesquisador venha despertá-la.

Algumas coleções guardam apenas onome da instituição que as encomendou. Eminúmeras situações, não se registrou o nomedo fotógrafo. O que levou a que aquelasfotografia, e não outras, fossem publicadasou guardadas nos arquivos? Uma pista desolução deste problema pode estar no teordas legendas. O que nos perguntamos,algumas vezes, é até que ponto recolhemos– tanto nós pesquisadores como osprofissionais da imprensa – das fotografiaselementos que nos intrigam e até que ponto,em contrapartida, atribuímos a estasfotografias frases que “parecem” servir como

A FOTOGRAFIA NUMA PESQUISA SOBRE A HISTÓRIA DO CARNAVAL DE SALVADOR

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 109-122, NOVEMBRO 2009 119

legendas não escritas. No intuito de“compor” a reportagem, o autor conferecontornos ao conjunto composto pelasfotografias e pelo texto. É possível que esteseja o problema mais sutil do tratamentodas fotografias como fontes visuais para oestudo do Carnaval de Salvador. O próprioprocessamento do registro fotográfico, emsuas diversas etapas e por diversos tipos deprofissional, contribui para a plasmação deuma tipologia das agremiaçõescarnavalescas, fixando-lhe ou pelo menosimputando-lhes características, através deuma reiterada emblematização que sebaseia, em boa medida, na iconografiaassociada a um ou outro tipo.

Por fim, cabe afirmar a validadepermanente da advertência de Foucault(2002) com relação à “segregação dosdesviados”, o que se aproximafreqüentemente da eleição do “politicamentecorreto” e “esteticamente nobre”. Entrevistascom foliões do Carnaval de Salvador quecontam hoje mais de 70 anos apontam parauma festa escassamente fotografada. Porvezes, é possível chegar a estes foliõesatentando para as bordas das fotografias, paraas expressões faciais daqueles circunstantesque estão ali pelas beiradas.

Em fotografias dos anos 1920 a 1940,pode-se perceber mulheres mercadoras defrutas e comidas, bem com homens emulheres prestadores de todo tipo de serviços,olhando a passagem das pranchas e cordões.Parecem distantes, sendo que sua posturafísica quase nunca é a mesma daquela dosfoliões que passam. Trata-se de considerar,como contrapartida do acervo montado, apossibilidade frustrada das fotografias quenão chegaram a ser realizadas, mesmo queos fotógrafos estivessem presentes quando

estes foliões “desviantes” faziam seuCarnaval. Por que não se fotografou oCarnaval dos pobres e negros da primeirametade do século XX, ao qual se tem acessomediante os depoimentos dos mais idosos eos registros de polícia?

Esta contribuição passou em revistaapenas alguns aspectos da utilização defotografias na pesquisa histórica. Dificilmentefaria sentido sem a visualização de seu objetopropriamente dito, a fotografia. Trata-se demotivar a reflexão sobre esta vertente dautilização de fontes imagéticas na pesquisaem História, inclusive a partir do diálogo coma bibliografia especializada, que tem crescidonos últimos anos, e que a brevidade dopresente texto não permite abordar.

Referências Bibliográficas

AGIER, Michel. Anthropologie du carnaval. Laville, la fête et l’Afrique à Bahia. Marseille: Ed.Parenthèse, 2000. 252 p.

DANTAS, Marcelo. Olodum – de bloco afro aholding cultural. Salvador: Grupo CulturalOlodum/Fundação Casa de Jorge Amado. 1994.

FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Trad.Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense,2002.

GÓES, Fred de. O país do carnaval elétrico.Salvador : Corrupio, 1982. Coleção Baianada, 4.

GUERREIRO, Goli. A trama dos tambores. Amúsica afro-pop em Salvador. São Paulo: Ed. 34,2000. Prefácio de José Carlos Capinam. ColeçãoTodos os Cantos.

KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na tramafotográfica. Cotia, São Paulo: Ateliê Editorial,2002.

______. Os tempos da fotografia. O efêmero e operpétuo. Cotia, São Paulo: Ateliê Editorial, 2007.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. Trad.Bernardo Leitão, 2 ed. Campinas: Editora daUnicamp, 1994.

MILTON ARAÚJO MOURA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 109-122, NOVEMBRO 2009120

LIMA, Ari. O fenômeno Timbalada: culturamusical afro-pop e juventude baiana negro-mestiça. In: SANSONE, Lívio & SANTOS, JocélioTeles. Ritmos em trânsito: sócio-antropologia damúsica baiana. São Paulo: Dynamis, 1997, p.161-180.

MAUAD, Ana M. Poses e flagrantes: ensaiossobre história e fotografias. Niterói: EDUFF,2008. v. 1.

SANTANA, Marilda. As donas e as vozes. Umainterpretação sociológica do sucesso das

estrelas-intérpretes no Carnaval de Salvador.(Tese). Ciências Sociais – UFBA, 2007.

VIEIRA FILHO, Raphael Rodrigues. Aafricanização do carnaval de Salvador, BA: arecriação do espaço carnavalesco (1876-1930).São Paulo, 1995, 228 p. (Dissertação). História/PUC-SP.

______. Folguedos negros no carnaval deSalvador. In: SANSONE, Livio & SANTOS, JocélioTeles dos. Ritmos em trânsito: sócio-antropologiada música baiana. São Paulo: Dynamis, 1997.

Fundação Gregório de Matos / Prefeitura Municipal de Salvador. 1975.

A FOTOGRAFIA NUMA PESQUISA SOBRE A HISTÓRIA DO CARNAVAL DE SALVADOR

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 109-122, NOVEMBRO 2009 121

Fundação Gregório de Matos / Prefeitura Municipal de Salvador. s/d

Fundação Gregório de Matos / PrefeituraMunicipal de Salvador. s/d

MILTON ARAÚJO MOURA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 109-122, NOVEMBRO 2009122

Fundação Gregório de Matos / Prefeitura Municipal de Salvador. s/d

OS SÍMBOLOS DO CNPq E SUA CONSTRUÇÃO IMAGINÁRIA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 123-136, NOVEMBRO 2009 123

Recebido em: 29/05/2009 Aprovado em: 25/08/2009

Os símbolos do CNPq esua construção imaginária

Nancy A. Campos Muniz

Doutora em História pela Universidade de Brasília (UnB). Analista em Ciência e Tecnologia doConselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Autora de, O CNPq e sua trajetóriade planejamento e gestão em C&T: histórias para não dormir, contadas. 1. ed. São Paulo: BlucherAcadêmico, 2009. v. 1.

RESUMO:O artigo tem por objeto de análise as imagens que se constituíram como símbolos do CNPq,no período dos governos militares, a partir de reflexões apoiadas no referencial teóricosobre leitura de imagens, imaginário social e análise de discurso. O trabalho ora apresentadoé sustentado em extensa pesquisa documental, bem como em entrevistas elaboradas a partirda metodologia de história oral, envolvendo técnicos, gestores e pesquisadores do CNPq.PALAVRAS-CHAVE: símbolos, CNPq, imaginário social

ABSTRACT:The article analysis the pictures that stockpiling as symbols CNPq during military governementfrom reflections supported in referential theoretical read images, imaginary social and analysisspeech. The work now presented is sustained in extensive desk research, as well as interviewsdone from one of the methodology of oral history, involving technicians, managers andresearchers CNPq.KEYWORDS: symbols, CNPq, social imaginary

NANCY A. CAMPOS MUNIZ

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 123-136, NOVEMBRO 2009124

Introdução

Na virada para o século XXI, o CNPqcompletou 50 anos de serviços prestados àsociedade brasileira incentivando efomentando a formação de recursos humanose apoiando o desenvolvimento de pesquisasem todas as áreas do conhecimento. Essatrajetória, aparentemente linear, foiconstituída por rupturas e descontinuidadesadvindas dos embates políticos, econômicose sociais que caracterizaram o Estadobrasileiro no período compreendido entre1951 e os dias de hoje.

Paradoxalmente, foi durante o regimemilitar (1964-84) que o CNPq recebeu asatribuições mais importantes de sua história,em virtude de ter sido transformado no órgãocentral do planejamento nacional de C&T,incorporando efetivamente em sua missão,além do apoio à ciência, ações voltadas parao desenvolvimento da tecnologia. Grandesprogramas e projetos foram executados nesseperíodo, marcando o avanço de diversas áreasdo conhecimento. Pela primeira vez, o Estadobrasileiro reconheceu a ciência e a tecnologiacomo elementos determinantes dodesenvolvimento nacional. Grandes somas derecursos foram investidas no setor, com vistasa estabelecer uma base sólida para odesenvolvimento de pesquisas e a produçãode tecnologias nacionais.

Em meio a euforia dos discursosdesenvolvimentistas, produzidos sob ainspiração da doutrina de segurança nacional,

Os símbolos do CNPq e sua construção imaginária

surgiram os símbolos institucionais do CNPqcomo chancelas legitimadoras do progressonacional.

Partindo do pressuposto de que todaimagem é produtora de sentidos, tomei ossímbolos que representaram o CNPq noperíodo dos governos militares até os dias dehoje, como objeto de análise do presentetrabalho. Tal empreitada reflete parte deminhas andanças pela história cultural eexpressa também alguns avanços pessoais nacompreensão desse campo fantástico que éa leitura de imagens. O corpus de minhapesquisa foi constituído pelos discursos oficiais,de onde emergiram as falas dos governantesque fundamentaram ideologicamente asatividades de planejamento das políticas deC&T fazendo significar as ações do CNPq, epelas entrevistas empreendidas com gestorese técnicos do CNPq, num recorte temporalrelativo ao período 1975-1985.

O presente trabalho está estruturado apartir de uma seqüencia de enfoques quejulguei complementares. A partir de umreferencial teórico sobre imagem desenvolvialgumas reflexões relacionando perspectivasabertas pela leitura de imagens e o estudodas representações sociais, com ancoragemna teoria do imaginário social e no campo dahistória cultural. Finalmente, apresento aanálise de duas imagens que representaramo CNPq, contextualizada no solo histórico dosgovernos militares, destacando a importânciada história oral na reconstrução da história dosímbolo da instituição através das falas de

OS SÍMBOLOS DO CNPq E SUA CONSTRUÇÃO IMAGINÁRIA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 123-136, NOVEMBRO 2009 125

personagens que atuaram em sua criação,bem como na captura de seus sentidos esignificados percebidos por técnicos, gestorese pesquisadores do CNPq.

As imagens que se tornaram os símbolos

do CNPq

A maior parte da bibliografia percorridatendo por tema a leitura de imagens estávoltada para a análise da imagem fotográfica,principalmente no que se refere aodesenvolvimento de metodologias quepossibilitaram articulações teóricas e análisescriativas dos objetos estudados – ou seja, asfotografias.

Diante da proposição de trabalhar com aanálise de símbolos que representaram e atéhoje representam uma instituição pública – oCNPq – recorri a um arranjo metodológicocom a perspectiva de adaptar algunsprocedimentos recomendados às fotografias,ao caso dos símbolos. No entanto, constateique a análise dos símbolos guarda certasespecificidades.

De acordo com as reflexões anteriores, asimagens são interpretadas a partir do olhardo leitor. Por manterem-se impassíveis, asimagens são apropriadas de diversasmaneiras, admitindo toda a pluralidade deleituras possíveis, qualquer atribuição devalores, sempre relacionados com aexperiência de quem as lê. Isso ocorre com afotografia, com as gravuras, com os desenhos,etc., mas nem sempre com as imagenstomadas como símbolos.

No caso das imagens de símbolosinstitucionais os significados atribuídos a elassão dados previamente através dos discursosorais e escritos. No caso do CNPq, em análise,trata-se de uma instituição pública, vinculadaao governo federal, criada com o objetivo deapoiar a formação de recursos humanos para

a pesquisa, mediante a concessão de bolsasde estudos de mestrado e doutorado, no Brasile no exterior. Tal missão institucional encontra-se definida em lei, bem como suas atribuiçõese competências para exercê-las. Portanto, aimagem tomada como símbolo do CNPq foielaborada a partir de alguns princípiosparticulares:1) trata-se de uma imagem elaborada para

representar a missão da instituição nasociedade, de acordo com as suasatribuições previstas em lei;

2) a escolha do símbolo que constitui aimagem recaiu sobre um pequeno grupode indivíduos, ou ainda, sobre umidealizador ou projetista que, a partir doconhecimento das atribuições delegadasà instituição, em seus estatutos, idealizoua imagem que lhe dá representatividade;

3) o projetista, ou o grupo idealizador dosímbolo, imprime nele a sua percepçãoparticular do que será representado comoinstituição.Sem dúvidas estamos diante de um

constructo, resultante da representação dedeterminados indivíduos. Mas o que tornaráesse constructo um símbolo, uma vez que osímbolo deve significar a mesma coisa, pelomenos, para um grande grupo de indivíduos?

Neste caso específico, estamos tratandode um desenho impresso, que estabelecerá abase fundamental da identidade visual dainstituição. No primeiro símbolo analisado,identificamos uma figura sem qualquersignificado especial, um círculo contendo ummapa do Brasil. Qualquer indivíduo pode fazerleituras dessa imagem, interpretá-la comobem entender. Mas, a partir do momento emque é acrescentada a essa imagem a sigla doCNPq, ela torna-se diferente, particular (aindaque desconheçamos o seu significado) e,portanto, mais difícil de ser lida. Aidentificação da sigla nos impede de elaborar

NANCY A. CAMPOS MUNIZ

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 123-136, NOVEMBRO 2009126

uma leitura livre, descomprometida, porqueela está ali sinalizando sua particularidade,reivindicando um conhecimento específicopara a sua leitura.

Mas o que tornará essa imagem umsímbolo? Para quem essa imagemsimbolizará algo?

Para que essa imagem seja elevada àcategoria de símbolo é necessário que sejaimpregnada por um sentido que a façasignificar. Esse poder de conferir sentidos àsimagens, fazendo-as significar como símbolos,emana da palavra oral e escrita ou, melhordizendo, dos discursos.

Somente o discurso tem a faculdade deconferir valor, dar sentido, fazer significar.Portanto, é o discurso oral e/ou escrito queimantará a imagem com um sentido único,fazendo-a representativa do conceito ligadoà atividade desenvolvida pela instituição. Aimagem simboliza, segundo a força política esocial de seu discurso fundador.

Esse processo não ocorre com a leitura daimagem fotográfica. Mesmo considerando ainterferência do fotógrafo na definição dapaisagem, da moldura, das poses, etc., a partirdo momento em que a fotografia é reveladaou impressa, ela se torna impassível,congelando suas características. E a partir daí,qualquer indivíduo pode ler a imagem, deacordo com os seus valores, sua vivência, suapercepção, sem a necessidade de um discursoque a faça significar.

Aprofundando ainda a questão do “paraquem” o símbolo significa, é fato que no casoem análise, os símbolos do CNPq não“representavam” para os cidadãos comuns.Uma vez conhecida a missão da instituiçãoapreende-se a direção que o estabelecimentodos sentidos indica – as comunidadescientíficas e tecnológicas. Esses grupospossuem os requisitos que permitem acaptação desses sentidos e, portanto, a leitura

de significados mais próxima da concepçãodo símbolo.

Para os cidadãos comuns, o símbolofunciona como um elemento que estabeleceidentificação visual. Portanto, é possível queos mais informados consigam fazer a relação:sigla CNPq = Ciência. No que diz respeitoàqueles incapacitados da leitura textual, odesenho poderia significar “n” leituras.Portanto, a recepção do símbolo de umainstituição concebida para atender a umacomunidade de elite, apresenta uma série deespecificidades que complexificam em muitoa sua leitura. Mesmo considerando que aleitura de imagens se estabelece a partir davisão pessoal do receptor, uma vez que cadaum interpreta de acordo com a suacapacidade.

Os símbolos do CNPq foram construídospara significar preferencialmente, para umacategoria de receptores, a partir dos discursosorais e escritos dos governantes. Neste casoobservo que, enquanto a recepção do símboloé universal, sua concepção é absolutamentedirecionada.

Tendo em vista estas colocações, tomareicomo premissa para esta análise, a existênciade um pequeno grupo de indivíduos a quemcoube a idealização das figuras que, atravésdos discursos governamentais, passaram asignificar os sentidos representativos dainstituição e transformaram-se em seussímbolos. Como conseqüência dessapremissa, minha análise contempla, além dasimagens relativas aos símbolos, a atribuiçãode sentidos que os discursos dos governantesproporcionaram aos desenhos gráficosproduzidos, elevando-os à categoria desímbolos do CNPq.

Para tanto, apresentarei:1) os procedimentos metodológicos

utilizados para a datação da criação dossímbolos;

OS SÍMBOLOS DO CNPq E SUA CONSTRUÇÃO IMAGINÁRIA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 123-136, NOVEMBRO 2009 127

2) a definição do contexto históricoespecífico ao surgimento dos símbolos,caracterizando dois momentos, assimconsiderados:1ª. Fase: a criação do Conselho Nacionalde Pesquisas e sua estruturação – período1951-1963; e2ª. Fase: a transformação do CNPq noórgão central do Sistema Nacional deC&T, no contexto dos governos militares– período 1964-1985;

3) a identificação dos sentidos que osdiscursos dos governantes fizeramsignificar nas imagens dos desenhosgráficos, como símbolos da instituição.

Procedimentos metodológicos de análise

Embora não exista registro documentalsobre a criação dos símbolos do CNPq,identifiquei no decorrer de minha pesquisa aexistência de duas imagens quecaracterizaram os documentos da instituição,a partir de 1964.

No início da pesquisa, além do símboloque atualmente distingue o CNPq, tínhamosconhecimento de outra imagem que apareceaposta em documentos antigos, anteriores a1975. De ambas as imagens as datas decriação eram desconhecidas, mas havia umdado que balizava a identificação do períodoaproximado da criação do símbolo atual doCNPq, que era o seu reconhecimento comologomarca. Assim, a partir de uma pesquisajunto ao Instituto Nacional de PropriedadeIndustrial – INPI identifiquei a data deprotocolo do primeiro pedido de registro demarca, referente ao símbolo atual – 09 dejunho de 1978; o que nos informava que suacriação teria sido anterior a 1978 e que, aconcepção da outra imagem, teria ocorridonuma data ainda mais distante.

Para realizar o trabalho de datação eanálise dessas imagens, procurei me guiar poralgum documento institucional importante,de periodicidade regular, com circulaçãointerna e externa ao Órgão, que exigiria umaimagem como chancela institucional.Ocorreu-me então, tomar a série histórica deRelatórios de Atividades do CNPq publicadadesde 1952, por fio condutor.

No período compreendido entre 1951 e1959, o símbolo que aparece na capa e naapresentação da contra capa dos Relatóriosé o das Armas da República; fato plenamentejustificável por estar o CNPq, nesse período,diretamente subordinado à Presidência daRepública. Portanto, nesses oito anos cobertospelos Relatórios não encontrei nada de novono que poderia se referir à adoção de umsímbolo específico do CNPq.

Considerando as lacunas deixadas pelainexistência de Relatórios de Atividades noperíodo 1960-1963, foi somente na capa doRelatório relativo ao ano de 1964 queconstatei, pela primeira vez, a impressão deuma imagem constituída pelo desenho de umcírculo vazado, contendo o mapa do Brasil, cujadimensão ocupa quase toda a área do círculo,trazendo justaposta a inscrição “CNPq”, emletras estilizadas retas, ligadas por traçocontínuo. A figura apresenta-se no cantoesquerdo superior da capa, como uma chancela,embora na contracapa de apresentaçãoencontre-se ainda, as Armas da República.

NANCY A. CAMPOS MUNIZ

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 123-136, NOVEMBRO 2009128

Tal modelo se repete no Relatório relativoa 1965 que evidencia uma curiosidade, a corda figura impressa passa a acompanhar a coradotada na capa do Relatório; neste caso,laranja. A figura estampada no Relatórioanterior, 1964, apresentava a cor azul claro,seguindo a mesma tonalidade da capa dapublicação. Essa característica pode serobservada em outros documentos originaisproduzidos nesse período, nos quais tambémencontramos a mesma imagem. Talconstatação induz à percepção de que atéentão, não existia qualquer preocupação dosadministradores com o estabelecimento deuma imagem gráfica definitiva para o Órgão,que o representasse institucionalmente.

1ª. Fase do CNPq: criação e estruturação

Inicialmente marcado pelas contingênciasadvindas do grande desenvolvimento daenergia atômica, durante a II Guerra Mundial,a criação do Conselho Nacional de Pesquisas– CNPq, pela Lei 1310/51, foi resultado deproposições de um grupo de militares e dapequena comunidade de cientistas brasileirosexistente à época, composta em sua maioriapor físicos. Sua missão visava odesenvolvimento de uma infra-estruturarazoável de pesquisa e a formação ecapacitação de um contingente depesquisadores de alto nível, através daconcessão de bolsas e a criação de unidadesde pesquisa, com o objetivo de desenvolveruma maior autonomia científica e tecnológicano País.

O Estado reconhecia institucionalmentea importância da ciência para odesenvolvimento nacional, numa década emque a implantação da organização racionaldo trabalho já havia se consolidado enquantotécnica de controle do processo de trabalhoindustrial (ANTONACCI, 1993).

Nesse quadro, o planejamento assumiu amais alta função no estabelecimento depolíticas governamentais, a partir das idéiasprecursoras do taylorismo, consagrando-se nadécada seguinte com a instauração doregime militar, como um instrumento dealteração e consolidação de uma estruturade poder, na medida em que se configuravacomo uma forma de ideologia que justificavaas políticas estabelecidas pelo Estado(MANNHEIM, 1972). O período 1951-54,pode ser identificado como de uma primeiraaproximação à política de desenvolvimento,estabelecendo-se várias medidas queestimularam o desenvolvimento econômicoe a industrialização, abrindo passagem, apartir de 1956, para o governo de JuscelinoKubitscheck formular seu ambicioso Plano deMetas voltado para o setor industrial,encontrando os elementos e as condiçõesfavoráveis à prática do planejamento como oprincipal instrumento de política econômicado governo.

A atuação do CNPq nesse período voltou-se basicamente para a formação de recursoshumanos. Constata-se, de maneira geral, aausência de uma orientação explícita,formalmente elaborada nos planosgovernamentais, para a área de ciência etecnologia no País, o que de alguma formaacabou por comprometer e/ou condicionar odesenvolvimento. Tal fato parece ter ocorridodevido ao pouco interesse dos dirigentesgovernamentais, representado peladiminuição de recursos financeiros alocadosdestinados às atividades de pesquisa científicae tecnológica, provavelmente peladificuldade em se vislumbrar resultadospráticos imediatos.

Durante a década de 1960, em especialno período pós 64, com a ascensão dosgovernos militares, a atividade deplanejamento assume importância central

OS SÍMBOLOS DO CNPq E SUA CONSTRUÇÃO IMAGINÁRIA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 123-136, NOVEMBRO 2009 129

passando a integrar todas as atividades doEstado, dando origem a uma estruturatecnocrática que, segundo Motta (1994),envolvia formas de conhecimento altamentecodificadas e sistematizadas.

A partir desse período, e até o final da eramilitar, se assiste à consolidação de ummodelo de gestão pública que passa a atribuiràs instituições de planejamento uma grandeparte da responsabilidade pela condução dasatividades econômicas, tendo sempre comoobjetivo o aprofundamento do processo deindustrialização. Esse período correspondeu,portanto, ao ápice do planejamentogovernamental no Brasil, no qual o Estadoassumiu um forte papel interventor, criandograndes projetos de integração nacional,oficializando ambiciosamente o conceito de“modelo brasileiro”e definindo-o como omodo brasileiro de organizar o Estado e moldaras instituições para, no espaço de umageração, transformar o Brasil em naçãodesenvolvida.

Nesse contexto, o desenvolvimentocientífico assumiu importância fundamental,como revelam os planos especiais elaboradosnessa área, com volumosos recursos alocadosà formação de recursos humanos e aodesenvolvimento de novas tecnologias. Nodiscurso dos governantes militares, “ciênciae tecnologia” permaneceu vinculada aodesenvolvimento nacional como elementofundamental à construção de um “Brasil,grande potência” e a formulação das políticaspara o setor permanecerá ligada a idéia depermitir ao País dar o “salto tecnológico”.

Nesse sentido, o uso do planejamento e avalorização da técnica são concebidos como“razão técnica”, na qual o discurso dos

governantes deixou de ser fundado emvalores e em idéias convertendo-se emdiscurso impessoal, fundado na racionalidadedos fatos, na divulgação sistemática dosíndices de crescimento nacional e naeficiência administrativa do sistema. Talrecurso teve por vistas a despolitização dapopulação através da demonstração deracionalidade dos fatos que passa a envolveras falas de tecnocratas e governantes numaaura de neutralidade, passando o discursoinstituído a ser o “discurso competente”, “odiscurso neutro da cientificidade e doconhecimento” (CHAUÍ, 1981).Fundamentando-se na Lei de nº 4.533, de08 de dezembro de 1964, foramreformuladas e ampliadas algumas dascompetências do CNPq como, por exemplo,o papel de formulador e articulador da políticacientífica e tecnológica. Nessa época, parteda estrutura formal do CNPq também foimodificada e a razoável expansão de suasatividades foi considerada essencial para odesenvolvimento e a consolidação dapesquisa no País. Durante a década de 1970,ocorreram algumas redefinições nos rumosdo CNPq consoante à política governamentalde valorização do setor de C&T nacional.

A mudança política ocorrida com o golpemilitar de 19641 promoveu profundastransformações no modelo econômicoadotado até então. Uma nova elite compostapor militares, industriais e intelectuaiscolocam em prática o projeto de restauraçãoda economia fundado na supremacia dogrande capital, sob a égide do lema“segurança e desenvolvimento”. No que sereferia à “segurança” entenda-se a repressãoa qualquer tipo de resistência ao governo e,

1 “Seria mesmo um truísmo repetir-vos que, hoje, nenhum país consegue atingir a prosperidade sem os alicerces da ciência e datécnica. Isto é, se não contar com um quadro de cientistas e técnicos capaz de atender às crescentes exigências do progresso.Estabeleceu-se mesmo íntima relação entre a riqueza nacional e a proporção de técnicos e cientistas existentes em qualquercoletividade” (CASTELLO BRANCO, 1964).

NANCY A. CAMPOS MUNIZ

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 123-136, NOVEMBRO 2009130

por “desenvolvimento”, a expansãoeconômica fundada na pesquisa científica etecnológica e na formação de cientistas etécnicos de alto nível. Nesse sentido, o projetode criação de um “Brasil, grande potência”

estava sendo colocado em execução.Iniciou-se então, nesse momento histórico,

a montagem de um grande aparato definanciamento e implantação de programasde pós-graduação nas universidadesbrasileiras sob os princípios da “doutrina desegurança nacional” com base na integraçãonacional.

Análise da imagem relativa ao CNPq no

período 1964-1974

Considerando que o regime militarincorporou os princípios ideológicos daDoutrina de Segurança Nacional em todas asatividades do Estado, e que o presidente doCNPq em exercício no período 1970-74 foio General Arthur Mascarenhas Façanha, atéentão Comandante do Instituto Militar deEngenharia-IME, considerei os princípiosideológicos da doutrina de segurançanacional como o pano de fundo de nossasanálises.

A Doutrina de Segurança Nacional foiestabelecida sobre três conceitos básicos:1) a geopolítica: concebida pelos

idealizadores da doutrina como “a ciênciaque estuda a influência dos fatoresgeopolíticos sobre a vida e a evolução dosEstados, com a finalidade de obterconclusões de ordem política...orienta ohomem de Estado na condução políticainterna e externa...orienta o militar nopreparo da defesa nacional...” (COMBLIN,1980, p.25)

2) o conceito geopolítico de Nação: desejode ocupação e do domínio do espaço. ANação é o poder para impor aos outros

seus projetos e ela age pelo Estado, sendoimpossível encontrar ou fazer umadistinção real entre Estado e Nação.

3) o conceito de bipolaridade: fundamentosobre a divisão do mundo em dois campos:o Ocidente e o comunismo, onde o Brasilestaria engajado no campo do Ocidente,por motivos geográficos e morais. Servede postulado para a adesão da Nação àluta anticomunista no interior dasegurança nacional. É colocado como umfato – está colocado como guerra total(Idem, p. 29-307).

O círculo. Figura geométrica incomensurável,que pode estar representandogeograficamente “o mundo”, portanto, aexpansão do Brasil “no mundo” ou ainda, aproteção proporcionada pelo regime militar,que envolvia todo o país contra o comunismo.

O mapa do Brasil. Perspectiva geográfica dasegurança nacional, na qual Estado e Naçãose fundem num mesmo princípio. Integraçãonacional promovida pelo desenvolvimentoadvindo dos recursos investidos na ciência.Nacionalismo ufanista que projeta aexpansão do Brasil no mundo, através dodesenvolvimento científico e tecnológico “OBrasil, grande potência”.

A sigla CNPq – Conselho Nacional dePesquisas. A força produtiva do conhecimentocientífico, como fator de desenvolvimento esegurança nacional. A ciência servindo debase para a sustentação do projeto de país.

OS SÍMBOLOS DO CNPq E SUA CONSTRUÇÃO IMAGINÁRIA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 123-136, NOVEMBRO 2009 131

É preciso destacar que o Relatório deAtividades referente ao ano de 1966,apresenta, excepcionalmente, a mesmafigura contida numa alegoria cujo tema podeser compreendido como o desenvolvimentoindustrial. A figura representativa do CNPqaparece projetada como componente de umaengrenagem mecânica, sugerindo oselementos de uma máquina, na qual oemblema avança em sincronia com uma basesustentada pelo tempo, o ano 1966. Umaleitura provável seria: o Brasil industrializadoavançando rumo ao desenvolvimentosustentado pela ciência e tecnologia. Ouainda, um Brasil industrializado que sedesenvolve em ordem e em segurança, nostrilhos do progresso.

Outra constatação é que, a partir desseano (1966), as Armas da República deixamde ser impressas nas contra capas dosRelatórios, induzindo à interpretação de quecerta identidade e autonomia foramadquiridas pela instituição.

A seqüência de Relatórios volta aapresentar a imagem originalmente descrita,colorida segundo a cor da capa, até o ano de1970. Em 1971 identifiquei outra inovação,a capa do Relatório não apresenta mais a

mencionada figura, apenas os dizeres“Relatório de Atividades do CNPq 1971”, emletras brancas sobre um fundo cor de vinho. Afigura analisada será encontrada apenas nacontra capa, impressa em preto e branco, nocanto esquerdo superior da folha,apresentando em acréscimo, na base inferiordo círculo, os dizeres “Presidência daRepública”.

No ano de 1974 não houve publicaçãodo Relatório de Atividades, pois a instituiçãoestava passando por profundastransformações.

A 2ª. Fase do CNPq: transformação em

órgão central do Sistema Nacional de C&T

A importância da ciência nesse período édestacada pela Lei nº 6.036, de 01/05/74,que transforma o Ministério do Planejamentoem Secretaria de Planejamento (SEPLAN),órgão de assessoramento direto ao Presidenteda República na coordenação da política dedesenvolvimento científico e tecnológico. Areferida lei vinculava à SEPLAN o ConselhoNacional de Pesquisas (CNPq), o BancoNacional de Desenvolvimento Econômico(BNDE), a Financiadora de Estudos e Projetos(FINEP), a Fundação Instituto dePlanejamento Econômico e Social (IPEA) e aFundação Instituto Brasileiro de Geografia eEstatística (IBGE).

A Lei 6.129, de 06/11/1974, transformouo CNPq numa fundação de direito privado, oque lhe assegurou autonomia administrativae financeira, com a denominação deConselho Nacional de DesenvolvimentoCientífico e Tecnológico. Sua missão passoua ser a de auxiliar o Ministro de Estado chefeda Secretaria de Planejamento, na elaboraçãoe coordenação do Plano Básico deDesenvolvimento Científico e Tecnológico-PBDCT e na análise de planos e programas

NANCY A. CAMPOS MUNIZ

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 123-136, NOVEMBRO 2009132

setoriais de ciência e tecnologia, assim comona formulação e atualização da política dedesenvolvimento científico e tecnológico,estabelecida pelo governo.

Posteriormente, o Decreto nº 225/75, de15/01/75, criou o Sistema Nacional deDesenvolvimento Científico e Tecnológico(SNDCT) integrado por todas as instituiçõesvinculadas à pesquisa científica e tecnológica,usuárias de recursos governamentais, atravésda constituição de órgãos setoriais nosministérios sob a forma de secretarias detecnologia. A integração do SNDCT ficou acargo do PBDCT, cujo principal instrumentofinanceiro seria recursos provenientes doFundo Nacional de DesenvolvimentoCientífico e Tecnológico (FNDCT).

O CNPq passou a ser o órgão central doSNDCT através de atribuição estatutária –Decreto nº 75.241, e sua sede foi transferida,em 1975, do Rio de Janeiro para Brasília. Taisatribuições e competências foram mantidasaté 1985, quando foi criado o Ministério deCiência e Tecnologia pelo primeiro governocivil, no âmbito da Nova República.

A criação do símbolo que identificaatualmente o CNPq e seus documentosinstitucionais ocorreu nesse período, cujocontexto procurei apresentar sucintamente.

O símbolo atual do CNPq

Identificamos o surgimento do símboloatual do CNPq, que substituiu definitivamentea figura do mapa contido em um círculo, noRelatório de Atividades referente ao ano de1975.

O ano de 1974 foi paradigmático naexistência do CNPq, como já comentamos,pois marca a reformulação política eadministrativa do Conselho, transformado emConselho Nacional de DesenvolvimentoCientífico e Tecnológico, mantida a sigla

CNPq. Agora como fundação de direitoprivado, sua missão é coordenar uma políticaglobal de ciência e tecnologia, vinculada àpolítica de desenvolvimento econômico esocial do país, servindo de orientação comuma todos os órgãos do Sistema Nacional de C&T– SNDCT e à previsão dos recursos quepropiciassem sua implementação (CNPq,1984). No período 1975-1985 o CNPq, defato, alcançou a maior soma de competênciase de prestígio em toda a sua história. Aredefinição da missão do CNPq ocorreu comouma etapa da estratégia de legitimação dosgovernos militares, após Costa e Silva, atravésda comprovação de critérios de eficiência eracionalidade, importantes para adespolitização da sociedade civil. A políticade C&T foi priorizada numa vinculação diretacom o crescimento econômico, quecomprovava a eficiência dos governosmilitares, e que revelava a base tecnocráticaque lhe dava sustentação.

É a partir desse contextopolítico que surge o símbolodo CNPq, que vemidentificando a instituiçãoaté o presente. A cabeçaestilizada em linhas retas de

cor azul, em fundo branco, com sobreposiçãodo mesmo desenho, de modo a proporcionaro efeito de quatro camadas, ou quatro cabeçascontidas uma dentro da outra que, do exteriorpara o interior tornam-se mais finas,culminando numa pequena esfera em azul,localizada dentro da última cabeça, sugerindofortemente a localização do cérebro.

O desenho estilizado da cabeça em linhasretas coloca em evidência o perfil de umhomem, ou ainda o perfil de um homemtecnológico do futuro, permitindo a leitura deque o binômio ciência e tecnologia seriaindissociável para o desenvolvimento do País.Ou ainda, a ciência como base da formação

�������� ������7�)R����.�7���3�.NO������?��

����������������� ����������������������)��/�P+/P2��������������� /PP

��� '"�� �#��(�*Q#&���� &� �<� ��� *�!�!� � !�*!����� ��&#�(%*�&�� �!�� �� 6�"�" �!��#&�#���T����&��������"���!#����� �!��!���������U'#6�����/�10�L����L��'������ �������� !�*���!�� ���"�!&��� U'#��� ��� �#����'����&��#�(����)!� !������� �#�'��!��(�� &�"���&!>�&�"�������*(��7�)R����(�������&�B�,��&�#L�*'!�#���'"��"�!&��"������ �'� ��#��'"��(�*�"�!&��

b���c���������� �����������������+*�D�������� �� ���!� �666� �� ���!� �� �� +*�D� � ������ ������ � � �$%��� �'� #-�� �#��#���R'�(�� �� �#6����� (��!����"��� �� ������ ��! $�� ��!� ��������"�� �!�&�'�"'����#��!����#���� "'���� �#���*�#������ ��(#���&�#����������#�����#���� �!������#����#����������A� � ������������ ���� � �� <��� �!&� ,-��R'���'���#6��>����R'���'��������(����#���'"� ������L�����"�#����"��!�,-���� �(����� #�� ��'� ��#�����"���� �" (��R'���'� �(��"�#���&�#��*'���L�!"�!�#�R'�(�"�"�#�����!�"� �������"'����B�"���������� �� ���������=���� � ��� ��� ���� !�L�����#�(��"��������!������������L�&�Q#&��������� �#L�"�� !>���� #����� B�#�� ��(G!���� �!�&��� �(*�� �L�����"�#��� !%� �!��7���������2��*!�L���#�������

���@"B�(������#����'�,-��>�!� !���#������ �!��!� ��� ��#����� ��� �(���\� '"�� �(�����#&'(���������B�!�&��#�@L�&������&#�(%*�&��&'U�� �" �!�M#&��� �!�� &'(������� �(�����&'!���� *���!#�"�#����� ��R'�(�"�"�#��� �(@��&������@"B�(������&�B�,����B!� ������"�!&����� �(�� �#���&�#�!�(�!� !���#��#��� �� &>!�B!��� �� �#��(�*Q#&��� �!"��������#&'(�,-���"�����������"�*�"&�"� �� ��R'���� �� �� &�Q#&���� ���������������#��������&����-���&�"'#����'��(�<�,-���� ��!"�� X� �!Q#&��Y�� �(�� �#�!���������'*�!�� R'�� ��� R'�(������� �#�&��("�#�� �!&�B����� #-�� &�#L�!�!�"�� � %�� �&�#6�&�"�#��� ��� L'#&��#�"�#��� ���#����'�,-��

� )�!��&�#6�&�!�������(6�"�#������"�����(�*����" !��#��������!�7�)����.��[����#&D��75;,.� �����A������� ����A��������� �1���52<4�6���%!���� �!��#-����!"�!��&�#������ �(�����'���>&#�&����/�1�+/������3���������'��!������� ���$���%!����.#���!��@(����#���"B!������0�

������L�!"�������� ����'�����!����@"B�(����7�)R���*�!��#'"��L�!"���,-����L�#��������B!�*��%!����#-�� ���#�����!�'��(�<�����"&�!�����L�!�#����� #�"��"���&'"�#�����'�&�#��&�"�#����R'��#-����U�"��L�&�����

."�� �(��!�,-�� L��� !�"������ #�(�*�"�!&����&!��&�#��#��+����B��K�������*(�7�)R�� �� ��&!���� �"� �K��#��� X7�#��(6���&��#�(� �������#��(��"�#���7��#�@L�&�� �3�&#�(%*�&�Y�� �(��L����������>�6�U��� �������"��������!�#����#������!�L�!"'(�,-�����;!*-���(*'"��� ���������#������!�L�!�!�"����7�)R&�"��7�#��(6����&��#�(����)��R'�����

���M"B������� ��R'����!��(�<�"���'"��>!�������#�!����������� �!��!���� !�&���"�#���"�����(%*�&��� ���$���%!����!�(�� �#�!�� ���>&#�&�����*����!������7�)R�R'����'�!�"�#��#����'�,-��#�� �!@����&�" !��#������#�!�/�1��A�/�0�������#�!������B�!��*�#�����#�!!���!����'!*�'���R'���-�����&�"�����@"B�(����7�)R�!� !���#�����#�R'�(�� �!@����

���L�(�����7�B"�*������@"B�(�����7�)R>�!�(�&��#����T��#����'�,-��R'��X�!�#� �!�������#���������(���Y�

NANCY A. CAMPOS MUNIZ

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 123-136, NOVEMBRO 2009134

No relato do entrevistado Cabajk emergea vinculação do símbolo com o cérebro, aciência e a tecnologia.

Falavam na época que, “olha, é umainstituição que coordena todas as ações parao desenvolvimento da ciência e tecnologiado País.... Então, essas pessoas falavam “vemesse cérebro para Brasília”...e eu associei.Falavam de pesquisadores que vinham paraBrasília, aí eu via o símbolo do CNPq queera uma cabecinha, então eu associava isso(risos). [...]Então, a gente associava mesmoaquela bolinha ao cérebro [...] dopesquisador, às pessoas que pensam, quepesquisam para desenvolver a ciência e atecnologia no País. Isso foi uma das coisasque me motivou a vir para o CNPq. Eu iatrabalhar em uma instituição que ia formarpessoas para o desenvolvimento do País,para o desenvolvimento da ciência etecnologia. Então eu achei isso muitointeressante, motivador. Era um desafio paramim, que ajudava a organizar uma área, queeu nem conhecia direito, mas eu achei aquilomuito interessante. Fui para o Rio de Janeiropara conhecer o CNPq, em 75... quando fuientrevistado pela área de gestão de pessoaslá, na verdade eles falavam área de pessoal...de pessoas é mais hoje, não é? [...] Oemblema do mapinha do Brasil [...] desse eunão me lembro não, devia ser lá do Riomesmo... Já veio com esse [da cabeça], nãoé? (CABAJK, 2007, grifos nossos).

A fala reforça o que havia sido constatadona pesquisa dos Relatórios de Atividades,remetendo a existência da figura do mapacontido no círculo ao CNPq anterior a 1975.

Na perspectiva dos principaisbeneficiários do CNPq, os pesquisadores, osímbolo é associado à idéia de excelência.

Desde o meu ingresso na Universidade, comoestudante, em 1965, tive direta ouindiretamente contato com o CNPq. Aprendi,desde cedo, que a Agência, mesmo emperíodos de grandes dificuldades políticas e

financeiras, tinha como preocupaçãoprincipal a qualidade da produção científicae a defesa de padrões acadêmicos. É claroque nada é perfeito e existiram momentos esituações de falhas e desencontros. Noentanto, a marca CNPq remete sempre à idéiade excelência. Gilberto Cardoso Alves Velho(Museu Nacional, UFRJ, 1996). 3

A entrevista, com o presidente do CNPqno período 1975-1979, José Dion de MeloTeles nos proporcionou as informações queme levaram à origem do símbolo do CNPq,que compõe hoje sua logomarca.

A logomarca, registrada no INPI foi doadapelo bom amigo Roberto Muylaert (ex-presidente da TV Cultura), em homenagem ànova fase do CNPq. A interpretação é deque o foco da atenção do CNPq seriacentrado, sobretudo, na inteligência dohomem e o mais seria conseqüência. Osinconformados ou “do contra” apelidaramjocosamente de “caveira e chumbinho”.[...]Depois, ele me corrigiu informando aautoria, que era de uma colaboradora delena empresa... (José Dion de Melo Teles,2007).

E foi a partir do depoimento de RobertoMuylaert que chegamos à artista queconcebeu o desenho que se consagrou comoo símbolo da instituição. O símbolo do CNPqfoi criado por Cláudia Scatamacchia,paulistana, descendente de imigrantesitalianos, aluna de Yoshiya Takaoka ainda naadolescência. Formada em ComunicaçãoVisual, sempre trabalhou com pintura, design,projetos gráficos, direção de arte e ilustrações.

Artista plástica consagrada, foi premiadavárias vezes no Brasil e no exterior, ilustrandoclássicos e autores de renomada importância:Ilka Brunhilde Laurito, Odette de Barros Mott,Goethe, Lewis Carrol, Virgílio, Andersen,Irmãos Grimm, Perrault, Fernando Pessoa,

3 Pesquisador, em depoimento à equipe responsável pela elaboração do trabalho “CNPq 45 anos”. CNPq/SUP, dez 1996. (nãopublicado).

OS SÍMBOLOS DO CNPq E SUA CONSTRUÇÃO IMAGINÁRIA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 123-136, NOVEMBRO 2009 135

Érico Veríssimo, Walmir Ayala, Maria Dinorah,Lúcia Pimentel Góes e outros. Cláudia resideem São Paulo e sobre a concepção do símbolodo CNPq ela me relatou:

[...] penso que, a criação do logotipo doCNPq, tenha sido mais simples do que vocêimagina. Não tenho boa memória e,sinceramente, não guardei nenhuma referênciadesse trabalho que, deve ter ocorrido no finaldos anos 70. O desenho foi sim umaencomenda do Dr.Roberto Muylaert e a idéiade ciência e tecnologia já estava vinculada àpesquisa. A solução de “ uma cabeçapensante” com um pólo central que sedifunde em outras cabeças e se desdobraem ondas me pareceu uma solução figurativasimples, de fácil percepção, e deentendimento imediato.[...] A inteligência, a concentração, as ondasdo pensamento, a repercussão do saber.Uma idéia simples, de fácil compreensão,apoiada numa solução gráfica sóbria,harmônica e eficiente, acredito que tenhammantido o logotipo do CNPq intacto até hoje.(Cláudia Scatamacchia, 2008).

A eficácia da criação é ressaltada porRoberto Muylaert (2008) 4:

Em relação à concepção do logo, a Claudiadeve ter falado que nós saímos da idéia dainteligência que emana da cabeça de umhomem. Foi ela que desenvolveu o desenhoque foi aprovado pelo Dion, com quemtínhamos maior contato na época. Eu nãotinha maior ligação com tecnologia, a nãoser nas revistas especializadas que sempreeditei, seja na Abril, seja na minha própriaeditora, indiretamente ligadas aoassunto. Mas eu acompanhava o trabalhodo Dion, sempre criativo e inteligente, noslugares por onde passou. O fato de ologotipo ter se mantido inalteradomostra que a Claudia fez um trabalhoadequado.

Assim, através da pesquisa documental eda história oral foi possível reconstruir ahistória da criação do símbolo do CNPq, atéentão desconhecida, que ora se incorpora àhistória da própria instituição, tendo por baseo estudo das imagens e o contexto históricoda época de sua criação. As análisespermitiram a compreensão das dimensõesideológicas vinculadas à criação do Órgãobem como o fortalecimento dos grupos quese procurava promover.

Conclusão

A pesquisa apresentada partiu dopressuposto de que a imagem é ineuxarível,uma vez ser fonte de reinterpretaçõespermanentes reconstruídas pelo olhar dequem a lê, atribuindo-lhe novos valores esignificados no decorrer do tempo. Noentanto, ao empreender a análise de imagenstomadas como símbolos constatei que ossignificados a elas atribuídos são advindos dediscursos orais e escritos, previamenteexistentes.

Os símbolos do CNPq, enquantoconstructos produzidos por alguns indivíduosapresentam significados previamenteinduzidos pelos discursos dos governantes,que no período dos governos militares,consideraram a ciência e a tecnologia comoforças propulsoras do progresso e condiçãopara o desenvolvimento nacional.

A vinculação da sigla ao desenho,perfazendo o símbolo atual da instituição,dificulta uma leitura livre, descomprometida,pois ela está ali sinalizando suaparticularidade, reivindicando um

4 Publisher, editor, e fundador da RMC Editora de São Paulo que publica a revista Varig; é vice-presidente da ANER. Presidiu a TVCultura por 9 anos e foi ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social da presidência da República, no primeiro mandatode FHC. Começou sua carreira na Editora Abril onde lançou a revista Exame. Foi publisher da Veja, editor da revista Visão epresidente da Fundação Bienal de São Paulo, em 1985. Publicou vários livros, entre eles: Barbosa, A História do Goleiro da Copade 50 no Brasil; China, Chá e Cheng e recentemente lançou o romance histórico: Alarm!

NANCY A. CAMPOS MUNIZ

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 123-136, NOVEMBRO 2009136

conhecimento específico para a sua leitura.Trata-se de um constructo, resultante darepresentação de poucos indivíduos, que passaa se relacionar com um grande grupo deindivíduos refletindo aspirações, ideais, utopias,produzindo sentimentos de pertença, enfim,produzindo identidade. No caso das imagensde símbolos institucionais os significadosatribuídos a elas são dados previamenteatravés dos discursos orais e escritos.

Na primeira imagem analisadapercebemos a ausência de uma definiçãoquanto a sua coloração, tamanho, localizaçãono documento (ora na capa, ora nacontracapa) enfim, quanto ao seu estatutoinstitucional. Na segunda imagem, que setornou o símbolo do CNPq, constatamos queela já nasce pronta, definida. O símbolo doCNPq é criado para significar e representar asua missão institucional, determinada pelosdiscursos governamentais, transformados emleis e decretos, uma vez que somente odiscurso tem a faculdade de conferir valor,dar sentido, fazer significar. E neste caso, aimagem passa a simbolizar, segundo a forçapolítica e social de seu discurso fundador, commaior representatividade para os gruposdotados de características específicas,relacionadas com a missão da instituição, ouseja, aqueles vinculados às atividades de C&T.

A construção de um dispositivo analíticofundado em abordagens teóricas emetodológicas complementares, naperspectiva da história cultural, meproporcionou o aporte necessário para afundamentação das análises, em parte, aquiapresentadas, e a reconstrução histórica de

fatos não documentados, principalmente noque respeita a concepção e autoria artísticada imagem que se transformou no símbolode uma grande instituição nacional, o CNPq.Nesse sentido, espero que os resultados dapesquisa venham a contribuirsubstancialmente para a reconstruçãohistórica da trajetória do CNPq, numaperspectiva mais ampla, para além da históriaoficial, onde as vozes daqueles que delaparticiparam em algum momento possam serouvidas e consideradas democraticamente,enquanto ecos de memórias vivas de umpassado em permanente atualização.

Referências Bibliográficas

CONSELHO NACIONAL DEDESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO ETECNOLÓGICO (CNPq). Série Histórica dosRelatórios de Atividades do CNPq (1952-1985).Rio de Janeiro/Brasíllia: CNPq. Biblioteca doCNPq Lygia Portocarrero.

ANTONACCI, M. A. A vitória da razão: o Idort ea sociedade paulista. São Paulo:Marco Zero,1993.

MANNHEIM, K. Liberdade, poder e planificaçãodemocrática. São Paulo: Mestre Jou, 1972.

MOTTA, F. C. P. O que é burocracia. São Paulo:Brasiliense, 1994.

CHAUÍ, M. Cultura e democracia. São Paulo:Moderna, 1981.

CASTELLO BRANCO, H.A. Discursos. Brasília:Imprensa Nacional, 1964.

COMBLIN, J. A Ideologia da segurança nacional:o poder militar na América Latina. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1980.

CNPq: Origens e perspectivas. SEPLAN/CNPq,Brasília: CED, 1984.

A IMAGEM DE ou)rano&v E O PROVIDENCIALISMO MORALIZANTE: PLATÔNICOS, ESTÓICOS E EPICÚREOS ...

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 137-152, NOVEMBRO 2009 137

Recebido em: 24/05/2009 Aprovado em: 25/08/2009

A imagem de ou)rano&vou)rano&vou)rano&vou)rano&vou)rano&v e o providencialismomoralizante: platônicos, estóicos e epicúreos

no último terço do século IV

Rafael Virgílio de Carvalho

Mestrando em História pela Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho (UNESP / Assis).Professor do Serviço Social da Industria. Autor de, entre outros textos, “A crise da pólis, migrações desaberes e a transformação do ethos político no jardim”. In: ROSSI, Andréa L. D. O. C.. (Org.).Migrações e Imigrações entre Saberes, Culturas e Religiões no Mundo Antigo e Medieval. Assis: FCL -Assis - UNESP - Publicações, 2009.

RESUMO

Na Grécia Antiga a imagem do céu era objeto de devoção. Dessa forma, sua representaçãoera valorizada pelos vários campos da sociedade, entre eles o filosófico. Em fins do século IV,a partir do impulso platônico, estóicos e epicuristas discutem sua representação. Aquilo queestava em pauta e que vai esclarecer o interesse de todos pela imagem celeste é a questão doprovidencialismo.

PALAVRAS-CHAVE: imagem; representação; providencialismo.

ABSTRACT

In Old Greece the image of the sky was devotion object. Like this, his representation wasvalued by the several fields of the society, among them the philosophical. In the end of thecentury IV, starting from the platonic pulse, stoics and epicuriens discuss his representation.That was on the staff and that will explain the interest of all for the celestial image it is thesubject of the providencialism.

KEYWORDS: image; representation; providencialism.

RAFAEL VIRGÍLIO DE CARVALHO

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 137-152, NOVEMBRO 2009138

A imagem de ou)rano&v e o providencialismo moralizante:platônicos, estóicos e epicúreos noúltimo terço do século IV

O poder da imagem e seu “efeito-

representação”

Desde os primórdios da história a imagemse mostra atraente ao homem. Semelhanteao reflexo de Narciso, hipnotiza aquele quelhe está sujeito e cuja visão pode instaurar asmais diversas paixões no espírito humano. Hámilênios que a usamos por incontáveismotivos de acordo com as condiçõesexistentes. Todos sabiam que fora Praxiteles(390-330 a.C.) que construíra a “Afrodite deCnido”, contudo, foi o valor sagradodepositado naquele mármore esculpido quepermitiu ao povo de Cnido fundar seusantuário. Conta a lenda que quandoPraxiteles talhou a imagem da deusa nua e aenviou posteriormente a Cós, seus cidadãosnão a aceitaram. Todavia, mais tarde o povode Cnido, que cultuava a deusa em seuaspecto erotizado, a comprou. Para essesgregos era necessário mais que uma imagempara sacralizar um espaço, era preciso umacrença.

Por toda história vemos a imagem sersímbolo de poder. No entanto, pensando nalenda acima citada, será que a crença naimagem de Afrodite não era, na verdade, o“crer de certo modo”? Ou será que era aprópria materialidade da crença que fundavaa fé? Paul Veyne faz a negação desta para sejuntar àquela ao falar que “o objeto não ésenão o correlato da prática, não existe antesdela”. O autor menciona que o próprioconceito de ideologia, como tentativa de

intelecção que leva a “idealizar” as práticassob o pretexto de descrevê-las, ajuda aesclarecer como a imagem, enquanto objetonatural, é reificada, ganhando uma ilusóriavida própria (VEYNE, 1998, p.250 e 251).

Na mesma direção caminha boa parte dotrabalho de outro historiador. Em substituiçãoao conceito de “objeto natural”, de Veyne,Roger Chartier adota e desenvolve a idéia derepresentação social. Para ele, seguindo suaconcepção de História Cultural, o mundosocial é construído por classificações, divisõese delimitações que orientam a apreensão darealidade como categorias de percepção eapreciação (CHARTIER, 1988, p.17). Sãoas representações que permitem aorganização das práticas que estruturam osdiversos espaços sociais a partir das relaçõesdistintivas efetuadas por seus agentes. O“conceito de representação”, dessa forma,“conduz a pensar o mundo social ou oexercício do poder segundo um modelorelacional” (CHARTIER, 1994, p.416-417), ou seja, onde os campos designificados classificatórios, que levam àsdivisões e delimitações da sociedade, sãoconfrontados com espaços vizinhos demodo a possibilitar a emersão dos sentidossociais ou esclarecer as estratégias dosagentes que manuseiam tais significados.

Em seu artigo, Pouvoir et limites de la

représentation, Chartier discorre sobre “opoder da imagem”. Como qualquer signo, aimagem não tem existência por ela mesma.Entre aquilo que pode ser dito, enunciado, e

A IMAGEM DE ou)rano&v E O PROVIDENCIALISMO MORALIZANTE: PLATÔNICOS, ESTÓICOS E EPICÚREOS ...

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 137-152, NOVEMBRO 2009 139

aquilo que é visto há uma necessáriacorrespondência. Comentando Louis Marin,o historiador fala que entre o visível e o textualrealiza-se um lapso que deixa a imagemestranha à lógica da produção do discurso(CHARTIER, 1994, p.408). Todarepresentação é construída, contudo, quandoesta está sedimentada sob um signoimagético, ou icônico, suas propriedadesquase sempre escondem seu modo deconstrução. O ícone é um signo que se fazpresente, sua relação com o objeto dereferência se estabelece no nível da aparênciae, levando em conta apenas os aspectossociais do signo, é a isso que se deve o efeitode representação da imagem (SANTAELLA,2005, p.18).

O chamado “efeito-representação” quea imagem exerce acontece em uma dupladireção, da “presentificação da ausência” eda “auto-representação que informa o sujeitodo olhar” (CHARTIER, 1994, p.408). Namedida em que a imagem tem a capacidadede tornar presente os diversos elementosrepresentativos de uma coisa qualquer, pelofato dos vários enunciados de um discursoperpassarem sua simples materialidade, essemesmo signo também executa o poder deinstituir afetos e sentidos nos sujeitos que aobservam. Ao mesmo tempo em que arepresentação em sua complexidade designificados e significantes se faz presente, elaconstrange os sujeitos de modo a orientá-losnas suas percepções e apreciações do mundosocial e da própria imagem. O ícone é ainstrumentalização da força que em suaduplicidade se torna o meio de exercer umapotência e funda o próprio poder 1. A isso se

liga a análise da imagem da esfera celestegrega na Era Pós-Alexandrina.

O espaço de representação de ou)rano&v

na cultura grega

O céu (ou)rano&v), na Grécia, estava nocume da genealogia divina. Desde seusprimórdios esse elemento da natureza éobservado com espanto e devoção. EmHomero já se observa uma cultura repleta deprecauções astronômicas. Françoise Bader(2003, p.97-150) analisando os vestígiosencontrados por todo o episódio do funeralde Pátroclo do poema Ilíada, atesta que háindícios que demonstram uma forte influênciada astronomia mesopotâmica já na GréciaArcaica. A criptografia desvelada desseepisódio levou a compreensão daapropriação feita por Homero da astronomiababilônica e sumeriana. Através de análisescomparativas entre os conhecimentosastronômicos existentes nestas regiões e asinterpretações dos enunciados de algunstrechos do poema de Homero, percebeu-sedescrições de proto-agrupamentos estrelares,alguns deles zodiacais e que tradicionalmentesempre foram importantes para a culturagrega, de modo que é possível afirmar, emcerta medida, uma rica e técnica astronomiagrega no período arcaico.

Havia muito, a astronomia fora enraizadana cultura grega. Outra evidência que temossobre isso é aquela concernente à figura deÓrion na mitologia. Também em Homero, naIlíada 2 e Odisséia 3, vemos a menção de umÓrion heróico e cuja moral lhe valeu aelevação junto aos astros 4. Jean-Michel

1 “[…] o poder simbólico não reside nos sistemas simbólicos em forma de uma illocutionary force mas que se define numa relaçãodeterminada — e por meio desta — entre os que exercem o poder e os que lhe estão sujeitos” (BOURDIEU, 1989, p. 14).

2 Parte 18, versos 483-489 e 22, versos 25-32.3 Parte 5, versos 121-124 e 271-275; parte 11, versos 309-310 e 572-575.4 Vemos também o registro da constelação de Órion em Os trabalhos e os dias de Hesíodo (versos 597-599, 609-611 e 614-621).

RAFAEL VIRGÍLIO DE CARVALHO

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 137-152, NOVEMBRO 2009140

Renaud (2003, p. 150-168) conta qual foi ocaminho dessa trajetória. Segundo ohistoriador, os mitos que envolvem a figurade Órion caminharam na contramão deoutros mitos ligados às constelações, pois sãoposteriores à origem e uso de seu signo pelosgregos. Os textos ligados ao mito de Órionsão dos mais tardios que se tem notícia(RENAUD, 2003, p.159) e sua antiguidaderemete mesmo a um período anterior aoArcaico, já que a morfologia de seu nome( 0Wri&wn ou 0Wari&wn) remonta à pré-históriada língua grega (RENAUD, 2003, p.166).Portanto, o desenvolvimento do sabermitológico sobre Órion é posterior aoconhecimento e uso de sua constelação peloshomens, já que a relação entre o homem, estesigno e o meio natural é anterior às estóriasdo personagem mitológico.

A cultura grega de modo geral, desderemota época havia incorporado edisseminado inúmeros significados àrepresentação da esfera celeste. Não foiHomero que motivou o uso das estrelas esignos meteorológicos na Grécia, mas ospróprios sujeitos que pelo uso feito desserecurso – como a periodização das estaçõese sua relação com o trabalho no campo –difundiram as mais variadas significações porentre toda a civilização grega, todas as quaiscontribuíram para a produção derepresentações do céu helênico e de seusdiversos elementos.

Foi com os ditos pré-socráticos –principalmente com a escola de Pitágoras(570-496 a.C.) – que a astronomia penetrouno espaço filosófico. Em busca doentendimento sobre a origem do cosmoatravés de um novo método que não era maiso mitológico, esses filósofos trouxeram parao plano do filosófico, questionamentos e

teorias referentes aos saberes qualificadoscomo astronômicos. A partir daí, muitasescolas filosóficas disputariam o status deverdade em relação a esses objetos.

Nos períodos socrático e, principalmente,pós-socrático foi que a astronomia ganhounovo pulso. Eminentes filósofos comoDemócrito de Abdera5 (460-370 a.C), Platão(428-347 a.C.) e Eudoxo de Cnido (390-338a.C.) foram responsáveis, em diferentesvertentes, por ampliar os setores em que osconhecimentos referentes à astronomiafincavam seus conceitos. Digno de nota é queem todas essas escolas, no que tange aosconhecimentos astronômicos, percebem-seinfluências mesopotâmica, caldéia e egípcia,notabilizando, inclusive, que esses trêsfilósofos mesmo se distinguindo em seuspensamentos – respectivamente, um eramaterialista, o outro idealista e o seguintehedonista – comungaram em algummomento de suas vidas a doutrina pitagórica.Foi a partir dessas principais escolas que aastronomia ganhou força na Grécia.

Na segunda metade do século IV, quandoAristóteles (384-322 a.C.) estava no augede sua maturidade intelectual, vemosaparecer duas de suas obras chamadas Sobre

o Céu e Meteorológicos. Costuma-se colocara segunda como complemento da primeira,pois Aristóteles, respectivamente, procurouconstruir sua cosmologia homocêntricadesenhando a estrutura do universo cujovértice é a Terra e analisou aquilo que elechamou de fenômenos sublunares. Ameteorologia era entendida por Aristótelesem um sentido mais amplo do que aqueleque a entendemos hoje e é sobre esse sensoque Christophe Cusset (2003, p. 7-10) serefere quando fala em fronteiras incertasentre meteorologia, astronomia e uma

5 Sobre o envolvimento de Demócrito com a astronomia ver, LAËRCE, 1965.

A IMAGEM DE ou)rano&v E O PROVIDENCIALISMO MORALIZANTE: PLATÔNICOS, ESTÓICOS E EPICÚREOS ...

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 137-152, NOVEMBRO 2009 141

terceira classificação moderna para essaespécie de saber, a astrologia (2003, p.08).Em seu intento, a ciência da natureza,Aristóteles percorre da esfera celeste aosfenômenos que a acompanham, desde omovimento dos astros e aparição de cometasaté o soprar dos ventos e origem do arco-íris,os quais na Antigüidade grega estavamvinculados a um mesmo plano doconhecimento. Com a compreensão maislarga daquilo que poderíamos chamar, porfalta de uma melhor conceituação moderna,de “astronomia-meteorologia” 6 (sendo quea astrologia se situava no limite do campofilosófico, mais próximo ao setor popular),podemos vincular às influências sobre ocampo filosófico aquela escola mais antigados físicos milésios. Tales (625-556 a.C.),Anaximandro (610-546 a.C.) e Anaxímenes(585-528 a.C.) se lançaram, já no século VII,à edificação dos fundamentos de uma ciênciameteorológica, cuja preocupação era tanto ade explicar seus fenômenos, como a deestudar as relações entre o homem e seu meio(CUSSET, 2003, p.07-08).

Ao contrário àquela investigaçãominuciosa realizada por Françoise Bader,citada mais acima, vemos explicitamente nasepopéias de Homero e Hesíodo episódioscontendo observações de fenômenosmeteorológicos, porém, sempre com finsvatídicos. Mesmo antes do Arcaico, como ocaso de Órion demonstrou, os gregosmantinham precauções com prognósticosobtidos através da averiguação de signosnaturais que preenchiam o céu. Porconseguinte, mais próxima à meteorologia –

que na Antigüidade levava em consideração,inclusive, o comportamento dos animais –estava esse gênero de ciência divinatória danatureza, mais conhecida por nós como“astrologia natural”, e que tinha aincumbência de prever e anunciar asmudanças das estações, as chuvas, os ventos,o frio, o calor, entre outros fenômenos dessaqualidade. Entretanto, é difícil descrever otrajeto exato pelo qual caminhou esse setordo conhecimento antigo, mas muitoprovavelmente essa astrologia natural que,sob o influxo de elementos orientais caldeuse mesopotâmicos, transformou-se em outraespécie designada como “astrologiajudiciária”7. Esta, em essência maisindividualista, submete os homens ao poderdos astros. Diferentemente da astrologianatural, a astrologia judiciária acabouformando sistemas de pensamentoselaborados a partir de influências filosóficase mitológicas e que, por afinidade ao espíritoreligioso popular, sempre muito supersticioso,acabou se disseminando por entre a massada população grega (BAILLY, 1801, p. 268).Portanto, foi assim que, no período helenístico,principalmente a partir do século III, o segundotipo de astrologia ganhou vulto. Na ascendênciadaquilo a que chamamos astrologia,encontramos os poemas de Homero e Hesíodoque possibilitaram a formação de umaaustera paidéia grega que, sob a afluênciados saberes caldeus e mesopotâmicos sobrea influência dos astros e dos fenômenoscelestes na vida dos homens, preencheu oespírito da população com preocupaçõesreferentes às vontades dos deuses.

6 O signo que normalmente designava tal conceito e que mais aparecia por entre o meio filosófico era mete&wra, o qual faziareferência aos “fenômenos ou corpos celeste”, e que remetia ao adjetivo mete&oroj (tudo aquilo que estaria no ar). Ver: CASEVITZ,2003. p. 27-34.

7 Os termos “astrologia natural” e “astrologia judiciária” usados por Bailly em 1801, podem ser substituídos por aqueles usados porHervé Drévillon – respectivamente, “astrologia natural” e “astrologia sobrenatural” (Lire et écrire l’avenir: l’astrologie dans laFrance du Grand Siècle, 1610-1715. Seyssel : Champ Vallon, 1996, 282p.).

RAFAEL VIRGÍLIO DE CARVALHO

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 137-152, NOVEMBRO 2009142

Entretanto, por outro lado, observamos apartir do nascimento da filosofia, com osmilésios, uma crescente inquietação sobre asobservações meteorológicas que exibia afinalidade de elaborar técnicas favoráveis aostrabalhos dos homens no campo e no mar.Foi assim que houve um desenvolvimento dastécnicas de navegação e dos calendáriossazonais, este chamado por Germaine Aujac(2003,p. 13-26) por seu conceito francês,parapegme 8. Possivelmente, foi a adjunçãode elementos apropriados junto aos milésios,somados àqueles dos pitagóricos, que asescolas filosóficas do período socrático e pós-socrático estruturaram seus saberes a esserespeito.

A difusão dos conhecimentosastronômicos por todo o território gregoconfeccionou as mais diversas representaçõesnão só do céu, mas de inúmeros elementosque compunham sua imagem. Tão vastagama de representações, construídas sob oinfluxo de normatizações culturais divididas eorganizadas em espaços dentro da sociedade,acabou por se precipitar nos mais diversos usosfeitos pelos agentes e, assim, estruturoualguns setores do mundo social.

A noção de “representação coletiva”,representação confeccionada por indivíduosque tendem a uma certa e mesma identidade,permite articular, como diz Roger Chartier(1989, p. 1513-1514), três modalidades derelação com o mundo social:

[…] de início, o trabalho de classificação ede recorte que produz configuraçõesintelectuais múltiplas pelas quais a realidadeé contraditoriamente construída pelosdiferentes grupos que compõem umasociedade; em seguida, as práticas que visama fazer reconhecer uma identidade social, aexibir uma maneira própria de ser no mundo,

a significar simbolicamente um estatuto e umaposição; enfim, as formas institucionalizadase objetivadas em virtude das quais‘representantes’ (instâncias coletivas ouindivíduos singulares) marcam de modovisível e perpétuo a existência do grupo, dacomunidade ou da classe

Quando se pensa em qualquer espéciede representação (sua “configuraçãointelectual”) em uma cultura qualquer, comoo da esfera celeste na Grécia Antiga, na qualesses significados foram trabalhados emdiferentes e inúmeros campos, determinar operíodo e a localidade onde foramtrabalhados e, principalmente, por quemforam trabalhados se mostra tarefaimprescindível para que seja possível obteruma análise social da imagem visando umsentido que a esclareça. Contudo, para quese alcance tal sentido é necessário adentraràs “práticas” que permitem reconheceraspectos de dada identidade social afirmada,além de reconstruir as “formas” pelas quaisos indivíduos firmam sua existência perante orestante do mundo. Assim, para uma análiseda representação da esfera celeste grega,entre fins do século IV e começo do III, éindispensável tratar das relações significativasentre os discursos daqueles campos que aconfeccionaram e desenredar as formas deinculcação das convenções representativaspelas quais os sujeitos praticavam suamaneira de enxergar e apreciar a realidade.

Por conseguinte, Chartier prossegue emseu argumento:

Uma dupla via abre-se assim: uma que pensaa construção das identidades sociais comoresultando sempre de uma relação de forçaentre as representações impostas pelos quedetêm o poder de classificar e de nomear e adefinição, de aceitação ou de resistência, que

8 Aujac cita parapegmes por entre meados do V e IV séculos a.C., destes, alguns autores são Demócrito de Abdera, Euctémon oatenience (viveu por volta da primeira metade do século V) e Eudoxo de Cnido.

A IMAGEM DE ou)rano&v E O PROVIDENCIALISMO MORALIZANTE: PLATÔNICOS, ESTÓICOS E EPICÚREOS ...

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 137-152, NOVEMBRO 2009 143

cada comunidade produz de si mesma; outraque considera o recorte social objetivadocomo a tradução do crédito conferido àrepresentação que cada grupo dá de simesmo, logo a sua capacidade de fazerreconhecer sua existência a partir de umademonstração de unidade (1989, p. 1514).

São os discursos proferidos e colocadosperante outros que encarnam as relações deforça citadas mais acima. Entretanto, quandorecorremos à pesquisa historiográfica,principalmente quanto mais recuamos notempo, tais discursos são reduzidos em suasséries e ficam restritas a documentos quedemonstram, quando muito, apenas vestígiosde suas relações específicas. Diante disso, ohistoriador precisa dispor de tempo e de largoconhecimento intertextual sobre as condiçõesque possibilitam a realização das relações depoder para que consiga atingiresclarecimentos satisfatórios. Para recomporas relações específicas e ampliar os horizontesde entendimento do historiador é precisosituar os documentos no interior de seucampo de produção e posicioná-los peranteoutros tantos que rivalizam com ele o poderde atribuir significado a algum objeto. É nessesentido que a análise da esfera celeste gregaganha maiores delimitações em seu recorte.

A moral socrática e Platão: um interlúdio

O período socrático, caracterizado pelainfluência do filósofo Sócrates (470-399 a.C.)sobre a filosofia grega, é considerado ummarco para o pensamento grego de formageral. Este ateniense viveu em uma época degrande prestígio político de sua cidade,prestígio que trouxe consigo a corruptibilidadeà conduta de alguns, dos quais muitos tinhamenorme influência no governo da polis. Temos

a imagem de um Sócrates engajado nacontenda contra os sofistas, contudo, talcrítica, na verdade, possuía um arcabouçomuito mais complexo e denunciava ocrescente individualismo de boa partedaqueles homens da apoteótica e muitasvezes conturbada Atenas.

Grosso modo, o pensamento de Sócratestrouxe um moralismo que imbuiu à juventudede então e que não mais deixaria de inquietaros espíritos racionais da Grécia. Um dos maisfiéis discípulos do “sábio que nada sabia”,Platão, aderiu quase que completamente amoral de seu mestre. Incorporando ateleologia socrática, usou-a em seuengajamento político e na construção de suacidade ideal. Quando averiguamos acomposição do pensamento platônico,interpondo-o perante suas intenções políticascomo demonstra as cartas a Dion de Siracusae aos parentes e amigos deste, em meadosdo século IV, conseguimos compreendercomo se realizou tal incorporação 9.

Platão, pela longa linhagem de políticosda qual descendia, não poderia ter tido outroobjetivo em sua vida que o de transformar avida da polis de seu tempo. Sabemos algumastentativas que sua escola, a Academia,experienciou através de seus discípulos e porele mesmo (como o caso da Sicília). Contudo,tal missão tinha uma base moral quefundamentava o comportamento platônico ede todos aqueles que residissem em suautópica cidade.

A moral socrática, cuja ética era orientadapelos dai&monev de cada indivíduo, era umaintrospecção do sujeito sobre sua própriapotencialidade. A máxima délfica inúmerasvezes levantada por Sócrates – “conhecer-tea si mesmo” – era a indicação oracular que o

9 Nestas cartas Platão expõe muitas de suas intenções políticas.

RAFAEL VIRGÍLIO DE CARVALHO

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 137-152, NOVEMBRO 2009144

filósofo vivia para cumprir e ajudar os outrosa realizarem. Auxiliado por sua maiêutica, nãosó ajudava a juventude a parir idéias, masbuscava a purificação de toda uma sociedadea partir da transcendência em direção à Idéiade Bem. No entanto, mesmo sendo ofundamento da moral socrática, o filósofo nãoconseguiu descrever o que tal idéia seria.Porém, vemos essa noção traduzir umcomplexo de conceitos que alicerçavam aética pregada por Sócrates, a qual ele morreudefendendo. Viver para cumprir a vontadedivina por meio da orientação daimoníaca eda dialética (maiêutica) nos apresentada porPlatão, essa era a máxima comportamentalsegundo Sócrates.

Os dai&monev eram seres da idade de ourogrega, os quais pela “sabedoria einteligência” (dah&monev) que possuíamtinham a incumbência de serem osintermediários entre a divindade e ahumanidade (PLATON, Cratyle, 397e-398d).Através da dah&monev que exprimiam, essesseres seriam responsáveis pela boa condutados indivíduos. Toda pessoa teria acapacidade inata de se relacionar com talgênio cuja característica sempre benéficaexprimiria a própria sabedoria (sofi&a).Portanto, a boa conduta era a realizaçãodessa voz interior daimoníaca.

No entanto, conforme a dualidadeplatônica “espírito-matéria” ou ousiav-pa&qov, a realização da vontade divina, cujaorientação primeira está ancorada naessência dos sujeitos e aponta sempre emdireção ao Bem, enfrenta um problema queé a ancoragem do homem no mundosensível, mundo corruptível e nebuloso àrazão. A idéia de Bem está no ápice do mundointeligível, no plano das puras idéias. Dessaforma, a importância da dialética na moral

socrática, na medida em que o impulso emdireção ao Bem encontra entraves no mundomaterial, estava em seu uso como meio depurificação, ou de alcançar a virtude, dossujeitos filósofos ante a existência para sechegar às verdades universais inteligíveis,as quais seriam os critérios daquilo queconstituiria o “deves fazer” socrático. Nissoconsistiria o exercício da justiça e é a issoque se poderia chamar de ética do comandodivino 10.

Juntamente com essa ética, Sócrates, noúltimo ato de sua Apologia e de maneira nãomuito convicta, demonstra uma intuição quesossegava sua alma. Em direção aos seuscondenadores fala sobre o destino que oaguarda com a efetivação de sua pena demorte, destino bem-aventurado junto aosvirtuosos e injustiçados da Terra. Daquelescujo merecimento estava em seguir a voz daalma que realizava a vontade divina. Mesmavontade que o retribuiria pelos anos quepassou a questionar os homens sobre seusmaus comportamentos e opiniõesequivocadas. Como vemos no trecho que sesegue:

Se, ao chegar ao Hades, livre dessas pessoasque se intitulam juízes, a gente vai encontraros verdadeiros juízes que, segundo consta, ládistribuem a justiça, [...]Vós também juízes deveis esperar da mortee considerar particularmente esta verdade:não há, para o homem bom, mal algum, querna vida, quer na morte, e os deuses nãodescuidam de seu destino. O meu não éconseqüência do acaso; vejo claramente queera melhor para mim morrer agora e ficarlivre de fadigas.[...]Bem, é chegada a hora de partirmos, eu paraa morte, vós para a vida. Quem segue melhordestino, se eu, se vós, é segredo para todos,exceto para a divindade (PLATÃO, Apologiade Sócrates, 41-42).

10 Para uma melhor compreensão ver, GOMES-LOBO, 1996, p. 57-70.

A IMAGEM DE ou)rano&v E O PROVIDENCIALISMO MORALIZANTE: PLATÔNICOS, ESTÓICOS E EPICÚREOS ...

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 137-152, NOVEMBRO 2009 145

São esses elementos – a ética da vontadee do julgamento divino – que Platãoincorporou a seu pensamento até o pontoonde quase não se podia mais conceber emqual lugar terminava a moral socrática ecomeçava a platônica. Entretanto, o trabalhode interpretação platônica não aconteceu demaneira simplista. A chave para esseentendimento está no livro X de As Leis 11 eem seu “apêndice”, o Epinomis. Aí seencontra a forma pela qual Platão pretendiausar a imagem do céu de modo a permitirque seus alunos realizassem suas práticascontemplativas.

Ou)rano&v e a moral platônica: uma relação

de apropriação

A harmonia das esferas apresentada porPitágoras, que conta como o cosmo é regidopor relações matemáticas que dissimulam aordem que domina o universo, encantouPlatão. Foi a partir do olhar platônico emdireção ao alto, e mais além, que um novoespaço para a observação astronômicaproporcionou novas perspectivas para aconstrução de novas representaçõescelestiais.

Em sua grande obra, As Leis Platãoorganiza a polis a partir de um quadroterritorial geométrico, como fizera Clístenes.Todavia, de modo contrário ao que fez este,orienta um novo espaço hierarquizado ondea cidade apareceria dividida e regrada porum princípio divino (GONÇALVES, 2005, p.62). Destarte, o ponto culminante nessesentido é explicitado por Andréia Santana daCosta Gonçalves, mestre em filosofia pelaPUC do Rio de Janeiro, que menciona que oespaço político construído por Platão eracentralizado na acrópole e não mais a partir

da ágora. Isso quer dizer que a polis não seorganizaria mais tendo em vista o humano,mas sim o divino. A cidade platônica, dessaforma, edificando-se ao redor de um espaçosagrado estaria religando o aspecto humanoà divindade, organizando seus sujeitos einstituições “segundo um esquema circularque reflete a ordem celeste” (GONÇALVES,2005, p.63).

A preocupação em refletir a ordemceleste que a tudo ordena no universo fezPlatão usar a imagem do céu comoinstrumento de fundamental importânciapara o constrangimento moral dos indivíduos,moldando assim os cidadãos à sua teleologia.

O décimo livro de As Leis contudo, é oponto crucial da apropriação da esfera celestepela escola platônica. Lá, Platão começa ameditar sobre a evidência da existência ounão dos deuses. Parte, então, daconstatação da existência da alma. Por serdotada de potência, a alma figuraria comoelemento capaz de proporcionar omovimento primeiro de um objeto, seja esteo próprio corpo ou qualquer outra matériasegunda. Todo corpo que se move, se nãomovido por um corpo primeiro, é dotado dealma. Portanto, a “alma impulsiona todas ascoisas no céu, na Terra e no mar por meio deseus próprios movimentos” (PLATÃO, p.415). Entrementes, as almas podem terduas naturezas: a benevolente e a oposta(PLATÃO, p. 414), dentre as primeiras,existem aquelas que se elevam acima dasoutras quanto mais próximas se encontramdo Bem, que se confunde com a pura razão.Como se segue:

[...] todo o curso e movimento do céu e tudoque ele contém, detêm um movimentosemelhante ao movimento, à revolução e aosraciocínios do intelecto e se procedermos de

11 PLATÃO, 1999, 543 p.

RAFAEL VIRGÍLIO DE CARVALHO

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 137-152, NOVEMBRO 2009146

maneira idêntica, claramente teremos queafirmar que a melhor alma governa atotalidade do universo e o conduz em seucurso, que é o do tipo descrito [e perfeitocomo ela] (PLATÃO, As Leis, p. 415).

Não obstante, Platão questionando quala natureza do movimento da razão erespondendo que é a circular, concluiafirmando que tendo em vista acircunferência do céu, a revolução circular dosastros só poderia ser impulsionada pela forçada melhor alma (PLATÃO, p. 417) e a respeitodos corpos celestes diz que suas almas sãodivinas, pois, organizam todo o céu (PLATÃO,As Leis, p. 418).

Mais adiante, os interlocutores platônicos,investigando, mencionam que tudo estárepleto de deuses e certificando-se que osdeuses se interessam sim pelos assuntoshumanos – já que “todas as criaturas mortaissão propriedades dos deuses, aos quaispertence também o céu inteiro” (PLATÃO, As

Leis, p. 423) – assentam que “os deuses tudosabem, tudo ouvem e tudo vêem e que nadaem tudo que é apreendido pelos sentidos e aciência lhes escapa” (PLATÃO, As Leis, p.421).

Por essa forma, os discursos platônicosconstroem acima das cabeças dos gregosolhos atentos às atitudes humanas. Aregularidade matemática, maisespecificamente geométrica, da esferaceleste é remontada a partir de saberes vindosdas escolas pitagórica e socrática. A divindade,cuja vontade a tudo ordena e lhe dá a justamedida, distribui a sorte a cada homem deacordo com sua afinidade à virtude ou àiniqüidade. Colocando a ênfase cuja modéstiafez faltar a Sócrates, Platão consolida:

[...] todas as coisas estão ordenadassistematicamente por aquele que cuida detudo com o olhar na preservação e excelência

do todo no qual cada parte, na medida desua capacidade, sofre e age o que lhe éapropriado.[...]Todos os seres animados se transformam jáque possuem dentro de si mesmos a causada transformação, e ao se transformarem semovem de acordo com a lei e a ordempredestinada; [...] e quando a transformaçãofor acentuada e inclinada para a iniquidade,os seres se moverão às profundezas e àschamadas regiões inferiores [...] E sempre quea alma obtiver uma parcela grande de virtudeou vício, por efeito de sua vontade e ainfluência, e de familiaridade crescente, seisso ocorrer em uma fusão com a virtudedivina, ela se tornará notavelmente virtuosae se moverá a uma região eminente, sendotransportada por uma senda sagrada a umaoutra região ainda melhor (PLATÃO, As Leis,p. 424 e 426).

Assim, nota-se como a astronomia detendências pitagóricas foi incorporada aoespaço acadêmico a partir de ajustespertinentes à teleologia política de Platão pormeio de um providencialismo moralizante queremete a Sócrates. Conquanto, na segundametade do século IV, quando Platão concluíaseus trabalhos filosóficos A República e As Leis,possivelmente ele, escreveria uma espécie deapêndice desta última obra, Epinomis. Lá ofilósofo desenvolveria ainda mais suas idéiasque utilizavam a imagem do céu por meio daedificação da representação de ou)rano&v

como objeto dotado de vontade divina que atudo ordena de modo onisciente eonipresente, além das práticas que ainteriorizavam baseadas na contemplaçãomatemática.

A conquista filosófica de ou)rano&v: a

imagem do céu e suas representações

A filosofia nunca deixou de lado aabrangência do campo dos mete&orov (objetossuspensos no ar). Entretanto, as escolas

A IMAGEM DE ou)rano&v E O PROVIDENCIALISMO MORALIZANTE: PLATÔNICOS, ESTÓICOS E EPICÚREOS ...

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 137-152, NOVEMBRO 2009 147

filosóficas apenas usufruíam dos seusconceitos ou representações porque lheseram convenientes às suas propostas,deixando de lado muitos outros saberes queorbitavam o campo. Foi este o caso de Platão,que tecendo observações apenas aos astrose suas revoluções, sempre enfatizando amatemática como método, pretendia fazerda imagem do céu uma apresentação dasfiguras dos deuses e do providencialismodivino. Isso presentificava a representação doou)rano&v platônico, do mesmo jeito que oexercício de contemplação descrito pelofilósofo no livro X de As Leis:

[...] o modo mais seguro de contemplar oobjeto que concerne a nossa questão (adivindade) é olhar uma imagem dele(PLATÃO, p. 416).

Ao final do livro VI de A República, ofilósofo, ainda pela voz de Sócrates, explicacomo talvez fosse possível tentar compreendera idéia de Bem a partir da observação daimagem do Sol. Fala que o astro é para oselementos sensíveis o que o Bem é para osinteligíveis. Descrevendo um trajeto que vaidesde o elemento sensível imediato (domíniodas imagens), passando pela formação doconhecimento objetivo e pela abstração dosensível (formação dos objetos matemáticos),até o domínio do inteligível, ou seja, das purasidéias (BENOIT, 1996, p. 76-79), Platãoprocura conduzir seu expectador àtranscendência onde está a divindade,mostrando sua morada e construindo suacrença filosófica que conduzia a uma relaçãoentre o homem e a divindade. Tal relação,por sua vez, era intermediada pela imagemdo céu que, devido às suas característicassígnicas, exercia certos poderes sobre aquelesque comungavam na Academia,constrangendo seus sujeitos e os adequandoà moral estabelecida.

O signo celeste tornava presente arepresentação de ou)rano&v ao mesmo tempoque, pela ação da força desta “presençadivina e providencial”, conformava à maneirade ser platônica o etos de alguns gregos, cujosolhares quando direcionados ao alto osinstruíam com determinados afetos e sentidosque condicionavam seus comportamentos auma vida reta e dedicada à matemática.Entrementes, a imagem do céu na GréciaAntiga não era apenas um instrumento deacúmulo de forças, mas também foco no qualdiferentes forças disputavam o poder deinculcação das representações produzidasdentro de seus espaços discursivos. Disputas que,durante o final do século IV, após a morte dePlatão (ano 347 a.C.), aguçaram as rixas entreduas escolas de Atenas, o Jardim e o Pórtico.

Mesmo durante o período de tormentapolítica pelo qual a Grécia passou após amorte de Alexandre Magno, a conturbadaAtenas não deixou de ser o pólo cultural detodo o mundo helênico. Epicuro de Samos(340-270 a.C.), mestre sereno do Jardim deAtenas, em meio ao caos político, dedicou-sede maneira apolítica a estimular pessoas dequalquer status social a alcançar o estado dea)taraci&a (imperturbabilidade da alma). Suafilosofia materialista muito devia a Demócritoe Leucipo. O filósofo de Samos passara pelasaulas de platônicos e aristotélicos antes deaderir firmemente à doutrina dos átomos(a1tomoi), enquanto Zenão de Cítio (340-264a.C.), pensador também apolítico cujas aulaseram ministradas nos pórticos da cidade deAtenas, após dez anos ouvindo as aulas doplatônico Xenócrates passou a vivenciar arealidade a partir de alguns preceitosacadêmicos. No entanto, contrariandoPlatão, o afastamento da política era marcadaquelas escolas helenísticas queconseguiram sobreviver em meio ao caosperturbador.

RAFAEL VIRGÍLIO DE CARVALHO

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 137-152, NOVEMBRO 2009148

Igualmente em época de efervescênciareligiosa, ambos os filósofos aderiram aposturas teológicas contrárias uma a outra,as quais possuíam práticas balizadoras queacabaram fazendo os traços mais distintos desuas doutrinas. Esses traços, todavia,necessariamente atravessariam os elementosque compunham a noção deprovidencialismo moralizante, como asnoções de vontade divina que a tudo governae a todos compensa. Sendo alvo de críticapelos epicúreos, foi isso principalmente queZenão trouxe da Academia, o qual enxergavaque a origem da justiça estava em Zeus e, damesma forma, tudo viria a ser conforme suavontade (FREDE, 2005, p. 213-214). MichelFrede comenta sobre as relações entre oDemiurgo platônico (Dhmiourgov) e o Deus(Qeo&v) estóico dizendo que a diferença maismarcante entre essas idéias sobre a divindadeera que o primeiro figurava-se como umintelecto transcendente, enquanto o segundocomo um lo&gov (razão) presente na matéria(2005, p. 221-222).

Assim como o epicurismo, o estoicismo deZenão acreditava que a natureza de todas ascoisas era física. Entretanto, enquanto noJardim pregava-se que a matéria primordial eracomposta por partículas indivisíveis, compactase de variadas formas (Epicure, Lettre à Hérodote,42), no Pórtico dizia-se que tudo é um corpo defogo primordial identificado com os intelectosindividuais ou aquele divino inerente à matériainerte (FREGE, 2005, p. 227). Estes doisprincípios materiais o ativo (poioun) e opassivo (pa&sxon) se diferenciavamimensamente daqueles de Epicuro. A almapara os dois filósofos era um yuxh_ swma&

(sopro vital corpóreo), contudo o último a viacomo um leptomere&v (algo divisível formadopor finas partículas).

Era através do questionamento dosfundamentos do ser, como aquele no qual

aparece a discussão sobre a natureza docorpo e da alma, que a problemática doprovidencialismo era colocado em pauta.Semelhante a Platão que, em As Leis, começaanalisar a idéia de alma antes de construirtodo arcabouço conceitual em que a imagemde ou)rano&v repousava, as respectivasrepresentações se articulavam,contrariamente uma da outra, com o signoicônico do céu e acumulavam forçasincorporadas quanto mais conseguissemconvencer adeptos. Desse modo, ofereciammodelos de conduta virtuosa quequalificavam as pessoas com o adjetivo de“sábias”, transformando seus status ante seuspares e fortalecendo a notoriedade da devidaescola. A presença do céu, dessa forma, era oestímulo para tal fato.

O desenvolvimento da cosmologia estóicafoi toda voltada para sua teleologia, isto é, àcaracterização de um universo propulsado poruma razão criadora e ordenadora quepossibilita, mediante a prática do sábiocomportamento, o desenvolvimento dasalmas através da transmigraçãocompensatória às regiões cuja existênciaparece ser cada vez mais perfeita. No entanto,tal teleologia era afirmada pela realização dediversas práticas, entre elas estava acomposição de poemas que tomavam não sóa mitologia, mas principalmente cingiam osmete&oroj como temática. Le Phénomènes, dopoeta e astrônomo Aratos de Soles (315-245a.C.) e o Hymne à Zeus, do segundo escolarcado Pórtico, Cleantes de Assos (330-230 a.C.)são documentos que ilustram bem a questão.

Examinando esses documentos anteaqueles legados pelo Jardim, percebe-se asrelações distintivas que uns mantém com osoutros. Nas cartas enviadas a seus amigos,literalmente em uma ação de difusãodoutrinal que tinha por fim refutar outrasconcepções de realidade, Epicuro critica os

A IMAGEM DE ou)rano&v E O PROVIDENCIALISMO MORALIZANTE: PLATÔNICOS, ESTÓICOS E EPICÚREOS ...

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 137-152, NOVEMBRO 2009 149

pensadores de tendências estóicas quelevavam em consideração os saberes “astro-meteorológicos”. Durante quase toda a leiturados documentos, percebemos a preocupaçãodo filósofo em demonstrar a real naturezafísica dos astros e dos diversos fenômenoscelestes, além de trabalhar conceitos quegiram em torno das questõesprovidencialistas. Não se pode deixar deapontar que a epístola a Pítocles sobre osmete&orov nos leva a imaginar que a intençãode Epicuro era de responder ao poema deAratos. Mesmo porque, muito provavelmente,seus ouvintes Pítocles, Heródoto e Meneceuresidiam em alguma das cidades gregas dolitoral da Ásia Menor onde o Jardim possuíaramificações – como em Cólofon, Mitilene eLampsaco –, regiões onde a “astronomiaprovidencialista” havia já algum tempoalcançado enorme influência.

Outra carta, agora de Zenão destinada aAntígono, dá o testemunho da preocupaçãodeste filósofo em relação à integridade doscostumes helênicos (LAËRCE, VII, 08 e 09),além também de Frege mencionar que ateologia estóica defendia e adotava, de certamaneira, a religião popular (2005, p. 232).De modo contíguo, Richard Goulet (2005, p.93-120) escreve que havia certa vontade dese apropriar da autoridade de Homero eHesíodo – mencionando que mesmo Zenãoe Cleantes escreveram algumas obras sobrepoesia –, pois este plano era peçaincontornável da paideia grega. Continuando,comenta que havia assim um apelo à etiologiados nomes dos deuses ou das figurasmitológicas por parte dos filósofos estóicosno objetivo de resgatar sub-repticiamente umensinamento de natureza física (2005, p. 104,106 e 109).

No poema de Cleantes vemos várioselementos que podemos listar emconsideração à discussão aqui elaborada:

[...] Deus todo poderoso, mestre do céu, [...]ordenador universal, [...] Ao redor de nós,sob teu olhar o firmamento e todos osmundos seguem obedecendo a linha traçadapor sua batida. [...] é ti [...] Que faz tudoviver, e tudo anima, e tudo governa, [...] Almado mundo onipresente, [...] Nada sobre aterra ou nos céus, sem teu querer nada podeser, [...] Deus soberano, é tua justiça, – é paratodos ordem eterna (Hymne à Zeus).

A concordância com as afirmações acimacomeça pelo próprio título, Hino a Zeus. Oshinos, na Grécia Antiga, eram textos feitospara serem recitados durante cerimoniais emhomenagem a determinado deus, semprevoltado para a lógica do mito e estruturadopoeticamente. Analisando a obra de Cleantes,percebem-se vários elementos que sedirecionam ao vértice do providencialismomoralizante – noção que pode ser sintetizadaapenas com o desfecho do poema.Simultaneamente, é mais que essencialenxergar que o sentido geral do poema revelaa alma onipresente do universo sob o signodo céu, de cujo olhar nada escapa e cujavontade é o destino dos mundos. Ou)rano&v,dessa forma, era o grande olho de Deus e oobjeto a cujas devoções eram dirigidas.

Nesse mesmo sentido, vemos o poemade Aratos se apropriar de diversos mitos nodecorrer de sua exposição sobre osfenômenos e prognósticos da esfera celeste.Mais próximo da chamada “astrologianatural”, esta obra vai de encontro com o quefala Goulet sobre o resgate dos ensinamentosa respeito da natureza física. Cenas quecontam situações de catasterismo, exposiçõessobre o elevar e esconder dos astros e sobreos prognósticos celestes, dão sentido aoentendimento das idéias estóicas diluídas notexto. Concomitantemente, são traduzidasnas noções relativas, respectivamente, àcompensação por uma conduta consideradavirtuosa (como acontece no mito de Órion), à

RAFAEL VIRGÍLIO DE CARVALHO

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 137-152, NOVEMBRO 2009150

idéia de ordenação do cosmo e àpreocupação com o destino de maneira geral,além de carregar a todo momento a crençana divindade dos astros e, diferente de Zenãoe Cleantes, descrevê-los com aspectospassionais.

Epicuro, por sua vez, atrela oconhecimento sobre os metew&rwn à buscada a)taraci&a e à contestação da adesão aosmitos (EPICURE, Lettre à Pythocles, 84-87).Em sua carta a Pítocles vemos odesenvolvimento de um apanhado que busca,através da ciência da natureza epicuriana,desvendar as reais causas físicas de diversosfenômenos celestes, os quais muitocuriosamente são quase que concomitantesàqueles descritos no Phénomènes de Aratos.Todavia o mais inacreditável é que o filósofo,ao final da carta, critica explicitamente a idéiade que todos os fenômenos acontecemgraças a uma vontade divina e ordenadora:

Dar a esses fatos uma só causa, [...] éinsensato, e é prática inadequada doszeladores da vã astronomia (a)strologian),que dão como vagos as causas de certosfenômenos, do momento que jamais liberama natureza divina de tais funções (EPICURE,Lettre à Pytocles, 113).

Aumentando mais ainda as suspeitas efortalecendo as relações de distinção firmadasentre os discursos, ao final desse documentoEpicuro fala que os signos anunciadores dadospor certos animais – fazendo referência aosprognósticos celestes – “são devido a umencontro de circunstâncias” (EPICURE, Lettre

à Pytocles, 115). Epicuro parece direcionartodo o estudo sobre os átomos para evitar asmás interpretações a respeito das causas dosfenômenos celestes. Na carta a Heródoto,após a exposição de toda sua física, criticaque não se deve acreditar que a ordem domovimento dos astros possui uma natureza

“bem-aventurada” e “imortal” e diz que épreciso preservar a “majestade do divino” detais noções, pois essa crença é a origem dosmaiores tormentos da alma e esclarece quetudo viria a ser segundo a “necessidade” eaquela revolução entendida desde a origemcomo aglomerados de átomos que deramnascimento aos mundos (76-77). Assim,aconselha Epicuro:

[...] a perturbação maior para as almas doshomens tem sua origem nas opiniões de queesses corpos (celestes) são bem-aventuradose imperecíveis e que têm ao mesmo tempovontades, [...] e no fato de entender ou suporqualquer pena terrível e eterna, emconformidade com os mitos, ou aindatemendo a insensibilidade mesma que há noestar-morto (Lettre à Herodote, 81).

É na carta a Meneceu, onde há aprescrição da moral epicúriana, quecompreendemos o sentido apreendido pelopapel do signo celeste. O fim de todo serhumano é a felicidade (eudaimoni&av) e seumaior bem é a reta escolha dos prazeres, arealização da a)taraci&a. Para tanto, a tradiçãoepicurista posterior fala do tetrafarmakon

(os quatro remédios), e são eles os itens queprimordialmente se chocam com aqueles doestoicismo em relação às noções que aderemà visão do céu: a não temeridade em relaçãoaos deuses, já que não se interessam peloshomens; a não temeridade em relação àmorte, que é a privação dos sentidos; que olimite dos bens (prazeres) é fácil de se atingir;e que o mal é breve e suportável (EPICURE,Lettre à Ménécée, 133). Logo em seguidaquestiona também a idéia de destinosustentada pelos “físicos”, os quais Jean Brun(1964, p. 134) assegura serem os estóicos:

[...] se ridiculariza aquilo que certosapresentam como o mestre de tudo, odestino, dizendo que certas coisas são

A IMAGEM DE ou)rano&v E O PROVIDENCIALISMO MORALIZANTE: PLATÔNICOS, ESTÓICOS E EPICÚREOS ...

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 137-152, NOVEMBRO 2009 151

produzidas pela necessidade, outras peloazar, outras, enfim, por nós mesmos, pois seenxerga que a necessidade é irresponsável, oazar instável, mas a nossa vontade não possuimestre, e que a ela se atam naturalmente acensura e o seu contrário (EPICURE, Lettre àMénécée, 133-134).

O trecho vem de encontro a teleologia dopensamento epicurista, a conquista daeudaimoni&a. Esse termo faz referência à idéiade autodomínio, que dentro do campofilosófico desde Sócrates se identifica com oconceito de “liberdade” no sentido deautarquia, ou seja, auto-suficiência do homema partir da sábia conduta (SALES, 2004, p.22). Quando Epicuro afirma que “anecessidade é irresponsável, o azar instável,mas a nossa vontade não possui mestre”, estáquerendo dizer que as causas das açõeshumanas têm dois princípios, dois exteriorese um interior ao agente, no primeiro casovemos a necessidade que é uma força imanteà matéria e o azar que está ligado àscircunstâncias que envolvem as pessoas, otempo e o espaço, enquanto o princípiointerior é a própria deliberação da vontadehumana. Para Epicuro os deuses são apenasmodelos de vida bem-aventurada a seremseguidas, cuja sabedoria deve ser imitada emsua paz inabalável. “Sobre essas coisas, [...]medite-as dia e noite”, diz Epicuro aMeneceu, “e tu viverás como um deus porentre os homens” (135). A autarquiaepicúrea, dessa forma, combateria aquelacapacidade de escolha que vinha do alto.

Conclusão

A imagem do céu, portanto, figurava-sepor entre a Academia, Pórtico e Jardim comoobjeto de disputa para a realização do fim deseus respectivos pensamentos. Cada um “aseu modo”, acreditava na presença de um

poder qualificado como divino, queexercendo sua força atuava dentro de seusespaços, fosse como providência moralizanteou como modelo de bem-aventurança.

Mesmo com suas proximidades,platônicos e estóicos construíram suasrepresentações da esfera celeste a partir dasdistinções entre os elementos de suasrespectivas representações. Porém, o sentidodas articulações de seus significadosmostraram que ambas as escolas usaram seussaberes sobre ou)rano&v no intuito de orientarseus adeptos a se adequarem a certo padrãomoral tido como sábio. Entretanto, no sentidoinverso, Epicuro combateu tais visões porentender que tais representações do divinoimpediam a obtenção da a)taraci&a, criandoassim condições para a efetivação dascondutas impassíveis de seu Jardim.

Organizando espaços sociais, asrepresentações se articulam às imagens efazem destas eixos pelos quais orbitamdiversos discursos que se relacionamdistintamente. Ao mesmo tempo em que apercepção do céu legitima e identifica umgrupo, sua imagem associada à idéia deprovidência é objeto de conflito, de disputapelo poder de significação, pois envolveinteresses inerentes à adesão dos sujeitos auma determinada moral.

Como objeto historiográfico, a imagemabre à consciência a reflexão sobre aspossibilidades de sua análise. Pois, suarealidade não se limita apenas aos elementosde seu signo aparente, mas excede àsarticulações de enunciados que possibilitamsua própria percepção e favorece acompreensão dos motivos do uso de suasimples presença. Imagem e representaçãosão inerentes às realidades da sociedade epor este motivo “o crer em uma mesma deusapode ter seus vários modos”.

RAFAEL VIRGÍLIO DE CARVALHO

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 137-152, NOVEMBRO 2009152

Referências Bibliográficas

AUJAC, Germaine. Les prévisionsmétéorologiques em Grèce Ancienne. In: CUSSET,Christophe (org.). La météorologie dansl’Antiquité: entre science et croyance. Saint-Étienne: Université de Saint-Étienne, 2003.

BADER, Françoise. L’astronomie de l’Illiade et lamétéorologie des funérailles des Patrocle. In:CUSSET, Christophe (org.). La météorologie dansl’Antiquité: entre science et croyance. Saint-Étienne: Université de Saint-Étienne, 2003.

BAILLY, Jean Sylvain. Histoire de l’astronomie ancienne:depuis son origine jusqu’à l’établissement de l’écoled’Alexandrie. Paris : De Bure, 1801.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio deJaneiro: Bertrand Brasil, 1989.

BRUN, Jean. Epicure et les epicuriens.Paris: Presses Universitaires de France, 1964.

CASEVITZ, Michel. Les mots grecs de lamétéorologie. In: CUSSET, Christophe (org.). Lamétéorologie dans l’Antiquité : entre science etcroyance. Saint-Étienne: Université de Saint-Étienne, 2003.

CHARTIER, Roger. A História Cultural: entrepráticas e representações. Tradução de MariaManuela Galhardo. Lisboa: Difel, 1988.

______. Pouvoir et limites de la représentation: surl’oeuvre de Louis Marin. Annales. Persée, vol. 49,n° 2, 1994. p. 407-418.

______. Le monde comme representation.Annales. Persée, vol. 44, n° 6, 1989. p. 1505-1520.

CUSSET, Christophe (org). Preface. In : Lamétéorologie dans l’Antiquité : entre science etcroyance. Saint-Étienne: Université de Saint-Étienne, 2003.

FREDE, Michel. La theologie stoïcienne. In:DHERBEY, G. Romeyer (dir.) e GOURINAT, J-B.(éd.). Les stoïciens. Paris: Vrin, 2005.

GOMES-LOBO, Alfonso. Les fondements del’éthique socratique. Traduction de Nicole Ooms.

Villeneuve d’Ascq (Nord): Presses Universitairesdu Septentrion, 1996.

GONÇALVES, Andréia Santana da Costa. Umdesvio arcaico na obra de Platão: o uso domodelo político-geométrico de Clístenes.Dissertação (Filosofia). PUC, Rio de Janeiro,2005.

GOULET, Richard. La méthode allégorique desstoïciens. In: DHERBEY, G. Romeyer (dir.) eGOURINAT, J-B. (éd.). Les stoïciens. Paris: Vrin,2005.

LAËRCE, Diogéne. Vie, doctrines et sentences desphilosophes illustres. Traduction de RobertGenaille. Paris : Garnier-Flammarion, vol. IX,1965.

PLATÃO. As Leis (incluindo o Epinomis). Traduçãode Edson Bini. Bauru: EDIPRO, 1999.

PLATON. Apologie de Socrate. Responsableacadémique Alain Meurant. Bibliotheca ClassicaSelecta (BCS). <disponível em: http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/platon_apologie/; acesso em: 01 de março de2009>.

PLATON. Cratyle. Responsable académique AlainMeurant. Bibliotheca Classica Selecta (BCS).<disponível em: http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/platon_apologie/; acessoem: 01 de março de 2009>.

RENAUD, Jean-Michel. Orion: de la météorologieà la mythologie. In: CUSSET, Christophe (org.).La météorologie dans l’Antiquité : entre scienceet croyance. Saint-Étienne: Université de Saint-Étienne, 2003.

SALES, Antonio Patativa de. O tema daEUDAIMONIA na carta de Epicuro a Meneceu.Ágora Filosófica. Unicamp: edição eletrônica, ano4, n. 2, 2004. p. 21-32.

SANTAELLA, Lucia. Semiótica aplicada. São Paulo:Pioneira Thomson Learning, 2005.

VEYNE, Paul. Foucault revoluciona a história. In:Como se escreve a história. Tradução de AldaBaltar e Maria Auxiliadora Kneipp.Brasília: UnB, 1998.

ENTRE O CONTEXTO E A LINGUAGEM: O DISCURSO FOTOGRÁFICO E A PESQUISA HISTÓRICA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 153-162, NOVEMBRO 2009 153

Recebido em: 06/06/2009 Aprovado em: 05/09/2009

Entre o contexto e a linguagem:o discurso fotográfico e a pesquisa histórica

Richard Gonçalves André

Mestre em História pela Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho (UNESP / Assis).Autor de, entre outros artigos, “Representações e Práticas Mortuárias na Cultura Popular Brasileira:Influências e Apropriações”. Revista Brasileira de História das Religiões, v. 4, 2009.

RESUMO

Este artigo tem por objetivo demonstrar como a fotografia pode ser objeto de análisehistórica. Pretende-se sugerir que o documento imagético é uma representação, ou seja, umaconstrução de concepções a partir de espaços, tempos e lugares sociais perpassados deespecificidade. Desta forma, é necessário compreender as fontes iconográficas tendo emvista os autores, sua posição no jogo social, a apropriação que realizam de convenções, osmeios que utilizam para reproduzir os artefatos culturais e os públicos aos quais estes sedestinam, que atribuem novos sentidos às obras. Além disso, é preciso compreender asarticulações dos signos icônicos no interior da linguagem fotográfica.PALAVRAS-CHAVE: fotografia; história; representação.

ABSTRACT

This paper intends to demonstrate how the photography may be an object of historicalanalysis. It intends to suggest that the imagetical document is a representation, i.e., aconstruction of conceptions since spaces, times and social places replete of particularity.Thus, it’s necessary understand the iconographic sources focusing their authors, their positionin the social game, the appropriation that perform of conventions, the ways that utilize toreproduce the cultural artifacts and the publics for whom these artifacts are destined, thatattribute new means to the works. Besides, it’s necessary to understand the articulations oficonic signs within the photographical language.KEYWORDS: photography; history; representation.

RICHARD GONÇALVES ANDRÉ

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 153-162, NOVEMBRO 2009154

Entre o contexto e a linguagem:o discurso fotográfico e a pesquisa histórica

Da próxima vez que você segurar umacâmera, pense nela não como um robô,automático e inflexível, mas como uminstrumento maleável que você precisacompreender para utilizar adequadamente.Uma câmera pode ser um milagre eletrônicoe óptico, mas não cria nada sozinha. Tudoque ela pode representar em termos debeleza e encantamento está, a princípio, emsua mente e em seu espírito.Ansel Adams, A Câmera.

1. As imagens estão por toda parte nomundo contemporâneo. Basta percorrer asruas de grandes cidades para perceber aprofusão imagética à qual os indivíduos estãosubmetidos: outdoors, panfletos, painéisdigitais, isso para não falar dos sinais e placasde trânsito. Entrando-se numa livraria oubanca de revistas, podem-se observarartefatos tais como cartões-postais,fotografias estampadas em revistas e figurasem histórias em quadrinhos. As galerias dosmuseus convidam os olhos a apreciar pinturasconsagradas e objetos da cultura material,como cerâmicas indígenas e antigas cadeirasde dentista. As praças públicas são construídasem torno de monumentos dedicados aosheróis consagrados pela memória, comoTiradentes, pracinhas e autoridades públicas.Os cemitérios, por sua vez, são, no dizer dohistoriador francês Michel Vovelle (1997, p.328), “florestas de signos”, ostentandocruzes, capelas, anjinhos, virgens e cristos.Assim, vive-se na civilização das imagens,como sugere a ensaísta norte-americanaSusan Sontag, que recorre à alegoria dacaverna para sugerir como os homens e

mulheres contemporâneos são fascinadospelas imagens tomadas pela realidade(SONTAG, 1981, p. 3).

Diante da importância da imagem nomundo contemporâneo e das mudançasepistemológicas que ocorreram no campo dahistória ao longo do século XX, a linguagemiconográfica foi incorporada ao repertório defontes disponíveis ao historiador. Não se trata,entretanto, de um processo acabado, uma vezque ainda persiste certo simplismo ao abordarhistoricamente essa tipologia documental,questão para a qual retornarei adiante. Tendoem vista tais questões, o presente artigo tempor objetivo sugerir como as fotografiaspodem ser compreendidas no âmbito dapesquisa histórica, demonstrando como asmesmas constituem representaçõesconstruídas a partir de indivíduos situados emlugares, tempos e espaços sociais específicos,de modo que sua produção torna-se matizadapelos caracteres disponíveis em determinadoscontextos (CHARTIER, 1990, p.7).

2. De acordo com os historiadores dachamada Escola Metódica, campohistoriográfico cujos conceitos eprocedimentos constituíam a “lógicahistórica” durante o século XIX e as primeirasdécadas do XX, os documentos passíveis deanálise deveriam ser aqueles oficiais eescritos, merecendo a crítica interna e externadas fontes (LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1946,p. 45 e 46). Intelectuais como Lucien Febvree Marc Bloch, fundadores da revista dos

ENTRE O CONTEXTO E A LINGUAGEM: O DISCURSO FOTOGRÁFICO E A PESQUISA HISTÓRICA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 153-162, NOVEMBRO 2009 155

Annales em 1929, questionaram tal noção.Segundo Bloch, “É quase infinita a diversidadedos testemunhos históricos. Tudo quanto ohomem diz ou escreve, tudo quanto fabrica,tudo em que toca, pode e deve informar aseu respeito [...]” (BLOCH, 1997, p. 114).Apesar da “caricatura” que os historiadoresdos Annales fizeram sobre a Escola Metódica,reduzida à alcunha do positivismo (REIS,1995, p. 49), o período representou umamudança de paradigma no tocante à noçãode fonte, que passou a abarcar todas asproduções humanas. A chamada NovaHistória, herdeira da terceira geração dosAnnales, prosseguiu ampliando o repertóriodocumental, permitindo a apropriação dasimagens ao campo histórico.

Contudo, os historiadores continuam maisapegados aos documentos escritos, ainda quenão somente aqueles de caráter oficial.Segundo Ivan Gaskell (1991, p. 237).:

Embora os historiadores utilizem diversostipos de material como fonte, seutreinamento em geral os leva a ficarem maisà vontade com documentos escritos.Conseqüentemente, são muitas vezes malequipados para lidar com material visual,muitos utilizando as imagens apenas demaneira ilustrativa, sob aspectos que podemparecer ingênuos, corriqueiros ou ignorantesa pessoas profissionalmente ligadas àproblemática visual [...]

De fato, em diversas obras históricas,inclusive dedicadas a documentosiconográficos, as imagens são inseridasapenas de maneira ilustrativa, dispensandotratamentos metodológicos de desconstruçãomais rigorosos. De modo geral, oshistoriadores realizam explicações em tornodo contexto de produção, procedimentofundamental relativo ao campo histórico, maso discurso é elaborado tendo como baseinformações de natureza escrita e inferido à

imagem, e não construído a partir desta,valorizando suas linguagens específicas. Ouseja, o movimento vem de fora para dentro(da fonte), e não o contrário. Não ignoro que,para a elaboração de explicações históricasconsistentes, seja necessário entrecruzardiversos tipos de documentos, uma vez queestes não constituem ilhas isoladas.Historiadores como Louis Marin (2001, p.117-140) demonstraram como o texto escritoe a pintura, por exemplo, possuem relaçõesprofundas. Porém, mais que uma fontereproduzida em papel couché para ediçõesde luxo, as imagens devem sercompreendidas partindo-se de sua linguageme contextualizadas, elemento que lhe conferehistoricidade (o que difere das posturasformalistas).

O problema em questão é a autonomiarelativa da imagem como documentohistórico, isto é, o fato dela possuir umalinguagem passível de desconstrução, o queconstitui um pressuposto quando o objeto sãofontes escritas, tais como a literatura e osprocessos criminais. Concebendo odocumento iconográfico comorepresentação, ou seja, concepções demúltiplas naturezas (como idéias, ideologiase mentalidades) construídas a partir decontextos sociais, econômicos, políticos eculturais específicos, deve-se reconhecer queas imagens possuem uma linguagem quepermite a leitura e interpretação. Afinal, nãose trata de algo inscrito na natureza, mas deartefatos da cultura produzidos pelos homense perpassados de visões de mundo que nãosão neutras, mas carregadas de subjetividadee condicionamentos ligados ao lugar deprodução. Mesmo a fotografia,tradicionalmente considerada um registrorealista e objetivo da realidade, representadeterminados objetos em termosiconográficos, uma vez que o fotógrafo

RICHARD GONÇALVES ANDRÉ

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 153-162, NOVEMBRO 2009156

seleciona ângulos e enquadramentos,deixando de fora tudo o que não lhe interessar(o que se aplica a monitoramentos viasatélite), pressupondo seleção e atribuição designificados. Além disso, por mais verossímilque seja uma foto, segundo Charles Morris, opróprio fato de transpor determinadofenômeno próprio a um universotridimensional ao papel fotográfico plano jásugere que o signo arbitrário encontra-sepresente (CARONTINI; PERAYA, 1979, p.86).

Ao conceberem que a imagem possuilinguagem própria, os historiadoresencontram-se em débito com a lingüística e,mais especificamente, com a semiótica,embora a dívida nem sempre sejareconhecida. Os conceitos semióticos sãocitados direta ou indiretamente, como signo,ícone, índice, símbolo e discurso, entre outros,geralmente sem notas de rodapéesclarecendo as fontes bibliográficas. Ogrande medo de pesquisadores no campohistórico que trabalham com fotografias éserem acusados, diante de bancas demestrado ou doutorado, de terem utilizadoabordagens semióticas. A chamada HistóriaCultural, compreendida em suas váriasvertentes, desde a História das Mentalidadesà Nova História Cultural, assumem de bomgrado a influência exercida pela antropologiade Claude Lévi-Strauss e Clifford Geertz,esquecendo ou ignorando o peso dalingüística para os antropólogos. No caso dasimagens, os semióticos desempenharampapel significativo na medida em queassumiram que certos aspectos da estruturalingüística aplicados à escrita poderiam serrepensados (e posteriormente reformuladosin totum) em termos de documentos não-escritos (Ibidem, p. 1 e BARTHES, 1987, p.12-13), de modo que o signo iconográficopossuiria regras mais ou menos recorrentes

num determinado contexto, podendo ser lidoa partir de sua especificidade discursiva,conferindo-lhe autonomia relativa. A divisãodo signo, de acordo com o filósofo norte-americano Charles Sanders Peirce, em trêscategorias é particularmente significativa eoperacional para os historiadores: o símbolo,o índice e o ícone, o último guardando relaçõesde semelhança com os objetos representados(CARONTINI; PERAYA, D. op. cit., p. 19-25).Partindo das proposições semióticas, RolandBarthes escreveu sobre a linguagem da moda,mais especificamente voltada para osvestuários (BARTHES, 1999), e tambémacerca da fotografia, em “A Câmara Clara”(BARTHES, 1984), obra de referência paraos historiadores que trabalham com registrosfotográficos, mas cujas implicaçõesconceituais são relativamente evitadas. Destaforma, creio que a questão não é evitar falarde semiótica e seus conceitos temendo a“excomunhão” do campo, mas assumir asimplicações e aprender a lidar com elas.

3. Como proceder diante da imagem?Deve-se ter em mente que, mesmo possuindouma linguagem específica, o signoiconográfico é um documento ligado aoespaço, tempo e lugar social de produção, ouseja, não se pode ignorar o contexto deelaboração para a sua leitura. Desta forma,nem todos os documentos imagéticospossuem as mesmas linguagens, que podemvariar de acordo com o período, lugar e gruposocial, as convenções artísticas às quaispodem submeter-se e outras variáveis, comopúblicos aos quais foram destinados. O modode compor e ler uma pintura impressionista ésignificativamente diferente daquelerelacionado aos quadros acadêmicos e àscomposições abstratas. Nesse sentido, a obrade Monet é muito distinta da composta porMalevitch, ainda que ambas não possam ser

ENTRE O CONTEXTO E A LINGUAGEM: O DISCURSO FOTOGRÁFICO E A PESQUISA HISTÓRICA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 153-162, NOVEMBRO 2009 157

discriminadas qualitativamente e possuamlinguagens decodificáveis. A fotografia deEugene Atget deve ser desconstruída demodo diverso quando comparada aos cartõesde visita que se tornaram populares nasegunda metade do século XIX, quando dobarateamento dos materiais fotográficos. Ashistórias em quadrinhos de Frank Miller sãodiferentes dos mangás de Kazuo Koike eGoseki Kojima. Desta forma, assim comoqualquer outra fonte, as imagens estãosubmetidas aos condicionamentos e aorepertório de informações disponíveis emsituações históricas mais ou menos definidas.Sem a contextualização, o historiador corre orisco de ler na imagem sentidos anacrônicosatribuídos posteriormente, já que, comosugere Sontag em torno da foto, esta é “...apenas um fragmento, e com o passar dotempo suas amarras se desprendem. A deriva,vai-se transformando em passado difuso,aberto a qualquer tipo de leitura...” (SONTAG,op. cit., p. 71).

Ao realizar o recorte de determinadocorpus documental, o pesquisador devecompreender como a fotografia foicondicionada pelo contexto de produção. Emprimeiro lugar, deve-se referenciar o autorque, ao fotografar, por exemplo, umapaisagem, escolhe ângulos eenquadramentos adequados, pressupondouma desvalorização de todo o restante, quepode ser um lixão ou uma porçãodesflorestada; seleciona áreas favorecidaspelas fontes de luminosidade, dependendodo efeito que deseja criar; regula a máquinacom o intuito de controlar a entrada de luz(diafragma) e a velocidade do disparo(obturador); dispõe os motivos imagéticos,como pessoas posando para a lente, pede-lhes para que ergam a cabeça, dêem um

sorriso e digam “x”, entre outros aspectos(ANDRÉ, 2006, p. 20-21). Desta forma, comosugere Phillipe Dubois, o processo fotográficoé um ato (DUBOIS, 1993, p. 15), isto é, ofotógrafo não permanece passivo diante deuma câmera que “faz tudo”, mas opera umconjunto de procedimentos mecânicos,óticos, químicos e, principalmente,intelectuais para conseguir determinadoresultado (ADAMS, 2002, p. 15). Assim, nãohá nenhuma passividade: os profissionais daNational Geographic embrenham-se na florestae esperam eventualmente horas para captar obote de determinado predador. Mesmo umafotografia via satélite, por exemplo, dasqueimadas na Amazônia selecionamdeterminadas áreas e excluem outras, o queremete à criação de representações. Portanto,mais que uma quantidade absurda demegapixels nas câmeras modernas, há umoperador que transforma os motivos emimagens impressas em papéis fotográficos ouem arquivos de computador.

O fotógrafo possui, além disso, um lugarsocial específico, o que condiciona os sentidosque insere em sua produção. Há matizessignificativos ao se pensar em indivíduostrabalhando, por exemplo, para grandesempresas que fotografam com o objetivo depropagandear determinados objetos. Asfotografias de condomínios residenciaisrepresentam espaços neobucólicosperpassados de bosques, recursos hídricos esegurança, excluindo o mundo extramuros,perpassado de devastação e violência1. Nasdécadas de 1920 e 1930, os fotógrafoscontratados pela Companhia de Terras Nortedo Paraná, responsável pela comercializaçãode lotes fundiários em regiões como Londrinae Cambé, criaram imagens publicitárias doambiente regional enfocando a fertilidade do

1 Agradeço, nesse item, às considerações de Gilmar Arruda.

RICHARD GONÇALVES ANDRÉ

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 153-162, NOVEMBRO 2009158

solo, as grandes árvores e os rios caudalosos,remetendo a lugares-comuns edênicos coma finalidade de promover a venda de terras(ANDRÉ, op. cit.). Por outro lado, no mesmocontexto, operadores não vinculadosprofissionalmente à instituição, como o colonojaponês Haruo Ohara, produziram clichês emtorno das geadas e da melancolia dotrabalhador agrícola (Idem. 2005, p. 75-94).Os fotógrafos podem ter, também,vinculações políticas, tecendo apologias agovernantes, como nas imagens de GetúlioVargas discursando para multidões, oucriticando certos regimes. Podemdesempenhar funções institucionais decoerção e repressão, como nas fotos depessoas fichadas pela polícia, segurando aidentificação e posando de frente e perfil, deacordo com as regras de composição deimagens criminais convencionadas ao longodo século XIX. Desta forma, o fotógrafo (assimcomo a fotografia) não é neutro e, ao fazerescolhas, permite entrever iconograficamenteo lugar que ocupa no jogo social, político eeconômico.

Além dos elementos de ordem social,econômica e política, é necessário, também,perceber as regras de composição imagéticaque os fotógrafos apropriam emdeterminados contextos. O conceito decampo proposto pelo sociólogo francês PierreBourdieu pode ser útil a esse respeito,compreendido enquanto conjunto deconvenções que podem ser aplicadas adiversos fenômenos (da religião à música),sistematizadas, reproduzidas econstantemente defendidas por indivíduosque, detentores de capital cultural (isto é,reconhecida autoridade sobre o assunto),incluem ou rechaçam aqueles que se alinhamou não aos elementos convencionados.Assim, o campo é perpassado por relações econflitos sociais na esfera do simbólico,

operando divisões como “profissional” e“amador”, “erudito” e “popular”, “sagrado”e “profano”, entre outras (BOURDIEU, 2000,p. 64-73).

Aplicando o raciocínio de Bourdieu, pode-se falar em campo fotográfico, já que emdiferentes momentos e situações, foramcriadas regras de composição. Por exemplo:nos cartões de visita, o fotógrafo deveriarepresentar o modelo ao estilo da burguesiado século XIX, posando triunfalmente, bemvestido, com o cenário repleto de adornos,como cadeiras tendo apoio para cabeça, entreoutros quesitos (FABRIS, 2004, p. 30). Nasimagens criminais sugeridas anteriormente,o réu deve segurar sua identificação e posarde frente e de perfil. A fotografia experimentaldo século XX começou a adotarprocedimentos avessos às regras tradicionais,como inserir objetos contra forteluminosidade, a chamada contraluz, criandoum efeito de silhueta, e manter o obturadorda câmera aberto, captando o movimento e“borrando” a imagem final. Isso pareceriauma contra-regra, mas expressa asconvenções de diferentes camposfotográficos, o que remete à questão daslinguagens: mesmo a fotografia possui, comosugerido, diversas formas de codificação quedevem ser contextualizadas.

Além do fotógrafo e seuscondicionamentos, deve-se ter em menteque, em certos casos, o resultado final dafotografia é uma operação influenciada,também, pelo fotografado. Este, tal como ooperador, não permanece passivo diante daslentes, mas fabrica uma segunda imagem desi, uma auto-representação que não pertenceà natureza, mas à cultura. A questão fica claraao se pensar, por exemplo, em cerimôniascomo casamentos, nas quais os convivas sãosurpreendidos eventualmente por umacâmera de vídeo que os grava enquanto à

ENTRE O CONTEXTO E A LINGUAGEM: O DISCURSO FOTOGRÁFICO E A PESQUISA HISTÓRICA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 153-162, NOVEMBRO 2009 159

mesa comendo seu risoto: ninguémpermanece natural, esboçando reaçõesvariadas de constrangimento ou caretas porparte das crianças. Os noivos, por sua vez,devem ser registrados de maneira bela, demodo que as imagens possam serencadernadas em álbuns e revistas ao longodos anos. Por isso, são contratadas empresasespecializadas que devem seguir todas asregras convencionadas relacionadas àfotografia matrimonial, desde o lançamentodo buquê aos bafões da noiva (a fotodesempenha, então, função ritual, comosugere Sontag, op. cit. p. 8-9). Cito Barthes:

[...] a partir do momento que me sinto olhadopela objetiva, tudo muda: ponho-me a“posar”, fabrico-me instantaneamente umoutro corpo, metamorfoseio-meantecipadamente em imagem. Essatransformação é ativa: sinto que a Fotografiacria meu corpo ou o mortifica, a seu bel-prazer[...] [Uma] imagem – minha imagem – vainascer: vão me fazer nascer de um indivíduoantipático ou de um “sujeito distinto”? Se eupudesse “sair” sobre o papel como sobreuma tela clássica, dotado de um ar nobre,pensativo, inteligente, etc.! Em suma, se eupudesse ser “pintado” (por Ticiano) ou“desenhado” (por Clouet)! (BARTHES, op. cit.p. 23-24).

O princípio aplica-se, inclusive, aos cartõesde visita: nestes, o representado, comosugerido, deveria assumir uma imagemburguesa. Mesmo após a popularização dafotografia e a expansão para outros públicosna segunda metade do século XIX, asconvenções imagéticas permaneceramburguesas, de modo que o desejo dofotografado manifestava-se nas fotos,influenciado pelo conhecimento do operador.Desta forma, o signo iconográfico pode sercompreendido também como forma dealguns indivíduos e grupos sociais ostentaremdeterminada identidade (mesmo que

imaginária). Era comum, por exemplo, entreos senhores brasileiros serem fotografadosjuntamente aos escravos, um dos principaisíndices de riqueza (KOSSOY, 2002, p. 67).Atualmente, por intermédio do Orkut e doYoutube, que permitem a divulgação deimagens e vídeos de modo rápido e fácil, aquestão da construção da auto-imagemtornou-se mais complexa, lembrando que ooperador/modelo tornou-se praticamente amesma pessoa. Não casualmente, o slogan

do Youtube é broadcast yourself.Outra variável importante a ser

considerada pelo historiador é o suporteconcreto por intermédio do qual a imagem éreproduzida, uma vez que pode atribuir novossignificados à fotografia. Como sugerido, nasprimeiras décadas do século XX, os fotógrafoscontratados pela Companhia de Terras Nortedo Paraná produziram fotografias da regiãocom o objetivo de constituir materialpublicitário para a venda de terras, sendoreproduzidos em panfletos e cartazes. Porém,em 1944 a empresa de capital britânicoperdeu seu poderio político e econômico,sendo nacionalizada e desenvolvendoatividades fundiárias em outros locais, comoMaringá e Cianorte. Mesmo com a derrocadada Companhia, as fotografias começaram aser utilizadas como mecanismo para aconstrução da memória oficial da cidade, demodo que, em 1959, foi construído emLondrina um painel em azulejos com areprodução de algumas imagenspanorâmicas da cidade (ARRUDA, 2005, p.3-4). José Juliani, fotógrafo da Companhiaem sua época áurea, começou acomercializar os seus clichês organizados emálbuns adornados com decoração oriental,associados a outras fotografias, criando umanarrativa do olhar sobre o processo deocupação da terra: a derrubada das árvores,

RICHARD GONÇALVES ANDRÉ

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 153-162, NOVEMBRO 2009160

o transporte dos materiais, o trabalho nasserrarias, a expansão das estradas de ferro eda malha urbana, etc. Ou seja, a combinaçãode imagens permitiu a elaboração de sentidosa posteriori que não existiam quando de suaprodução. Hoje, as mesmas fotos sãoestampadas em cartões de moto-taxi, emmouse-pads e paredes de shoppings, o queremete a novos significados (ANDRÉ, cit., p.156-177). Por isso, na análise icônica énecessário perceber quais são os suportes nosquais as imagens foram veiculadas para acompreensão de seu discurso num contextopreciso.

4. A investigação de tais elementos (ofotógrafo, seu lugar social e intelectual, opúblico para os quais as fotografias destinam-se e os suportes nos quais são reproduzidas)são fundamentais para a compreensão docontexto no interior do qual os documentossão produzidos, procedimento próprio aocampo (ainda no sentido que Bourdieu aplicaao conceito) historiográfico. Porém, comosugerido, é preciso desconstruir as imagens,também, a partir dos caracteres quecompõem o seu discurso interno. ErwynPanofsky propôs um método para adesconstrução baseado, em primeiro lugar,no levantamento iconográfico da imagem,isto é, na discriminação dos elementos icônicosque a integram. Trata-se de uma etapadescritiva, na qual é preciso separar cada umdos itens de determinada fotografia: ângulo,enquadramento, luminosidade, local, objetos,pessoas, posição dos motivos, cenário, etc.,que podem variar de acordo com a fonte.Quanto mais pormenorizada a descrição,melhor (KOSSOY, 1989, p. 65). Por isso,Kossoy sugere a elaboração de fichascatalográficas descrevendo tais itens e outrasinformações técnicas. Pode-se dizer, emtermos lingüísticos, que esses aspectos

constituem os significantes iconográficos que,combinados de determinados modos, geramsignificados específicos. Como a maioria dostipos de linguagem é baseada nas repetições,o que lhes permite em parte tornarem-seconvenções, uma possibilidade analítica éserializar as informações no interior dedeterminado corpus, percebendo arecorrência de alguns caracteres emdetrimento de outros. Esta é uma forma, alémdisso, de perceber como o fotógrafo alinha-se às regras de campo sugeridas.

A segunda etapa, após a descriçãoiconográfica pormenorizada, é ainterpretação iconológica (Ibidem, p. 65). Apartir da percepção dos itens que compõema fotografia e a sua inter-relação, tendo emvista o contexto no qual foi produzido odocumento, é possível ler significados(correlacionados aos significantes) queremetem ao signo imagético, isto é, ao sentidoatribuído. É importante perceber que não sãoos elementos isolados que compõem osentido, mas as suas múltiplas combinações.De modo mais amplo, mesmo uma fotografiapode ser entendida como signo e associada aoutras imagens, tecendo uma linguagemmais complexa.

A partir da imagem a seguir, é possívelesboçar o procedimento iconográfico eiconológico proposto por Panofsky. Noenquadramento vertical da imagem, pode-se verificar, em posição central, a figura de D.Pedro II sentado, levemente inclinado, mascom o rosto voltado para o operador, trajandoroupas civis, envolto por falsa vegetaçãoprópria a ateliês. A iluminação artificialprovém do próprio estúdio. Na fotografia, háa associação de dois significantes icônicos: amata e o indivíduo (desconsidere-se, por ora,que seja o imperador brasileiro). Por quecombiná-los? Neste quesito, entra anecessidade de conhecimento do contexto

ENTRE O CONTEXTO E A LINGUAGEM: O DISCURSO FOTOGRÁFICO E A PESQUISA HISTÓRICA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 153-162, NOVEMBRO 2009 161

histórico brasileiro: a natureza possuía noBrasil uma conotação edênica bastanteacentuada, ressaltada pelos relatos deviajantes, pela literatura românticaalencariana e pelas pinturas produzidas sobos auspícios da Academia Imperial de BelasArtes, fundada em 1826. Por outro lado,tendo-se em mente que o indivíduo emquestão é o imperador, buscando consolidaro seu poderio por intermédio da (re)criação ereprodução de elementos identitáriosbrasileiros, compreende-se a associação entrenatureza e poder imperial, conferindo a D.Pedro II a condição de imperador dos trópicos(KOSSOY, 2002, p. 80). Desta forma, o autorda fotografia, Joaquim Insley Pacheco,apropriou representações convencionadas ereconstruiu-as por intermédio do discursofotográfico. Pode-se ir mais longe e perceberque todos os elementos presentes nafotografia em questão seguem padrões decomposição próprios às imagens elaboradasem ateliês ao longo do século XIX, como oscartões de visita anteriormente sugeridos: ocenário artificial, o enquadramento vertical,a pose levemente inclinada, a cadeira(possivelmente com apoio de braço e cabeça),entre outros. Fica, portanto, clara aadequação de Pacheco ao campo fotográficoem questão.

Entretanto, nem sempre o historiadordispõe de fontes e informações suficientesacerca das fotografias e de suas condiçõesde produção. É freqüente lidar com imagenssem indicação de autoria e data, de modoque é difícil realizar de forma adequada aleitura iconológica. De maneira geral, éimprovável encontrar corpus dedocumentações ideais, que disponibilizem oselementos necessários à pesquisa histórica.Mais comumente os acervos fotográficos sãopreservados (quando o são)fragmentariamente, devendo o pesquisador

estabelecer interpretações a partir de indícios,flexibilizar seus métodos e admitir mudançasde leme na pesquisa, num constante diálogoentre o objeto e os recursos epistemológicosdisponíveis, o que constitui a lógica histórica,como sugere E. P. Thompson (1981, p. 49).

Joaquim Insley Pacheco. Retrato de D. Pedro II.Petrópolis (1883). 37,7 x 29,5 cm. Coleção doInstituto Moreira Salles. Reproduzido em KOSOY, B.Dicionário Histórico-Fotográfico Brasileiro. SP:Instituto Moreira Salles, 2002, p. 248.

5. Após essas reflexões, pode-se concluirque as imagens foram apropriadas ao campoda história nas últimas décadas, embora asmesmas sejam utilizadas de modo simplista,ainda hoje, por diversos historiadores. Dequalquer forma, as fotografias, para além dereprodução objetiva da realidade, constituemrepresentações criadas a partir de lugares,tempos e condições sociais perpassadas dehistoricidade, inseridas em campos queconvencionam elementos a seremreproduzidos ou rejeitados pelos fotógrafos.Portanto, são produtos históricos perpassados

RICHARD GONÇALVES ANDRÉ

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 153-162, NOVEMBRO 2009162

por linguagens específicas que exigem, porparte do pesquisador, não apenas umexercício de contextualização, mas adesconstrução dos signos iconográficos porintermédio de procedimentos próprios, comoa iconografia e a iconologia propostas porPanofsky. No entanto, os debates em tornodos documentos imagéticos não se esgotam,dada a intensa presença da imagem nomundo contemporâneo e o fato de situarem-se no limiar das discussões acerca da pós-modernidade, entre o realismo e a ficção, asubstância e o simulacro.

Referências Bibliográficas

ADAMS, A. A câmera. Trad. Alexandre Roberto deCarvalho, 2ª ed., São Paulo: Editora SENAC, 2002.

ANDRÉ, R. G. Entre o mito e a técnica:representações de natureza em fontesfotográficas. Dissertação (História). UNESP,Assis, 2006.

______. Um contexto, dois olhares: fotografiasde natureza segundo José Juliani e Haruo Ohara.Revista História Social, n. 11, 2005.

ARRUDA, G. Monumentos, semióforos enatureza nas fronteiras. In: ARRUDA, G. (org.).Natureza, fronteiras e territórios. Londrina:EDUEL, 2005.

BARTHES, R. Elementos de semiologia. São Paulo:Cultrix, 1987.

______. O sistema da moda. Lisboa: Edições 70,1999.

______. A câmara clara: notas sobre a fotografia.Trad. Júlio Castañon Guimarães, Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 1984.

BLOCH, M. Introdução à história. Trad. MariaManuel, Rui Grácio e Vítor Romaneiro, Lisboa:Europa-América, 1997.

BOURDIEU, P. A Génese dos conceitos dehabitus e de campo. In: O poder simbólico. Trad.Fernando Tomaz, Rio de Janeiro: Bertand Brasil,2000.

CARONTINI, E.; PERAYA, D. O projeto semiótico:elementos de semiótica geral. São Paulo: Cultrix,EDUSP, 1979.

CHARTIER, R. A história cultural: entre práticas erepresentações. Lisboa, Rio de Janeiro: Difel,Bertand Brasil, 1990.

DUBOIS, P. O ato fotográfico e outros ensaios.Trad. Marina Appenzeller, Campinas: Papirus,1993.

FABRIS, A. Identidade/Identificação. In: FABRIS,A. Identidades virtuais: uma leitura do retratofotográfico. Belo Horizonte: Editora UFMG,2004.

GASKELL, I. História das imagens. In: BURKE, P.(org.). A escrita da história: novas perspectivas.Trad. Magda Lopes, São Paulo: EDUNESP, 1991.

KOSSOY, B. Fotografia e história. São Paulo: Ática,1989.

______. Realidades e ficções na trama fotográfica.São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.

______. Dicionário histórico-fotográfico brasileiro.São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2002.

LANGLOIS, C.; SEIGNOBOS, C. Introdução aosestudos históricos. São Paulo: Editora Renascença,1946.

MARIN, L. Ler um quadro – uma carta de Poussinem 1639. In: CHARTIER, R. (org.). Práticas deleitura. Trad. Cristiane Nascimento, São Paulo:Estação Liberdade, 2001.

REIS, J. C. A História metódica, dita “positivista”.Pós-História, n. 3, 1995.

SONTAG, S. Ensaios sobre fotografia. Trad.Joaquim Paiva, Rio de Janeiro: Arbor, 1981.

THOMPSON, E. P. A Miséria da teoria ou umplanetário de erros: uma crítica ao pensamentode Althusser. Trad. Waltensir Dutra, Rio deJaneiro: Zahar Editores, 1981.

VOVELLE, M. O luto burguês: dos avisosfúnebres à estatuária funerária. In: VOVELLE, M.Imagens e imaginário na história: fantasmas ecertezas nas mentalidades desde a Idade Médiaaté o século XX. Trad. Maria Julia Goldwasser,São Paulo: Editora Ática, 1997.

resenhas

RESENHA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 165-168, NOVEMBRO 2009 165

Renata Senna Garraffoni

Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professora doDepartamento de História da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Autora de, entre outroslivros, Gladiadores na Roma Antiga: dos combates às paixões cotidianas. São Paulo : Annablume/Fapesp, 2005.

Recebido em: 25/04/2009 Aceito em: 25/06/2009

BORTULUCCE, Vanessa Beatriz. A arte dos regimestotalitários do século XX. Rússia e Alemanha. São Paulo:Annablume/Fapesp, 2008.

RENATA SENNA GARRAFFONI

166 DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 165-168, NOVEMBRO 2009

Vanessa Beatriz Bortulucce é doutora em

História pela Unicamp (2005) com ênfase

em História da Arte e futurismo italiano.

Tendo estudado as obras de Umberto

Boccioni no mestrado e doutorado, publicou

artigos na área e, atualmente, tem pesquisado

sobre arte e arquitetura durante o regime

nazista. O presente livro, publicado pela

editora Annablume com apoio da Fapesp, é

parte do desenvolvimento desses novos

trabalhos e, como destaca Luciano Migliaccio

no prefácio da obra, vem preencher uma

lacuna na bibliografia disponível no Brasil

sobre historiografia da arte durante regimes

totalitários.

Embora seja um tema pouco explorado

no Brasil, o livro é escrito em uma linguagem

acessível aos que iniciam na área. Sem perder

a profundidade necessária para uma boa

abordagem crítica, Bortulucce nos apresenta

um estudo do papel político da Arte no mundo

contemporâneo e, afastando-se de uma visão

maniqueísta ou simplista, procura estudar a

estética totalitária, uma arte de massa que

moldou a vida cotidiana de gerações de

indivíduos na Alemanha e Rússia da primeira

metade do século XX. Ancorada pelos

aspectos políticos e ricamente ilustrada,

Bortulucce apresenta um livro dividido em

introdução, quatro capítulos e a conclusão,

nos quais explora como as percepções de

mundo e os modos de sentir são

reconfigurados a partir de uma estética

totalitária, baseada na organização, controle

e manutenção da ordem.

BORTULUCCE, Vanessa Beatriz. A arte dos regimes totalitários doséculo XX. Rússia e Alemanha. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2008.

Dividindo o livro em dois capítulos acerca

da arte alemã e dois sobre o universo russo

da primeira metade do século XX, Bortulucce

apresenta de maneira didática os contrastes

da arte durante esse período. Partindo das

principais vanguardas, os capítulos nos fazem

pensar como a pluralidade das formas de

pensar e experimentar foram silenciadas

pelos regimes totalitários – nazismo e

stalinismo – e a profunda relação que se

estabelece entre arte e sociedade,

desenvolvida em meio as proposições

nacionalistas impostas a partir do

estabelecimento de uma única ordem

possível.

No capítulo 1 Alemanha, 1900-1929: do

segundo Reich à República de Weimar, por

exemplo, Bortulucce comenta a Bauhaus e a

Nova Objetividade para em seguida, no

capítulo 2 Alemanha, 1930-1945: da ascensão

do Nazismo ao fim do Terceiro Reich, contrapor

a estética nazista delineada a partir das

concepções de Hitler. A monumentalidade,

as releituras do passado greco-romano e o

constante uso da Arqueologia, resultaram na

construção de uma estética própria, eivada

de propaganda ideológica da nova ordem

estabelecida, que definia os parâmetros da

arte aceita e perseguia a considerada

degenerada.

Já nos capítulos 3 e 4 somos introduzidos

no universo russo. A contraposição

estabelecida aqui segue a mesma lógica dos

capítulos sobre a arte alemã. Assim, o capítulo

3, Rússia, 1900-1924: do Estado Czarista à

RESENHA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 165-168, NOVEMBRO 2009 167

União Soviética, trata das vanguardas russas,

a produção de cartazes, fotomontagem e o

cinema revolucionário, enquanto que o

capítulo 4, URSS, 1925-1939: da ascensão de

Stalin ao início da Segunda Guerra Mundial,

temos uma análise do culto à imagem de

Stalin. Os dois capítulos mencionados são

bastante instigantes na medida em que

contrapõe as vanguardas russas, pouco

estudadas e conhecidas no Brasil, ao

Realismo Socialista, arte oficial durante o

período stalinista. Os cartazes apresentados

pela autora permitem uma análise do discurso

imagético no qual arte, ideologia política e

estética se contrastam e ajudam a compor a

um complexo quadro em que Stalin e os jovens

indicam os caminhos da nova sociedade. Esses

cartazes educariam os trabalhadores e

imprimiriam elementos estéticos com claros

apelos ideológicos, contrastando imagem e

texto.

A estratégia adotada, de contrapor as

vanguardas com a arte oficial dos regimes

totalitários ao longo dos capítulos, é perspicaz

na medida em que não há nenhum

prejulgamento da qualidade técnica das

obras, mas ajuda a refletir sobre como o

campo das artes foi atravessado por políticas

de expressiva repressão. O trabalho de

Bortulucce permite ao leitor iniciante entrar

em contato com as diversas formas de arte

desenvolvidas na primeira metade do século

XX e, também, colabora com uma reflexão

sobre como regimes totalitários buscavam

construir um ideal estético a partir do

fortalecimento de determinados traços da

identidade nacional. Nesse sentido, a

materialidade das obras, nas suas diversas

expressões – pinturas, cartazes, fotografias,

fotomontagem – tornam-se um importante

instrumento para se pensar o passado

contemporâneo. A partir das imagens nas

suas mais diversas dimensões e materialidade,

a autora propõe uma reflexão sobre violência,

estética e liberdade, sobre visões de mundo

silenciadas e as hegemônicas, reconstruindo

as complexidades e nuances desses

momentos históricos que ainda nos deixam

perplexos. Por essas razões, a leitura da obra

é importante tanto para aqueles que

gostariam de conhecer mais sobre arte alemã

e russa do início do século XX como para

aqueles que buscam abordagens alternativas

para o estudo da História Contemporânea.

RESENHA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 169-172, NOVEMBRO 2009 169

Zita Rosane Possamai

Doutora em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora adjuntona Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Autora de, entreoutros artigos, “Fotografia e cidade”. ArtCultura (UFU), v. 15, 2008.

Recebido em: 20/05/2009 Aceito em: 25/06/2009

MACHADO JUNIOR, Cláudio de Sá. Imagens da sociedadeporto-alegrense: vida pública e comportamento nasfotografias da Revista do Globo (década de 1930). SãoLeopoldo: Oikos, 2009.

ZITA ROSANE POSSAMAI

170 DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 169-172, NOVEMBRO 2009

MACHADO JUNIOR, Cláudio de Sá. Imagens da sociedade porto-alegrense: vida pública e comportamento nas fotografias da Revista doGlobo (década de 1930). São Leopoldo: Oikos, 2009.

O ano de 2009 marca os oitenta anos dolançamento da primeira edição da Revista doGlobo, em janeiro de 1929. Sem intençõescomemorativas, Cláudio de Sá MachadoJunior traz a público livro que descortina aprimeira década desta revista gaúcha, cujacirculação chegou até o ano de 1967. Tantoa edição, quanto a pesquisa realizada peloautor foram financiados pelo FundoMunicipal de Apoio à Produção Artística eCultural – FUMPROARTE –, agência que hámais de uma década subvenciona projetosde âmbito cultural em Porto Alegre. Apublicação é modesta e sem o requinteacompanhado das edições compostas porimagens fotográficas, não raras vezes,privilegiando o visual em detrimento deanálises mais detidas. Esse aspecto, de formaalguma, diminui a importância do livro, poiseste já é de consulta obrigatória para ospesquisadores especializados na históriavisual brasileira, por trazer informaçõesrelevantes sobre a revista e as imagensfotográficas nela publicadas.

A obra subdivide-se em quatro capítulos.O primeiro capítulo, História com fotografias

e cultura visual, considerado de leitura maisárdua pelo próprio autor, é de interesse dopúblico especializado nos estudos sobre acultura visual. Aqui, um percurso teóricoaborda diferentes perspectivas dos estudossobre a cultura visual, em especial sobre asfotografias, na cena acadêmica, sobretudo,brasileira. O autor traça seu quadro de miradana perspectiva dos estudos históricos que

utilizam as fotografias. Nessa perspectiva, afotografia é vestígio do passado e, atravésdela, pode-se alcançar o social, focoprivilegiado da análise histórica. Nas suaspalavras, as fotografias só possuem sentido

enquanto objetos de estudos sobre a

sociedade. Entretanto, lidar com o visual e comas fotografias, conforme ressalta o autor,impõe buscar as formas de ver de outrasdisciplinas, como a Antropologia, a Literatura,a Semiótica, as Ciências da Informação. Amultidisciplinaridade é um imperativo aosestudos da cultura visual e, quem sabe estapossa ser uma aproximação da tão propaladatransdisciplinaridade.

O segundo capítulo, A década de 1930 e

Porto Alegre, constitui-se em panoramahistórico, no qual o autor parte dos aspectoseconômicos, políticos e sociais mundiais,passando pela história do Brasil, até chegarao contexto regional e da cidade de PortoAlegre. As páginas da Revista servem de fiocondutor para a elaboração de um quadrohistórico, no qual estão presentesacontecimentos como a ascensão dosregimes nazi-fascistas na Europa; a GuerraCivil Espanhola; o crack de 1929, nos EstadosUnidos; a Revolução de 1930; o Estado Novo;a intervenção política no Rio Grande do Sul;as transformações urbanas na capital. Esserol de acontecimentos apresentados pelaRevista do Globo mostra o quanto umperiódico auto-definido como de Variedades

e de cultura e de vida social, no contextoinvestigado, não prescindia de oferecer aos

RESENHA

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 169-172, NOVEMBRO 2009 171

leitores matérias jornalísticas de cunhoeconômico, político e social. Embora esta nãoseja preocupação do autor, essa característicavem indicar a pluralidade de seu público leitor.

O terceiro capítulo, A Revista do Globo

e sua visualidade, pretende apresentaraspectos da conformação visual doperiódico. O livro equilibra texto escrito econteúdo das imagens trazidas pela revista,tornando a leitura muito agradável e, dealguma forma, oferecendo umapossibilidade de exposição dos conteúdosvisuais interpretados pela l inguagemescrita. Analisando por amostragem umconjunto de 266 exemplares, foi objetivodo autor abordar a forma de composiçãodo conteúdo e de sua diagramação. Sãoanalisadas as capas, várias delas criadas porartistas gaúchos, como Sotero Cosme, outrazendo imagens emblemáticas docontexto de circulação do periódico, comoa imagem de Mickey Mouse ou de GetúlioVargas; os anúncios publicitários; as charges;as histórias em quadrinhos.

O quarto capítulo trata das imagensfotográficas, sendo intitulado Tipologias

Fotográficas: um perfil. Conforme refere otítulo, o autor optou por agrupar em conjuntoscom conteúdo recorrente as imagensfotográficas de modo a poder apresentá-lasde forma organizada. Nessa perspectiva,estão expostas imagens de personagenspolíticos; personalidades; eventos sociais eculturais; clubes; escolas; crianças; mulheres.Não se constitui em pretensão do autor, umaanálise das imagens fotográficaspropriamente ditas. O quarto capítulo é muitomais uma apresentação, acompanhada dedescrição e breves inserções nasproblemáticas que as imagens poderiamsuscitar, tais como representações dofeminino e questões de gênero, por exemplo.

Distanciando-se de obra puramenteacadêmica, a proposta preocupa-se emapresentar um leque de possibilidades paraaqueles desejosos de seguir as investigaçõesem cultura visual. Para o grande público,certamente, é obra de prazerosa leitura e quedá a conhecer um importante veículo editorialque marcou época.

Pautando-se pelas informações contidasna própria revista, o autor furta-se deoferecer informações valiosas sobre osurgimento da Revista do Globo, empreitadaeditorial levada a contento pela Livraria doGlobo, denominada Editora Globo a partirde 1956, e considerada a mais importanteeditora do Brasil, fora do eixo Rio e SãoPaulo, nos anos 1940. A Revista foi dirigida,inicialmente, por Mansueto Bernardi e,posteriormente, por Erico Veríssimo. Seusidealizadores pretendiam que esta fosse umperiódico de maior perenidade em relaçãoa outras iniciativas que haviam naufragadonas primeiras décadas do século XX, comoKodak, Máscara e Madrugada. A Revistadeveria ser moderna e afinada com oambiente cosmopolita e cultural da capitaldo Rio Grande do Sul no final dos anos1920. Constituía-se em periódico quinzenalcom conteúdo de leitura relacionado àsvariedades. Cultura e vida social faziamparte do universo a ser explorado pelarevista, através de matérias versando sobreliteratura, artes, cinema, principalmente. ARevista do Globo também se tornou veículode divulgação literária, seja das traduçõesde contos e artigos feitos pelo próprio Érico,seja das obras editadas pela Livraria,seguindo filão explorado por MonteiroLobato na Revista do Brasil.

A obra de Cláudio de Sá Machado Junior,ainda, assume relevância no contexto atual,em que o campo dos historiadores tomou

ZITA ROSANE POSSAMAI

172 DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 169-172, NOVEMBRO 2009

conhecimento do desaparecimento deacervos públicos da cidade de exemplares dasrevistas Kodak e Kosmos. Quandodocumentos de inestimável valor histórico ecultural são subtraídos do acesso público, as

iniciativas que visam preservar os acervoshistóricos e divulgar o conteúdo dessesdocumentos, como o faz a obra em questão,resta-nos aplaudir e desejar que outras maisvenham na mesma direção.

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, NOVEMBRO 2009 173

Normas para Publicação

A Revista Domínios da Imagem é uma publicação dirigida pelo Laboratório de Estudos dos

Domínios da Imagem na História – LEDI, um projeto integrado (pesquisa/extensão) do

Departamento de História e está vinculada ao Programa de Pós-graduação em História Social

da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Paraná – Brasil.

Tal iniciativa tem como objetivo difundir o diálogo intelectual entre pesquisadores que

atuam em diferentes regiões do país e no exterior, bem como fomentar a interlocução entre

distintas áreas que tratam dos domínios da imagem.

A Revista Domínios da Imagem tem periodicidade semestral, com fluxo contínuo para o

recebimento de artigos e resenhas. Conta com um Conselho Editorial e Científico e um Conselho

Consultivo, compostos por pesquisadores ligados à várias universidades brasileiras e

estrangeiras.

Solicitamos aos nossos colaboradores que enviem seus trabalhos para o endereço abaixo

mencionado atendendo as seguintes especificações:

• Todo o material deve ser encaminhado em envelope contendo: 3 (três) cópias impressas

em papel A4 (210x297mm), sendo 1 (uma) identificada e 2 (duas) sem identificação;

• 1 (uma) cópia idêntica em CD-Rom;

• 1 (uma) folha contendo os seguintes dados de identificação: seção para a qual envia o

trabalho (artigos ou resenhas), título do texto, nome completo do(s) autor(es), instituição a

que pertence, titulação, endereço completo, telefone, fax e endereço eletrônico;

• Os textos devem ter a seguinte formatação: editor Word for Windows, fonte Times New

Roman, tamanho 12, espaço entrelinhas 1,5 cm. e com margens de 3 cm;

• Todos os textos deverão ser apresentados após revisão ortográfica e gramatical;

• Os artigos terão a extensão de 08 a 20 laudas, no máximo, incluindo imagens;

• As notas deverão ser colocadas no final do texto, podendo nelas constar referências

bibliográficas e/ou comentários críticos ficando as referências restritas exclusivamente ao

espaço das notas. Da remissão deve constar, entre parênteses, o nome do autor, seguido

da data de publicação da obra e do número da página, separados por vírgulas. Exemplo:

(FRANCO, 1983, p. 114);

• Os artigos serão acompanhados de título, resumo e abstract de, no máximo, 10 linhas e de

03 palavras-chave em português e em inglês;

• Os artigos e as resenhas em inglês, francês e espanhol serão publicados na língua original,

sem a necessidade de título, resumo e palavras-chave em português;

• As resenhas poderão ter entre 03 e 05 páginas e deverão vir acompanhadas de 03 palavras-

chave em português e em inglês;

• As fotografias, ilustrações e/ou gráficos deverão vir em preto e branco, com resolução

mínima de 300 dpi, desde que as fontes sejam devidamente mencionadas e autorizadas,

respeitando a legislação em vigor;

• Abaixo do nome do autor deverá constar a Instituição à qual se vincula, bem como titulação

máxima;

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, NOVEMBRO 2009174

• Caso o trabalho/pesquisa e/ou experiência didática tenha apoio financeiro de alguma

agência de fomento, esta deverá ser mencionada;

• Caberá ao Editor responsável, a decisão referente à oportunidade da publicação das

contribuições recebidas.

Normatização das notas:

• SOBRENOME, Nome. Título do livro em itálico:subtítulo. Tradução. edição, Cidade: Editora,

ano, p. ou pp.

• SOBRENOME, Nome.Título do capítulo ou parte do livro. In: Título do livro em itálico.

Tradução, edição, Cidade:Editora, ano, p. x - y.

• SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Título do periódico em itálico.Cidade: Editora, vol.,

fascículo, p. x-y,ano.

• SOBRENOME, Nome. Título da tese em itálico:subtítulo. Tipo do trabalho: Dissertação ou

Tese (Mestrado ou Doutorado, com indicação da área do trabalho) – vinculação acadêmica,

local e data de apresentação ou defesa, mencionada na folha de apresentação (se houver),

página citada.

• AUTOR(ES). Denominação ou título:subtítulo. Indicações de responsabilidade. Data.

Informações sobre a descrição do meio ou suporte. (Para suporte em mídia digital)

Obs: para documentos on-line, são essenciais as informações sobre o endereço eletrônico -

apresentado entre sinais < >, precedido da expressão “disponível em” - e a data de acesso

ao documento, antecedida da expressão “acesso em”.

Os textos deverão ser enviados para o seguinte endereço:

Revista Domínios da Imagem

Departamento de História

Universidade Estadual de Londrina

Campus Universitário

Cx. Postal 6001

Londrina – Paraná – Brasil

CEP 86051-990

Patrocínio:

LEDI FAEPE / UELPrograma de Pós-graduação em História Social Especialização em História Social e Ensino de História