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Delfim Leão, Gabriele Cornelli & Miriam C. Peixoto (coords.) Dos Homens e suas Ideias Estudos sobre as Vidas de Diógenes Laércio IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA COIMBRA UNIVERSITY PRESS

Dos Homens e suas Ideias - estudogeral.sib.uc.ptƒO... · Kinismo: Fragmentos de uma Crítica (Kynicism: fragments of a critique) 199 João Diogo R. P. G. Loureiro Diógenes Laércio

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    Delfim Leo, Gabriele Cornelli & Miriam C. Peixoto (coords.)

    Dos Homense suas IdeiasEstudos sobre as Vidas de Digenes Larcio

    IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRACOIMBRA UNIVERSITY PRESS

  • (Pgina deixada propositadamente em branco)

  • Delfim Leo, Gabriele Cornelli & Miriam C. Peixoto (coords.)

    Dos Homense suas IdeiasEstudos sobre as Vidas de Digenes Larcio

    IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRACOIMBRA UNIVERSITY PRESS

  • O P :

    T VIDASC

    C C : Maria do Cu Fialho

    C EJos Ribeiro FerreiraMaria de Ftima Silva

    D T:

    Francisco de Oliveira Nair Castro Soares

    EImprensa da Universidade de CoimbraURL: http://www.uc.pt/imprensa_ucE-mail: [email protected] online: http://livrariadaimprensa.uc.pt

    C Imprensa da Universidade de Coimbra

    C PRodolfo Lopes, Nelson Ferreira

    P-FJoo Loureiro

    Joana Fonseca

    I A Simes & Linhares

    ISBN978-989-721-041-9

    ISBN D978-989-721-042-6

    D EPSITO L EGA L368792/13

    1 E D IO : IUC 2013

    D . I U C C D V C (http://classicadigitalia.uc.pt)C E C H U C

    em papel ou em edio electrnica, sem autorizao expressa dos titulares dos direitos. desde j excepcionada a utilizao em circuitos acadmicos fechados para apoio a leccionao ou extenso cultural por via de e-learning.

  • Sumrio

    Apresentao VI -XO Livro I de Digenes Larcio:a tradio dos Sete Sbios e a caracterizao da figura do sophos(Book I of Diogenes Laertius: the tradition of the Seven Wise Men and the characterization of the sophos) 1

    Delfim F. Leo

    Sbios e poetas na construo da identidade helnica(Wise men and poets constructing the Hellenic identity) 21

    Marta Isabel de Oliveira Vrzeas

    Digenes Larcio e os Persas(Diogenes Laertius and the Persians) 39

    Edrisi Fernandes

    Filsofos entre a vida e a morte: Digenes Larcio e os Pr-Socrticos(Philosophers between life and death: Diogenes Laertius and the Presocratics) 67

    Miriam Campolina Diniz Peixoto

    Lideazione del pinax, mediale Innovation di Anassimandro(The invention of the Pinax, a mediale Innovation due to Anaximander) 89

    Livio Rossetti

    Jenfanes invitado a Elea por H. Diels (Digenes Laercio 9.18) (Xenophanes invited at Elea by H. Diels (Diogenes Laertius 9.18)) 101

    Nestor-Luis Cordero

    Plato, personagem de Digenes Larcio(Plato, Diogenes Laertius character) 109

    Marcelo Marques

    A organizao tetralgica do corpus platonicum (3.56-62): uma reviso do problema(The tetralogical organization of the corpus Platonicum (3.56-62): a revision) 125

    Rodolfo Lopes

    Anaxgoras em Plutarco e Digenes Larcio(Anaxagoras in Plutarch and Diogenes Laertius) 139

    Ana Ferreira

    A Tradio Peripattica no Livro V de Digenes Larcio: Um conspecto(The Peripatetic tradition in Diogenes Laertius Book V: an overview) 155

    Antnio Pedro Mesquita

  • Pode-se pensar a filosofia aristotlica como modo de vida?Digenes Larcio e sua posteridade na obra de Pierre Hadot(Can we think the Aristotelian philosophy as a way of life?Diogenes Laertius and his posterity in the work of Pierre Hadot) 177

    Fernando Rey Puente

    Kinismo: Fragmentos de uma Crtica(Kynicism: fragments of a critique) 199

    Joo Diogo R. P. G. Loureiro

    Digenes Larcio e os topoi da tradio biogrfica: consideraes sobre o livro VII(Diogenes Laertius and the topoi of the biographical tradition: remarks about the Book VI) 215

    Jos Lus Lopes Brando

    O Tribunal de Digenes Larcio: Plato e o plgio de Epicarmo(Diogenes Laertius tribunal: Plato and the plagiarism of Epicharm) 233

    Fernando Santoro

    A Vida de Pitgoras de Digenes Larcio: questes sobre a recepo do pitagorismo no perodo imperial(Diogenes Laertiuss Life of Pythagoras: some questions on the reception of Pythagoreanism in the Imperial Period) 247

    Gabriele Cornelli

    Index nominvm 267

    Index locorvm 273

  • VII

    Apresentao

    A presente obra o resultado de dois seminrios de pesquisa que reuniram a Ctedra UNESCO Archai da Universidade de Braslia, o Centro de Estudos Clssicos e Humansticos da Universidade de Coimbra e o Grupo Filosofia Antiga da Universidade Federal de Minas Gerais em dezembro de 2011 em Braslia (Brasil) e em maro de 2012 na antiga cidade de Eleia (hoje Ascea Marina, Itlia), com o objetivo de realizar uma estudo exploratrio tendo em vista a preparao de uma nova edio em lngua portuguesa da obra Vidas e Doutrinas dos Filsofos Ilustres de Digenes Larcio. A obra oferece no apenas uma suma das problemticas ticas e metafsicas da Antiguidade, constituindo, assim, uma das mais significativas colees de testemunhos sobre a sabedoria e a tica clssicas, mas suscita desde sempre grande interesse em virtude das diversas questes de ordem historiogrfica por esta levantadas. As Vidas, quando lidas perspectivamente no contexto da poca que as produziu, revelam uma concepo da filosofia como essencialmente filosofia de vida, cuja prova dos nove seria o sucesso tico do filsofo que a professa. Desta forma, tambm a obra de Digenes Larcio privilegia antes a histria dos homens e, somente em segundo plano, aquela de suas ideias. Um corte literrio e doxogrfico, este, que supreendentemente dialoga de perto com tanta sensibilidade tico-filosfica e literria contempornea.

    A constituio de um grupo multidisciplinar e multicntrico de pesquisadores, que rene aqui diversas especialidades nas mais diferentes reas de pesquisa da Filosofia Antiga e das Letras clssicas, foi ocasio para a discusso dos problemas textuais e hermenuticos inerentes obra de Digenes Larcio como um todo, certamente uma das obras mais importantes para o estudo da Filosofia Antiga e da literatura clssica em geral.

    O estudo preparatrio resultou nesta coleo de ensaios inditos e ricos de estmulos e sugestes para a compreenso, imediatamente, da obra de

  • VIII

    Digenes Larcio. O volume traz para o debate um panorama de questes sobre a obra e a sua recepo, assim como estudos mais especficos dedicados a uma passagem ou a uma das biografias, desejando desta forma constituir-se num trabalho de referncia para os pesquisadores de Digenes Larcio em lngua portuguesa.

    Todavia, o amplo leque de temticas que as Vidas sugerem, desde os estudos da biografia antiga at aqueles da historiografia da filosofia em suas origens, passando por autores e textos centrais para a definio das origens do pensamento ocidental, fazem da presente coleo um trabalho que poder interessar os cultores dos estudos clssicos mais em geral.

    A obra inaugurada pelo ensaio de DELFIM F. LEO dedicado ao Livro I das Vidas, e mais precisamente origem da tradio dos Sete Sbios enquanto locus privilegiado para e compreenso da caracterizao da figura do sophos. A figura de Slon, o legislador ateniense, o foco central de um estudo que deseja mostrar o processo de cristalizao desta tradio desde Plato at a obra da Digenes Larcio. MARTA ISABEL DE OLIVEIRA VRZEAS tambm dedica seu ensaio tradio dos Sete Sbios, mas com uma especial ateno s lendas e mximas a eles atribudas e sua recepo na literatura variamente sapiencial que de certa forma destas derivou. A seguir EDRISI FERNANDES, com uma franca guinada geogrfica e literria, avalia de perto as passagens de Digenes Larcio dedicadas a magos, medos e persas, comparando as mesmas com fontes paralelas iranianas. Estas revelam um aspecto significativo da formao do pensamento e da filosofia grega em contraste com a pretensa identidade destes vizinhos das terras iranianas de Oriente. O ensaio de MIRIAM CAMPOLINA DINIZ PEIXOTO revela a importncia das Vidas enquanto fontes para o estudo da filosofia pr-socrtica. Na tentativa de superar um preconceito difuso pelo qual a obra de Digenes Larcio seria uma mera rapsdia de vidas e doutrinas, o ensaio revela as estratgias literrias que comandam a proposta teortica de uma vida filosfica nas pginas diogenianas. LIVIO ROSSETTI apresenta, em seu ensaio, a afirmao de Digenes Larcio segundo a qual Anaximandro teria sido o inventor de uma ges periodos, isto de um mapa-mndi. Uma notcia, esta, que foi pouco valorizada pela histria da filosofia antiga, mas que se reveste de importantes significados para a histria da cincia e da humanidade como um todo. O ensaio de NESTOR-LUIZ CORDERO procura desvelar certa arbitrariedade da tradio da presena de Xenfanes em Eleia, enquanto fundador da escola eletica e mestre de Parmnides. Uma conjectura de Diels, em seu estudo Die Fragmente der Vorsokratiker, sobre o texto de Digenes Lercio apontada como a origem desta tradio. A respeito do Livro III, MARCELO MARQUES dedica seu ensaio a como Plato apresentado no interior da obra de Digenes Larcio, enquanto filsofo fundamentalmente dogmtico; RODOLFO LOPES, por

  • IX

    sua vez, enfrenta as espinhosas questes que subjazem organizao dos 36 textos de Plato em 9 tetralogias no interior da obra de Digenes Larcio. ANA FERREIRA estrutura um estudo comparativo entre a diogeniana Vida de Anaxgoras e a Vida de Pricles do Queroneu, na qual Anaxgoras aparece como o principal mestre do grande estadista de Atenas. O livro V o tema central do texto de ANTNIO PEDRO MESQUITA, que desenvolve um cotejamento das informaes diogenianas sobre a escola peripattica com as fontes independentes, permitindo assim uma avaliao tanto da forma como da qualidade desta informaes. Ao mesmo livro V dedicado o ensaio de FERNANDO REY PUENTE, que todavia aborda mais precisamente a compreenso da noo de bios filosfico contida nos pargrafos 30 e 31, lida na perspectiva da noo de filosofia antiga como modo de vida de Pierre Hadot. Ao cinismo que o autor grafa kinismo dedicada a contribuio de JOO DIOGO LOUREIRO. Aqui defende-se haver, por um lado, uma certa incompreenso, por parte dos cnicos, relativamente a quanto o seu apelo a um regresso natureza colide com a experincia fenomenolgica maior dos seres humanos; por outro, um erro na definio do ideal de auto-suficincia. Aos topoi da biografia dedicado o amplo estudo de JOS LUIZ LOPES BRANDO, que, tomando exemplos do Livro VII das Vidas, revela o lugar destas no interior da histria do gnero biogrfico no mundo greco-romano. O plgio de Epicarmo o tema do texto de FERNANDO SANTORO, que examina um testemunho particularmente controverso dos textos do comedigrafo Epicarmo no livro III das Vidas. A passagem referida de grande importncia para a histria da filosofia por envolver ao mesmo tempo a personagem de Plato e um gnero literrio central para as origens da filosofia como aquele do dilogo socrtico. Enfim GABRIELE CORNELLI procura levantar as caractersticas fundamentais da Vida de Pitgoras no interior do panorama das Vidas filosficas de poca imperial, mais em geral, e das Vidas pitagricas, de forma mais imediata.

    A afinada sinfonia lusfona que o leitor poder encontrar nas pginas que se seguem marcada tambm pela publicao a quatro mos desta obra, que integra tanto a j consolidada coleo Classica Digitalia da Universidade de Coimbra como a nova marca editorial Annablume Classica da Editora Annablume de So Paulo.

    Os Organizadores desejam sobremaneira agradecer a equipe da Ctedra UNESCO Archai da Universidade de Braslia, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq) brasileiro e a Representao da UNESCO no Brasil pelo significativo apoio na organizao dos dois seminrios que esto na origem desta publicao. O agradecimento estende-se tambm ao Joo Loureiro, pelo trabalho de uniformizao dos originais, ao Nelson

  • X

    Henrique, pela sua formatao, e ainda Joana Fonseca, pela elaborao dos ndices finais. Coordenadora Cientfica do Centro de Estudos Clssicos e Humansticos, Maria do Cu Fialho, e equipe da Imprensa da Universidade de Coimbra, tambm devida a gratido dos organizadores, pelo contributo dado para a concretizao desta publicao, que pertence agora aos leitores.

    Delfim LeoGabriele Cornelli

    Miriam C. Peixoto

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    O Livro I de Digenes Larcio

    O LivrO i de digenes LarciO:a tradiO dOs sete sbiOs e a caracterizaO da figura dO

    sophos(Book I of Diogenes Laertius: the tradition of the Seven Wise

    Men and the characterization of the sophos)

    Delfim F. LeoUniversidade de Coimbra Centro de Estudos Clssicos e Humansticos

    Resumo: Na primeira parte do estudo, discute-se o peso de Plato na formao da tradio dos Sete Sbios. Na segunda parte, analisa-se essa mesma tradio em Digenes Larcio, portanto num momento em que estavam j sedimentadas as linhas essenciais ligadas caracterizao destas figuras. Os resultados desse processo de cristalizao sero analisados a partir da forma como Digenes apresenta uma das personalidades mais paradigmticas do grupo de sophoi: o legislador ateniense Slon.Palavras-chave: Plato, Sete Sbios, Digenes Larcio, sophoi, Slon

    Abstract: The first part of the study is devoted to the weight carried by Plato in the making of the tradition of the Seven Wise Men. In the second part, an approach is made to that same tradition in Diogenes Laertius, thereby in a stage when the main lines concerning the characterization of those personalities were already stabilized. The results of this process of crystallization are discussed taking as reference the way Diogenes depicts one of the most paradigmatic personalities of the group of sophoi: the Athenian legislator Solon.Key-words: Plato, Seven Wise Men, Diogenes Laertius, sophoi, Solon

    Quem se dedica ao estudo da tradio dos Sete Sbios est bem ciente do facto de que necessrio esperar at ao Protgoras (343a) de Plato para encontrar a primeira referncia a uma lista completa de sete sophoi. Este pormenor bastaria para garantir ao testemunho de Plato um posto especial na literatura gnmica, mas dois outros aspetos merecem igualmente ser sublinhados: o papel central que o filsofo atribui a Slon entre os vrios sapientes e ainda o facto de que ele ter, por certo, influenciado Plutarco na forma como este imaginou o Banquete dos Sete Sbios (Septem Sapientium Convivium) e por extenso tambm o primeiro livro das Vidas e doutrinas dos filsofos ilustres de Digenes Larcio. Tomados em conjunto, estes trs elementos explicam o motivo por que Plato constitui, geralmente, uma presena obrigatria em discusses relativas aos Sete Sbios. Embora esta posio de destaque se justifique, no autoriza, em todo o caso, a que se leve a argumentao ao ponto de sustentar que a noo de um grupo de sophoi no existia antes de Plato e que, em consequncia, seria ele o responsvel pela criao do conceito de uma sylloge de Sete Sbios.

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    Delfim F. Leo

    Tendo em conta estes dados, a primeira parte deste trabalho procurar sublinhar que, embora a importncia do testemunho platnico seja inegvel, a relevncia que lhe atribuda no depende propriamente da radical novidade da informao que transmite sobre estas figuras, mas antes do peso que o nome de Plato tinha j na antiguidade. Na segunda parte do trabalho, ser retomada a tradio dos Sete Sbios em Digenes Larcio, portanto num ponto em que estavam j perfeitamente sedimentadas as linhas essenciais ligadas caracterizao destas figuras que haviam marcado, ao longo de sculos, o imaginrio grego. Os resultados desse processo de cristalizao sero analisados a partir da forma como o doxgrafo apresenta uma das personalidades mais paradigmticas do grupo de sapientes: o legislador ateniense Slon.

    I. A formao da sylloge dos Sete Sbios1

    A literatura gnmica constitui, j desde a antiguidade, uma forma agradvel e prtica de transmitir aos mais jovens valores tradicionais da sua cultura, ao ajudar a criar uma estrutura mental que funcione como paradigma capaz de influenciar o comportamento no apenas no respeitante a crenas religiosas e morais, mas tambm no campo social e poltico. Embora simples e popular na sua formulao, a literatura de sentenas teve, provavelmente, uma origem aristocrtica, no sentido de que representa um veculo para transmitir uma tipologia de princpios que acabam por estar geralmente conotados com os interesses e desgnios das classes mais elevadas. Este tipo de literatura no exclusiva da cultura grega e pode assumir variadas formas, se bem que obedea, usualmente, a um esquema bsico comum: retrata a situao em que uma pessoa mais velha ou com maior experincia d o seu conselho a um interlocutor mais novo ou menos capacitado. Na Grcia, a imagem dos Sete Sbios particularmente representativa deste fenmeno, que se exprime numa tradio que floresceria at poca romana, mantendo a capacidade para incorporar novos elementos ao longo desse perodo, a ponto de haver mais de vinte personalidades que poderiam figurar em diferentes agrupamentos de sete sophoi2. Quando se analisa o perfil destes sapientes, torna-se claro que eles representam um tipo de valores filtrados pela mundividncia de uma pequena parte da comunidade: os Sbios so geralmente gregos, aristocratas e homens, ainda que, dentro do grupo, figurassem tambm alguns barbaroi especiais (como Creso e Anacrsis). Certas figuras com uma natureza muito diferente como o antigo escravo Esopo ou a jovem Cleobulina podiam tambm entrar em

    1 Estas consideraes preliminares recuperam as linhas gerais da argumentao desenvolvida em Leo 2010a.

    2 Cf. Digenes Larcio 1.41-42. Este passo ser comentado com mais pormenor na segunda parte do estudo.

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    O Livro I de Digenes Larcio

    contacto com os sapientes, chegando mesmo a ser retratados como estando presentes em encontros dos Sete Sbios e at a participar nas discusses, mas ainda assim no faziam propriamente parte daquele crculo mais restrito de personalidades3.

    Outro importante elemento deriva do facto de a maioria destes homens ter tido uma existncia histrica, mesmo que, no futuro, eles viessem a atrair muita amplificao lendria, especialmente no respeitante a detalhes biogrficos. Ainda assim, o contexto histrico em que algumas destas figuras (Tales, Slon, Bias, Ptaco, Periandro, Cleobulo, Qulon e Creso) operaram sugere que a tradio comeou a tomar forma durante a poca arcaica, mais especificamente entre os scs. VII e VI a.C. A este processo no alheio o facto de, ao longo deste perodo, a Grcia ter vivido grandes tenses polticas e sociais, que foram acompanhadas pela afirmao de chefes carismticos que teriam um papel central na resoluo dessas tenses, em especial na qualidade de conselheiros e legisladores, e por vezes encabeando tambm governos autocrticos4. Afigura-se portanto razovel supor que, ao menos com as personalidades mais emblemticas, a sua visibilidade enquanto filsofos, poetas, governantes ou legisladores tenha sido um fator determinante para os apresentar como pessoas especiais e, por isso, candidatas ao posto de sophoi paradigmticos5.

    Apesar da antiguidade histrica de vrias figuras que vieram a ser consideradas sapientes, somente em Herdoto que aparece a primeira expresso literria da configurao de uma lenda relativa aos sophoi, se bem que o historiador no devesse provavelmente estar ciente da existncia de uma sylloge de Sete Sbios6. Em Herdoto, o que mais se destaca so os famosos encontros promovidos por Creso e os conselhos que recebeu de figuras como Tales (1.74.2; 75.3-4), Bias (ou Ptaco, 1.27.1-5) e Slon (1.29-32). Herdoto refere tambm Qulon (1.59.2-3), Periandro (1.20; 23) e Anacrsis (4.76-7), facultando assim a primeira apresentao literria de personalidades que iriam desempenhar um influente papel de sophoi na tradio posterior. Especialmente importantes so os pormenores do encontro entre Slon e

    3 Assim acontece no Septem Sapientium Convivium de Plutarco, um trabalho que pode ser considerado uma espcie de cosmpolis de diferentes tipos de sabedoria. Sobre esta interpretao, vide Leo 2008.

    4 Vide as pertinentes observaes de Wallace (2009), cuja anlise se centra em trs pleis (Mitilene, Mgara e Atenas), para as quais h dados contemporneos dos acontecimentos, facultados respetivamente pela poesia de Alceu, Tegnis e Slon.

    5 discutvel a opinio de Wallace (2009 420-421), quando afirma que os sophoi representam um novo tipo de chefes, no sentido de que eram sophoi e de que, por esse motivo, se tornaram chefes carismticos. Sobre a utilizao dos Sete Sbios enquanto paradigma identitrio, vide Leo 2010b.

    6 Em todo o caso, a imagem do conselheiro recorrente na obra do historiador. Este pormenor foi, h muito, sublinhado j por autores como Lattimore (1939 24), que colocava, por exemplo, Amsis na galeria dos conselheiros trgicos.

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    Delfim F. Leo

    Creso, que do corpo ao modelo tpico de apresentao do dilogo entre um Sbio grego e um monarca oriental7. Por outro lado, a importncia de Creso no desenvolvimento da tradio dos Sete Sbios tem vindo a ser sublinhada j h bastante tempo8. Este facto pode ser explicado pela prpria notoriedade de que o rei ldio gozava junto dos Gregos e pela provvel influncia de Delfos perspetiva mais facilmente compreensvel se se tiver em linha de conta o impacto causado no mundo helnico pelas magnficas oferendas feitas por Creso ao orculo9. Alm disso, embora no haja qualquer referncia ao nmero sete em Herdoto (que se refere a estes visitantes especiais de forma vaga, como sophistai10), o nmero sete passaria a ser a frmula adotada para designar os sophoi enquanto grupo. A importncia deste nmero noutros relatos e noutras culturas bem conhecida, mas tambm defensvel que possa estabelecer uma relao direta com os interesses dlficos. Com efeito, era essa precisamente a data do nascimento de Apolo (que caa no stimo dia do ms Bysios, em fevereiro/maro). parte a pertinncia relativa destas interpretaes, interessa sobretudo registar agora que, embora a presena de uma sylloge de Sete Sbios no seja ainda claramente detetvel em Herdoto, h ainda assim alguns traos que j podem ser encontrados na obra do historiador e que se tornaro caractersticos da forma de apresentar os sophoi: a emergncia de certas regies influentes como a Inia (Ptaco, Bias e Tales), Atenas (Slon) e o Peloponeso (Qulon, Periandro); o papel de Delfos, enquanto espao agregador destas figuras11. A partir desse ponto, o cnone comearia a estabelecer-se, embora continuasse aberto incluso de novos contributos e desenvolvimentos, como as obras de Plutarco e de Digenes claramente ilustram.

    Conforme se dizia no incio deste captulo, a primeira referncia completa aos Sete Sbios como grupo ocorre no Protgoras de Plato12. portanto este o momento de analisar mais em pormenor esse passo (Prt. 342e-343b):

    7 Para um estudo das diferentes fases da formao deste encontro paradigmtico a partir das fontes disponveis, vide Leo 2000.

    8 E.g. Snell 1952 42-43.9 Herdoto 1.50-51; Baqulides 3.15-29. Vide tambm Parke 1984.10 1.29.1. O termo sophistes aqui usado com o sentido neutro de sbio. Mais adiante

    (2.49.1), Herdoto usa a mesma palavra para designar um especialista em determinado campo. O facto de Herdoto sustentar que os sbios gregos da altura visitaram Creso foi por vezes interpretado como sugesto de que a ideia da existncia sincrnica destas personalidades, constituindo um grupo de Sete Sbios, j seria popular antes de Plato. Vide Mosshammer 1976 172; Martin 1998 113.

    11 Vide Busine 2002 17-27, esp. 27.12 Para uma anlise da lista incompleta de sophoi que o mesmo Plato apresenta no Hpias

    Maior (Hp. Ma. 281b-c), vide Leo 2010a 407-408. Busine (2002 31) considera essa referncia como uma espcie de proto-lista.

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    O Livro I de Digenes Larcio

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    Ora, tanto hoje como ontem, h quem tenha percebido esse pormenor que admirar os Lacnios muito mais apreciar a sabedoria que o exerccio fsico e quem saiba que s o homem que recebeu uma esmerada educao pode proferir semelhante palavra. Nessa situao encontravam-se Tales de Mileto, Ptaco de Mitilene, Bias de Priene, o nosso Slon, Cleobulo de Lindos, Mson de Queneia e, em stimo lugar, Qulon da Lacedemnia. Todos estes foram entusiastas, apaixonados e discpulos da educao dos Lacedemnios e qualquer pessoa poder constatar que a sua sabedoria era idntica deles, uma palavra breve e memorvel que cada um deles proferiu. Estes mesmos, reunidos todos fizeram oferenda da sua sabedoria a Apolo no seu templo em Delfos, grafando as mximas que toda a gente celebra, Conhece-te a ti mesmo e Nada em excesso. Ora bem, porque estou eu a dizer estas coisas? Porque era este o modo de expresso da filosofia dos antigos, uma brevidade lacnica13.

    Um possvel sinal de que Plato estaria a inovar ao fornecer a sylloge completa em forma escrita dada pelo facto de o filsofo fornecer, como diz A. Busine, lintgralit des sept noms et leurs ethniques respectifs14. Segundo a mesma autora, se Plato no estivesse a dar os nomes pela primeira vez na tradio escrita, pareceria mais natural referir os Sete Sbios somente atravs da expresso hepta sophoi, que se tornar mais tarde a designao usual. Este argumento tem a sua pertinncia, mas no basta por si mesmo: com efeito e como se ver na segunda parte deste estudo, Digenes Larcio (1.41-42) faculta o nome de mais de vinte sophoi e, apesar de escrever muito depois de Plato, continua a usar por vezes a identificao tnica e at mesmo o patronmico, ao referir personalidades bem conhecidas deste ciclo. Ainda assim, inegvel que a referncia mais antiga sylloge o passo em discusso, mas isso no

    13 Traduo de Pinheiro 1999.14 Busine 2002 33-34.

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    Delfim F. Leo

    implica necessariamente que Plato estivesse a criar a tradio dos Sete Sbios, como j tem sido sustentado15. Pelo contrrio, Herdoto menciona j todos esses nomes (com a exceo de Cleobulo e de Mson), embora os apresente por associao com outras personalidades ou eventos, e no como um grupo autnomo.

    Comentava-se, h pouco, que o nmero sete se pode encontrar em vrios outros relatos, cuja origem se perde nos tempos, mas a prpria cultura grega mostra j idntico uso deste mesmo nmero simblico, antes de Plato. Para evocar somente alguns exemplos, bastar recordar o caso do velho Nestor, que, em Homero, alm de ser muito apreciado pela sagacidade das suas opinies, forma uma espcie de conselho mais restrito volta de Agammnon, juntamente com outros seis guerreiros de elite (II. 2.402-409). Em 467 a.C., squilo produzia uma trilogia centrada na casa dos Labdcidas, qual pertencia a tragdia Sete contra Tebas. Deixou-se para o final um exemplo que no usualmente mencionado no contexto dos Sete Sbios, no obstante o facto de ser contemporneo dos sophoi mais importantes: o poema composto por Slon (frg. 27 West), em que a vida humana dividida em dez perodos de sete anos. Ser por certo significativo que os traos deste conceito sobre as idades da vida se podem detetar igualmente em Herdoto, na conversa entre Slon e Creso16. Este exemplo tem, por conseguinte, a vantagem de sugerir que a ideia de uma sylloge de Sete Sbios poderia inclusive ter tido a sua origem no uso da estrutura das hebdmadas por um dos mais carismticos sophoi.

    No obstante o peso relativo destes argumentos, continua, ainda assim, a ser um facto que o testemunho de Plato foi muito influente e que deu, no mnimo, um contributo definitivo para facultar visibilidade literria noo de sylloge. Em incios do sc. IV a.C., este conceito tinha-se j tornado cannico e conduziu, naturalmente, ideia de estabelecer um sincronismo entre os Sete Sbios, os quais se julgava que teriam vivido volta de cem anos antes das guerras medo-persas. Esta aproximao entre os sapientes foi usada por antiqurios (como Demtrio de Faleros) como base para calcular a akme de Tales e a datao de outras personalidades e eventos, como a fundao dos Jogos Pticos17.

    Outro aspeto merecedor de ateno o pormenor de os sophoi serem apresentados no passo do Protgoras como apreciadores ou como um produto como o caso de Qulon da educao espartana, cuja brevidade (brachylogia) atrai admirao, estabelecendo mesmo uma discreta oposio

    15 Especialmente por Fehling 1985 9-19.16 1.32.2; cf. tambm Digenes Larcio 1.55.17 Cf. Mosshammer 1976 177-178. Para uma anlise do testemunho de Demtrio de Faleros

    (citado por Digenes Larcio 1.22), segundo o qual Tales teria recebido o ttulo de sophos pela primeira vez durante o arcontado de Damsias, em Atenas, vide Leo 2010c.

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    O Livro I de Digenes Larcio

    com os sofistas, os novos savants. Esta apresentao pr-espartana pode, na realidade, justificar a razo pela qual Periandro ficou de fora desta listagem, precisamente por personificar o tipo de governo tirnico a que os Espartanos tradicionalmente se opunham18. Ainda assim, Ptaco e Cleobulo figuram no grupo dos sapientes e esta opo deve provavelmente ter que ver com o facto de, ao contrrio de Periandro, eles no estarem conotados com o comportamento excessivo e violento de tiranos tpicos19.

    Igualmente significativo o facto de, no texto em anlise, Plato sustentar que os Sbios se reuniram no templo de Delfos com o intuito de oferecerem a Apolo as primcias () da sua sophia20. Este pormenor contribui para sustentar a explicao, sugerida j antes nesta mesma seco, de que o desenvolvimento da tradio dos Sete Sbios esteve diretamente ligado moralidade dlfica como fica patente no relato sobre a trpode, na histria de Creso ou na ligao entre os Jogos Pticos e a ideia da existncia sincrnica dos sophoi21. Como o passo do Protgoras ilustra, algumas das mais famosas mximas inscritas no trio do tempo de Apolo eram atribudas aos Sbios que teriam passado pela corte do rei ldio, permitindo assim a emergncia de um posicionamento tico comum ao iderio dlfico e ao grupo dos sapientes22.

    Por ltimo, o lugar de destaque ocupado por Slon na lista reveste-se, igualmente, de um forte valor simblico. Com efeito, Slon o nico sophos cuja origem geogrfica no facultada, sendo, pelo contrrio, apresentado por Scrates como o nosso Slon. Este pormenor est de acordo com a posio central que Slon ocupa no grupo dos sapientes e sugere que a influncia ateniense pode ter tido igualmente um papel significativo no estabelecimento das linhas principais da tradio23. Este dado encontra-se j perfeitamente visvel em Herdoto e de novo confirmado por Plato,

    18 Cf. Herdoto (1.59.2-3), que afirma que Qulon aconselhou o pai de Pisstrato a no ter filhos, de maneira a prevenir a tirania.

    19 O grupo de sophoi reunidos por Plutarco no seu Septem Sapientium Convivium muito similar lista apresentada por Plato no Protgoras. Com efeito, embora Plato substitua Anacrsis por Mson, ambos os autores incluem os nomes de Ptaco e Cleobulo, deixando Periandro de fora. Sobre os motivos que tero permitido a Ptaco e Cleobulo permanecer no grupo de sophoi no Convivium de Plutarco, vide Leo 2009 512-517.

    20 Como Digenes Larcio sublinha (1.40), havia outros locais onde esse encontro era colocado.

    21 Para as variantes da tradio sobre a trpode, vide Snell 1952 108-113. Martin (1998 119-120) chama a ateno para o facto de que a disputa volta da trpode confirma a existncia de uma tradio antiga de relatos sobre os Sete Sbios enquanto performers of wisdom.

    22 E.g. Plato Chrm. 164d-165a; Pausnias 10.24.1; Digenes Larcio 1.63.23 Situao visvel tambm no Convivium de Plutarco, como decorre da importncia

    atribuda, durante o banquete, ao velho legislador e ao regime democrtico nos tpicos sobre matria poltica.

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    no Timeu, onde se faz uma referncia especial ao velho legislador, como sendo o mais avisado dos Sete Sbios (20d). Em todo o caso, h que ter em conta que, no tempo de Plato, Slon se tornara uma figura usada, de forma crescente, em disputas ideolgicas. Com efeito, ao menos a partir do ltimo quartel do sc. V a.C., o velho legislador passou a ser considerado uma figura icnica do passado constitucional ateniense, com importncia crescente a nvel propagandstico24.

    Em suma: embora a listagem completa dos Sete Sbios aparea pela primeira vez somente em Plato, isto no implica necessariamente que ele seja o criador do conceito. Pelo contrrio, h indcios suficientes para sugerir, com um razovel grau de probabilidade, que a ideia da sylloge seria to antiga quanto a noo de que tinham existido estes sophoi bem como os feitos que lhes eram atribudos. Na lista do Protgoras, bem como em outras partes do trabalho de Plato, Slon ocupa um papel central entre os sapientes, mas na verdade isso tambm j se verificava no relato de Herdoto. Slon era uma personalidade importante por si mesma, no sendo improvvel que a propaganda ateniense tenha contribudo para a sua promoo, se bem que o processo inverso tambm possa ser ponderado. Por ltimo, inegvel que Plato (tal como Xenofonte) influenciou por certo Plutarco na forma como este imaginou o Septem Sapientium Convivium, ao facultar a estrutura literria de base sobre a qual o bigrafo combinou a tradio dos Sete Sbios com o ambiente ritualizado do banquete. Com efeito, partida a natureza dos Sete Sbios enquanto performers de sabedoria oral quadraria bem com um ambiente em que os participantes no banquete exprimem as suas opinies medida que vo falando entre si. Contudo, a tradicional braquilogia dos sophoi, evocada de forma positiva no Protgoras, no servia de estmulo a discusses mais profundas, precisamente porque essas mximas funcionavam como frmulas concentradas de sabedoria, de certa maneira autnomas do ponto de vista tico25. por essa razo que, na primeira parte do Convivium de Plutarco, os sapientes tendem a acumular gnomai, sem que com isso cheguem na verdade a estabelecer uma real discusso folosfica. A segunda parte do opsculo mais envolvente e mais platnica, mas tem tambm muito menos a ver com a poca dos Sbios. J a caracterizao dos sophoi feita por Digenes Larcio quadra, nesse aspeto e de maneira bem mais natural, com a tradio da literatura sapiencial.

    24 Sobre esta debatida questo e sobre a forma como se cruza com o desenvolvimento do ideal saudosista de uma constituio ancestral (patrios politeia), na sequncia dos desaires sofridos por Atenas durante a Guerra do Peloponeso, vide e.g. Ruschenbusch 1958; Cecchin 1969; Leo 2001 43-72.

    25 Sobre esta questo, vide Kim 2009.

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    II. A caracterizao do sophos: o exemplo de Slon

    A primeira parte deste estudo abordou o peso do testemunho de Plato no processo de sedimentao da memria coletiva relativa ao grupo dos Sete Sbios, tendo terminado com algumas aluses forma como o filsofo influenciou, de forma direta, a recriao do Septem Sapientium Convivium por Plutarco, um trabalho escrito na viragem do sc. I para o sc. II da era crist e que constitui o texto antigo mais importante conservado no mbito desta tradio literria26. Para a discusso das questes relativas ao estabelecimento da sylloge dos Sete Sbios, foi evocada com frequncia a figura de Slon, que central entre o grupo de sapientes e qual o mesmo Plutarco dedicou uma biografia, nas Vidas Paralelas (o par Slon e Publcola), trabalho que, sendo embora muito diferente do Convivium, igualmente o testemunho antigo mais significativo para o conhecimento da existncia histrica do famoso estadista ateniense27. Nesta segunda parte do estudo, os dados sobre Slon sero usados tambm como ponto de comparao para a forma de caracterizar a figura do sophos, mas desta vez na obra Vidas e doutrinas dos filsofos ilustres de Digenes Larcio que esteve ativo cerca de um sculo depois de Plutarco, portanto na passagem do sc. II para o III d.C.

    Apesar de serem herdeiros, em grande parte, da mesma tradio, o valor representado por estes dois autores como fonte para o conhecimento do Slon histrico revela-se bastante desigual. biografia do estadista escrita por Plutarco devem-se informaes de elevada pertinncia, facto que, entre os salvados da literatura antiga, refora a importncia do seu trabalho, pesem embora alguns problemas internos que suscita. Com Digenes, o panorama difere bastante, sobretudo quando avaliado segundo uma perspetiva meramente histrica. Apesar de o seu testemunho ser ainda extenso, no vem trazer nenhum dado radicalmente novo ( parte a citao de alguns fragmentos poticos) e o que afirma est muitas vezes aberto a srias reservas. No entanto, mesmo a nvel histrico tem o seu interesse, na medida em que constitui talvez o exemplo mais expressivo dos resultados do processo de idealizao a que foi sujeita a figura do antigo legislador ateniense. E este aspecto, s por si, j justificaria uma discusso parte da forma como aborda a figura de Slon e da maneira como essa apresentao pode contribuir para desenhar a estratgia de caracterizao do sophos em Digenes28.

    A referncia ao legislador ocorre no Livro I, depois do promio e antes

    26 Para uma anlise mais aprofundada deste interessante opsculo, vide Leo 2011.27 Vide Leo Brando 2012.28 Para mais pormenores sobre a forma como Plutarco e Digenes trabalham a figura de

    Slon, vide Leo 2001 173-212. Na presente anlise, recuperam-se alguns dos argumentos centrais ento aduzidos a propsito de Digenes.

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    da considerao dos filsofos propriamente ditos. Ao longo dos cerca de cem captulos que separam esses dois momentos, o bigrafo recorda uma srie de pormenores ligados existncia daqueles homens que, desde os tempos de antanho, foram considerados sophoi29. Destes, a Tales e a Slon que analisa com maior cuidado, imagem do que acontecia no Septem Sapientium Convivium de Plutarco, onde eles tambm ocupavam uma posio de relevo. Em si, tal facto no muito significativo, pois ecoa somente a importncia que estas figuras detinham na cultura anterior, conforme se viu na primeira seco deste estudo30. De resto, tanto o symposion de sapientes imaginado por Plutarco em casa do tirano Periandro como esta parte do Livro I de Digenes ilustram um estdio avanado da tradio, e nesta altura j os sbios haviam acumulado uma quantidade aprecivel de pormenores ligados s suas vidas e se haviam tornado contemporneos e amigos. Ao tecer a biografia destas personalidades, Digenes est, naturalmente, a par das variantes da tradio, que opta, de resto, por explorar. Ser pertinente recordar a longa listagem por ele facultada dos nomes que integraram, de acordo com os diferentes autores, o grupo dos Sbios (1.41-42):

    . , , . , , , , . , , , , , , , . . , , , , , , , , , , , , , , , , , , . , , , , , , , , , , , .

    Discute-se tambm qual o seu nmero. Lendrio, de facto, em vez de Cleobulo e de Mson, optou por Leofanto, filho de Grsias, de Lbedos ou de feso, e pelo cretense Epimnides; j Plato, no Protgoras, faz entrar Mson para o

    29 Conforme ele mesmo esclarece (1.122), antes de fazer a transio para a filosofia inica, de que Tales, uma das figuras evocadas como sbio, fora o iniciador.

    30 Os captulos encontram-se distribudos na seguinte proporo: Tales (22-44); Slon (45-67); Qulon (68-73); Ptaco (74-81); Bias (82-88); Cleobulo (89-93); Periandro (94-100); Anacrsis (101-105); Mson (106-108); Epimnides (109-115); Ferecides (116-122).

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    lugar de Periandro; foro substitui Mson por Anacrsis; outros ajuntam ainda Pitgoras. Dicearco regista quatro nomes que tambm reconhecemos Tales, Bias, Ptaco, Slon e refere outros seis (de entre os quais seleciona trs): Aristodemo, Pnfilo, o lacedemnio Qulon, Cleobulo, Anacrsis e Periandro. Alguns acrescentam Acusilau, filho de Cabas ou de Escabras, natural de Argos. Mas Hermipo, no Sobre os Sbios, alinha dezassete, a partir dos quais diferentes pessoas formam grupos diferentes de sete. So eles Slon, Tales, Ptaco, Bias, Qulon, Mson, Cleobulo, Periandro, Anacrsis, Acusilau, Epimnides, Leofanto, Ferecides, Aristodemo, Pitgoras, Laso, filho de Carmntides ou de Sismbrino ou, de acordo com Aristxeno, de Cbrino, natural de Hermone, e Anaxgoras. Hipboto, na Lista dos Filsofos, alinha Orfeu, Lino, Slon, Periandro, Anacrsis, Cleobulo, Mson, Tales, Bias, Ptaco, Epicarmo e Pitgoras.

    Este texto bem ilustrativo da riqueza da tradio ligada aos Sete Sbios, de que se falava na seco anterior, bem como das possibilidades de escolha e combinao dessas figuras. Ao grupo pertenciam inclusive tiranos, que, mesmo quando no ocupavam o posto de sapiente, poderiam desempenhar um papel igualmente importante ao patrocinarem encontros de sophoi31. Digenes, que, ao contrrio de Plutarco, no pretende descrever um symposion com estas personalidades, evita a obrigao de eleger o tradicional nmero de sete, pelo que opta por traar a biografia das onze figuras que lhe despertavam maior interesse ou sobre as quais abundaria a informao. O delineamento dessas apresentaes biogrficas segue um esquema relativamente estvel. Os elementos constantes prendem-se com os trs pontos fundamentais na vida: nascimento, akme e morte. Os traos sujeitos a maior variao ligam-se aos apotegmas, sentenas e opinies conotados com a personagem retratada32. Entre os sbios elencados, a biografia referente a Slon acaba por ser a mais extensa, facto indicativo do caudal de elementos atribudos ao antigo legislador. Para mais, o prprio Digenes salienta essa realidade no texto transcrito, ao comentar a escolha feita por um dos autores que refere ( , , , , ).

    O bigrafo comea por mencionar a filiao de Slon, cuja origem coloca em Salamina, preparando, assim, o campo para explorar a ligao ilha. De resto, ele atribui um lugar central na obra de Slon resoluo do conflito entre Atenas e Mgara motivado pela disputa de Salamina33. Embora os pormenores relativos a este episdio justificassem uma anlise parte, que no

    31 Assim acontecera com Periandro no Septem Sapientium Convivium. Embora Digenes, no passo em anlise, no refira Pisstrato, reconhece, ao encerrar a biografia das figuras que escolhera, que alguns autores o catalogam entre esses homens ilustres (1.122).

    32 Vide sistematizao de Gigante 1986 16-18.33 Cf. 1.46, em que a descrio do evento introduzida por .

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    cabe agora fazer, ainda assim vantajoso chamar a ateno para certos dados. Um deles consiste no facto de Digenes transmitir alguns versos da elegia que Slon comps por altura do conflito, e que nem Plutarco cita de forma to extensa nem as outras fontes referem34. Este pormenor justificaria, por si s, a importncia do testemunho. Digenes d tambm a notcia de que, para reforar a legitimidade da posse de Salamina pelos Atenienses, Slon teria interpolado um verso (Il. 2.558) em Homero. A acusao deve ser antiga e ter, provavelmente, uma origem megarense35. Mais ateno merece, de momento, o resumo que o bigrafo fornece de toda a produo de Slon (1.61):

    , , , , .

    seguro que ele tenha escrito as leis, discursos, exortaes dirigidas a si mesmo e elegias, ora relativas a Salamina ora constituio dos Atenienses, num total de cinco mil versos, para alm de poemas em metro imbico e epodos.

    Se esta informao se revela muito importante por ser das poucas referncias diretas extenso e natureza dos trabalhos do legislador, poder, contudo, suscitar algumas reservas em questes de pormenor. A primeira dvida prende-se com o facto de Slon ter ou no passado a escrito a sua obra, como Digenes afirma de forma convicta ( ). No que diz respeito s leis, provvel que elas tenham sido registadas em material duradouro logo aps a nomothesia. Digenes aceita, segundo a opinio prevalecente, que a legislao ter sido precedida pelas medidas de emergncia (seisachtheia), mas evita entrar em pormenores: , , 36. Quanto a discursos, certamente que Slon os fez na defesa das medidas que se propunha implementar, mas que os tenha posto a circular

    34 Cf. 1.47, que corresponde aos frgs. 2 e 3 West. Vide ainda frgs. 9, 10, 11 e 20 West, onde a importncia de Digenes como fonte varia; neste ltimo, refere-se a eventual polmica com o frg. 6 West de Mimnermo, sobre a durao da vida humana. Vide Leo 2001 438-439.

    35 O bigrafo est consciente dos anteriores tratamentos dessa acusao, como se pode deduzir da forma usada para introduzir a referncia interpolao (1.48): . Para mais pormenores, vide Leo 2001 250-264, esp. 254-255.

    36 1.45: em seguida, estabeleceu as restantes leis, que seria moroso referir em pormenor, e gravou-as nos axones. Contudo, mais adiante (1.55-58), o bigrafo acaba por mencionar algumas das regulamentaes de Slon, sobretudo porque lhe permitem passar enumerao das sentenas atribudas a este sbio. Ruschenbusch (1966) cataloga todas estas disposies entre as leis falsas ou de atribuio duvidosa, com exceo da que se refere s reunies dos nove arcontes, para a qual Digenes aduz a autoridade do de Apolodoro (1.58 = frg. 38g Ruschenbusch).

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    em forma escrita somente uma hiptese de que no h indcios concretos. Finalmente, no que diz respeito obra potica, a informao relativa aos tipos de metros cultivados ( ... ) pode estar correcta, se bem que se no conservem fragmentos de epodos37. Mais seguro o pendor didtico/parentico de alguns dos poemas. No entanto, j no inspira a mesma confiana a referncia quantidade de versos que o legislador teria composto e que, s no domnio da elegia, atingiria a meia dezena de milhar ()38. Na verdade, a dedicao poesia um motivo que acompanha a caracterizao da figura dos sapientes com uma regularidade tal que se torna um pouco suspeita. Se, em alguns dos casos, o doxgrafo no indica o nmero de versos que a figura em questo teria produzido, acontece tambm com frequncia que as cifras apontadas so elevadas39. H que reconhecer que chegaram da antiguidade exemplos mais impressionantes de operosidade, pelo que os nmeros indicados no seriam impeditivo para considerar correta a informao de Digenes. No entanto, a presena sistemtica deste elemento, ao lado da expresso de opinies polticas e de sentenas famosas, leva a pr a hiptese de que a poesia se tenha tornado, com o tempo, em mais um fator de caracterizao geral do Sbio, talvez por influncia de Slon, de cuja atividade literria se pressentem os ecos j nos primeiros testemunhos40.

    Alm de Digenes colorir as biografias com citaes que, ao menos teoricamente, pertencem individualidade retratada, ele tambm aproveita, com alguma frequncia, para introduzir escritos seus. o que acontece no caso de Slon, cuja morte coloca em Chipre, aos oitenta anos de idade41, para depois referir o epitfio que imaginara para o antigo legislador (1.63):

    , , ,

    37 No entanto, tal como acontecia j com a questo dos discursos, o argumento ex silentio no probatrio.

    38 Partindo do princpio de que a expresso se liga diretamente a .39 E.g. Bias (1.85: ); Cleobulo (1.89: ); Periandro (1.97:

    ); Epimnides, que constitui o caso mais paradigmtico (1.111-112: ... ... ).

    40 Ainda assim, no deixa de ser verdade que a ligao entre a sophia e a produo potica estabelecida por autores como Xenfanes (frg. 2 West) e pelo prprio Slon (frg. 13.51-52 West).

    41 Note-se que a longevidade tambm um elemento caracterizador do sophos. A ttulo de exemplo, ponderem-se os casos de Periandro (1.95) e de Mson (1.108). Epimnides novamente paradigmtico, j que, na verso cretense, teria vivido quase trezentos anos, cinquenta e sete dos quais passados em hibernao involuntria (1.109-111).

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    , . .

    H tambm um epigrama da minha autoria no Pmmetro, obra atrs referida, onde discorri sobre a totalidade dos homens ilustres falecidos, fazendo uso de todos os metros e ritmos, tanto em epigramas como em poesia lrica. O epigrama diz assim:O corpo de Slon f-lo evolar-se, na longnqua Chipre, o fogo; os ossos guarda-os Salamina, na poeira das espigas;a alma os axones, lestos, ao cu devolveram: boas so as leis que neles fixou, fardo bem ligeiro.

    Digenes estende maioria dos biografados a prtica de pr em verso a sua morte. Ainda assim, procedeu a alguma seleo j que certos sbios no obtm a mesma deferncia (Ptaco, Cleobulo, Mson e Epimnides)42. Tanto o nome dado pelo doxgrafo coletnea () como a explanao do seu contedo ( , ) mostram que acolheria uma grande variedade de formas de composio43. Tecidas estas consideraes gerais sobre o Pmmetro, interessaria refletir tambm sobre o caso particular do epigrama dedicado a Slon. duvidoso que a morte de Slon se tenha dado em outro local que no Atenas e a histria da disperso das cinzas por Salamina j colhia, com fundadas razes, o ceticismo de Plutarco, apesar das potencialidades ticas dessa lenda44. No deve por isso ter valor histrico, na medida em que constitui uma clara amplificao do envolvimento do reformador na disputa pelo domnio da estratgica ilha. Curioso e difcil de traduzir , por outro lado, o jogo com um dos significados possveis de axones, enquanto placas giratrias onde estariam inscritas as leis de Slon. Esta interpretao permite a Digenes sugerir, no primeiro verso do segundo dstico, a viragem/viagem sofrida pela alma, ao volver-se a face da terra para se atingir a dos cus. A facilidade dessa operao (promovida pelos referidos axones), d o mote para que, no ltimo verso, seja introduzida a referncia obra de legislador ( ), cuja qualidade excelente est expressa

    42 Sobre as caractersticas e significado deste Pmmetro (referido pela primeira vez na evocao de Tales, 1.39), ponderem-se as observaes de Gigante (1986 34-44), que faculta (p. 39) uma listagem global das figuras que no foram contempladas por este tratamento especial.

    43 O facto de Digenes ter optado por colocar em verso a morte dos seus retratados ilustra no s a importncia que atribua caracterizao desse momento supremo da existncia humana, como assegura ao autor um lugar na literatura peri thanatou.

    44 Cf. Plutarco Sol. 32.4. Sobre o ano e local da morte do estadista, vide Leo 2001 277-279.

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    pela ideia de leveza ( )45. So pequenos pormenores, de gosto naturalmente discutvel e um tanto rebuscado, mas que exprimem o cuidado que o bigrafo colocava na elaborao destes poemas.

    Outro dos traos importantes na caracterizao dos sophoi consiste na enumerao das sentenas clebres que cada um deles teria pronunciado em circunstncias variadas. De resto, a literatura gnmica deve ter assistido prpria gnese da tradio dos Sete Sbios, conforme se sustentou na seco anterior. No caso de Digenes a acumulao desses elementos chega a ser to importante que a sua remoo quase esvazia de sentido o retrato apresentado46. No surpreende, portanto, que para Slon se detete o mesmo concurso abundante de tais exemplos de sabedoria popular, que geralmente se designam por termos como gnome, apophthegma, apomnemoneuma, chreia47. Em si, tal constatao nada tem de muito revelador, para alm de mostrar um estdio da tradio em que esses fatores j se encontravam bem estabelecidos, pelo que no se justificar discuti-los agora em pormenor48. Em vez disso e como forma de encerrar a reflexo sobre o testemunho do doxgrafo, ser talvez mais interessante comentar brevemente uma das vrias cartas que os Sbios teriam supostamente trocado entre si, constituindo assim mais um elemento caracterizador da sua atuao. Optou-se por ilustrar este trao com uma das supostas missivas trocadas entre duas das mais paradigmticas figuras ligadas mundividncia dos Sete Sbios Creso e Slon (1.67):

    , , , . . , .

    Slon a CresoAdmiro-te pela bondade demonstrada em relao minha pessoa e, por Atena, no colocasse eu acima de tudo o desejo de viver em democracia, e mostraria como prefervel fixar residncia no teu palcio a faz-lo em Atenas, onde Pisstrato procura exercer pela fora o poder absoluto. -me, porm, mais agradvel a vida onde todos partilham a justia e a igualdade. Ainda assim, conto visitar-te, pois desejo profundamente tornar-me teu hspede.

    45 E, de novo, o jogo possvel com o material de que esses axones seriam feitos (madeira).46 Assim acontece, por exemplo, com Anacrsis (1.103-105).47 Sobre as caractersticas, origem e tradio deste tipo de literatura e sua utilizao na obra

    de Digenes, vide Kindstrand 1986 217-243.48 Em todo o caso, cf. 1.58-60 e 63.

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    A existncia histrica do encontro entre Slon e Creso altamente inverosmil em termos cronolgicos, pelo que esta carta, onde se prepara a referida entrevista, corresponde obviamente a uma falsificao. Improvvel , tambm, a data proposta para a realizao da viagem. A conjugao das fontes mais seguras indica que a apodemia de Slon ocorreu imediatamente aps a reforma legislativa49. Contudo, Digenes (ou mais certamente a sua fonte) coloca-a na altura em que Pisstrato procura instalar a tirania, portanto bastantes anos mais tarde. Desta forma, o exlio voluntrio de Slon seria a derradeira luta contra a tirania. No entanto, o mesmo Pisstrato tambm ocupava, por vezes, o lugar de sbio50. Para isso deve ter contribudo a imagem idealizada do seu governo, razo pela qual Slon, que, nesta carta, se dirige ao chefe de um regime autocrtico, acaba por afirmar que a vida em Atenas continuava a garantir um estatuto especial ( )51. Na totalidade das missivas, cujo nmero atinge a dezena e meia, a figura que domina continua a ser Slon, a quem se multiplicam as ofertas de asilo poltico. Nota-se, tambm, um certo sentimento antimonrquico generalizado, o que no deixa de estar de acordo com a posio tradicional dos sophoi, j expressa no Convivium de Plutarco, apesar de o anfitrio ser um tirano. Estas cartas devem corresponder a vestgios de uma narrativa epistolar sobre os Sete Sbios e os patrocinadores dos seus encontros, um tipo de literatura da qual Digenes haveria retirado somente as partes que lhe interessavam, alterando inclusive a ordem com que apareceriam no original52. O bilhete de Slon a Creso, por exemplo, sendo embora o que aparece em ltimo lugar na biografia, deveria anteceder os que pressupem que o legislador j estivesse no exlio.

    De um ponto de vista meramente histrico, pode afirmar-se que, em termos gerais, Digenes das fontes menos seguras para o conhecimento de Slon (e, por extenso, possivelmente tambm de outras personalidades tratadas). Contribui para este sentimento o facto de o doxgrafo se deixar tentar, de maneira bastante insistente, pelos pormenores anedticos e por certa superficialidade no tratamento dessas figuras. Apesar disso, Digenes traz com frequncia surpresas agradveis, como acontece quando transmite fragmentos da poesia de Slon, que seriam de outra forma desconhecidos, por deles no haver mais registos, ou ainda quando cita e pondera a opinio de outros autores,

    49 Para mais pormenores sobre esta debatida questo, vide Leo 2001 275-277.50 Cf. 1.122.51 Esta noo concorda globalmente com o retrato da tirania de Pisstrato que ocorre, por

    exemplo, em [Aristteles], Ath. 16, segundo o qual este perodo seria comparvel a nova idade de Cronos.

    52 Snell (1952 122-123) cr que a criao deste Briefroman anterior a Hermipo e procura repor o arranjo primitivo de algumas das cartas transmitidas por Digenes (ib. 124-133).

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    cujas obras se perderam e que se revelam importantes para iluminar questes controversas. No entanto, se se deixar de lado as exigncias de uma abordagem histrica que tambm no estariam, por certo, entre as prioridades de Digenes , torna-se inegvel que o primeiro livro das Vidas e doutrinas dos filsofos ilustres tem um enorme interesse para a anlise do desenvolvimento da tradio ligada aos Sete Sbios, pois ilustra um momento em que os dados essenciais relativos a estas figuras j se encontravam cristalizados na cultura do seu tempo. Ao tomar esta opes discursivas, Digenes est, igualmente, a ir ao encontro das expetativas dos seus leitores, cujos gostos literrios e culturais ficam assim, de forma indireta, retratados na sua obra, cuja leitura integral continua a ser altamente recomendvel, mesmo nos incios do sc. XXI.

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    Delfim F. Leo

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  • (Pgina deixada propositadamente em branco)

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    Sbios e poetas na construo da identidade helnica

    Sbios e poetas na construo da identidade helnica(Wise men and poets constructing the Hellenic identity)

    Marta Isabel de Oliveira VrzeasUniversidade do Porto Centro de Estudos Clssicos e Humansticos

    Resumo: O facto de Digenes Larcio incluir, numa obra que visa reunir as vidas e doutrinas dos filsofos ilustres, as lendas e mximas atribudas aos Sete Sbios indicao clara do relevante papel desempenhado por aquelas figuras na formao da identidade helnica, enquanto representantes de uma tradio sapiencial que caracterizou a mundividncia arcaica e teve fundas repercusses nas pocas seguintes. A smula de Digenes ser o ponto de partida para a reflexo sobre o modo como as mximas dos Sete Sbios foram sendo retomadas, expandidas, reformuladas e mesmo censuradas por aqueles outros sophoi ou sophistai que com eles concorreram para dar forma e expresso ao modo particular de ser Grego os poetas, quer os cultores da poesia lrica, como Simnides ou Pndaro, quer do teatro trgico, como Sfocles.Palavras-chave: Digenes Larcio, Sete Sbios, Mximas, Poesia grega, Tragdia

    Abstract: The fact that Diogenes Laertius included the legend of the Seven Wise Men and their maxims in a work whose aim was to collect the lives and doctrines of illustrious philosophers clearly points to the relevant part played by those Wise Men in shaping helenic identity. In fact, they represent a traditional wisdom characteristic of the archaic vision of the world with important repercussions in other periods of Greek history. Diogeness work will serve me as a departing point for the reflexion on the ways those maxims were reformulated, expanded, and even dispraised by those other sophoi or sophistai that, like the Seven, were shaping the particular way of being a Greek lyric poets, like Simonides or Pindar, and dramatic poets, like Sophocles.Key-words: Diogenes Laertius, Seven Wise Men, Maxims, Greek Poetry, Tragedy

    O facto de Digenes Larcio incluir, numa obra que visa reunir as vidas e doutrinas dos filsofos ilustres, a sua recolha de dados biogrficos acerca dos Sete e mais quatro Sbios bem como as sentenas a eles atribudas, parece encontrar justificao suficiente na forma como o autor percepciona o papel tutelar de algumas destas figuras relativamente queles que, na sua perspectiva, deram incio s duas grandes tradies filosficas gregas: a inica e a itlica. De facto, afirma o bigrafo (1.13) que Anaximandro, o iniciador da filosofia inica, fora discpulo de Tales, um dos do ncleo duro dos Sapientes, e Pitgoras, que iniciara a tradio itlica, tivera por mestre Ferecides de Siros e contactara tambm com Epimnides de Creta, dois dos nomes que Larcio acrescenta ao nmero tradicional dos Sete. Porm, necessrio notar que a apresentao exaustiva daquelas figuras, a quem dedicado o Livro I, antes de mais sintomtica do reconhecimento do relevante papel por elas desempenhado na construo de uma tradio sapiencial que ajudou a dar

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    forma mundividncia da plis arcaica e que teve importantes repercusses em pocas posteriores. De resto, a sua incluso na obra surge como uma verdadeira opo do autor, pois, apesar de no ser indita, ao que parece1, a presena dos Sbios nos escritos sobre os filsofos antigos que serviram de fonte a Larcio, a verdade que o prprio lembra (1.40), e implicitamente rejeita, a opinio de Dicearco, segundo a qual aqueles homens no haviam sido nem sophoi nem philosophoi mas apenas synetous e nomothetikous, inteligentes e legisladores. Ora, no h dvida de que o bigrafo, se bem que no os queira confundir com os filsofos, como bem mostra o remate deste primeiro livro2, reconhece-lhes claramente o estatuto de Sbios e, alm disso, parece aceitar a viso tradicional que os associava aos poetas. Da que, tanto a uns como a outros, como recorda de passagem na sua primeira aluso aos sophoi, tenha sido dado o nome de sophistai (1.12).

    Esta referncia aparentemente marginal aos poetas como sophistai, a par dos sophoi, talvez seja mais significativa do que parece primeira vista. que, ao estabelecer a distino entre dois tipos de saber o dos sbios e poetas, por um lado, e o dos filsofos, por outro o autor convoca para o universo da sua obra essas outras figuras que desempenharam um papel absolutamente determinante na configurao do modo de ser grego e, em muitos casos, na prpria reflexo filosfica, que, como sabemos, comea por se afirmar em polmico mas constante dilogo com essa tradio potica que fora, durante muito tempo, a nica forma de educao na Hlade3. Por conseguinte, podemos dizer que a evocao dos poetas est em linha de continuidade com a antiga concepo da poesia como veculo de transmisso do saber e, consequentemente, com uma viso dos seus cultores como mestres, detentores de uma sophia igualvel dos Sbios, ou, pelo menos, com idnticas repercusses ou responsabilidades na formao da identidade helnica. E assim se percebe por que razo, num relato dedicado s vidas e doxografia daqueles que deram incio actividade filosfica na Grcia, abundam citaes de versos, referncias a poetas e at breves reflexes ou comentrios sobre a arte da poesia. O uso da palavra sophistai para designar os poetas, aqui abonado pelas afirmaes de Cratino acerca de Homero e Hesodo (1.12), tambm confirmado num passo do Protgoras de Plato (316d) em que o Abderita, em defesa da sua actividade, afirma que a sofstica havia sido praticada desde sempre por homens como

    1 Sobre a associao entre Sbios e filsofos em outras obras acerca da histria da filosofia vide Goulet 1999 47.

    2 Larcio temina o livro primeiro dizendo: Estes so os chamados sbios. Mas deve-se falar dos filsofos.

    3 Xenfanes e Heraclito so dois dos primeiros exemplos dessa polmica, como o prprio Larcio testemunha nos captulos a eles dedicados 9.1 (= frg. 42 DK) e 9.18. Cf. frg. 11 DK de Xenfanes.

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    Homero, Hesodo e Simnides que a disfaravam sob a forma de poesia. Alis, de Simnides, como sabido, se foi tambm construindo j na Antiguidade a imagem do poeta sbio, e a tradio atribua-lhe uma extensa lista de apotegmas4. Ora, tambm a este nvel formal, possvel encontrar um ponto de confluncia entre sbios e poetas, precisamente no recurso s sentenas, as gnomai uma forma de expresso concisa e lapidar abundantemente usada na lrica arcaica5.

    No ser, pois, por acaso, que dos Sapientes circulasse tambm a informao, referida por Digenes Larcio e que ele diz ter origem em Anaxmenes, de que teriam composto poesia, embora, excepo de Slon, no tenhamos conhecimento de quaisquer poemas por eles escritos e seja at provvel, como defendem alguns crticos, que o no tivessem feito6.

    A associao do conjunto dos Sete Sbios ao santurio de Delfos e ao deus Apolo, que aparece pela primeira vez no dilogo platnico acima citado7, e poca de Larcio j era um dado plenamente consolidado da tradio acerca daquelas figuras, mais um dos factores de convergncia com os poetas, uma vez que, como sabemos, Apolo era, juntamente com as Musas, o seu patrono o deus da mousike8.

    Apesar da distino entre Sbios associados aos Poetas e Filsofos nota-se que, em vrios momentos da obra, as linhas de demarcao entre estes grupos no s se esbatem como chegam mesmo a cruzar-se. o que ocorre quando, a propsito de Parmnides ter enveredado pela forma potica para

    4 Sobre Simnides e a sua tradicional incluso no grupo dos homens sbios vide Ferreira 2005.

    5 Encontram-se exemplos vrios em Simnides, Pndaro ou Baqulides, entre outros. Apesar disso, o laconismo das sentenas dos Sbios no se confunde com o trabalho criativo sobre a linguagem efectuado pelos poetas arcaicos. Tem razo Gual (2007 38) ao dizer: Pocos tratos com las verstiles musas de trenzas violetas tienen estos Sabios que, pertrechados de prudencia y sagacidad, avanzan a la conquista de la verdad com paso firme y en fila, codo a codo, como los hoplitas de sus tiempos. Esos apotegmas tan escuetos, tan desprovistos de cualquier lujo verbal, tan prosaicos, revelan bien el espritu estricto de estos sabios () Reflejan bien esa mentalidad astuta, calculadora, antipotica, que exhorta a una moral basada en la prudencia y la bsqueda de beneficios materiales.

    6 Dvidas sobre a suposta produo potica dos Sbios transmitida por Larcio so expressas por Goulet 1999 58-60.

    7 Prt. 343b. Neste passo afirma Scrates que Tales, Ptaco, Bias, Slon, Cleobulo, Mson e Qulon se reuniram em Delfos e a Apolo ofereceram o melhor do seu saber, gravando no templo do deus as suas mximas. Sobre as origens e desenvolvimento da lenda dos Sete Sbios na Grcia vide Busine 2002. Vide ainda Leo 2008 16-19 e Leo 2006 35-78.

    8 No esqueamos, alm disso, que a equao que faz corresponder conhecimento ou sabedoria s artes das Musas ou poesia caracteriza a mundividncia helnica, e tem raizes na sua mitologia. Basta lembrar os pedidos de inspirao Musa, feitos pelos poetas picos com base no facto de estas possurem um conhecimento total advindo da observao directa dos acontecimentos (Il. 2.484-492); ou ainda um episdio homrico como o das Sereias (Od. 12.183- 190), esses seres fascinantes e perigosos cujo canto sedutor prometia um saber irresistvel.

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    o registo do seu pensamento, Digenes afirma que o mesmo fizeram outros, dando como exemplos, no apenas os expectveis Xenfanes e Empdocles, mas tambm, algo inesperadamente, Hesodo (9.21). Ora, a referncia a Hesodo e a naturalidade com que aproximado destes pensadores parece indicar que Digenes Larcio reconhece aos poetas antigos ou, pelo menos, a este uma sabedoria ou uma atitude de busca do saber equiparveis s daqueles que primeiro filosofaram9.

    Mas o cruzamento entre poetas, sbios e filsofos tem uma das suas expresses mais eloquentes no livro 9 (71-73), onde Digenes refere que, segundo alguns testemunhos, que ele no identifica, Homero fora o iniciador da escola cptica, bem como os prprios Sete Sbios. E ele mesmo parece defender tal ponto de vista, ao acrescentar exemplos de Arquloco, Eurpides e Homero que supostamente corroboram aquela opinio.

    Relacionado com isto podemos ainda mencionar um dos aspectos que entra frequentemente na caracterizao dos homens ilustres que constituem o objecto do seu livro, ou seja, a sua actividade como cultores de poesia, ou as suas preferncias literrias. Esse um dado valorizado por Larcio, interessado menos na doxografia do que em tudo aquilo que possa dar dos biografados uma imagem mais personalizada e prxima. E se, como no caso de um Xenfanes ou de um Heraclito, as suas opinies a respeito das mentiras de Homero e Hesodo importam para dar a imagem de um saber que se afirma por oposio tradio mais antiga, nomeadamente a dos aedos, no menos verdade que a indicao dos gostos literrios de outros autores, como Tmon (9.111 sqq), Menedemo de Ertria (2.133), Plemon (4.20) ou Arcesilau (4.31), entre muitos outros, pode ser entendida como a defesa da compatibilidade entre filosofia e poesia, que, de resto, para Digenes Larcio, no constituiria qualquer problema.

    Mas a presena da poesia na obra no se limita a este tipo de referncias, antes parece mesmo estar ao servio do prprio trabalho de composio biogrfica. Com efeito, ela emerge aberta e sucessivamente nos pargrafos em que o autor transcreve poemas, quer de origem alheia e que vm confirmar, atestar ou completar aspectos da vida e do carcter das suas personagens quer de sua autoria e dedicados morte dos biografados; versos, ao que tudo indica, anteriores composio das Vidas, dado que, como o prprio afirma, se encontravam reunidos numa obra intitulada Pammetros, um vasto conjunto de poemas em metros variados. Os seus versos surgem como uma espcie de

    9 Neste aspecto, de alguma maneira, alinha numa viso da histria da filosofia com algumas semelhanas com a de Aristteles que, no primeiro livro da Metafsica, parece incluir Hesodo e at Homero no conjunto dos que designa como protoi theologesantes, os que primeiro falaram acerca dos deuses.

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    complemento, o contributo mais pessoal do autor para a caracterizao destes homens10. Mas expressam tambm o valor atribudo a essa outra faceta da sua actividade como escritor, e que parece ser motivo de algum orgulho. Assim, ao nvel da escrita, o autor concilia dois tipos de registo a prosa e o verso que, na sua perspectiva, associam o talento natural (physis) e o domnio de uma tcnica (techne). , de facto, a este binmio, natureza/arte, que Larcio recorre nas consideraes que expende acerca da arte da poesia e que nos dizem alguma coisa sobre o que ele pensaria de si prprio como escritor. Ao falar de um dos homnimos de Xencrates, que havia escrito uma elegia sem qualquer qualidade potica, faz o seguinte comentrio (4.15):

    Isso tpico, pois os poetas quando se voltam para a escrita em prosa, tm sucesso, enquanto os prosadores, quando se abalanam poesia, falham. Com isto se torna manifesto que a poesia obra da natureza, a prosa obra da tcnica.

    Outro momento interessante no que diz respeito ao cruzamento entre

    o universo da poesia e o da filosofia encontra-se em 3.56 onde a evoluo da histria da filosofia comparada evoluo da tragdia:

    Tal como nos primeiros tempos da tragdia o coro era o nico elemento dramtico, depois Tspis introduziu um actor para o coro descansar, squilo um segundo e Sfocles o terceiro, contribuindo para levar a tragdia sua forma acabada, assim tambm, no incio, o objecto da filosofia era apenas um a natureza depois, numa segunda fase, Scrates acrescentou a tica e numa terceira Plato juntou a dialctica, levando a filosofia perfeio.

    No , com certeza, totalmente casual ou inconsequente este comentrio. Com efeito, ele surge no livro dedicado a Plato que, de acordo com os dados avanados no incio, teria comeado por compor tragdias; alm disso, ocorre imediatamente antes de o autor referir a opinio de Trasilo, segundo a qual o filsofo teria organizado os seus dilogos em tetralogias por influncia da tragdia. A comparao que Larcio estabelece entre o desenvolvimento do drama trgico e o da filosofia surge to naturalmente a introduzir a questo acerca da forma pela qual Plato teria publicado os seus dilogos que parece indicar uma posio favorvel ideia da influncia da tragdia sobre a obra platnica.

    10 O que no significa que Digenes use sempre um discurso laudatrio para se referir aos seus biografados. Lembre-se o exemplo de Bon, no livro 4, vigorosamente criticado pelo autor nos versos que lhe dedica, por, na morte, no ter sabido manter a dignidade e a coerncia com os princpios que defendera em vida.

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    Pesem embora os cruzamentos que acabei de referir entre o universo de uma tradio sapiencial formada por poetas e sbios e o da Filosofia, a verdade que a distino que o bigrafo comea por estabelecer logo no incio aponta, consciente ou inconscientemente, para uma realidade que caracterizou a cultura helnica ao longo dos seus perodos arcaico e clssico: refiro-me ao clima de competio entre poetas e pensadores pelo domnio discursivo na plis. Com efeito, a gradual emergncia do discurso reflexivo, cientfico-filosfico e historiogrfico, foi um processo consciente de emancipao relativamente ao cantar dos poetas, cada vez mais identificado com a mentira. Estes, porm, continuaram a afirmar a sua singularidade, e at a sua glria, e uma particular apetncia para educar os cidados. Desta competio pelo lugar cimeiro na educao da plis fala Plato na Repblica, quando alude ao antigo conflito entre poesia e filosofia (607b), pensando talvez em Xenfanes e Heraclito, aqueles que, tanto quanto sabemos, desferiram os primeiros ataques a poetas como Homero, Hesodo e Arquloco, pela forma como haviam falado sobre as divindades. O prprio Digenes, como j vimos, avana esta informao, mas no deixa de ser curioso e, mais do que isso, significativo que, no caso de Heraclito, a referncia s suas violentas censuras seja apresentada como exemplo da altivez daquele pensador (9.1).

    Mas, se o debate entre filosofia e poesia foi real na Grcia antiga e o seu principal motor foi o problema da verdade e o da procura da melhor forma de exprimir o divino, no menos real e importante para o desenvolvimento da cultura helnica foi a competio entre poetas e sbios pelo estatuto de educadores da Hlade.

    A smula de Digenes Larcio fornece-nos matria suficiente para percebermos como as mximas associadas aos Sete se constituram como saber, tornado patrimnio comum, mas aberto reflexo e at polmica com os que vieram depois11. O poeta Simnides um exemplo disso. Num dos seus poemas, que conhecemos precisamente devido sua citao por Digenes no livro I das Vidas (1.90), Simnides critica a ligeireza e o despropsito de um epigrama de Cleobulo de Lindos, composto para o tmulo de Midas. Eis o que diz o poeta de Cos12:

    11 Apesar de ser impossvel determinar a autenticidade da autoria das mximas elencadas por Digenes problema de que o prprio tem conscincia, dada a discordncia que verifica nas suas fontes (cf. 1.40-41) bem como a exacta cronologia, parece-me aceitvel que elas tenham tido origem no sc. VI e se tenham imposto como sabedoria tradicional que os poetas posteriores, sobretudo os dramaturgos, comearam a questionar e a problematizar. Busine defende justamente que, apesar de as primeiras referncias escritas aos Sete Sbios se encontrarem em Herdoto e Plato, elas so apenas le reflet dune lgende vhicule de bouche oreille et dforme par les alas de la transmission orale. E afirma noutro passo: Les prceptes delphiques, attribus dans un premier temps aux Sages, s tendirent par la suite la sagesse grecque, qui sen appropria la forme tout en en variant le sens. (Busine 2002 29, 38).

    12 Frg. 57 Bergk. A traduo aqui apresentada de Ferreira 2005.

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    Quem, confiado no seu juzo, louvaria o habitante de Lindos, Cleobulo,que aos rios eternos e s flores primaveris, chama do sol e da urea lua,e aos turbilhes do mar ops a fora de uma estela?Pois tudo inferior aos deuses. At a pedra quebrada por mos mortais. Louco o homem que profere tal sentena.

    Famosa era tambm a sua censura, dirigida a uma das mximas de Ptaco difcil ser bom a que o bigrafo tambm alude, mas cujo desenvolvimento conhecemos graas ao dilogo Protgoras (339b sqq), onde o poema de Simnides abundantemente citado e discutido. Como o prprio Scrates a afirma (343c), a polmica evidencia a rivalidade entre o poeta de Cos e os Sbios relativamente ao estatuto de educadores que uns e outros reivindicavam. E, com efeito, de forma mais aberta ou mais camuflada, este o sentido do dilogo que marca a relao dos poetas arcaicos e clssicos com a tradio anterior, no apenas a dos aedos fonte de inspirao primeira mas tambm a dos Sapientes. Trata-se de um dilogo verdadeiramente intertextual, para usar um termo da moderna crtica literria, atravs do qual as mximas destes ltimos vo sendo retomadas, expandidas, reformuladas e mesmo rejeitadas por aqueles outros sophoi ou sophistai que com eles concorreram para dar forma e expresso mundividncia helnica.

    Vejamos alguns dos modos de assimilao pelo universo da poesia dessa tradio sapiencial associada aos Sete. Sem pretender uma anlise exaustiva, procurarei centrar-me nas mximas que suscitaram mais polmica ou que foram objecto de uma mais intensa revisitao. que, de facto, se uma sentena como meden agan, inscrita em Delfos e atribuda a Slon, constantemente retomada, quer na letra quer no esprito, digamos assim, e possui um valor indiscutvel e um sentido perfeitamente cristalino e unvoco, outras h cuja pregnncia ou indeterminao semntica, resistem univocidade, abrindo-se a leituras distintas, contraditrias at, de acordo com as circunstncias histricas e ideolgicas de cada autor.

    esse o caso da mxima kairon gnothi que Digenes Larcio atribui a Ptaco de Mitilene (1.79). Por ela comearei as reflexes que seguem13. E diga-se desde j que, apesar de a tradio ligar esta sentena especificamente a Ptaco, a verdade que outros Sapientes insistiram na importncia do kairos, o que nos d bem a dimenso universal deste valor e do consenso sua volta. Diz Larcio (1.41) e a mesma informao aparece no esclio ao

    13 Retomo aqui, com algumas modificaes, as consideraes expendidas em Vrzeas 2009 57-63.

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    v. 264 de Hiplito de Eurpides que o sbio Qulon de Esparta afirmara: nada em excesso; tudo o que belo est ligado ao kairos; e Slon teria dito que a palavra se sela pelo silncio e o silncio pelo kairos (1.58). Por seu lado, Imblico (VP 49) avana a informao de que era costume atribuir-se a Pitgoras a opinio de que a melhor coisa em qualquer aco o kairos. E Aristteles diz na Metafsica (1.985b; 13.1078b) que o conceito fora um dos que os Pitagricos procuraram definir atravs dos nmeros. Embora estas referncias atestem o lugar central do kairos na tradio sapiencial e reflexiva gregas, tanto quanto sabemos foi Hesodo cuja obra Trabalhos e Dias se inscreve igualmente no mbito da literatura sapiencial quem primeiro afirmou a excelncia deste valor, ao dizer (v. 694): observa a medida; em todas as coisas o melhor o kairos. Outras ressonncias desta mesma ideia hesidica vamos encontr-las tambm na mxima mais conhecida de um outro dos Sete o j citado Cleobulo, cujo apotegma era metron ariston (D.L. 1.93).

    O conceito possua, como mostram estes exemplos, evidentes afinidades com o de metron, a medida, mas talvez contivesse tambm uma nuance de preciso, significando quer o momento quer o ponto certo, o equilbrio14. Seja como for, clara a sua acepo moral de aplicao prtica, e a sua valorizao como fundamento do agir humano. E nesse sentido que ele vai aparecer na colectnea de poemas atribudos a Tegnis (vv. 401-402), a tambm associado mxima meden agan, agora ligeiramente modificada15: Por nada correr em excesso: em todas as aces humanas o melhor/ o kairos.

    Mas porventura em Pndaro que o kairos se torna um conceito axiolgico absolutamente nuclear. Juntamente com sophrosyne, moderao, e metron, medida, ele era um dos pilares da verdadeira sabedoria com que o aristos devia conduzir a sua vida16. Para dar apenas um exemplo, entre muitos, cito a 13 ode Olmpica (v. 48), na qual se notam os ecos muito claros da mxima de Ptaco kairon gnothi e bem assim a de Cleobulo, metron ariston: em cada coisa assiste a medida;/ conhecer o kairos o melhor. Como se v, o kairos era, de facto, sentido como um princpio de regulao tica validado por uma tradio muito antiga, que remontava a Hesodo e fora consolidada pelos Sbios e pelos poetas.

    14 Wilson (1980) analisa as ocorrncias do vocbulo desde a sua apario mais antiga, em Hesodo, at Plutarco e conclui que, anteriormente ao sc. V, o seu sentido quase exclusivamente o de justa medida. Para um estudo mais aprofundado deste conceito e da sua evoluo semntica, vide a monografia de Tred 1992. Sobre o significado de metron na poca Arcaica, vide Prier 1976.

    15 Considera Wilson (1980 179) que estes versos de Tegnis so uma adaptao do v. 694 de Trabalhos e Dias de Hesodo. Prier (1976 164 n. 9) nota que o passo do poeta becio a fonte da relao que os Sofistas ho-de estabelecer entre metron e kairos.

    16 Cf. O. 13.47-48; P. 1.81-82; P. 4.508; N. 8.4.

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    Algo muda, porm, ao longo do sc. V, e dessa mudana d bom testemunho a poesia trgica, que espelha a inflexo semntica que o conceito vai sofrendo, sem dvida por influncia da nova retrica dos Sofistas17. nesta altura que se torna dominante o seu significado como tempo oportuno ou ocasio oportuna18.

    Diz Digenes Larcio (9.52) que Protgoras fora o primeiro a estabelecer a dynamis kairou, a fora da oportunidade. No sabemos qual seria exactamente o lugar do kairos no seu pensamento, mas provvel que tivesse sobretudo uma aplicao poltica, porquanto o Sofista, de acordo com o que afirma no dilogo platnico homnimo, se assumia como mestre da arte de gerir a cidade e de transformar homens em bons cidados (Pl. Prt. 319a). Quem pretendesse ter sucesso numa plis democrtica necessitava no apenas de saber como discursar de forma persuasiva, mas tambm de ter o sentido da oportunidade na apresentao das suas propostas, bem como a capacidade de discernir o melhor momento para agir.

    Todavia, outros testemunhos h a indicar que o kairos pode ser um exemplo da apropriao que os Sofistas fizeram de conceitos morais que tinham enformado a mundividncia helnica, e que, pela expanso da sua carga semntica tradicional, passaram a ser usados em contextos moralmente mais flexveis. Desta flexibilidade moral exemplo um passo do tratado conhecido como Dissoi Logoi (2.19-20)19, escrito provavelmente no final do sc. V, onde o autor annimo, para apoiar as suas afirmaes sobre o belo e o vergonhoso, cita uns versos, de autoria desconhecida para ns, que apresentam o que dizem ser uma nova regra para os mortais. Que diz essa regra?: nada completamente belo nem vergonhoso, mas o kairos que transforma estas coisas, fazendo-as vergonhosas ou belas. Numa palavra, no kairos tudo belo, fora dele, vergonhoso.

    As palavras so suficientemente claras da nova concepo de kairos como a ocasio, o momento certo que dita a qualidade das aces. Nada existe essencialmente bom ou mau, dependendo esta avaliao apenas da adequao circunstncia, do seu kairos.

    O relativismo que est por detrs deste pensamento no resolve, porm,

    17 Sobre a retrica sofstica e as suas relaes com a tragdia do sc. V, vide, entre outros, Poulakos 1995, Schiappa 1999, Halliwell 1997, Goldhill 1997, Schmalzriedt 1980 e Ober Strauss 1990.

    18 A ideia de momento oportuno comea a surgir j em Pndaro, como parece indicar, por exemplo, P. 4.286, 508 ou N. 7.58. Sobre o sentido de kairos na tragdia vide Race 1981.

    19 As ideias defendidas neste tratado de autor annimo encontrado entre as obras de Sexto Emprico, a estrutura antilgica de alguns dos seus captulos e a referncia guerra do Peloponeso so algumas das razes que levam a que seja hoje mais ou menos consensual a ideia de que ter sido composto por um Sofista alguns anos aps aquela guerra. Cf. Robinson 1979 e 2001.

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    Marta Isabel de Oliveira Vrzeas

    a questo essencial: qual o critrio para determinar o momento oportuno, a circunstncia certa?

    Um conhecido passo de Hiplito de Eurpides, de 428 a.C., vem introduzir essa nota problemtica. Trata-se do momento em que Fedra, acedendo a revelar Ama a sua paixo pelo enteado, se refere a duas espcies de aidos (vv. 385-387): uma no m, a outra a runa das casas. Se o kairos fosse claro, tendo as mesmas letras, no seriam duas coisas [distintas].

    Fedra d conta do problema inerente absolutizao do kairos como princpio orientador das escolhas morais e aponta as suas debilidades. E f-lo atravs de um dado novo, que agora chamado colao e estava muito em voga nas discusses que, poca, se faziam acerca da linguagem: a impreciso semntica das palavras, derivada de os onomata conterem em si mesmos a duplicidade e as contradies manifestadas nos pragmata e impossveis de superar pelo kairos20.

    Outros ecos da polmica levantada pela ambiguidade moral do conceito de kairos surgem igualmente nas ltimas peas de Sfocles. Em Electra, por exemplo, ele um dos aspectos estruturantes da caracterizao das personagens, nomeadamente, de Orestes e do Pedagogo, e ajuda a perspectivar a uma nova luz a aco trgica e alguns dos conflitos que lhe do forma21. A pea encena, como sabemos, a vingana dos filhos de Agammnon Orestes e Electra exigida pela morte do pai s mos de Clitemnestra e do seu amante, Egisto22. Ora, logo na cena de abertura fica clara, para o espectador, a dimenso quase obsessiva desta vingana, para a qual Orestes foi preparado toda a sua vida. Quando entram em cena, as personagens esto j determinadas a agir, dado que, como afirmam, aquele o momento exacto, o kairos por que tanto esperaram e que tm de aproveitar sem demora. No h lugar, da parte de qualquer delas, para a reflexo acerca da justia do matricdio ou acerca dos danos colaterais que o plano doloso que engendraram podero ter sobre Electra. Sob o influxo

    20 Na sua edio da pea Barrett rejeita a traduo de kairos por dividing line proposta por Wilamowitz e traduz de acordo com o que diz ser o sentido geral da palavra no sc. V, o de appropriate. A rejeio da proposta do famoso helenista justifica-a Barrett por no encontrar qualquer prova de que esse sentido fosse concebido pelos Gregos, dado que, em sua opinio, kairos normalmente o certo por oposio ao errado e no a distino entre ambos. Parece-me, no entanto, que dos usos do vocbulo, e desta fala de Fedra em particular, no est ausente a ideia de que ele sirva para estabelecer a fronteira entre o bem e o mal, aqui entre a boa e a m aidos. Quanto tradicional ambivalncia de aidos, Barrett aponta um passo de Hesodo (Erga 317-319) como sua primeira ocorrncia, mas, na verdade, em Homero que ela surge pela primeira vez, em Ilada 24.44-45. Sobre o conceito de aidos e a sua presena na Literatura grega, vide a monografia de Cairns 1993.

    21 Um excelente estudo desta pea encontra-se na edio comentada de Kells 1973. O significado dramtico de outros conflitos presentes na pea, como o expresso pela antinomia dolos/dike, explorado por Macleod 2001. Cf. ainda Vrzeas 2009 171-236.

    22 O tema da vingana na tragdia grega foi objecto da anlise de