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  __________________ “Dos Bugres aos Pretos” – Elio Eugenio Müller  1 ELIO EUGENIO MÜLLER Dos ugres aos Pretos Coleção Memórias da Figueira Volume: III Editora – AVBL 2009 

DOS BUGRES AOS PRETOS

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Ao me envolver nestas pesquisas DOS BUGRES AOS PRETOS, me vi, de repente, retornando no tempo, indo parar em minha terra natal, nas aulas de português do curso ginasial ministradas pelo professor Bruno Prass. Naquele tempo distante tive que decorar I-JUCA PIRAMA, de Gonçalves Dias, inteirinho. Quem conhece o poema sabe que se trata de centenas de versos distribuídos em 10 partes. E, jamais esquecerei, da hora, quando o professor me chamou, solicitando que declamasse os versos 1 e 2 da parte IV. Vibrei muito... Eram versos que haviam tocado bem fundo a minha alma e já fui dizendo: Meu canto de morte, guerreiros ouvi, sou filho das selvas, nas selvas cresci; guerreiros, descendo da tribo tupi.... Já no vale do rio Três Forquilhas, me encontro sentado diante da figueira que fala. Perguntei a ela a respeito DOS BUGRES AOS PRETOS. Ouvi nomes de guerreiros onde apenas muda o nome da tribo e dos guerreiros. A figueira fala a respeito de AIVUPORA, cacique de uma tribo da grande nação caingangue e sou colocado diante do guerreiro Faustino... de tribo pujante, que agora anda errante, por fado inconstante... e os campos talados, e os arcos quebrados, e os piagas coitados, já sem maracás. E os meigos cantores, servindo a senhores, que vinham traidores, com mostras de paz... – verso de Gonçalves Dias. Nestas alturas da minha pesquisa eu até poderia afirmar, com base em A inquietação da Mente de Fahed Daher - meu confrade na AVBL – que escreveu: Há um braseiro nas seculares forças de heranças e nas crepitações e nos luzeiros de tanta inquietação das esperanças. É tanta singeleza... O mundo inteiro aos olhares de Deus, mas nosso olhar se perde numa aldeia de índios e num terreiro de escravos... de achar tão pouco e mesmo assim ver tanta pujança... Os meus neurônios ardem da vontade de encontrar toda essência da verdade e exultam, na ânsia de saber, de descobrir... E, de poder contar a todos, as histórias ouvidas e transmitidas pela figueira que fala e que revela os tempos dos nossos ancestrais... Penso que o nosso povo não deve perder as suas bases históricas. Isto significaria a perda total da sua memória. Isto significaria atraso e retrocesso, sem retorno. Por isto a minha mente não consegue descansar... Já são completados agora quase 40 anos de pesquisa e, eu gostaria de ver a minha obra da Coleção de Memórias da Figueira finalmente concluída. Estou feliz pelo fato de poder entregar aos leitores DOS BUGRES AOS PRETOS, o 3º volume da Coleção das Memórias da Figueira, lapidado e concluído. É a história de duas raças ou, porque não dizer, é a história de inúmeras raças, que viveram ou que ainda vivem a tragédia da escravidão, de extermínio e morte. Mas eles deixaram marcas indeléveis, que devem recebem um registro à fim de que possam se tornar num ensinamento e um alerta para a posteridade.Elio Eugenio MüllerMembro da Academia Virtual Brasileira de Letras - AVBL.

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ELIO EUGENIO MLLER

Dos Bugres aos PretosColeo Memrias da Figueira Volume: III

Editora AVBL 2009_________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 1

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

MLLER, Elio Eugenio Dos Bugres aos Pretos Coleo Memrias da Figueira Volume: III Elio Eugenio Mller -- Curitiba/PR. Editora AVBL, 2009. -- Bauru/SP 105p. il. 14,8 X 21 cm. ISBN: 978-85-98219-51-6 1. Contos: Literatura Brasileira. I. Ttulo. 06-10-09 CDD-869.93

ndice para catlogo sistemtico: 1. Contos: Literatura Brasileira - CDD-869.93 Copyright - ELIO EUGENIO MLLER [email protected] - [email protected] DOS BUGRES AOS PRETOS Coleo Memrias da Figueira - Volume: III ISBN: 978-85-98219-51-6 Direitos reservados segundo legislao em vigor Proibida a reproduo total ou parcial sem a autorizao do autor. EDITORA AVBL www.editora.avbl.com.br e-mail: [email protected]

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DOS BUGRES AOS PRETOSColeo Memrias da Figueira Volume: III A tragdia de duas raas

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NDICE - AGRADECIMENTOS - PALAVRA AO LEITOR - O FIM DOS BUGRES - Quem eram os ndios de Trs Pinheiros - Utenslios vestes e habitaes - O assassinato de Aivupor - A FESTA DA CUMEEIRA - O culto festivo em ao de graas - Uma festa muito animada - IY MARIA, UMA ESCRAVA ESPERTA - Quem escravo em Trs Forquilhas? - RELEMBRANDO A GUERRA DOS FARRAPOS - CASAMENTO DEVE SER POR AMOR - QUE DIFERENA FAZ SER UMA PRINCESA? - ESCRAVO BATIZADO PARA SER LIBERTO - Um trabalho duro como a dura pedra - A ESPANSO TERRITORIAL DA COLNIA - O templo de pedra coberto com palha - DADOS BIOGRFICOS DE ME MARIA - DADOS BIOGRFICOS DE MANOEL DOS SANTOS - DADOS SOBRE AS CASAS NOVAS - O sobrado do pastor - O templo de pedra 6 7 9 11 15 19 22 30 33 36 38 41 44 48 54 56 61 64 66 72 75 77 81

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- DADOS SOBRE OS NDIOS E OS NEGROS - Outros colonos evanglicos donos de escravos - CONCLUSO - Cativeiro ou liberdade NOTAS EXPLICATIVAS FIGURAS em Dos Bugres aos Pretos FONTES DE CONSULTA COLEO MEMRIAS DA FIGUEIRA

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AGRADECIMENTOS Agradeo a Deus fonte da vida e de toda a boa inspirao, que me permitiu a realizao desta obra. Que estas memrias sirvam como um instrumento para a edificao do Seu Reino sobre a terra. Doris, minha esposa, pelo permanente incentivo, como companheira valorosa, ao longo destes 40 anos de pesquisa e trabalho, que me ajudou a localizar e dar vida aos personagens, muitos dos quais parentes dela, que viveram esta saga contada em "Memrias da Figueira". Profa. Dra. Solange T. de Lima Guimares (Sol Karmel), amiga e conselheira, pela avaliao da obra e orientao. Ao publicitrio Rodrigo Sounis Saporiti pela orientao, na fase inicial, para a escolha do formato literrio da obra. escritora Maria Ins Simes, Presidente da Academia Virtual Brasileira de Letras - AVBL, pela orientao na fase de publicao do livro.

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PALAVRAS AO LEITOR Ao me envolver nestas pesquisas DOS BUGRES AOS PRETOS, me vi, de repente, retornando no tempo, indo parar em minha terra natal, nas aulas de portugus do curso ginasial ministradas pelo professor Bruno Prass. Naquele tempo distante tive que decorar I-JUCA PIRAMA, de Gonalves Dias, inteirinho. Quem conhece o poema sabe que se trata de centenas de versos distribudos em 10 partes. E, jamais esquecerei, da hora, quando o professor me chamou, solicitando que declamasse os versos 1 e 2 da parte IV. Vibrei muito... Eram versos que haviam tocado bem fundo a minha alma e j fui dizendo: Meu canto de morte,/ Guerreiros, ouvi:/ Sou filho das selvas,/ Nas selvas cresci;/ Guerreiros, descendo/ Da tribo tupi.. J no vale do rio Trs Forquilhas, me encontro sentado diante da figueira que fala. Perguntei a ela a respeito DOS BUGRES AOS PRETOS. Ouvi nomes de guerreiros onde apenas muda o nome da tribo e dos guerreiros. A figueira fala a respeito de AIVUPORA, cacique de uma tribo da grande nao caingangue e sou colocado diante do guerreiro Faustino... (...) Da tribo pujante,/ Que agora anda errante/ Por fado inconstante/ (...) E os campos talados,/ E os arcos quebrados,/ E os piagas coitados/ Sem seus maracs;/ E os meigos cantores,/ servindo a senhores,/ Que vinham traidores,/ Com mostras de paz./ (...). (Gonalves Dias em I-Juca-Pirama). Nestas alturas da minha pesquisa eu at poderia afirmar, com base em A inquietao da Mente de Fahed Daher - meu confrade na AVBL que escreveu: (...) H um braseiro/ nas seculares foras das heranas/ e nas crepitaes e nos luzeiros/ de tanta inquietao das esperanas./ tanta singeleza o mundo inteiro/ aos olhares_________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 7

de Deus e suas mudanas,/ mas nosso olhar se perde num terreiro/ (aldeia de ndios e num terreiro de escravos...) de achar to pouco e ter (e mesmo assim ver) tanta pujana (...). Os meus neurnios ardem da vontade de encontrar toda essncia da verdade e exultam, na nsia de saber, de descobrir... E, de poder contar a todos, as histrias ouvidas e transmitidas pela figueira que fala e que revela os tempos dos nossos ancestrais... Penso que o nosso povo no deve perder as suas bases histricas. Isto significaria a perda total da sua memria. Isto significaria atraso e retrocesso, sem retorno. Por isto a minha mente no consegue descansar... J so completados agora quase quarenta anos de pesquisa e, eu gostaria de ver a minha obra da Coleo de Memrias da Figueira finalmente concluda. Estou feliz pelo fato de poder entregar aos leitores DOS BUGRES AOS PRETOS, o 3 volume da Coleo das Memrias da Figueira, lapidado e concludo. a histria de duas raas ou, porque no dizer, a histria de inmeras raas, que viveram ou que ainda vivem, a tragdia da escravido, de extermnio e morte. Mas eles deixaram marcas indelveis, que devem receber um registro, a fim de que possam se tornar num ensinamento e um alerta para a posteridade. Desejamos a todos, leitura prazerosa, conforme o voto latino: Lectori salutem! (ao leitor, bom proveito!).ITATI RS, 7 de setembro de 2009. Elio Eugenio Mller Membro da Academia Virtual Brasileira de Letras AVBL_________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 8

O FIM DOS BUGRES - No existe mais bugre1 em Trs Pinheiros, disse o ndio missioneiro Manoel dos Santos, em resposta a uma pergunta que Miguel Barata lhe fizera. O ndio estava recostado contra o tablado, diante da igreja, sobre o qual pastor Voges haveria de fazer, ainda nessa manh, a abertura da Festa da Cumeeira2. Miguel Barata, na verdade, quisera saber se Manoel dos Santos era um integrante da aldeia de Trs Pinheiros, localidade que distava em torno de cinco quilmetros do ncleo da igreja. O ndio encarou o interlocutor com um olhar penetrante e insistiu na resposta: - No existe mais nenhum ndio em Trs Pinheiros. Eles que l moraram at 1847 eram ndios caingangues... Eu sou missioneiro!.

FIGURA 1: O ndio missioneiro Manoel Santos Fonte: Imagem dos arquivos do autor _________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 9

Barata quis ento saber: - Se voc missioneiro, como que veio parar aqui na Colnia?. O ndio explicou: - Voc no conheceu o Esteban Missioneiro, j falecido, que morava ao p da Serra? Ele era meu pai!. Miguel Barata mostrou-se surpreso e disse:- O Esteban Missioneiro era teu pai? Ele foi quase vizinho meu. Voc no sabe que eu tomei posse de umas terras do governo, na regio do Baixo Josaphat, h quase seis anos atrs, quando retornei da Guerra dos Farrapos. Tive que proceder assim, pois notei que alguns colonos daqui no queriam mais me ver na propriedade que aqui tenho. Fui morar a uns dois quilmetros do Esteban Missioneiro, na direo da Pedra Branca, no muito longe do Jacob Gross e de Joo Patrulha. Barata continuou: - H seis anos, logo que cheguei, tive a oportunidade de conversar com o soldado Esteban. Ele vivia muito na casa de Joo Patrulha. Mas jamais eu poderia imaginar que o Esteban era teu pai. Esteban me falou muito sobre os ndios missioneiros que foram parar em Torres, para trabalhar no Baluarte Ipiranga, com o Coronel Paula Soares. Manoel dos Santos fez um sinal afirmativo e explicou: - Quando eu era ainda criana pequena, meus pais e outros ndios das Misses foram trazidos, at Torres, como prisioneiros. O meu pai teve muita sorte. O Coronel fez dele um soldado. E, quando rebentou a Guerra dos Farrapos, meu pai foi mandado para a Serra do Pinto, com outros, para compor a Patrulha Serrana. - O ndio fez uma pausa e continuou: - Quando a guerra acabou, ficamos, primeiro no alto da Serra, morando em terras do governo... Depois, eu desci e vim morar aqui na Colnia. Casei com uma filha da Viva Menger, portanto, com uma irm de Joo Patrulha Menger. Tive a sorte de conquistar o amor da_________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 10

Magdalena. Esse o nome da minha mulher... Casei e fiquei morando aqui perto, junto com a sogra. Outros colonos foram se aproximando. O tablado ficou tomado pelos curiosos, todos querendo ouvir melhor o assunto. Algum do meio do grupo quis saber: - Ento voc cunhado do Joo Patrulha, que est ali, com mais alguns homens, fazendo o servio de segurana da festa?. Manoel fez sinal afirmativo e respondeu: - Conforme eu j expliquei, casei com a irm dele, na velha igreja de madeira, que fica aqui ao lado. O Joo Patrulha quem bancou a nossa festa. Aproximou-se do grupo tambm o jovem Adolfo Felipe Voges, filho do pastor. A ateno de todos voltou-se agora para ele. Ficaram esperando para ver o que ele teria para perguntar ou dizer. Quem eram os ndios de Trs Pinheiros O jovem Adolfo Felipe Voges cumprimentou os colonos ali reunidos, com muita ateno. Todos j sabiam que ele viera de So Leopoldo, onde, fazia diversos anos, fora estudar e aprender uma profisso. Ele viera em ateno ao convite que o seu pai, o pastor, fizera atravs de uma carta, para que viesse prestigiar a grande festa da cumeeira. O jovem era um oficial da Guarda Nacional de So Leopoldo, apesar de no ter ainda completado dezoito anos de idade. Ele j ostentava o posto de Alferes. Adolfo Felipe Voges colocou-se ao lado do ndio Manoel dos Santos e comentou: - Estive parado aqui ao_________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 11

lado escutando, um pouco, da conversa de vocs. Sem querer ser intrometido, eu gostaria que continussemos no assunto... O fato que eu era ainda criana quando conheci Aivupor, o cacique dos caingangues... Tambm conheci o Esteban Missioneiro e sei que este visitava com frequncia a Aldeia de Trs Pinheiros. Sei que ele e aquele cacique eram grandes amigos. Mas o fato que eu sa da Colnia h alguns anos para estudar... Tantas coisas aconteceram por aqui... Uma delas foi a morte do cacique... Quando me veio esta notcia, l em So Leopoldo, fiquei muito triste... Lembrei das histrias que meu pai contava sobre a bondade dos ndios de Trs Pinheiros, e das choupanas que eles haviam construdo, s pressas, para abrigar os pioneiros imigrantes, em 1826.... Manoel dos Santos olhou com ateno para o jovem militar e respondeu: - preciso dizer com toda a clareza, que Aivupor foi assassinado! O povo dele foi expulso das terras que eles possuam em Trs Pinheiros! Se permitirem, quero contar a vocs um pouco da vida desses meus irmos caingangues, que moravam em Trs Pinheiros. Conforme eu j disse ao Miguel Barata, eu sou missioneiro e eles eram caingangues... Eles que aqui haviam se estabelecido bem antes da chegada dos homens brancos. Os caingangues dominavam todo este vale. Para se alimentar eles coletavam frutas da floresta. Plantavam em torno da aldeia, como por exemplo, o milho e a mandioca. Colhiam a lima e a pacova (banana), que aqui so nativas. O que eles mais gostavam era do pinho, o fruto do pinheiro. Em Trs Pinheiros, como j diz o nome, existiram diversos pinheirais. Mas essas rvores daqui produziam pouco. A colheita iniciava em abril e j terminava logo, pois os macacos, os catetos e as queixadas tambm apareciam ali para se alimentar. Os ndios aproveitavam e matavam algum cateto e algumas queixadas, mas deixavam a manada principal com vida, pois precisavam de carne em outras pocas do ano. Quando o pinho terminava aqui, os_________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 12

caingangues faziam ento excurses para o Cima da Serra onde existiam grandes pinheirais. Eles demoravam sempre alguns dias e voltavam com os balaios carregados. Isso ia dessa forma at o final de julho, quando faziam mais uma grande excurso, trazendo balaios carregados de pinho. Eles aprenderam a conservar estas frutas por algum tempo. Descobriram que, se o pinho fosse colocado na gua do riacho, que corria perto da aldeia, este fruto durava mais de um ms, e podia ser consumido aos poucos. Penso que o alimento preferido deles sempre foi o pinho, apesar que a pacova e a lima estavam ali pertinho, durante muito mais tempo. O jovem Adolfo Felipe Voges interrompeu o relato do ndio e perguntou: - Como que voc sabe de tudo isto? Quem te falou a respeito da vida que os caingangues levavam aqui no vale do rio Trs Forquilhas?. Manoel dos Santos explicou: - O meu pai era amigo do Cacique Aivupor. Eles se conheciam desde bem antes da chegada dos imigrantes alemes. A primeira visita de meu pai aldeia de Trs Pinheiros aconteceu por volta de 1824. Ele veio em companhia do Coronel Paula Soares, de Torres. O Coronel, por ordem do Presidente da Provncia, trouxera alguns presentes para serem repartidos, a metade para os ndios da Aldeia dos Santos3 e, o restante, para a aldeia do Cacique Aivupor. Foram tecidos de algodo, faces, foices, panelas e outros presentes, tudo para agradar os ndios. Naquele dia o Coronel nomeou o meu pai para ser o cuidador da amizade entre Avuipor e as autoridades de Torres. Por este motivo, meu pai veio at Trs Pinheiros outras vezes, para trazer mais alguns presentes, principalmente tecidos de algodo. Quando o primeiro grupo de alemes entrou aqui no final de 1826, foi o meu pai que recebeu a tarefa de buscar o Cacique Aivupor para que o mesmo ajudasse os colonos na construo de choupanas. Naquela vez que os ndios de_________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 13

Aivupor construram a choupana templo, que existia logo ali.... Manoel dos Santos indicou para um local, nos fundos do sobrado do pastor, onde se via agora um terreiro, utilizado pelos negros, para secar feijo. Adolfo Felipe aproveitou a pausa no relato do ndio e comentou: - Isto verdade. O meu pai contou muitas vezes essa histria da choupana-templo que os ndios haviam construdo logo ali. Adolfo Felipe continuou relatando mais um pouco sobre a histria que ele ouvira do pastor: - O meu pai, pastor, sempre nos fez recordar um acontecimento que eles vivenciaram aqui na noite de Natal de 1826. Ele contava que aqui esteve o Cacique Aivupor em companhia de mulher, filhos e outros ndios da Aldeia de Trs Pinheiros. O pai contou ainda que o cacique e os demais ndios mostravam muita curiosidade com a prtica religiosa protestante. Eles se aproximavam para observar bem de perto, cada vez que a minha tia Catharina tocava a flauta dela. E, no final, papai at convidou todas as crianas para comparecerem diante do altar. Meu pai no tinha presente de guloseima para dar. A resolveu impor as mos sobre as crianas para abeno-las. Os filhos de Aivupor tambm se apresentaram e papai os incluiu na beno. O silncio tomara conta de todos os que rodeavam o ndio e o filho do pastor, apesar da algazarra feita pelos que acompanhavam a banda de msica, que estava chegando ao local, neste momento. Adolfo Felipe convidou: - Vamos aproveitar uma pausa, para tomar um caf? Depois retornamos at aqui para ouvir mais alguma histria que o Manoel dos Santos queira nos relatar. O grupo seguiu em direo da igreja de madeira, onde as mulheres ofereciam cuca, assado de porco, doces de polvilho e outras comidas, alm de cerveja caseira para_________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 14

os homens ou caf se assim o preferissem. Afinal, o caf era agora a bebida preferida, na Colnia. Caf que muitos cultivavam no meio dos pomares. Cada famlia moia os seus prprios gros, para o consumo na casa. Utenslios, vestes e habitaes dos Caingangues Aps o caf Adolfo Felipe Voges seguiu novamente at o tablado, em companhia do ndio Manoel dos Santos e dos demais colonos que antes j haviam participado do grupo. Enquanto isso, no ptio diante da igreja era anunciado em alta voz, que dentro de meia hora o pastor haveria de fazer a abertura da Festa da Cumeeira. O filho do pastor perguntou ao ndio: - Voc pode nos contar como era a vida na aldeia de Aivupor? Voc esteve l?. Manoel dos Santos respondeu: - Estive l muitas vezes. Sempre que fui, foi em companhia do meu pai. Ele que era amigo do cacique... Deste modo consegui conhecer muita coisa da vida que eles levavam. O ndio fez uma pausa e passou ento a falar: - As mulheres caingangues eram boas tecels. Quando deixaram de receber tecido de algodo de Torres, elas mesmas tiveram que voltar a tecer suas roupas. Elas utilizavam fibras de urtiga. Essas roupas eram muito importantes para proteo do corpo, no inverno. Os caingangues de Trs Pinheiros tambm fabricavam cestos e balaios de bambu e cip. Eram utenslios prticos para carregar a comida: o milho, a mandioca, as limas, o pinho e, principalmente, as pacovas que, quando j maduras, despencavam. Eles sabiam fazer_________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 15

vasilhas e pequenos potes de barro. Para caar eles ainda usavam arcos, flechas, lanas e bordunas, feitos com pontas de bambu ou ossos bem afiados, contendo geralmente veneno nas pontas para matar a caa, mais rapidamente. Mas eles preferiam utilizar instrumentos cortantes recebidos de presente, dos brancos: o faco, o machado, a foice e facas. As facas e faces eram instrumentos mais prticos para tirar o couro de um animal e depois fatiar a carne para assar. O ndio fez nova pausa. Viu o interesse dos presentes e continuou muito animado: Muitos pensam que os caingangues apenas moravam em malocas. Mas no era assim... Eu tive a oportunidade de ver tambm um fojo ou buraco de bugre. O fojo que eu vi estava escavado na terra e tinha uma profundidade de dois metros. Sobre aquela cova circular que delimitava a casa, eles haviam erguido uma cobertura de folhas sustentada em uma armao de madeira, em parte fixada na base da casa, e em parte fixada nas bordas laterais da cova. Esse fojo servia para proteger melhor, do frio do inverno, as crianas menores. As camas eram bem confortveis, feitas com grandes pedaos de casca de rvore, cascas em formato de verdadeiras canoas rasas, sobre as quais ajeitavam folhas secas de palmeira. Os caingangues de Trs Pinheiros no conheciam a rede, para dormir.

FIGURA 2: ndio caingangue na coleta de pinho. Fonte: Acervo do Arquivo da Famlia Voges. _________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 16

Neste momento o prprio pastor Voges aproximou-se do grupo. Bateu nas costas do filho com carinho e perguntou: - Qual o assunto to importante que prende vocs aqui no tablado h tanto tempo? Em breve vocs tero que desocupar este local, pois daqui irei conduzir a abertura da Festa da Cumeeira.. Adolfo Felipe explicou: - Papai, nem se preocupe... J estamos concluindo... O Manoel dos Santos est nos ensinando sobre a vida que os ndios levavam l na aldeia de Trs Pinheiros, antes de serem exterminados ou expulsos. O pastor se quedou pensativo por um instante e falou: - verdade... Foi uma grande tragdia, esse assassinato do Cacique Avuipor. Eu que sempre imaginava que um dia poderia fazer um trabalho de catequese entre eles. J naquele Natal de 1826, durante o culto pude observar o quanto eles gostavam do som da msica, encantados com a flauta mgica da minha cunhada Catharina Diefenthaeler Petersen. Imaginei que a msica seria um elo de aproximao e um importante meio de atrao, para inserir os ndios na nossa igreja. No entanto, nos anos seguintes, os ndios foram se afastando cada vez mais do contato conosco. Quem era responsvel por este distanciamento? Teriam sido os ndios, ou foram os colonos que no desejaram a aproximao e nem a presena de ndios em nosso meio? Basta lembrar a reunio de 1839, a tal da reunio da clareira, quando diversos colonos apresentaram diante de ns a preocupao com a presena de ndios, que viviam cruzando pelas lavouras deles. Voges lembrou ento do relato que ele fizera, desta reunio, como segue: O medo dos ndios. Os ndios ficam cruzando pelos fundos das propriedades, na trilha_________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 17

que seguia ao p do morro, rente floresta, de Trs Pinheiros at a rea das Pacovas, seguindo pela rea das Limeiras e desembocando na rea de caa dos ndios, na Pedra Branca. Os ndios j transitavam por ali, desde bem antes da chegada dos colonos. Porm, os moradores de Trs Forquilhas, agora comeavam a criar obstculos. No queriam mais que os ndios transitassem pelas propriedades. Colonos vindos recentemente trouxeram histrias tristes, de casos ocorridos no interior de So Leopoldo com relatos, dando conta sobre o roubo de crianas e da destruio de casas e lavouras de colonos. Na Colnia de Trs Forquilhas no houvera, desde 1826 nenhum caso de violncia. Apenas relatos sobre bugres que colheram milho em lavouras dos colonos, assim como os colonos haviam passado a colher o pinho, as pacovas e limas, dos ndios. Afinal, o ndio sempre coletara da natureza, os frutos e a caa que esta oferecia prodigamente. Surgiu, no entanto, um clima de mal estar entre ndios e colonos. Os ndios se mostravam contrariados quando eram impedidos de coletar algumas espigas de milho. Assumiam gestos hostis, quando algum tentava impedi-los, mais ainda de querer impedi-los de seguir pela trilha, pelos fundos das propriedades dos colonos, que afinal sempre lhes pertencera. Os colonos, vendo os ndios andando com arcos, flechas e faces, no mais saam de casa, sem levar uma espingarda, a tiracolo. O pastor afastou-se novamente, para dar ateno a outros grupos de pessoas, espalhados em diferentes pontos do ptio da igreja.

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O assassinato de Aivupor e a expulso dos ndios O ndio Manoel dos Santos tomou novamente a palavra: - Pelo que entendi, temos apenas meia hora, at que o pastor venha fazer a abertura da festa... Mas j que prometi falar sobre a morte de Aivupor, peo licena para fazer isso agora. A histria aconteceu mais ou menos assim: Era por volta de 1846, logo aps o trmino da Revoluo Farroupilha. O cacique Aivupor, em companhia de alguns homens e mulheres, estava caando l na Pedra Branca. Ali existia muita caa. A caa foi interrompida, de repente, com a chegada de um dos homens que permanecera na aldeia, em Trs Pinheiros. Vinha marcado pelo pavor. Avisou que eles haviam sido expulsos da aldeia por um numeroso grupo armado, que se diziam donos daquela terra. Aivupor confiou o grupo de caa para Faustino, seu filho mais velho, e saiu em corrida desabalada, rumo a Trs Pinheiros, sozinho. Foi uma pequena maratona, percorrendo mais de vinte quilmetros, sem parar. Aivupor entrou na aldeia, que agora estava em poder do grupo chefiado por um sesmeiro luso brasileiro, que se apossara das choupanas, para ali comear a instalao de sua futura moradia. Aivupor apresentou-se como o cacique da aldeia. Exigiu a imediata desocupao do local, afirmando que os ndios eram os donos legtimos daquelas terras, h mais de trinta anos. O sesmeiro mostrou um papel, concedido pelo Governo Imperial. Por aquele instrumento ele teria sido contemplado, j antes do princpio da Revoluo Farroupilha, de toda aquela rea de terra. Era uma "Sesmaria" de trinta milhes de metros quadrados, com mais de dez quilmetros de extenso e trs quilmetros de largura. A sesmaria fazia divisa ao norte com as terras da Colnia Alem, (na divisa com a Linha Mittmann), e ao sul chegava at Sanga Funda, prximo da Lagoa dos Quadros. Dentro dessa rea cabiam, no mnimo, trs colnias alems_________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 19

de Trs Forquilhas. Aivupor deixou claro que, somente morto ele abandonaria a exigncia para reaver as terras de Trs Pinheiros. No lhe interessava o restante das terras de Arroio Bonito at Sanga Funda, apenas queria Trs Pinheiros. Iniciou-se uma discusso, pois diversos ndios da aldeia, escondidos nos matos, com a chegada do cacique, haviam se aproximado. Principiou o esboo de uma reao. Aivupor e os demais foram, porm, trucidados e seus corpos jogados num perau4, no longe dali. Enquanto isto o filho de Aivupor se aproximava da aldeia. Logo foi avisado pelas mulheres e crianas, do terrvel fim do cacique. No havia a menor possibilidade de enfrentar aqueles homens fortemente armados. Naquela hora Faustino5, o filho do cacique, decidiu retornar para o alto da Serra, para o interior de Lagoa Vermelha, de onde seu pai sara, ainda menino, h mais de trinta anos, tempo quando ainda no existiam moradores brancos no interior do vale do rio Trs Forquilhas. O filho mais velho de Aivupor assumiu assim a chefia do grupo. O jovem, agora na condio de chefe, com o nome de Cacique Faustino, resgatou o corpo do pai e dos demais ndios mortos. Realizou um sepultamento simples e rpido na regio conhecida por "Limeiras de Bugre" ainda no vale do rio Trs Forquilhas, junto de uma das trilhas que conduzem rumo Serra). O jovem cacique Faustino, chegando ao alto da Serra, recebeu a ateno do Cacique Vitorino Cond6, que ento estava a servio do indigenista Alferes Rocha Loures. Graas a esta orientao recebida de Cond, o jovem Faustino, filho de Aivupor, pode criar espao e prestgio. Atualmente, ele passou a prestar servios colonizao promovida pelo Imprio, nas regies da Serra. O Governo prometeu para ele uma reserva... E, a mesma, foi cumprida... O povo caingangue que saiu daqui expulso, tem agora a guarida e segurana de uma reserva. Deve-se isto_________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 20

ao empenho pessoal do indigenista Rocha Loures7. Este militar visitou a nossa Colnia, faz poucos anos, imaginando poder encontrar aqui, caingangues extraviados. O que ele, no entanto, constatou? Apenas viu: . O pastor Voges aproximou-se novamente, agora em companhia do Comandante Schmitt e de outros dirigentes da Comunidade. Finalmente chegara a hora to aguardada por todos... A festa teria incio...

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A FESTA DA CUMEEIRA - A construo do nosso templo foi uma obra , disse o pastor Voges, ao abrir a solene festa da cumeeira. Ele falou assim, procurando mexer com os brios dos colonos e imigrantes, reunidos neste momento festivo, para incentiv-los a colaborar com mais desprendimento nas obras de construo do templo. Era o ano de 1853, no segundo domingo aps a Pscoa, ou domingo de Misericrdias Domine ou tambm conhecido Domingo do Bom Pastor. Normalmente este domingo ocorre no ms de abril. O povo estava ali reunido para a Festa da Cumeeira do templo de pedra da Comunidade Protestante de Trs Forquilhas.

FIGURA 3: O templo de pedra (1853). Fonte: Imagem do arquivo da Famlia Voges. _________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 22

Viam-se as paredes nuas, com o madeiramento do telhado. Era ainda uma construo bem rstica, sem assoalho, sem janelas e sem telhas. Mas, para a Comunidade, j representava o surgimento do novo templo, mesmo que incompleto. O pastor continuou: - Se algum entre ns gosta ou no gosta, a verdade que a existncia da nossa igreja, na Colnia de So Pedro de Alcntara das Trs Forquilhas, uma obra que contou com o suor de diversas raas. Foi o suor dos bugres, na poca do Natal de 1826, quando os ndios foram os principais construtores, que aqui ergueram o nosso primeiro templo. Foi uma choupana feita com folhas de palmeira. Esse nosso templo-choupana, s os mais antigos ainda conseguem recordar dele, com saudades. O segundo templo, de madeira, foi erguido pelo carpinteiro Gross, com a ajuda dos soldados do Baluarte Ipiranga e de alguns escravos serradores enviados pelo Coronel Paula Soares. J foi um templo, coberto com pequenas folhas, de tbua. Esse templo pode ser visto, ali ao lado, mesmo que em mui mau estado, j imprprio para o nosso culto divino. Por causa deste mau estado, desde 1850, venho realizando os cultos, na sala de visitas do meu sobrado. Nestes ltimos cinco anos, os principais construtores desta nova igreja, agora de pedra, foram os pretos, liderados pelo mestre canteiro8 Pai Vicente, que a ergueram. Os pretos mostraram que so to morigerados9 como ns, pois que talharam todas as pedras, lentamente, uma aps uma, com perfeio. E quem as transportou? Foram os irmos Schwartzhaupt. E a, de novo, foram necessrios os pretos, que as colocaram sobre o alicerce, erigindo estas paredes sob a orientao do nosso competente mestre pedreiro Jos Pereira de Souza10. E finalmente a cumeeira, ali no alto, tanto a viga bem como os caibros, feitos com a melhor madeira de cedro de nossas florestas, com o trabalho competente do carpinteiro Friedrich Dresbach que, antes de adoecer, conseguiu deixar tudo pronto, aguardando a_________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 23

montagem final da cumeeira. Por estes motivos enumerados, bendigo Deus Pai e Filho e o Esprito Santo por tudo isto. Deus nos ajudou e permitiu que chegssemos at aqui. O pastor silenciou e, novamente, ecoaram os acordes musicais da bandinha, formada recentemente. Voges continuou: - Convido Manoel dos Santos, membro da nossa igreja, filho do ndio missioneiro Soldado Esteban. Venha aqui com a sua famlia. Ele representar os ndios, os missioneiros e os caingangues, que construram o nosso primeiro templo. No posso convidar o carpinteiro Philip Peter Gross, por no estar hoje aqui, entre ns. Ele construiu o segundo templo, de madeira Por isto convido o menino Carl Daniel Gross, filho do carpinteiro, para que venha at aqui. Convido ainda Me Maria, a preta, membro de nossa igreja e que mora na minha casa. Venha at aqui diante do altar com o seu companheiro Pai Vicente, mestre canteiro, o esquadrador11 das pedras, e seus filhos. Essa gente representa todos os pretos que participaram da obra. Convido finalmente os irmos Schwartzhaupt, pois foram eles, sozinhos, que dia aps dia, ms aps ms, e ano aps ano, arrastaram as pedras, desde as Pedreiras do Fundo do Arroio e das Bananeiras, at aqui. A famlia Schwartzhaupt fabricou aquela resistente zorra12 que ali est exposta para todos verem. Foi s encangar13 os bois nela e com pacincia arrastar as pedras. Venham aqui os irmos Schwartzhaupt, em companhia dos seus pais. Convido o mestre pedreiro Jos Pereira de Souza, genro do carpinteiro Gross, tambm membro desta nossa Comunidade Evanglica de So Pedro de Alcntara das Trs Forquilhas. E antes de concluir, quero ainda fazer uma homenagem ao carpinteiro Friedrich Dresbach, que deixou pronta a madeira para a cumeeira. Convido o neto dele Luis Dresbach, que tambm venha at aqui, para que represente o av Friedrich. E, finalmente, convido o Sr. Karl Klein, meu vizinho, para que venha se_________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 24

unir aos demais convidados. Afinal, ele que consta como o doador do terreno sobre o qual foi erguido o nosso templo. Diante da porta do templo estava erigido um forte tablado de madeira, com mais de um metro de altura, enfeitado com folhas de palmeira e ramos de flores. O pastor e o Comandante Philipp Peter Schmitt estavam ali parados conduzindo a cerimnia. As famlias aglomeravamse em torno, com visvel curiosidade. Ouviram-se novamente os acordes da bandinha de msica, enquanto as pessoas mencionadas pelo pastor, tambm subiam no tablado. Todos eles eram pessoas humildes e demonstravam certa timidez. Tomaram o lugar indicado, ao lado do Comandante Schmitt. O Comandante comeou a chorar. Chorou de alegria. Entre lgrimas falou em voz alta, para que todos o ouvissem: - Agora posso entregar a minha alma para Deus. O meu sonho de ver a nossa Colnia prosperar se realiza. Agora j so perto de vinte e cinco anos que nos encontramos, aqui no vale do rio Trs Forquilhas. Pastor Voges voltando a usar a palavra disse: Estou vendo que o Sr. Schmitt est muito emocionado com este momento. Em seguida ele conseguir fazer o seu discurso para a inaugurao da cumeeira. Depois o tesoureiro Johann Peter Jacoby apresentar a lista dos contribuintes e os valores doados, at esta data. Hoje Jacoby tambm abrir uma nova lista para aqueles que desejarem ajudar na compra das telhas. Precisamos cobrir esta cumeeira do nosso templo. Agradeo a todos os que ao longo destes ltimos anos contriburam financeiramente para a construo da igreja. Isto foi vital para o pagamento destes homens que trabalharam na construo.

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Comandante Schmitt, agora recomposto da forte emoo que o acometera, deu um passo frente, dando destaque para a sua figura imponente, parado sobre o tablado diante da porta do templo de pedra, ele falou: Hoje temos um destes dias muito especiais e importantes para a nossa Igreja do Bom Pastor, de So Pedro de Alcntara das Trs Forquilhas. Por isto tenho por dever comear agradecendo... Agradeo a Deus que nos concedeu este momento. E para continuar, sado de modo especial a todos aqueles que de alguma forma ajudaram ou ainda esto ajudando na construo deste templo, os homens e as mulheres e desde as crianas at os mais velhos. Esta Casa de Deus dever servir a nossa Comunidade por diversas geraes e ser um lugar de fortalecimento espiritual e para a pregao da f que professamos. O comandante continuou: - Lembro como se fosse hoje, quando em 1833 aqui colocamos a pedra fundamental deste templo de pedra. Um templo que era um sonho, muito acalentado por todos ns. A construo comeou, lentamente. Com grande dificuldade muitos colonos, em mutiro, quebraram enormes blocos de pedra, para fazer o fundamento. Mas ningum mais quis continuar talhando pedras. Reclamaram que o trabalho era muito pesado. E, a situao ficou assim, s no fundamento, por quase quinze anos, at o final da Revoluo Farroupilha. Em 1847, o nosso pastor seguiu at Porto Alegre com o firme propsito de solucionar o problema da falta de talhadores de pedra competentes e da falta de pedreiro. Ele teve a felicidade de encontrar o mestre pedreiro Jos Pereira de Souza, de origem aoriana, recm-chegado ao Brasil. Alm deste, localizou no mercado da Rua da Praia trs negros libertos, que haviam trabalhado em atividades de cantaria e assim os contratou, para acompanharem o mestre pedreiro, na viagem at Trs Forquilhas, pois que seriam teis e at necessrios para o trabalho de cantaria. Finalmente, o pastor seguiu at o mercado de escravos, em busca de um preto, de preferncia, que fosse mestre no ofcio de talhar pedras_________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 26

para construo. Obteve sucesso nesta busca, e conseguiu adquirir o escravo mestre canteiro Vicente. Apesar de ser considerado um velho, pois estava com quarenta e cinco anos de idade e, por cima, ainda era manco, em virtude de ferimento grave que sofrera fazia muitos anos, o preo era bem baixo e, portanto, bem acessvel. O nosso pastor estava satisfeito, pois queria levar um mestre canteiro. Mas o mercador passou a insistir querendo vender ainda uma das muitas mulheres escravas, que estavam ali em oferta. O pastor olhou as mercadorias, como eram chamadas as pretas. Pai Vicente se aproximou do pastor e indicou uma jovem negra, que estava com um olhar assustado, magra e maltrapilha, encolhida em um canto... O mercador incentivou, explicando que essa jovem preta teria sido trazida da frica, recentemente, e por isso nem aprendera a nossa lngua nacional. Voges decidiu-se ento, pensando em fazer uma surpresa para a esposa que se queixava das muitas atividades, como professora, dona de casa e esposa de pastor. Desta forma o pastor apareceu aqui na Colnia trazendo um mestre pedreiro, trs negros libertos e um casal de escravos, ou seja, o Pai Vicente e a Me Maria. De l para c, passaram seis anos. Para o negro Vicente, foram seis anos para quebrar pedras, com a ajuda dos trs negros libertos. Seis anos para que as pedras fossem arrastadas pelos jovens Schwartzhaupt, at o local da construo, para que o pedreiro Pereira de Souza pudesse edificar as paredes, com o auxlio de nossos colonos voluntrios. Portanto, foram seis anos para chegar at esta cumeeira. Por isto estamos realizando hoje, com muita emoo e grande felicidade, esta nossa festa. Deve ser um sinal pblico do nosso agradecimento a Deus. Reunidos hoje aqui, esto todos os que ajudaram na edificao ou que ainda podero ser motivados a participar. O pastor insistiu que houvesse uma festa dupla. Como j foi anunciado, um motivo a Festa da Cumeeira. Outro motivo a nossa Kerchweihfest - Festa do Kerb, que aqui realizamos desde 1827, rememorando a inaugurao da igreja de madeira._________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 27

No topo da cumeeira est colocada uma enorme coroa Richtkranz, enfeitada por fitas de seda, coloridas. E, ali ao lado, temos o nosso mastro com a coroa do Kerb Kerbkranz. Que tenha incio a nossa festa e peo que prestem ateno. s dez horas, iniciar nosso culto de gratido, neste mesmo local..

FIGURA 4: O mestre canteiro esquadrando uma pedra. Fonte: Gravura feita pelo autor, 2009.

Novamente ouviram-se os acordes da bandinha. Era inegavelmente uma grande festa. Ficava evidente o sentido da unio familiar e comunitria, com gente vinda de todos os cantos da Colnia. Diversas competies estavam programadas para acontecer durante o dia e que deviam animar a festa. A primeira competio, ainda antes do culto, consistia na procura de uma garrafa. O regente da banda faria a frente ao som da bandinha. Ele, na verdade, era um morador novo da Colnia, um oficial prussiano que viera para defender o_________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 28

Brasil na guerra de 185114, mas ficara doente e fora dispensado. No servia mais para a guerra e pastor Voges o convidara a vir morar e trabalhar na Colnia de Trs Forquilhas. E assim, ali estava ele, Christian Tietbhl, um bom professor e um grande msico. Ele convidou: - Agora, a nossa bandinha vai comandar a procura da garrafa. Quem quiser participar, venha e nos siga. Pessoas comearam a se apresentar desejosas de participar da competio. Todos queriam encontrar a garrafa. Professor Tiethbhl falou de novo: - Uma garrafa foi escondida ontem, em algum lugar qualquer. Quando a bandinha chegar mais perto do local, vai tocar mais forte. Quando se afastar ir diminuir a intensidade da msica. Quem encontrar a garrafa receber um bonito prmio. Enquanto a bandinha saa em verdadeira procisso para ajudar a revelar o felizardo ganhador da garrafa, o Comandante Schmitt aproveitou para uma conversa com os seus conselheiros, dirigentes da Comunidade. O tesoureiro Jacoby pediu a palavra: - Preciso alertar que ningum apareceu para registrar alguma nova doao. Creio que teremos problemas para angariar os recursos que precisamos, com urgncia, para comprarmos as telhas e em condies de pagar os construtores.... O Comandante Schmitt mostrou preocupao: - No podemos deixar este madeirame da cumeeira desprotegido, por muito tempo.... Pastor Voges interveio: - No encham a cabea com preocupao, neste dia to especial. Se as doaes no forem suficientes, proponho que o templo seja coberto, provisoriamente com folhas de palmeira. Pai Vicente e os trs pretos libertos, da minha casa, faro o servio. Eles so_________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 29

muito bons nisto.... E Voges continuou: - Esta ser a melhor maneira de ganharmos tempo, pois pretendo conseguir alguma doao financeira que seja do prprio Imperador D. Pedro II ou que seja do Visconde de Sinimbu que governa a nossa Provncia. Tenho conhecimento que a Comunidade Evanglica em So Leopoldo recebeu um bom auxlio financeiro, para as obras da igreja deles. Acredito que temos igual direito de receber uma ajuda. Todos os conselheiros revelaram satisfao, e voltaram para se envolver na festa e nos preparativos para o culto em ao de graas que haveria de iniciar dentro em breve. O culto festivo em Ao de Graas O povo reuniu-se novamente diante do templo. Era um culto ao ar livre. Sobre o tablado via-se agora um altar improvisado, enfeitado com folhas de palmeira e muitas flores silvestres. O professor e msico Christian Tietbhl j retornara com a bandinha, aps a procura da garrafa. Os msicos integraram-se com os cantores do coral. O moleiro Christian Mauer distribuiu folhas com os cnticos previstos. O pastor sorridente e com particular entonao da voz, anunciou que o coral e os msicos fariam abertura solene do culto de gratido. Aps a costumeira liturgia, o pastor declamou o Salmo 103, enfatizando o segundo versculo: - Bendize, minha alma ao Senhor, e no te esqueas de nenhum s de seus benefcios. Chegara o momento mais esperado: o sermo. Ele leu o texto do Evangelho de Joo 20, 24 a 31 e enfatizou Bemaventurados os que no viram, mas creram e explicou: Bem aventurados so aqueles que reconhecem imediatamente a voz do seu Pastor. Bem-aventurados so aqueles que reconhecem Jesus, para dizer-lhe . O lugar certo para ouvir a voz do Bom Pastor na reunio dominical da Comunidade, que aqui em Trs Forquilhas est construindo esta nova Casa do Senhor. Se algum semelhante ao Tom, se algum ainda duvida de Jesus, ento sinal de que precisa freqentar mais esta casa. na Comunidade reunida que Jesus se revela, para ser reconhecido e adorado. Sejam, portanto, todos vocs bem-aventurados que sempre vem para participar das reunies dominicais desta Igreja do Bom Pastor. Ao longo de todo o sermo, que foi bilnge, o pastor foi acentuando a importncia do contato com o Evangelho de Jesus. E, em meio pregao, passou a fazer propaganda de exemplares da Bblia que ele adquirira de um fornecedor da Alemanha. Ele estava colocando-os venda.

FIGURA 5: Exemplar da Bblia, vendido em 1853, para marcar a inaugurao do templo. (Por deciso do autor, este exemplar permanecer em exposio permanente no saguo de entrada do prdio da Prefeitura Municipal de Itati). Fonte: Foto do autor. Ano 2008. _________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 31

O pastor continuou: - Cada famlia que tem condies, compre hoje o seu exemplar da Bblia Sagrada como uma lembrana deste dia memorvel. Assim ter logo tambm a Palavra Sagrada em sua casa. Cada famlia, em seu prprio lar, ter o recurso disponvel de ler para toda a famlia reunida, um trecho do Evangelho de Jesus. Isto vale mais ainda para aqueles que moram distantes da igreja. Desta forma, esta festa da cumeeira Richtfest representar um marco firme para todas as nossas famlias bem como para a Comunidade e, para as futuras geraes, sempre baseados na Bblia Sagrada. Diversos chefes de famlia comearam a fazer sinais, revelando a disposio para adquirir uma Bblia. O pastor foi tranqilizando a todos e explicou: - Tenho vinte exemplares da Bblia disponveis. Com certeza todos os que fizeram sinais, podem ter um exemplar, logo aps o culto. Quando chegou ao final da celebrao o pastor solicitou: - Vamos agora caminhando atrs da nossa bandinha que nos conduzir para a entrada festiva ao interior da nossa igreja. Christian Tietbhl fez um sinal para os msicos aguardando pelo pastor e o Comandante Schmitt que foram na frente. Pela primeira vez a Comunidade se reunia ali, sobre o cho batido do templo e, vendo no alto os caibros nus, que deixavam visvel um cu azul, lmpido e ensolarado. O regente fez sinal e a bandinha executou uma msica de louvor e o comandante Schmitt declarou ento em alta voz: - Considero o templo inaugurado!. O pastor finalizou com a orao do Pai Nosso, feito inicialmente em lngua alem e, em seguida, na lngua_________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 32

nacional. Permitiu assim, que de alguma forma, todos os presentes se sentissem includos no evento. Uma festa muito animada Ao sarem da igreja, j era a hora do almoo. Tudo estava preparado... Estava disponvel um lauto almoo na base de porco assado, acompanhado de mandioca cozida e cuca. Para os adultos havia cerveja caseira e para as mulheres e crianas um suco de framboesa. As pessoas foram se servindo e procurando lugares sobre o gramado, diante da casa do pastor e na clareira, diante do bosque. Famlias inteiras, em grupos com vizinhos ou com parentes, se reuniam em animada conversa, enquanto almoavam. Quem no trouxera talheres e nem prato, colocava a carne e a mandioca sobre uma tabuinha de madeira, ali disponvel, e passava a se servir com os dedos. Ningum pagou nada, uma vez que tudo viera de doaes espontneas. Todos haviam ajudado de alguma forma, ofertando porquinhos, mandioca e cucas. Outros que nada tinham para doar, ajudaram com o trabalho, na carneao e no preparo do assado. Enquanto o almoo corria tranqilo, os msicos ficaram animando o povo com alguns acordes musicais. Depois que todos almoaram e at descansaram um pouco, ecoou uma voz anunciando: - Teremos agora a competio da escalada do mastro do Kerb. Todos conheciam muito bem esta competio, pois era praticada na Colnia desde 1827, em cada Festa do_________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 33

Kerb. Logo voluntrios comearam a se apresentar. No alto do mastro via-se colocada uma coroa - Kerbkranz - com lenos de seda, coloridos. O pau do mastro fora ensebado. Estava to liso que a escalada quase se tornava impossvel. Os jovens mesmo assim insistiam. Quem alcanasse o topo e conseguisse arrancar um leno o trazia como um grande trofu para ser entregue namorada, noiva ou para a esposa. Ficaram mais de hora, tentando e insistindo. Quanto mais o tempo passava, mais fcil ficava uma escalada, pois o sebo, aos poucos, ia sumindo, pois ficava grudado na roupa, nos dedos e nas pernas dos primeiros e afoitos competidores. A competio s terminou quando no mais sobrou leno de seda na coroa, do alto do mastro. No final foi realizado o leilo da coroa. Aquele que apresentasse o maior lance podia pegar o machado e derrubar o mastro. Para que a coroa fosse preservada, voluntrios ajudaram o vencedor, segurando o mastro e fazendo-o descer suavemente sobre o solo. Neste ano o maior lance para a derrubada do mastro foi oferecido por um morador novo, que se estabelecera em terras nacionais na regio do Barreiro, no fundo da Boa Unio. Tratava-se do tropeiro Felipe Neves da Rocha15, o Laguneiro e que estava noivo de Magdalena Gebhardt. Muito orgulhoso ele reuniu ao seu redor os familiares da noiva e alguns vizinhos, para mostrar suas qualidades no manuseio de um machado. Em instantes o mastro se encontrava no cho e a coroa foi entregue futura sogra, para que a usassem como trofu e ornamento na morada deles. Em seguida foi servido o caf da tarde que consistiu de cuca, doce de polvilho, po, manteiga e schmier de frutas, alm de cerveja caseira, suco de framboesa ou caf, de acordo com a vontade de cada um. Novamente formaram-se grupos animados, para comer e beber vontade._________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 34

Sempre eram guardadas algumas cucas para a chamada corrida da cuca. Uma voz anunciava: - Venham aqui os competidores para a corrida da cuca. Fica estabelecido que o vencedor de uma corrida no pode voltar a competir em uma nova rodada. Eram formados grupos de homens, de jovens, de mulheres e at de crianas. Cada grupo de corredores era colocado em um ponto de partida. A um assobio forte, era dada a partida. Tinham que percorrer em torno de cem metros. O vitorioso conquistava o prmio almejado, uma gostosa cuca. Novos grupos podiam ser formados, enquanto houvessem cucas destinadas para os vencedores.

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IY MARIA, UMA ESCRAVA MUITO ESPERTA A realizao desta Festa da Cumeeira envolveu muitas mulheres e homens da Comunidade, em especial, no preparativo da alimentao. Toda a faina j tivera incio dias antes, na preparao de cucas e carneao dos porquinhos. Durante o dia da festa, em particular um grande nmero de mulheres, ficaram no enorme varandado da casa pastoral, desde cedo, descascando e preparando mandioca e encaminhando tudo para que ao meio dia e depois no caf da tarde, os convidados pudessem se fartar.

FIGURA 6: Iy Maria, ou Me Maria Fonte: Gravura do acervo da Famlia Voges

Destacava-se Iy Maria, por ser a nica preta no meio dessas mulheres. O que mais chamava a ateno talvez no fosse a cor de sua pele, mas o fato de que Iy_________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 36

Maria dominava perfeitamente a lngua alem. Era admirada por este motivo e de vez em quando alguma mulher a interpelava para saber algo mais da vida dela. Frau Kellermann, num momento de folga em torno dos paneles quis saber: - Como que voc domina to bem a lngua alem? Parece que fala at melhor do que a nossa gente que estudou na Alemanha. Iy Maria apontou para a esposa do pastor e falou: Veja a boa professora que eu tive. Quando aqui cheguei em 1847, ela me ensinou a ler e escrever no alemo. No comeo foi muito difcil porque eu no sabia nem escrever as letras da minha prpria lngua. Outras mulheres tambm se juntaram a elas. Frau Schmitt brincalhona e muito afeioada com Iy Maria passou os dedos na pele dela e falou em tom de pilhria: Essa tinta que pinta a tua pele no desbota?. Iy Maria e as demais mulheres dos colonos riram. E a preta respondeu: - Essa tinta de raa forte. Essa no desbota. cor forte igual ao sangue que corre nas minhas veias. Magdalena Strach, a filha da Viva Menger ali presente e que era a esposa do ndio Manoel dos Santos se envolveu na conversa: - Voc fala igual ao meu marido. Ele que um ndio missioneiro e tambm aprendeu a lngua alem conosco, tambm todo cheio de prosa, quando se fala a respeito da cor da pele dele. Logo ele vem com essa conversa de que o sangue que corre nas veias dele o mais forte que existe dentre as raas que habitam sobre toda a terra existente.

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Frau Feck aproximou-se e com ares de pena perguntou: - Me Maria, deve ser muito ruim, para vocs pretos terem que viver para escravo de outros. A preta olhou para professora Elisabetha, ficou sria por alguns instantes e respondeu: - muito ruim ser escravo. Mas eu no me considero nenhuma escrava. Vocs so as testemunhas disto. Eu moro dentro da casa da minha patroa e fao as minhas refeies mesa, junto com eles. Ser que no tenho a liberdade que necessito?. Me Maria silenciou por uns instantes e acrescentou: - Frau Feck, a minha vida deve ser muito parecida com a sua. A senhora no trabalha como empregada de Frau Schmitt desde que aqui chegaram? Certamente a senhora tambm faz as suas refeies junto mesa deles.... O rumo da conversa no foi do agrado de Frau Schmitt. Ela se aproximou novamente de Iy Maria e disse: - Voc mulher muito esperta e observa tudo. Mas vamos s panelas, que depois do culto o povo logo vai chegar aqui com muita fome. Na verdade, todo o servio estava bem encaminhado e praticamente tudo estava pronto para ser servido. Quem o escravo em Trs Forquilhas? Frau Schmitt puxou a esposa do pastor pelo brao, at um canto e reclamou: - Elisabetha, voc sabe que eu gosto muito da tua preta que uma mulher extraordinria. muito inteligente, ou melhor, muito esperta e despachada para o servio, que at no conheo pessoa igual. Mas s vezes ela fala demais... Devias chamar a ateno dela.

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Professora Elisabetha olhou para a amiga de modo compreensivo, porm discordou: - Elisabeth Schmitt, voc que minha xar e uma grande amiga. Quero te dizer uma coisa com toda a franqueza... Aqui em minha casa a Me Maria sempre foi ensinada a dizer claramente o que ela pensa... Ela uma mulher livre, igual a ns... E, se pensares um pouco irs lembrar, que no foi ela quem levantou o assunto que te incomodou!. Frau Schmitt falou: - Eu sei. Foi a Feca que provocou a preta Maria. Vejo a minha Feca por demais revoltada, nestes ltimos anos.... - E a revolta dela no com toda a razo?, quis saber professora Elisabetha. O que aconteceu com a filha dela, ser que gostaramos que acontecesse com as nossas filhas? - Depois de relembrar todos estes fatos, a esposa do pastor perguntou: - Voc no concorda que a Frau Feck tem um motivo muito justo para toda essa revolta dela?. - No posso discordar disso. Falou a Frau Schmitt. - Mas Frau Feck no precisa ser igualada aos escravos... nisto que Me Maria me feriu... Ela errou ao dar aquela resposta!. Professora Elisabetha aproveitou o momento para dar conselhos amiga: - Minha grande amiga, quero confessar que eu e o Carlos s vezes temos conversado a respeito da vida que os Feck vem levando desde que entraram aqui, em 1826, em companhia de vocs. O que foi a vida deles? Nunca saram de perto da sua casa... S esto a correndo, trabalhando... O que eles ganharam com isto? Esto a com quase nada, na pobreza. A casa deles est ruim e vai at cair em cima deles, qualquer dia destes. Vocs precisam fazer alguma coisa a mais, por esta famlia..._________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 39

- Fazer o qu, por exemplo?. Quis saber Frau Schmitt. - O Comandante dos homens de maiores posses e de maior prestgio em nossa Colnia. Ele pode mandar construir uma casinha nova para os Feck. Ele pode pagar melhor pelos servios que esta famlia vem lhes prestando, nos trabalhos de lavoura, no armazm e, mais ainda, porque Frau Feck como uma verdadeira empregada domstica na casa de vocs.... Frau Schmitt ficou sria e pensativa e no teve mais disposio para continuar nesta conversa. Este final lhe pesara sobre a mente e, ela concordava que alguma providncia era necessria, para resolver a situao difcil em que os Feck se debatiam, h anos. A festa foi terminando e quando os ltimos raios de sol foram sumindo por detrs dos morros, pouco a pouco, as famlias iam at o pasto para buscar e encangar os bois em suas carretas. Ou ento, outros, encilhando seus cavalos. J os de perto saam a p, em grupos animados. Aos poucos o silncio voltou para o ptio da igreja.

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RELEMBRANDO A GUERRA DOS FARRAPOS A Festa da Cumeeira e do Kerb alcanou as expectativas dos dirigentes da Comunidade. O povo acorrera em massa, ao convite, comparecendo alguns movidos pelos sentimentos de religiosidade e outros por mera curiosidade. O ambiente festivo foi marcado pela acolhida a todos. Puderam ser vistas inmeras famlias catlicas das redondezas da Colnia, como o Rocha, os Cardoso, os Nunes, j bem entrosados com as famlias protestantes num clima bastante fraterno. Era o que pastor Voges procurava promover atravs de sua pregao na igreja... Na manh posterior ao dia da festa, o ptio do templo continuou movimentado. Inmeras pessoas ficaram envolvidas na atividade de desmontar os diversos barracos que haviam sido construdos ao lado do templo e o tablado na parte frontal. Os trabalhos mais pesados eram liderados por Miguel Barata, o veterano de duas guerras, da Cisplatina e dos Farrapos. Ele, agora, j estava com cinqenta anos de idade. Estavam presentes ainda o vizinho Jacob Becker (vinte e dois anos), o pedreiro Jos Pereira de Souza (trinta e dois anos) em companhia do cunhado Carlos Daniel Gross (onze anos), Benes Witt (vinte e oito anos), Peter Feck (onze anos), Joo Patrulha Menger (quarenta e dois anos) em companhia do filho Michel (onze anos), Joo Schwartzhaupt, conhecido como Joo Juarte (quarenta e um anos), Daniel Helbig (vinte e nove anos), Johannes Brusch (vinte e quatro anos) e seu irmo Joaquim (vinte anos anos), Carl Engel (vinte e cinco anos), Jorge Maschmann (vinte anos), Johann Jacob Klein (quinze anos) e Adolfo Felipe Voges (dezoito anos) e o Pai Vicente (cinqenta e um anos) em companhia dos negros libertos. Johann Bobsin_________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 41

que se prontificara a ajudar no pode comparecer e mandou o filho Adam Martin (dezoito anos). Johannes Bobsin estava com uma encomenda urgente de artefatos de couro, que precisava ser entregue. Bobsin passara agora a fabricar dos mais variados artefatos, desde caronas, bucal, peitoral, rdeas, cabealho, barrigueira, rabicho, badana e at sobresinchas. Ele anunciava a fabricao de badanas especiais, feitas com couro de veado ou de capivara. Bobsin no fazia sapatos e nem botas, mas fazia tamancos, com madeira de baguau ou de soita-cavalo. Muitos na colnia j haviam comprado desses tamancos. Voltando novamente a nossa ateno ao grupo que havia atendido a solicitao de Miguel Barata, encarregado pela arrumao e limpeza do ptio da igreja, via-se que eram em nmero suficiente, para dar conta da tarefa. At algumas crianas ali estavam, envolvidas em meio ao esforo dos adultos. A faina era intensa, no entanto faziam pausas para descanso e para se alimentarem. A comida era preparada por Me Maria e servida na casa pastoral que ficava ao lado do templo. Em cada pausa, para os mais jovens e para as crianas, o centro das atenes era de imediato, dirigido ao Miguel Barata. Queriam ouvir as histrias que ele sabia contar a respeito de sua participao nas guerras, da Cisplatina e a dos Farrapos. Alguns queriam saber o motivo das guerras. Outros queriam detalhes sobre combates e a motivao que houvera para a revolta dos farroupilhas, nas lutas contra o Imprio. Peter Feck era apenas um menino, mas ele j gostava de levantar perguntas e questes complicadas e s vezes controversas. Em certo momento dirigindo-se a Miguel Barata, quis saber: - "J faz algum tempo que pelas minhas idias passam certas dvidas. Uma delas se a luta_________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 42

dos farroupilhas foi uma revoluo ou se foi uma guerra. J ouvi pessoas dizendo que foi uma guerra...". Miguel Barata levantou o chapu e coou os cabelos, dando sinal que estava cheio de dvidas... Voltando-se para o filho do pastor disse: - Temos aqui um Alferes da Guarda Nacional de So Leopoldo. Tenho certeza que ele tem uma resposta para essa questo, pois para mim no vejo diferena, pois seja revoluo ou, seja uma guerra, a mesma luta entre dois lados que no se entendem.... Adolfo Felipe colocou-se no centro do crculo que se formara no refeitrio e explicou: - Uma guerra acontece quando dois pases soberanos entram em confronto blico. E, revoluo, a luta interna, que ocorre num pas. Para mim, tenho por certo, que tudo comeou com uma simples revoluo. Os riograndenses do sul comearam a luta em busca de uma justia social e econmica para a Provncia. Eles foram luta por que viram que de outra forma eles no seriam nem ouvidos e muito menos atendidos. Depois decidiram fazer a independncia da Provncia estabelecendo a Repblica do Piratini. Daquele momento em diante as lutas passaram a ser uma guerra entre dois pases, tendo de um lado os farrapos gachos, da Repblica do Piratini e do outro lado os caramurus do Imprio Brasileiro. Miguel Barata bateu palmas e falou: - Viva para o filho do pastor Voges... Podemos notar o quanto ele estudioso e j est sabendo das coisas..

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CASAMENTO DEVE SER POR AMOR O pastor convidou o filho Adolfo Felipe para uma conversa reservada. Iniciou o dilogo de modo bastante cauteloso e foi dizendo: - Filho, j sabias que o Comandante Schmitt gostaria de ver todas as filhas casadas, antes de morrer?.

FIGURA 7: Pastor Voges e o filho Adolfo Felipe Gravura feita pelo autor, 1974.

- Pretendentes no devem faltar... - respondeu Adolfo Felipe, com um sorriso no rosto. - Existe um porm meu filho... O casal Schmitt veio nos procurar aps a festa para propor que tratemos do teu casamento com a Philipina Rosina deles, ela que agora est com vinte e um anos de idade. Comentaram que o casamento no precisa ser imediato... Mas eles querem_________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 44

saber se a unio pode ser acertada... A cerimnia poder ficar para dentro de dois anos!. Adolfo Felipe ficou srio e respondeu: - Pai eu no sinto amor por esta moa e, alm disso, ela j est com trs anos a mais do que eu. Somos bons amigos, no resta dvida, mas nada mais... Afinal crescemos juntos, aqui na Comunidade... Mas casamento, isso no!. Elisabetha que at ento ficara margem da conversa, aproximou-se e comentou: - Filho, lembre bem que a Filipina uma moa muito prendada e de fina educao! difcil encontrar moas to distintas, por aqui.... - Me, sempre fui um filho obediente e procurei seguir os vossos conselhos e disciplina... Sou grato pela educao que me concederam. No entanto, no me peam para que eu case com Filipina Schmitt. Adolfo Felipe encarou os pais com muito carinho e ento continuou: Minha irm Catharina, eu e os manos Frederico e Jacob, samos muito cedo de casa, para estudarmos em So Leopoldo. Por um lado isto foi muito bom para ns. Mas por outro lado, isso trouxe muitas conseqncias para as nossas vidas. Pensem s em quantos novos relacionamentos nos foram proporcionados, com as famlias de l. A minha irm, por exemplo, conheceu o Jacob Sebastian Diehl. Lembro muito bem como vocs, princpio se mostraram contrariados. Diziam que no esperavam que a filha fosse gostar de um rapaz que a pudesse levar para a Igreja Catlica. Devo, no entanto, citar que vocs tiveram uma inesperada surpresa quando o Jacob vos procurou dizendo estar disposto a casar na nossa igreja. Ele at se comprometeu a batizar os filhos contigo... E no dia 22 de julho de 1851, papai, voc teve a satisfao de oficiar a beno da mana Catharina e do Jacob Diehl...._________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 45

Elisabetha interrompeu o filho e quis saber: - Filho, voc conheceu alguma moa de So Leopoldo e com a qual pensa casar?. Adolfo Felipe sorriu, pegou na mo da me e puxou tambm a mo do pai e confidenciou: - Conheci muitas moas e algumas muito lindas e da minha idade e, outras at mais jovens. Diversas demonstram interesse para casar comigo. Porm, quero deixar claro que me considero muito jovem para dar este passo... Quero permanecer na Guarda Nacional de So Leopoldo por mais algum tempo. Alm disso, pretendo me especializar numa profisso... Quero ser um Mestre Carpinteiro! Vocs j puderam ver do que sou capaz, pois confeccionei o altar da nova igreja. Todos os que vieram para a festa tambm admiraram o meu trabalho. Meu plano de fazer todos os mveis para montar a minha casa e somente depois disso pensar em casar.... O pastor e esposa olharam para o filho demonstrando orgulho e satisfao, nitidamente estampados em suas fisionomias. Adolfo Felipe continuou com outros argumentos, e disse: - Vejam o meu primo Peter Friedrich Petersen que, depois da morte dos pais, vocs o criaram aqui em casa como se fosse vosso filho. Ele casou com a Susana Sparremberger, mas a unio foi por amor. Quero citar tambm o Joozinho Bobsin que noivo da Rosina Knippel. Qualquer um de ns pode ver que eles se amam muito. E o nosso vizinho Jacob Becker que est de namoro com a Elisabetha, filha do nosso vizinho Karl Klein. Eles tambm se amam.... O pastor interrompeu o filho, apertou-lhe a mo e falou: - Filho, o que voc falou verdadeiro. Sei o quanto voc inteligente e sabe muito bem do que quer da sua vida. Ns o educamos para que seja assim... Tenho certeza_________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 46

que a tua me concorda comigo... Por isso devemos permitir que voc tenha toda a liberdade para escolher a mulher com a qual deseja se casar e que seja por amor, sim! Deixe este pedido do casal Schmitt por nossa conta, pois saberemos muito bem o que podemos e devemos dizer para eles... Eles havero de compreender.... Adolfo Felipe respirou, aliviado... Estava feliz com a atitude to compreensiva dos pais. Quando o filho se retirou da sala, Elisabetha enlaou os braos em torno da cintura do marido e falou: Querido, hoje tivemos mais uma prova de que ningum deveria querer ser o dono de seus filhos ou filhas... Eles necessitam de liberdade de escolha, para construrem o seu futuro.... O pastor nada disse. Apenas enlaou a cintura da esposa com os seus braos fortes e deste modo permaneceram por algum tempo, como se estivessem em meditao ou orao.

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QUE DIFERENA FAZ SER UMA PRINCESA? Me Maria era uma boa contadora de histrias que sabia entreter os seus ouvintes, quer fossem adultos ou quer fossem crianas. No entanto, particularmente as mulheres, que mais a procuravam para ouvi-la contando histrias ou ensinando coisas sobre os costumes africanos, da culinria, dos remdios (ervas e razes medicinais) e das danas africanas. At o jovem Adolfo Felipe, filho do pastor, a surpreendeu, ao pedir: - A senhora pode parar um pouco com as suas tarefas e sentar aqui? Tenho algumas perguntas e curiosidade sobre o seu povo de origem africana.... Agora que o jovem estava novamente em casa por alguns dias, ele no perdia oportunidade para conversar com as pessoas mais vividas. E Me Maria lhe parecia muito vivida, apesar de ainda jovem. Revelando toda a admirao que nutria por ela, ele continuou falando: - Iy Maria, fico espantado com a senhora, de como domina to bem a lngua alem, com essa pronncia bem correta das palavras.... Me Maria sempre to disposta e alegre, que era o seu jeito normal de ser, respondeu: - A sua me uma grande professora que sabe ensinar bem e ela insiste em dizer que saber ler conquistar a liberdade. J faz agora, seis anos que ela me d aulas para que eu possa, cada vez melhor, ler e escrever a lngua alem e o portugus. - E a senhora no tem receio de esquecer a sua lngua africana?. Perguntou Adolfo Felipe.

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- A minha lngua africana que do yorub, da grande Nao Nag16, eu a pratico todos os dias com o meu marido, o Pai Vicente e com os outros negros da Colnia que procedem do costume yorub. Ainda bem que aqui, na maioria, somos filhos da Nao Nag Yorub. - Por favor, fale-me das suas origens na frica. A senhora deixou parentes l?. - No sei o que foi feito da minha me Yab Yey e do resto de minha famlia. O que nunca mais esquecerei, foi do dia em que as nossas aldeias foram atacadas, de surpresa. Diversos homens morreram lutando... O meu pai e os meus irmos mais velhos estiveram entre os mortos. Ns, os que sobrevivemos, fomos levados cativos, para sermos vendidos como escravos.... Adolfo Felipe interrompeu Iy Maria e quis saber: Certamente foram mercadores portugueses que praticaram esta maldade contra o seu povo!. Me Maria franziu as sobrancelhas e com um leve tom de amargura, falou: - No foram os mercadores portugueses que nos atacaram. Foram os nossos prprios irmos de cor, africanos, de uma tribo vizinha. Eles foram tomados pela cobia e resolveram ganhar dinheiro com os mercadores de escravos. Eles destruram as nossas aldeias que eram governadas pela minha me, a Yab Yey, a Rainha Me. Eu, Ndanji, a filha mais velha quem um dia haveria de suced-la no governo de nossa tribo.... - Mas ento voc uma princesa africana?. Disse Adolfo Felipe com admirao. - Que diferena faz ser uma princesa, ou s ser um sdito, quando a pessoa vendida no mercado de escravos?. Respondeu Me Maria._________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 49

Adolfo Felipe se manteve pensativo por um instante ento continuou: - Sou de opinio de que aqui em casa a senhora nunca teve um tratamento de escrava... Ser que os meus pais no a deixariam sair livremente, se a senhora o pedisse?. Me Maria olhou nos olhos de Adolfo Felipe, demoradamente e perguntou: - O que ser livre para um negro, aqui neste mundo de escravido africana que existe no Brasil? Ir para onde? O que eu poderia fazer, alm de buscar algum outro dono, para trabalhar em alguma casa ou fazenda? No quero nem pensar em trocar a vida que aqui levamos, eu, meu marido e meus filhos... Com os teus pais eu sou uma mulher livre, que foi alfabetizada e que sabe ler e escrever... Aqui temos roupas boas e recebemos calados novos que so feitos para os nossos ps... Aqui eu vivo dentro da vossa casa, o dia inteiro, sem ser despachada para uma senzala fedida.... Adolfo Felipe viu a me passando por perto a chamou, interrompendo a conversa de Me Maria: - Me, vem c e s oua o que descobri sobre Me Maria... Ela uma princesa africana!. - Conheo bem a histria de Me Maria. Respondeu Elisabetha. - Sei que ela foi separada da Rainha Me e de seus irmos e depois foi vendida como escrava... Sim, ela foi aprisionada e vendida por gente de sua prpria raa.... Adolfo Felipe, notando que o que ele havia descoberto no era nenhuma novidade para a me, voltouse para Me Maria, perguntando: - A sua me e outros familiares, irms ou irmos, tambm foram trazidos ao Brasil?. Me Maria franziu novamente as sobrancelhas e tomada pela tristeza, explicou: - Ns fomos separados em_________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 50

lotes, como se fossemos um rebanho de gado. Fui separada de Yab Yey, pois eles sabiam que ela era uma Rainha Me e bem sabiam que eu era uma princesa. Quando os mercadores portugueses vieram, fui comprada junto com um lote de homens e de mulheres. Os portugueses, que vieram naquela vez, apenas compraram um lote e os outros ainda ficaram l, para serem vendidos mais tarde, para outros interessados... possvel que a minha me nunca tenha sido vendida... S posso tentar imaginar as coisas, imaginar qual possa ter sido o destino dela... A mesma coisa se aplica para as minhas irms que estavam em meio de outros lotes de escravos... Outros mercadores certamente as compraram.... Elisabetha permanecera ao lado de Me Maria e observando a tristeza que toldava em seu semblante, aconselhou o filho: - Adolfo, no fique a com tantas perguntas que s fazem Me Maria recordar todo o horror da tragdia17 que ocorreu em sua vida e de seu povo... Eu sei que ela, se est aqui com vida pelo fato de ser uma mulher muito forte e corajosa, mas, mesmo assim, deixe-a sossegada... Alm do mais, confesso que eu no saberia mais viver dentro desta casa sem a sua presena e a sua ajuda... Me Maria, mais o Pai Vicente e os filhos agora j so parte de nossa famlia.... A preta ajoelhou-se diante da sua patroa, tentando beijar-lhe a mo. Elisabetha, surpresa, reclamou: - Nada disso, no, no... Levante-se, j!. Me Maria levantou-se com rapidez e falou: - Minha senhora, esteja certa que aqui desejamos viver, para sempre. O meu sonho de ter algum dia a permisso para, aqui no terreiro18 desta casa, poder reunir os filhos e filhas da Nao Nag Yorub que vivem nesta Colnia, para ensin-los nos nossos costumes... De ensinar-lhes as danas e as rezas, no ritmo de nossos tambores... Vou ser_________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 51

fiel herana que Yab Yey me concedeu, quando a abracei pela ltima vez, l em nosso cativeiro africano. Me Maria passou a cantarolar na lngua yorub, com um brilho de felicidade nos olhos. Foi declamando uma de suas cantigas prediletas: K'ra t w n godobo19. k'ra t w n godobo. Adolfo Felipe ficou escutando e quis ento saber sobre o sentido ou significado dessas palavras. Me Maria explicou: - Esta a minha reza predileta e sempre foi uma reza forte. Na ltima estrofe so estas as palavras, que eu acabei de cantar na lngua yorub, ou seja . E Me Maria continuou: - No dia em que eu estive venda, no mercado de escravos de Porto Alegre tambm cantarolei essas palavras. Pai Vicente me ouviu, ficou muito emocionado e explicou tambm ser um negro da etnia yorub, da grande Nao Nag, trazido ao Brasil fazia mais de vinte anos. Em seguida, quando o teu pai apareceu l e comprou o Pai Vicente, foi a que ele aproveitou a situao para me indicar e ser includa na compra... Naquela hora eu no podia imaginar que foi uma grande felicidade, ser includa na aquisio que o teu pai fez, pois recebi a oportunidade para uma vida digna e humana. - Pai Vicente j era manco, naquela poca quando foi comprado?. Quis saber Adolfo Felipe.

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FIGURA 8: Pastor Voges foi para adquirir apenas um mestre canteiro. Fonte: Gravura feita pelo autor. Ano 2009.

Me Maria sorriu e confirmou: - Ele ficou manco por causa de um acidente que ele teve, j fazia muitos anos, numa pedreira em Viamo onde tinha que trabalhar. Ele foi colocado venda por causa disto... Esqueceram que ele era um bom mestre de cantaria... E j que o teu pai procurava por um bom canteiro, ele at teve muita sorte... Teve a sorte de encontrar Pai Vicente, um verdadeiro mestre... E foi tambm a minha sorte20, com certeza, pois seno para qual senzala fedida eu teria sido levada?.

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ESCRAVO BATIZADO PARA SER UM LIBERTO O pastor e esposa estavam sentados sombra do taquaral nos fundos da casa e observavam Me Maria envolvida em dar banho nas suas crianas. Elisabetha comentou com o marido: - Querido, com a chegada de Me Maria para dentro da nossa casa, nos foram dadas experincias jamais imaginadas. Lembro como se fosse hoje... ela veio sem entender uma nica palavra alm da lngua africana... nem o portugus e muito menos da lngua alem ela tinha qualquer noo. O pastor sorriu e respondeu: - verdade, eu me divertia tanto vendo vocs duas tentando se comunicar... Eram gestos... Eram mmicas... E voc mostrando objetos e coisas e dizendo e repetindo palavras que designavam as coisas que voc mostrava. - Mas valeu a pena, disse Elisabetha. E ela continuou: - Hoje j nos comunicamos muito bem. Voc viu como ela aprendeu bem a lngua alem... Ela at escreve muito bem, na nossa escrita gtica que muitos consideram complicada.... O pastor passou ento, em silncio, a recordar das muitas mudanas que este casal de negros trouxera para dentro da sua casa. Lembrou do problema surgido com a questo do vnculo eclesistico de Me Maria, por ocasio do nascimento da primeira criana dela. O pastor continuando com o dilogo, falou: - Lembras quando em 18 de novembro de 1847 nascera a pequena Antonia de Maria e Vicente? - Voc se refere ao batismo da pequena, para ser integrada em nossa Igreja?. Lembrou Elisabetha._________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 54

- isso mesmo.... Disse o pastor. - A minha compreenso sempre foi a de que uma famlia que possui escravos, estes passam a pertencer mesma. A Antonia quando nasceu aqui dentro de nossa casa, estava com isto j destinada a ser evanglica, para assumir a nossa profisso de f.... - Eu considero que isto justo.... Concordou Elisabetha. Penso que a Me Maria e o Pai Vicente tambm seguem agora a nossa profisso de f. Eu tratei isso com ela, em 1947, em minhas aulas de leitura. Fiquei feliz quando percebi que ela conseguiu aceitar essa idia... Um dia ela disse: . - verdade. Disse Voges. - isso facilitou a realizao do batismo. Mas lembro que eu ainda enfrentava outras dvidas, como, por exemplo, a escolha de padrinhos. Cheguei concluso de que padrinhos ou madrinhas devem ser membros da nossa comunidade. Assim, no caso do batismo de Antonia, decidimos convidar a Magdalena Eigenbrodt e a Catharina Jacoby que serviram de madrinhas. O pastor passou a relembrar daquele dia 18 de janeiro de 1848, do momento mpar do primeiro batismo, realizado ainda na velha igrejinha de madeira. Ele, na alocuo, havia enfatizado: . J a 20 de fevereiro nasceria Johannes Heinrich Carneiro, filho de Maria da Nao Nag e de Vicente Carneiro, batizado no dia 10 de maro de 1850, tendo por padrinho o jovem colono Heinrich Krass. Voges passou a recordar da repercusso destes batismos na Comunidade. Existiam na Colnia outros imigrantes alemes que tambm haviam conseguido burlar a lei que proibia os imigrantes de ser donos de escravos. Na casa de Karl_________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 55

Kellermann, a escrava deles tambm tivera uma menina em 26 de maro de 1850 e em seguida batizada na igreja, tendo por padrinhos o ndio Manoel dos Santos e sua esposa Maria Starch dos Santos. Esta mesma escrava da casa dos Kelermann teria, em seguida, no dia 16 de outubro de 1851 uma segunda menina batizada com o nome de Maria Magdalena, ocasio em que Maria Strassburg Kellermann fora convidada para ser a madrinha. O pastor dirigindo-se esposa falou: - Fato que me surpreendeu muito foi quando o Johannes Nicolaus Mittmann apareceu aqui, comunicando que tambm tinha uma filha de escrava para batizar.... - Por que surpresa? Ele soube que ns e os Kellermann j havamos batizado as crianas negras nascidas em nossas casas e as integramos na Comunidade.... Disse Elisabetha. Voges, em sinal de resposta, comentou: - Confesso que sempre passou pela minha cabea a idia de que o Mittmann poderia vir a batizar a criana, pessoalmente. Depois traria os dados para serem registrados em meu Livro Eclesistico. A criana qual Voges se referia era Thrisa (Tereza), nascida na casa dos Mittmann no dia 03 de janeiro de 1852. Um trabalho duro como a dura pedra Pai Vicente foi procura de Adolfo Felipe e o convidou para uma visita aos trs negros libertos que haviam se estabelecido nos fundos do Arroio das Mulas21. Selaram as montarias e se colocaram a caminho._________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 56

Na verdade Pai Vicente desejava aproveitar a ida para aquela localidade e mostrar ao filho do pastor uma das pedreiras de onde ele havia, com a ajuda dos trs negros libertos, extrado muitas das pedras necessrias para a construo do novo templo. Chegando quela pedreira, Adolfo Felipe quis saber: - Quem escolheu os locais para estabelecer as pedreiras?. Pai Vicente explicou: - Quando aqui assumi esta tarefa no princpio de 1847, havia somente uma pedreira velha e abandonada, nas Bananeiras. De l, j faz agora vinte anos, haviam sido tiradas as grandes pedras que alguns colonos alemes quebraram, para construir o fundamento da igreja.... - Lembro bem daquelas grandes pedras e do fundamento. Quando eu era criana muitas vezes brincamos correndo sobre aquele fundamento, nos equilibrando e fazendo a volta em toda a rea da construo. Pai Vicente, manquejando como sempre, foi at a sua mula para pegar algumas ferramentas que ele havia trazido num alforje preso cela. Depois seguiu at um local especfico onde se viam algumas pedras talhadas e mostrando para uma que estava quebrada, explicou: Qualquer descuido ou pancada mais forte pode quebrar uma pedra num ponto errado, como foi o caso desta. Isto significava a perda de precioso tempo de trabalho. Por isto sempre aconselhei os meus serventes para terem muita pacincia. O trabalho mais lento sempre era o de alisar a superfcie da pedra... Sempre gostei de comparar uma pedra bruta com a vida de uma pessoa. Cada pessoa quando nasce vem para fazer parte de uma jazida. A pessoa tambm precisa ser esquadrada por um mestre, para saber viver em harmonia com os outros...._________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 57

Adolfo Felipe aproximou-se ainda mais para observar aquela pedra que no fora nem transportada por ser imprestvel para a obra e falou: - Vejo que um bom mestre canteiro precisa ter experincia e sabedoria... Ento um mestre canteiro igualvel a um professor? Um professor que sabe se dedicar aos seus alunos para trabalh-los e mold-los para serem inseridos na vida de nossa sociedade?. Pai Vicente agora com o seu cachimbo no canto da boca, sorriu e falou: - Em cada profisso preciso ter as ferramentas certas... O teu pai colocou um ferreiro minha disposio para preparar todas as ferramentas de que eu necessitasse. A sim, tornou-se fcil para quebrar as pedras no ponto desejado e alis-las para receber o encaixe no seu devido lugar, na construo das paredes do templo.... - Estou curioso em descobrir como se faz a escolha das pedras que sejam boas para uma construo. Quis saber Adolfo Felipe.

FIGURA 9: Jazida de pedra onde o mestre canteiro revela a sua aptido. Fonte: Foto do autor. Ano de 2006. _________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 58

- Existem diversos tipos de pedra, que so boas para a construo. preciso procurar por pedras duras... Eu as reconheo pela cor. Explicou o negro. Ele fez uma pausa e ficou mostrando diferentes tipos de pedra, fazendo comparaes e mostrando as diferentes tonalidades das mesmas e ento continuou: - No princpio, os trs negros libertos, que foram meus serventes, falavam em desistir; queriam largar o servio; falavam em voltar a Porto Alegre... Tive que ir mostrando para eles que o trabalho no to bruto e nem to pesado como parece. O segredo a pacincia para dar os golpes certos, no lugar certo.... Adolfo Felipe sorriu e comentou: - Mas no deixa de ser um trabalho que duro como a dura pedra. S sei que o meu pai passou a ter a idia fixa de ver aqui na Colnia uma igreja feita de pedra. Ele dizia . Os dois sentaram sobre algumas pedras e por um bom tempo ficaram ali olhando a linda paisagem que os cercava, os morros e toda a rea em volta, cobertos pela floresta virgem. Adolfo Felipe quis ento saber: - O que fazem os trs libertos que vieram morar aqui perto?. - melhor irmos casa deles para ver.... Disse o negro. Os trs libertos Janurio, Jos e Tonho tinham os seus ranchos bem prximos uns dos outros. Nas redondezas podiam ser vistas lavouras de milho, de feijo e particularmente de mandioca. Dois deles, o Jos e o Tonho haviam conseguido companheiras; a de Jos era uma ndia e a de Tonho era uma negra.

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Pai Vicente e Adolfo Felipe apearam das montarias... O negro foi logo dizendo aos libertos: - Trago aqui o filho de vosso antigo patro. Esse menino quer saber o que vocs fazem e como vivem!. Jos aproximou e respondeu: - Conheo esse homem, pois o vi l na festa da inaugurao da igreja que ns construmos. Aqui trabalhamos cuidando das nossas lavouras e fabricando farinha de mandioca. Tem colonos e at comerciantes que chegam aqui para fazer encomenda de farinha de mandioca. Essa a nossa vida, agora, bem melhor que aquela de quebrar pedras.... Todos riram e ficaram conversando sobre diversos assuntos. Tonho fez questo de contar detalhes de suas caadas, dizendo: - O meu passatempo aqui com as minhas caadas... Tenho as minhas arapucas... Pego sabis, pombinhas, inhambu e at j pequei algum jacu... Cao outras vezes de bodoque... Preparo pelotas de barro que eu deixo secar ao sol... Quando vou para o mato, levo umas cinqenta pelotas, e trago pelo menos uns vinte pssaros!. Pai Vicente recriminou: - No fique caando pssaros, toa... Ponha arapuca ou saia de bodoque, s se tiver falta de outra carne, em casa. S deve vez ou outra, pegar uma dessas avezinhas.... Os trs libertos mostravam um grande respeito e admirao por Pai Vicente. Era visvel de que eles viam nele um lder e, os seus conselhos eram ouvidos e acatados. Finalmente Adolfo Felipe, pondo-se de p, fez um sinal de despedida para todos e dirigindo-se sua montaria, falou: - hora de voltar ou perdemos a nossa janta. Pai Vicente riu e ambos tomaram o caminho de volta para casa._________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 60

A EXPANSO TERRITORIAL DA COLNIA Temos que tomar posse de todas as terras nacionais que pudermos, em torno da nossa Colnia. Caso contrrio ns ficaremos exprimidos e empobrecidos. Disse o Comandante Schmitt. Diante dele se encontrava o jovem Adolfo Felipe Voges, filho do pastor. Apesar da idade, Adolfo Felipe j era um alferes da Guarda Nacional de So Leopoldo. Alm disso, ele tivera uma boa formao escolar em Campo Bom e ainda aprendera uma profisso. Era um competente mestre marceneiro. Comandante Schmitt estava sentado sombra de sua rvore favorita, uma marrequeira, muito antiga, que ficava diante de sua casa. Ele demonstrava falta de ar. De tempos em tempos precisava se acomodar melhor na cadeira de balano. O seu corpo estava dominado pela hidropisia. A gua comeara a se acumular em torno do seu ventre, o que no era bom sinal. Adolfo Felipe gostava de ouvir as histrias, os conselhos e os ricos ensinamentos que o velho Comandante Schmitt sempre tinha para oferecer. Por isso pediu: Senhor Schmitt. Explique melhor esse assunto para tomarmos posse das terras nacionais, em volta da nossa Colnia. O Comandante falou: - Lembras dos integrantes da patrulha serrana que em 1835 foi colocada na Serra do Pinto. Em certa altura do transcorrer da Guerra dos Farrapos eles deixaram de receber pagamento. O Governo Imperial ficou com poucos recursos para tais despesas e foram cortando os gastos com a Revoluo. O Comandante ajeitou-se de novo na cadeira e continuou: - Com a falta_________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 61

de pagamento eles pediram permisso para tomar posse de terras nacionais, em torno da trilha da Serra. O velho, mas j falecido Sargento Silistrio, pegou terras l no alto da Serra juntamente com os outros trs que l haviam estado com ele. J o Joo Patrulha Menger tomou um vasto terreno no que hoje chamamos de Morro dos Menger, aqui no Baixo Josaphat, pouco depois da rea onde, recentemente, entrou o Jacob Gross, vindo de Lomba Grande, que deixou l, abandonada, a legtima esposa e veio para c, fugido, em companhia da cunhada. Depois temos tambm o Cabeleira que pegou terras a noroeste no lugar agora conhecido por Trilha dos Cabeleiras. O ndio missioneiro, soldado Esteban dos Santos, pegou terras l no alto, ao lado de Silistrio. Todos eles tem agora as suas terras e creio que ningum haver de contestar essas posses. Adolfo Felipe ficou muito interessado no assunto. Pegou papel, tinteiro e pena, da casa de Schmitt e passou a rabiscar um mapa da Serra, com os moradores citados. Comandante Schmitt, vendo esse grande interesse demonstrado por Adolfo Felipe, continuou: - Estou feliz que voc veio aqui em casa. Voc aquele, que faltava para ns, capaz de ajudar e continuar no planejamento da vida e da administrao da Colnia. Por enquanto s eu e teu pai carregamos o peso desta responsabilidade. Mas escute s, o que ainda tenho para contar... Eu orientei os colonos que moram a noroeste da Colnia, que vinham sofrendo muito com enchentes, em volta da baixada do Passo do Cemitrio. Pedi que subissem rumo norte e se apossassem de novas terras, de floresta ainda fechada e de pastagens. O Triesch foi para a regio das Limeiras de Bugre. Os irmos Johann e Joachim Brusch e os Schwartzhaupt ficaram um pouco mais prximos daqui, na regio das Bananeiras. Tambm foram para morar no meio deles o Fhr, o Teisinger, um filho do Carl Witt e o Klippel. At o Barata, j h mais tempo, pegou um trecho de terras nas proximidades do Passo do Pinto._________________________________________________________ Dos Bugres aos Pretos Elio Eugenio Mller 62

Isso que todos continuam com as terras deles c embaixo, na Colnia. Comandante Schmitt passou a sentir muita falta de ar. Parou de falar por uns instantes. Notava-se que o sofrimento dele era grande. Ajeitou-se na cadeira, para melhorar a respirao e continuou: - O Ferreira Sparremberger e o Gehrmann foram para o outro lado do rio e pegaram terras na trilha que vai para a Serra. Porm o meu genro Jacoby j havia se adiantado e escolheu o terreno mais lindo daquela regio. Se fores at l vers o belo sobrado que ele construiu e que ser inaugurado no ms de junho deste ano de 1