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7 Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 22, p. 7-12, jun. 2004 DOSSIÊ “MÍDIA E POLÍTICA” Apresentação Luis Felipe Miguel “Para a maioria das pessoas, só existem dois lugares no mundo: o lugar onde elas vivem e a televisão”. A frase da personagem de Ruído branco, o romance de Don DeLillo (1987, p. 69), sintetiza a presença da mídia – que a televisão simboliza, na qualidade de meio dominante – no mundo contemporâneo. Dela provêm, direta ou indiretamente, por meio de noticiários ou programas de entretenimento, quase todas as informações de que dispomos para situarmo-nos no mundo. Por meio dela, ganhamos acesso a uma experiência vicária que multiplica muitas vezes as nossas próprias vivências. Estamos tão imersos no discurso midiático que, muitas vezes, nem percebemos a extensão de sua presença 1 . Mas, quando paramos para refletir, verificamos que o impacto da mídia é perceptível em todas as esferas de nossa vida cotidiana. Já o advento da imprensa diária, no século XVIII, fez da leitura dos jornais um novo ritual, sobretudo para as camadas urbanas mais cultas. No século XX, o rádio e, em seguida, a televisão alteraram toda nossa gestão do tempo, seja pelo surgimento da simultaneidade da informação, seja pela adequação da rotina à emissão dos programas. Na virada para o século XXI, nas sociedades urbanas, o consumo de mídia era uma das duas maiores categorias de dispêndio de tempo, atrás apenas do trabalho (CASTELLS, 1999, p. 358). Ainda mais significativa do que o aumento do tempo dedicado ao consumo da mídia é a ampliação exponencial da quantidade de informações de que cada indivíduo dispõe, para além de seu círculo de convívio direto. Hoje, estamos expostos a todo tipo de informação: fatos da economia e da política, publicidade comercial, fofocas, notícias de divulgação científica – em uma quantidade antes inimaginável. O que chega a cada um de nós, individualmente, porém, é apenas uma parte diminuta das informações produzidas. Uma única edição dominical de um grande jornal levaria várias semanas para ser lida na íntegra. No dia-a-dia, um misto de escolha e acaso filtra o conjunto de informações que cada indivíduo específico recebe. O acompanhamento da totalidade do conteúdo da mídia, ainda que por um curto lapso de tempo, é tarefa irrealizável, como bem sabem os pesquisa- dores da área. Os meios de massa cumprem um papel pri- mordial, também, na universalização de determi- nados referentes – sejam marcas comerciais ou produtos da indústria cultural – que balizam nosso cotidiano e nossa visão de mundo. Trata-se de um processo cada vez mais global, propiciando o surgimento daquilo que Renato Ortiz (1994) chamou de “cultura internacional-popular”. A familiaridade com esses bens materiais e simbólicos de penetração mundial faz com que nos sintamos “em casa” nos mais diferentes pontos do planeta, de uma forma impensável em épocas anteriores: Coca-Cola, Mickey e Volkswagen acompanham- nos nos Estados Unidos, no Brasil ou no Japão. Embora esse processo não se resuma à mídia, tem nela uma ferramenta essencial. Uma das análises mais perceptivas do impacto da mídia eletrônica sobre o tecido social foi feita por Joshua Meyrowitz (1985). Ele mostrou como os meios de comunicação, sobretudo a televisão, romperam barreiras entre espaços sociais antes relativamente estanques. Quando mulheres e 1 Este parágrafo e os seguintes resumem partes de Miguel (2002a). Recebido em 27 de maio de 2004 Aprovado em 31 de maio de 2004

Dossiê “mídia e política”

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 21: 7-12 JUN. 2004

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 22, p. 7-12, jun. 2004

DOSSIÊ “MÍDIA E POLÍTICA”

Apresentação

Luis Felipe Miguel

“Para a maioria das pessoas, só existem doislugares no mundo: o lugar onde elas vivem e atelevisão”. A frase da personagem de Ruídobranco, o romance de Don DeLillo (1987, p. 69),sintetiza a presença da mídia – que a televisãosimboliza, na qualidade de meio dominante – nomundo contemporâneo. Dela provêm, direta ouindiretamente, por meio de noticiários ouprogramas de entretenimento, quase todas asinformações de que dispomos para situarmo-nosno mundo. Por meio dela, ganhamos acesso a umaexperiência vicária que multiplica muitas vezes asnossas próprias vivências.

Estamos tão imersos no discurso midiáticoque, muitas vezes, nem percebemos a extensãode sua presença1 . Mas, quando paramos pararefletir, verificamos que o impacto da mídia éperceptível em todas as esferas de nossa vidacotidiana. Já o advento da imprensa diária, noséculo XVIII, fez da leitura dos jornais um novoritual, sobretudo para as camadas urbanas maiscultas. No século XX, o rádio e, em seguida, atelevisão alteraram toda nossa gestão do tempo,seja pelo surgimento da simultaneidade dainformação, seja pela adequação da rotina à emissãodos programas. Na virada para o século XXI, nassociedades urbanas, o consumo de mídia era umadas duas maiores categorias de dispêndio de tempo,atrás apenas do trabalho (CASTELLS, 1999, p.358).

Ainda mais significativa do que o aumento dotempo dedicado ao consumo da mídia é a ampliaçãoexponencial da quantidade de informações de quecada indivíduo dispõe, para além de seu círculo

de convívio direto. Hoje, estamos expostos a todotipo de informação: fatos da economia e dapolítica, publicidade comercial, fofocas, notíciasde divulgação científica – em uma quantidade antesinimaginável. O que chega a cada um de nós,individualmente, porém, é apenas uma partediminuta das informações produzidas. Uma únicaedição dominical de um grande jornal levaria váriassemanas para ser lida na íntegra. No dia-a-dia,um misto de escolha e acaso filtra o conjunto deinformações que cada indivíduo específico recebe.O acompanhamento da totalidade do conteúdo damídia, ainda que por um curto lapso de tempo, étarefa irrealizável, como bem sabem os pesquisa-dores da área.

Os meios de massa cumprem um papel pri-mordial, também, na universalização de determi-nados referentes – sejam marcas comerciais ouprodutos da indústria cultural – que balizam nossocotidiano e nossa visão de mundo. Trata-se deum processo cada vez mais global, propiciando osurgimento daquilo que Renato Ortiz (1994)chamou de “cultura internacional-popular”. Afamiliaridade com esses bens materiais e simbólicosde penetração mundial faz com que nos sintamos“em casa” nos mais diferentes pontos do planeta,de uma forma impensável em épocas anteriores:Coca-Cola, Mickey e Volkswagen acompanham-nos nos Estados Unidos, no Brasil ou no Japão.Embora esse processo não se resuma à mídia,tem nela uma ferramenta essencial.

Uma das análises mais perceptivas do impactoda mídia eletrônica sobre o tecido social foi feitapor Joshua Meyrowitz (1985). Ele mostrou comoos meios de comunicação, sobretudo a televisão,romperam barreiras entre espaços sociais antesrelativamente estanques. Quando mulheres e

1 Este parágrafo e os seguintes resumem partes de Miguel(2002a).

Recebido em 27 de maio de 2004Aprovado em 31 de maio de 2004

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APRESENTAÇÃO

homens ou jovens e adultos compartilham dasmesmas informações, por assistirem aos mesmosprogramas, torna-se mais difícil decretar que “istonão é assunto de mulher” ou “isto não é assuntode criança”. Assim, diz ele, a mídia alterou toda a“geografia situacional” da vida social.

Nas formas da ação política, em especial, oimpacto dos meios de comunicação de massa égigantesco. De maneira esquemática, é possívelassinalar quatro dimensões principais nas quais apresença da mídia faz-se sentir, alterando aspráticas políticas2 :

1. a mídia tornou-se o principal instrumentode contato entre a elite política e os cidadãoscomuns. As conseqüências desse fato sãoimportantes: ele significa que o acesso àmídia substitui esquemas políticostradicionais e, notadamente, reduz o pesodos partidos políticos. A literatura costumaapresentar, entre as principais funções dospartidos, a de serem ferramentas quepermitem que a cúpula mobilize seusapoiadores e, por meio deles, alcance oconjunto dos cidadãos; inversamente, querecolhem demandas das pessoas comuns,permitindo assim que elas cheguem àsesferas de exercício do poder. Os meiosde comunicação de massa suprem, emgrande parte, ambas as funções,contribuindo para o declínio da política departidos (WATTENBERG, 1998).

2. Por efeito dessa predominância comoinstrumento de contato, o discurso políticotransformou-se, adaptando-se às formaspreferidas pelos meios de comunicação demassa. É comum o lamento de que os“políticos de todas os matizes têm reveladouma tendência a descaracterizar seu própriodiscurso e incorporar o estilo midiático”(SARTI, 2000, p. 3; grifo suprimido). Oproblema desse tipo de formulação é queele supõe a existência de um modo dodiscurso propriamente político – quando,na verdade, ele é mutável, de acordo como contexto histórico em que se inclui e comas possibilidades técnicas de difusão de quedispõe. Assim, é necessário compreenderas transformações que os meios eletrônicos

de comunicação impuseram ao discursosem um fundo normativo que diga qual é o“verdadeiro” discurso político, livre decontaminações.

Na época de predomínio da televisão, emespecial, avulta o peso da imagem dospolíticos e, o que talvez tenhaconseqüências ainda mais importantes, odiscurso torna-se cada vez maisfragmentário, bloqueando qualqueraprofundamento dos conteúdos (MIGUEL,2000, p. 72-78). A fragmentação dodiscurso não é uma imposição técnica datelevisão, mas fruto dos usos que se fizeramdela. O resultado é que a fala-padrão deum entrevistado em um telejornal, porexemplo, é de poucos segundos e asexpectativas dos telespectadoresadaptaram-se a essa regra. Os políticos, emconseqüência, também. Abreviar a fala,reduzi-la a umas poucas palavras, depreferência “de efeito”, tornou-seimperativo para qualquer candidato ànotoriedade midiática. Em um estudo muitocitado, que abriu caminho para pesquisasposteriores, Daniel C. Hallin (1992)observou como tal fenômeno manifestou-se nas campanhas presidenciaisestadunidenses, culminando em falaseditadas dos candidatos com, em média,cerca de 8 segundos.

3. Conforme uma vasta literatura aponta, amídia é o principal responsável pelaprodução da agenda pública, um momentocrucial do jogo político. A pauta de questõesrelevantes, postas para a deliberaçãopública, é em grande parte condicionadapela visibilidade de cada questão nos meiosde comunicação. Dito de outra maneira, amídia possui a capacidade de formular aspreocupações públicas. O impacto dadefinição de agenda pelos meios decomunicação é perceptível não apenas nocidadão comum, que tende a entender comomais importantes as questões destacadaspelos meios de comunicação, mas tambémno comportamento de líderes políticos ede funcionários públicos, que se vêem naobrigação de dar uma resposta àquelasquestões.

Cumpre observar que a mídia não se limitaà definição de agenda, no sentido de apre-

2 Apresento aqui uma versão muito modificada e resumidade Miguel (2002b).

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sentação “neutra” de um elenco de assuntos,como por vezes transparece nos trabalhospioneiros sobre o tema (COHEN, 1969, p.13; MCCOMBS & SHAW, 1972). Assim,a pesquisa sobre a definição de agenda écomplementada pela noção de“enquadramento” (framing), adaptada daobra de Erving Goffman (1986): a mídiafornece os esquemas narrativos quepermitem interpretar os acontecimentos. Naverdade, ela privilegia alguns dessesesquemas, em detrimento de outros. Ocontrole sobre a agenda e sobre a visibilidadedos diversos enquadramentos, que alicerçaa centralidade dos meios de comunicaçãono processo político contemporâneo, nãopassa despercebido dos agentes políticos,que hoje, em grande medida, orientam suasações para o impacto presumível na mídia.

4. Mais do que no passado, os candidatos aposições de destaque político têm que adotaruma preocupação central com a gestão davisibilidade. Não se trata de singularizar aépoca atual pela presença do “espetáculopolítico”, já que aspectos similares fazemparte das práticas políticas desde há muito,como foi demonstrado exemplarmente paraa França de Luís XIV (APOSTOLIDÈS,1993; BURKE, 1994). Os pontos centraissão outros. Há, em primeiro lugar, a buscado fato político (aquele que é assimreconhecido pela mídia), como forma deorientar o noticiário e, dessa forma,influenciar a agenda pública, o que implicaa absorção de critérios de “noticiabilidade”por parte dos atores políticos. Além disso,a visibilidade na mídia é, cada vez mais,componente da produção do capital político.A presença em noticiários e talk-showsparece determinante do sucesso oufracasso de um mandato parlamentar oudo exercício de um cargo executivo; istoé, na medida em que deve acrescentar algoao capital político próprio do ocupante. Anotoriedade midiática é condição necessáriapara o acesso às posições mais importantesdo campo político.

Mas a visibilidade precisa ser geridacuidadosamente. Muito mais do que nopassado, os candidatos à elite políticadevem cuidar da “retaguarda” das suasvidas, isto é, das esferas privadas, que não

deveriam estar expostas aos olhos dopúblico. A gestão do escândalo políticotorna-se um componente cotidiano dasações de governos, partidos, parlamentarese candidatos (THOMPSON, 2002).

A afirmação da importância dos meios decomunicação de massa na política contemporânea,sintetizada nas quatro dimensões expostas acima,não deve levar à idéia de que a política perdeuqualquer especificidade, curvou-se integralmenteàs injunções da mídia ou mesmo tornou-se ummero “entretenimento visual” (JANEWAY, 1999,p. 60). As relações entre mídia e política são bemmais complexas. Partidos e redes tradicionais deapoio ainda são, em geral, indispensáveis para oêxito em uma disputa eleitoral. O discurso político,por mais que precise adaptar-se aos meios em quetransita, ainda guarda suas marcas de distinçãoem relação àquele comumente veiculado pelamídia, como um vocabulário mais elaborado, signode uma pretensa competência. A pauta da mídiafixa a agenda pública, mas muitas vezes os agentescom maior capital político são capazes de orientaro noticiário. A gestão da visibilidade é uma tarefapolítica central, mas nem toda a política é visível– uma parte significativa dela continua ocorrendonos bastidores.

Assim, o jogo de influências entre a mídia e apolítica é complexo, não é unilateral. Mas fica oreconhecimento de que a mídia tornou-se um fatorcentral da vida política contemporânea e que nãoé possível mudar esse fato. Ou seja, não adiantaalimentar a nostalgia de “tempos áureos” dapolítica, quando imperava o verdadeiro debate deidéias, sem a preocupação com a imagem, sem acontaminação pelas técnicas de marketing, sem ainfluência nociva das sondagens de opinião. Emprimeiro lugar, porque um retorno ao passado éimplausível. Mas também porque tal “época deouro” nunca existiu. Antes do advento do rádio eda televisão, outros fatores “viciavam” o discursopolítico e orientavam sua retórica. Mesmo que sepossa lamentar a atual banalização do discursopolítico, nunca houve nada parecido a um debate“puro” de idéias, desligadas daqueles que asenunciam.

Ao mesmo tempo, os meios de comunicaçãode massa ampliam o acesso aos agentes políticose a seus discursos, que ficam expostos, de modomais permanente, aos olhos do grande público.Parte da nostalgia da política pré-midiática deve-

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APRESENTAÇÃO

se à ausência atual de grandes líderes. Comoobserva Meyrowitz (1985, p. 270), isso se devenão à falta de candidatos a essa posição, mas “àsuperabundância de informações sobre eles”, istoé, à exposição cotidiana e instantânea de suasfalhas, vacilações e equívocos. Para quem sonhacom o encanto de um mundo salpicado de “grandesvultos”, isso é mau. Do ponto de vista da práticademocrática, porém, a desmitificação dos líderespolíticos pode ser encarada como um progresso.

No Brasil, embora ainda sejam relativamentepoucos os pesquisadores que produzem comregularidade sobre o assunto, os estudos sobremídia e política já acumulam uma pequenatradição, iniciada nos anos 1980 e fortementeimpulsionada com a experiência das eleiçõespresidenciais diretas de 1989 (RUBIM &AZEVEDO, 1998). O fenômeno Collor, cujaestratégia teve como passo crucial uma pesadainvestida na mídia, chamou a atenção para ainfluência dos meios de massa nos processoseleitorais. Desde 1992, um grupo de trabalho sobrecomunicação e política reúne-se anualmente, nosencontros da Associação Nacional dos Programasde Pós-Graduação em Comunicação (COMPÓS),e a área tem sido contemplada também nosencontros da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais(ANPOCS). Havia uma publicação especializada,a revista Comunicação & Política, em circulaçãodesde a década de 1980, mas nos últimos anos, adespeito do nome, ela alterou seu foco de interesse.

O principal tema nos estudos brasileiros demídia e política ainda é, de longe, o impacto dosmeios eletrônicos de comunicação nas eleições.Mas também surgem artigos, teses e livros sobrea retórica política na mídia, a comunicaçãogovernamental, as políticas públicas decomunicação e as novas tecnologias dainformação. As pesquisas de recepção ainda sãopouco numerosas, devido – antes de mais nada –aos custos de realização. Embora a influênciateórico-metodológica dominante seja dos estudosde comunicação política produzidos nos EstadosUnidos, outros interlocutores também sãofreqüentes na produção acadêmica brasileira daárea, como Jürgen Habermas, Antonio Gramsci,Stuart Hall e Pierre Bourdieu.

Os textos reunidos no dossiê desta edição daRevista de Sociologia e Política apresentam umaamostra da diversidade de temas e enfoques nos

estudos sobre mídia e política. Francisco C. P.Fonseca aborda a questão crucial da relação entrea democracia e a mídia. O controle da informaçãoé um dos pontos de estrangulamento da ordemdemocrática nos regimes ocidentais e a soluçãoliberal padrão – o controle mútuo dos veículos decomunicação na concorrência pelo mercado –provou-se amplamente insuficiente para garantirà cidadania meios de comunicação plurais de fato,isto é, capazes de refletir os diferentes interessese visões de mundo presentes na sociedade. O autorbusca, então, outro elemento do pensamentopolítico liberal, a teoria dos freios e contrapesosao poder, advogando a necessidade de aplicá-lostambém ao “quarto poder”.

O foco de Pedro José Floriano Ribeiro é menosamplo. Ele discute as transformações sofridas pelascampanhas eleitorais na era do que o cientistapolítico ítalo-estadunidense Giovanni Sartorichamou de “videopolítica”. Enquanto as estruturaspartidárias perdem peso, avulta a importância deconsultores de marketing, publicitários e técnicosem sondagens de opinião pública. O artigo colocaa “modernização” das campanhas brasileiras sobreo pano de fundo das experiências de outros paísese discute os desafios que o processo apresentapara o exercício da soberania popular.

Uma das peculiaridades do caso brasileiro estáno formato do acesso de partidos e candidatos àmídia eletrônica – a chamada propaganda eleitorale partidária gratuita, que visa a reduzir a influênciatanto do poder econômico (já que o espaço emrádio e TV não precisaria ser comprado) quantoda própria mídia (uma vez que os atores políticosteriam autonomia para apresentar seus própriosenquadramento e agenda). A capacidade efetivade cumprir todas essas metas é discutida; mas éinegável que o horário eleitoral é entendido pelaelite política como um elemento essencial dequalquer estratégia de campanha.

No entanto, como observa Márcia Jardim, umaparcela significativa das campanhas eleitorais noBrasil ocorre sem a propaganda no rádio e,sobretudo, na televisão – simplesmente porque nãoexistem, em muitos municípios, emissoras comcapacidade de gerar a programação. Nesses locais,durante as eleições municipais, os partidos fazemcampanhas tradicionais, baseadas em impressos,comícios e contato corpo-a-corpo, mas o ambienteeleitoral não é tradicional. Os eleitores recebem osinal (e, portanto, a propaganda eleitoral) dos

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municípios vizinhos, resultando em um complexosistema de contaminações.

Um novo ator no cenário da mídia brasileira,com implicações também na arena política, sãoas rádios comunitárias. Pensadas comoinstrumentos de democratização, pulverizadorasda capacidade de produção da informação, elastêm sido, com freqüência, colocadas a serviço dechefes políticos locais, de partidos ou de igrejas.Apoiada em extensa pesquisa, Márcia Vidal Nunesanalisa o comportamento de rádios comunitáriascearenses nas eleições de 1998 (estaduais enacional) e 2000 (municipal), observandoprecisamente a oscilação entre a busca daintervenção cidadã e a instrumentalização eleitoral.

Com todos os seus problemas, as emissorascomunitárias representam um dos caminhos paraa geração de um espaço comunicacional maisdiversificado, capaz de oferecer informação pluralao público. Não existe uma fórmula para sealcançar esse resultado; em geral, considera-se queé necessário um conjunto de medidas, que podempassar pelo financiamento estatal para organizaçõesalternativas de mídia, regulamentações que forcemalgum tipo de compromisso das emissoras privadascom o interesse da cidadania ou o “direito deantena”, que é a cessão obrigatória de espaço paraa sociedade civil. Outra medida é o fortalecimentode um setor público de radiodifusão, capaz demanter-se independente tanto das pressões domercado quanto do Estado.

De acordo com Regina Mota, o importante éque os meios de comunicação de massa – emespecial, a televisão, de que seu artigo ocupa-se –sejam capazes de seguir o que chama de “umapauta pública”, isto é, que levem em conta ointeresse público. Sua inspiração é o movimentodo public journalism estadunidense, que substituio ideal da “apresentação objetiva dos fatos” peloincentivo ao envolvimento dos cidadãos nasquestões coletivas. A partir de uma série deentrevistas com profissionais da mídia eintelectuais, a autora expõe diversas facetas dessapauta pública, ainda em construção, que se opõeà mentalidade dominante na televisão brasileira,tanto privada quanto estatal.

Alvo de polêmicas e questionamentos nosEstados Unidos, o public journalism tem ao menoso mérito de expor abertamente que a mídia é umator social engajado, rompendo com o discursodominante de “neutralidade”. Em seu artigo, de

uma perspectiva histórica, Flávia Biroli faz umexercício de desvendamento dos valores políticospresentes na imprensa. Ela se debruça sobre a crisede 1955 – quando a posse do Presidente eleitoJuscelino Kubitschek, ameaçada por manobrasgolpistas, foi assegurada por um contragolpemilitar – e estuda o papel desempenhado por doisjornais influentes, O Estado de S. Paulo e o cariocaCorreio da Manhã. Ao analisar editoriais,reportagens e artigos, a autora revela os limitesdo liberalismo professado pelos órgãos deimprensa e a presença continuada de elementosassociados em geral ao pensamento autoritário daPrimeira República e da ditadura de Vargas, comoo atraso do povo, a função civilizadora das elites ea inadequação da democracia eleitoral às condiçõesefetivas do país.

O recorte histórico de Fabiana Luci de Oliveiraé bem mais recente – de 1979 a 1999. O poderJudiciário era, em geral, deixado de lado nosestudos sobre mídia e política, que preferiamconcentrar-se nos poderes Executivo e Legislativo,dependentes de processos eleitorais. A atenção aopoder Judiciário tem aumentado, graças àdiscussão sobre a “judicialização da política”, istoé, ao aumento da intervenção das cortes judiciaisna tomada de decisões políticas. Analisando doisjornais diários, Folha de S. Paulo e O Estado deS. Paulo, a autora observa a alteração na imagempública do Supremo Tribunal Federal, cada vezmais visto como forte e envolvido nas grandesquestões nacionais. Reflexo de mudanças em suasatribuições constitucionais, a nova imagemtambém reforça a posição do STF na disputa porespaço político entre os poderes da República.

O conjunto de artigos que a Revista deSociologia e Política oferece neste dossiê revelaum pouco da multiplicidade de perspectivas e depossibilidades de pesquisa presente no estudo darelação entre mídia e política. Em rigor, mais doque delimitar uma área temática específica, énecessário compreender os meios de comunicaçãode massa como elementos necessários de qualquerinvestigação sobre a política contemporânea.Assim – e as Ciências Sociais, no Brasil e foradele, têm caminhado pouco a pouco nesta direção– os estudos de mídia e política deixam de serpercebidos como uma “excentricidade” e passama ser identificados apenas pela ênfase maior queconcedem a algo que já se reconheceuniversalmente como relevante.

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APRESENTAÇÃO

Luis Felipe Miguel ([email protected]; [email protected]) é Doutor em Ciências Sociais pelaUniversidade Estadual de Campinas (Unicamp), Professor do Instituto de Ciência Política e do Centrode Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas, ambos da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadordo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

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