Dr. Gaspar Frutuoso - Saudades da Terra – Livro V

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  • FICHA TCNICA

    Ttulo SAUDADES DA TERRA Livro V Autor DOUTOR GASPAR FRUTUOSO Edio INSTITUTO CULTURAL DE PONTA DELGADA

    Reviso de texto e reformulao de ndices JERNIMO CABRAL

    Catalogao Proposta

    FRUTUOSO, Gaspar, 1522-1591

    Saudades da terra : livro V / Doutor Gaspar Frutuoso ; [Palavras prvias de Joo Bernardo de Oliveira Rodrigues ; A poesia e a novela de Frutuoso por J. de Almeida Pavo] - Nova ed. - Ponta Delgada : Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1998.

    Ass: AORES / HISTRIA / HISTORIOGRAFIA AORIANA. sc. 15 -16

  • LIVRO QUINTO DAS

    SAUDADES DA TERRA

  • SAUDADES DA TERRA Livro Quinto

    Palavras Prvias VI

    PALAVRAS PRVIAS

    Joo Bernado de Oliveira Rodrigues Ponta Delgada, 14 de Agosto de 1964

    Mais um livro das Saudades da Terra d publicidade o Instituto Cultural de Ponta Delgada no prosseguimento da tarefa que se imps de editar o cdice do Doutor Gaspar Frutuoso, depositado, como se sabe, desde 1950 na Biblioteca Pblica e Arquivo Distrital desta cidade.

    O volume, que agora se publica, tem principalmente, o interesse do seu ineditismo. Dado o sequestro a que o manuscrito esteve sujeito durante longos anos e no constando existir qualquer cpia completa da Histria de Dois Amigos, que a designao que o autor d a este livro em mais de um passo da sua obra e digo completa, porque o apgrafo da casa Cadaval o nico dos conhecidos que, segundo verifiquei, contm alguns captulos podemos afirmar, sem receio de contradita, que a novela de cavalaria que Frutuoso intercalou no seu trabalho histrico, talvez no intuito de lhe amenizar a monotonia, se conservou at hoje indita, ou, porventura, apenas conhecida de um ou outro curioso que na dita Biblioteca se deu ao trabalho de folhear o famoso autgrafo.

    Deste Livro V, apenas se no ignoravam as epgrafes dos captulos, o que se deveu ao incansvel labor do Dr. Ernesto do Canto, o que se deveu ao incansvel labor do Dr. Ernesto do Canto, que as trasladou no Archivo dos Aores e, mais tarde, na Bibliotheca Aoreana ao dar a notcia circunstanciada das Saudades da Terra, que a se contm (1).

    Por idntico motivo era tambm conhecido o soneto de homenagem a Lus de Cames que aparece no captulo XXV e tem sobretudo o valor de testemunhar o alto apreo que o prncipe dos poetas portugueses, infelizmente nem por todos considerado em vida, j merecia ao cronista micaelense, seu contemporneo (2). Alis, no s aqui que Frutuoso manifesta a sua admirao pelo autor dos Lusadas; em outros locais a ele se refere encomiasticamente, dando-lhe os eptetos de engenhosssimo, gravssimo e grande poeta lusitano.

    A curiosidade deste livro est ainda na circunstncia de revelar uma nova faceta da vocao intelectual do seu autor, como seja essa espcie de devaneio pelos campos da poesia e do romance, com que parece pretender aligeirar o esprito do peso dos trabalhos de investigao em que se embrenhara para compor a obra monumental que seriam as Saudades da Terra. Uma tal tendncia para as belas-letras est bem visvel nos numerosos versos, manifestamente da sua autoria, que, entremeados com a prosa, surgem de vez em quando na efabulao desta novela.

    J no Livro IV, e sem indicar nome de autor, ele introduzira, a propsito da subverso de Vila Franca, um romance em verso, que, embora aparentemente de carcter popular, hoje no hesitamos em considerar fruto do seu estro, em vista da abundante produo potica de que est recheada esta Histria de Dois Amigos.

    Redigido ao sabor de uma corrente literria que estava muito em voga no Portugal de quinhentos, como o atesta o tipo de romance que nos legou, o Livro V das Saudades da Terra mais um exemplo a documentar a enciclopdica personalidade de Frutuoso, cujos interesses se no circunscreviam Histria, antes se desdobravam por vrios ramos do conhecimento humano.

    Tambm atravs deste Livro podemos entrever as influncias que mais o penetraram no culto que prestou s belas-letras, em que o bucolismo de Bernardim Ribeiro e Cristvo Falco ocupa indiscutivelmente lugar primordial (3). J em 1922 o seu mais notvel bigrafo, Rodrigo Rodrigues, e o no menos notvel autor da Notcia bibliogrfica das Saudades da Terra, Joo de Simas, que, na esteira do Dr. Joo Teixeira Soares, imaginavam ser este livro um

  • SAUDADES DA TERRA Livro Quinto

    Palavras Prvias VII

    documento autobiogrfico de grande valor para um dia se conhecer melhor a vida do cronista, punham em relevo a sua familiaridade com a literatura clssica e o conhecimento que parecia ter dos escritores portugueses e castelhanos do seu tempo. Pelo ttulo que encima o captulo XV, Rodrigo Rodrigues induziu no lhe ter passado despercebida a poesia, ento, revolucionria dos clebres inovadores Juan de Boscan e Garcilazzo de la Vega, que introduziram o metro endecasslabo e o gosto italiano na arte potica da sua ptria, os quais, na sua opinio, certamente conheceu atravs de uma edio feita em Salamanca em 1547, sob o ttulo de Las Obras de Boscan y algunas de Garcilasso de la Vega repartidas em quatro libros (4).

    E, de facto, com entusiasmo que Frutuoso exalta a nova faceta literria, acusando de nscios aqueles que no a compreendiam e participando dela com os sonetos em castelhano que, em homenagem aos ditos poetas, no mesmo captulo se contm e com outros em portugus, como seja a referida composio potica dedicada a Cames.

    Tudo isto nos ajuda a definir a personalidade de Frutuoso, integrando-a no movimento renascentista da sua poca, em que no raro vermos numa mesma pessoa, ao lado do homem de cincia, do historiador ou da artista (Rodrigo Rodrigues fala-nos da sua predileco pela msica), o cultor apaixonado das belas letras, numa variedade de aptides que envolve tudo quanto poderia interessar um esprito cultivado, de acordo com os cnones humanistas ento em voga. De resto, na parte j conhecida da sua obra era fcil apercebermo-nos da multiplicidade de interesses por que se dispersava a sua ateno de homem extremamente curioso e observador. Como diz Rodrigo Rodrigues, no tenhamos, pois, receio de o colocar dentro do brilhante fenmeno literrio e cientfico do quinhentismo peninsular, cujo conhecimento copiosamente revelou atravs das Saudades da Terra.

    Embora sem qualquer originalidade que a imponha na literatura portuguesa como pea de real valor e nos aparea, mesmo, como testemunho pouco relevante do talento de Frutuoso para o romance e para a poesia, a Histria de Dois Amigos permite-nos, contudo, um delineamento mais exacto do seu perfil de escritor, por quem no poderiam ter passado indiferentes ou vos os anos que viveu nos meios universitrios de Salamanca e, porventura, de vora (5). Alis, dizem os seus bigrafos que no ambiente de alta cultura intelectual da primeira destas cidades, onde professavam homens eminentes que deixaram nome afamado na Histria, na Poltica e na Literatura, Frutuoso conseguiu sobressair, acrescentando Chaves e Melo que foi to distinto no seu curso, que na Universidade o apelidavam de el grande sabio de las islas de Portugal (6).

    *

    * *

    J no prefcio do Livro VI, editado em Novembro de 1963, se disseram as razes porque na presente publicao se comeou pelos ltimos dos seis livros que compem o cdice frutuosiano.

    Existindo dos primeiros quatro livros das Saudades da Terra edies fundamentadas em cpias que, pela conferncia que fizemos, se no afastam consideravelmente do teor do manuscrito original (7), entendeu-se prefervel satisfazer desde j a curiosidade do leitor com revelar-lhe a parte indita da obra, ou aquela, que, como o Livro VI, parcialmente se achava disseminada em revistas e publicaes peridicas, pela iniciativa do falecido investigador faialense Antnio Ferreira de Serpa, que, para tal, se serviu do apgrafo, alis bastante deficiente, que pertenceu ao clebre jesuta, Padre Martim Gonalves da Cmara, e hoje faz parte do recheio da Biblioteca da Ajuda.

    Igualmente no referido prefcio se esclareceu o leitor acerca do critrio que se seguiu quanto ortografia e pontuao. Prevalecendo as razes que o ditaram, pois que se trata de uma edio em vrios volumes, de acordo com o desejo formulado pela Direco do Instituto Cultural de Ponta Delgada adoptou-se a ortografia oficial, com a observncia, no entanto, das

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    Palavras Prvias VIII

    formas arcaicas ou desusadas dos vocbulos, e modificou-se a pontuao, sempre que disso no resultasse deturpamento da ideia. Apenas nas poesias em castelhano se respeitaram as grafias do original, visto considerarmos no ser prudente alterar o que quer que fosse numa lngua que desconhecemos.

    Embora haja razes para supor que o Livro V fosse um dos primeiros, ou talvez o primeiro, a sair da pena de Frutuoso, como adiante diremos, o que certo que foi ele prprio quem lhe deu a numerao, colocando-o entre o IV e o VI Livro, como o atestam o ttulo, escrito pelo seu punho, em que se declara natural da ilha de S. Miguel nica vez que faz tal afirmao e ainda as palavras com que finaliza o respectivo texto, tambm da sua mo em que diz que a narrativa que vai seguir-se versar sobre as Ilhas de Baixo.

    Tambm no ltimo pargrafo do Livro IV expressamente se afirma que a Fama mostrou desejo de ouvir da boca da Verdade a Histria dos Dois Amigos que houve na ilha de S. Miguel, a qual vem a propsito contar-se antes de entrar nos assuntos respeitantes aos grupos Central e Ocidental do Arquiplago, que so os que constituem a matria do Livro VI, ltimo da obra.

    Fica assim desfeita a suposio de Joo de Simas, com fundamento no que se l na parte final do apgrafo da Biblioteca da Ajuda, de que este Livro V constituiria primitivamente o fecho da crnica, figurando o VI com aquela numerao.

    De facto, nessa cpia, que suprime a Histria de Dois Amigos, o Livro VI aparece com o nmero cinco e termina com as seguintes palavras: Dizendo eu Fama, isto , senhora, o que pude saber destas dos Aores e mais ilhas, afora a histria dos dois amigos, que larga de contar, nos fomos por entre mato praticando, comendo das uvas da serra, pretas, roxas e brancas, e das alvas camarinhas que se parecem na cor e gro com o fino aljofre, recolhendo-nos na minha sombria pousada, onde passamos escura noite, s vezes dormindo, outras falando claras, amorosas palavras, agradecendo ela o trabalho de lhe dizer tantas particularidades destas ilhas, mostrando-me desejar de me meter em outro de tambm lhe contar a Histria dos dois amigos que houve nesta de S. Miguel, como amanhecesse, do qual trabalho me escusei por imaginar tereis enfadado (sic).

    Repare-se que toda esta tirada, com que finaliza o apgrafo da Ajuda, no manuscrito original a que encerra o Livro IV, donde foi extraida pelo copista, que lhe introduziu as necessrias alteraes (aqui sublinhadas em romano) no manifesto propsito de se furtar ao traslado da Histria de Dois Amigos, que consideraria desprovida de interesse para a alta personalidade a quem a cpia se destinava ou que a tinha encomendado.

    Se certo que esta seria o Padre Martim Gonalves da Cmara, valido de D. Sebastio e prximo parente dos capites-donatrios da Ilha da Madeira, donde era natural, segundo a opinio de Joo de Simas na sua Notcia Bibliogrfica das Saudades da Terra, compreende-se que ao copista no interessava uma narrativa novelesca, que, alm de pouco original, se lhe afigurava completamente deslocada na gravidade do conjunto histrico que formava o teor fundamental do cdice. Da a fraude que cometeu e s agora, compulsando o autgrafo e confrontando-o com a cpia da Ajuda, foi possvel desvendar. Porque no difcil apercebermo-nos de que j naquela poca a obra impunha-se mais como fonte primeva e fidedigna dos tempos recuados da vida portuguesa nos dois arquiplagos atlnticos do que pelo valor literrio da sua prosa. No pois de estranhar a omisso, por assim dizer, geral que da Histria de Dois Amigos se observa em todas as cpias que chegaram ao nosso conhecimento (8).

    Tal como o Livro I, este, de que agora tratamos, est todo escrito pelo punho do autor, e com caligrafia to apurada, sobretudo nas primeiras pginas, que no hesitamos em consider-lo como um dos que mais passou a limpo.

    As entrelinhas e interpolaes no aparecem aqui com a frequncia que se regista nos restantes Livros; uma ou outra emenda, geralmente nos versos, significa que Frutuoso at ao fim da vida se preocupou com a forma, no que parece ter sido bastante exigente. No difcil supor-se que sentisse especiais responsabilidades ao redigir uma novela que ficaria como o melhor documento das suas aptides literrias.

    No encontramos aqui, tambm, as substituies de folhas ou cadernos que se notam nos Livros II, III e IV.

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    Palavras Prvias IX

    Tudo indica, enfim, que estamos em presena de um trabalho feito amorosamente, talvez ainda no vigor da vida, para no dizer em plena juventude, como parece revel-lo a abundante produo potica que nele se contm e melhor se ajusta aos devaneios literrios prprios dos vinte anos do que gravidade e compostura inerentes a pocas mais avanadas da existncia.

    No ser ousado aventar que cedo se afirmassem as tendncias espirituais de Frutuoso. Lembremo-nos do que diz o Padre Antnio Cordeiro ao referir a sua adolescncia, decorrida mais no apego aos livros do que nos trabalhos da lavoura do pai, rico proprietrio em Ponta Delgada, o qual to impressionado ficou com a vocao do filho, que resolveu mand-lo estudar para Salamanca. A, na convivncia com escolares e homens de letras, provvel que tentasse as suas primcias literrias, como julgamos pelas poesias em castelhano que comps e introduziu neste livro das Saudades da Terra, imitao de tantos da sua estirpe intelectual, que, s depois de passada a juventude e de experincias mais ou menos felizes no campo da literatura de fico, enveredam ostensivamente pelo trabalho srio e erudito da investigao e da cincia. E o que mais nos firma nesta conjectura a circunstncia de j no Livro I das Saudades da Terra Frutuoso aludir histria de cavaleiros e aos versos que constituem o texto do Livro V. Isto nos leva a imaginar que no plano que arquitectou para a composio da sua obra foi seu pensamento introduzir na devida altura as poesias que compusera na mocidade, embora enquadradas numa novela, concebida provavelmente com esse fim.

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    No original o Livro V comea a pg. 444 e termina a pg. 484, verso, ocupando, por conseguinte, quarenta folhas do cdice, todas pertencentes a cadernos de papel almasso bastante encorpado e em tudo igual ao dos outros livros que o autor escreveu com o seu prprio punho.

    A filigrana, que a se reproduz, representa uma coroa aberta, de aro elptico, com um floro trilobado e dois meios flores laterais, cada um deles bilobado, assemelhando-se algum tanto s que figuram com os nmeros 4667, 4678 e 4679 no grande reportrio de Briquet (9), segundo informao amavelmente fornecida pelo Sr. Dr. Jorge Peixoto, ilustre Director da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. Identificando-a com a ltima das filigranas indicadas, poderamos admitir ser o papel de origem alem, com data de 1584.

    Como se sabe, a identificao atravs das marcas de papel no processo muito rigoroso; auxilia, d uma ideia, mas no uma certeza. Por isso, a aceitamos com certa reserva, tanto mais que a data provvel, atrs citada, anda muito prxima daquela em que Frutuoso deu incio sua crnica, que, pelos dados cronolgicos que nos fornece o Livro II, deve ser pouco anterior a 1580 ou 82. Com mais facilidade se poder admitir que o papel fabricado em 1584 s fosse utilizado quando o autor se disps a passar a limpo o seu trabalho, isto , alguns anos depois daquelas datas.

    Ao falecido biblifilo Joo de Simas, que examinou a autgrafo quando a Junta Geral do Distrito o confiou sua guarda, na qualidade de Director da Biblioteca Pblica e Arquivo Distrital de Ponta Delgada, a marca de gua no pareceu ser das usadas em Portugal no sculo XVI. Por isso, sugeriu igualmente algum dos pases do norte da Europa (Inglaterra, Frana ou Holanda), com os quais esta ilha mantinha j relaes comerciais de vulto, como aquele donde teria sido importada a maior parte do papel que constitui o original das Saudades da Terra (10).

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    Palavras Prvias X

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    O saudoso investigador micaelense, Rodrigo Rodrigues, na biografia que de Frutuoso escreveu para a Edio Centenria das Saudades da Terra, quando ainda se desconhecia o teor do manuscrito original, emite o parecer de que na Histria de Dois Amigos se colheriam dados preciosos para o conhecimento da juventude do cronista.

    Alis, j o Dr. Joo Teixeira Soares formulara um tal juzo, considerando-a uma rebuada autobiografia (11).

    Indo at ao ponto de insinuar que nela estaria a chave da incgnita dos motivos que levaram o autor vida sacerdotal, Rodrigo Rodrigues presume que a novela gire em volta da amizade que ligou os Doutores Gaspar Frutuoso e Gaspar Gonalves na poca em que viveram fora desta ilha, isto , quando ambos frequentaram a Universidade de Salamanca.

    Note-se que Rodrigo Rodrigues, ao escrever tais suposies, apenas conhecia as epgrafes dos captulos, e embora notasse, atravs dos eptomes, ntida influncia das Saudades de Bernardim Ribeiro, a sua mentalidade, em matria de Histria da Literatura afeita s teorias e processos filosficos da poca em que se educara, recusou-se a ver na obra um produto de fico puramente literria e tomou-a como o reflexo de uma vida acidentada e aventurosa de um rapaz de vinte e tantos anos, que seriam os da idade em que Frutuoso esteve, pela primeira vez, ausente desta ilha para fazer estudos universitrios.

    A tese no deixava de ser sugestiva para um esprito, como o de Rodrigo Rodrigues, que, sabemo-lo bem, cultivou as belas letras na juventude e apaixonadamente acompanhou o movimento literrio do seu tempo. Contudo, parece-nos que ela no teria subsistido na sua mente, se acaso lhe fosse consentido ler a Histria de Dois Amigos.

    Joo de Simas tambm se inclinou para aquela verso. No entanto, impressionado com a profunda influncia de Bernardim Ribeiro e Cristvo Falco em Frutuoso no ano de 1554, quando este cursava em Salamanca, que aparece impressa em Ferrara a primeira edio conhecida da Menina e Moa e da gloga Crisfal admite que o Dr. Frutuoso teria composto a sua Histria de Dois Amigos num mero intuito literrio, simples concepo idealista duma novela de cavalaria, gnero tanto em voga no tempo, sem os factos nela descritos compreenderem as aventuras reais da sua vida (12).

    Ora, no outra a ideia que nos fica depois de lermos o Livro V das Saudades da Terra. Porque, decorrendo o seu entrecho num plano de imaginao tanto ao gosto da poca, em que o maravilhoso a cada momento se sobrepe realidade, dificilmente vemos reproduzida a pessoa do autor numa das suas figuras centrais.

    Onde ela, por vezes, se denuncia com toda a evidncia nas longas tiradas do moralista ou do sacerdote, quando pe na boca das personagens, e sempre que as circunstncias se apropriem, palavras de sincera uno religiosa. Atravs do tom declamatrio de tais falas ou discursos, pressente-se o pregador convicto, que no perde a oportunidade de fazer doutrinao.

    verdade que no decorrer da novela surgem de vez em quando reminiscncias da juventude, relacionadas com a terra onde passou a sua vida estudantil.

    A aventura de Filomesto, quando em viagem desta ilha de S. Miguel para o continente, onde ia estudar, se v abandonado no reino de Narfendo, querer talvez aludir ao seu desembarque na Espanha do rei Fernando o Catlico, que desde 1516 era falecido.

    A morte do Prncipe D. Joo, filho de D. Joo III, em Janeiro de 1554, precisamente num dos anos em que Frutuoso frequentava a Universidade de Salamanca (13), evocada como acontecimento que impressionou profundamente os portugueses que se encontravam naqueles estranhos reinos, onde se celebraram solenes exquias por eles promovidas.

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    Palavras Prvias XI

    Um dos captulos da novela ocorre nas margens do rio Tormes, afluente do Douro, que passa em Salamanca, e cujas guas congeladas em pleno inverno so motivo de inspirao para uma das composies poticas que na obra se incluem. A se encontram os dois amigos, Filomesto e Filidor, que, na hiptese aventada por Rodrigo Rodrigues, seriam os dois estudantes micaelenses, Gaspar Frutuoso e Gaspar Gonalves, companheiros de casa e de estudo naquele meio universitrio, cuja amizade se manteve depois na Ribeira Grande, onde ambos viveram e este ltimo foi mdico afamado (14).

    certo tambm que a aco se desenrola em parte nesta ilha de S. Miguel onde vive Tomariza, a amada de Filomesto, e onde residem figuras conhecidas do autor, dos seus tempos de rapaz, cujos nomes cita, mascarando-os atravs de anagramas. Tais so Duarte Borges, que foi homem de grande proeminncia no s aqui, como provedor da Fazenda e Armadas, mas tambm em Lisboa, onde desempenhou as funes de tesoureiro-mor do Reino; Manuel e Andr Botelho Cabral, a quem no captulo IV do Livro IV se refere largamente; Francisco Lobo, que foi escrivo em Ponta Delgada; os irmos Manuel da Costa, Joo dArruda e Bartolomeu Favela, filhos de Manuel do Porto e Beatriz da Costa, igualmente mencionados naquele livro, etc.

    E se, de facto, Frutuoso pretendeu retratar-se num dos dois heris, qual deles o personifica? Filomesto ou Filidor? Rodrigo Rodrigues procurou identific-lo com o primeiro que , indiscutivelmente, a figura dominante da novela. Note-se, porm, que Filidor aparece sempre como o poeta a quem o autor atribui a maior parte dos versos contidos na obra.

    Esse nome, Filidor, que, conforme se esclarece no livro, significa filho da dor, pretender fazer aluso ao nascimento de Frutuoso, que, como acentua Rodrigo Rodrigues, poderia ter sucedido em condies tais, que nunca lhe consentiram falar da sua origem ou famlia? Com efeito, sobre tal matria o cronista remeteu-se ao mais absoluto silncio, no s ocultando os nomes dos seus progenitores, mas tambm fazendo propositada omisso da genealogia da famlia, a que, segundo as invesgaes do mesmo bigrafo, deve ter pertencido (15).

    Se, porventura Frutuoso quis retratar-se em qualquer daquelas figuras, a obra est de tal forma bem conduzida no campo da fico, que muito difcil extrair da anlise dela quaisquer dados biogrficos satisfatrios.

    Parece-nos no ser possvel ir mais longe do que conjecturar que apenas alguns passos ou reminiscncias da juventude do autor se contm na Histria de Dois Amigos.

    Deixa-se, pois, o assunto aberto a um estudo crtico mais penetrante e concludente. Porque da leitura conscienciosa e atenta que fizemos da novela, s nos ficou a impresso

    de que o cronista, utilizando alguns factos de que foi testemunha, ou possivelmente passados com a sua pessoa, urdiu uma trama aventurosa e sentimental muito ao sabor da poca que lhe serviu de pretexto para deixar comprovada na obra que quis legar aos vindouros a veia potica que informava a sua personalidade de escritor e com certeza prezava em alto grau.

    *

    * *

    Ao finalizar estas Palavras Prvias, cumpre-me agradecer a todos os que, de qualquer forma, me coadjuvaram no presente trabalho, em especial, ao poeta Armando Crtes-Rodrigues, pelo precioso auxlio que me deu todas as vezes que ao seu saber recorri para a interpretao e pontuao dos versos; ao Dr. Jos de Almeida Pavo Jnior, pelo magnfico ensaio com que, a meu pedido, valorizou este livro, emprestando-lhe um interesse cultural a todos os ttulos digno de apreo; ao sr. Alfredo Machado Gonalves, director da Biblioteca Pblica e Arquivo Distrital de Ponta Delgada, pelas obsequiosas facilidades que me tem concedido na instituio que to dedicada e zelosamente dirige.

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    Palavras Prvias XII

    Para o sr. Nuno lvares Pereira, funcionrio da mesma Biblioteca, cuja colaborao na leitura e cpia do manuscrito original me foi deveras valiosa, vai tambm uma palavra de muito reconhecimento.

    Junta Geral de Ponta Delgada, que to compreensivamente tornou possvel esta edio das Saudades da Terra, e Direco do Instituto Cultural da mesma cidade, que escolheu o meu nome para a dirigir, renovo os meus agradecimentos pela oportunidade que me deram de participar na tarefa, sobremaneira honrosa, que ao nosso distrito incumbe de revelar na sua verso original a obra conhecida do mais ilustre dos cronistas aorianos.

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    A Poesia e a Novela de Frutuoso XIII

    I A POESIA E A NOVELA DE FRUTUOSO

    H anos tentmos, num breve apontamento, atravs do Livro I das Saudades da Terra, uma sondagem das influncias literrias recebidas por Frutuoso.

    Rodrigo Rodrigues, o insigne investigador e genealogista micaelense, a cuja memria no foi ainda prestada a devida justia, foi o primeiro que aludiu a algumas dessas fontes culturais, no excelente Prefcio do Livro III, que, publicado em 1922, um monumento de saber seguro. Mais tarde, a propsito do Livro I, Monteiro Arruda, a quem igualmente muito deve a historiografia aoriana juntou mais algumas achegas no plano das influncias, entre as quais a de Bernardim, que por demais manifesta nos primeiros captulos do referido Livro.

    Verificamos, pois, que o inventrio do que poderamos designar por clima cultural do historigrafo j est feito pelos dois ilustres estudiosos, que trataram o assunto dum modo global, abrangendo vrios ramos, desde a Histria e a Geografia, at Filosofia e Poesia. O primeiro destes aspectos foi agora completado pelo Dr. Joo Bernardo de Oliveira Rodrigues, no seu no menos importante Prefcio inserto a propsito do Livro VI, recentemente vindo a lume, o qual, trazendo uma nova contribuio para o estudo da personalidade do Cronista, elaborou um notvel estudo sobre as relaes do pensamento deste com o Filipismo ento vigente.

    Ao tempo em que foram publicados os dois primeiros livros referidos, eram ainda incompletas as notcias sobre o Livro V, que ficaria ainda indito durante muitos anos, mas estas j deixavam prever que a edio integral da mencionada obra nos traria um conhecimento mais perfeito dos aspectos relacionados propriamente com a sua actividade literria e potica. Foi esta a faceta que aqui procurmos desenvolver.

    Comearemos, no nosso estudo, por referir esta assero de Rodrigo Rodrigues, que resume a personalidade do seu biografado:

    Frutuoso representa plenamente o tipo do humanista da Renascena, enciclopdico quinhentista, literato, artista e msico, observador atento dos fenmenos naturais... (16).

    Segundo os informes do mesmo estudioso, o nosso historigrafo ter-se-ia fixado definitivamente em S. Miguel em 1565, j num perodo de plena maturidade mental, enriquecida com o magnfico apetrechamento livresco conseguido no ambiente universitrio salmantino, que representava um dos mais altos expoentes da intelectualidade europeia e aumentada com a sua longa experincia de caminheiro durante dezassete anos e com a reflexo prpria do seu mnus sacerdotal (17). Com to longa preparao de to vasta sementeira, s seria de esperar uma colheita de frutos bem sazonados.

    No plano literrio, o perodo de permanncia em Salamanca, que dever ter decorrido entre os anos de 1548-49, 1543-56 e 1557-58 (18), proporcionou-lhe o contacto com o movimento quinhentista, largamente documentado na Histria dos Dois Amigos, que constitui o Livro V, de que nos ocuparemos a seguir.

    Foi essa ambincia cultural a que exerceu influncia das mais importantes e duradouras na formao de Frutuoso, familiarizado, entre os clssicos, com Ccero, Virglio, Horcio, Plutarco e Tcito (19). Sob o aspecto filosfico, como bom discpulo do Escolasticismo, que certamente deveria ter constitudo matria obrigatria do programa, para quem quisesse graduar-se em Teologia, denunciava as suas preferncias por Aristteles, em relao a Plato. Alis, a simpatia e o trato espiritual que sempre lhe mereceram os Padres da Companhia de Jesus, mesmo aps o seu regresso definitivo a S. Miguel, facultar-lhe-iam o aprofundamento da dialctica de S. Toms, tanto mais de supor, quanto verdade admitir-se a hiptese do seu doutoramento na Universdade de vora, de fundao jesutica (20).

  • SAUDADES DA TERRA Livro Quinto

    A Poesia e a Novela de Frutuoso XIV

    H, alis, no Captulo I, um passo que nos leva a admitir essa raiz tomstica bem pronunciada, a estruturar o seu conceito de determinismo. Revestindo a capa duma influncia estilstica de Bernardim, que a mais premente em toda a sua obra ficcionista, apresenta, todavia, uma mensagem diversa, como vamos verificar, pela anlise de passagens dos dois autores postos em cotejo: No I Captulo do Livro das Saudades, insere-se esta ausncia de motivao concreta e definida da sada da personagem de casa de seus pais:

    Qual fosse ento a causa daquela minha levada, era eu ainda pequena no na soube. Agora, no lhe ponho outra, seno que j ento parece havia de ser o que depois foi.

    Em Bernardim, h um fatalismo que no ultrapassa as fronteiras do seu caso pessoal, ante a presena avassaladora de foras egotistas. Como sempre na sua obra, o eu arrogante sobreleva tudo o mais ante o seu imprio:

    J ento parece havia de ser o que depois foi. O determinismo de Frutuoso assume uma forma generalizada, dentro duma concepo

    filosfica que mergulha as suas razes na doutrina crist. Determinismo hesitante, porque se no abstrai do livre arbtrio, na medida em que o pecado ou a infraco norma que pauta uma tica so imputados prpria responsabilidade do prevaricador. (A conciliao destes dois extremos tem-se constitudo em pbulo perene para a argcia de pensadores, como o nosso Antero). maneira de S. Toms, onde parece que Frutuoso tenha ido beber a assero, a prescincia de Deus exerce-se num campo de viso diverso do do homem: ou, por outras palavras, o presente de Deus contrape-se bipartio de presente e futuro escala humana. Dir-se-ia, pois, que na linguagem divina no h pr-viso, porque tudo presente. deste modo que, transposto em termos de dimenso humana, se harmoniza o conhecimento prvio da conduta dos mortais com a responsabilidade que lhes incumbe.

    ...que causa fosse ento daquele meu desterro, era eu ainda pequena, no a soube; mas depois vim a saber uma, que foi a desobedincia do homem, a qual j eternalmente estava precisa na mente divina, que omnisciente, a quem tudo est presente, sem por isso obrigar, forar ou necessitar a pecar, se ele no quisera, pois que pondo-o na mo de seu conselho lhe deu livre arbtrio para escolher o que quisesse (21).

    A explicao de Frutuoso, sem alcanar a subtileza da argumentao do Mestre do Tomismo, no parece deixar, no entanto, de acusar o magistrio escolstico. Por outro lado, neste pendor moral que, como mais largamente iremos documentando, constitui uma tnica do autor, mesmo atravs da obra de pura fico, pe-se evidncia o carcter meramente externo do ascendente bernardiniano.

    Ainda sobre o conhecimento dos filsofos da Antiguidade, Frutuoso alude a Plato e Teofrasto, este ltimo, como Aristteles, mais enraizado na formao cultural do nosso historigrafo, segundo o testemunho de Monteiro Arruda (22). Quanto ao seu platonismo, duvida este estudioso de que ele seja de puro quilate. A citao, feita pelo cronista quinhentista, dos estudos do filsofo neoplatnico Marslio Ficino talvez possa induzir hiptese de que o conhecimento do autor dos Dilogos no seria sempre de primeira mo, dada a voga que o citado filsofo florentino conseguiu entre certos poetas quinhentistas, como Cames, que acusa bem vincada essa influncia em alguns passos da sua lrica. Frutuoso foi ainda contemporneo de D. Joo III e quase testemunha da morte dum filho do monarca, cujas exquias foram celebradas em Espanha ao tempo em que ele, ainda ento estudante, se encontrava em Salamanca com o seu inseparvel companheiro, Gaspar Gonalves (1554) (23). O facto, ao que parece, impressionou os poetas e intelectuais do tempo, a avaliar por um poema que o nosso cronista lhe dedica, inserto na novela, e por uma elegia de S de Miranda, alusiva ao mesmo acontecimento. Para alm da emoo circunscrita ao facto e personagem, seramos levados a perguntar se tanto um como outro, numa discreta manifestao patritica, no veriam abrir-se a primeira brecha na segurana da nacionalidade, ante o desaparecimento dum herdeiro que a garantisse. Isto numa altura em que estava ainda ausente a presso filipina, a qual mais tarde, relativamente ao nosso cronista, aconselharia um volta-face, que no fundo s ocultava uma atitude de prudente resignao perante os acontecimentos polticos (24).

    Frutuoso viveu, pois, em plena florescncia do Quinhentismo e da Novelstica. Em 1520, surgia a primeira obra publicada no gnero: o Clarimundo, de Barros; em 1547, a primeira verso castelhana do Palmeirim e em 1554 a edio de Ferrara da Menina e Moa, seguida da de vora, trs anos mais tarde; em 1558, a Diana, de Jorge de Montemor. Tomando o ano de

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    A Poesia e a Novela de Frutuoso XV

    1565 como data do regresso definitivo de Frutuoso a S. Miguel e aceitando que s posteriormente comeou a elaborao da sua obra de historiador e procedeu redaco definitiva da de ficcionista, teremos como certo que, quando assentou arraiais em plagas aorianas, j trazia todo o seu apetrechamento cultural, conquanto no seja fcil provar, atravs da anlise do referido Livro V, o ascendente marcado de todas as obras citadas. Pomos de parte a possibilidade dum contacto literrio posterior, dadas as dificuldades de comunicaes, em viagens incertas e demoradas, a despeito do maior incremento de todas as actividades que passaram a registar-se nesse tempo, como resultante da maior ateno que sua ilha passou a votar a Me Ptria, aps um longo perodo de marasmo e abandono.

    Frutuoso assistiu, pois, efervescncia duma cultura de que ele prprio se d conta na sua obra potica inserta na Novela, a qual, tomada numa viso de conjunto, vale mais como panegrico aos maiores vultos de ento, no esquecendo alguns dos de maior representao da vizinha Espanha. O seu isolamento na bruma insular, se, por um lado, tornava mais difcil a sua actualizao, por outro lado havia de facultar uma calma ambincia propcia realizao do que porventura at a no passaria de vagos projectos, em gestao no seu esprito.

    No plano literrio, Boscan e Garcilasso suscitaram a admirao do autor, bem vincada em poemas laudatrios contidos no Livro V. O conhecimento da obra destes data decerto dum perodo aps a morte dos mesmos, ocorrida ainda antes do ingresso do cronista micaelense no meio universitrio salmantino (25). Contudo, como muito bem acentua Rodrigo Rodrigues e como teremos oportunidade de verificar, a propsito de Bernardim, foi este que lhe criou o figurino (26), presente no estilo com que Frutuoso inicia o I Livro das Saudades e orienta certos passos da Histria dos Dois Amigos, contida no Livro V, muito embora o travejamento da novela obedea a moldes muito diversos. Quanto composio estilstica da Histria, acusaria a inspirao igualmente portuguesa de Barros e, em relao a este, o que perdia em elegncia e exuberncia formal ganharia numa certa sobriedade, consentnea com uma mais arrumada economia de meios expressionais. No que respeita a Bernardim, conhecida a hiptese, lanada pelo Prof. Teixeira Rego, sobre a ascendncia judaica do nosso maior buclico que, segundo o erudito professor da antiga Faculdade de Letras do Porto, era totalmente desconhecido dos escritores cristos coevos (27). E, formulado implicitamente o postulado de que a divulgao do Poeta das Saudades constituiria exclusivo dos seus supostos correligionrios, nada mais lgico do que inferir a costela de marrano para o nosso Frutuoso, que tanto o admirou e imitou. Desnecessrio ser analisar a suposio do Mestre portuense, de tal modo tem sido afirmada a sua inconsistncia pela crtica. No que se relaciona com o cronista micaelense, a suposio de cristo novo que lhe possa ser atribuda no encontra, na opinio de Monteiro Arruda, qualquer arrimo que a possa comprovar (28). Ocorre-nos ainda perguntar: a notcia que dele tinha o nosso cronista no encontraria, nas fontes de informao, explicao semelhante que se poderia dar sobre o conhecimento de Cristvo Falco, Cames e os j mencionados poetas espanhis? Para qu procurar um motivo particular a propsito do caso de Bernardim? No enferma esta argumentao da posio facciosa em que se colocou Teixeira Rego, na ideia preconcebida de identificar o poeta das Saudades com o filsofo Leo Hebreu ou Juda Abravanel?

    Quanto ao Crisfal, alude-se no Livro V cloga escrita num arvoredo por uma ninfa e descoberta por Filidor, um dos heris da Novela de Frutuoso e o porta-voz de quase toda a poesia nela inserta (29). O cavaleiro, semelhana do que faz noutros passos, gravou uma composio laudatria ao poeta cujas desditas fizeram vibrar todas as almas (30). Nestes versos, to frouxos e magros de conceito, exalta-lhe o nosso cronista a expressividade emocional:

    ...............................................

    ningum, com grande vigia, ...............................................

    dizer tanto chegaria como tu, Crisfal, dormindo (31).

    S o sofrimento aproxima as almas numa compreenso mtua. Neste dom de a transmitir, personalizando uma emoo colectiva o poeta porta-voz da humanidade se cifra a comunicabilidade da cloga que celebrizaria o seu autor.

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    A Poesia e a Novela de Frutuoso XVI

    No poema de Frutuoso, o que, ainda a propsito do Crisfal, se contm que possa relacionar-se com o aspecto biogrfico, no daria matria para reavivar a questo da autoria da cloga, ainda mesmo quando a tese posta por Delfim Guimares no estivesse completamente postergada, por falta de argumentao convincente.

    O passo do referido poema-frutuosiano reza assim:

    Tu, pastor e teu parceiro engrandeceis Portugal com portugus to inteiro. Tu, em teus versos, Crisfal, e tu em prosa, Ribeiro (32).

    A diferena entre os dois tu Crisfal e Ribeiro como entre o pastor e o seu parceiro, parece levar a supor uma destrina de individualidades. Perguntaramos, todavia, por que se salienta Bernardim apenas na prosa, quando certo que Frutuoso lhe conhecia igualmente as clogas, ao ponto de as imitar.

    H, no referido poema, um pormenor biogrfico que parece indicar a naturalidade do heri: Alter do Cho (33). Quando, porm, subsistisse qualquer dvida sobre a dualidade de autorias, em relao s clogas de Bernardim e de Cristvo Falco, existe outro pormenor biogrfico que alude morte do Poeta, possivelmente no mar:

    Ouvi, Crisfal, que acabaste indo por mar navegando; em bom lugar te enterraste, viveste mares chorando, por sepultura os buscaste (34).

    Por indcios mais seguros, sabemos que foi diverso o fim de vida de Bernardim, ocorrido em 1552, quando j se encontrava internado como louco no Hospital de Todos os Santos. Estamos certos de que o testemunho do nosso cronista poder constituir-se em documento fidedigno, dado o culto que votava aos dois buclicos quinhentistas. No entanto, ao contrrio destes, em cujas obras no h nenhum sinal de erudio que dilua a densidade do surto lrico obsessivo, em Frutuoso a sua cultura clssica insinua uma presena nem sempre discreta e comedida, todas as vezes que uma oportunidade favorece a sua incurso. No plano da mitologia, manifesta-se logo no comeo da Novela, a propsito do pasmo admirativo dos pastores ante a destreza do cavaleiro Filomesto:

    ou (sois) algum famoso piedoso, ou aquele Ganimedes, servo aprazvel a Jpiter pera seu servio, pela sua guia arrebatado do alto monte Ida... (35).

    Acrescenta-se, um pouco mais adiante, esta interrogao: E se sois Marte, deus das guerras ou filho de Belona... (36). Noutro passo, lanando mo do simbolismo mitolgico, eram Filomena e Eco que

    respondiam aos chamamentos dos companheiros de Filomesto, que se perdera destes (37). O conhecimento dos heris homricos insinua-se nesta comparao: a qual (loba) ele matou, como se fora um Heitor ou Aquiles (38). Da mesma maneira, numa cloga inserta na Novela do Livro V, o corpo de Crisfal, morto no

    mar, por ordem da Parca (tropos) recebido por um cortejo de deidades pags, entre as quais figuram Vnus, Cupido, Apolo, Ttis, Vnus e ainda Neptuno e as Ninfas. Frutuoso mais de uma vez usa a simbologia, to do gosto dos clssicos, alusiva transio da idade de ouro para a de ferro, a traduzir a diferena entre um perodo ureo e outro de declnio da humanidade. conhecidssimo aquele passo dOs Lusadas, contido no episdio do Velho do Restelo, que expressa imagem idntica:

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    A Poesia e a Novela de Frutuoso XVII

    Mas tu, gerao daquele insano

    O nosso cronista, logo no I Captulo do Livro I das Saudades da Terra, imaginando uma longa alegoria da Verdade que, como natural, no se subtrai formao moral e religiosa do autor, nos transes dramticos dessa transio entre as duas Idades, pinta-nos a transformao do Tempo, pai da mesma Verdade, despojado do ouro e pedraria, roubado pela guerra dos piratas, vestido de ferro e armado, para se defender dos inimigos que o assediavam. Se a imagem apraz ao gosto dos clssicos, como dissemos, no deixa de expressar uma ideia comum ao paganismo, mas, por outro lado, traz ressaibos do metaforismo bblico, que to bem soube expressar, em imagens, como a do Sio e Babilnia, o tema dum Salmo que inspirou uma das mais transcendentes composies camonianas. Neste se esabelece o cotejo das tristezas e males do presente com as alegrias e o esplendor dum passado ednico. No tom fortemente moralista de Frutuoso, a Verdade, nesse perodo recuado, no se vira coagida a utilizar os disfarces para se insinuar nos povoados.

    Numa elegia (que s o no nome, se tomarmos como padro a contextura da elegia camoniana) h elementos buclicos que nos infundem a ideia duma Idade de Ouro, prpria da ambincia da cloga vergiliana:

    Podeis beber quietos gua fria, debaixo dessas faias, cedros, louros, com ouvir dos pssaros a harmonia. Viro por outra parte mansos touros, no suave jugo do pastor regidos, mostrando do divino Ser tesouros. Os lobos andaro fracos, perdidos, sem se atrever entrar nessa manada, fugindo pelos montes mais subidos. A terra por mos doctas cultivada multiplicar tanto na semente, que seja a toda a mais avantajada (39).

    A demonstrar uma perfeita actualizao nos novos moldes renascentistas, a poesia inserta na Novela do Livro V volve-se num estendal dos vrios gneros e metros que utilizou, desde a cloga ao soneto, elegia e, ainda oitava rima, em que compe as estrofes includas no captulo XVIII (40), recitadas pela personagem que, no sonho de Filidor, chorava sentada sobre um penedo borda do rio.

    Ainda a abonar a sua cultura clssica, poderamos v-la patenteada num soneto laudatrio que lhe mereceu o estilo de Garcilasso. O poema enquadra-se numa pequena narrativa, em que o poeta castelhano, com o disfarce de pastor Nemoroso se lavava e enganava, maneira de Narciso, apaixonado pela ninfa Camila (41). Aqui, a mitologia e a filologia do-se as mos nos nomes prprios (42), a juntar lista doutros de diferentes provenincias e formao.

    *

    J atrs aludimos aos dois heris da Novela: Filomesto e Filidor (43). Numa obra cujo autor deixou Histria elementos sobre a sua vida cheios de lacunas, muito em especial aquelas que dizem respeito sua experincia amorosa (se a teve), a efabulao da Novela agua a cobia dos investigadores, para procurarem nesta indcios dum disfarce autobiogrfico, a exemplo do que fez Tefilo na sua exegese da Menina e Moa. evidente que Bernardim, legando tradio dados mais abundantes sobre a sua experincia sentimental, favorece maiores aproximaes e coincidncias com os factos e as personagens da sua Novela. O processo, no entanto, tem seus perigos e inconvenientes, porque, no esforo de se conseguir a

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    A Poesia e a Novela de Frutuoso XVIII

    almejada pista do real, no se tomam muitas vezes em linha de conta as surtidas da imaginao que, inerentes essncia da prpria fico artstica, sob pena de esta se negar, se sobrepem ao que primeira vista se afigure como simples disfarce da verdade, sob as roupagens convencionais do gnero.

    O jorgense Dr. Joo Teixeira Soares, baseando-se apenas nos ttulos dos captulos do Livro V data, nada mais era possvel conhecer desta obra lanou a conjectura de que existe uma biografia disfarada no referido livro que agora se d estampa. Para ele, como para Rodrigo Rodrigues, Filomesto seria, porventura, Frutuoso, e Filidor o seu inseparvel companheiro, desde os tempos de Salamanca. Confirmando-se esse fundamento autobiogrfico, para o segundo dos citados investigadores h anagramas contidos nos nomes das personagens, como Narfendo (Fernando), Natnio (Antnio), Ricatena (Caterina), Gurioma (Guiomar), Guardarima (Margarida), os quais, segundo o erudito estudioso, devem representar pessoas com quem se passaram porventura episdios emocionantes da juventude acidentada do autor (44), certo como que a fico no raro se constitui em transfigurao da realidade. Se no possumos dados para refutar tal hiptese, a verdade tambm que so muito parcos os elementos que nos possam levar a admiti-la como muito provvel. Os anagramas constituam um processo usual, comum, de designar os heris do gnero novelesco como do buclico, sem que se implicasse necessariamente nesse facto qualquer motivao fundada na realidade biogrfica. Teria sido a Histria dos Dois Amigos realmente vivida? que a sua estrutura se apresenta to fragmentria na sua efabulao episdica, interpolada de tantas composies poticas, que nos parece faltar-lhe um certo calor humano, para a apresentar como documento. Alis, o pendor moral e reflexivo que avulta, numa boa parte da sua obra, para alm das influncias literrias, parece denunciar uma constituio temperamental duma rigidez pouco propensa a lances amorosos que possam servir de motivo de transposio potico-novelesca. Para ns, o Livro V tem um valor meramente formal, que se insinua mais como estendal duma cultura do que espelho duma alma torturada. Essa propenso para o estudo e meditao, que, segundo o Padre Antnio Cordeiro (45), revelou desde muito jovem, parece indicar que o sacerdcio, mais do que uma romntica resoluo resultante de qualquer desgosto sentimental, foi abraado como um apelo ou vocao. No se define, na Histria dos Dois Amigos, nada que assinale a claridade meridiana duma confisso autobiogrfica, nos moldes duma cloga, como o Crisfal.

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    Antecendentes e Influncias Literrias na Novela XIX

    II ANTECEDENTES E INFLUNCIAS LITERRIAS NA NOVELA

    Ditoso destino foi este dos portugueses, ao contarem a primazia em dois gneros o novelesco e o pastoral que, originariamente separados, haviam de fundir-se numa obra, como a Menina e Moa. Deve-se a Cervantes (46) talvez o primeiro brado de justia que se ergue a confirmar esta verdade: o Amadis el primero de Cavallerias; a Diana primero en semejantes. O pastoralismo, alternando ou imiscuindo-se com a novela, veio dulcificar ainda mais, com o lirismo da natureza, o lirismo amoroso, que era j herana da matria da Bretanha e obteve a mxima pujana no Amadis. Era uma pausa, digamos, posta na agitao febril das aventuras cavalheirescas que enxameavam no gnero. O Palmeirim surge como um dos mximos representantes da riqueza episdica exclusivamente novelesca. Menendez Pelayo, a respeito dos livros que compem esta literatura cavalheiresca, que se prolongou por dois sculos, terminando no XVI, surpreende, entre outros defeitos, o de serem horrivelmente enfadonhos, com as repeties, as inverosimilhanas e o tosco da estrutura (47). E foi, todavia, esta literatura que constituiu o repasto da curiosidade livresca de Quinhentos, at ao golpe de misericrdia aplicado por Cervantes. Inclumos entre elas o Palmeirim e o Clarimundo, a segunda das quais subordina o seu recheio episdico ao panegrico do monarca, com um fundo pico bem patente nas profecias de Fanimor, que tomam como assunto a Histria do reino lusitano at ao reinado de D. Manuel. O prprio ttulo o evidencia: Crnica do Imperador Clarimundo, donde os reis de Portugal descendem. H nesta uma inteno similar da da Eneida, ao filiar o povo romano na ascendncia troiana, integrada naquele conceito de que as razes justificativas duma nacionalidade encontram um esteio tanto mais forte quanto mais recuadas forem as fronteiras das suas origens, ainda quando estas mergulhem na lenda ou na imaginao. Ao mesmo tempo, segundo confisso do prprio autor, h um exerccio de estilo que prepara a elaborao de matria de maior flego contida na sua historiografia.

    A Diana situa-se no outro extremo da escala, concedendo a primazia ao bucolismo, com um verdadeiro sentimento da natureza. H atitudes de esprito que se volvem em lugar comum do lirismo pastoril, tais como o encantamento da existncia livre e da contemplao do mundo exterior, quebrado pelas violncias do amor. Estes mesmos aspectos que vm expressos na Diana que talhou o figurino de muitas obras congneres surgem igualmente nas clogas de Bernardim, onde se fazem sentir os estragos do amor na paisagem, de que fazem parte elementos animados, como os cordeiros, bradando sem pascer, as ovelhas perdidas, entrezilhadas ou ainda os fracos, desmaiados mastins (48). Na Diana, como na obra de Bernardim, h uma comunho da natureza com o homem, na expresso dolorosa da paixo.

    A predominncia do pastoralismo da Diana no exclui a existncia de episdios cavalheirescos que lhe esto entremeados: combates de cavaleiros, em que se medem rasgos de herosmo, em manifesta desproporo de foras e de nmero.

    O que teria determinado essa fuso dos dois gneros? O cavalheirismo do heri, misto de amoroso, legado pela herana de provenincia bret, encontra uma afinidade com as formas do nosso lirismo que remonta ao perodo dos trovadores. O portugus, na expresso de Lope de Vega (49), aquele que llora de puro amor. No necessita dum estmulo externo ou dum motivo definido. um efeito sem causa que tempera essa tnica romntica, saudosista, que inerente nossa indiossincrasia. Os dois gneros que se fundem encerram duas expresses convencionais desse pendor lrico que ostenta a figura do nosso amoroso que enverga os dois travestis: a cota de malha do cavaleiro andante, vido de lustre e de glria, que alterna com a samarra dos velhos pastores legados pela tradio da Antiguidade Greco-latina ou nacionalizados pelos nossos quinhentistas, quando no vm impregnados do ressaibo do hmus dum solo bem portugus, pintados nas figuras profundamente castias dos autos vicentinos. A natureza e o homem enlaam-se em solicitaes mtuas, no mesmo sentimento telrico que inspira as vrias expresses da afectividade humana.

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    Antecendentes e Influncias Literrias na Novela XX

    No se pode dizer que tudo se passe assim na Novela do nosso Frutuoso. A natureza nele parece isolar-se daquele que a habita. Talvez mesmo no seja exacto dizer-se que aqui se pronuncia um sentimento da natureza. Quando, num passo da Histria dos Dois Amigos, fala a rocha a Filidor, pressente-se mais uma fico mtica, ligada ao convencional da influncia literria. O cavaleiro tende a transformar-se em pastor, especialmente quando o desengano de amor o impele a um refgio do mundo e busca da solido. Assim acontece na Menina e Moa e assim sucede em Frutuoso. A metamorfose, quando no busca essa finalidade, integra-se naquele gosto do disfarce, que comum s aventuras cavalheirescas. A incgnita e o mistrio que a rodeia parecem dar maior volume e grandeza aos feitos praticados. No Palmeirim, o heri oculta-se sob o epteto de Cavaleiro da Fortuna. Mas h outros, como o Cavaleiro das Armas Negras. No Amadis, Beltenebros (aqui a cor etimolgica da prpria designao ajuda capa do mistrio), sem falar nos outros nomes, como Donzel do Mar, Cavaleiro da Penha Pobre, e Cavaleiro da Verde Espada. Quanto a Clarimundo, preenche trs individualidades em Belifonte, Cavaleiro das Lgrimas Tristes e Cavaleiro Descuidado. Esse mesmo romanesco contaminou os romnticos, como Herculano: no Eurico, o Presbtero de Carteia, oculto sob as armas que justificam o epteto de Cavaleiro Negro que, igualmente desconhecido nas suas hostes, pratica prodgios e abre enormes clareiras entre as hordas dos inimigos, os quais tremem de terror, quando a sua aproximao se assinala. No nos lembra a presena desse aspecto na Novela de Bernardim, como na de Frutuoso, a despeito da outra espcie de disfarce que notmos sob a modalidade pastoral.

    Se as faanhas cavalheirescas fatigam pela super-abundncia, segundo a opinio de Menendez Pelayo, no menos certo que o lirismo, mesmo o buclico, tende, na expresso de Ricardo Jorge, monotonia, ao enervamento, efeminao (50). Eis a tnica do gnero que, perdendo a simplicidade e a espontaneidade do calor humano, inerente ao carcter repetitivo da emoo, ganha todavia em variedade, quando um tanto artificializado pelas surtidas da razo, na construo duma dialctica sui generis, que se compraz nos jogos de inteligncia, definidos no precisar dos conceitos ou no formular das antteses.

    Na Diana, como nas obras de Bernardim, o trocadilho ao servio do paradoxo logra uma profundidade evidente no prprio contedo, to diverso do simples jogo do barroquismo seiscentista:

    E se eu quero porque quero, para qu deixar de querer? Que honra maior pode haver, se morro de tal morrer?

    O viver para esquecer to afrontada vida que me est melhor querer at morrer de esquecida.

    uma verdade que se humaniza na prpria experincia interior. Aqui tambm a morte, que aparecia como remdio dos males, postergada, para que a violncia destes persista.

    Mal que com morte se cura tem o seu remdio mo; no aquele que o corao foi pr nas mos da ventura (51).

    Para Afonso Lopes Vieira, a poesia perdura, mesmo aps o envelhecimento da tcnica e da expresso verbal (52). Poderia algum objectar com a pergunta sobre se a poesia pode alhear-se dessa expresso que a contm. Diramos que, sendo os dois aspectos inseparveis no acto criador, no entanto, ultrapassada a poca e, com esta, a vaga dos estilos e tudo o que lhe est inerente, a mesma poesia passa a autonomizar-se, evolando-se como um perfume cuja fragrncia o tempo no conseguiu dissipar. O que passa a conveno, esse aparato exterior que, no momento da criao, se torna indissolvel da essncia que ele molda ou da substncia da qual o decurso do tempo demonstra que ele simples acidente.

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    Antecendentes e Influncias Literrias na Novela XXI

    *

    Segundo o parecer de Joo Bernardo Rodrigues, o Livro V de Frutuoso teria precedido o VI, ao contrrio do que pensa Joo de Simas, que o situava no fim de todo o Cdice Manuscrito (53). E, conforme cr aquele ilustre estudioso, se a Histria dos Dois Amigos no figura no manuscrito da Biblioteca da Ajuda, foi apenas porque o copista no manifestou interesse em copi-lo. Apenas o apgrafo pertencente aos Duques de Cadaval insere os primeiros nove captulos da Novela (54). Alis, j no Livro I das Saudades, a mencionada Histria dos Dois Amigos parece anunciada pela Verdade e pela Fama neste passo: Aqui vi uns sonhados lamos, com muitos versos escritos e, posto que nunca mais os tornei a ver, me deixaram tanto em que cuidar, que sempre cuido neles, porque conheci muito bem cavaleiros que os versos neles escreveram, e vi-lhes passar muitas mgoas no tempo em que no povoado passava as minhas; e ainda que eu diga ver isto sonhado, todavia obras acordadas foram que estes cavaleiros fizeram e escreveram, no em altos lamos que esta terra nunca criou nem cria, mas em altssimos pensamentos que neles houve nela nascidos (55).

    No h dvida de que a inspirao para o Livro V j se encontra contida nos captulos iniciais do Livro I, no qual figuram j as duas personagens abstractas da Fama e da Verdade, que se impregnam dum tom elegaco artificial que j deixa trair, em certos modismos de estilo, o ascendente de Bernardim. A mensagem , todavia, diversa, porque, como j atrs dissemos, ao intimismo contemplativo dum, que encontra uma determinante temperamental, se contrape a motivao moral ou filosfica do outro.

    Ainda sobre o mencionado Livro I, h outros pontos de contacto com Bernardim, que no os de simples expresso: os motivos escolhidos, a concepo da natureza animizada e solitria, e a tnica da tristeza que, quando no assume uma forma racional explcita, um mero artifcio literrio. Veja-se este exemplo:

    E, se desejo viver, para ser mais triste e j agora os contentamentos me seriam maiores mgoas, ainda que, se para isto me aproveitassem, os no enjeitaria (56).

    H paralelismos de temas como de atitudes e at de formas de expresso, que denunciam o decalque por demais evidente.

    Bernardim: Neste monte mais alto de todos (que eu vim buscar pela soidade diferente dos outros que nele achei), passava eu a minha vida como podia ora em me ir pelos fundos vales que o cingem derredor, ora em me pr, do mais alto dele, a olhar a terra como ia acabar ao mar e depois o mar como se estendia aps ela, para acabar onde o ningum visse (57).

    Frutuoso: Nesta solitria serra, onde por acerto ou desastre me trouxe um dia o meu cuidado (a qual escolhi por couto de meu longo homzio pela soledade que nela achei, conforme que comigo vinha) vivo de poucos dias a esta parte, porque logo, quando fugi dos povoados, no foi este o primeiro lugar para onde vim... (58).

    No contedo dos parntesis que encerram os passos dos dois autores postos em cotejo, ainda mais flagrante a parfrase. H paradoxos que mostram bem vincada a inspirao bernardiniana, at mesmo no paralelismo da expresso:

    Bernardim: Mas depois que eu vi tantas coisas trocadas por outras e o prazer feito mgoa maior a tanta paixo vim, que mais me pesava do bem que tive que do mal que tinha (59).

    Frutuoso: ...vive a minha tristeza aqui to contente, nesta minha soledade, que j me contento mais do mal que tenho que do bem que tive, sendo o bem passado cousa que muitas horas me apresenta grande contentamento no pesar que ainda hoje me d sua lembrana... (60).

    No Livro V, logo no comeo, surge igualmente o culto do paradoxo, que mostra o modelo sempre presente na parfrase: Foi sua desaventura ou ventura tamanha (61), que lembra aquele clebre passo da novela ribeiresca:

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    Antecendentes e Influncias Literrias na Novela XXII

    Gran desaventura foi a que me fez ser triste ou a que, pela ventura, me fez ser leda (62). Tambm aqui se exalta a dor como inerente aos homens que ali viviam: nela nasceu a dor que assi fez tristes alguns deles (63). No comeo da Histria dos Dois Amigos, a explorao do paradoxo torna-se montona pela

    repetio: tudo foram desaventuras, que por bem aventuradas foram julgadas daqueles que as

    passaram (64). Avulta ainda o mesmo gosto dos contrastes e das antteses, contidos neste exemplo: me podeis vs agradecer e em a no agradecendo ainda no fareis sem razo alguma,

    pois todo vos devido. Na mesma esteira de Bernardim, que no logra, todavia, como j acentumos, a limpidez do

    pensamento deste, h expresses rebuscadas que, no modo rebarbativo com que se formulam, tornam difcil a sua inteligibilidade, excedendo em muito os jogos conceptistas do sculo seguinte. A Fama, que pede Verdade para contar a histria, aps a fala desta, responde-lhe deste modo:

    que estoutra vontade, que eu tenho de ouvir essa histria, no para agradecer, seno para satisfazer com fazerdes o que peo pera assim vos ficar em muito maior dvida do que devo com me agradecerdes a vontade, que s pretende o meu proveito e gosto (65).

    H sentimentos altrustas que se filiam num princpio egocntrico. Doemo-nos dos males alheios porque nos lembramos dos nossos prprios. volta desta verdade, existe um fluido de simpatia humana que tem igual validade nos padecimentos fsicos, como nas dores morais. E ser tanto mais natural numa constituio psquica, como a de Bernardim, em quem o eu se hipertrofia, ao ponto de constituir o centro exclusivo da sua mundividncia, acrescida das implicaes prprias de quem possui uma to rica experincia interior, para a elaborar em matria de arte. O comprazimento na dor, que se converteria em estafado lugar comum na dialctica amorosa quinhentista, se no lograra, no caso presente, uma ressonncia pessoal que supera a simples moda literria, torna mais complexa a mensagem contida neste passo das Saudades:

    Ali vi ento, na piedade que houve doutrem, tamanha a devera ter de mim, se no fora to demasiadamente mais amiga da minha dor do que parece que foi de mim quem me a causa dela (66).

    Frutuoso, expressando ideia semelhante, infunde-lhe, porm, um tom sentencioso, visvel na forma generalizada que ele assume, a marcar a presena dum pendor reflexivo e abstractizante que se no deixa soobrar nestas vagas emotivas, maneira duma tela que trai a cpia do original:

    que a minha tristeza grande me ensina doer-me do mal alheio e quem do mal de outrem se di do seu prprio se torna de novo a lembrar (67).

    A prpria Verdade, figura abstracta e incolor, quando considerada no plano emotivo, mesmo para alm da filosofia, produto da observao, que em certos momentos ela possa conter, reveste-se de roupagens que acusam a importao do figurino alheio, atravs duma plangncia que quase soa a falso:

    por j no arrecear a morte, que me no quer levar, por mais dores nem mgoas que eu no mundo veja (68).

    No referido Livro I do nosso cronista, o comeo do III captulo denuncia igual inspirao do captulo II do Livro das Saudades, com a descrio do espectculo da natureza ao romper da manh, a que no faltou o canto das aves (apenas se no fez referncia ao rouxinol de Bernardim), como elemento meldico a coroar a festa para os sentidos, extasiados por essa sinfonia de luz e de cor. A acentuar essa nota de pessimismo, repetem-se os mesmos efeitos psquicos, obtidos pela presena dos contrrios na natureza:

    Bernardim: Donde o que fazia alegre a todas as coisas, a mim s teve causa de fazer triste (69).

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    Antecendentes e Influncias Literrias na Novela XXIII

    Frutuoso: ...pus-me a cuidar muito queda quo grande era o meu mal, pois me no deixava ouvir aquelas alegrias daqueles passarinhos, seno para mas converter em seus pesares (70).

    O exemplo da natureza como smbolo moral tambm mostra o decalque manifesto: em Bernardim, o penedo anojando a gua, que queria seguir o seu caminho, significa as contrariedades que tambm afloram nas coisas que no tm entendimento. Em Frutuoso, a pedra que demora a chegar gua, mas depressa chega ao fundo, lembra o triste pensamento da Verdade que, ainda que com mais detena, chega tristeza profunda (71).

    Diga-se de passagem que, no nosso cronista, a formulao do pensamento pela imagem no nem to sugestiva nem to clara como a do seu dolo. A propsito destas expresses de pessimismo, j Rodrigo Rodrigues notou muito lucidamente, sobre o seu biografado:

    Era talvez um optimista, raramente desanimado ou queixoso; no entanto, os primeiros oito captulos do Livro I so de tristeza, onde a Verdade desiludida monologa com frases amargas acerca da gente do seu tempo e sua conterrnea... (72).

    A observao de tal contraste leva-nos mais uma vez a admitir que, posto de parte um pendor temperamental maneira de Bernardim, que no ultrapassa a sua vivncia emotiva de lrico, as razes dessa tristeza, quando se no explicam por mero figurino literrio, podem encontrar-se na formao duma filosofia moral, fundada na lio trazida pela experincia advinda do contacto com o mundo. Os anagramas Torme Nhervoga (73), que figuram no citado Livro I, como irmos da Verdade, dos quais ela mostra profunda saudade, parecem acusar tal origem. Dentro desse mesmo tom se explica a citao de Herclito, cujas lgrimas eram movidas pela contemplao do espectculo dos homens, dignos de muito d e sentimento (...), assim pelos males e trabalhos que sofrem, como pelos males e pecados que fazem (74). Sempre, pois, o fundo do moralista, que, acentuando uma tnica espiritual do autor, define ao mesmo tempo uma nota de unidade, que se sobrepe a outros aspectos porventura mais fragmentrios e superficiais da sua obra de fico.

    ainda a voz do doutrinador que constri essa viso pessimista da existncia, que no deixa de acusar a posio de determinado sector do pensamento cristo, muito embora este no encontre uma unanimidade de concordncia, especialmente nos nossos dias. Frutuoso, descontados o processo mais simplista do conceito, como as profundas dissemelhanas e, at, oposies dentro do plano doutrinrio, poderia considerar-se um precursor de Schopenhauer, ao conceber a dor como inerente ao mundo e aos homens.

    No h bem, nem alegre coisa j que dure. Desaparecem os contentamentos da vida, como ligeiros raios e, ainda que tragam consigo uma sbita mostra de clara luz, logo ficam trevas. Todos os contentamentos tm os seus descontos de tristeza (75).

    So estas as palavras de Filidor, para consolar Filomesto da perda de Gurioma. A concepo formulada invoca, entre outros argumentos, os de ordem filolgica, como o nome de Abel, que significa choro; e, at os de ordem biolgica: os meninos, nascendo, logo vm chorando. Tratar-se-, pois de uma tristeza ancestral, que incumbe aceitar com resignao. A dor e o sofrimento dos bons integram-se dentro da exegese crist, naquele conceito de que Deus faz sofrer aqueles que mais ama, para depois os compensar na bem-aventurana. Estas consolaes de Filidor bem podiam inserir-se nas pginas daqueles msticos doutrinadores da cepa de Frei Tom de Jesus. o religioso que fala, sob o disfarce da figura da novela, absolutamente descaracterizada no gnero, porque se entronca no pendor moral do autor.

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    Estrutura da Novela XXIV

    III ESTRUTURA DA NOVELA

    Transcrevemos atrs um passo do Livro I, em que se anunciava a elaborao da Histria dos Dois Amigos. A citao para ns reveste uma dupla importncia: em primeiro lugar, a dum plano pr-elaborado, relativamente ao conjunto da obra do historigrafo e do ficcionista; alm disso, a contextura da prpria novela contida na referncia aos versos escritos nos lamos por cavaleiros. que o gnero novelesco, tratado por Frutuoso, reveste um tratamento diverso das outras afins, tal a abundncia de poemas que lhe esto insertos. Poderamos at ser levados a pensar que, pelo menos na quantidade, a lrica constitui a parte principal e a novela mero pretexto para a enquadrar. No existe o que se possa designar por relao orgnica entre os poemas e a novela. O contedo romanesco desta ltima, que abrange a narrativa das faanhas, demasiado curto em relao extenso apresentada por muitas das composies em verso. Nesta estrutura compsita, to diversa de qualquer outra, reside talvez a sua nica originalidade, se que esteja aqui bem empregado o termo original, que normalmente figura para designar a excelncia dum acto criador.

    Voltando ao cotejo com o Livro das Saudades, de Bernardim, diremos que neste a poesia se constitui num clima envolvente de toda a obra, quer quando esta se incline para o bucolismo, quer quando oscile para a ambincia novelesca. Em Frutuoso, a poesia um acrescento que se impregna dum perfume moral de raiz mirandina, de modo a volver-se em momento de repouso das actividades do cronista que procura uma surtida no mundo da fico. E nesta foroso confess-lo manifesta-se geralmente como hspede ou como peregrino, que no conseguiu transpor os umbrais do templo em que s penetram os verdadeiros ungidos das Musas. Frutuoso afigura-se-nos como um daqueles versejadores nem sempre fcil, porque dotado de pouca inspirao que recorrem memria apetrechada das novidades do Renascimento quinhentista. Nem a sua obra venceria decerto o juzo do tempo, se esta se circunscrevesse ao contedo do Livro V e no revelasse que era outro o pendor do seu autor, demonstrando pujantemente o alto estofo do nosso maior cronista insular que, em mritos, pode conviver em tvola redonda com os outros historigrafos contemporneos.

    H no Livro V artefactos de novela, que provam que o seu autor compartilhou do entusiasmo das leituras preferidas do seu sculo. Filomesto possui todos os requisitos do heri: formoso, forte, dextro, virtuoso, gentil e defensor das causas nobres. Se nos fosse proposto classificar os dois Amigos, diramos que, pondo de parte a identificao biogrfica destes, Filomesto e Filidor representam duas manifestaes simblicas da mesma individualidade literria do autor duas facetas dum alter-ego que demonstram a referida estrutura compsita da obra novela e poesia que no pastoril, mas insero inorgnica de composies que se nos afiguram isoladas. H pequenas e insignificantes situaes que se criam como um pretexto para a introduo destas. Dum modo geral, a Filidor que incumbe o papel de as inserir. E, a despeito do mencionado projecto j contido no Livro I, fica-nos a impresso de que o autor j teria reunidos muito tempo antes alguns dos poemas, que o contedo romanesco da obra reduzido, como j se disse procura integrar e ligar entre si. Parece comprovar esta nossa hiptese o facto de entre as referidas composies se encontrarem dois sonetos de Filidor, que parecem alusivos s exquias do Prncipe D. Joo, filho de D. Joo III. Ora, pelo estudo da cronologia, tais solenidades ter-se-iam realizado ao tempo em que Frutuoso era ainda estudante em Salamanca, portanto, numa data muito anterior elaborao definitiva da novela, que antecede um pouco a do Livro VI. Trata-se aqui, como noutros passos, duma incurso do plano da realidade, encastoada entre os outros aspectos imaginrios. Quanto aos sonetos, revelam uma engenhosa fico, muito dentro do gosto clssico, com o aparato mtico: o Amor, por engano, feriu a sua vtima com armas alheias: as da Morte (76).

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    Estrutura da Novela XXV

    No que respeita aos temas novelescos, h pequenas aproximaes da obra de Frutuoso com as suas congneres do sculo, as quais tanto podem denunciar os vestgios das leituras feitas, como simples coincidncias. Assim, o encontro de Filomesto com o filho mais velho dum mercador, que o identificou como o menino que ele conhecera e que deixara de ver (77), lembra um pouco o reconhecimento de Amadis, desconhecido at determinado momento. a figura da Verdade que, em Frutuoso, inicia o contedo do Livro I e conta Fama a Histria dos Dois Amigos. No Clarimundo, a mesma Verdade que Fanimor invoca para a sua profecia. Estar aqui contida qualquer sugesto? O cotejo da cronologia, pelo menos, no anula a hiptese, se algum a pretende formular.

    No Palmeirim, mais notrio do que em Bernardim ou Frutuoso o recurso ao maravilhoso. Todavia, na Novela de Morais, como na do nosso cronista, h um porco monts perseguido pelo heri, que depois desaparece, com o fim de o encaminhar para uns formosos paos desconhecidos (78).

    Na Tvola Redonda, existe a espada invencvel de Galaaz. No Clarimundo, h uma entregue pelo citado adivinho Fanimor. Na Histria dos Dois Amigos, de Frutuoso, h duas espadas cuja magia salva Filomesto e Filidor dos grandes perigos.

    No captulo IV da Novela de Frutuoso, alardeia-se o conhecimento de todo o cerimonial da Cavalaria: os trajes e costumes, como as armas brancas, a viglia no templo, precedida da lavagem da cabea e, finalmente, o acto de armar o cavaleiro, cujo padrinho Narfendo (79). H igualmente as perguntas sacramentais, como a entrega das esporas e da espada, tirada da bainha, depois de cingida, para que se lhe toque com ela na cabea, at ao beijo do estilo na face.

    Filomesto, vista da proposta de casamento com Ricatena (80), identificar-se-ia, na sua recusa de mstico asceta, com Galaaz, se mais adiante no manifestasse a sua paixo terrena por Tomariza. Uma recusa que no sofreria decerto a tolerncia ou o perdo de D. Afonso de Portugal, que aconselhou o autor, ou melhor, o refundidor do Amadis a emendar o passo de Briolanja. Tambm na Novela figura o juzo de Deus, que ainda prevalece no sculo XVI e citado pelo autor como explicao da recusa de Tomariza em aceitar o amor de Filomesto: tomando-a como instrumento da sua justia, Deus castigava-o de ter repudiado a paixo de Ricatena. Eis mais um testemunho da presena do ideal da Cavalaria.

    Como quer que seja, na postura do heri da Novela de Frutuoso h um comedimento que, a carcter com a condio ou profisso religiosa do seu autor, , ao mesmo tempo, herana de Bernardim, que contrasta um pouco com a atitude mais pag do Amadis, muito embora, na opinio de Costa Marques (81) a paixo do Donzel do Mar no chegue a insinuar-se como pecaminosamente adltera.

    O surto da paixo amorosa em Frutuoso aproxima-se mais do das clogas de Bernardim amores contrariados que se constituem em fulcro ou causa de sofrimento do que da efabulao do gnero novelesco. Neste, por via de regra, os amores do cavaleiro so correspondidos com condies e limitaes, entre as quais se contam as provas de valentia e outras virtudes provas que s demonstram o rigor da mulher amada indicativos de que o cavaleiro merece aquela que pretende.

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    A Poesia XXVI

    IV A POESIA

    Falmos dos artefactos prprios da Novela. Atentemos de novo na Poesia. O Captulo X da Histria dos Dois Amigos inteiramente preenchido com uma cloga,

    muito pobre do elemento da natureza, ao contrrio das de Bernardim. O bucolismo apresenta-se, pois, mais convencional, enfaixado em roupagens exteriores, abundante em narizes de cera prprios do gnero, a que falta uma vivncia pessoalizada que pudesse insuflar-lhe um sopro de autenticidade. H um passo que parece uma parfrase de versos duma cloga de Bernardim:

    Frutuoso: Do tu rabel preciado Bernardim: que era sin su semejante? Do tu alegre semblante, Que do teu rabil prezado, tu seso tam libertado? teu cajado e teu surro? Dolo tienes trastornado Tudo te vejo mudado; sin gasajo, i sin plazer, tinhas um cuidado ento, que alegre solias ser (82). tens agora outro cuidado (83).

    A despeito da correco do verso, que mostra, da parte do autor, um manejo mais perfeito do redondilho do que de qualquer outro metro, a prpria cloga parece um passo quase metido a martelo, inteiramente desarticulado da aco da Novela, o que vem mais uma vez confirmar que muitas das composies de Frutuoso existiriam muito antes da factura da mesma Novela, aguardando a sua insero nessa pretensa unidade. H nela um desgosto de amor que tanto se pode aplicar a um heri da histria como a qualquer outro. Como ingredientes da conveno buclica, na tessitura das personagens e no contexto da prpria composio, surgem a mudana de semblante do pastor, os cuidados de amor, o confidente e o subsequente dilogo: Como resultado lgico, h o definhamento do gado:

    A solas andan pasciendo tus ovejas sin pastor, las mastines sin sor dexanlas, y van huiendo; lobos las andam siguiendo y no las quieres valer aun que las veas comer (84).

    Tambm a morte aparece como refgio dos males, que se contagiam natureza, subjectivada maneira do Poeta das Saudades:

    Hallo triste las canciones, las verduras i las flores, y hallo que para amadores los thesoros son carbones; (85).

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    A Poesia XXVII

    Abundam sobremaneira os elementos prosaicos, a denunciarem a ausncia dum requinte de sensibilidade na prpria escolha dos smbolos, assim como a escassez da profundidade amorosa na sua expresso humana e literria, resultado precisamente duma experincia interior que lhe falta. Em certo passo da mesma cloga, o dilogo de Rodrigo e Juan pastor imita o duelo razo-sentimento, sustentado pelos interlocutores nas composies ribeirescas:

    Rodrigo: Que pueden vencer amores, pues Dios nos puso en poder el querer i no querer, de que nos hizo sores; (86).

    Juan pastor: la no manda la razon, aunque essa es la verdad, mas manda la voluntad, que nos puso en subjecion; de aqui nasce mi passion, de mi voluntad querer dexarse de amor vencer (87).

    Ainda sobre o mesmo binmio irredutvel razo-sentimento, haveria a acrescentar que, enquanto em Bernardim a supremacia do afectivo se encontra polarizada por uma interiorizao, em Frutuoso as consideraes de Juan pastor assemelham-se, dum modo geral e paradoxalmente, a uma dissertao prpria duma dialctica fria, de feio conceptual, que no chega a fixar-se numa expresso vivida.

    Para que a sombra de Bernardim nunca se dissipe da novela frutuosiana, entre os muitos passos laudatrios do mencionado Livro V inclui-se um do Captulo XIV, onde o autor integra referncias a trechos da Menina e Moa. Assim, Filidor em busca de Filomesto, encontrou os paos de Lamentor, onde, segundo reza o prprio ttulo do Captulo, vendo escritas as Saudades de Bernardim Ribeiro, que por outro nome se chamou Bimarder, fez uns versos em seu louvor (88). Eram aqueles os paos onde falecera Bileza (89), apaixonada de Lamentor e onde se criara Ania, que tanta dor deu ao triste Bimarder e a formosssima Arima, por quem Avalor se perdia (90). Tal insero e outras similares, onde abundam as composies panegricas das celebridades literrias do tempo, parece conferir Novela o carcter de mera brincadeira, para desfastio espiritual do nosso cronista. Os versos dirigidos a Bernardim so medocres no conceito e na forma.

    Outro captulo, o 12., constitudo por um cantar que desenvolve o tema contido no mote:

    Gavio, gavio branco vai ferido e vai voando.

    Neste cantar, falho de inspirao, como tantos outros poemas, consentneamente com a sua extenso enorme, esto ausentes a espontaneidade e o chiste da redondilha camoniana composta sobre um tema semelhante:

    Perdigo perdeu a pena.

    Mais um elemento a demonstrar que a poesia de Frutuoso, longe de obedecer a uma necessidade de expresso, se insinua apenas como o reflexo cultural duma poca. E, para que se no perca a oportunidade da liozinha muito a carcter com o moralista, ei-la bem vincada sobre a morte do gavio:

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    A Poesia XXVIII

    Oh! Vs outros, amadores, nalto lugar no ameis, por que tal queda no deis, como estas destes amores (91).

    O pendor conceituoso do autor manifesta-se igualmente nos rifes, que abundam na obra. Atente-se nesta cadeia contnua deles, contida no Captulo 18..

    Quem trabalha descansa; quem ama serve; quem porfia mata caa; quem fala ouve; e quem busca as mais das vezes acha (92).

    No captulo 29., inclui-se uma alegria atribuda ao Cavaleiro da Rocha, que andava empenhado em libertar uma donzela duma rocha perigosa. Expressando um conceito um pouco tbio, denuncia um cunho acentuadamente moral e lembra, na crtica generalizada, a mesma ressonncia mirandina; talvez mais superficial do que a obra do solitrio do Minho, conquanto ganhe um pouco na limpidez da ideia. Na referida composio, alude-se s consequncias deletrias do interesse:

    Este revolve toda companhia e quebra dos contratos assentados. Oh! quantos maus respeitos este cria e quantas honras tem aniquiladas, e vai aniquilando cada dia (93).

    o mesmo tema que se imiscui, prosaicamente, na expresso da tristeza do poeta, a estabelecer a destrina entre o choro espontneo e o choro interesseiro, noutro poema onde sobrenada esse fundo moral:

    no choro o por dinheiro e quem por ele chorar no tem choro verdadeiro (94).

    Voltando elegia mencionada, diramos que, maneira de S de Miranda, tambm o ambiente campesino se constitui num pequeno paraso terreno dessa mediocridade dourada, que , ao mesmo tempo, manso verdadeira de virtudes excelsas e dos mais puros sentimentos:

    S vos na serra estais a bom seguro, s vs sabeis usar do entendimento e estais, como atalaia, sobre muro (95).

    J citmos atrs outros passos da mesma elegia que, na impreciso dum gnero que a classifique, revela em parte o teor duma carta mirandina e, por outra, o duma cloga virgiliana.

    Frutuoso repete-se nas sugestes, a denotarem pobreza de imaginao: os versos dos poetas que ele homenageia encontram-se, por via de regra, num padro (ou qualquer outro objecto), num denso arvoredo e servem de pretexto para ele escrever os seus.

    Na expresso da natureza, abunda aquela adjectivao que se converteu em lugar comum da lrica renascentista: claras guas, frescas guas, verdes ervas, turvas lgrimas. So exemplos que surgem a cada passo na obra camoniana, onde, como na de Bernardim,

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    A Poesia XXIX

    igualmente frequente o tema das lgrimas que se juntam s guas da ribeira ou do rio, engrossando o seu caudal.

    Como amostra dos brincos de talento formal, que anda muito arredio duma verdadeira mensagem, h, no mesmo Livro V, uma poesia em Eco (96). O gnero era muito cultivado por autores da poca, incluindo o nosso Mestre Gil, que no se mostrava muito atreito a novidades trazidas por importao, que, no caso presente, remontava Antiguidade, com Ovdio. No poema de Frutuoso, o conjunto de slabas que forma o Eco envolve geralmente a resposta a uma pergunta formulada no verso que a antecede. Nem sempre, porm, tal acontece. Nestes que transcrevemos, verifica-se a primeira hiptese, de modo a formar-se uma cadeia sugerida pela resposta de Eco:

    Sonho por fim se torna o meu cuidado. dado E que dado me dars, triste amador? dor E tu tambm com dor andas bradando? ando J agora tambm prezas teu desprezo. prezo

    Outras vezes, fica o eco desgarrado, sem sentido:

    Que causa deste teu e meu desastre? astre.

    No Cancioneiro de Resende, est includo o clebre pleito do Cuidar e Suspirar, que tem tanto de espectacular quanto de frvolo. Frutuoso, naquele pendor para o conceituoso j por ns assinalado, doutrinando tambm sobre o amor, se fosse chamado ao pleito, quando no arregimentasse abertamente na falange dos que defendem o suspirar, ao menos colocar-se-ia em oposio aos que optam pelo cuidado... calando e no suspirando. Eis o seu argumento:

    Mas eu, sem cura, com dores, curava meu mal, calando: e esta cura me dobrava a dor que nalma trazia, que, porque calando me ia, o mal de dentro lavrava, de fora no parecia (97).

    H um poema escrito em oitava rima, algo extenso, como a maioria dos outros e repassado dum tom elegaco, talvez um tanto convencional. Nele se estabelece um cotejo entre a alma do poeta e a natureza, cotejo por vezes difuso; em cada estrofe desenvolve-se a comparao, cujo segundo elemento, constitudo pela tristeza ou mgoa do poeta, forma, nos dois ltimos versos, o remate, geralmente para estabelecer o contraste entre a sua prpria situao e o exemplo aduzido. Eis a amostra com uma estrofe:

    S os humanos amam humana gente, clemente e cru no fazem companhia, tem guerra a neve com a coisa quente, a que quente peleja com a fria; touro no ama cobra nem serpente, cada um de seu contrairo se desvia. Eu s me fui prender neste grave erro, pois amei desamor e meu desterro (98).

  • SAUDADES DA TERRA Livro Quinto

    A Poesia XXX

    A estncia transcrita pode igualmente exemplificar o obscuro e, at, o ilgico de certas comparaes. No caso presente, cita-se a incompatibilidade - de ordem fsica como de ordem moral - entre os contrrios: ao quente repugna o frio, do mesmo modo que o clemente e o cru no fazem companhia. Poderamos perguntar que paralelo, igualmente por contraste, existir na afirmao de que amou desamor e seu desterro, de modo a fazer salientar um paradoxo. Neste, como em alguns outros exemplos, parece denunciar-se uma certa debilidade conceptual, que fora tais paralelos.

    *

    O despeito do mais que havia para dizer, tempo de pr ponto final ao nosso arrazoado. Em remate da nossa anlise, seramos levados a concluir que o Frutuoso poeta foi menos tocado pelos favores das Musas, sem lograr com elas o convvio conseguido por um eleito, como Bernardim, pessoalssimo na expresso duma experincia humana muito fecunda. Quanto ao autor aoriano da Histria dos Dois Amigos, resta-lhe o maior merecimento de, analogamente ao que fez nos panegricos dos maiores poetas do seu tempo, ter contemplado as mesmas Musas que lhe acenavam do alto da sua indiferena. E, atravs dos olhos de Filidor, fazia seu assento naquela alta e graciosa rocha, onde se esconderam e encerraram.

    Ponta Delgada, Maro de 1964.

    J. de Almeida Pavo

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    Manuscrito Original das Saudades da Terra XXXI

    Fotocpia da pgina n. 444 do manuscrito original das Saudades da Terra, em que se d comeo ao Livro Quinto

  • SAUDADES DA TERRA Livro Quinto

    Livro Quinto das Saudades da Terra

    LIVRO QUINTO DAS SAUDADES DA TERRA

    DO DOCTOR GASPAR FRUCTUOSO, NATURAL DA ILHA DE SO MIGUEL, EM QUE SE CONTAM NA HISTRIA DE DOIS

    AMIGOS UNS HONESTOS AMORES QUE ACONTECERAM NELA

  • SAUDADES DA TERRA Livro Quinto

    Captulo Primeiro 3

    CAPTULO PRIMEIRO

    COMO A FAMA PEDIU VERDADE QUE LHE CONTASSE A HISTRIA DOS DOIS AMIGOS DA ILHA DE SO MIGUEL E A VERDADE SE OFERECEU A CONTAR-LHA

    Havendo eu contado Fama as coisas desta ilha de So Miguel, fui mais dizendo no dia seguinte:

    Ouvido tendes, Senhora, como as coisas desta ilha foram j to prsperas, que outra to boa podia o Sol aquentar com seus fermosos raios, mas no melhor. Como tambm muitos estrangeiros afirmam, esta a melhor e maior de outras sete, que esto pera o ponente mui perto, que por todas fazem nove, de que eu no entendo bem os nomes, porque os que elas tm no me parecem certos. Alguns (como j disse) lhes chamaram dos Aores pela razo dita, e no sei se, errando a letra, houveram de dizer amores, pelos que nelas em outros tempos passaram, e principalmente onde a fora dos tristes amadores se ajuntou toda. Eu no lhe chamo outro, seno a ilha do meu desterro, pelo que nela tenho, porque cada um diz da feira como lhe vai nela. Chame-lhe cada um como quiser, que (como dizem) o nome, nem o hbito, no faz o monge, ainda que muitas vezes os nomes das coisas no se pem sem mistrio; assi como acontecem outras muitas, cheias de secretos, que se no vm a descobrir seno muito ao longe.

    O secreto (me disse ela) destes dois amigos e seus amores desejo de ouvir de vs, Senhora, como j vos disse, e a merc, que at agora me tendes feita, me faz mais ousadia pera pedir estoutra.

    Ao que eu respondi: As coisas desses dois amigos estimo eu como prprias, porque o amigo outro eu. Mas quem, contando tais tristezas e amores to sem ventura, poder temperar as lgrimas que no chore um mar delas? Mandais-me, Senhora, renovar uma dor de mortal mgua. A histria de muitos, esforados e valerosos cavaleiros, que nela houve, contei com bom esforo, pelo que o seu contentamento me dava, sendo tudo alegrias que os homens por tais estimam, ainda que o no sejam, mas... (99) em outras mores guas, no sei como as conte. No lhe chamo eu a isto contos, seno descontos, pois no h coisa destas que os no tenha; e, seno sejam-me testimunhas quase todos ou todos os estados desta vida, que, com os descontos que cada um deles tem, jamais vi ningum contente daquele em que por sorte vive. E no h erva criada que, se aproveita pera algum bem, no tenha parte pera algum mal, se ns soubssemos bem conhecer o que em cada uma se encerra. Por isso h em toda parte, como tereis visto, montes e vales, terras lavradias e outras de muitas pedras, sos e enfermos, bons e maus, contentes e descontentes, pera se descontarem umas coisas por outras e em tudo quanto h na vida haver descontos. E, ainda que nesta terra so os homens na condio Alexandres, e de maravilha se acham cainhos, nem tristes, nela, pela abundncia e festas com que se criaram, com que so liberais nas obras, discretos na prtica, grandes na vontade, alegres na conversao, amigos de seus amigos, e ainda de seus inimigos, prudentes e virtuosos, nobres e sabedores, e as mulheres quase todas, comummente, so delgadas e discretas, fermosas e graciosas, perfeitas e honradas, religiosas e devotas, honestas e virtuosas. E aqui se criam to delgados engenhos, que no tm enveja de outra terra, seno em dar deles grandes mostras, porque nunca dela se mudam, sendo nisto como vinho, que, se no se trasfega, logo se faz vinagre, e j que por seu pouco poder e no serem sofredores de trabalho, ou por estarem longe de mestres, sendo de felicssimos engenhos, infelicemente aprendem. Com tudo isto, houve tambm outros com faltas, como em toda parte se acham, e, ainda que viveram aqui alegres, alguns tristes houve; e muitos, que dela saram, vi eu depois muito grandes e tristes, posto que nela fossem julgados por pequenos e contentes, porque o queria assi a tristeza deles. Estes so os que eu dizia que escreveram as letras nos lemos, que eu sonhei que via nesta serra, como j vos disse, Senhora, que tudo eram sinais de seus

  • SAUDADES DA TERRA Livro Quinto

    Captulo Primeiro 4

    altos pensamentos. Foi sua desaventura, ou ventura tamanha, que os alongou to longe, uns desta vida e outros desta terra, que parece que nunca nela nasceram, ainda que nela nasceu a dor, que assi fez trist