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DRAMATURGIA CONTEMPORÂNEA INFANTIL NO RIO DE JANEIRO: A BUSCA DE NOVOS CAMINHOS 1 Por Adriana de Assis Pacheco Dacache 2 SUMÁRIO AGRADECIMENTOS RESUMO Capitulo I - INTRODUÇÃO 1 - NOTA PESSOAL 2 - PANORAMA DO TEATRO INFANTIL 2 - HISTÓRICO 3 - ATUALIDADE 4 - A BUSCA DE NOVOS CAMINHO Capitulo II - LASANHA E RAVIÓLI IN CASA OU O RISO DA CRÍTICA 1 - A FUSÃO DE LINGUAGENS: CIRCO-TEATRO 2 - A CRIANÇA E O HUMOR LÚDICO 3 - A PARÓDIA DO PRÓPRIO TEATRO INFANTIL Capitulo III - TUHU, O MENINO VILLA-LOBOS OU O ELOGIO TEATRAL À INFÂNCIA 1 - O "PERSONAGEM REAL", O PERSONAGEM TEATRAL E A NATUREZA INFANTIL 2 - A LINGUAGEM POÉTICA 3 - POESIA E MÚSICA 4 - O JOGO POÉTICO Capitulo IV - É PROIBIDO BRINCAR OU O DIREITO AO PRAZER 1 - UMA QUESTÃO DE ESPAÇO 2 - TEATRO E POLÍTICA 3 - O INESPERADO BATE À PORTA: A FANTASIA CONCLUSÕES BIBLIOGRAFIA 1 Dissertação apresentada em março de 2007, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira, do Departamento de Letras da PUC-Rio, tendo como orientadora a Professora Eliana Lúcia Madureira Yunes Garcia. 2 Adriana de Assis Pacheco Dacache Graduou-se em Psicologia (licenciatura e grau de psicólogo) pela Universidade Gama Filho, no Rio de Janeiro, com formação em Arte Terapia. Cursou Pós - Graduação Lato Sensu em Arte Educação - Leituras Contemporâneas, no Instituto de Educação UniLaSalle. Também estudou teatro e profissionalizou-se como atriz.

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DRAMATURGIA CONTEMPORÂNEA INFANTIL NO RIO DE JANEIRO: A BUSCA DE NOVOS CAMINHOS1

Por Adriana de Assis Pacheco Dacache2

SUMÁRIO AGRADECIMENTOS RESUMO Capitulo I - INTRODUÇÃO 1 - NOTA PESSOAL 2 - PANORAMA DO TEATRO INFANTIL 2 - HISTÓRICO 3 - ATUALIDADE 4 - A BUSCA DE NOVOS CAMINHO Capitulo II - LASANHA E RAVIÓLI IN CASA OU O RISO DA CRÍTICA 1 - A FUSÃO DE LINGUAGENS: CIRCO-TEATRO 2 - A CRIANÇA E O HUMOR LÚDICO 3 - A PARÓDIA DO PRÓPRIO TEATRO INFANTIL Capitulo III - TUHU, O MENINO VILLA-LOBOS OU O ELOGIO TEATRAL À INFÂNCIA 1 - O "PERSONAGEM REAL", O PERSONAGEM TEATRAL E A NATUREZA INFANTIL 2 - A LINGUAGEM POÉTICA 3 - POESIA E MÚSICA 4 - O JOGO POÉTICO Capitulo IV - É PROIBIDO BRINCAR OU O DIREITO AO PRAZER 1 - UMA QUESTÃO DE ESPAÇO 2 - TEATRO E POLÍTICA 3 - O INESPERADO BATE À PORTA: A FANTASIA CONCLUSÕES BIBLIOGRAFIA

1 Dissertação apresentada em março de 2007, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira, do Departamento de Letras da PUC-Rio, tendo como orientadora a Professora Eliana Lúcia Madureira Yunes Garcia. 2 Adriana de Assis Pacheco Dacache Graduou-se em Psicologia (licenciatura e grau de psicólogo) pela Universidade Gama Filho, no Rio de Janeiro, com formação em Arte Terapia. Cursou Pós - Graduação Lato Sensu em Arte Educação - Leituras Contemporâneas, no Instituto de Educação UniLaSalle. Também estudou teatro e profissionalizou-se como atriz.

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AGRADECIMENTOS

A Eliana Yunes, pela orientação eficiente e atenciosa. A todos os dramaturgos que confiaram e permitiram meu acesso à leitura de seus textos. Ao crítico e artista de teatro Carlos Augusto Nazareth, que gentilmente facilitou bastante minha pesquisa crítica. Aos professores que aceitaram participar de minha defesa. Aos órgãos CAPES e CNPQ, pelas bolsas concedidas, através da PUC/ RJ. Ao CBTIJ, pelas informações prestadas. A Cléa Oliveira, por todo seu apoio e carinho. A Chiquinha e Gilda, pela paciência e elegância. A César, pela ajuda na tradução, e por sempre me dizer que tudo iria acabar bem.

RESUMO

Esta dissertação investiga a dramaturgia contemporânea infantil através da análise de três textos teatrais de autores cariocas. Focalizando a leitura crítica em obras de Ana Barroso, Mônica Biel, Thereza Falcão, Karen Acioly e Luiz Paulo Corrêa e Castro, o estudo reflete sobre as possibilidades de tendências autorais, com vistas à renovação. Considero em minha pesquisa a premissa de que a dramaturgia é o ponto de partida para o espetáculo teatral, apesar de saber que esteticamente o fenômeno teatral alcança plenitude durante sua encenação. Porém, coloco esta mesma dramaturgia como dona de certa autonomia, ao possibilitar ao seu leitor a criação de um espaço cênico, mesmo que imaginário. Apesar da pesquisa enfocar a leitura crítica dos textos apresentados, também estarão presentes, de forma inerente, as reflexões sobre o teatro como espaço cênico. Afinal, a palavra no teatro significa fundamentalmente ação. São também elaboradas nesta dissertação relações entre o teatro infantil como expressão artística e gesto poético, além da observação da infância como essencialidade primitiva a estas instâncias. A análise destas peças teatrais aponta para propostas autorais específicas, dentro de um painel, em geral, frágil e pessimista. Cada texto segue uma proposta autoral autônoma, porém, todos incitam a escrita teatral infantil à condição de obra de arte, além da valorização da criança. Afirmo aqui, uma condição primordial para esta mesma criança: a de um ser humano dotado de potência criativa e inteligência. Portanto, demonstro, nesta dissertação, algumas possibilidades de tendências renovadoras para a atual dramaturgia contemporânea infantil na cidade do Rio de Janeiro, visando uma excelência teatral e respeito à infância.

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CAPÍTULO 1 - INTRODUÇÃO

Fazer teatro para crianças é igual a fazer teatro para adultos, só que é mais difícil. Luigi Pirandello(1) 1.1 - Nota Pessoal

Eu gostaria, antes da introdução propriamente dita à dissertação, fazer algumas considerações pessoais, mas que naturalmente remetem ao trabalho presente.

Primeiro penso ser lamentável o pouco espaço destinado à dramaturgia teatral, tanto nas escolas como em cursos superiores de Letras. Afinal, o teatro também é literatura, literatura dramática.

Naturalmente, esta literatura vai ser transformada em uma encenação, e no espaço cênico irá realizar-se em sua plenitude.

Entretanto, eu acredito firmemente no exercício da leitura teatral, como fruição estética e também como estímulo à leitura de outras literaturas.

A leitura teatral propicia a abertura de diversas possibilidades no imaginário do leitor, visto que não é uma escrita tão descritiva, como um romance, por exemplo. Além disto, a palavra no teatro está diretamente vinculada a uma ação, o que fornece uma sensação de concretude ao leitor. A palavra no teatro é irremediavelmente relacionada a uma ação.

Eu tenho a experiência própria de que a leitura teatral pode estimular o interesse pela leitura em geral. A minha relação com a leitura foi amplamente transformada após meu encontro com as peças teatrais. Esta vivência de concretude, experimentada pela dramaturgia, ampliou-se para outras leituras, como contos, romances ou poesias.

Podem alegar que isto ocorreu pelo fato de ter estudado artes cênicas. Porém, posso alegar que fiz artes cênicas porque fui leitora de dramaturgia.

Já ouvi exemplos similares de outras pessoas, não ligadas propriamente ao teatro. Um amigo argentino contou-me a história de uma senhora, que possuía o hábito de ler peças teatrais em uma biblioteca pública numa cidade do interior da Argentina. Ela adorava este tipo de leitura. Os espetáculos teatrais não chegavam a esta cidade, como em várias cidades do interior do Brasil. Às vezes, esta senhora ia até Buenos Aires. Lá assistia a alguns espetáculos de peças já lidas por ela e sempre voltava decepcionada.

Para mim, esta senhora, em seu processo de leitura, já construía sua “encenação” própria, e ao ver a encenação propriamente dita no palco, decepcionava-se, visto que era diferente da imaginada por ela. Ou seja: a literatura dramática é capaz de propiciar a construção e movimentação de uma cena, já no próprio imaginário do leitor.

O crítico e artista de teatro Carlos Augusto Nazareth, junto com a dramaturga e ensaísta Maria Helena Kühner idealizaram um projeto, através de uma entidade criada por eles mesmos - o Cepetin – para motivar a experiência do texto dramático nas escolas. Com isso pretendem trabalhar junto às professoras, já que estas, em geral, dizem não saber como usar estes textos em sala de aula. (2)

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Quero insistir em que mesmo não havendo a encenação de um texto, a leitura de dramaturgia pode e deve ser vivenciada. O renomado dramaturgo Alcione Araújo escreve, em seu artigo nomeado “Dramaturgia, educação e cidadania” (3), sobre o desmerecimento do texto teatral como possibilidade de representação e interpretação do ser humano e sua sociedade. Apesar de Araújo afirmar a condição da realização do espetáculo para a concretização teatral, o dramaturgo pensa que a dramaturgia em si pode ser um instrumento valioso e dotado, até certo ponto, de força autônoma.

Assim, podemos mergulhar nesta escrita, a fim de analisarmos diversas questões, tais como: a problemática da peça, os conflitos e características das personagens, as motivações das ações destes personagens, os valores contidos nas suas atitudes, etc... Como também, a relação desta história com nossas próprias vidas.

A forma como a maioria das pessoas vê a leitura teatral baseia-se em mera leitura de diálogos, o que a tornaria algo muito desinteressante. Mas não é isto. A leitura de uma peça teatral, se esta for boa, evidentemente, nos levará para o espaço do drama, do jogo, imaginariamente. Como a senhora argentina provavelmente fazia. Ao ler teatro, vamos ao encontro de grandes reflexões sobre a natureza humana; afinal aqui, o pensamento e a palavra não estão separados do gesto. Por sinal, como a criança costuma viver.

Ouçamos Alcione Araújo sobre a referida questão. Aqui estão:

Ler uma peça de teatro não é ler os diálogos, mas as repercussões em cada personagem do que foi dito, a maneira particular e pessoal com que cada personagem absorve as palavras enunciadas - as maneiras de perceber e reagir são reveladores da índole e caráter de cada um. A leitura de uma peça não se limita, portanto às palavras do diálogo, mas estende-se à repercussão das palavras em cada personagem; lê-se a subjetividade das personagens e as relações entre elas, não apenas as palavras. O dramaturgo, diferentemente do romancista, não podendo desvelar as intenções das personagens, oculta-as na maneira de falar, na maneira de silenciar, na sua maneira de perceber e na sua maneira de reagir. Personagens ocultam-se nas falas, nos silêncios, nas percepções e nas reações. Elas se desvelam nas intenções e nas ações. (4)

Com esta colocação, Araújo sugere a importância de ler peças teatrais, (mesmo que não haja desejo de ser profissional do teatro), como uma forma de superar o analfabetismo funcional (5). Esta superação se dará “de maneira lúdica e natural à atitude intelectiva de compreender o que se lê para compreender o que acontece.” (6)

Assim, reafirmo a importância da dramaturgia, independente de sua realização cênica, pois como escreve o dramaturgo, a própria ausência da cena será capaz de estimular a curiosidade e a imaginação do leitor na construção de um palco imaginário. Possivelmente, acrescento eu, este leitor conseqüentemente se sentirá estimulado a ir ao teatro.

Com certeza, este encontro entre a leitura e o espetáculo teatral, se for propiciado desde cedo, será melhor ainda. Assim, é de fundamental importância a existência de um bom teatro

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infantil, fundado numa consistente dramaturgia, partindo da premissa de que todo espetáculo teatral inicia-se com uma escrita teatral.

Por ser baixa a tradição teatral em nosso país, introduzo neste capítulo um breve histórico de nosso teatro infantil, e após este histórico, explicitarei minha proposta de pesquisa. 1.2 - Panorama do teatro infantil

1.2.1- Histórico

Para contextualizar este panorama, acompanho uma pesquisa de Dudu Sandroni, que resultou na publicação de seu livro “Maturando - aspectos do desenvolvimento do teatro infantil no Brasil”, além de críticas e artigos teatrais publicados em revistas, jornais e internet, de críticos como Carlos Augusto Nazareth, que escreve atualmente para o Jornal do Brasil. (7)

Em seu livro, Dudu Sandroni escreve que o teatro infantil tem como precursor o teatro escolar em seu pior sentido, fundamentado num didatismo e doutrinação, além da ausência de qualquer linguagem cênica e artística.

Por sua vez, este teatro escolar possui suas raízes primordiais no Teatro de Anchieta, de cunho pedagógico e moralizante. Somente em 1944, Paschoal Carlos Magno começou a promover uma proposta real de levar o teatro infantil para além das escolas. Seu projeto intitulava-se “Teatro do gibi”, cujo objetivo era levar o teatro infantil, feito agora por adultos (profissionais e amadores), para vários bairros do Rio de Janeiro.

Já a primeira dramaturgia brasileira infantil, “O casaco encantado”, de Lúcia Benedetti, data somente de 1948. Este é considerado o marco inicial do teatro infantil: o surgimento de uma dramaturgia dotada de valor artístico, o que também nos confirma a reconhecida importância do texto escrito para a realização de um espetáculo dito teatral.

O teatro chegou ao Brasil através dos padres jesuítas, em 1561, a pedido de Manuel da Nóbrega. Assim, Anchieta escreveu e fez a representação do “Auto da pregação universal”, entre outras peças.

Este teatro jesuíta possuía a prioritária função de catequizar os índios. As crianças aparecem nas apresentações como símbolos daqueles que ainda não tiveram sua “alma contaminada”, além de trazerem elementos de sua cultura, como danças e músicas, a fim de estabelecerem um elo para a catequese de toda comunidade.

Em outras palavras: a representação consistia num projeto moralizante para toda sociedade, onde as crianças serviam como canal para uma maior comunicação, além de serem, obviamente, também catequizadas. Não era um teatro na concepção artística de hoje e nem um teatro direcionado especificamente para as crianças. Cito aqui um trecho do texto apresentado pelos índios de Guaraparim ao Padre Provincial Marçal Beliarte. Eis o trecho:

Tua vinda benfazeja

nos é venturosa dita... Guaraparim é bendita,

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porque possuis uma igreja!

Eu já não quero o pecado; amo Jesus, sou cristão. Que ele me guarde a seu lado, bem dentro do coração. (8)

Dudu Sandroni alerta que veremos mais tarde, cerca de quatro séculos depois, a mesma postura: aliar a representação teatral a um mero uso pedagógico, evidente também nos autores do Teatro Escolar a fim de instruir as crianças.

O mesmo autor considera a presença do teatro de marionetes no século XVIII como um dado histórico de referência importante para o desenvolvimento do teatro infantil no Brasil, visto que esta forma de linguagem cênica é muito utilizada ainda na atualidade. Sandroni assim discorda do crítico Sábato Magaldi, que por sua vez, trata os séculos XVII e XVIII como de um total vazio teatral. Havia sim uma carência teatral, porém Sandroni pensa ser importante não negar este teatro de marionetes, exibido nas ruas, principalmente se estamos discutindo os antecedentes do teatro infantil.

Já no século XIX, a presença da criança no teatro era o reverso do que fazemos hoje. Nesta época, havia companhias infantis, onde as crianças representavam para o deleite dos adultos. As pequenas atrizes, como Leonor Orsat, da companhia Tivoly, Lafayette Silva, além da italiana Gemma Cuniberti, eram intérpretes de textos de Martins Pena, Artur de Azevedo e José de Alencar. O papel da criança, nesta época, era de ator para um adulto espectador. Não havia lugar para a criança espectadora.

Somente no final do século surgirá em nosso país uma produção voltada para a criança, mas mesmo assim, isso não será considerado o início do teatro infantil, por determinados motivos, tais como: as representações eram feitas por crianças que, por sua vez, não desempenhavam o papel de ator propriamente dito; as representações aconteciam nas escolas, para a comemoração de datas cívicas, ou nas casas familiares, em geral, para comemoração de datas natalinas, além do que, a dramaturgia feita não poderia ser considerada como obra de arte, pois estava limitada ainda à mera condição didática e pedagógica. Foi o que se considerou como o Teatro Escolar.

Sua função restringia-se à instrução de valores morais e patrióticos, além da possibilidade de trabalhar a leitura de forma coletiva, visando a melhoria da dicção e do desembaraço social.

Sandroni cita um trecho do livro “Theatrinho Infantil”, de Figueiredo Pimentel, a título de exemplo:

(...) O teatro das crianças oferece ainda a vantagem de ensiná-las a saberem exprimir-se com as entonações de voz exigidas, a saberem falar e “dizer” com graça e expressão, e a terem uma boa dicção, corrigindo até os defeitos de pronúncia, os provincianismos. (9)

Ou seja: enquanto a literatura na escola destinava-se à leitura individual, formalizava-se uma “literatura dramática” escolar, com o propósito, além de didático, de possibilitar uma leitura coletiva, onde apenas questões, de certa forma frívolas, eram estimuladas.

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A palavra literatura dramática está entre aspas, porque na verdade, não era um drama proposto, e sim uma narrativa a ser declamada. Às vezes, nem sequer havia diálogos!

Eis o exemplo de um monólogo de Carlos Gois (com indicação para menina de cinco anos):

Conhecem a Caixa escolar? É uma senhora muito rica, que dá roupa, merenda, calçado, livros, cadernos e até confeitos, às crianças pobres. Se a criança não dispõe de meios para freqüentar a escola, ela lhe facilita tudo, mas não deixa que a criança fique analfabeta. (10)

Na declamação, visava-se que a criança aprendesse os valores propostos na época, a partir da vivência da palavra falada.

O Teatro Escolar persistirá ainda por muito tempo. Muitas traduções serão feitas, e como sempre, as francesas serão as prediletas. Mais tarde darão preferência a textos nacionais. Além dos bons modos a serem aprendidos, os valores patrióticos serão evidenciados, através de uma proposta de cunho nacionalista. Ademais do já citado Pimentel, outros nomes se destacarão: Coelho Neto, Manoel Bonfim, Figueiredo Magalhães e Olavo Bilac. Porém, o texto teatral continua sendo usado para ser declamado. Não há a presença de jogo cênico.

As primeiras noções de teatralidade vão aparecer somente na década de 1930, com Felix Carvalho, Joracy Camargo e Henrique Pongetti. Técnicas teatrais passam a ser ensinadas às crianças, dando maior atenção à dramatização, distinguindo-a da narração. Em 1933, no livro “A teatrologia infantil”, Felix Camargo escreve:

A narração simples de uma árvore não é teatralizável: teatralizar é viver a personagem de uma ficção. Dramatizar é vibrar, dando alma à personagem que se teatraliza... (11)

O livro de Joracy Camargo e Henrique Pongetti, intitulado “Teatro para crianças”, em 1938, explica vários elementos de uma carpintaria teatral, tais como: coxia, pano de boca, por exemplo, e aborda questões cênicas como a indumentária, a cenografia e a própria encenação em si.

Em um discurso proferido sobre teatro, em 1937, Joracy Camargo faz uma importante colocação sobre o teatro infantil. Ele diz:

Precisamos, portanto, cuidar, com urgência, da formação de futuros espectadores. Quem não entende de teatro, quem não conhece literatura teatral e um pouco da história do teatro, que por sinal é muito atraente, dificilmente gostará de freqüentar espetáculos, e nunca terá amor pela arte dramática.(12)

Como disse no início do capítulo, o ponto de partida para alargar os horizontes do teatro infantil, para além das escolas, acontecerá somente em 1944, com o embaixador Paschoal Carlos Magno, em seu projeto “Teatro do Gibi”.

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Esta foi, de fato, a primeira concretização de uma proposta efetiva e diferenciada do que se vinha fazendo até então no “teatro infantil”. Agora, inclusive atores adultos serão responsáveis pelo projeto.

Quatro anos mais tarde, acontecerá o marco inicial do teatro infantil. Lúcia Benedetti escreve “O casaco encantado”, a pedido do empresário carioca Francisco Pepe. Neste mesmo ano, uma companhia austríaca tinha apresentado no Brasil um espetáculo infantil, o que entusiasmou o empresário. Porém, quando este desistiu, Paschoal Carlos Magno resolveu levar o projeto adiante. A companhia, Artistas Unidos, tendo à frente a atriz Henriette Morinau, foi responsável pelo espetáculo.

A peça fez muito sucesso, tendo inclusive ocupado horários noturnos de apresentações, além de ter viajado pelo Brasil durante um ano. A autora recebeu os prêmios de “Revelação do ano”, pela crítica, e o prêmio “Arthur Azevedo”, da Academia Brasileira de Letras. Depois escreveu outros textos infantis, sendo um deles musicado por Heitor Villa-Lobos.

A partir do sucesso da peça de Benedetti, artistas de renome começaram a fazer teatro infantil, além de grupos jovens. O Serviço Nacional de Teatro também resolveu dedicar-se ao teatro infantil, e muitas peças novas foram subvencionadas. Finalmente, o teatro infantil desvinculava-se de mero apoio pedagógico/ didático e alcançava o destaque de obra artística.

Também em 1948, o grupo conhecido como TESP (Teatro Escola de São Paulo) estreava “Peter Pan”, no Teatro Municipal de São Paulo, sob o comando de Tatiana Belinsky e Júlio Gouveia.

O TESP teve muita importância para a história do teatro infantil com trabalhos feitos até 1964 e foi o responsável pela inclusão deste mesmo teatro na televisão brasileira, em 1951. Já no Rio de Janeiro, outro nome começava a entrar para a história do teatro infantil: Maria Clara Machado. Em 1953, Machado montava sua primeira peça direcionada ao público infantil, nomeada “O Boi e o burro a caminho de Belém”. Foi um sucesso. Machado, em seguida, ganhou dois prêmios em dramaturgia, pela prefeitura do Rio de Janeiro. As responsáveis pelos prêmios eram as peças: “O rapto das cebolinhas” e “A bruxinha que era boa”. Em 1955, escreveu aquela que é considerada até hoje sua obra principal: “Pluft, o fantasminha”.

Maria Clara Machado possui todas suas peças publicadas, o que não é algo fácil. Também teve suas obras montadas no exterior e fundou a conhecida escola de teatro “O Tablado”. Quando se fala na autora, fala-se num nome importantíssimo para o teatro infantil e para o teatro em si. A autora definitivamente elevou o teatro infantil ao patamar de obra artística.

Maria Clara Machado negava com convicção a proposta de ensinar à criança, ao escrever para o teatro. Pensava que devia escrever uma peça para crianças assim como se escreve uma peça para adultos. Nas palavras da autora:

Eu acho que a gente não deve ensinar a criança numa peça. A gente deve montar uma peça como se monta uma de adulto: é um conflito, tem que haver um conflito na peça, é essencial na dramaturgia. (...) uma história tem que acontecer, trabalhar com a imaginação e a fantasia de uma

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maneira que depende do talento de cada um (...) tem que passar para o espectador um momento de poesia, uma sensação, (...) Quando escrevemos para crianças somos apenas aqueles que estão abrindo o caminho que vai do sonho à realidade. Estamos criando, através da arte e a partir do maravilhoso, a oportunidade do menino sentir que a vida pode ser bonita, feia, misteriosa, clara, escura, feita de sonhos e realidades.(13)

Penso que este pensamento de Maria Clara Machado continua a valer.

Ainda em nossa atualidade, seu nome é o principal a vir à cabeça da maioria das pessoas quando se fala em teatro infantil. Além do que, ainda hoje, muitas peças suas continuam a ser remontadas. Porém, depois da autora, outros nomes, principalmente de grupos, vieram a trazer um trabalho de qualidade para o teatro infantil. O crítico Carlos Augusto Nazareth destaca, nos anos 70, grupos como Ventoforte, de Ilo Krugli, Hombu, Navegando, Feliz Meu Bem e Manhas e Manias, por exemplo.

Segundo a crítica teatral Maria da Glória Lopes, a década de 70 traz uma diversificação de propostas cênicas, entre elas a importância do teatro de bonecos, a incursão no folclore e nas artes circences.(14)

Na mesma década de 70, a pesquisadora Maria Lúcia Pupo analisa espetáculos em São Paulo e destaca os mesmos equívocos que nos lembram o teatro escolar do passado, tais como: moralismos, didatismos, dramaturgia frágil, estereótipos, imagem infantil idiotizada, etc... (15)

Ou seja: continuamos com esforços pontuais na busca do desenvolvimento do teatro infantil, e não um painel forte e integrado de renovações.

Nazareth destaca na década de 80 dois momentos: o primeiro desanimador, pois os grupos antes mencionados extinguiam-se. O segundo, quando uma determinada empresa de refrigerantes resolveu investir no teatro infantil, provocando o surgimento de um boom deste. O teatro infantil apresentava diversos trabalhos com novos nomes e foi desenvolvendo grande qualidade. Após a retirada dos investimentos desta empresa houve novamente uma queda. Os grupos de qualidade não conseguiram manter-se de forma independente e um período de desalento dominou o cenário.

Neste momento difícil, alguns empresários e produtores interessados apenas em “comercializar produtos”, dominaram, de certa forma, o ambiente. Apesar de esforços raros, o painel do teatro infantil retrocedeu em seus poucos avanços anteriores.

Veremos as conseqüências agora, em nossa atualidade. Por sinal, a época correspondente ao foco de interesse nesta dissertação. (16)

Este breve histórico foi, de certa forma, uma possibilidade de reflexão, a fim de percebermos, entre outras questões, o porquê da fragilidade do teatro infantil nos dias atuais.

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1.2.2 Atualidade

Em 1995 Ilo Krugli, no I Seminário do texto teatral e do teatro na escola, realizado na Biblioteca Estadual Celso Kelly, depois que o público colocou suas preocupações, suas questões e sua visão da situação do teatro infantil no país, Ilo teve uma fala comovida:

“Ouvindo vocês falarem tenho a sensação de que nada fiz nestes trinta e cinco anos de trabalho, pois, quando comecei as reclamações eram as mesmas que ouço hoje... trinta e cinco anos depois”.

Hoje à tarde, assistindo a um espetáculo no RJ, tive exatamente a mesma sensação que Ilo Krugli, em 1995. Parece que nos meus vinte e cinco anos de trabalho com o teatro infantil nada mudou. E já tivemos momentos gloriosos mesmo de excepcional qualidade e excelência do teatro para crianças. (17)

Em uma pergunta feita por mim ao crítico, por e-mail, este me confirmou o péssimo painel atual do teatro infantil, além de afirmar a necessidade de se fazer algo para mudar esta situação, a partir do próprio sentimento de indignação.

Salvo uma minoria de artistas e organizações como o CBTIJ, CEPETIN e CRTI, o que resta são pessoas sem nenhum trabalho de pesquisa, má formação teatral e isentas de certos escrúpulos, visto que a única preocupação consiste em “caçar alguns níqueis”.

O crítico alerta para a necessidade de discutir mais sobre o assunto nas academias, meios de comunicação, órgãos públicos, etc... (18)

O público está escasso e no momento que o espectador presencia uma encenação equivocada naturalmente se afasta mais ainda do teatro. Assim, não se consolida nunca uma formação de platéia.

Um ponto em comum, entre o mesmo crítico e Maria Helena Kühner, dramaturga e ensaísta, consiste no fato de que não há uma dramaturgia inédita acontecendo nos palcos. Nazareth observa em seu artigo “Por uma dramaturgia renovadora” a necessidade de arriscar e ousar mais. Ao mesmo tempo, reitera a questão do novo ser visto sempre como alvo de desconfiança. Além disto, afirma a proposição de que ainda há muito para se discutir sobre questões essenciais e básicas do teatro para crianças. Estas questões básicas ainda não foram completamente exauridas. Por isto ainda restam perguntas tais como: qual tipo de espetáculo é capaz de agradar tanto ao público como ao crítico? Que qualidades este espetáculo deve possuir? Qual o universo hoje da criança? Ou o que é realmente um espetáculo infantil?

Lembremos que o teatro engloba um texto e uma cena, portanto as discussões se ampliam. Pondero, para não sermos demasiado pessimistas, que se não há um ineditismo, há

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esforços para se fazer algo de qualidade. Afinal, como foi visto, a história do teatro infantil é recente.

Os estudiosos sobre o assunto em atividade, (críticos e artistas), como os já citados Kühner e Nazareth, além de outros nomes como Maria Aparecida de Souza, Lourival de Andrade Jr., Maria Lúcia Pupo, Valmor Beltrame, entre outros, concordam com o fato de que muito do que já foi apontado como ultrapassado e equivocado na linguagem cênica para crianças, continua no palco ainda hoje (e aqui inclui - se a dramaturgia também).

Uma obra crítica de referência para o teatro infantil foi o livro de Maria Lúcia Pupo “No reino da desigualdade: teatro infantil nos anos 70 em São Paulo”, onde a pesquisadora destacava equívocos na linguagem teatral para as crianças. Infelizmente, estes mesmos equívocos continuam a acontecer e deixam indignados estudiosos e artistas que procuram fazer um trabalho sério.

Maria Aparecida de Souza, em seu artigo “Teatro infantil ou teatro para crianças?” (19), além de Maria Helena Kühner, em seu artigo “Dramaturgia-hoje e sempre” (20), evidenciam este despropósito já observado por Pupo nos anos 70. Algo muito mais sério do que falhas técnicas em um texto dramático. Os equívocos observados relacionam-se fundamentalmente com fatores culturais. Em primeiro lugar, a própria mentalidade cultural caracteriza-se pela desvalorização da criança. Como a criança é um ser humano dependente dos adultos (a princípio), estes acabam tendo dificuldades de enxergá-la como um ser humano potente e dono de um universo próprio. É claro que não estão sendo desconsideradas as relações e interações desta criança com o meio em que vive, mas frisa-se a importância do adulto ver a criança como detentora também de um ponto de vista particular. Não mais vê-la como um ser humano menor, somente como um projeto de adulto. A criança não é um vir a ser, ela está sendo. Seu momento é o momento presente. Assim, o adulto se livra um pouco da posição autoritária de que sabe sempre mais do que a criança, simplesmente porque a sustenta economicamente ou porque tem mais conhecimentos. Desta forma, seria também possível conhecer um pouco mais sobre aquilo que diz respeito ao universo próprio desta criança, e conseqüentemente fazer um teatro que tenha uma dramaturgia que a toque, que realmente se dirija a ela.

Este pensamento já foi abordado pela professora e pesquisadora Dra. Eliana Yunes, em sua tese de doutorado intitulada “A infância e infâncias brasileiras: a representação da criança na literatura”. (21) A autora analisa “a dominação do adulto enquanto ‘construtor’ da obra artística sobre e para a criança, mas não num diálogo com a criança”. (22) Yunes escreve:

O que passa a ocorrer em certas obras de certos autores que revolucionam o conceito de infantil em relação à literatura é que a linguagem da obra de arte passa a incluir a criança e sua perspectiva de mundo como parte estruturante da narrativa. Desaparecem os textos fáceis, recupera-se o humor inteligente, a percepção das crises humanas não como conseqüência do viver adulto, mas vivenciadas pela própria infância que participa. (23)

Um exemplo apontado pela pesquisadora é o renomado autor Monteiro Lobato. Em suas obras é evidente a autonomia de pensamento e ação presentes na criança.

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Assim não haveria mais necessidade, como a maioria dos estudiosos verifica, da busca frenética do riso, por exemplo, ou uma movimentação excessiva para “prender a atenção” da criança. Ou ainda uma linguagem infantilizada como se ela pudesse melhorar a comunicação. Terminaria a constante de explicações em cena (incluo aqui o problema no texto também) e, ao invés disto, a encenação e o lúdico ganhariam força.

O pior ainda pode acontecer: quando as cenas são feitas e explicadas simultaneamente, numa redundância absurda, ao pensar que a criança não será capaz de perceber o que está sucedendo no palco. E mais: finalmente acabaria o propósito freqüente de ensinar uma mensagem de bons costumes em cada peça teatral. Porque, penso eu, os clichês e estereótipos dizem mais respeito a nós mesmos, adultos, do que ao mundo da criança.

Kühner afirma, no já citado, “Dramaturgia-hoje e sempre”, que se não temos o que contar, nós acabamos disfarçando nossa falta no como contar. E aí, naturalmente, teremos uma concepção cênica equivocada, devido à própria ausência anterior ao realizado. Ter algo importante a contar é primordial.

Para fazer uma dramaturgia de qualidade para crianças é necessário, antes de tudo, conseguir olhá-las como sujeitos inteiros e não meros “apêndices” do mundo adulto. Não é uma tarefa fácil, pois, naturalmente, as vemos sob uma ótica adulta. É necessário tentar ver sob o olhar do outro, e neste caso, tentar ver pelo olhar da criança. E este é um exercício essencialmente teatral; afinal, o teatro não prescinde do outro, ele é inclusivo e generoso por natureza. Se há uma falha no fazer teatro para crianças, há primeiramente uma falha no fazer teatro em si.

Por isto, a importância da análise dos textos teatrais, (o foco e instrumento de minha pesquisa), mas percebo que é impossível analisá-los sem refletir sobre estas questões referidas anteriormente. Estão intrinsecamente ligadas. Ler um texto de dramaturgia para crianças é ler o teatro em si (e tudo que o engloba) e é também ler a criança. E conseqüentemente, leremos também como o adulto lê esta criança, visto que, em geral, este teatro é feito por adultos.

No que se refere à dramaturgia em si, será possível encontrar textos que se dirigem à criança de uma forma que a desvaloriza e mesmo diminua (devido aos equívocos citados acima) e também ressaltar falhas no que diz respeito à estrutura dramática em si (o aspecto formal).

Em referência a este último aspecto, percebo, através da análise do acervo de críticas de Carlos Augusto Nazareth para o Jornal do Brasil, um aspecto freqüentemente destacado pelo crítico: a tendência atual de mesclar a narrativa e o drama na escrita. Muitas vezes, o texto perde teatralidade, assim como o espetáculo. O teatro, como já vimos, é o lugar para se ver, essencialmente. Já a narração, cuja característica predominante é a valorização da palavra em si, torna-se prejudicada nesta mescla, no momento que o ator tenta mostrar a cena.

Ou seja: nesta mistura de gêneros o equilíbrio se torna difícil e acaba não acontecendo, nem a “contação de histórias”, nem o teatro em sua plenitude. Não quero dizer que o crítico afirme a impossibilidade desta experiência obter êxito, mas para ele, é um equilíbrio difícil de ser atingido.

Outro fato evidenciado por Nazareth trata de um equívoco freqüente nas adaptações dos contos tradicionais, quando o dramaturgo se fixa na trama em si, e esquece o caráter simbólico do conto. Este caráter simbólico, por sinal, é o que justifica o conto de fadas ser contado e

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recontado até hoje. Ou seja: a seqüência da história de “O patinho feio”, por exemplo, pode ser toda mostrada em cenas, mas a questão primordial do conto enquanto essência simbólica não é vista, (o ser diferente, a conseqüente rejeição, a dificuldade de encontrar o seu próprio grupo etc...), é esquecida.

No caso de textos originais, e que por sinal são poucos, muitas vezes a dramaturgia é frágil. Estudiosos e mesmo escritores admitem a dificuldade em escrever um bom texto teatral. Verificamos na própria história escritores como Machado de Assis, por exemplo, que não conseguiram obter o mesmo êxito como dramaturgo e romancista.

O texto dramático se desenvolve através dos diálogos. A espinha dorsal do texto se estabelece no diálogo, tarefa árdua para o escritor. E o leitor /espectador não pode “ouvir um personagem” falando de forma incongruente com seu perfil (exceto seja proposital).

Quando escreve para teatro, o escritor deve colocar substancialmente sua escrita a serviço destes personagens. A escrita teatral já é compartilhada no próprio momento de sua criação. Mais tarde será compartilhada com diretor, atores, cenógrafo, figurinista etc... Estes profissionais irão mostrar aquela escrita em cena, e somente aí ela se estabelecerá em sua totalidade. E com a participação do público, naturalmente. O dramaturgo compartilha seu texto desde o início. Talvez, por todas estas questões citadas, seja freqüente o fato de muitos dramaturgos serem originariamente pessoas já pertencentes ao universo teatral, seja como atores ou diretores.

Nazareth verifica em suas críticas alguns fatores responsáveis pela fragilidade dos textos originais: um conflito mal estabelecido ou mesmo indefinido, uma ação dramática não bem desenvolvida, ou ainda personagens não bem delineadas ou estereotipadas. Fragilidades, por sinal, passíveis de serem encontradas em qualquer texto teatral, para crianças, jovens ou adultos, seja em originais, seja em adaptações.

Porém, reitero a raridade da presença de textos originais O predomínio de adaptações é marcante no teatro infantil. Por sinal, o mesmo ocorre hoje em relação ao teatro adulto. Há uma falta de dramaturgia original para ambos públicos.

No que se refere às adaptações, observa-se, muitas vezes, uma adaptação parcial dos textos narrativos (contos, romances, lendas, crônicas...) para o texto dramático. Quero dizer: às vezes o ator narra algumas partes (usando recursos teatrais naturalmente), às vezes mostra / faz a cena (propósito essencialmente teatral). Interessante, é que isto também está presente, em nossa atualidade, no teatro em geral, seja para qualquer faixa etária.

Em relação às adaptações infantis, Nazareth verifica (como já observado anteriormente) uma temática relacionada predominantemente às histórias dos contos tradicionais europeus ou às histórias de nossa cultura popular tradicional.

Resumindo: o crítico observa dois fatos atuais predominantes. Um aspecto referido à temática e outro referido à forma integrante de narrativa e drama.

Faço uma notação aqui importante. Quando me refiro à narração não pressuponho a simples presença de um narrador na peça teatral, pois o drama pode ter este recurso sem o comprometimento de sua teatralidade. Quando falo da tendência observada, falo de uma

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predominância da narração: uma aproximação com a narrativa oral cênica, mais conhecida como “contação de histórias” (mesmo que o ator utilize recursos teatrais).

No que diz respeito à temática, a dramaturga e ensaísta Maria Helena Kühner observa no livro “O teatro dito infantil” uma aproximação freqüente entre o universo da criança e o universo popular, talvez por ambos serem vistos como “menores” (sentido pejorativo) em nossa sociedade.

Concluo que estas são as tendências atuais mais relevantes, além de outras citadas por Kühner em seu artigo “Dramaturgia - hoje e sempre”. As outras referências renovadoras destacadas pela ensaísta são a presença do humor crítico e lúdico, da linguagem poética e lírica e a fusão de linguagens. No que diz respeito, à fusão de linguagens, a criação vai mais longe do que a mescla entre narração e drama; inclui ainda um diálogo do teatro com outras formas, tais como o circo e a performance, por exemplo.

Percebo através destes estudos que a questão hoje está predominantemente relacionada ao como fazer teatro. A renovação procurada está acontecendo por este caminho. E a própria Kühner afirma isto em suas colocações. Sabemos que não há regras de certo ou errado na arte, pois nela trabalhamos com experiências sutis, muitas vezes beirando limiares. Portanto, realmente nos parece “cansativo” (no sentido de que já foi muito visto) trabalhar com contos de fada ou lendas indígenas, por exemplo, mas dependendo da forma como o artista faz esta leitura, ele pode trazer ares novos e ser este trabalho muito interessante.

Outro exemplo: Carlos Augusto Nazareth defende em suas críticas a importância de uma dramaturgia essencialmente teatral (a predominância do mostrar), com a qual eu pessoalmente concordo. Afinal, este é o fundamento consistente do ato teatral. Ao mesmo tempo, o crítico pode reconhecer um espetáculo cuja característica consista na mescla de drama e narrativa como um bom espetáculo. Naquele momento, aquela forma de fazer se equilibrou e não foi capaz de prejudicar a teatralidade do espetáculo, resultando assim numa experiência bem sucedida.

Resumindo: não há uma regra fixa e que jamais possa ser alterada. São questões mais sutis e delicadas. Talvez, a única questão unânime a todos que fazem e/ou pesquisam teatro seja a presença do conflito, o fato da dramaturgia não prescindir deste, seja esta infantil ou adulta.

Aqui, toco num ponto crucial: quando discutimos dramaturgia para crianças, discutimos a dramaturgia em si. Ivanir Calado, em artigo intitulado “Seminário de dramaturgia para crianças e jovens”, para a revista “Sensibilidade e imaginação / Dramaturgia e Educação” do CBTIJ, afirma esta posição ao dizer que tecnicamente não há diferenças em escrever um bom texto teatral para crianças ou para adultos. A dúvida para o autor reside em relação ao conteúdo presente, se há ou não a necessidade de se ter um “cuidado” ao que se diz a este público infantil. A professora Eliana Yunes discorda desta posição. Em aula ministrada na Puc/RJ (24) , dirigida ao seu grupo de orientandos, a doutora afirmou a possibilidade de tratar diversos assuntos com a criança, tanto na literatura, quanto no teatro (25). A questão consiste no encontro da forma adequada à abordagem do tema. Apontou exemplos na literatura infantil: o já citado Lobato e a escritora Lygia Bojunga, onde temas considerados “fortes” para a criança são apresentados.

Ainda em relação a um aspecto formal, quero observar outra questão referente à dramaturgia fragmentada. Mesmo que a dramaturgia aristotélica ainda seja um parâmetro freqüente, é cada vez mais comum encontrarmos nos palcos esta dramaturgia fragmentada, onde não há um início, meio e fim determinados. No conjunto das críticas de Nazareth para o JB, o

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autor ressalta a atenção para a possibilidade de fragilidade e mesmo diluição de um espetáculo devido a uma fragmentação na narrativa dramática. O crítico acredita na estrutura aristotélica como fator de auxílio no teatro para crianças. Mas como disse antes, nas artes não há uma regra imutável e o mesmo crítico pode ser capaz de considerar bom um espetáculo cuja narrativa seja fragmentária. Porém alerta para a necessidade da presença de um fio de similitude nesta fragmentação.

Já a diretora de teatro Alice Koenow possui uma posição diversa. Em seu artigo “O alcance do teatro para crianças e adolescentes”, a diretora acredita que estas relações de causalidade e efeito são mais pertencentes ao universo adulto. A criança, possuidora basicamente de uma inteligência concreta, vivencia suas experiências no tempo presente, no aqui e agora. Logo, na opinião desta diretora, esta estrutura fragmentar não seria empecilho na apreensão teatral por esta criança.

Se não há regras fixas, a questão talvez resida num certo equilíbrio e em cada caso específico.

Um fato é unânime em todos os estudiosos da criança. De fato, a criança vivencia tudo como experiência própria. Ela parte da concretude das coisas, os conceitos só existem caso sejam vivenciados. E ela os apreende também pelos afetos. O pensamento abstrato não é natural para ela. Ela vai construindo este tipo de raciocínio aos poucos. Por isto, eu penso que o teatro é capaz de atrair muito a criança, devido a seu aspecto de concretude. O teatro é o espaço privilegiado da experiência concreta, do jogo, da vivência do aqui e agora. É o espaço do lúdico e o jogar é inerente à criança.

Falando da narrativa dramática para crianças, Alice Koenow faz algumas considerações que julgo serem interessantes registrar aqui. A diretora destaca que não é pelo fato de a criança possuir um universo de experiências concretas e sensoriais, que não podemos estimular o seu raciocínio abstrato, por exemplo. Ou seja: partimos de seu ponto de vista concreto, mas podemos estimular a abstração, a lógica.

Outra colocação de Koenow refere-se ao fato de a criança facilmente mesclar a realidade com a imaginação. Ela transita entre estes dois pólos com facilidade, e ao brincar vai recriando sua realidade, sua história.

Pessoalmente, verifico em minha pesquisa, que esta é uma marca crucial nos textos teatrais que tenho lido: esta abertura ao imaginário, ao sonho, à fantasia e ao devaneio. Penso que os dramaturgos trabalham em cima deste ponto basicamente. E talvez este seja o ponto com o qual todo adulto se encanta em relação ao universo “dito infantil”: esta possibilidade mais livre de criar e sonhar, e que, quando crescemos, não mais nos permitimos tanto. Os artistas são os adultos que continuam a trabalhar com esta abertura ao imaginário. Sua profissão legitima esta atitude particular.

Também é unânime entre os artistas e pesquisadores a importância de provocar a reflexão na criança. Mais do que ensinar valores é vital provocar a discussão e a autonomia para o questionamento. Penso que como o teatro (texto e cena) possui esta característica de um pensamento/palavra em ação, em atitude, é através da comoção que ele pode despertar o aspecto crítico. E mais do que nunca, a criança está aberta ao jogo do sentir e do vivenciar, muito mais do que nós adultos.

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São nestas direções que o texto/espetáculo teatral para crianças devem caminhar. No mais, há especulações, descobertas e experimentações. Caminhos a serem elaborados e percorridos. Realmente, os erros já citados e verificados podem ser evitados. Mas respostas firmes, neste tempo de incertezas, também são raras.

Concluindo: na atualidade, se verifica um painel de teatro infantil extremamente frágil, nebuloso e carente, onde um dos grandes problemas é a ausência de uma dramaturgia nova e forte. As adaptações dos “clássicos” são freqüentes e o destaque, em geral, acontece na busca de diferenciação nas encenações. E esta busca de fazer uma encenação diferente, a fim de parecer fazer algo inovador, nem sempre é bem sucedida.

Porém, há sim a presença de alguns nomes, mesmo em minoria, preocupados com uma investigação séria, dentro da proposta cênica e mesmo na dramaturgia. A presença da procura por novos caminhos de qualidade para o teatro não foi esgotada por completo. Felizmente. E assim apresentarei alguns nomes nesta minha pesquisa.

1.3 A busca de novos caminhos.

Procuro então, no registro que o teatro nos deixa (o seu texto), refletir sobre esta dramaturgia feita para crianças, nos tempos atuais. Como recorte para minha dissertação, elegi textos dramáticos escritos nos últimos dez anos, assim como privilegiei nomes de críticos em atividade como interlocutores. Por isto, determinados críticos são mais evidenciados do que de outros. Outra questão a frisar: existe pouco espaço para expor o trabalho crítico de teatro infantil, portanto raros artigos são encontrados.

Propositadamente, fiz um caminho não muito usual. Não assisti às encenações dos textos escolhidos por mim. Procurei analisar os textos em cima da teatralidade que suas escritas me revelam. E percorri este caminho, principalmente, porque a dramaturgia é considerada um ponto frágil no teatro infantil. Assim, me detive neste ponto. Porém, naturalmente, reflito sempre sobre uma cena teatral, pois mesmo não vendo a exibição do espetáculo, a escrita teatral, como já vimos, nos leva para um espaço cênico, através do imaginário.

Por isto foi fundamental para mim a escolha de textos essencialmente teatrais. Quero dizer: textos que evitem a já citada mescla entre narrativa e drama. Pessoalmente, penso ser importante privilegiar esta característica essencial do drama: a palavra que mostra. E já que esta característica está sendo minimizada nos palcos, decido ser importante resgatá-la.

Já que um dos grandes problemas atuais foi verificado, direta ou indiretamente, em relação à fragilidade da dramaturgia, optei por textos que me propusessem uma consistência de ação dramática e de seus elementos subjacentes. Uma dramaturgia frágil pode ser encontrada em qualquer texto teatral (para crianças, jovens ou adultos). E, penso eu, está relacionada também à falta de convivência com este tipo de texto. E isto pode e deve ser estimulado na escola, por exemplo. Porém, como não quis fazer a “crítica da crítica” e sim mostrar possibilidades afirmativas, optei por uma dramaturgia apresentada com um bom desenvolvimento. Até porque o problema mais grave e sério referente ao universo do teatro infantil diz respeito à forma desrespeitosa com que se trata a criança.

A falta de intimidade com o texto dramático é mais fácil de corrigir do que uma mentalidade cultural baseada numa visão da criança como um ser humano inferior, fácil de ser

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enganado. Ledo engano do adulto. A criança precisa de professora e não de “professorinha”, a criança precisa de teatro e não de “teatrinho”. Porque, na verdade, quem está sendo enganado e deixando-se enganar não é a criança, e sim o adulto. Afinal, quando a criança prefere não ir à escola ou ao teatro, talvez seja porque esta mesma escola e este mesmo teatro não estejam realmente dizendo nada a ela. Nada diferente do que a televisão, ou a internet possa dizer. Então a criança vai, naturalmente, preferir ficar na companhia destes últimos.

Há muitos anos, reclama-se da falta de público no teatro (inclusive adulto). Será que os artistas também não possuem uma parcela nesta responsabilidade? É necessária esta reflexão.

Voltando à escolha dos textos dramáticos para a leitura crítica, declaro a minha preferência pela escolha de textos originais, ao invés de adaptações. Porém, muitas vezes, estes textos originais são inspirados em referências literárias ou personalidades previamente conhecidas. E de certa formam recontam algo. Mas este é um fato difícil de se escapar no mundo contemporâneo, visto de forma geral em todas as manifestações artísticas. Procurei então evidenciar as formas mais criativas neste tipo de “releitura”, propiciando na verdade, uma leitura particular. Já que a crítica especializada reclama da falta de textos novos, penso ser mais proveitoso, neste momento, dispensar as adaptações.

No que se refere ao conteúdo existente na narrativa dramática, eu procurei trabalhar com textos que evidenciam a crítica, a discussão e os afetos. E não simplesmente coloquem a criança num lugar de passividade e alienação. Textos teatrais que se dirijam à criança respeitando o fato desta ser uma pessoa capacitada de potência e autonomia criativa.

Meus autores escolhidos são artistas que têm procurado fazer um trabalho de pesquisa e comprometimento com este universo infantil. Devido à necessidade de uma delimitação para a pesquisa, detive-me na análise de textos de autores cariocas.

Com certeza, não terei respostas prontas nestas análises, mas reflexões sobre a busca de um teatro que valorize acima de tudo a criança. Um teatro que seja merecedor desta criança, ou lendo/fazendo o texto teatral, ou assistindo ao espetáculo.

Considero também importante esta análise crítica e seu registro, pois se trata de uma área carente de pesquisas, o que mais uma vez comprova a desvalorização dos assuntos referentes ao universo infantil.

Parto da hipótese da existência de dramaturgos que tem procurado ares renovadores para o teatro. Ou seja: uma possibilidade de renovação, já na escrita, antes mesmo da encenação.

Não acredito que exista uma similitude generalizada entre estes autores, pois o atual ambiente dificulta esta possibilidade. Cada um dos textos escolhidos por mim possui uma linguagem e expressão particular. Penso que os pontos de confluência tenham sido calcados nos meus primeiros critérios de escolha abordados acima. Ou seja: os textos confluem basicamente na negação dos equívocos inadmissíveis. Naturalmente, de forma indireta, poderão ser observadas algumas semelhanças, principalmente por valorizarem a criança e seu universo.

Os três textos escolhidos funcionam como possíveis demonstrações de autores que vêm se destacando numa investigação teatral séria e com marcas autorais próprias.

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Os meus objetivos estão claramente fundados nos meus critérios de escolha, evidenciando outras possibilidades de resultados satisfatórios, ao invés de apontar os erros já verificados pela crítica especializada.

O objetivo maior em meu trabalho consiste em elevar o texto teatral infantil, e conseqüentemente o seu teatro, à condição de obra artística. Assim, quem se interessar pelo teatro adulto, por exemplo, poderá tirar proveito de minhas leituras, já que creio poder demonstrar uma aproximação entre a infância e a expressão artística. Veremos que a criança e sua inerente atividade lúdica irmanam-se facilmente ao jogo dramático.

O corpo de minha pesquisa compreende a leitura crítica dos textos “Lasanha e Ravióli in casa”, de Ana Barroso, Mônica Biel e Thereza Falcão, “Tuhu, o menino Villa-Lobos”, de Karen Acioly e “É proibido brincar”, de Luiz Paulo Corrêa e Castro.

Em cada um deles, irei verificar e refletir sobre suas propostas renovadoras e suas relações com o teatro e a infância.

Digo, de antemão, que encontro presentes nestes textos algumas das tendências renovadoras observadas por Maria Helena Kühner, tais como: o humor lúdico e crítico, a linguagem poética e a mescla de linguagens teatrais.

Minha metodologia baseou-se no levantamento crítico do teatro infantil, na reflexão sobre a visão de mundo da criança, além de leituras sobre a linguagem teatral, oferecendo um diálogo entre os discursos artísticos, teóricos e críticos. Como já foi visto nesta introdução, são apresentados nomes de estudiosos ligados tanto ao mundo infantil, como outros nomes relacionados ao teatro e à arte em si.

Proponho-me analisar a dramaturgia e conseqüentemente o teatro infantil, mas antes de tudo, discutir dramaturgia, teatro e arte.

Também espero que a leitura seja prazerosa. Como já disse Peter Brook, em “A porta aberta” (26), o tédio é a única coisa proibida no teatro. E, penso eu, também em seus estudos.

Termino esta introdução com algumas palavras do dramaturgo e poeta Federico Garcia Lorca sobre o teatro:

Todos os dias ouço falar da crise do teatro, e penso sempre que o mal não está diante dos nossos olhos, mas sim no mais obscuro da sua essência; não é um mal de flor atual, mas de raiz profunda, ou seja, o mal não está nas obras mas sim na própria organização. (...) É o teatro que deve impor-se ao público, e não o público ao teatro. (...) Arte acima de tudo. Arte nobilíssima (...) No teatro mais modesto como no mais elevado deve sempre escrever-se a palavra “Arte” na sala e nos camarins, porque senão teremos de escrever a palavra “Comércio” (...) Sei que a verdade não a detém aquele que repete “hoje, hoje, hoje” enquanto come o seu pão junto à lareira, mas sim o que serenamente olha à distância as primeiras luzes da alvorada no campo. Sei que não tem razão aquele que diz “Agora mesmo, agora, agora” com os olhos postos na garganta estreita da

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bilheteria, mas o que diz “Amanhã, amanhã, amanhã” e sente aproximar-se a vida nova que avança sobre o mundo. (27)

Notas de Rodapé 1. Pirandello apud Nazareth, em As diversas linguagens no teatro infantil, publicado no Blog Vertente Cultural. 2. Informação obtida ao assistir a palestra de ambos no Seminário “O que é qualidade em literatura e teatro infantil”, em 26/09/06, na UFF. 3. Em Leituras compartilhadas, ano 5, RJ: Leia Brasil/ Ediouro. 4. Ibidem, p. 45. 5. Araújo explica o “analfabetismo funcional” como um fenômeno ocorrente de forma freqüente no Brasil. Este fenômeno é verificado quando as pessoas são capazes de ler, mas não compreendem o que lêem. 6. Ibidem, p.46. 7. O JB é o jornal carioca que tem mais críticas do teatro infantil. Por isto, a consulta no acervo crítico de Nazareth é verificada em minha pesquisa. 8. Anchieta apud Sandroni, p. 20. 9. Pimentel apud Sandroni, p.35. 10. Góis apud Sandroni, p. 36. 11. Camargo apud Sandroni, p. 63. 12. Apud Sandroni, p. 67. 13. Apud Sandroni, p. 85. 14. Apud Nazareth, em artigo O teatro infantil e sua história. 15. Apud Maria Aparecida de Souza, em Teatro infantil ou teatro para crianças? 16. Minha seleção de textos dramáticos e críticos procurou situar-se nos últimos dez anos. Recorte escolhido para viabilizar a dissertação de mestrado. 17. Nazareth,em artigo denominado Uma tarde inesquecível, enviado por e-mail , mas encontrado no Blog Vertente Cultural, em 2006. 18. Ver artigo do autor denominado Balanço Teatral Infantil 2005. Encontrado no Blog Vertente Cultural. 19. Artigo publicado na Revista n. 4 Fenatib, porém encontrado no site do CBTIJ. 20. Publicado no site Vertente Cultural. 21. Tese de doutorado na PUC/RJ, em 1985 e atualmente em vias de publicação. 22. Ibidem, p.5. 23. Ibidem, p.310-311. 24. Aula ministrada no segundo semestre de 2006. 25. Yunes também já foi crítica de teatro infantil do JB. 26. Brook, Peter. A porta aberta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. 27. Lorca. Conversa sobre teatro. Extraído de Teatro Moderno, de Luiz Francisco Rebello, 1964, porém encontrado em Cadernos de teatro, da Editora d’O Tablado, RJ, s/ano.

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Capítulo 2 -“Lasanha e Ravióli in casa” ou O riso da crítica (28)

O palhaço é a figura cômica por excelência. Ele é a mais enlouquecida expressão da comicidade: é tragicamente

cômico. Tudo que é alucinante, violento, excêntrico e absurdo é próprio do palhaço. Ele não tem nenhum

compromisso com qualquer aparência de realidade. O palhaço é comicidade pura.

Alice Viveiros de Castro. (29)

O primeiro texto de minha análise chama-se “Lasanha e Ravióli in casa”, autoria de Ana Barroso, Mônica Biel e Thereza Falcão. O texto data de 1999 e estreou no Rio de Janeiro em 2000, sendo encenado até o ano de 2006, em comemoração da parceria da dupla de intérpretes. Ana Barroso e Mônica Biel são além de dramaturgas, atrizes e diretoras. Thereza Falcão, além de dramaturga, é roteirista de televisão, atriz e diretora teatral, já tendo dirigido inclusive um espetáculo da dupla de atrizes, “Riquet, o Topetudo”.

Ana Barroso e Mônica Biel completaram em 2006 dezesseis anos de parceria, com um trabalho de forte proposta autoral. O trabalho da dupla consiste também no reconto de contos de fadas. Mas possui alguns diferenciais, o que valoriza a importância da análise de seu trabalho e em específico o texto escolhido nesta dissertação. E por isto a dupla tem conquistado a crítica especializada e tem um público já cativo.

Primeiro ponto a destacar no trabalho da dupla: não é a simples dramatização de contos de fadas e sim a dramatização de dois palhaços - atores fazendo a dramatização de contos de fadas. Neste percurso, a dupla já traz uma renovação para o assunto ao fundirem a linguagem do palhaço com a do ator e conseqüentemente a do circo com o teatro.

Segundo: a dupla utiliza um humor bastante lúdico e crítico. Usa o humor ingênuo da linguagem dos palhaços; no entanto abdica dos possíveis excessos de movimentação corporal que estas figuras poderiam ter. As atrizes e autoras aproveitam neste tipo de linguagem justamente o jogo essencial existente na relação entre os palhaços: o código lúdico entre estas figuras - personagens.

Outro aspecto importante é o humor crítico da dupla. Em nenhum momento elas apelam para o riso fácil que desvaloriza a inteligência da criança. O palhaço é um personagem altamente crítico em sua aparente ingenuidade. Ele ri e nos faz rir de uma situação muitas vezes patética.

No caso aqui referido, as atrizes Mônica Biel (Lasanha) e Ana Barroso (Ravióli) são palhaços - atores. Portanto, interpretam palhaços, que por sua vez, interpretam outros personagens. Como autoras, trabalham com o reconto utilizando a fusão das linguagens circo-teatro e da manipulação de bonecos com diferentes contos de fadas conhecidos do público, como “Riquet, o Topetudo”. Já em “A História de Catarina”, os palhaços elaboram um conto de fadas de autoria própria, ainda que este possua os elementos de todo conto de fadas tradicional.

O texto que escolhi para fazer minha leitura crítica (“Lasanha e Ravióli in casa”) foi eleito, entre outros textos das autoras (“Riquet, o Topetudo”, “A história de Catarina”) por se afastar do reconto como princípio fundamental e se aproximar do fazer teatral como história a contar, mostrando a seu público o processo criativo do artista e o ensaio de uma peça. Vejo este texto como original na dramaturgia para crianças, não somente por não ser uma adaptação fiel

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de “Chapeuzinho Vermelho”, mas sim por ser uma história sobre como encenar uma peça teatral. Este tipo de trabalho pode ser já conhecido do público adulto, mas não é comum para as crianças.

“Lasanha e Ravióli in casa” mostra fundamentalmente os conflitos e o prazer existentes no processo da criação teatral. “Chapeuzinho Vermelho”, o texto escolhido pela dupla de palhaços para fazer seu espetáculo, é quase um detalhe, pois o que importa é mostrar para a criança o ensaio de uma peça. Na verdade, poderia, inclusive, ser eleito outro conto de fadas; afinal o mais interessante é ver os palhaços – atores discutirem seu processo de trabalho. O reconto aqui está a serviço do metateatro. E ao assumir esta proposta, o texto brinca à vontade com o remexer na história de “Chapeuzinho Vermelho”, sem nenhum pudor. Aqui não há a obrigatoriedade de retratar fielmente a trama ou a essência do conto, visto que o propósito textual é mostrar à criança a carpintaria teatral, o como as cenas vão sendo construídas no teatro. Mas com inteligência e crítica, a própria dupla de palhaços - atores discute os limites possíveis na modificação do conto, até onde pode ir a transformação da história ao ser apropriada por eles. E então, vão sendo mostrados na peça aspectos e discussões inerentes a um processo de ensaio teatral: a discussão sobre o texto e direção das cenas, já que Lasanha e Ravióli escrevem e dirigem também seus espetáculos; a escolha e caracterização das personagens (como são apenas dois atores eles tem que fazer mais de um papel), além da atuação de cada um, etc... E mais: tudo aquilo que advém desse processo, como as mágoas pelas críticas feitas ao trabalho do outro, discussões na busca do consenso e o bloqueio de um ator ao fazer um personagem (Ravióli tem medo de fazer o Lobo Mau).

Cito aqui dois trechos da peça representativos dos comentários já feitos:

Primeiro:

Lasanha- (...) Eu vou fazer a Dona Maria Chapéu! Vou começar. (Muda a voz) Chapeuzinhoooooooo! Leva estes docinhos para a sua vovozinha. Cuidadosinho, porque o Lobinho Mauzinho, pode estar pertinho... Ravióli- Lasanha, isso é muito ruim! Lasanha, isso é ruim demais! Lasanha, isso é péssimo! Lasanha- (Magoada) Assim não tem condição. Assim eu não consigo criar! Faz você então. Ravióli- Tudo bem. Tudo bem. Repare na naturalidade da minha interpretação. (Fazendo a mãe) Ô Chapéu, vem cá, minha filha! Leva estes doces aí pra tua avó! Mas se liga! O lobo é mauzão e pode estar na área. Lasanha- Ravióli, isso é muito ruim! Ravióli, isso é ruim demais! Ravióli, isso é péssimo! Os dois param o ensaio, sentam em volta da mesa do café, sem se falar. Clima de briga. Aos poucos vão fazendo as pazes. (...) (30)

Segundo:

Ravióli- E o lobo mau passeia aqui por perto... (Olha para os lados) Ai meu Deus! Se a Lasanha vai fazer a Chapeuzinho, isso quer dizer que eu vou fazer o Lobo Mau! Ah não! Ah não! O papel do Lobo eu não vou fazer não! Eu

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tenho horros de Lobo Mau! Quando eu era pequeno, eu tinha uma coisa chamada lobofabia, me dava uma coceira danada! Ah não! (Fica cada vez mais nervoso) Não vou fazer nem a pau! Não vou fazer nem a pau! (É interrompido por Lasanha que volta à cena) Lasanha- Para Ravióli! Para com isso! Para!!! Senta aí! Fica quieto! Fica calmo! (Ravióli senta e se acalma) Não é de verdade não! É só um personagem! Ravióli, presta atenção: Ator é ator, personagem é personagem, você é um ator, o lobo é um personagem, entendeu? E não vai fazer o Lobo porquê? Vai passar o resto da vida fazendo fadinha, é? Topetudinho? Clarabelinha? Tem que enfrentar um desafio! Fazer um personagem! Fazer um Lobo Mau! (Imitando o Ravióli) Não vou fazer o Lobo! Não vou fazer o Lobo! Ah! Que que há! Assim é fácil, né? Assim qualquer um... Ravióli- Tá bem. Tá bem. Eu vou fazer o Lobo. Eu vou fazer o Lobo Mau. Lasanha- Eu acho bom... (31)

O reconto aqui é quase um pretexto para mostrar o processo de ensaio teatral. Por isto não há problema na alteração da trama, inclusive porque o texto possui um caráter de paródia, predominando a ironia.

Outro ponto interessante no texto é o fato de mostrar na ficção aspectos evidenciados na realidade pela crítica teatral, como a saturação da dramatização dos contos de fadas e a busca para resolver esta mesmice numa diferenciação do fazer teatral. E como se sabe, muitas vezes este como fazer diferente pode ser apenas um blefe para esconder uma fragilidade no que se quer contar, resultando assim em um grande equívoco.

No caso de “Lasanha e Ravióli in casa” a proposta dá certo, pois o como fazer não consiste em adornos superficiais, mas sim numa proposta consistente de linguagem textual e teatral. O texto, de certa forma, discute questões inerentes ao teatro e ao panorama do teatro para crianças na atualidade. É uma obra que se alimenta da reflexão e crítica teatral e a transforma em material artístico. O metateatro acontece não somente por conter uma história dentro da outra, mas essencialmente por ser uma dramaturgia que pensa o próprio teatro (texto e cena).

Para exemplo de minha leitura, cito aqui outro trecho da peça:

Ravióli- Era o jornal! Lasanha- Ótimo. Lê aí as notícias... (...) Ravióli- Lasanha, olha só essa notícia. É sobre nós. Lasanha- Tá brincando? Ravióli- É sério! Ouve só: Lasanha e Ravióli comemoram 10 anos de parceria. Lasanha- Somos nós mesmos! Ravióli (lendo)- Lasanha e Ravióli, os palhaços atores de A história de Topetudo e A História de Catarina, comemoram 10 anos de trabalho juntos. É mesmo. Tinha me esquecido. Lasanha- Como será que eles souberam? Ravióli- Esse pessoal do jornal tem informantes por todo

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lado. Lasanha- Ravióli...eu acho que a gente devia pensar num espetáculo novo pra comemorar esta data. Ravióli- Ótimo! Eu já estava louco pra fazer uma peça nova. Mas fazer o quê? Lasanha- Não tenho a menor idéia. Ravióli- Mas dessa vez não pode ter nem fada nem bruxa...nem vaca, nem pata, nem príncipe, nem princesa... Lasanha- Mas, Ravióli, conto de fadas sem esses personagens não é conto de fadas. Ravióli- A gente podia fazer “Os três porquinhos”! Lasanha- Ah, não! Esses porquinhos ficam juntos o tempo todo. Eu faço um porquinho, você faz o segundo porquinho, quem vai fazer o terceiro porquinho? Ravióli- E se a gente fizesse uma adaptação e em vez de “Os três porquinhos” a gente montasse “Os dois porquinhos”? Lasanha- Não dá Ravióli. Não ia pegar bem. É que nem montar Branca de Neve e o anão. (...). (...) Lasanha- Não Ravióli, a gente podia fazer o Chapeuzinho vermelho. Ravióli- Ah não! Essa peça é muito batida, todo mundo monta! Lasanha- A gente podia dar um novo enfoque. Ravióli- Enfoque? O que é isso? Lasanha- Um novo enfoque, Ravióli, uma maneira diferente de contar, um jeito novo de mostrar... A gente muda! Ravióli- Tá bem...com um novo enfoque...pode ser... (32)

Lasanha e Ravióli iniciam seu trabalho lendo a história de “Chapeuzinho Vermelho” (um texto narrativo) para rememorá-la, mas logo a transportam para um texto dramático. Não há narração, tendência freqüente hoje em teatro para crianças, e sim dramatização. Os palhaços - atores transformam o texto narrativo fazendo as cenas, já como um primeiro ensaio de palco. As próprias discussões dos atores, referentes ao modo de elaborar as cenas são testadas e experimentadas na prática dramática. A escrita do conto será elaborada na prática de encenação.

“Lasanha e Ravióli in casa” é um texto contemporâneo no que diz respeito à forma de tratar o conteúdo da narrativa dramática, pois traz um olhar renovador sobre o tradicional conto, além de ser extremamente teatral pela linguagem cênica propiciada pela estrutura dramática.

A apreensão do teor do texto pela criança se dá pelo fato de a linguagem ser simples (jamais simplória) e teatral. A criança pequena pode não entender tudo, afinal as histórias vão se cruzando no texto (metateatro), além de os dois personagens palhaços fazerem num ritmo intenso mais de um personagem da história de “Chapeuzinho Vermelho”. Mas com certeza, a criança irá apreender a peça dentro de sua forma pessoal e com prazer, pois o jogo cênico acontece o tempo todo, envolto por palavras, sensações e afetos em processo de ação. Este aspecto lúdico presente no texto/cena e substrato próprio da criança a faz capaz de acompanhar a história.

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O processo de ensaio de Lasanha e Ravióli interpretando “Chapeuzinho Vermelho” vai sendo mostrado em cenas e este mostrar é a base do fazer teatro, por sinal, um fundamento que vem sendo esquecido, segundo a crítica especializada (Carlos Augusto Nazareth e Maria Helena Kuhner apontam esta questão freqüentemente, entre outros), devido à preferência à narração. Teatro é fazer para o outro ver e não relatar para o outro ouvir. Assim, o texto teatral “Lasanha e Ravióli in casa” se revela uma propícia iniciação da criança no universo teatral, tanto em sua palavra, como em sua conseqüente transposição para cena, e se torna um exemplar de proposta artística com forte característica autoral renovadora para a dramaturgia (e conseqüentemente o teatro) infantil.

2.1 - A fusão de linguagens: circo-teatro.

O teatro é um lugar onde o homem vai para subir e cai. Sua queda é uma oração. Há, no riso que acompanha o dom do corpo que despenca, um despojamento de si; há uma verdadeira santidade do palhaço. O acrobata que leva uma

queda executa a prova cômica da oferenda de nosso corpo ao espaço.

Valère Novarina. (33)

A dramaturga e ensaísta Maria Helena Kühner aponta, em seu artigo “Dramaturgia - hoje e sempre”, a fusão de linguagens como característica renovadora no panorama do teatro “dito infantil” (utilizo aqui as próprias palavras da ensaísta). Kühner destaca esta fusão muitas vezes presente na encenação em si e não na dramaturgia. Por exemplo, um grupo teatral pode fazer uma adaptação fiel (trama e essência de um conto tradicional europeu) e o diretor do espetáculo optar por uma linguagem cênica que mescle o teatro e a dança. Será uma opção cênica diferenciada (se será bem sucedida ou não, é outra questão), porém a dramaturgia seguirá de forma tradicional. Ou seja: terá um aspecto renovador no palco, apesar da escrita teatral não registrar esta renovação.

No caso de “Lasanha e Ravióli in casa”, esta fusão de linguagens ocorrerá como opção cênica, entretanto já se encontra presente de forma clara e consistente no próprio texto teatral.

Os personagens protagonistas do texto, como já foi dito, são dois palhaços - atores chamados Lasanha e Ravióli. Eles estão tomando café da manhã em sua casa e “descobrem” através do jornal que estão fazendo dez anos de trabalho juntos (fato já insólito). Decidem então montar um novo espetáculo teatral. Lasanha e Ravióli são personas palhaços que trabalham como atores. O cenário da casa deles é sugerido no texto com elementos prosaicos de qualquer casa, tais como: telefone, abatjour, vasinho de flores, porta-retratos, etc... Porém o chão é coberto por uma lona, material tipicamente circense.

O diálogo inicial dos personagens já revela o jogo lúdico e ingênuo dos palhaços, em que o que falam não importa muito; a graça será evidenciada em cena, com o ritmo dado pelos atores que interpretarão Lasanha e Ravióli. O diálogo simples sugere um ritmo bem marcado, típico do palhaço e do cômico, onde um segundo a mais ou a menos pode causar a perda da piada.

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Eis o trecho:

Lasanha- Ravióli... Ravióli- O quê? Lasanha- Passa o café. Ravióli- Toma. Lasanha- Ravióli... Ravióli- O quê? Lasanha- Passa o pão. Ravióli- Toma. Lasanha- Ravióli... Ravióli- O quê? Lasanha- Passa a manteiga. Ravióli- Toma! Toca a campainha. Olham-se. Lasanha- Ravióli... Ravióli- O quê? Lasanha- Estão tocando a campainha. Toca o segundo sinal. Dois toques de campainha. Ravióli- Você não vai abrir? Toca o terceiro sinal. Três toques de campainha. Lasanha- Não posso. Estou passando manteiga no pão. (34)

O diálogo em si não possui nada de especial, a forma das frases repetindo-se é o que acaba por revelar a graça, além do tratamento abusivo de Lasanha sobre Ravióli.

Lasanha chama Ravióli que sempre responde somente o quê? , e o primeiro vai ordenando passa isto, passa aquilo, numa exigência que parece durar o café da manhã inteiro, caso não fosse a campainha tocar. O segundo responde sempre com uma única palavra (toma), até que o último tomar vem escrito com um ponto de exclamação, o que sugere o fim da paciência de Ravióli.

Então é ele quem pergunta a Lasanha se não abrirá a porta (afinal a campainha já tocou várias vezes) e este responde que não pode porque simplesmente está passando manteiga no pão. Como se fosse impossível interromper esta prosaica ação.

O diálogo é ingênuo e também patético, novamente num jogo ritmado. A primeira vez que a campainha toca e eles param para se olhar também é algo típico do cômico, em que uma parada de ação ocorre sem motivo plausível (afinal o fato de uma campainha tocar não é motivo para a troca pausada de olhares) e isto ocasionará naturalmente a risada do público.

Outro detalhe interessante diz respeito aos toques da campainha da casa virem sempre após o toque de campainha característico do teatro. É notório o fato de que um espetáculo teatral começa após o sinal de um terceiro toque de campainha.

Assim, o próprio texto teatral já evidencia, de uma forma precisa e bem elaborada, esta fusão de linguagens entre o circo e o teatro e o cruzamento da realidade teatral com sua própria ficção.

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No acervo pessoal de críticas de Carlos Nazareth para o “Jornal do Brasil” (cedido gentilmente pelo próprio autor), o crítico caracteriza os espetáculos teatrais de Ana Barroso e Mônica Biel (responsáveis pela criação da dupla Lasanha e Ravióli) como espetáculos predominantemente marcados e valorizados pela performance dos atores. Concordo plenamente com esta colocação, pois esta fusão de linguagens envolvendo a persona palhaço necessita de uma boa desenvoltura do intérprete. Como já vi um espetáculo da dupla (“Riquet, Topetudo”), pude conferir a boa atuação das atrizes.

O texto estabelece uma ludicidade e uma comicidade que irão ser afirmadas através da cena feita no palco, porém os textos das autoras também oferecem uma escrita teatral consistente e bem desenvolvida. O fato de ser uma encenação pautada na marcante performance das atrizes não diminui a obra como dramaturgia em si, apenas a valoriza como um texto essencialmente teatral, onde as palavras clamam para serem corporificadas em cena.

Muitas vezes, espetáculos valorizados de forma extrema na performance da cena possuem um roteiro dramático frágil quando apenas lido, o que não ocorre com “Lasanha e Ravióli in casa”, vital já em sua escrita.

Retornando à questão da fusão de linguagens, verifico também nesta peça a utilização do teatro de bonecos. Neste tipo de expressão não me deterei em análises, pois esta é uma forma bastante corrente e estudada no teatro infantil.

Ademais, a linguagem clownesca é a que se revela como característica determinante no trabalho das artistas.

O fato de Lasanha e Ravióli, os protagonistas da peça, serem além de atores, também palhaços, fará toda uma diferença na expressão dramatúrgica, pois trará forçosamente consigo o segundo traço característico de “Lasanha e Ravióli in casa”: o humor lúdico, ingênuo, porém crítico e transgressor.

Por este tipo de humor característico do palhaço é que o texto teatral vai alterar sem piedade o reconto de “Chapeuzinho Vermelho”, podendo traí-lo assumidamente e não equivocadamente. Eu traio porque eu quero e não porque eu não sei ser fiel. Esta posição é uma opção estética. Como a maioria dos artistas de teatro para crianças só tem feito adaptações dos contos clássicos e não criado nada de “novo”, (dando apenas um novo enfoque), vamos assumir nossa “incapacidade” de contar algo totalmente inédito e mais: vamos rir de nossa própria “incapacidade”. Isto é o que o texto “Lasanha e Ravióli in casa” parece nos mostrar.

E o palhaço é capaz disso, pois ri de sua própria “idiotice”. E por isto o palhaço também é sério (sem ser sisudo), um pouco triste e muito corajoso. É preciso de muita coragem e inteligência para poder rir de si mesmo. É preciso não ter medo de parecer ridículo, de errar, de se desequilibrar. Caso observemos, o palhaço e os cômicos em geral possuem sempre em seu corpo algo de desequilíbrio, “um preste a cair”. E caem mesmo.

A dramaturgia de “Lasanha e Ravióli in casa” inova ao não ter medo de refletir e assumir o que está acontecendo no atual panorama do teatro infantil. Ela não disfarça que está inovando e ao não disfarçar, não blefar, ela acaba inovando.

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“Lasanha e Ravióli in casa” reflete este panorama do teatro infantil em seu próprio texto e aponta rindo: - “Olha! É isto o que a gente está fazendo! Mais nada. Então vamos rir de tudo isso, de nós mesmos?”

O palhaço, em geral, como bem observa Viveiros de Castro em seu livro “O elogio da bobagem” (35), se apresenta em dupla: um faz a bobagem e o outro aponta e ri. Não é? Na verdade, os palhaços se apresentam em dupla, pois representam a duplicidade do próprio ser humano, quando ele é capaz de observar a si mesmo em seu ato e neste olhar distanciado rir cruelmente de si próprio.

Das três peças teatrais escolhidas por mim para apresentar tendências de autores contemporâneos, na busca de novos caminhos para a dramaturgia e o teatro infantil, “Lasanha e Ravióli in casa” é o único texto que não possui a imagem da criança em sua trama. Mas ele possui esta figura do palhaço por quem naturalmente toda criança se sente atraída.

Através de todos os estudos feitos sobre a criança, sabemos que ela não possui um pensamento abstrato, lógico, a priori. Este vai sendo construído aos poucos e a própria aquisição e conhecimento da linguagem irá alimentar este desenvolvimento.

A criança, ao contrário, possui naturalmente uma inteligência concreta; ela vivencia o mundo tal como uma experiência própria. O que não pode ser vivenciado como gesto próprio não diz respeito ao seu mundo. E por isto também ela procura aproximar o que vê de si mesma. O boneco, por exemplo, é como um prolongamento de seu próprio corpo. Logo, por este raciocínio, ela não tem o distanciamento crítico que o adulto possui e que o cômico revela; porém ela se identifica com o aspecto lúdico que o palhaço tem: a possibilidade de jogo, de brincar, e daí sentir prazer. Por isto ela é capaz de se identificar com a figura cômica, em seu prazer e liberdade de brincar. Além do mais, o fato da figura do palhaço se desdobrar (trabalhando em dupla) facilita à criança a possibilidade de ver a situação com maior clareza, pois o reflexo é apontado, mostrado. A reflexão se torna, de certa forma, concreta.

Alice Viveiros de Castro, que faz uma pesquisa sobre os palhaços no livro anteriormente citado, escreve também sobre a fusão entre o circo e o teatro. Penso ser importante destacar aqui algumas observações.

A autora comenta o fato de o teatro, durante muito tempo, ter se esquecido de sua origem popular, comprometido com ideais ditos nobres, vinculados a um suposto bom gosto e refinamento instrutivo, assim como as Belas Artes e também a Música. De outro lado, o circo ficou à margem: afinal não possuía nenhuma função a não ser provocar o riso. Era visto como algo grotesco, mero divertimento, sem nenhum valor artístico, sem expressão que pudesse enobrecer o povo ou ensinar-lhe algo; logo não poderia ser considerado como arte. Viveiros de Castro esclarece ainda que a arte circense tornou-se a última expressão artística a ter seus ensinamentos formalizados. Sua tradição era passada oralmente em geral dentro da família. Afinal, as próprias elites não se interessavam por um registro de algo visto como inútil.

Mais tarde, espíritos vanguardistas europeus, ao perceberem que o teatro estava se tornando “clássico demais e por isto quase morto”, resolveram reavivá-lo, buscando sua origem saltimbanca, aproximando-o assim do circo e das feiras. Castro se refere então a nomes como Karl Valentim, Brecht, Gordon Craig, Piscator, Meyerhold e Jean Cocteau. Em contrapartida, o circo também foi influenciado pelo teatro de forma positiva, procurando dentro de sua tradição algo renovador. Meyerhold dirigiu inclusive a primeira Escola de Circo de Moscou, em 1926.

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Interessante é o fato de Viveiros de Castro dizer que o palhaço não é exclusividade do picadeiro. Temos esta impressão gravada em nossa memória pelo fato de ter sido no circo que o palhaço atingiu o status de protagonista. E realmente não conseguimos imaginar um circo sem palhaço.

A autora traz como exemplo Joe Grimaldi, famoso palhaço inglês que jamais pisou em um picadeiro e, no entanto, foi o responsável pela imagem física tradicional do palhaço: a pintura branca no rosto, as bochechas vermelhas, o enorme sorriso vermelho para cima (como que forçado), além da peruca de fios espetados. Esta figura estranha, que está em nosso imaginário até hoje, foi produzida por um palhaço dito de palco. O trabalho de Grimaldi também se relacionou com as pantomimas e o reconto das histórias de fadas. Curiosamente o trabalho de Ana Barroso e Mônica Biel tem se baseado tanto no reconto quanto na figura do clown. No que se refere às pantomimas inglesas, outro dado é o fato de as histórias não terem sido colocadas de forma adocicada, isto é: a violência e a crueldade existentes originariamente nos contos de fadas não foram suprimidas. O humor e o fantástico eram usados para o reconto destas histórias, por mais absurda que a situação pudesse parecer. Ademais, a graça existia no próprio absurdo e conseqüentemente a idéia de eliminar a crueldade presente nas histórias não era levada em conta.

A figura do palhaço é, em si mesma, cruel. Ao apontar o nosso ridículo, o nosso absurdo e ainda rirmos, mostramos nossa crueldade e nosso lado grotesco.

Em “Lasanha e Ravióli in casa” há uma passagem que mostra a natureza deste humor cruel do palhaço. Após as improvisações de Lasanha e Ravióli, já no final do texto, ambos sentam-se para comer algo, enquanto comentam sobre o espetáculo que irão fazer:

Ravióli- Aquela idéia de colocar o Juvenal até que foi boa, né? Lasanha- Foi ótima...mas, pelo amor de Deus, Ravióli, não repete a idéia da Fada! É muito ruim! Você... Ravióli- Pode deixar! Já entendi! Não vou botar... Ô Lasanha, você não acha que ficou muito diferente do conto, não? Lasanha- Não, não acho não. Ravióli- Mas você acha que as crianças vão entender? Lasanha- Ah, Ravióli... tem Chapeuzinho, tem Lobo Mau... vão entender, sim. Ah... também se não entender, dane-se... (36 )

Confesso que eu mesmo quando li este trecho, e especialmente a última frase de Lasanha, tive receio em incluí-la em minha leitura. Depois, estudando e revendo os meus próprios conceitos e preconceitos sobre a criança, além do fato de que esta obra trabalha com a paródia e o humor clownesco, vi que a tal frase de Lasanha revela este tipo de humor cruel, onde não há lugar para paternalismos e cuidados excessivos com a criança. E daí resulta: “Ah! Se ela não entender o problema é dela”.

E nós, adultos, entendemos tudo o que se passa à nossa volta? Mais uma vez o texto “Lasanha e Ravióli in casa” revela uma reflexão constante do trabalho de quem escreve e ou trabalha com crianças. Será que elas vão entender? Mas elas têm que entender tudo? Ou será que as crianças estão entendendo e nós adultos é que sempre diminuímos o entendimento delas?

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Será que estamos sendo demasiado inteligentes e ou sofisticados para as crianças? Outra vez as colocamos numa posição de inferioridade.

Caso contrário, não nos importando em demasia com elas, sem dar muitas explicações ou ensinamentos, temos medo de parecermos cruéis ou insensíveis. Ah! As crianças são tão frágeis e delicadas, que se nós adultos não explicarmos detalhadamente, passo a passo, como irão se orientar?

Então vem a figura de um palhaço, cômico por natureza e diz: “Ah... também se não entender, dane-se...”

Em “O elogio da bobagem”, Viveiros de Castro dedica um de seus capítulos à questão ética do riso.

Em tempos politicamente corretos, todos perguntam os limites que devem conter as telenovelas, a importância de mensagens positivas nos filmes ou a posição política e ética dos livros. Ainda mais, quando o público a que se destina a produção é de crianças, ou mesmo adolescentes, público caracterizado como em processo de formação.

No que diz respeito ao teatro para crianças, a mesma dúvida existe. O dramaturgo Ivanir Calado, por exemplo, em seu artigo intitulado “Seminário de dramaturgia para crianças e jovens”, (37) para a revista do CBTIJ, confirma que não há diferenças técnicas entre uma dramaturgia para crianças ou uma dramaturgia para adultos. Ou seja: a forma como se escreve uma boa peça infantil tem os mesmos princípios da estrutura de uma boa peça para adultos. Mas, apesar do perigo moralizante e didático já verificado na história do teatro infantil e apontado como um equívoco, o autor tem dúvidas sobre ter cuidado ou não com o que se escreve para crianças. Deve-se vigiar o conteúdo das obras direcionadas a este público? Ivanir Calado faz esta pergunta a si mesmo quando escreve. Esta dúvida acaba ocorrendo devido à falta de limites e parâmetros na nossa própria realidade. O dramaturgo ressalta a questão da violência. Há tanta violência hoje, em nossa realidade, que Calado questiona se deve ou não controlar a violência em sua obra teatral.

Esta é uma questão que suscita dúvidas e controvérsias naturalmente, mas não se deve, em minha opinião, passar para a ficção (seja teatro, literatura, cinema ou qualquer outra expressão artística) a responsabilidade de resolver o que a sociedade não consegue delimitar na realidade. O terreno da arte e da ficção foi sempre o terreno da liberdade e é por isto mesmo que a arte é necessária. Não se pode, inverter os valores e oficializar para a arte uma função de nossa realidade social: a função de elaborar regras de valores e condutas para a melhor convivência possível entre os seres humanos.

Este é um ponto de discussão de qualquer trabalho artístico, mas levanto a questão neste momento, pois o humor do palhaço é justamente um humor transgressor. O riso é sempre transgressor, cruel. Caso limitemos nossa expressão artística ao dito politicamente correto, não haverá mais lugar para a liberdade de criação, principalmente para o humor, forma de expressão característica na dramaturgia e no teatro de artistas como Ana Barroso, Mônica Biel e Thereza Falcão.

Há, inclusive, uma ironia claramente expressa sobre este assunto presente na dramaturgia de “Lasanha e Ravióli in casa”. O trecho consiste na conversa final entre o Caçador e Chapeuzinho:

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Caçador- Sabe que tu és uma gatinha... Chapeuzinho- Você acha? Caçador- Bah! Chapeuzinho- E você é... forte, hein? Derrubar o Lobo, assim... Caçador- É que eu sou o caçador, ‘forte e corajoso’, já viu, né? Chapeuzinho- Mas você não vai matá-lo, não é? Caçador- Não! Eu sou um caçador moderno, sou do bem, eu sou da paz! Eu vou dar um outro enfoque! Vou levar o Lobo para uma reserva florestal, de onde ele nunca mais vai conseguir sair. Lá ele não fará mal a ninguém e estará em meio à natureza que é o seu lugar! Chapeuzinho- Ah! Que bom! (38)

Viveiros de Castro diz sobre o humor característico do palhaço: “O palhaço é um transgressor, um excêntrico; está fora dos eixos, das regras, da lógica, do bom senso, do bom gosto e das boas maneiras”. (39)

Ou seja: o excesso de arte politicamente correta e “comprometida” - o que na verdade revela um grande moralismo para um mundo que perdeu as rédeas em seu cotidiano real – deixa no ar a pergunta: onde haverá espaço para a fantasia, e em especial para este humor muito bem colocado por Viveiros de Castro?

O humor pode ser crítico e transgressor com a realidade circundante, subversivo em sua forma: cruel, excêntrica, rebelde. O “bom moço”, observemos, jamais é bem humorado. E não esqueçamos que ficção é ficção, realidade é realidade.

Estudando a fusão de linguagens circo-teatro, Viveiros de Castro se refere a Jacques Lecoq e Philippe Gaulier como os precursores deste tipo de trabalho.

Palhaço, bufão, clown, bobo da Corte, todos são nomes referentes ao papel do cômico, aquele que faz rir, provoca a graça, como primeira e última intenção. Mas quando se refere ao palhaço de palco, não nascido no circo, que aprendeu as técnicas em escolas e cursos, convencionou-se chamá-lo de clown.

O clown busca a origem do palhaço de picadeiro, mas o transforma em certos aspectos. No que diz respeito ao humor, por exemplo, o clown possui um humor menos rasgado, menos óbvio (não há nenhum tom pejorativo no uso desta palavra), do que o humor apresentado no palhaço de picadeiro.

No que toca ao trabalho corporal, o palhaço de palco dará menos valor ao aspecto acrobático, aos malabarismos típicos circenses e centrará mais sua performance no talento cômico, valorizando o trabalho do ator.

Viveiros de Castro explica que a graça do artista de circo consiste sempre na demonstração corporal de um fracasso. O palhaço sempre fracassa, por isto possui este jeito um pouco idiota, patético, e, de certa forma, até triste. O palhaço é triste porque parece um ser fracassado. Ele jamais “dá certo”, não consegue ser bem sucedido em seus projetos. Só que,

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como o olhar da comicidade não é o olhar da compaixão (como o olhar trágico) e sim o da crueldade, nós somos capazes de rir do fracassado (inclusive o próprio palhaço ri de si mesmo).

O clown vai se alimentar deste olhar e marcar em sua performance esta atitude do fracasso. Ou seja: com o talento cômico, ele vai evidenciar este fracasso. Como a pesquisadora coloca, não bastará fracassar, o artista terá que fracassar bem, afinal está em xeque o próprio jogo cênico: o jogo do ator. O clown terá que interpretar bem o personagem fracassado - o personagem palhaço.

Viveiros de Castro comenta ainda que a linguagem clownesca explodiu mundialmente nos anos noventa do século passado. Curiosamente, aqui no Brasil, a linguagem clownesca mesclou as influências européias com a inspiração do palhaço presente nos circos populares e nos folguedos do folclore nacional.

Os palhaços - atores da peça em estudo demonstram uma fusão interessante. Como nos próprios diálogos já exibidos aqui, além da própria caracterização proposta para o cenário, também descrita, observo que Lasanha e Ravióli são os típicos palhaços de palco, já que são também atores e evidenciam o humor inteligente. Porém, possuem ao mesmo tempo algo ingênuo, mesmo caipira. Como disse antes, o chão de sua casa é uma lona, material tipicamente circense e popular.

Em contraponto, esbanjam contemporaneidade, inclusive, ao demonstrar total lucidez sobre o atual momento do teatro carioca para crianças. Lasanha e Ravióli são também urbanos. O mais interessante consiste na observação de que este aspecto multifacetado de suas personalidades não as dilui, apenas valorizam-nas, tornando-as mais ricas ainda. Lasanha e Ravióli são simples, mas não são óbvios. Talvez isto demarque bem a diferença entre um arquétipo e um clichê. Estes personagens representam a persona palhaço, mas não se limitam aí, logo não se tornam clichês.

2.2 - A criança e o humor lúdico

Per ludum, per jocum.

Por brincadeira, por prazer. Alice Viveiros de Castro (40)

Através da análise da fusão da linguagem do circo com o teatro, evidenciei antes o papel do palhaço e o seu humor crítico. Aqui, quero tratar do humor lúdico, presente também na peça e na figura do palhaço. Penso ser importante analisar separadamente esta questão, pois estou tratando de uma dramaturgia direcionada especialmente à criança.

O humor crítico provém basicamente de dois pontos cruciais: o primeiro refere-se ao meta teatro, já que “Lasanha e Ravióli in casa” reflete artisticamente a própria crítica sobre o teatro feito para crianças; o segundo ponto relaciona-se ao arquétipo do palhaço, protagonista desta fusão entre o teatro e o circo. Este humor do palhaço, como exemplo de contraponto ao absurdo de nosso próprio mundo, aos nossos próprios comportamentos insensatos, favorece conseqüentemente o olhar crítico e irônico.

Agora quero refletir sobre o caráter humorístico que serve de elo entre a dramaturgia citada e a criança: o humor lúdico, já que é um traço de extrema relevância.

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É comprovada pela crítica especializada a presença cada vez maior de crianças pequenas em nossos teatros, crianças de quatro, três, até de dois anos, como espectadores. Consultei o acervo das críticas de Carlos Augusto Nazareth para o Jornal do Brasil e isto está mencionado várias vezes. Inclusive, a indicação, encontrada no mesmo Jornal do Brasil, referente ao espetáculo “Lasanha e Ravióli in casa” é para crianças a partir de três anos.

Logo, posso adiantar uma questão. Como a criança pequena, ainda em processo de aquisição da linguagem, irá presenciar e receber este humor crítico? A criança maior poderá perceber a piada contida nos diálogos, os pais idem. Mas, e as crianças menores? Para entendermos a piada, é preciso ter uma certa noção do contexto, não? Não é à toa que existe piada de português no Brasil e não no Uruguai. Uma criança na faixa etária de três anos possui uma forma concreta de pensamento, logo não terá um distanciamento crítico necessário para poder apreciar certas ironias.

Entretanto, o humor presente na dramaturgia é também lúdico, assim como a própria linguagem clownesca. Portanto, a criança que não compreender “tudo”, irá se divertir da mesma forma, melhor dizendo, da sua forma: a forma lúdica, sensível a toda criança.

A própria trama de “Lasanha e Ravióli in casa”, ao retratar um processo de criação de um espetáculo teatral, já provoca naturalmente o espírito lúdico. O fazer teatro é essencialmente um jogo lúdico, um “fazer de conta” com proposta artística. E a atividade preferida da criança consiste na atividade lúdica: brincar é vital para a criança.

Sara Kofman faz uma excelente relação entre a infância e a arte. A psicanalista escreve:

Pelo jogo dos processos psíquicos inconscientes, o jogo dos afetos em sua transformação, o das representações na combinatória, o artista tenta repetir o que a criança faz através de suas brincadeiras, antes que a razão e o julgamento lhe venham impor coações. O homem ‘reverenciado’que é o artista no fundo não é mais do que uma criança que dá aos outros homens a alegria de poder reencontrar, eles também, o paraíso da infância. (41)

A psicanalista acrescenta ainda que a criança desenvolve seu processo de linguagem e sistema psíquico através do jogo, e durante este mesmo processo de aquisição de linguagem, (o que a faz ingressar na cultura social), a criança começa a perder o humor, o cômico, traço característico do jogo. Ou seja: a criança vai se inserindo culturalmente através do jogo e durante esta mesma inserção, ela vai perdendo a capacidade de jogar, de brincar e de rir. A arte então propicia este resgate, o próprio resgate do prazer.

Quanto à atividade dramática especificamente, o pesquisador Peter Slade (42) afirma que o jogo dramático é para a criança uma capacidade vital. A criança experimenta a própria vida caracterizando certos papéis e sempre de forma emotiva, portanto, dramatizando. Inicialmente, percebemos a criança explorando estes momentos como tentativas isoladas, depois, verificamos a repetição de determinados gestos e emoções, como um ritual. A partir desta atividade, ela vai experimentando o próprio mundo e a si própria. Sua identidade vai sendo construída através deste ato dramático. Slade ainda explica que a criança pode direcionar este mesmo jogo para si própria ou para um grupo, mas seja qual a forma escolhida, o jogo dramático infantil em si é sempre caracterizado por uma absorção completa da criança naquele momento, assim como por uma absoluta sinceridade. Esta é decorrente da mesma sensação de absorção citada

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anteriormente; uma é inerente à outra. O momento de representação de um papel é vivido pela criança como uma experiência real e excitante. O autor chama a atenção para a própria origem da palavra drama, que vem do grego e quer dizer eu faço e luto.

Qualquer pessoa próxima a uma criança é capaz de observar que no momento em que a criança brinca, ela é capaz de imitar diversos gestos. Ela brinca que fala ao telefone, brinca com sua boneca fazendo uma segunda voz para esta boneca, etc... Nesta brincadeira a criança está representando e dramatizando. Depois, com a presença de outras crianças, elas estabelecem uma brincadeira conjunta onde cada um desempenha um papel e assim por diante. Com o passar do tempo e o processo de aquisição da linguagem, as brincadeiras tornam-se mais elaboradas, pois podem ser planejadas. Mas o prazer na representação é o mesmo.

E conseqüentemente, a apreciação de um espetáculo teatral vai ser também prazerosa, pois esta atividade lúdica diz respeito à criança. No caso da peça “Lasanha e Ravióli in casa”, ela irá vivenciar os palhaços fazendo os personagens de “Chapeuzinho Vermelho”, como ela mesma brinca de fazer outros personagens. A criança pequena pode não entender toda a história de forma lógica, mas irá apreciar aquela movimentação e troca de personagens. Esta ludicidade presente na dramaturgia irá prender a atenção e proporcionar prazer tanto para uma criança de três anos como para uma criança de sete anos, por exemplo.

Lasanha e Ravióli preparam sua casa para ensaiar com o mesmo prazer que a criança prepara o espaço em sua casa para brincar. Cito aqui um trecho da peça, quando os palhaços recebem em sua casa os figurinos e se encantam, da mesma forma que a criança se encanta com seu brinquedo:

Lasanha- Quem é? Ravióli- Os figurinos. Lasanha- Ah! (Vai atender a porta. Volta trazendo uma caixa de cadavez. São caixas de cores, formatos e tamanhos diferentes, cada uma com o nome de um personagem na tampa. Lasanha entrega a caixa a Ravióli, que vai colocando uma ao lado da outra.Enquanto dura esta arrumação das caixas, os dois falam num ritmo muito acelerado, de maneira que fica quase incompreensível para a platéia. Falam sobre as caixas, os formatos, etc. O que dizem não tem importância. Param de falar quando as caixas estão arrumadas). Lasanha- Que beleza! Está tudo aí! (Lendo a tampa da caixa) A Chapeuzinho! Ravióli- A Chapeuzinho! Lasanha- O Caçador! Ravióli- O Caçador! Lasanha- A Mãe! Ravióli- A Mãe! (43)

Aqui, aparece uma indicação de que neste momento não importa o que eles falam, o mais importante consiste na ação de arrumar as caixas e em todo o encantamento e entusiasmo ao verem os figurinos dos personagens. Depois, quando vão lendo os nomes nas caixas, a graça consiste (como no diálogo da abertura da peça), na repetição das palavras, de forma ritmada. Por sinal, presencia-se mais uma vez o peso da personalidade forte de Lasanha sobre Ravióli.

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Este encantamento do teatro e da brincadeira em si está presente em todo o texto de “Lasanha e Ravióli in casa”, o que indica uma teatralidade já presente na dramaturgia, pois a percebemos já em sua leitura, independentemente da encenação.

Regina Forneaut Monteiro, em seu livro “Jogos Dramáticos” (44), afirma o jogo como atividade inerente à criança, mas também ao homem adulto. Para a criança, a atividade lúdica é a sua forma de expressar-se no mundo: a sua própria linguagem. A criança faz da atividade lúdica uma atividade vital tão importante quanto se alimentar, por exemplo.

Já o adulto acaba reprimindo a importância desta atividade, ou, penso eu, a nossa sociedade acaba fazendo-o pensar que esta atividade é algo “mais pertencente” ao mundo infantil.

No entanto, Forneaut destaca justamente o contrário: o jogo é uma atividade não somente infantil, mas humana. A ludicidade também é importante para o adulto, pois através da capacidade de jogar, expressando-se através da imitação, o homem vai conhecendo seu próprio mundo e compreendendo-o, assim como a si mesmo.

A autora coloca como epígrafe, em sua introdução, um pensamento, de Johan Huizinga, expressivo destas afirmações:

... O drama, devido a seu caráter intrinsecamente funcional e devido ao fato de constituir uma ação, continua permanentemente ligado ao jogo. A própria linguagem reflete este laço indissolúvel. Drama é chamado ‘jogo’ e interpretá-lo é ‘jogar’. (45)

O “fazer de conta” propicia a criação de uma realidade própria, e esta possibilidade de vivenciar o mundo de outra forma representa, nada mais, nada menos, do que o encontro com a liberdade. Esta liberdade criativa faz também com que o homem reencontre sua espontaneidade. Para encontrar novas possibilidades de pensar o mundo e a si próprio, descobrir novas resoluções e mesmo novas indagações, o homem é obrigado a recuperar uma certa espontaneidade, pois o momento de criação é livre de pré-conceitos e julgamentos.

Forneaut desenvolve ainda a idéia de que esta espontaneidade é que fará o indivíduo ser capaz de atravessar o mundo real e tornar o mundo imaginário também real, ao fazer a brincadeira do “faz de conta”. A partir destas recriações o ser humano irá elaborar novas perspectivas de ações, pensamentos e afetos.

É uma pena que o adulto vá embotando esta capacidade de criar e jogar com a vida de forma afetuosa e emotiva, tão espontânea na criança pequena, não se permitindo mais este jogo. E como a própria autora reconhece, é necessário estar aberto, disponível a esta atividade lúdica.

Faço uma ressalva aqui: esta liberdade não significa ausência total de regras, mas sim a possibilidade de poder mudar as regras, reorganizá-las. A liberdade de criação e jogo significa também flexibilidade e relaxamento. Com rigidez é impossível jogar.

Portanto, este jogar, exercício fundamental do ser humano, criança ou adulto, artista ou não, é que fará com que o teatro continue perdurando e mantendo seu fascínio sobre as pessoas. Há uma frase que diz: melhor do que assistir teatro é fazer teatro.

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“Lasanha e Ravióli in casa” é um texto teatral que significa teatro já em suas letras, pela própria história que conta: um processo de criação teatral. Pode agradar tanto uma criança pequena, quanto uma criança maior, tanto aos pais desta criança, como também a seus avós.

Por sinal, é este caminho que estudiosos, como Maria Lúcia Pupo (46), defendem para o teatro infantil: o caminho da abertura de faixas etárias. Uma boa dramaturgia para crianças é antes de tudo uma boa dramaturgia, e um bom espetáculo teatral para crianças é antes de tudo um bom espetáculo teatral para todos. Esta idéia é compartilhada pelos artistas e críticos que buscam investigar o teatro para este público em especial, como os já citados Carlos Augusto Nazareth e Maria Helena Kühner, entre outros nomes.

2.3 - A paródia do próprio teatro infantil

Que eu seja um comediante - mas um comediante que pensa.

Charles Chaplin. (47)

Desenvolvo aqui um terceiro ponto que considero crucial na dramaturgia de “Lasanha e Ravióli in casa”: o tom de paródia encontrado no texto das autoras.

Como disse antes, um ponto delicado apontado por Carlos Augusto Nazareth em seu trabalho como crítico para o “Jornal do Brasil”, diz respeito à adaptação dos contos de fadas para o teatro infantil.

O crítico aponta a freqüência de equívocos presentes nestas adaptações. Um dos equívocos diz respeito ao esquecimento do conteúdo simbólico dos contos de fadas, apesar da respeitabilidade seqüencial da narrativa. Outro equívoco refere-se à constatação de uma dramaturgia frágil, mesmo com o respeito ao conto enquanto essência e trama narrativa. Ou seja: o conteúdo simbólico está presente no texto, a seqüência da história é respeitada, mas a transposição do texto narrativo para o texto dramático se torna sofrível, com diálogos pouco convincentes, personagens mal construídos e/ou desenvolvimento da história como trama teatral mal apresentado.

Um outro aspecto apontado pelo crítico refere-se à já aludida mescla de narração e drama, presente muitas vezes nos espetáculos teatrais infantis e também adultos. Como já apontei antes: conta-se um trecho da história e faz-se outro trecho, aproximando assim o teatro da narrativa oral cênica, mais conhecida aqui como “contação de histórias”.

Nazareth observa que muitas vezes presencia-se uma perda da teatralidade do espetáculo, assim como um enfraquecimento do poder da palavra, emblema da “contação de histórias”. Nesta mistura de contar uma história (como relato) e mostrar uma história (princípio teatral fundamentado na apreciação das cenas feitas), acaba-se por não fazer nem uma coisa nem outra.

Escolhi assim, também por estas questões, a presença de “Lasanha e Ravióli in casa” nesta dissertação.

O texto apresentado relê “Chapeuzinho Vermelho”, mas com o propósito de nos mostrar um processo de criação de um espetáculo teatral. Mais importante do que mostrar a história de “Chapeuzinho Vermelho” é revelar a experimentação teatral em si. Vemos que o título da peça é

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“Lasanha e Ravióli in casa” e não “Chapeuzinho Vermelho”, ou “A história de Chapeuzinho Vermelho”.

Neste aspecto, o texto teatral, de forma inteligente, se permite não respeitar a história original fielmente. Além do que, a presença clownesca reforça a possibilidade de parodiar a história de “Chapeuzinho Vermelho”.

No “Dicionário de Teatro” de Patrice Pavis (48), lê-se que a origem da palavra paródia vem do grego e quer dizer contracódigo, contracanto. O autor escreve: “Peça ou fragmento que transforma ironicamente um texto preexistente, zombando dele por toda espécie de efeito cômico”. (49)

Já que os protagonistas são dois palhaços atores, nada mais natural do que se permitirem brincar com a história de “Chapeuzinho Vermelho”, subvertendo-a, recontando-a a sua maneira cheia de humor, até mesmo contestando-a.

Por exemplo: Lasanha e Ravióli destacam a estranheza de alguém se chamar Chapeuzinho Vermelho. Também decidem colocar um nome na mãe de Chapeuzinho, D. Maria Chapéu, (para os palhaços, simplesmente D. Chapéu iria soar esquisito). Além disto, os palhaços criam novos personagens para a história, como o personagem de um menino, (por sinal, a princípio, não sabem nem mesmo o que este menino irá fazer na trama), como também decidem que aparecer uma fada no meio da história seria um exagero, já que não há fadas no conto proposto.

Importante mostrar que os atores palhaços jogam com o tradicional conto, porém não se esquecem de como é este conto. Um exemplo disto é que, no início do processo de criação, eles pegam o livro e lêem um trecho da história para rememorá-la. Afinal, para criar a versão deles, “o novo enfoque”, é preciso conhecer bem a história original. Assim, fica evidente que a “nova” história de “Chapeuzinho Vermelho” é uma opção estética e não um erro de adaptação da narrativa para o drama.

Affonso Romano de Sant’Anna demonstra, em seu estudo, (50) que a paródia é “uma nova e diferente maneira de ler o convencional”, como “um processo de liberação do discurso” e “uma tomada de consciência crítica”. (51)

Dentro de uma proposta teatral, Patrice Pavis escreve que a paródia não é simplesmente uma técnica de comédia, mas fundamentalmente um diálogo comparativo com o texto de origem, refletindo sobre o mesmo, além de refletir também sobre a tradição literária e teatral. (52)

Observo que no texto, “Lasanha Ravioli in casa”, os limites para a mudança na história apresentada são também pensados. Um exemplo disto é o surgimento da fada criada por Ravióli durante o ensaio, o que deixa Lasanha/ Chapeuzinho extremamente irritado:

Entra a Fada da História de Topetudo. Vinheta. Ela fala com forte sotaque alemão. Fada- Olá! Você não é a Chapeuzinho? Chapeuzinho- Sou eu mesma. A senhora é... Fada- A Fada da História de Topetudo! Chapeuzinho- (Meio irritada) Ah desculpa...Eu não estava

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lhe reconhecendo... Fada- É natural, eu não trabalho nessa floresta, vim visitar uma fadinha, amiga minha... Como vai mamãe? Chapeuzinho- Tá ótima. Fada- Como vai papai? Chapeuzinho- Papai nesta história não entra. Fada- ( Pegando a cesta de doces) Ah! Docinhas... No, no, no. Este é do tipo do puxa puxa, agarra na obturação. Mas o que você está fazendo aqui? Ah, já sei! Vai visitar uma amiguinha? Chapeuzinho- (Cada vez mais irritada) Não... Não... Fada- (Olha o relógio) Oh! Perdi a hora! Estou atrasadíssima! Tchau, meu bem! Dá um pituca aqui na titia. Beijocas na mamãe! (vai saindo) Chapeuzinho- (Irritadíssima) Mas o que esta Fada está fazendo aqui? Fada- Era para fazer alguma coisa, eu achei esse figurino lá atrás, achei que era uma boa idéia... Chapeuzinho se vira de costas para o público, tira os óculos e coloca o nariz de palhaço. A Fada vai tirando a roupa enquanto sai de cena resmungando. Lasanha- Não! Não é uma boa idéia! Essa idéia é péssima! Se você quiser ter uma boa idéia, faz um bichinho da floresta! Um cachorrinho! Uma vaquinha! Mas não coloca uma fada no meio da história de Chapeuzinho Vermelho que ninguém vai entender nada! Eu não quero fazer uma peça pra criança que nem o pai dela vai entender, Ravióli! Olha! Eu vou recomeçar! (Continua falando enquanto se vira de costas para a platéia, tira o nariz de palhaço e coloca os óculos) Mas você vê se desta vez não me atrapalha! Assim eu fico completamente perdida! Ah! É isso! Eu to perdida! (Se vira para a platéia, já de Chapeuzinho) Ah! Eu to perdida... (53)

Por este trecho acima, verificamos que a paródia existente em “Lasanha e Ravióli in casa” diz respeito não somente ao conto de “Chapeuzinho vermelho”, mas também à paródia do próprio teatro infantil e à relação dos adultos com as crianças.

A Fada pergunta para a criança sobre papai, mamãe, comenta sobre as balas que arrancam as obturações, fala várias vezes no diminutivo porque está conversando com Chapeuzinho, uma criança, etc...

Através de uma crítica irônica, vão sendo expostos vários aspectos equivocados que são comumente apresentados no panorama do teatro infantil, conseqüentes da maneira também equivocada que os adultos insistem em se relacionar com as crianças.

Penso, inclusive, que a paródia mais importante presente nesta peça consiste na crítica ao teatro infantil. Esta dramaturgia explicita em drama todos os equívocos verificados por Pupo na década de 70 (54), e que infelizmente ainda são hoje apontados por vários críticos e dramaturgos citados, como erros inadmissíveis. (55)

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Lasanha e Ravióli passam por todas as dificuldades presentes no processo de criação artística, e também por todas as dúvidas e erros possíveis de acontecer com os artistas que trabalham com crianças.

Já sabemos que é preciso evitar o didatismo na arte para crianças e que também caso elas não entendam tudo que está sendo dito, não haverá problemas, porque nós adultos também não entendemos tudo. Caso a dramaturgia/ espetáculo tenha algo interessante para falar a esta criança, numa forma correspondente ao seu próprio universo, a criança terá fruição estética. Cada um, criança, jovem ou adulto, apreciará o espetáculo teatral na sua maneira de apreender a obra. Mas mesmo assim, os artistas quando criam, se deparam com esta dúvida, apontada anteriormente.

Lasanha e Ravióli abusam, no melhor sentido, de sua falta de compromisso como palhaços, e assim, vão apontando ironicamente, e de certa forma exageradamente, todas as curiosidades, prazeres, dores e enganos, presentes no fazer teatral, para crianças e para todos.

No “Dicionário de Teatro Brasileiro”, encontramos esta frase sobre a paródia no teatro: “é a transposição de um texto tomado como modelo, já escrito e conhecido, manipulado e submetido a um formato crítico”. (56)

Reitero que nesta peça, a mais importante paródia consiste no formato crítico do ainda frágil panorama do teatro infantil (tanto na dramaturgia como na encenação). Este é um dos legados de “Lasanha e Ravióli in casa”: transformar em teatro, obra artística, a reflexão crítica teatral, incluindo nosso próprio desconhecimento em lidar com a criança.

Ressalto mais um aspecto importante na relação entre paródia e teatralidade. Pavis, em seu “Dicionário de Teatro”, considera a paródia um gênero independente e uma técnica que evidencia a teatralidade porque mostra o processo do fazer artístico. O autor escreve:

No teatro, ela se traduzirá num resgate de teatralidade e num rompimento da ilusão através de uma insistência grande demais nas marcas do jogo teatral (...). Como a ironia, a paródia talvez seja um princípio estrutural próprio da obra dramática: desde que a encenação mostre um pouco de seus ‘cordéis’e subordine a comunicação interna (da cena) à comunicação externa (entre palco e platéia). (57)

Como já foi mostrado, “Lasanha e Ravióli in casa” é um texto essencialmente teatral não somente por uma fundamental subordinação da palavra à ação, (com seus diálogos em perfeita sintonia com esta ação), mas também, pela sempre presente ludicidade, além do caráter elucidado por Pavis.

Com relação ao último aspecto, esta dramaturgia mostra deliberadamente os ‘cordéis’ teatrais, visto que a própria trama centrada num processo de criação teatral já favorece isto. A comunicação com a platéia é sublinhada como um traço marcante pelos mesmos fatores, além de haver no texto referências com o mundo atual, fortalecendo esta comunicação.

Penso ser importante frisar o fato de que a obra dialoga com o nosso cotidiano sem nenhum caráter apelativo. As referências vêm no decorrer da escrita de forma natural, sem sobrepujar a trama principal.

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Cito aqui um trecho para ilustração dos fatores acima analisados:

Entra Lasanha. Ela fala com Ravióli que está atrás do biombo.

Lasanha- Ô Ravióli... Eu vou te dizer um negócio... eu vou te dar um toque... eu acho...assim, né? Que nesse momento da história, que o Lobo está quase chegando na casa da vovozinha... porque eu já entendi que eu vou fazer a vovozinha, já que você está fazendo o Lobo Mau, né? Pois é... eu acho que você devia fazer o lobo assim... mais delicado. Não tem a menor necessidade do Lobo ser assim. Todo mundo já entendeu que ele é mau. O próprio nome já diz: Lobo mau.

Entra Ravióli, se arrumando de Lobo Mau.

Ravióli- Lasanha... Eu acho melhor você ir se arrumando logo... (Lasanha está perto da poltrona, pega a caixa com o figurino da Avó e durantetoda a cena a seguir ela se arruma).

Lasanha- Você acha melhor, é?

Ravióli- Ele já está chegando... Se eu fosse você, eu me vestia logo deVovozinha e dava um jeito de enganar ele. Eu ouvi dizer que este Lobo é um elemento altamente periculoso... (Ri e sai de cena, já com a capa e as luvas de Lobo mas ainda sem o focinho) Lasanha- (Enquanto acaba de se arrumar de Avó). Tá rindo, né? Da próxima vez Quem vai fazer este elemento periculoso sou eu. Não to achando a menor graça.(Já pronta de Avó porém sem tirar o nariz. A personagem será feita com o nariz de palhaço. A partir daqui, fala com voz de velhinha) Aliás, estou achando tudo uma droga! Onde é que já se viu se isto é programa de domingo? A pessoa ficar em casa à tarde, esperando um lobo chegar! Ai, eu estou nervosa! Preciso de ajuda! Vou telefonar! Vou telefonar! (Senta na poltrona e tenta telefonar) Está desligado! Vou ler o jornal pra ver se tem alguma coisa sobre isso! (pega o jornal e lê) Um Lobo solto naGávea! (58)

Para finalizar o capítulo, faço uma reflexão acerca deste formato crítico e irônico da paródia e sua comunicação com a criança.

“Lasanha e Ravióli in casa” faz o mesmo jogo que Gianni Rodari nomeia “Errando as histórias”(59).

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Inicialmente, Rodari diz que a criança não aprecia muito o jogo de modificação das histórias. Em processo de apreensão e dominação do mundo a sua volta, elas necessitam, em geral, de uma certa repetição em suas experiências. Portanto, a mudança repentina de personagens, cenários e da ação prevista, por exemplo, pode desagradar a criança. O prazer consiste aqui no reconhecimento da história e no reviver das mesmas sensações e emoções provocadas. Porém, o escritor faz a ressalva de que em certo momento esta repetição acabará por causar um desinteresse na criança, e aí ela estará apta para experimentar outra forma de ouvir a mesma história.

Nas próprias palavras do autor:

Em determinada altura-provavelmente quando Chapeuzinho Vermelho não tem mais nada a lhes dizer, quando estão prontas para separar-se dela como de um brinquedo velho, aceitam que da estória nasça a paródia; um pouco porque esta oficializa o desinteresse, mas também porque o ponto de vista renova o próprio interesse da estória, revive-a sobre um outro compasso. Neste jogo as crianças brincam com Chapeuzinho Vermelho e mais consigo mesmas: desafiam-se a enfrentar a liberdade sem medo, a assumir arriscada responsabilidade. (60)

Outro fator ressaltado por Rodari consiste em algo já analisado aqui (a necessidade da análise do texto inicial), visto que a paródia é capaz de funcionar em alguns pontos e em outros não. Para se chegar à descoberta destes pontos, Rodari explica que mais que a lógica, é necessária a intuição e a experimentação prática. Vê-se que estes princípios colocados pelo autor, como a intuição e a ação prática, são inerentes a qualquer experimentação artística, envolvendo crianças ou não. Percebe-se também que a dramaturgia de “Lasanha e Ravióli in casa” percorre este caminho, com eficácia e inteligência.

Rodari afirma ainda que esta reinvenção fabulística permite um diálogo maior entre o mundo dito real e o mundo dito imaginário, favorecendo a flexibilidade nos conceitos e nas vivências.

“Lasanha e Ravióli in casa” é capaz de fabular com uma criança, um jovem ou adulto, pois trata, nada mais, nada menos, da gratuidade do prazer liberto e das possibilidades de brincar e criar.

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Notas de Rodapé 28. Os segundos títulos das peças são todos dados por mim. 29. Castro, O elogio da bobagem, Rio de Janeiro: Família Bastos, 2005. 30. Barroso, Biel e Falcão, Lasanha e Ravióli in casa, p. 8. 31. Ibid, p 10-11. 32. Ibid, p.2-5. 33. Novarina, Valère. Diante da palavra, RJ: 7 letras, 2003, p. 46. 34. Ibid, p. 1-2. 35. Alice Viveiros de Castro, O elogio da bobagem - palhaços no Brasil e no mundo. RJ: Família Bastos, 2005. 36. Ibid., p.38. 37. Em revista do CBTIJ intitulada Sensibilidade e Imaginação, dramaturgia e educação, p. 11. RJ: 2005. 38. Ibidem, p.32. 39. Castro, O elogio da bobagem, p. 257 40. Op.Cit, p. 9. 41. Kofman, A infância da arte, p. 134. 42. Slade, O jogo dramático infantil. SP: Summus, 1978. 43. Op.cit., p.14-15. 44. Monteiro. Jogos dramáticos. SP: Ágora, 1984. 45. Huizinga apud Forneaut, ibidem, introdução, s/p. 46. Artigo da autora: Fronteiras etárias: da demarcação à abertura em O teatro dito infantil, de Maria Helena Kühner. 47. Jr. Simões, José Geraldo, O pensamento vivo de Chaplin, p. 70. 48. Pavis, Dicionário de teatro, São Paulo: Perspectiva, 2006. 49. Ibidem, p. 279. 50. Sant´ Anna. Paródia, Paráfrase e Cia. SP: Ática, 1985. 51. Ibidem, p. 31. 52. Op. cit. 53. Op. cit., p. 19-20. 54. Pupo, Maria Lucia de Souza Barros. No reino da desigualdade: teatro infantil nos anos 70 em São Paulo. S.P: Perspectiva. Estes equívocos propostos por Pupo são bem destacados no artigo de Maia Aparecida de Souza, Teatro infantil ou teatro para crianças? 55. Ver o artigo de Kühner, Dramaturgia - hoje e sempre, além do já mencionado artigo de Maria Aparecida de Souza. 56. Guinsburg. Dicionário do teatro brasileiro. SP: Perspectiva, 2006, p.231. 57. Op.cit., p. 27. 58. Op. cit., p. 27-28. 59. Ver A gramática da fantasia, de Gianni Rodari, São Paulo: Summus, 1982, p. 51. 60. Ibidem, p. 51.

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Capítulo 3

“Tuhu, O Menino Villa-Lobos” ou O elogio teatral à infância.

Pensamos em demasia, e sentimos bem pouco.

Charles Chaplin (61)

O segundo texto escolhido por mim para leitura crítica foi “Tuhu, O Menino Villa-Lobos”, escrito em 1997, mas em vias de publicação pela editora Rocco ainda no ano de 2006. (62)

A autora, Karen Acioly, além de dramaturga, é atriz, diretora e produtora, o que confirma um fato freqüente: o dramaturgo (a) é uma pessoa que já transita pelo ambiente teatral, antes mesmo de dedicar-se a este tipo de escrita.

Hoje, Karen Acioly preside o CTIJ - Coordenação de Teatro Infanto-Juvenil, da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Uma das atividades do CTIJ consiste em garantir a presença de alunos da escola pública nos teatros administrados pela Prefeitura.

Já é notório o destaque à memória na dramaturgia infantil de Karen Acioly. Aqui, neste texto, “Tuhu, O menino Villa-Lobos”, a autora evidencia a memória de nossa cultura através da história do músico Heitor Villa-Lobos. Na verdade, não se trata de uma biografia do músico para os palcos, mas sim de uma fábula teatral, centrada na infância e adolescência do músico. Assim, personagens reais estão juntos a personagens fictícios. Por exemplo, as irmãs do músico são representadas no texto teatral por uma única personagem: Lulucha.

Ao mesmo tempo, aspectos centrais e essenciais da história de Villa-Lobos estão presentes de forma proeminente e consistente na peça. Tais como: a descoberta da música ainda criança, o vínculo forte com o Brasil, o espírito visionário e aventureiro do músico, os primeiros amores, o primeiro concerto, etc...

“Tuhu, o Menino Villa-Lobos” é um texto de ficção sobre um personagem real. Muitas vezes este tipo de trabalho pode ser perigoso, pois o texto teatral pode se tornar uma aula de história sobre a biografia do músico ou também se transformar numa ficção onde não se reconheça mais a personalidade pública. Contudo, este texto consegue transitar bem entre os dois pólos, já que a dramaturga privilegia a teatralidade, porém deixa o “espírito” do músico “transparecer”.

A peça teatral escolhida também representa um contraponto importante àqueles textos que procuram fornecer um conteúdo educacional às crianças, esquecendo da teatralidade que o texto/espetáculo deve conter, além do prazer que estes devem suscitar no leitor/espectador.

Algumas vezes, o crítico Carlos Augusto Nazareth (63) reconhece um trabalho de pesquisa (conteúdo e/ou linguagem) sério, com vistas à qualidade, porém, restrito na teatralidade essencial do texto/espetáculo. Ou seja: tentando agradar pais, educadores e críticos ao transmitir questões históricas/ culturais, muitas vezes este texto/espetáculo pode deixar escapar a sua primeira função em si, a função artística. Então, retornamos ao já citado equívoco presente no teatro infantil, apontado de forma unânime por vários outros críticos e estudiosos: o didatismo, o teatro como “aula pedagógica”, onde se procura, antes de tudo, instruir a criança.

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No texto de Acioly não há este equívoco, nenhum didatismo é encontrado, nem mesmo quando é presenciada a paixão do músico pelo Brasil. Facilmente, neste momento, poderia haver uma aula de patriotismo. Mas não. O texto representa o amor à pátria através da percepção da beleza do país. Tuhu não aprende (de fora para dentro) este amor, mas o apreende, já que este amor nasce dentro dele, através de seu encantamento pelas cores e sons do meio em que vive.

Como já foi dito anteriormente, a criança vivencia os fatos. Seu poder de abstração vai sendo construído aos poucos. A natureza da criança se fundamenta na concretização, na vivência. Portanto, seu momento é o presente, sem causalidades e conseqüências. E neste texto, a criança é capaz de entrar no universo do músico através do aspecto lúdico e teatral, característico da infância.

A peça se inicia com o nascimento de Villa-Lobos e destaca a sua infância até à adolescência, por volta dos dezesseis anos, quando o músico rege seu primeiro concerto e decide começar a viajar pelo país. Vemos pelo próprio título da peça, “Tuhu, O Menino Villa-Lobos”, que a história privilegia sua infância. Inclusive, esta vivência se mostrará determinante para o desenrolar da trama teatral, pois é vista no texto como um fator de grande inspiração criativa para o artista. A maneira como o menino Tuhu vive sua infância irá determinar o músico Villa-Lobos. Este caminho escolhido no universo textual permitirá um elo de identificação com a criança leitora ou espectadora. A criança irá vivenciar, através da infância de Villa-Lobos, questões presentes em sua própria infância.

Na peça, Villa-Lobos começa a experimentar a música ainda como o menino Tuhu, percebendo os sons de seu ambiente, de forma concreta e lúdica. Verificamos isto na primeira cena, num diálogo entre Tuhu, o apelido do músico quando criança, e seu pai:

Tuhu- Ih! Pai! E aquele som, o que é aquele som ali que voa? Raul- É o sabiá, um passarinho, Tuhu... Tuhu- E quem faz este canto? Raul- É o Uirapuru! Os pássaros conversam, Tuhu. Tuhu- E aquele som que molha? Raul- É o rio que corre... Tuhu- E esse som que batuca no meu peito, certinho, certinho... Raul- É o seu coração, meu filho... (64)

Na peça, o tempo passa e Tuhu chega à adolescência (dezesseis anos), quando irá oficialmente iniciar sua carreira de músico (sendo pago para isto) e de certa forma iniciar a vida adulta. Após este acontecimento, Tuhu parte para viajar pelo Brasil.

Mas mesmo na adolescência, todos seus pensamentos e aspirações possuem sempre uma ligação concreta com a vida. Este tipo de vivência fornece a permanência do vínculo com a criança (leitor/espectador). Um exemplo: quando o músico está viajando pela Amazônia, ele ouve novamente os pássaros e especialmente o Uirapuru (neste momento, o som dos pássaros se confunde com a música “O canto do uirapuru”) e assim, num rompante, Tuhu tem a certeza do tipo de música que deseja fazer. Esta certeza ocorre também pelo fato de Tuhu lembrar-se da sensação de liberdade que outrora, na infância, este canto já lhe fez sentir. Desta forma, o passado se torna presente.

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A linguagem teatral em si, o tornar presente cada ação, aqui e agora, também é um facilitador do jogo infantil, e neste aspecto, apesar da criança ter o presente como seu momento próprio, o texto consegue trazer a memória do músico (nesta passagem de tempo) para a criança. O texto não narra o passar do tempo e sim vivencia este passar do tempo mostrando cada cena. Além disto, o próprio espírito artístico do músico consiste nesta ligação concreta com a vida e sua infância. Tudo vivido na infância de Villa-Lobos permanece inspirando-o, mesmo mais velho, como uma presença viva.

A peça traz o grande músico Villa-Lobos como o eterno Tuhu, identificando-o assim com um espírito vivaz e imaginativo, possível de ser encontrado em toda criança. Um espírito curioso e afetuoso, capaz de sentir o mundo e integrar-se nele. E, por isto também, ser capaz de recriá-lo. Penso eu, que talvez Villa-Lobos tenha sido o grande músico que foi, pois nunca deixou Tuhu morrer dentro de si.

A criança será capaz de ter empatia por Villa-Lobos por ser apresentada ao menino Villa-Lobos que, mesmo crescendo, não deixa de ser o Tuhu.

O passar do tempo na peça é percebido através da pontuação de fatos marcantes na vida do artista: as descobertas da natureza nos primeiros anos de vida, a entrada na escola e a decorrente inadequação, a “apresentação” a Bach por sua tia Fifina, a descoberta da música popular nas ruas etc... Mas mesmo assim, há um entrelaçar destes tempos, tornando-os de certa forma uno, como um grande presente que permanece no referencial da infância. Villa-Lobos é o menino Tuhu até o final da peça, inclusive como nome. Já músico, viajando pelo Brasil, o personagem se apresenta com o nome de Tuhu e permanece com o espírito de Tuhu.

As músicas de Villa-Lobos usadas na peça aparecem como fundo musical desde o início do texto. O primeiro diálogo de Tuhu com o pai é pontuado com o “Trenzinho caipira”. E aí, ao ouvir a música, Tuhu diz:

-“... Que sonzinho gostoso esse, hein, pai... Tuhuuuu, Tuhuuuu, Tuhuuuu, parece que leva a gente...

- Raul - É o trem”. (65)

E durante toda a peça isto acontece, o que provoca no leitor/ espectador, mais uma vez, a experiência da infância de Villa-Lobos como fonte de inspiração e matéria prima de sua obra, além de propiciar um contato direto com suas criações.

A forma como as músicas do compositor são colocadas na peça evidenciam também o caráter lúdico e dinâmico desta apresentação à criança leitora/espectadora. Este caráter lúdico e poético relaciona-se primordialmente com o entrelaçar dos tempos (passado, presente e futuro), visto que as futuras obras do músico, hoje conhecidas por todos, são sugeridas no texto teatral já na infância de Tuhu.

Além das músicas de Villa-Lobos, é proposto na peça um repertório de influências musicais presentes na obra do artista: músicas indígenas, choros e clássicos de Mozart e Bach.

O texto “Tuhu, O Menino Villa-Lobos” deixa a sua importância na dramaturgia infantil, não somente como um texto dramaticamente bem construído, dono de uma linguagem poética repleta de imagens e lirismo (por sinal, este tipo de linguagem é destacado por Kühner como uma característica renovadora na atual dramaturgia para crianças) (66), ou ainda porque leva ao

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conhecimento da criança uma personalidade como Villa-Lobos, mas acima de tudo, por valorizar cada criança que venha ler este texto ou assistir o respectivo espetáculo.

A dramaturgia de “Tuhu, O Menino Villa-Lobos” valoriza esta criança, pois reconhece nela uma potência criadora e por isto transformadora. É um texto que coloca a criança em “pé de igualdade” com o adulto. E mais: faz o adulto perceber que pode aprender com esta criança.

3.1 - O “personagem real”, o personagem teatral e a natureza infantil.

Divertiu-me uma idéia - a idéia de que, embora a vida de uma pessoa seja composta de milhares e milhares de

momentos e dias, esses muitos instantes e esses muitos dias podem ser reduzidos a um único: o momento em que a pessoa

sabe quem é, quando se vê diante de si.

Jorge Luís Borges (67)

É freqüente hoje, em nossa cultura, uma quase obsessão pela memória, e conseqüentemente o interesse pelo discurso biográfico e o (auto) biográfico.

Huyssen, em seu livro, “Memórias do modernismo”, (68) destaca que em todo final de século, há sempre uma volta do olhar humano para o passado, numa tentativa de armazenamento de dados e necessidade do próprio homem situar-se no tempo. Paradoxalmente, hoje também é freqüente a idéia de que nossa cultura ocidental sofre de certa amnésia.

Huyssen acrescenta que os períodos de final de século também são caracterizados por sensações de decadência, nostalgia e perda. Mas junto com estas sensações são observados sentimentos de renovação e rejuvenescimento. Acontece que neste último fim de milênio, ficamos muito mais ligados ao passado, pois perdemos a confiança num projeto coletivo de futuro. Por isto, a representação da memória vem tendo tanto destaque em nossa cultura. Além disto, evidencia-se aí a oportunidade do ser humano analisar como sua própria cultura vivencia a temporalidade.

Entre experimentar um acontecimento e lembrá-lo como representação, há a necessidade de um decurso de tempo para esta articulação, e por isto a memória relaciona o passado ao presente, tornando-a mais do que um simples sistema de armazenamento e recuperação de dados, mas também uma elaboração onde coexistem os afetos e o imaginário, por exemplo.

Por isto também, as temáticas circundantes à memória possuem um poder estimulante para a criação artística e cultural. Assim, observamos a questão da memória e do (auto) biográfico sempre como presenças importantes e interessantes em todo fazer artístico, independente de sua especificidade. Ainda mais, nos tempos atuais.

Para Huyssen, o boom da memória nas décadas de 80 e 90 corresponde à própria necessidade de estruturar nossa temporalidade, fragilizada pela nossa sociedade fundamentalmente tecnológica.

O homem possui a necessidade de viver em estruturas de temporalidade de maior duração e, as representações da memória, incluindo aí a (auto) biografia funcionam como uma resposta à aceleração deste tempo.

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Neste aspecto, o ato de ver e ouvir histórias alheias relaciona-se com uma possibilidade de construção de identidades através das negociações entre o próprio eu e o do outro, em diversas modalidades. Desta maneira, tenta-se ordenar um pouco a realidade atual, construindo um sentido para o caos presente nesta mesma realidade. Verifica-se também uma proposta para fornecer ao homem uma possível sustentação psicológica, ao elaborar as referências identitárias. Aqui, presenciamos a volta de um sujeito, outrora esquecido, retornando agora como complexidade. Hoje, todo material cultural circundante a este sujeito, relaciona-o com um caráter múltiplo, onde as subjetividades não são mais temidas, nem os afetos e sentimentos. Este sujeito atual revela-se um eu de múltiplas interpretações e dono de uma ação mais corajosa e vital.

Portanto, mais do que nunca, observa-se em nossa cultura este olhar em torno da memória e do sujeito, destacando assim o interesse pela biografia ou autobiografia. Este fato é observado em grande abrangência, na literatura, cinema, televisão, teatro, etc... Temos inclusive, obras que não são propriamente biográficas, mas possuem um cunho biográfico, pois centram sua narrativa principal na vida de uma personalidade.

A atual sensação da falta de conexão com o próximo, com a própria família, e de certa forma consigo mesmo, é compensada ao ouvir ou ver a história do outro, aproximando-nos da possibilidade de ainda sentirmos algum grau de irmandade entre nós, seres humanos.

“Tuhu, O Menino Villa-Lobos” é um texto dramático que está relacionado a estas reflexões. A peça não trata, como disse antes, da biografia do músico Villa-Lobos, mas naturalmente tem um cunho biográfico, afinal seu drama consiste essencialmente na infância de Villa-Lobos. Como uma obra artística que é, a peça circula entre a realidade e a fantasia, como a própria criança o faz.

Obviamente, todas as problemáticas colocadas acima, acerca da memória e do biográfico, dizem respeito muito mais ao mundo adulto do que o infantil. Mais uma vez, reitero que a criança somente irá transitar por este espaço da memória quando estiver dominando o raciocínio lógico. Inicialmente, a criança vivencia o mundo como um eterno presente, sem noções de causas e conseqüências, porém a própria linguagem teatral, caracterizada pela demonstração de algo no instante presente, trata de tornar este passado uma presença atualizada. Além disto, o personagem Villa-Lobos, apresentado em sua infância basicamente, representará um elo com a criança leitora ou espectadora. Para os pais desta criança, talvez será importante levá-la a um espetáculo cuja dramaturgia baseia-se no reconhecido músico, porém, para a criança, quem importará realmente será o menino Tuhu, com quem irá identificar-se.

No capítulo anterior, escrevi um pouco sobre a vinculação entre a arte e a infância, e agora retornarei a esta questão, sob o olhar do artista Villa-Lobos: mais do que nunca um espírito eternamente infantil.

Com esta dramaturgia de Acioly, reconheço que perdi o medo de escrever a palavra infantil, pois é revelado em Tuhu / Villa - Lobos a grandeza e a coragem de ser infantil.

Portanto, associo a partir deste momento, relações entre o personagem real Villa-Lobos e o personagem fictício de Karen Acioly: Tuhu. E veremos que não é pejorativo o homem que permanece, de certo modo, infantil. Ao contrário: pode ser uma benção.

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“Tuhu, O Menino Villa-Lobos” é uma peça dramaticamente bem construída em todos os aspectos, personagens, desenvolvimento de trama, conflitos, escolha de uma linguagem poética reveladora de encantamento, etc... Porém, percebo que um de seus maiores méritos é fazer um elogio à infância. É fundamental na personalidade e obra de Villa-Lobos a presença da forma infantil de experienciar a vida. O próprio texto de Acioly acredita nisto. Um exemplo desta crença consiste no entrelaçamento das músicas de Villa-Lobos presentes no texto com a passagem de momentos da infância do menino Tuhu. O próprio apelido de Villa - Lobos corresponde a um som, o som do trem. Heitor Villa-Lobos é nomeado em sua infância por um som, determinando desde já a linguagem sonora, musical, como sua linguagem primordial.

Partindo de um texto crítico de Celso Kelly (69), onde o autor reflete sobre frases e pensamentos do próprio Heitor Villa-Lobos (proferidas em palestra) como representativas de sua personalidade enquanto homem e artista, vejo também que este mesmo espírito preside o menino Tuhu, enquanto personagem teatral.

O texto teatral de Acioly nos afirma a importância do modus vivendi infantil, caracterizado por uma total integração com o mundo, como fundamental para a expressão da genialidade artística. Aquilo a que no capítulo anterior, eu me referi, utilizando as palavras de Kofman, sobre a infância e a arte, é agora exemplificado numa forma artística: na dramaturgia de “Tuhu, O menino Villa-Lobos”.

Celso Kelly destaca a personalidade humana e artística de Villa-Lobos fundada numa riqueza de sensibilidade e pensamento criativos, possibilitados de forma imprescindível pelo espírito liberto de preconceitos, por uma sensibilidade integradora com a natureza e a cultura circundantes, além da afirmação de uma linguagem particular.

Apreciador de Bach e da música brasileira, como os choros, ou ainda da música indígena, Villa-Lobos não fez distinções entre a considerada música erudita e folclórica, justamente numa época em que eram valorizadas apenas as músicas francesas e italianas. Segundo o próprio Villa - Lobos, Bach também soubera inspirar-se na música folclórica alemã, e isto lhe teria trazido uma grandeza musical.

A apreensão musical de Villa-Lobos partia de dentro de si, prolongando-se para o mundo a sua volta e por isto o músico mergulhou na cultura e natureza brasileiras. Ao vivenciar o mundo a partir de si e, não do que os outros diziam ou mesmo acreditavam, Villa-Lobos foi capaz de criar uma obra original e autoral, fugindo dos cânones, das convenções, além de resistir às iniciais críticas. A obra de Villa-Lobos é arrebatadora por esta tendência à desmedida e também lírica por acreditar e perseverar em sua própria sensibilidade intuitiva. Acreditando no mais íntimo de sua identidade como algo conectado ao todo à sua volta, o músico foi capaz de através da música, sua linguagem essencial, alcançar a alma do povo brasileiro e ser reconhecido no exterior.

A percepção do mundo a sua volta, ele a incorporava e a assimilava, transfigurando assim possíveis meras influências em criações próprias.

Este espírito caracterizado acima está relacionado essencialmente à natureza infantil, porque a criança é capaz de apreender o mundo exterior sob sua ótica particular, integrando-se a ele, isenta de classificações, preconceitos ou julgamentos externos. Ou seja: livre.

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E assim é Tuhu na dramaturgia em foco. Um menino que desobedece aos pais fugindo para as ruas, engana a irmã para fugir do castigo, rouba um livro do pai para comprar lanches para os chorões e, evidentemente, não se adapta à escola, um lugar, na época, caracterizado pela repressão à individualidade e pela total falta de liberdade criativa.

Eis aqui, dois trechos dramatúrgicos que evidenciam este espírito de Tuhu / Lobos: livre e rebelde para qualquer forma de tolhimento à criação e expressão individual.

Primeiro trecho:

Cena 8

( Noêmia entra costurando uma nova roupa para vestir Tuhu. É a roupa da escola. Noêmia canta Constante) Noêmia: Tuhuuuu! Vem Tuhuuu! Olha que roupa bonita! Tuhu: Mãe... essa é a roupa da escola... Mãe, eu não quero ir pra escola... ( Noêmia tenta vestir Tuhu). Noêmia: Vamos ver...hum...que beleza...nossa, como você fica bonito de uniforme! Tuhu: Ninguém fica bonito de uniforme, mãe... Noêmia: Como o meu filho está lindo! Diga para mim, filho, o que você vai ser quando crescer? Tuhu: Vou ser grande, mãe! Noêmia: Deixa de brincadeira, fala sério, Tuhu! Tuhu: Vou ser músico, mãe! Noêmia: Deus me livre, meu filho...vai aprender um ofício direito...médico, que tal? Meu filho...um doutor...quem sabe até um cirurgião...( Enquanto a mãe fala, Tuhu tenta dizer que nunca, jamais, de jeito nenhum). É preciso instruir, filho, ser como o seu pai: homem de cultura. Tuhu: Mãe, minha mãe querida, eu vou ser músico! Noêmia: Então, depois que você entrar na faculdade de medicina, que seja músico nas horas vagas. Mas mesmo nas horas vagas, músico clássico! E nada de tocar violão, esse instrumento de capadócios! Que toque violoncelo, violoncelo clássico! Não quero ver você como essa gente perigosa... esse grupo de vadios que toca aquela música indecente! Tuhu: Mas, mãe, o chorinho é tão divertido... Noêmia: Não quero ouvir falar em chorinho nenhum aqui dentro. Tuhu: Mas... Noêmia: Promete para a sua mãe que você nunca vai me decepcionar! Tuhu: Prometo, mãe... Noêmia: Então agora vá para a escola, filho... correndo para não se atrasar! Tuhu: Que jeito! Raul: Noêmia, você viu, Tuhu? Noêmia: Foi para a escola.

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Raul: Tuhu cresce e eu me preocupo com o que vai ser desse menino que nenhuma escola há de compreender..(61)

Segundo trecho:

Cena 9 - Na escola. (Os alunos entram cantando na volta do recreio). Professora: Sentem-se! Decorem... (Tuhu chega atrasado. Todas as crianças sorriem. A professora o encara, instaurando um clima de terror). Professora: Sr. Heitor... Como sempre atrasado...vou fingir que não notei a sua presença... Professora: Decorem: Carta de Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal! Tuhu: (Baixinho). Um embaixo, outro em cima, laranja-da-china, laranja-da-china, laranja-da-china! Limão doce, limão doce e tangerina! Professora: Silêncio! ‘De ponta a ponta é toda praia (...) Águas são muitas, infindas’... Aluno Puxa-Saco: Águas infindas, bonito isso, hein, senhora professora! Professora: Silêncio! Agora repitam comigo: ‘Os navios de Cabral se acharam em 21 de abril de 1500, (...) Alunos (Repetem): Os navios de Cabral (...) (...) Professora: ‘Os selvagens que lá se encontravam...eram pardos, nus, sem nenhuma cousa que lhes cobrisse suas vergonhas...’ Tuhu (interrompe): Os selvagens eram os índios, senhora professora? Professora: O senhor não tem a permissão da palavra, sr. Heitor... Aluno Puxa-Saco: A minha mãe disse que esse menino não presta. Professora (continuando): Os selvagens que (..) E assim, em 22 de abril de 1500, O Brasil foi descoberto por Pedro Álvares (...) Repitam. (...) (Tuhu não repete. O que irrita terrivelmente a professora). Professora: Sr. Heitor Villa-Lobos, algum problema em repetir a frase? Tuhu: Não é bem problema, senhora dona professora, só que eu não acho que o Brasil foi descoberto pelos portugueses... (Começa a tocar a canção indígena Enzenina). Professora: Prossiga, Sr. Heitor... Tuhu: Prossigo, senhora dona professora. O Brasil foi descoberto pelos pássaros, que avistaram às matas, que chamaram os índios para morarem nelas para dançar e alegrar a vida. Depois de encher de sons as matas, os negros

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com seus batuques(crescendo Enzenina) chamaram as cobras, que trouxeram os mamelucos, os caboclos e os cafuzos, que povoaram essa terra...que não pode ter sido descoberta pelos portugueses... ( A turma toda aplaude. A professora perde o rebolado). Professora: Calem-se!!! Sr. Heitor, a sua nota é zero! Zero! E o senhor está expulso dessa escola! (Tuhu sai). E vocês estão suspensos! Aluno Puxa-Saco: Bem que minha mãe disse que esse menino era mau elemento. Eu nunca jamais gostei dele...jamais mesmo! (A turma chora e assobia baixinho). (71)

No artigo de Celso Kelly, há uma frase de Villa-Lobos adulto, sobre o significado que a escola deveria ter para o maestro. Eis a frase:

(...) o templo para desenvolver a alma, cultivar o amor à beleza, compreender a fé, respeitar o silêncio, adorar os fatos e coisas sobrenaturais, e, finalmente, preocupar-se com todas as qualidades e virtudes, de que mais depende o progresso da humanidade. (72)

Vemos que esta consideração de Villa - Lobos é explicativa para a inadequação escolar vivida na infância, afinal de contas, esta escola que primeiramente estimula a sensibilidade, a beleza e o sobrenatural, não é a mesma escola que Tuhu experimentou, nem o Tuhu real, nem o Tuhu fictício. E por isto mesmo, nosso personagem teve que procurar inspiração nas ruas e na natureza. Verifica-se mais uma vez, o cunho biográfico cruzando com o fictício.

Outra característica do mundo infantil, presente em Tuhu e nas considerações de Kelly sobre as próprias frases de Lobos, refere-se à capacidade de absorção da criança no instante presente que vivencia alguma experiência, característica que a faz ser capaz de sentir-se totalmente integrada ao seu fazer e a tudo que diz respeito a esta experiência.

E por isto também, a memória, com suas causalidades e efeitos, não diz respeito ao olhar infantil. O momento da criança é o aqui e agora, vivenciando intensamente o momento presente. Por este motivo, o teatro é capaz de seduzir a criança, pois o drama corporifica o pensamento, jamais destituído de afetos, na ação presente.

Esta questão paradoxal presente na dramaturgia de “Tuhu”, (eu me refiro à memória versus o tempo como instante / evento), discutirei mais tarde quando analisar a linguagem poética da obra, mas agora quero centrar-me na vivência deste presente, característico da criança, como crucial à criação artística, e aqui em especial a Villa-Lobos.

No texto de Celso Kelly há também um pensamento do maestro, proferido para o argentino José Maria Fontova, que explicita esta integração do mais puro íntimo de seu ser com o mundo exterior. Villa-Lobos diz:

Escrevo música porque obedeço a um mandato interior... Escrevo essa música porque toda ela está dentro de mim, como meus nervos, como minhas veias... e escrevo música brasileira porque me sinto possuído pela vida do

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Brasil, de seus cantos, de seus filhos e de seus sonhos. De suas esperanças e de suas realizações. (73)

Villa-Lobos sentia a terra e o povo brasileiros em seu próprio interior, como uma criança que não distingue seu próprio eu das particularidades alheias. Assim, Tuhu é capaz de se encantar tanto com Bach, quanto o som de Zé do Cavaquinho e os chorões, personagens das ruas, mal vistos pela sociedade. Para o artista, para a criança, para Tuhu e para o maestro Villa-Lobos não existem margens delimitadas a serem seguidas. O processo de inserção da criança na cultura, o mesmo processo que a faz perder a capacidade de jogar, de ser espontânea e de criar, já citado por Kofman, não é perdido por Villa-Lobos. Villa-Lobos permanece Tuhu, e, sabiamente, a dramaturgia reside na infância e adolescência do músico, essenciais para o artista Villa-Lobos. Heitor Villa-Lobos não matou Tuhu, por isto tornou-se Villa Lobos, e por isto, “Tuhu, O Menino Villa-Lobos” é um elogio à infância e ao adjetivo infantil.

Kelly registra que, ao perguntarem para Villa-Lobos, no auge do modernismo, se este era futurista, o músico disse: “Não. Nem futurista, nem passadista. Eu sou eu!” (74)

Villa-Lobos possuía um espírito atemporal, pois vivia intensamente o presente. Estava conectado com seu aqui e agora, e conseqüentemente era uma pessoa e um artista carregado de vitalidade e inspiração. Este espírito também está presente na dramaturgia de Acioly, fazendo da infância e da adolescência de Tuhu, intercaladas com as músicas futuramente conhecidas do maestro, um grande e único presente.

As questões referentes ao tempo, como disse antes, eu retornarei quando destacar a linguagem poética característica da peça. Penso ser fundamental o aspecto temporal para este tipo de linguagem, entretanto, relaciona-se também ao “espírito” da personagem real e fictícia.

Ronald de Carvalho escreve sobre esta atemporalidade de Lobos. Ele diz:

Ele compreende a realidade como uma sucessão contínua de instantes, onde cada instante se degrada em um torvelinho de movimentos infinitos. Ele não quer ser novo nem antigo, mas simplesmente Villa-Lobos. Para exprimir o turbilhão vital, inventa ritmos que os motivos cotidianos lhe sugerem. Sua lógica está na forma que, de espaço a espaço, surge enriquecida e renovada da sua sensibilidade. (75)

Por esta intensidade doada ao instante vivido, é que Villa-Lobos não precisa procurar longe de si motivos de inspiração, e nem o estado de inspiração em si, como o próprio maestro admite ao dizer: “Esse negócio de inspiração não existe em mim. Eu nasci inspirado já”. (76)

Villa-Lobos vivia no mundo da arte, da poesia e da inspiração, pois não perdeu o espírito da infância: o olhar curioso, inquieto e intenso, onde tudo é inspiração, afinal tudo é novo e diz respeito a si também, mesmo que seja exterior. Toda esta vivência do mundo, Tuhu um dia necessitou transmitir em notas para o mundo, pois desde sempre escolheu esta linguagem para si. Citei, no início do capítulo, um pequeno diálogo entre Tuhu e seu pai Raul, onde transparece a percepção sensível e imaginativa do menino sobre o mundo, e em especial, a sua percepção dos sons. Aqui uma continuação deste trecho da peça para confirmação do que escrevo:

Tuhu: Ih! Mas esse aqui é tão parecido com o do meu

coração, o que é isso? Raul: É um metrônomo!

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Tuhu: Metrônomo, metrônomo, metrônomo, que coisa engraçada... Raul: E esse som aqui, o que é? Tuhu: O guincho da roda de um bonde! Raul: E esse aqui? Tuhu: Uma planta que cai. Raul: E esse? Tuhu: Uma andorinha perdida... Raul: Qual é a nota? Tuhu: É dó... (Começa a modular Có- Có- Co). Raul: E esse som agora? Tuhu: É o som de dentro...da panela da mamãe...fazendo panqueca... Raul: Qual é a nota? Tuhu: É lá... e é lá que eu vou... (Sai correndo). (77)

Este mesmo trecho relaciona-se também com a forma pela qual o maestro acreditava que a música deveria ser ensinada: de dentro. De dentro para fora, e não o contrário. Jamais sem os afetos. Villa-Lobos diz:

Se não houver nenhum sentido, nem alma, nem vida na música, esta deixa de existir. Assim deve-se ensinar música desde o começo, como uma força viva, do mesmo modo que se aprende a linguagem. (...) Deve-se ensiná-lo a conhecer os sons, a ouví-los, a apreciar suas cores, a esperar que certos sons se sigam aos outros, a combinar sons em ritmo. Deixá-lo aprender melodias, sentir harmonias, não em virtude de regras no papel, mas pelo som no seu próprio ouvido. (78)

“Tenho vida para toda a vida”. (79) Eis outra convicção do maestro Villa-Lobos. Celso Kelly observa que o desapego do músico aos preconceitos, prolonga-se ao desapego histórico. Por isto, Villa é capaz de alimentar-se da musicalidade primitiva indígena, de criar alheio aos comprometimentos classificatórios de temas ou técnicas e de ter uma personalidade, como homem e artista, repleta de vitalidade até mais de setenta anos. Assim Kelly explicita que a tentativa de classificar a obra do músico sob quaisquer aspectos será sempre limitativa, pois a personalidade do homem e do artista (não dissocio o homem do artista, pois para o próprio músico não havia esta distinção entre vida e arte) (80) está acima do tempo cronológico. Como a música e a inspiração, o tempo para Villa é o tempo de Tuhu: o tempo infantil, o tempo interno e presente. Um presente que se eterniza, e por isto se torna atemporal. O tempo dos brinquedos, da música, do teatro e de qualquer manifestação artística. E assim compreendemos outras frases de Villa-Lobos, que podem nos soar inicialmente arrogantes ou infantis (no sentido pejorativo que as pessoas costumam usar), quando as transformamos numa percepção valorizadora da infância. Frases como estas:

“O folclore sou eu”. (81) Ou ainda: “Eu fui meu próprio mestre” (82)

Como uma criança, Villa-Lobos integra os mundos interno e externo e transita sem nenhum pudor entre a realidade e a fantasia. Ao vivenciar o folclore, o maestro se torna folclore.

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Ele descobre o folclore que existe dentro dele. Assim se torna seu próprio mestre, pois ele transfigura o mundo em seu próprio eu. E por isto nos parece gigante e sua música nos parece divina, pois como toda criança compreende o que é comum a todos os eus.

Como o eterno Tuhu, Heitor Villa-Lobos não negou a natureza, a intuição e a espontaneidade. A liberdade? Nem pensar!

Desta forma, falar do Tuhu de Karen Acioly é também falar do Tuhu atemporal de Heitor Villa-Lobos. É falar da infância presente em toda criança e em todo adulto. Mesmo que em nós adultos, ela às vezes esteja adormecida. Mas certamente viva.

3.2 - A linguagem poética.

A linguagem é origem. Não é algo que teríamos ganho em relação aos animais de tanto evoluirmos mas algo que vai mais longe do que todas as coisas porque reencontra a sua aparição. A fala não nomeia, chama. É um raio, um relâmpago: as palavras não evocam, elas atalham, racham a pedra. A linguagem não tem nada para descrever já que ela começa. Não há nada que esteja mais no segredo da matéria do que o mistério verbal.

Valère Novarina. (83)

Penso que a linguagem poética deste texto está fundamentalmente associada a algumas questões específicas. Primeiro, eu poderia falar de uma linguagem que denota uma multiplicidade de imagens, metáforas e sensações, aproximando-se assim de características de um texto dito poético. Refiro-me a uma materialidade das palavras, destacando a plasticidade existente nas mesmas, suas cores e sons.

Em segundo lugar, destaco o entrelaçar das cenas apresentadas com as músicas de Villa-Lobos sugeridas no texto. Este entrelaçamento do desenvolvimento da trama com as músicas compostas pelo maestro, além de outras que um dia o influenciaram, acaba por desdobrar-se em outras relações de linguagem poética, como as de espaço e tempo.

Naturalmente, a própria música é uma linguagem que se aproxima da poesia, pelos ritmos, sonoridades e imagens sugeridas. Faço uma observação aqui, de certa forma um pouco óbvia, mas para não haver dúvidas a respeito do assunto: neste momento, onde escrevo a palavra poesia, refiro-me tanto aos poemas compostos por rimas ou versos livres, como uma prosa poética, ou ainda, no caso proposto, uma dramaturgia que revele em seu discurso traços de uma linguagem poética, como por exemplo, alusões freqüentes a imagens e sonoridades. Ou seja: uma dramaturgia que trabalhe com a materialidade das palavras.

No caso específico da música, é demonstrativo no texto que a presença musical não é um simples adorno para entreter as pessoas que vierem a assistir a encenação.

A música, em “Tuhu, O Menino Villa-Lobos”, faz parte do corpo textual, assim como de sua conseqüente encenação. Não somente porque a peça trata da infância de Villa-Lobos, um músico, mas pela maneira como o texto enreda a infância e a adolescência do músico, ou seja, sua própria vida, com a experiência sonora. Em outras palavras: arte e vida aparecem indissolúveis.

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Esclareço também que não trato aqui de classificar a peça teatral como um musical ou não, pois mesmo em espetáculos ditos musicais, as músicas podem estar descontextualizadas no texto teatral. Um exemplo disto: quando assistimos a um espetáculo teatral dito musical e justamente na hora em que o ator começa a cantar, nós espectadores não prestamos mais atenção. Ou mesmo pensamos: Ah! Agora ele vai cantar... Ou seja: Lá vem a chatice. E esperamos passar a cantoria para voltarmos a prestar atenção à peça. O público se distrai neste momento, justamente porque a música não está integrada ao corpo textual/cênico. Muitas vezes, o próprio ator chega a dar uma leve parada antes de cantar, como se avisasse ao público: “Olha, agora eu vou cantar...” Definitivamente, isto não pode acontecer, pois a música, como qualquer outro elemento cênico, deve estar a serviço do texto/espetáculo e não ser um mero objeto decorativo.

Isto, absolutamente, não acontece em “Tuhu, O Menino Villa-Lobos”. Às vezes, por exemplo, uma música conduz, inclusive, uma cena a outra, como é o caso de “Prole do bebê n.1 ”, na passagem da cena 13 para a cena 14. Na cena 13, Tuhu vai à casa de sua tia Fifina e a encontra dando aulas de piano para Dulcinha. Tuhu logo se apaixona. Dulcinha idem, pois chega a desmaiar. A aula termina e mesmo relutando, a menina se despede. Após a saída de Dulcinha, Tuhu dialoga com a tia, insistindo em seu desejo de morar com ela, visto que ali a música reinava. A tia não concorda e manda Tuhu ir brincar. Senta ao piano e começa a tocar “A prole do bebê n.1”. Então, pela janela, Tuhu vê algumas meninas brincando de bonecas. Elas também cantam a mesma música tocada pela tia e assim acontece a passagem para a próxima cena: “A Branquinha”. A música serve como um fio condutor na dramaturgia. Por sinal, “A Branquinha” refere-se tanto à boneca de louça quanto à delicada Dulcinha, com quem, lá fora, Tuhu rodopia, e a pede em namoro.

Na cena 15 acontece um encontro, de certa forma um pouco desastroso, entre Tuhu e o pai de Dulcinha. No final, Tia Fifina, que também estava presente ao encontro, senta novamente ao piano e toca “Melodia sentimental”. E é com esta música que a cena 16 é iniciada. Aqui, Zildinha, “A Moreninha” (também o nome da cena) aparece cantando. Novamente, uma cena é levada à outra tendo a música como um elo de ligação.

Zildinha, o próximo amor de Tuhu, já é uma menina de características físicas e temperamentais totalmente opostas a Dulcinha. É uma menina brejeira e moreninha, assim como a boneca de pano à que Tuhu se referira durante a cena em que as meninas brincavam e cantavam. Neste momento, ainda há uma imagem poética, relacionando as duas garotas com as duas bonecas. Dulcinha, mais fina e elegante, como a boneca de louça. Já Zildinha, mais simples, porém encantadora, como a boneca de pano.

E são em várias perspectivas que diversos desdobramentos vão sendo desenvolvidos na linguagem teatral da peça de Acioly. Algo também interessante consiste no fato de que estes desdobramentos existentes estão sempre entrelaçados, enredados. É difícil analisar separadamente cada aspecto, sem algum momento, relacionar uns aos outros.

Eu poderia dizer que a imagem referente à dramaturgia de “Tuhu, O Menino Villa-Lobos” corresponde a uma grande forma espiralada, o que retorna a salientar a carga poética presente na peça teatral. Afinal, o texto apresenta-se como uma grande teia de recursos poéticos. Por exemplo: a música referida anteriormente relaciona-se também com o espaço e o tempo, em idas e vindas.

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Por sinal, principalmente o tempo, nesta dramaturgia, revela um caráter de grande força poética. O texto analisado, a princípio, possui um cunho biográfico (mesmo sendo uma fábula), portanto circunstancial, histórico. A peça apresenta cenas, onde percebo uma certa cronologia, porém, ambiguamente, a mesma sugere a presença de uma atemporalidade, marcada esta, pela força de um eterno presente centrado na infância.

“Tuhu, O Menino Villa-Lobos” sugere a infância duradoura. O tempo passa e Villa-Lobos permanece Tuhu, eternamente Tuhu. As notórias músicas do maestro, apresentadas no texto, desde o início da peça, de forma intercalada com os momentos marcantes de sua infância e adolescência, afirmam-se como obras inerentes a sua experiência enquanto criança e ao seu próprio espírito infantil, mesmo já adulto.

Ou seja: a dramaturgia referida trata de um passado por nós reconhecido, relaciona-se com um futuro, que por nós também já é reconhecido como passado, e torna estes tempos presentes na fábula como um único presente eterno.

O tempo do teatro é o presente, (mesmo que se trate de memória, a característica teatral fundada no mostrar e não no relatar, torna este passado presente). O tempo da infância é o momento presente. A criança Tuhu está sempre em Heitor, mesmo adolescente. Além disto tudo, a música de Villa-Lobos também é sempre presente em nossa história cultural.

Esta dramaturgia, cuja temática parte da memória cultural, é transfigurada num “presente eterno”, o que só poderia expressar-se numa linguagem de cunho poético, por sinal, uma linguagem familiar à natureza infantil. Como vimos anteriormente, a criança possui uma forte noção de concretude em suas relações, em virtude principalmente, de ainda não ter dominado o processo de aquisição da linguagem. É óbvio que para a criança as palavras não estão plenas de sentidos convencionais, como para nós adultos. Assim como o poeta, ela percebe a materialidade que a linguagem possui, e daí é capaz de perceber seu encantamento. A criança entende, através de suas sensações e afetos, que a linguagem também é música e imagem. Ela é capaz desta percepção sem a necessidade do conhecimento, mas pela faculdade da sensibilidade e da fantasia. O poeta, e num sentido mais abrangente de criação, o artista, sabe disto, já de forma consciente, entretanto, torna-se também criador de sentidos e vivências, porque não abandonou no decorrer de sua vida a intuição, sensibilidade e imaginação, ou seja: a capacidade de jogar.

Portanto, verifico neste momento, outro desdobramento vinculado à linguagem poética: a ludicidade. Novamente reencontro esta questão, já aludida no capítulo anterior.

Em “Tuhu, O Menino Villa-Lobos”, a ludicidade é revelada pela conseqüente percepção da materialidade das palavras. Evidentemente, este aspecto lúdico aparece também como presença fundamental do teatro, além de característica essencial do próprio brincar infantil.

Então, relaciono a linguagem poética como jogo dramático e possibilidade de fantasia, onde o eu ganha espaço e se afirma no tempo como poder criador e transformador, podendo inclusive recriar o seu próprio tempo.

Tuhu materializa o poder de recriar a natureza e a cultura através de sua fantasia e afetividade, recriando-as assim a seu modo particular de sentir e ver. Melhor dizendo: a seu modo particular de ouvir, “com o ouvido de dentro”. (84)

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Primeiramente, ele ouve os sons à sua volta e mais tarde apreende as notas musicais. E assim, hoje, nos é dado o prazer de ouvir e sentir, por exemplo, o “Trenzinho Caipira” ou “As Bachianas”, do maestro Sr. Heitor Villa-Lobos.

Ou simplesmente de Tuhu, do menino Tuhu.

3.3 - Poesia e Música.

A ação é música. Charles Chaplin. (85) Tuhu: Zé, me diz...como se chama essa coisa linda aí? Esse tal de pa...pa...pa...pa...(imita o som da música). Zé Do Cavaquinho: É o choro. O único choro que ri. Tuhu: Um choro que ri... (Aos pouquinhos a música vai ganhando mais e mais alegria e todos começam a rir muito). Me ensina, Zé... a tocar tudo isso... (86)

Neste trecho observamos que Tuhu não pergunta a Zé qual música era aquela que os chorões acabavam de tocar, ele pergunta já em sua linguagem escolhida, a musical. Tuhu fala: “pa...pa...pa...pa...”, fazendo a melodia. E Zé responde com humor que aquele “é o choro, o único choro que ri”.

Esta frase é representativa do tom fornecido pelo discurso proposto na dramaturgia de Acioly. O discurso poético e lírico, intercalado com a poesia musical, traduz uma aura de encanto e magia, presente em todo o texto.

O eu lírico de Tuhu contamina todo o corpo do texto. Poderia dizer que “Tuhu, O Menino Villa-Lobos” é, de certa forma, quase como um grande monólogo, no sentido de que o estado emocional do personagem principal estende-se por toda a estrutura textual, tornando a dramaturgia envolta num espírito mágico. Este lugar mágico, com aura de encantamento e sedução, é o mesmo lugar para onde a música, enquanto expressão artística, é capaz de levar-nos. O lugar aonde os sentidos lógicos nos escapam, os afetos se revelam e permanecemos mergulhados nas sensações. Por sinal, se repararmos com atenção, o mesmo lugar da infância.

Jorge Luis Borges, em uma palestra proferida em Harvard e publicada no livro, “O ofício do verso”, faz uma alusão à música e poesia, e julgo importante citá-la aqui:

Walter Pater escreveu que toda arte aspira à condição da música. A razão óbvia (falo na condição de leigo, é claro) seria que, em música, forma e substância não podem ser cindidas uma da outra. Melodia, ou qualquer peça musical, é um modelo de sons e pausas que se desdobram no tempo. A melodia é simplesmente o modelo - as emoções da qual ela brotou e as emoções que ela desperta. O crítico austríaco Hanslick escreveu que a música é o idioma que podemos usar, que podemos entender, mas que somos incapazes de traduzir. (87)

“Tuhu, O Menino Villa-Lobos” é uma dramaturgia cuja construção de trama é cuidadosamente elaborada, os diálogos são bem construídos e os personagens habilmente

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delineados. Quero dizer: não há fragilidade em sua dramaturgia, crítica constante no panorama atual do teatro infantil. Também não há aula de história e cultura para crianças. As referências a uma determinada época, tais como certo tipo de vocabulário, determinadas brincadeiras de crianças e costumes, são mostradas, dentro de um contexto artístico, sem nenhum tom didático. E, primordialmente, para mim, o que liberta esta dramaturgia da armadilha “educativa” (88) é o uso de forma transbordante da linguagem poética. Digo isto, porque apesar do trabalho da autora Acioly já ser reconhecido como exemplo de talento e competência, seria muito fácil, dentro da proposta temática, a peça enveredar pelos caminhos instrutivos, didáticos. Terminar a peça teatral com “Invocação em defesa à pátria”, música de Villa-Lobos, fornece um grande risco, por exemplo, de se resvalar para um patriotismo moralista, porém, o texto integra esta música ao espírito generoso e infantil do maestro: o espírito que absorve o mundo a sua volta, revelando, como toda criança, a capacidade natural de tornar o espaço o seu próprio eu. Reconhecê-lo como parte de si, e por isto ser capaz de amá-lo e cuidá-lo. Observo ainda que esta música está incorporada a uma cena cujo cenário é a Floresta Amazônica. Ou seja, Tuhu compõe esta música de amor à pátria no meio da natureza selvagem. A valorização da pátria não está vinculada de forma costumeira às instituições familiar e escolar. Tuhu descobre a pátria, sua música e a si mesmo nas ruas, nas matas, liberto de possíveis vínculos opressores. Nesta cena, enquanto “Invocação em defesa da pátria” é composta, os índios cantam ao mesmo tempo suas próprias músicas, entrelaçando as diferentes melodias num clima integrador. Ao final, todos cantam a música de Villa-Lobos, incluindo os índios, animais e toda a natureza, pois ela é capaz de tocar a cada um e irmaná-los. O amor à pátria como sua terra, não é um conceito abstrato, e o amor ao outro diferente de mim torna-se possível porque Tuhu é capaz de sentir e transmitir em sua música um elo comum a todos.

Retornando a Borges, em seu discurso sobre a linguagem poética, o escritor ressalta duas posições diferentes. A primeira, baseada no exemplo do pensamento de Robert Louis Stevenson, ressalta que a poesia estaria mais próxima do ser humano comum do que a música. Isto, pelo fato do poeta trabalhar com uma matéria prima conhecida por este homem comum: as palavras. Estas são usadas, em seu sentido lógico, diariamente, pelos seres humanos. O poeta seria a pessoa capaz de transfigurar as palavras ao distanciá-las deste sentido lógico e aproximá-las das sensações de encantamento e magia, já referidas anteriormente.

Na segunda posição, Borges apresenta um pensamento oposto ao anterior. O escritor acredita que as palavras não seriam originárias dos sentidos propostos pelos dicionários, e sim provenientes, desde o início, desse lugar envolto pela magia e pelo encantamento. Ou seja, o poeta, na verdade, não transformaria as palavras desviando-as de sua origem lógica e destinando-as à magia e sim, faria o movimento inverso: o movimento de retorno das palavras. O poeta seria o sujeito capaz de devolver às palavras o seu lugar de origem: o lugar da magia.

Borges diz:

(...) uma língua não é, como somos levados a supor pelo dicionário, a invenção de acadêmicos ou filólogos. Ao contrário, ela foi desenvolvida através do tempo, através de um longo tempo, por camponeses, por pescadores, por caçadores, por cavaleiros. Não veio das bibliotecas; veio dos campos, do mar, dos rios, da noite, da aurora. (89)

Assim, Borges conclui que a poesia pode aproximar-se da música no que diz respeito à capacidade de unir sua substância, sua forma e seu som. Na primeira colocação, baseada em Stevenson, a separação entre os componentes seria inevitável.

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O escritor acrescenta ainda que a linguagem poética diz respeito muito mais às sensações do que aos sentidos. Somos capazes de presenciar a sensação de confronto com algo belo, mesmo sem ter noção de seu sentido. Este sentido não é o mais importante do que a sensação provocada em nós.

E mesmo que percebamos o sentido de um poema, por exemplo, não saberemos com exatidão traçar o percurso da experiência do poeta. A linguagem poética, assim como a música, sempre terá algum mistério, algum caráter enigmático. Será uma linguagem que se dirigirá muito mais à imaginação do que à razão. Por isto, continua Borges, não precisamos testar a veracidade das metáforas, por exemplo, mas sim, sentirmos que elas se relacionam a uma real necessidade do autor em usá-las, afinal, estas mesmas metáforas correspondem fielmente às emoções sentidas pelo artista. Nesta perspectiva, as palavras são vivas e mágicas, pois as compreendemos através das sensações, afetos e da imaginação, e não a julgamos pela razão e lógica.

Caso analisemos todas estas considerações de Jorge Luis Borges sobre a linguagem poética e pensemos em tudo o que foi dito até agora sobre as dramaturgias analisadas e a natureza infantil, observaremos que esta percepção afastada da lógica convencional, próxima à imaginação, arraigada aos afetos, é nada mais nada menos do que o estado infantil, o olhar atento e curioso para o mundo que se revela e se descobre. Por isto, Tuhu indaga sobre o som que voa ou aquele som que molha. Observa as cores e se encanta. Como um poeta faria.

Um trecho da peça:

Cena 2 Raul e Noêmia (Juntos): Ah! Você! Você viu Tuhu? Noêmia: Eu não... Tuhuuuuuuu! Raul: Ah, meu Deus! Tuhuuuuuuu! Noêmia: Já tomou o seu remédio hoje? Tuhu: Já. Noêmia: Tomou o remédio certo? O azul de metileno? (Começa a tocar Co-Có-Có). Tuhu: Já. (Sai Noêmia). Eu adoro esse remédio... o xixi fica todinho azul...da cor do céu... (Tuhu sobe no telhado. Fica de costas para a platéia como se estivesse fazendo xixi). A vizinha tem um galo. Um galo branquinho... branquinho...(faz xixi e som de xixi) com o meu xixi, que beleza! muda de cor fica azul, todo azulzinho... Noêmia: Tuhuuuuu! O que você fez com o galo da vizinha, Tuhu? Não é possível! Tuhuuuuuuu! (Tuhu foge). (90)

O estado poético, artístico, é o estado da criança. O artista retorna, de certa forma, a esta instância. Mais uma vez, observo que para dialogar com a criança, qualquer que seja a expressão artística escolhida, é necessário, mais do que nunca, que o artista se coloque realmente na região da arte. Mais apurado ele deve estar em sua técnica e em seu aperfeiçoamento artístico de uma maneira global. O contrário, o artista conseguirá manter um “suposto diálogo” com determinados adultos, que já formatados em suas convicções rígidas e julgamentos artísticos cristalizados, terão medo de crer na sua sensibilidade dizendo-lhes que aquilo apontado como obra artística pode dizer respeito a tudo, menos realmente a uma proposta artística. Caso este mesmo adulto não tenha medo do que sua sensibilidade lhe diz, provavelmente então, ficará quieto como manda a “boa educação”.

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A criança não. A criança irá dormir, olhar à sua volta para ver se descobre algo mais interessante para explorar, ou então, simplesmente dirá em voz alta, bem alta, que quer ir embora.

3.4 - O jogo poético.

Escutar as imagens, ver as palavras, tocar a música...

Alberto Miralles. (91)

Começo minha leitura, apontando o teatro como espaço poético. Poderíamos visualizar o espaço físico do teatro como uma simples caixa preta, onde de repente, somos capazes de transformá-la na casa de Lasanha e Ravióli, depois na floresta onde Chapeuzinho Vermelho encontra o Lobo, ou ainda nas ruas onde Tuhu encontra os chorões para empinar pipa e aprender música. Em outro instante, vemos a Floresta Amazônica, por onde Tuhu viaja com Donizetti.

Naturalmente, este espaço relaciona-se à questão temporal. Colocarei como exemplo, a peça agora analisada. “Tuhu, O menino Villa-Lobos” inicia quando Raul anuncia, como narrador, o nascimento de seu filho, Heitor Villa-Lobos. Em seguida, é travado um diálogo entre o pai e Tuhu. Depois, vamos acompanhando as primeiras brincadeiras de Tuhu, o aprendizado musical, a experiência escolar, os primeiros amores, etc... No desenrolar dramatúrgico, chegaremos à adolescência de Tuhu, seu primeiro concerto musical e sua partida de casa para conhecer o Brasil. Ou seja: o tempo dramático não se relacionará ao tempo da representação desta peça teatral. Concluindo, o teatro em si é o local do jogo e da metáfora.

A palavra teatral, proferida pelo ator, circunstanciará também este tempo e espaço. Os diálogos apresentados em “Tuhu, O Menino Villa-Lobos” nos levarão para o espaço teatral, mesmo que estejamos apenas fazendo uma leitura da peça, e não sua encenação. Afinal, repito, as palavras no teatro estão inevitavelmente e impreterivelmente relacionadas à ação.

O dramaturgo e ensaísta Denis Guénoun escreve, em seu livro “A exibição das palavras”, que a palavra no teatro é “o verbo tornado carne”(92) Para o autor, o teatro é o espaço onde as palavras são corporificadas, onde as percebemos como algo concreto. Esta percepção do público se dá não somente pelo aspecto lógico que o sentido da visão costuma relacionar-se, mas sim por uma visão caracterizada pela globalização de todos os nossos sentidos, numa experiência totalizadora. Mesmo que não estejamos vendo o espetáculo teatral, apenas lendo seu texto, penso que o texto que pretende ser realmente teatral deve ser capaz de nos levar para este espaço da imaginação da ação e suas sensações. As palavras no texto teatral devem relutar a permanecerem no papel, levando forçosamente o leitor para este espaço do jogo dramático. Assim, será prazerosa a leitura de um texto teatral e o seu leitor se sentirá estimulado, conseqüentemente, a ir ao teatro.

Esta dinâmica de fornecer corpo às palavras, como escreve Guénoun, é o que fornece teatralidade às palavras. E esta teatralidade é correspondente ao dito jogo cênico, ao seu aspecto lúdico.

Faço esta colocação aqui, para dizer que o teatro em si, e aí incluo sua dramaturgia, é um ato poético “por natureza”. Por isto, quando realmente se faz teatro, encontramos a palavra como poesia, espaço de confronto e dona do tempo. Naturalmente, uma palavra associada a todos os outros recursos que o teatro pode nos oferecer. Especificamente em “Tuhu, O Menino

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Villa-Lobos” vemos a música como outro corpo imprescindível. A música aqui também é palavra, tempo e espaço, pois nos enreda à trama dramática.

Este transfigurar da palavra em corpo ativo, de uma caixa preta em espaço e tempo determinados por nós, artistas e leitores, correspondem, obviamente ao universo lúdico, inerente ao artista e à criança.

Esta fábula da infância de Villa-Lobos nos dá a sensação da infância como estado passível de eternidade, pois ela é sempre tempo presente e espaço do mundo como algo físico. O pensamento a vir é sempre decorrente desta concretude da experimentação. Assim, a peça teatral nos fornece inevitavelmente a mesma aura de magia do jogo lúdico e poético. O mesmo encantamento de um verdadeiro “faz de conta infantil”.

Henriqueta Lisboa faz uma reflexão sobre a freqüente concepção teórica fundamentada na relação entre a poesia e a infância e que julgo ser importante registrar aqui. Antes, reitero a possibilidade do teatro e do fazer artístico alcançarem um estado poético, como o referido pela escritora. Lisboa verifica que tanto o poeta como a criança, experimentam suas vivências pela imaginação e pelo uso de metáforas. A autora também diferencia a imaginação de ilusão escapista ou incapacidade de perceber a realidade. Ao contrário: a criança, como o artista, confronta-se com a realidade sim, porém sua forma de expressão perante a esta realidade é feita de forma diferente, criadora e lúdica. A necessidade de jogar é imperativa.

Cito então um trecho do artigo de Lisboa, pela concisão e beleza de seu pensamento:

(...) quando o índio da Polinésia, proibido de nomear as cousas que pertencem ao chefe, vê fogo ou luz na casa real, exclama: ‘O raio arde nas nuvens do céu’. O conhecimento da realidade é a substância mesma de sua metáfora. Não há ilusão, há troca de valores. Assim a imaginação, que tem como chave de ouro a metáfora, não representa uma fuga, mas uma libertação, como o seu poder de vencer tabus, ultrapassar horizontes, cristalizar o abstrato, circunscrever ao pequeno mundo dos sentidos a beleza universal, beber copos de liberdade.

É um jogo consciente e sério, em que o poeta se revela meio selvagem. Por seu turno, não são ingênuos os selvagens quando falam por símbolos. Nem tão pouco as crianças, no cerimonial dos brinquedos. Contam que, em meio às festas de Natal, certa vez, disse uma criança a outra que Papai Noel eram os próprios pais... A que ouviu, delicada, nunca mais pode esquecer o golpe moral intenso que no instante sofrera, não porque desconhecesse o segredo, mas porque não deveria ser dito. Assim como a infância preserva lindamente a poesia, também a poesia pode preservar a infância através de todas as idades. (93)

Podemos reparar que Henriqueta Lisboa usa a palavra ‘jogo, um jogo sério’. A mesma seriedade da criança que crê no poder de sua imaginação ao brincar, ao dramatizar absorto naquela atividade e instante único. Característica da natureza infantil, já citada no segundo capítulo desta dissertação, quando assinalei os conceitos propostos por Peter Slade.

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Penso que já demonstrei, em todo este capítulo, como a dramaturgia de “Tuhu, O Menino Villa-Lobos” apresenta, em seu corpo textual, o jogo com as palavras, a música, o tempo e espaço.

Agora, como ilustração, cito alguns trechos representativos do aspecto lúdico e teatral apontado por mim na dramaturgia de Acioly. No primeiro trecho destaco a ludicidade espacial da cena sugerida pela autora:

Cena 15 - Banana Glacê (Toda a movimentação da cena se dá como um jogo de pique-espaço: se um dos personagens se movimenta, os outros três imitam esse movimento, como se estivessem cada um em um dos quatro vértices de um quadrado. Tia Fifina entra e apresenta orgulhosa o sobrinho): Tia Fifina: Este é meu sobrinho, Heitor Villa-Lobos, este é o Sr. Barbosa, pai de Dulcinha. Os dois: Prazer. Os dois: O prazer é todo meu. ( Risos e constrangimentos) Sr. Barbosa: Como já deve saber, Sr. Heitor, Dulcinha é tudo para mim. Se suas intenções são sérias com minha filha, terá que arrumar trabalho seguro. Eu lhe ofereço um! Dulcinha: Que bom, papai! (Tuhu e tia Fifina estranham tudo). Sr. Barbosa: Eu tenho uma fábrica de doces de banana glacê em Minas Gerais (tira um do bolso e mostra a Tuhu) e preciso vender mais...! De forma que aqui estão a passagem e o dinheiro, para você fazer a venda. Se conseguir, casa com Dulcinha! E ainda vão passar a lua-de-mel em Paris! Dulcinha: Em Paris? ( Animadíssima). Sr. Barbosa: Oui em Paris... comendo petit-pois e acendendo abat-jour. Tia Fifina: Paris...Paris...Paris...( Animadíssima). Tuhu: Paris...Paris? (Totalmente indignado). (Tuhu começa a girar no centro do palco. Tia Fifina ao piano toca a Melodia Sentimental). (94)

Percebemos o jogo lúdico presente na marcação proposta pela autora. A brincadeira do pique espaço, onde se dá a imitação dos movimentos de cada um, propicia uma integração entre texto e espaço, além de um humor lúdico. Isto se dá não somente pelo jogo dos corpos dos atores no espaço cênico, mas também porque a marcação proposta pela autora possui uma coerência com a situação de constrangimento dos personagens em cena. Esta cena retrata o primeiro encontro de Tuhu com o pai da garota em quem está interessado. O pai já tem segundas intenções, a filha está somente interessada em que o namoro dê certo, já Tuhu não sabe direito o que fazer e tia Fifina desempenha um papel de “mestre de cerimônias” do encontro. Os personagens, cada um com seu objetivo, se enquadram literalmente num quadrado, onde procuram chegar a um consenso harmonizador, sem resultados satisfatórios. Daí a repetição dos movimentos de cada um. Porém, como não há uma veracidade interna correspondente aos desejos de todos, estes terminam a conversa num clima constrangedor.

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Ou seja: a marcação espacial sugerida fornece humor e beleza, pois condiz com a cena proposta. O jogo e a poesia se fazem presentes porque estão entrelaçados como um único corpo.

Naturalmente eu sei que um diretor pode escolher outra concepção cênica ao montar o texto, porém, é necessário admitir-se que a sugestão da autora demonstra, além de jogo e poesia, uma dramaturgia de estrutura consistente e dialógica, (já no papel), com o espaço cênico. Uma dramaturgia realmente teatral, pois a palavra apresenta-se como um corpo dramático.

Ao final, por exemplo, o giro de Tuhu demonstra claramente como este ficou perdido com a proposta do Sr. Barbosa. Não somente a cabeça de Tuhu girou, mas o seu corpo inteiro.

Um outro exemplo interessante para ilustração está na cena onde Villa conhece Donizetti no Amazonas:

Cena 18- Donizetti e Villa (Teatro de animação. Onça-cara feita em máscara e corpo de atriz - traz o rio Negro em cena. Indiazinhas surgem dançando e, numa espécie de ritual, trazem primeiro o rio Solimões, depois, o rio Negro. Donizetti e Villa quase levitam sobre eles, estão em rios diferentes navegando até se encontrar; como os rios, a música vai modulando para De kekeke). Tuhu: Ei! Quem é você? Donizetti: Eu sou Donizetti. E você? Tuhu: Eu sou Villa-Lobos. Você sabe para onde estamos indo? Donizetti: Estamos indo conhecer o Brasil, o país mais lindo do mundo! A Amazônia, o rio Solimões, o rio Negro, encontro das águas! Tuhu: Ei, ô! Você faz o quê? Donizetti: Sou músico. Tuhu: Eu também. Toco violoncelo, violão, às vezes até sou maestro de orquestra, na verdade toco um pouco de tudo e...componho. E você? Donizetti: Eu? (Solta a voz) Toco violino, saxofone e, quando eu posso, eu canto. (Canta de novo). Tuhu: Para onde você vai? Donizetti: Vou conhecer o país mais rico do mundo! Tuhu: (desconfiando da resposta) É esse aqui? Donizetti: É o Brasil, esse Brasil que não está no mapa. Todinho, cantinho por cantinho. Navegando pelos rios, rio Amazonas, rio Negro, o encontro dos rios... ÔOOO! (Cai). (Tuhu vê aquela figura divertida, os dois começam a acertar o passo numa coreografia divertida. Donizetti nunca acerta o passo e está sempre em desequilíbrio, até cair da sua canoa, que é retirada pelas indiazinhas. Villa ajuda Donizetti a subir na canoa e começam a ouvir os sons da floresta). (95)

Nesta cena vê-se a poética e o jogo relacionados às palavras, à música, à plasticidade visual na coreografia proposta e ao cenário baseado no teatro de animação. É notório que o teatro de animação é um recurso muitas vezes utilizado no teatro infantil. A maneira de fazê-lo em cena irá constituir seu sucesso ou fracasso. Mas certamente, observa-se que aqui, já na escrita, ele está contextualizado na cena e não de forma gratuita, pois revela uma maneira

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interessante e plasticamente bonita de representar a natureza. Além disto, a máscara de onça no corpo aparente da atriz traz uma teatralidade marcante. As índias promovendo o encontro das águas como um ritual caracteriza aquele momento como um momento poético e especial. O encontro dos rios é também uma metáfora do encontro dos dois músicos. No fundo, apesar de não marcado, aquele não é um encontro casual. Ambos personagens têm o porquê de se encontrarem, afinal possuem os mesmos ideais e estão em momentos de vida similares. A modulação da música indígena sugerindo o encontro dos rios e dos dois personagens transmite uma imagem cheia de poesia e beleza.

O humor lúdico na dramaturgia apresenta-se de modo delicado e lírico, não de maneira rasgada como em “Lasanha e Ravióli in casa”. Aqui, especificamente nesta cena, o humor aparece primeiro na dúvida de Tuhu sobre qual é o país mais rico do mundo e depois surge no descompasso corporal de Donizetti. O músico, ironicamente e poeticamente, perde o ritmo no corpo.

As índias, retirando a canoa de Donizetti em cena, ressaltam, mais uma vez, a teatralidade textual. E a observação dos sons da floresta pelos dois músicos imprime, mais uma vez, o caráter musical como algo existente já no meio ambiente, e no caso presente na natureza selvagem. Antes mesmo das notas musicais, a natureza circundante já revela a musicalidade.

A música, e de certa forma também a poesia, provocam-nos por um caminho mais físico do que racional e são capazes de deixar para nós, como presente, diversas percepções sensoriais e imagéticas. Elas revelam, imperiosamente, para nós todos, uma instância sempre renegada: a instância da infância. Renegada, pois navega pelo indizível e pelo encantamento. Se eu não sou capaz de nomear, eu não domino. E assim sofro num mundo repleto de convenções vazias. Por isto Tuhu sofre. Por isto toda criança sofre.

Porém, o indizível é também o lugar do encantamento, da magia. E é neste mesmo lugar que os artistas e as crianças se irmanam.

E assim, “Tuhu, O Menino Villa-Lobos” representa um elogio teatral à infância.

Termino este capítulo com o registro do juramento de Tuhu ao ganhar um pequeno violoncelo dos pais. Ele diz:

Tuhu: Nossa, pai, como ele é lindo! Eu prometo que eu vou merecer este violoncelo, pai. (Entra música. Sonata para celo). Eu juro te amar a vida toda, na pobreza e na riqueza, na saúde e na doença...minha música...minha mãe...meu pai. (Noêmia e Raul saem de cena). Tuhu (Só) : Eu juro te amar a vida toda, na pobreza e na riqueza, na saúde e na doença...minha música...minha mãe...meu pai. (96)

O artista é aquele que decide levar adiante o projeto de continuar a ser criança. E é durante este pacto com a música que o menino Villa-Lobos também faz um pacto eterno com a infância.

Para sempre Tuhu.

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Notas de Rodapé 61. Jr. Simões, José Geraldo, O pensamento vivo de Chaplin. SP: Martin Claret, p. 91. 62. Informação dada pela própria autora. Segundo Acioly, o trabalho estava em processo de revisão. 63. Observação verificada em seu acervo pessoal de críticas para o JB. 64. Acioly, “Tuhu, O Menino Villa-Lobos”, p. 10. 65. Idem. 66. Colocação presente em Dramaturgia - hoje e sempre. 67. Jorge Luis Borges, Esse ofício do verso, São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p.105. 68. Huyssen, Memórias do modernismo. RJ: UFRJ, 1997. 69. “Villa-Lobos por ele mesmo”, de Celso Kelly, in “Presença de Villa-Lobos”, Vol. 8, MEC- DAC- Museu Villa-Lobos, 1973. 70. Op.cit., p. 15-16. 71. Ibidem, p. 16-17. 72. Op.cit., p. 65. 73. Op.cit. p. 66. 74. Ibidem, p. 52. 75. Idem. 76. Ibidem, p. 53. 77. Op.cit., p. 10-11. 78. Apud Kelly, p. 63. 79. Ibidem Kelly, p. 60. 80. Frase de Lobos: “Toda a minha filosofia se centraliza na música, porque a música é a única razão, único motivo para a minha existência”. Ibidem, p. 65. 81. Ibidem, p. 26. 82. Ibidem, p. 62. 83. Novarina, “Diante da palavra”,Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003, p. 24. 84. Lobos apud Acioly, p. 7. 85. Jr.Simões, José Geraldo, “O pensamento vivo de Chaplin”.São Paulo: Martin Claret,1984, p. 69. 86. Op.cit. p.14. 87. Borges, “Esse ofício do verso”, São Paulo: Companhia das letras, 2001, p 83. 88. Utilizo aqui a palavra educativa entre aspas, pois faço uma alusão ao seu pior sentido. Quando é retirado da obra justamente o seu principal valor, o artístico, e a restringem como um objeto meramente educativo. 89. Op. Cit., p. 86. 90. Op.cit. , p. 11. 91. Miralles, “Novos rumos do teatro”, R.J: Salvat, 1979, p.19. 92. Guénoun,“A exibição das palavras”, Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto, 2003, p. 77. 93. Lisboa, “Infância e Poesia”, in Revista do Conselho Estadual de Cultura de Minas Gerais, n. 8, Belo Horizonte, 1980, p. 51-52. 94. Op.Cit., p. 21-22. 95. Op.Cit, p. 25-26. 96. Op.Cit., p. 13.

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Capítulo 4 -“É Proibido brincar” ou O Direito ao Prazer

Criar é tão difícil ou tão fácil como viver. E é do

mesmo modo necessário. Fayga Ostrower (97)

O terceiro texto escolhido para minha análise chama-se “É proibido brincar”, de Luiz Paulo Corrêa e Castro e data de 1998. O autor referido é também jornalista. Sua dramaturgia relaciona-se fundamentalmente à trajetória do grupo carioca “Nós do Morro”.

Segundo o site oficial do grupo, o “Nós do Morro” teve seu início em 1986. O diretor de teatro Guti Fraga iniciou no Morro do Vidigal um movimento cultural para desenvolver o interesse da comunidade pelo teatro, além de formar atores e técnicos. A estréia teatral oficial aconteceu em 1987 com a peça “Encontros”, elaborada a partir de improvisações ocorridas nas oficinas teatrais. Os autores eram Luiz Paulo Corrêa e Castro e Tino Costa.

De lá para cá, o grupo amadureceu em sua pesquisa teatral e além de fundar um teatro no Morro do Vidigal, conquistou espaço nos teatros da cidade e junto à crítica especializada. O grupo resgata a importância da inclusão social, mas nunca perde de vista a busca por uma excelência teatral.

O “Nós do Morro” já representou peças de autores tradicionais como Martins Pena, Ariano Suassuna e José Vicente. As outras peças do grupo são de autoria do dramaturgo citado Luiz Paulo Corrêa e Castro.

O texto teatral “É proibido brincar”, segundo as informações do próprio autor fornecidas por e-mail, foi escrito originalmente em 1998, com o propósito de estrear no teatro da Casa de Cultura Laura Alvim, em Ipanema, numa temporada de um mês. Depois, o espetáculo foi para o Teatro do Vidigal. Em 2003, a peça foi remontada no Vidigal novamente, além de ocupar a sala Marília Pêra, no Teatro do Leblon.

Este texto foi a primeira incursão do dramaturgo e do grupo num trabalho direcionado para crianças e, penso eu, uma investida bem sucedida.

Como já escrevi antes, o mais grave problema atual no texto/espetáculo direcionado às crianças consiste ainda na imagem que a nossa cultura tem em relação a este público. A dramaturgia é muitas vezes frágil, mas este problema técnico é passível de ocorrer em todo tipo de dramaturgia.

No caso do texto teatral para crianças, muitas vezes esta fragilidade decorre da insistência no uso de um discurso pejorativo. A própria palavra infantil, hoje, possui uma característica negativa. Portanto, escolhi novamente um texto de dramaturgia consistente, mas que primordialmente trata a criança com respeito e dignidade. Além da originalidade.

No texto de “É proibido brincar” encontramos a figura da criança vinculada a temas que não estamos acostumados a ver em nossa ficção teatral. Temas como política, trabalho e o próprio abuso de poder. Em nossa realidade já vimos que a maior parte de nossas crianças está inserida de forma violenta em questões tidas como pertencentes ao mundo adulto, mas na escrita teatral isto não aparece usualmente. Por isto penso ser importante discutir este texto. Friso também que jamais o texto resvala para uma escrita “panfletária”, num ultrapassado teatro “engajado”. O texto “É proibido brincar” levanta estas questões sérias numa proposta

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essencialmente artística, comprometida com o lúdico e com a imaginação. Eis aqui, dois trechos da peça para demonstração do que eu aludi:

Cena 2

Na rua, Barbarela canta uma modinha para Pedrão. (...) Zero: Pô, o governador acabou com o natal. Barbarela: Cada dia é uma novidade. Já não tinha mais feriado, fim de semana e brincadeira. Agora é o natal. Pé de Arraia: Só dando uma trava nesse tal de governador. Pedrão: Eu quero o presente que o meu pai comprou pra mim. Mayra: Fica calmo meu amor. A gente vai dar um jeito. Eu juro prá você. (...) (98)

Cena 3

Pé de Arraia: Sujou! Tá vindo um camburão! Barbarela: Mas camburão tem asa, Pé de Arraia? Pé de Arraia: Não, por quê? Sayonara: Por que este camburão aí ta vindo do céu. Zero: Então é um balão. Pedrão: É papai Noel! É papai Noel! Mayra: É muito mais do que isto, pessoal. Eu tô sentindo um negócio diferente. Barbarela: Mayra, não começa não, hein? É um balão e pronto! Zero: Vamos cantar pra este balão cair? Zero comanda a cantoria. (99)

A história se inicia com um decreto do governador do Estado proibindo o natal. O mesmo governador já tinha proibido todos os outros feriados e qualquer tipo de diversão. O objetivo era aumentar a produção econômica, principalmente nas fábricas. As crianças também estavam proibidas de brincar nas ruas.

As crianças do Morro do Vidigal já estavam revoltadas com esta situação, e com este último decreto, resolvem se rebelar. Elas brincavam no morro, o que já era uma desobediência à lei, quando avistam no céu um balão. O balão cai e elas vão até ele. Na verdade, o balão era uma nave espacial. Caco, Cléo, o filho deles e o robô Salvador são aurorianos (do planeta Aurora) e estão viajando pelo espaço para descobrir o segredo da felicidade, pois o seu povo está sofrendo de uma terrível melancolia. Como tinham visto do telescópio os meninos felizes, decidiram descer para descobrir “o segredo da felicidade”. Após o medo inicial, todos conversam, e os meninos surpresos dizem aos aurorianos que não havia segredo nenhum. Estavam felizes apenas porque estavam brincando. Dizem também que aquilo era agora algo considerado perigoso, devido à proibição do governo.

Neste momento, o Governador e seus assessores vêem tudo por satélite e vão até lá, primeiramente para coibir a brincadeira e depois para o governador verificar se poderia obter algum lucro com os extra - terrestres. As crianças fogem e o governador interessado em ampliar

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seus poderes leva Caco e Cléo para todos conversarem melhor no Palácio da Cidade. Lá, acaba prendendo-os, com o objetivo de roubar a nave espacial. Assim, seu projeto de dominar todas as cidades do mundo seria facilitado.

Enquanto isto, as crianças do Vidigal planejam promover, junto com as crianças do Morro do Salgueiro, uma greve geral das fábricas no Rio de Janeiro. O objetivo seria conter o governador em suas proibições (feriados, natal, brincadeiras, etc...) A cada fábrica parada, uma pipa seria empinada. E todas as crianças estariam na rua brincando.

Depois de prender Caco e Cléo no Palácio, o governador e seus assessores seqüestram a nave com Salvador (o robô), Johny, filho de Caco e Cléo, e ainda Mayra, uma menina do Vidigal que tentara impedir seus planos.

Ocorre, no entanto, algo inesperado: uma baleia aparece na praia do Vidigal com seu filhote, o que gera a paralisação dos operários da fábrica de mariscos do local. Há mais de 60 anos uma baleia não aparecia na praia, o que despertou um grande alvoroço na cidade.

Este evento, junto com a manifestação provocada pelas crianças para a greve geral das fábricas, fez todos pararem o trabalho e irem para a praia. Em pouco tempo o céu estava coberto de pipas.

O governador, vendo tudo do alto, não se conformava com a possibilidade da baixa de produtividade da economia. Também não estava nem um pouco satisfeito em ver seus planos de construção de um grande império serem enfraquecidos. Por isto, continua irredutível.

Salvador, o robô, percebe então que a única solução para conter o governador seria a nave ficar sem comando, o que a faria aterrissar através de um comando automático. O robô pede então a Mayra que retire uma placa de suas costas, ocasionando assim sua “morte”.

A nave desce justamente na praia, que por sinal já estava repleta de gente. Todas as pessoas da cidade já tinham parado seus trabalhos e estavam reunidas para ver a baleia brincando com seu filhote.

Já em terra, o governador não admite a derrota, impedindo todos de saírem da nave. Porém Caco e Cléo, como já tinham fugido do Palácio do Governo com a ajuda de moradores do Vidigal, começam a negociar com o governador. Fica decidido então a liberação de Mayra e Johny em troca da nave espacial. Porém, quando o governador ouve os comentários das crianças sobre o fato de todas as fábricas estarem paradas (tal era a quantidade de pipas no céu), ele desmaia. Assim, as crianças escapam de dentro da nave. No momento em que os aurorianos Caco e Cléo revêem seu filho, Johny, eles sorriem; tornam-se então capazes de sentir um pouco de felicidade, um sentimento há muito tempo não mais vivenciado por eles. As crianças do Vidigal percebem a modificação nos aurorianos (mesmo momentânea) e ficam contentes de terem presenciado o fato.

Para conseguir que a população volte a trabalhar, o governador é obrigado a fazer um outro acordo mediado por Caco e Cléo. Eis o acordo: a população voltaria a trabalhar, mas o governador seria obrigado a devolver a nave espacial. E mais: as condições de trabalho agora estariam vinculadas ao direito aos fins de semana, feriados, brincadeiras liberadas nas ruas, além da comemoração do natal, cuja proibição tinha sido o estopim da revolta das crianças.

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Destaco alguns pontos que, me parecem, têm importância no texto.

Primeiro: a valorização da criança como a ponte de transformação. A revolta contra o abuso de poder e a decisão de provocar uma mudança parte da criança e não do adulto. Naturalmente, esta revolta aconteceu pelo fato da criança ter sido atingida justamente na sua atividade essencial e principal: o ato de brincar. E o prazer decorrente desta atividade.

O clímax da revolta se estabelece com a proibição da festa natalina. Uma festa, onde, muitas vezes, a grande animação provém das próprias crianças. Para os adultos sempre há algum resquício de tristeza.

De forma inteligente, o texto não mostra as crianças como super heroínas, visto que a presença dos aurorianos e da baleia com seu filhote favorecem a greve geral. Estes fatores extraordinários, no próprio sentido da palavra (fora da ordem comum) facilitam o projeto das crianças. Porém, também observo que estes mesmos fatores relacionam-se ao universo da criança, ao seu imaginário. Tanto a baleia (um animal), como a presença dos extra - terrestres (não entro aqui no mérito científico, pois este é um ponto de vista adulto). Estas presenças facilitadoras da rebelião, ao pertencerem ao universo infantil, reiteram a potência de transformação da criança.

Um ponto crucial do texto teatral “É proibido brincar” consiste na ausência de maniqueísmo. Este problema, como reconhece grande parte da crítica, é geralmente encontrado nos textos direcionados para as crianças.

O governador, por exemplo, caracterizado pela sua obsessão desmedida pelo poder, é uma figura comum hoje em nossa realidade. Mas no final da peça, este mesmo político é capaz de ficar encantado quando vê o filhote da baleia, o que aponta a presença do afeto e capacidade de enternecimento no personagem.

Já os aurorianos possuem nomes comuns de pessoas, como: Cléo, Caco e Johny. Eles viajam para tentar “salvar” seu povo (incapacitado de sentir qualquer felicidade) e interrompem sua missão para ajudar o povo terreno ameaçado pela perda de liberdade. Mas também não são protótipos de heróis perfeitos. Os aurorianos são capazes de equivocarem-se como nós ao pensar que possa existir uma “fórmula” para a felicidade, e mais, uma fórmula que possa ser comprada. Os aurorianos possuem e apresentam atitudes louváveis e equivocadas ao mesmo tempo. Ironicamente, o robô, justamente a máquina, possui o nome de Salvador. E é uma máquina capaz de demonstrar sensibilidade, pois como diz a personagem Mayra, apesar de ser máquina, ele possuía “mais alma do que muita gente” (100)

Outro ponto interessante consiste no fato de que os aurorianos experimentam a felicidade (no momento do reencontro com o filho), mas voltam para o seu povo sem a resposta concreta do que é esta tal felicidade. Os aurorianos continuam sem ter o domínio sobre a felicidade. Aqui, vê-se que não é pelo fato do texto ser uma dramaturgia para crianças que tudo deve ser facilmente explicável. Nesta questão uma lacuna se faz presente: nem os aurorianos descobrem a “fórmula da felicidade” e nem insistem mais nesta descoberta. A resposta que tanto queriam não a obtém. Eles foram capazes de sentir, de experimentar a felicidade, como as crianças do Vidigal a sentem ao brincar. Mas não há controle nem certezas neste querer. A felicidade acontece. Momentos que podem ser propiciados ou não, mas sem garantias.

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A peça “É proibido brincar” é um texto contemporâneo por tratar de temas atuais como o abuso de poder e ambição desmedida, a melancolia crescente nas pessoas (vê-se que a depressão é uma doença que cresce mundialmente) e a falta da oportunidade de uma vida digna à maior parte da população, incluindo aí muitas crianças.

“É proibido brincar” possui o mérito de não vetar à criança estes temas na ficção teatral. Mas, é importante frisar que esta ficção acontece sem nenhum desalento ou didatismo, simplesmente veiculada pelo aspecto lúdico, onde o ato teatral conduz à narrativa. Com certeza, não é à toa que esta dramaturgia relaciona-se com o grupo “Nós do Morro”. Mas, como disse anteriormente e reitero, é a escrita teatral e artística que imperam.

Antes de tudo é necessário brincar. E as crianças sabem disso. As crianças do Vidigal (personagens da peça) subvertem a ordem estabelecida e brincam.

Assim, “É proibido brincar”, de Luiz Paulo Corrêa e Castro, subverte a política e brinca de teatro. E, diga-se de passagem, uma brincadeira muito séria.

Faço uma observação: quando a criança brinca de “faz de conta”, ela leva a brincadeira a sério. E muito. E assim subverte a realidade, recriando-a.

O artista também brinca. E para sua brincadeira ser levada a sério e ser considerada arte, ele deve ser o primeiro a comprometer-se verdadeiramente, como a criança se compromete em seu brincar.

Mais do que nunca, é necessário o artista lograr sua profissão. Porque mais do que nunca, precisamos de arte. Todos. E não é porque o artista se dedica a uma arte feita para crianças, ele deve pensar que esta é uma arte “menor”. Porque, desta forma, não será arte.

Afirmo mais uma vez: o teatro para crianças é antes de tudo teatro. A dramaturgia para crianças é antes de tudo dramaturgia. E a arte para crianças é antes de tudo arte.

Voltando à especificidade do texto escolhido, quero ainda destacar, para uma análise mais profunda, três aspectos relacionados a esta dramaturgia. Um deles é a questão do espaço. Eu percebo que “É proibido brincar” é um texto que todo o tempo discute de forma direta ou indireta o espaço. Poderia, de saída, destacar o espaço do trabalho e do lazer, o espaço privado e público, o espaço da coerção e do desejo, o espaço da criança e o espaço do adulto, o espaço do eu e do outro e conseqüentemente o espaço da palavra em confronto. Além destes espaços, ainda há o próprio espaço planetário, exemplificados no texto pelo planeta Terra e pelo planeta Aurora. Já vimos, destacada principalmente no segundo capítulo, que o espaço é uma questão fundamental no teatro e importante também, para trazer junto de si a própria questão temporal. Muda-se o espaço, sugere-se que o tempo passou, por exemplo. A questão espacial demarcada fornece uma concretude para revelarmos todo um contexto. Esta questão espacial será analisada por mim, em termos da própria representação na literatura dramática.

A partir daí, gostaria de levantar outras questões referentes ao texto, mas também plausíveis de serem ampliadas para outras referências de discussões, porém igualmente relevantes. Uma delas, diz respeito, ao aspecto político desta peça, na verdade, ao aspecto “trans – político” da peça, pois ela o ultrapassa e desemboca, justamente, no terceiro tópico a ser destacado: o aspecto artístico. As crianças de “É proibido brincar” são políticas, pois, em sua ainda frágil apreensão dos códigos sociais, percebem intuitivamente que é necessário ultrapassar

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o político e chegar ao poético. É necessário brincar e é necessário criar. É necessário adaptar-se à sociedade, mas sem matar nossos desejos e prazeres. É necessário subverter a noção do que é ser político, antes de tudo.

A criança, em seu desejo imperativo de brincar e sentir prazer, nos provoca a necessidade de criar, de imaginar, e porque não, de fantasiar. O ser humano vai crescendo e aprendendo que fantasiar pode ser perigoso, e também por isto a leitura pode ser perigosa. Não é à toa que tantos livros já foram queimados em nossa história... Dar asas à imaginação e à fantasia é perigoso, pois nos estimula a ultrapassar. Ultrapassar o poder pré –estabelecido, o formalismo inútil e a morte de nossos desejos. Transcendemos o real para podermos voltar a nossa própria origem. A cada pipa empinada no céu, eu volto a brincar. O extra - terrestre me ajuda a ser livre, pois está fora da terra. É extra. É fora do ordinário. Há sessenta anos a baleia não aparecia na praia. Uma baleia que brincava com seu filhote. É urgente sair do cotidiano. A criança sabe disto e o artista sabe disto.

Constato, definitivamente, o significado da frase de Pirandello, ao dizer que é mais difícil fazer teatro para crianças do que para adultos. É mais difícil, pois será inevitável penetrar na região da criação, do artístico. Saltar para fora, tirar os pés do chão, não num simples devaneio fugitivo, mas sim num salto que me traga de volta revigorado e corajoso. Os aurorianos são nós mesmos, esquecidos de nossas primeiras impressões, onde a ausência da palavra não significava um grave problema, afinal, ainda éramos capazes de contemplar e ficar absortos perante o primeiro raio de luz.

Talvez, quando o homem não mais temer o espaço do início, onde as formas ainda estão na penumbra e a aurora ainda não foi capaz de iluminar tudo, ele terá coragem de criar mais. Este homem também terá a necessidade, quase voraz, de alimentar seu corpo com arte. E acima de tudo, não temerá mais a infância, portanto, não a desprezará.

4.1 - Uma questão de espaço.

O espaço aberto à existência do outro, pelo reconhecimento de seu direito à diferença, tem uma dimensão ética e outra política, além da de natureza estética. Por conta de nos sabermos iguais nos direitos e diferentes nos desejos e suas expressões, abre-se uma porta à compreensão da diversidade que, na condição humana, só a dignifica pela complexidade apresentada, painel de pluralidades e de alternâncias.

Eliana Yunes (101)

“É proibido brincar” inicia com uma voz de um locutor em off, anunciando que o governador acabara de decretar o fim do natal. Logo depois, o Governador, também em off, comenta a importância de sua decisão.

Ou seja, uma voz em off, não apresentada em cena, somente ouvida, decreta aquilo que será o conflito maior da peça. O Governador faz mais um decreto sem a necessidade de aparecer em cena. O poder não tem rosto, somente uma voz que ecoa no espaço.

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Já a segunda cena, citada anteriormente, mostra as crianças na rua cantando e discutindo a medida do poder público. Reparo, que durante toda a peça, a rua é o cenário da infância. As crianças foram proibidas de brincar nas ruas, porém é neste espaço proibido que permanecem todo o tempo. Elas insistem na desobediência ao poder estabelecido.

Por sinal, a dramaturgia sugere apenas quatro espaços cênicos: as ruas do morro, a praia do Vidigal, (espaços públicos), o Palácio da Cidade, (espaço representativo do poder público) e o espaço sideral.

Os dois espaços públicos, as ruas e a praia, lugares caracterizados pela possibilidade de socialização e lazer, estão proibidos de serem freqüentados pelo povo. Afinal, o direito ao prazer e ao ócio está proibido. O povo deve somente trabalhar. As crianças, mesmo não trabalhando, devem ficar em casa, a fim de não exporem suas brincadeiras aos olhos alheios. O lazer permitido está condicionado à possibilidade de assistir ao canal de televisão dos trabalhadores. Naturalmente, o assunto televisivo é trabalho.

O Palácio da Cidade é o local onde os homens de poder decidem as condições de vida do povo e monitoram esta vida através de satélites. Por sinal, o Palácio da Cidade é um espaço representativo do poder público, sendo que caracterizado como um local previamente restrito à presença do povo. Algo notório: eu elejo quem ocupará este espaço e irá me representar, eu coloco esta pessoa ali, porém minha entrada não é liberada.

Na Cena 5, quando o governador e seus assessores se apresentam aos extra-terrestres, há um humor crítico bem definido. Transcrevo aqui para ilustração do que digo:

Chegada do governador. Crianças saem correndo.

Governador- Muito bom dia. Quer dizer então que vocês são os extraterrestres? Dr. Oliveira- Senhores marcianos,...hum, hum, hum...queiram me permitir apresentar sua excelência imperial, o governador. Autoridade máxima da cidade. Chefe dos executivos e dos executados. Dra. Carolina- Deixa de ser chato, Oliveira. Governador, vamos ao que interessa? Governador- Ahn? Claro! A que devemos a honra desta visita? Em nome da nossa cidade, ofereço-lhes as nossas boas-vindas. Mas vocês deveriam ter avisado com antecedência. Quem sabe a gente não poderia preparar uma festinha de recepção? Dra. Carolina- É. Com a banda da Polícia Militar! Cleo- Muito obrigada. Gostaríamos de solicitar audiência urgente. Viemos de um mundo distante e queremos discutir alguns assuntos da mais alta importância. Governador- Já estamos começando a nos entender. Mas vamos sair daqui, que este ambiente não se presta para uma negociação espacial. Dr. Oliveira- Vamos pro palácio. Cleo- Primeiro, gostaríamos de acertar umas coisas por aqui mesmo. Governador- No meio do morro? (102)

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Em outro momento da peça, em total desespero, por saber que o povo está na praia e as fábricas estão sendo paralisadas, o governador, dentro da nave espacial grita:

- “Cala a boca Oliveira !!!!!!! Vamos para o palácio então. De lá, eu controlo esta situação. Salvador! Toca para o palácio do governo!” (103)

Ou seja: o governador consegue elaborar seus pensamentos e planos dentro do palácio. Lá, ele consegue planejar suas idéias de controle do povo terráqueo e arquitetar seus planos de dominar o espaço sideral. Dentro de seu espaço.

Já os aurorianos necessitaram viajar pelo espaço para encontrar uma resposta para o problema de seu povo. Aqui, encontramos a eterna sensação de que a solução para nossos problemas encontra-se sempre fora. Dominamos melhor o terreno conhecido, íntimo, porém, pensamos sempre que a resolução está fora de nosso espaço.

E de certa forma, esta dicotomia é inerente ao ser humano, pois ele se relaciona consigo mesmo e com o ambiente. A chave da questão consiste no equilíbrio entre estes movimentos.

Já vimos isto antes, em relação às crianças. Estas possuem seu mundo particular, porém estão inseridas no mundo dito adulto. E ambos universos são influenciáveis e influenciados.

Aqui, nesta dramaturgia, as crianças exigem seu direito de brincar, e brincar nas ruas, no espaço público, às vistas de todos. Um fato que não podemos descartar para análise consiste na associação entre ruas e lazer, como espaço de descobertas, nos dias atuais. É notório, que cada vez mais, em nossa sociedade, a rua, outrora vista como um espaço de socialização, hoje, é vista como um espaço ameaçador, devido à crescente violência urbana. Reparamos que os filhos de uma classe média e alta são visivelmente proibidos pelos pais de freqüentarem as ruas com extrema liberdade. As praças foram trocadas pelos shoppings e a televisão e a internet substituíram muitos programas externos. No caso da criança de uma classe mais baixa, muitas vezes, ela também é proibida de brincar nas ruas, devido à violência existente na periferia ou morros, mas, penso eu, elas ainda desobedecem mais, ora por não terem tanta vigilância dos pais (afinal trabalham muito e não existem as babás como vigias), ora por não terem os aparelhos eletrônicos na mesma medida que uma criança abastada. Assim, a rua ainda é o espaço de lazer e interesse, mesmo sendo perigoso.

Portanto, as crianças resolvem “dar uma trava no governador” (104) para terem direito ao seu espaço, físico e lúdico. E nesta decisão de tomada de poder, de exercício político, elas acabam por envolver toda a cidade. As crianças percebem que não está somente em jogo o interesse próprio, mas o de toda a sociedade. Elas sabem que para conseguirem seu direito de volta, necessitam alterar toda a estrutura da comunidade, incluindo o sistema de trabalho onde seus pais estão envolvidos. As crianças do Morro do Vidigal também não agem sozinhas na elaboração da rebelião, mas junto com outras crianças, as do Morro do Salgueiro.

Cito um trecho da conversa das crianças de ambos morros:

Fubá- A gente veio trazer uma proposta prá vocês. Não tá todo mundo revoltado com o lance do governador acabar com o natal? Barbarela- Tá! Joe- Então? Nós viemos oferecer nossa força prá ajudar no que for preciso.

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Carvão- O natal tem que voltar. Barbarela- Para forçar o governador, só tirando o pessoal das fábricas e armando um auê na cidade. (105)

As crianças mostram seus desejos particulares, mas percebem que não conseguirão nada sem observarem as questões à sua volta. Elas enxergam o governador como ele é, além de seu modo próprio de pensar. Elas sabem que para conseguir mudar algo, necessitam relacionar-se de determinada forma com o poder. Elas possuem a vontade de manterem vivos seus desejos, fundados aqui no ato de brincar com liberdade, mas percebem o status quo no qual estão inseridas. E é por isto que serão bem sucedidas em sua revolta, pois, vendo o outro como ele é, saberão o modo de agir com a situação. Mesmo que o outro não nos agrade, é necessário enxergar este outro, condição que o governador parece ignorar, mergulhado em sua ambição desmedida.

Ou seja: sem ensinamentos moralizantes e didáticos ou comportamentos maniqueístas, mas com uma simples dramaturgia, envolta por elementos inerentes ao imaginário e jogo infantil, esta escrita teatral nos traz as questões da alteridade e exercício da cidadania. Estes assuntos vêm à tona em decorrência da simples insistência em poder continuar a brincar. A criança não abdica de seu prazer, e por isto ela se rebela com mais força que nós, adultos.

“É proibido brincar” marca fundamentalmente, o que tenho verificado até agora nestas expressões artísticas voltadas à criança: o direito ao prazer, à criação e à possibilidade de transgressão. A criança é política, pois exige como necessidade vital o ato poético. Ela é política, pois sabiamente sabe que não pode abdicar da poesia, da metáfora e da alteridade.

E se.... Eu fizesse diferente? E se... Eu fosse outro?

Em “É proibido brincar” as diferenças não são negadas e terão de ser negociadas. É o espaço do confronto da palavra, do diálogo, que também é conflito. “É proibido brincar” marca assim o espaço do teatro. Homem frente a homem. E daí todo o choque e beleza que possam acontecer.

4.2 - Teatro e Política

A gente não quer só comida, A gente quer comida, diversão e arte. (...) A gente não quer só comida, A gente quer bebida, diversão, balé. A gente não quer só comida, A gente quer a vida como a vida quer. (...) A gente não quer só comer, A gente quer comer, quer fazer amor. A gente não quer só comer, A gente quer prazer pra aliviar a dor A gente não quer só dinheiro, A gente quer dinheiro e felicidade. A gente não quer só dinheiro, A gente quer inteiro e não pela metade. Antunes, Britto e Fromer (106)

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Não há como não analisar especificamente a questão política abordada na dramaturgia de “É proibido brincar”. Este foi um dos motivos que me fez escolher esta peça como representante de uma nova dramaturgia infantil.

Atualmente, é muito comum percebermos a presença da política e ética relacionadas ao contexto artístico. Como coloquei no segundo capítulo, parece-me que estão deslocando determinadas funções de nossa sociedade para a responsabilidade artística. Sabe-se também que este assunto é bastante polêmico. Uns pensam que é quase um dever ou necessidade o artista discutir estes temas em sua obra. Outros ainda pensam que as artes não possuem nenhuma obrigação para com o questionamento e resolução do “enlouquecimento de nossa sociedade”.

Com esta segunda posição, não quero dizer que o artista deva assumir um papel alienante, mas que a forma do artista contestar não é a mesma forma do sociólogo ou do político, por exemplo. O artista é capaz de “fazer política” hoje, elaborando uma obra sobre o amor. Em tempos de total liberdade sexual e paradoxalmente quase nenhuma intimidade entre as pessoas, falar da descoberta de amor entre um casal e suas conseqüentes cumplicidade e intimidade, decorrentes deste relacionamento, será quase subversivo e por isto será político. Quero dizer que o artista é capaz de fazer política não diretamente, mas sim de uma forma reversa, ao recriar o próprio mundo. Ele pode ter uma atitude fundamentalmente política, sem ao menos pronunciar a palavra política.

Naturalmente, ele também pode ser político, tendo em sua temática, a própria questão abordada claramente. Particularmente, penso que nesta atitude há um grande risco: o risco do artista igualar-se à função do político, por exemplo. Convenhamos, isto não terá graça. Não desvalorizo aqui a função do político, mas simplesmente quero dizer que se quisermos fazer política de forma clara e ativa, podemos nos filiar a algum partido e não necessariamente ir ao teatro ou dedicar-nos à leitura de um romance ou de uma peça teatral.

Aqui retornamos na verdade à discussão da atual vertente em nossa cultura de misturarmos arte e realidade. Não é a minha proposta neste momento fomentar esta discussão, mas pergunto se caso esta posição é simplesmente uma tendência pós-moderna ou na verdade uma incapacidade nossa de transcendência à realidade, uma impossibilidade de alçar vôo, devido a um imaginário pobre, para não dizer miserável.

A proposta de “É proibido brincar” é ousada por trazer a figura da criança e lançá-la diretamente dentro de um contexto político. Afinal, estamos habituados a colocar o assunto política distante do mundo infantil. Esta é uma amostra de como excluímos a criança em nossa sociedade. Será que a criança não é um cidadão, simplesmente porque ela não vota?

É óbvio que a criança não irá elaborar formulações políticas como um adulto, mas ela é capaz de perceber questões notoriamente de caráter político e será obrigada a relacionar-se com as mesmas. Todos sentem o abalo de uma problemática política, literalmente, na própria pele.

Portanto, ao colocar a criança neste contexto social, e de uma forma atuante, não somente como vítima passiva, esta dramaturgia possui já um caráter inovador, transgressor.

Agora, mais interessante ainda, é a reivindicação que a criança faz: o direito a brincar. Ou em outras palavras, o direito a criar e a fantasiar. As crianças, em “É proibido brincar”, enfrentam o poder público e literalmente invadem o Palácio e paralisam toda uma cidade, simplesmente pelo direito à brincadeira, atividade considerada menor em nossa cultura, porém

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atividade libertadora, pois permite o devaneio. Um devaneio perigoso, pois também libertador, e conseqüentemente passível de transformações. A cidadania aqui se faz presente pelo desejo do lúdico e do prazer. É através do jogar que eu me relaciono e comunico-me sem mutilar minhas singularidades, podendo manter assim minha identidade própria. Por isto também, os momentos de ócio e distração são tão condenáveis em nossa cultura. São perigosos, porque são nestes momentos que eu posso desvincular-me do cotidiano, da rotina, deixar de agir como máquina eficiente e burra, e assim poder sentir, pensar e criar.

Também, no momento da brincadeira, não se exclui o outro. Caso se exclua, o outro sabe que esta regra faz parte do jogo momentaneamente. No próximo instante, poderá ser ainda outro o excluído. É realmente uma brincadeira, não é para sempre. Na brincadeira, até a exclusão é afetuosa, pois não é regra imutável.

Na brincadeira, o afeto é imprescindível, ele não “atrapalha” a atividade operante. Arminda Aberastury escreve em “A criança e seus jogos” sobre a importância e necessidade vital do ato lúdico para a criança. Mais tarde, este brincar nos adultos tende a ser substituído pelas experiências amorosas. Por isto, também o amor, assim como o brincar e o criar são sempre marginalizados em nossa sociedade. Tratamos logo de institucionalizá-lo através do casamento, a fim de legitimá-lo e conseqüentemente colocá-lo sob controle. A paixão, nem se fala, pois esta foge a qualquer forma de controle. A paixão de Romeu e Julieta não interessa somente às suas famílias, mas também a toda uma sociedade.

E assim consiste a beleza e a teatralidade desta peça, pois ela é política, mas é capaz de ultrapassar esta esfera e desembocar no ato poético. Cito aqui duas colocações, uma de um diretor de teatro carioca, Eduardo Wotzik e outra, de uma personalidade mundialmente conhecida, o músico Bob Dylan. Ambas, no fundo, dizem respeito à mesma questão e ilustram poeticamente minhas considerações.

Diz Wotzik: “Coloque um telescópio virado pras estrelas, no alto de cada morro da cidade, e você verá, que em pouco tempo, a violência acaba.” (107)

Já Bob Dylan disse nas letras de sua música “Blowing in the Wind”:

Quantos caminhos terá de percorrer um homem Antes que se lhe possa chamar de homem?

A resposta, amigo Te cantará o vento

A resposta está no vento. (108)

Pensamento ultrapassado dos anos 60? Penso que não. Pelo menos, o grupo “Nós do Morro” tem mostrado justamente o contrário.

O dramaturgo e ensaísta Denis Guénoun coloca em seu ensaio “A exibição das palavras - uma idéia política do teatro” (109), justamente este aspecto de ultrapassagem do teatro no âmbito da política. E creio eu, é neste caminho que também a criança em “É proibido brincar”, além da natureza infantil em si, perpassa a questão política, em seu caráter de ultrapassagem. Como se ela dissesse: Eu passo por aqui, mas vou além, alço vôo. E neste momento, são capazes de deixar nós adultos, de queixos caídos, perante nossa freqüente impotência à capacidade de transformação.

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Guénoun escreve em seu livro que o teatro está inserido na política, pois reúne um grupo de pessoas para assistir uma representação. Este acontecimento é em si um ato político. O autor, inclusive, faz uma observação relacionada ao atual desinteresse teatral e também ao descrédito pela política. Ambos aspectos são hoje desvalorizados em nossa cultura, de um modo geral.

O autor escreve: “O teatro não poderia ser reabilitado a não ser numa época de democracia reavivada porque um público só vem ao teatro quando acredita, sabe ou quer ser politicamente ativo”. (110)

Porém o autor faz uma ressalva, onde afirma que “o teatro acontece no espaço do político e produz outra coisa (diferente da política)” (111), visto que no teatro acontece algo impossível de acontecer na política, como: “uma outra palavra, outros signos, outros adventos de sentido”. (112)

Aí, Guénoun destaca a importância da dramaturgia para a representação teatral. Para o autor, o espetáculo teatral não prescinde da palavra. O teatro não é somente literatura dramática, mas parte desta palavra. Um espetáculo que não parte do texto, pode ser um espetáculo, mas não um espetáculo teatral. A diferenciação que faz a ultrapassagem do aspecto político consiste justamente nesta “exibição das palavras”. A palavra teatral impressa se complementa no momento que é exibida, mostrada, através do corpo do ator. Esta visibilidade da palavra, concretizada à vista do público, é o que traduz a metafísica do teatro. Por isto, também vejo a importância de analisar a dramaturgia em si, para pensarmos sobre o atual teatro infantil. Podemos não ter visto a encenação da peça, podemos analisar até um texto inédito, isto porque a escrita teatral levará o leitor para este espaço físico, mesmo que somente em sua imaginação. Um bom texto teatral nos leva, mesmo ainda na leitura, para este espaço onde será propiciada a palavra visível.

É neste caráter político e ao mesmo tempo não político, pois o ultrapassa, que o teatro traz a atitude política em si. É óbvio, que levanto este aspecto, justamente neste terceiro capítulo, pois o texto, ao ser declaradamente político me força a esta análise. Porém, “É proibido brincar” é essencialmente político, não somente por trazer a questão à tona, mas por ultrapassá-la, levando-a ao ato poético e teatral.

O dramaturgo David Mamet escreve em seu ensaio, “Três usos da faca, sobre a natureza e a finalidade do drama” (113), algo para mim essencial no que se refere à dimensão artística do teatro. O autor afirma que a finalidade do teatro não consiste em esclarecer ou ensinar algo para mudar as pessoas. Mamet escreve: “mas a finalidade da arte não é mudar, e sim encantar.” (114)

E, penso eu, neste aspecto mágico do teatro e da arte é que também está inserida a perspectiva infantil; já que a criança ainda não está totalmente guiada pela mente racional e assim aceita o imprevisível, o mesmo imprevisível passível de assustar, mas também de encantar.

Mamet coloca que o poder do teatro consiste essencialmente na possibilidade de inspirar ao homem “a falta de valor da razão”. (115) Sabemos que aquilo é mentira, mas ficamos absortos na sinceridade e encanto desta mentira. Como a criança faz no momento em que brinca, de forma espontânea e maravilhada. Não há necessidade de racionalizar nada e verificar a plausibilidade dos fatos. Ufa! Graças a Deus!

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É por isto que lutar por brincar e criar é político e poético, e tanto a criança quanto o adulto podem viver esta experiência. Também nesta aura de encantamento somos capazes de crer que Sinhá Tiana pode, com alguns passes de feitiçaria, voltar a fazer o robô Salvador ressuscitar.

Algo fundamental que percebo na dramaturgia voltada para o público infantil é esta maior abertura à fantasia e à magia, à possibilidade de devaneio e expressão lúdica. Parece-me que quando nos dirigimos a um público adulto, forçamo-nos a aprofundar contextos psicológicos e filosóficos, em detrimento da ludicidade. E teatro, como já vimos até agora, a partir das observações dramáticas, é essencialmente jogo. Este jogo libertador é vinculado fundamentalmente à possibilidade de fantasiar, e verifico que se tratando de dramaturgia e teatro infantil, felizmente não esquecemos disto.

4.3 - O inesperado bate à porta: a fantasia

O cenário e o ator são a metáfora universal

corporificada, e isto é o teatro: a metáfora visível. Ortega y Gasset (116)

O fato interessante é que volto a falar sobre a questão de um imaginário corporificado, apesar das três peças de análise serem distintas em conteúdo e expressão.

Parece-me, como já afirmei, que quando se fala de uma literatura dramática e uma expressão teatral infantil, o artista libera-se para penetrar no fantástico, enquanto que no trabalho direcionado para o público adulto, reitera-se sempre um compromisso de tendência realista.

Para um leitor / espectador infantil podemos falar de marcianos ou aurorianos, de baleias e lobos antropomorfizados. Podemos também ressaltar todo traço lúdico. É permitido. Para o adulto, quando o artista distancia-se de uma estética de cunho mais realista e mergulha neste universo metafórico, a obra, para muitos, mostra um caráter “transgressor”.

Muitos dos espetáculos teatrais para adultos, hoje, no Rio de Janeiro, apresentam um texto, um cenário e uma performance artística dentro de parâmetros realistas. Parece-me, às vezes, que o teatro está um pouco esquecido de sua natureza e fica querendo igualar-se a uma estética cinematográfica ou mesmo televisiva, (em geral de tendências realistas ou mesmo “hiper realistas”), a fim de não perder seu espaço, porém, desta forma, acaba perdendo seu valor próprio, descaracterizado de sua natureza metafórica.

Declaro aqui, que não faço uma colocação contra a estética realista, mas simplesmente demarco uma diferenciação existente nas obras direcionadas aos dois públicos.

Ao mesmo tempo, observamos que o teatro, adulto ou infantil, é o espaço, como diz Ortega, da metáfora. Até agora, analisei peças teatrais consideradas infantis, (pois incluem um ponto de vista infantil) e utilizei para meu suporte material crítico de teatro infantil e estudos sobre a criança. Porém, recorri durante todo o meu processo de trabalho a pensadores diversos. Nomes não relacionados diretamente ao teatro considerado infantil, mas referentes ao teatro em si. Esta é mais uma prova de que dramaturgia e teatro infantil são manifestações artísticas como outras quaisquer, e que no caso do teatro especificamente, um bom texto/espetáculo teatral infantil, talvez, aproxime-se mais ainda da própria noção de teatro, pois mergulha efetivamente no imaginário liberto.

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Peter Brook, outro nome reconhecido no contexto teatral dito adulto diz que mesmo num espaço livre de cenário, quando um ator chega e pergunta para outro ator, “Por favor... onde é o metrô?” (117), isto bastará para o nosso imaginário levar- nos para o “cenário’ de uma grande cidade. (118). Portanto, o teatro é o local das outras possibilidades, do “fazer de conta”. Basta um pequeno código, e nos transferimos imaginariamente para outro espaço sem movermos nosso corpo do lugar.

Quero dizer com tudo isto, que a teatralidade destacada em todos os textos, até agora, e que atraem a atenção das crianças, é a mesma teatralidade que poderia estar presente em qualquer texto/ espetáculo dito adulto, e que muitas vezes anda sendo esquecido. O caráter mágico, explicitado amplamente no capítulo anterior, é o caráter mágico que o teatro deve ter, seja infantil ou adulto.

Especificamente em “É proibido brincar”, esta magia presente nos passes curandeiros e mágicos de Tia Sinhá convivem bem com a realidade social do morro, com o povo de outro planeta e com o usual poder abusivo de nossos políticos. O alçar vôo presente nesta peça é prova definitiva de que este imaginário liberto não é fuga da realidade. Aqui, o fantástico convive em harmonia dentro do cotidiano próximo de nossa realidade. Não é necessária a exclusão de um para a existência de outro. Como não é necessária a exclusão da criança ou do idoso (presente em Tia Sinhá) para a afirmação do adulto produtivo economicamente em nossa sociedade.

Assim também, a cidade inteira, incluindo todos os adultos, se encanta com a extraordinária presença da baleia com seu filhote na praia. Encantar-se com os animais não é critério infantil e sim uma eleição em prol da afetividade e da vida.

Eis um trecho para ilustração:

(off)- E atenção!!! A TV Trabalhadora informa em edição extraordinária. Uma baleia com seu filhote surgiu na Praia do Vidigal esta manhã! O fato, que não se registrava há mais de 60 anos, provocou a paralisação dos trabalhos na fábrica de mariscos local. Os últimos informes dão conta que os trabalhadores abandonaram as máquinas e correram para a praia para ver de perto o fenômeno. Em toda a cidade nossas unidades aéreas de reportagem estão registrando uma grande movimentação de rebeldes na cidade. A fábrica de rádios do Salgueiro acaba de paralisar as atividades. A Polícia se dirige para a praia do Vidigal.(Maristela de Medeiros / AO VIVO PARA O JORNAL NACIONAL)

Governador- Ora com que diabo! Uma hora é disco voador. Outra são as baleias? Mas o que está acontecendo no Vidigal? Dr. Oliveira- Acho bom o senhor resolver logo o problema, governador. (...) A praia do Vidigal já está ficando lotada. Dra. Carolina (vendo na tela)- Ih, os aurorianos também estão no meio desta revolução. Governador (para o público)- Mas como é que eles fugiram do palácio??

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Quanta ingratidão! Logo eles, fazendo isto comigo? Cadê a polícia Dr. Oliveira? Dr. Oliveira- Ta toda lá na praia. Mas... espere. Em greve também!!! Governador- Mas a greve é ilegal!!! E o pessoal do Judiciário? Dra. Carolina- Pelo visto foram os primeiros a largar e correr para a praia. Dr. Oliveira- Veja, governador!!!Os rebeldes do Vidigal e do Salgueiro estão fechando as outras fábricas e chamando o povo para a praia. (119)

Nesta dramaturgia, a luta política pelo direito ao jogo torna-se também uma grande aventura. A luta possui um caráter lúdico. Ela não nega o prazer. O código estabelecido pelos meninos é uma pipa empinada a cada fábrica parada. A vitória de valer seu direito é confirmada pela pipa no ar, a metáfora da conquista da liberdade. A vitória política é visível num gesto poético. O brinquedo alça vôo, e como diz a música de Bob Dylan, “a resposta está no vento” (120)

Vejamos a cena:

Crianças (todas apontam para o céu)- Alá! Alá! Alá! Zero- As pipas! Elas estão dominando o céu da cidade toda. Fubá- Paramos tudo. Carvão- É greve geral. Governador- (desesperado)- O que é que vocês estão dizendo???? Zero- Que, as suas fábricas, estão todas fechadas. Governador- Como é que vocês podem saber duma coisa destas? Barbarela- Por causa das pipas que estão no céu. Dr. Oliveira- Hein? Zero- Nós combinamos um sinal com os rebeldes da cidade. Cada lugar onde uma fábrica parasse de funcionar eles deveriam empinar uma pipa. Governador- Ai, meu Deus! Desta vez eu tô perdido. Minhas fábricas. A produção!!!!!!!!!!!! O governador desmaia. Os assessores tentam reanimá-lo. Ele fica catatônico e Oliveira e Carolina começam a brincar com ele para tentar fazê-lo voltar ao normal. Mayra e Johny Fly aproveitam para sair correndo da nave. Cleo corre para abraçar Johny Fly. Caco se junta aos dois. Começam a dançar e cantar. Pé de Arraia- Os aurorianos!! Eles estão sorrindo. Barbarela- É mesmo. Não é grande coisa, não. Mas pode ser um bom começo para eles. Zero- Pô, para quem não sabia nem o que era felicidade... (121)

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Aqui vemos a importância da brincadeira também para os adultos. Dr. Oliveira e Dra. Carolina tentam reavivar o governador através da brincadeira. Já os aurorianos começam a sorrir depois de dançarem e cantarem ao reencontro.

A brincadeira e o lúdico são assim sinais de vitalidade e do próprio jogo cênico. A felicidade dos aurorianos, por exemplo, é visível pelo gesto de cantar e dançar.

E para reavivar o governador, seus assessores tentam brincar com ele. É necessário brincar. Brincar e jogar, tanto para a criança como para o adulto.

Para a criança já vimos que brincar é fundamento em sua vida, mas isto não quer dizer que esta mesma atividade não seja importante para o adulto.

Gilles Brougère escreve a importância do caráter imprevisível e por isto libertário da brincadeira. Como disse anteriormente, as regras em toda brincadeira não correspondem à imutabilidade, assim como o ato de brincar relaciona-se diretamente ao imaginário. A correspondência com os códigos sociais existe, porém, principalmente no caso da criança, ela tem a fácil capacidade de mudar as regras de acordo com seus desejos, inclusive rechaçar aquilo que a desagrada. O futuro da brincadeira é sempre um espaço a ser construído, pois estas mesmas regras vão sendo construídas durante o próprio processo. Assim, o acaso e a indeterminação são inerentes a este processo.

O brinquedo traz um significado social, porém não é um significado fixo para a criança. Ela é capaz de trazer novas interpretações para este brinquedo, como bem entender. É o que as crianças fazem com as pipas na peça citada.

Na brincadeira, a criança é sujeito ativo e poderoso, e esta posição fornece a ela a sensação de domínio numa sociedade que costuma excluí-la. Portanto não é à toa que o governador em “É proibido brincar” não permite a brincadeira das crianças nas ruas, mesmo que estas não estejam trabalhando. Ele começa a tolher desde cedo a capacidade de potência do ser humano. Outro detalhe interessante é que em nenhum momento o nome do governador é pronunciado. Ou seja: o governador não tem nome, identidade particular. É somente representação de uma instituição possuidora de um poder abusivo.

Brougère escreve algo para mim muito importante sobre esta relação entre o poder e a brincadeira. Aqui, cito as próprias palavras do autor sobre o espaço da brincadeira: “É um espaço que não pode ser totalmente dominado de fora. Toda coação interna faz ressurgir a brincadeira. Toda coação externa arrisca-se a destruí-la.” (122)

Ou seja, tentar dominar a atitude de brincar através de um poder externo é algo impossível. Como o governador jamais conseguirá dominar, delimitar, colocar parâmetros nas brincadeiras das crianças, ele as proíbe. Porém, como estas mesmas brincadeiras correspondem ao espaço do desejo, a cada impulso vislumbrado, o jogo ressurge.

Mais uma vez, é importante confirmar a gratuidade no ato de brincar. A brincadeira não parte de uma obrigação e nem visa o alcance de um determinado objetivo, a não ser o prazer.

Penso eu, que também por isto, nossa cultura tem o hábito excessivo de restringir à criança o caráter lúdico das artes e atividades em geral.

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Ao adulto, pouco se permite o ócio, a distração, e a possível fantasia advinda desta atitude gratuita. E daí, não nos resta tempo nem para sentir. Não nos enxergamos, e que dirá enxergamos o outro. E muito menos seremos passíveis de criar algo. Parece-me que esquecemos desta capacidade inerente ao ser humano, entretanto verificável sempre na atuação da criança e do artista.

A arte é sempre transgressora, pois assim como a brincadeira ela é capaz de ultrapassar o dado a priori, o unânime, o conhecido. Ela sempre tem um caráter de transcendência ao código social e por isto fundamenta um ato poético. E este ato é gloriosamente infantil.

Ortega y Gasset, em “A idéia do teatro” faz uma alusão ao imaginário no teatro e ao uso da imaginação pela criança.

Ele escreve que já chegamos à vida com as circunstâncias compostas, uma realidade já estabelecida, e isto nos traz um grande peso e seriedade. Ao mesmo tempo, somos capazes e sentimos necessidade de criar novas circunstâncias, escrever nossa história. Assim, a imaginação é fundamental para conseguirmos nos sustentar perante este mundo delimitado.

A criança usa e abusa da imaginação, primeiro, porque nem mesmo apreendeu esta realidade previamente fornecida. Depois, a partir do momento que vai se enredando nesta estrutura social, percebe o fardo a carregar, principalmente, porque ainda não possui instrumental suficiente para lidar com esta mesma realidade. Assim, a força da imaginação a liberta desta sensação de opressão.

Porém, esta necessidade de evasão é primordial à vida de todo ser humano, seja ele criança, jovem ou velho.

Talvez, os aurorianos tenham perdido, como nós também, esta capacidade de evadir-se, e ironicamente, viajam pelo espaço, à procura da felicidade. Não deixam de fazer um movimento de evasão, ao saírem do próprio planeta.

Aqui se dá o primeiro contato entre os aurorianos e as crianças do Vidigal. Por sinal, este primeiro contato, após o medo inicial, é possível através da criança auroriana, Johny Fly. Este é que consegue trazer Mayra até seus pais e o robô Salvador.

Cena 5

Na rua, aurorianos reunidos com as crianças. Cleo- Engraçado, vocês me lembram as crianças lá do meu planeta. Só que elas não são capazes de rir como vocês. Mayra- Porque elas não riem? Salvador- Porque no nosso mundo ninguém mais sabe rir. Pé de Arraia- De nada? Johny Fly- De nada! Caco- Nós não sabemos mais sorrir. Cleo- E é por isto que a gente está viajando pelo universo. Precisamos aprender a ser felizes novamente para poder salvar o nosso povo. Salvador- Vocês não querem ensinar prá gente? Zero- Ensinar o que? Caco- A gente quer aprender com vocês o segredo da

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felicidade. Depois então, levar para o nosso mundo. Salvador- Diz logo pra gente! Onde fica a escola da felicidade? Mayra- Mas a gente não pode aprender a ser feliz na escola. Cleo- Não é na escola? Então a gente pode comprar pronta? Quanto é que custa? Barbarela- Ela também não se vende no supermercado. Caco- Ah, então vocês tem um departamento de felicidade por aqui. Onde é que ele fica? Mayra- Olha gente, o negócio não é bem por aí, não. Felicidade a gente não aprende. Zero- Se descobre sozinho. Zero- Perceberam? Salvador- Ai, ai, ai minhas estrelas. Mas descobre onde? (123)

Observa-se aqui, que os extra - terrestres, ao contrário, do que em geral é visto neste tipo de tema (ficção científica) são tão humanos como os seres do planeta terra, tanto nos rasgos de consumismo fácil como na melancolia crescente.

E por isto, ainda cabe esta temática, já desgastada em nossa cultura, devido aos avanços tecnológicos na vida real. Aquele ser aparentemente de “outro mundo” é mais parecido conosco, muito mais do que imaginávamos. Os aurorianos são humanos, tão humanos, como o Pluft, de Maria Clara Machado.

Pode-se dizer que “É proibido brincar” possui a realidade da vida urbana, porém sem abdicar das “irrealidades” ditas infantis. E por isto também é um texto destacado pela teatralidade. A realidade contemporânea urbana existe, porém o jogo lúdico existe de forma vigorosa e ativa.

Verifico que a confiança estabelecida entre as crianças do Morro do Vidigal e do Morro do Salgueiro é firmada definitivamente através de um jogo, a capoeira. Pois quem joga bem, é de confiança. Assim pensa a criança.

Isto é visto na seguinte cena:

Cena 6

Na fortaleza. Rebeldes reunidos. Surge o pessoal do Morro do Salgueiro. Pé de Arraia- Quem vem lá? Carvão- Ô de casa! Zero- Que é que ta acontecendo Pé de Arraia? Pé de Arraia- Tem um pessoal aí do lado de fora. Eles estão dizendo que são gente boa. Barbarela- Mas o que é que vocês querem por aqui? De onde vocês são? Fubá- Da fábrica de rádios lá do Morro do Salgueiro. Zero- Como é que a gente pode saber se vocês não tão com o governador? Joe- Tá desconfiando da gente?

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Pé de Arraia- Vamos ver se vocês são espiões do governo ou não são. Abre a roda rapaziada! Pé de Arraia abre a roda de capoeira e começa a lutar com Joe. Outras crianças também entram na luta. Começam a se entender. (124)

Pé de Arraia testa o colega, a fim de saber se este é espião do governador ou não, através do jogo. Afinal o governador não sabe jogar. As crianças são capazes de se entender através do jogo lúdico. Através do jogo é possível obter confiança, pois através desta atividade a inclusão é propiciada e o outro é revelado.

Há uma frase de Camus na medida certa para esta consideração:

“O pouco que conheço de moral aprendi nos campos de futebol e no palco”. (125)

Neste texto, Camus escreve sobre três coisas que julgo serem importantes ressaltar. Uma delas é o sentimento de espontaneidade propiciado pelo teatro. Mesmo sentimento já destacado nesta dissertação por Slade, ao confirmar este espírito na criança quando dramatiza. Camus escreve:

Na companhia de intelectuais sempre me sinto como algo em mim tivesse que ser perdoado; sempre tenho a impressão que quebrei alguma das regras do clã. Esse sentimento dispersa minha espontaneidade, e sem espontaneidade, eu me aborreço. No palco, sou espontâneo. Não penso naquilo que tenho ou não de ser, e as únicas coisas que partilho com meus colaboradores são as experiências e as alegrias de um empreendimento em comum. É um estado, acredito, que se chama companheirismo, e tem sido uma das grandes alegrias de minha vida.

E a partir deste companheirismo percebido por Camus, o escritor continua seu pensamento:

Essa mútua dependência, quando reconhecida com humildade e bom humor apropriado a ela, forma a solidariedade da profissão e dá um corpo a esse companheirismo diário. Nele, estamos todos ligados um ao outro sem perda de liberdade de ninguém (ou quase isso). Não é uma boa receita para a sociedade do futuro? (127)

Quando o escritor destaca a palavra moral, na verdade, ele escreve sobre este espírito inclusivo do outro, sem mutilarmos nossa própria singularidade. Reflito que a própria temática de “É proibido brincar” revela a teatralidade. Na peça, a luta das crianças é motivada pelo desejo que respira em cada um, mas desenvolve-se através de um trabalho de equipe, que no caso, envolve toda a comunidade.

Talvez, o individualismo e narcisismo, tão exacerbados em nossa sociedade contemporânea, sejam alguns dos motivos responsáveis para o descaso sofrido pelo nosso teatro nos últimos tempos.

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Desta forma, “É proibido brincar” traz à baila o tema da cidadania sem apelos didáticos, mas calcado no espírito teatral: o jogo que envolve o outro.

E este outro não é somente o outro indivíduo diferente de mim, mas aquele possuidor dos mesmos direitos. Este outro é também aquele mundo excluído de nossa sociedade: o mundo poético, diferente da realidade cotidiana, porém com a mesma força vital. O mundo das outras possibilidades, visto que a realidade cotidiana não é um dado imutável.

O considerado irreal pode vir a ser real, mesmo que seja por poucas horas, e este jogo de concretude da irrealidade que o teatro nos revela. Por isto Ortega y Gasset escreve em “A idéia do teatro” que o teatro é o espaço onde é possível vermos a metáfora, “o como se” (128), onde este mundo imaginário é exibido, realizando a própria irrealidade, ou nas exatas palavras de Gasset, “a pura fantasmagoria” (129)

Gasset parte de um exemplo na poesia e o transfere depois para o teatro:

Por isso, a expressão mais usada na metáfora emprega o como e diz: a faca é como uma rosa. O ser como não é o ser real, senão um como-ser, um quase-ser: é a irrealidade como tal.(...) Pois bem, o mesmo acontece no teatro, que é o “como se” e a metáfora corporificada - portanto, uma realidade ambivalente que consiste em duas realidades – a do ator e a da personagem do drama que mutuamente se negam. É preciso que o ator deixe durante um momento de ser o homem real que conhecemos e é preciso também que Hamlet não seja efetivamente o homem real que foi. É mister que nem um nem outro sejam reais e que incessantemente se estejam desrealizando, neutralizando para que só fique o irreal como tal, o imaginário, a pura fantasmagoria. (130)

Outro aspecto já evidenciado nesta dissertação, mas que nunca é muito destacar, até porque já o verificamos através de diferentes vozes, diz respeito a esta fantasmagoria, onde as realidades são negadas: isto não consiste na perda de sentido do real, afinal sabemos que a irrealidade é uma outra forma de representar o real, em determinado momento. Sabemos que uma pipa é uma pipa, que Mayra é um personagem que será interpretado por uma atriz, e que é “É proibido brincar” é uma peça teatral.

Gasset escreve que a farsa, considerada um gênero teatral, mas também espécie de pilar do teatro, é também algo próprio do ser humano, devido a nossa realidade extremamente séria e por isto sufocante. Daí a necessidade de evasão e criação de outro mundo. E este outro mundo, ainda é confirmado por Gasset, como proveniente da capacidade de jogar. O autor escreve:

Por isso, senhores, a vida – o Homem- se esforçou sempre em acrescentar a todos os fazeres impostos pela realidade o mais estranho e surpreendente fazer, um fazer, uma ocupação que consiste precisamente em deixar de fazer tudo o mais que fazemos seriamente. Este fazer, esta ocupação que nos liberta das demais é... jogar. Enquanto jogamos não fazemos nada - entende-se, não fazemos nada a sério. O jogo é a mais pura invenção do homem; todas as demais vêm, mais ou menos, impostas e preformadas pela

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realidade. Porém as regras de um jogo - e não há jogos sem regras - criam um mundo que não existe. E as regras são pura invenção humana. (...) O homem fez, faz.... o outro mundo, o verdadeiramente outro, o que não existe, o mundo que é brincadeira e farsa.

O jogo, pois, é a arte ou técnica que o homem possui para suspender virtualmente sua escravidão dentro da realidade, para evadir-se, escapar, trazer-se a si mesmo deste mundo em que vive para outro irreal. Este trazer-se da vida real para uma vida irreal imaginária, fantasmagórica é dis-trair-se. O jogo é distração. O homem necessita descansar de seu viver e para isso pôr-se em contato, voltar-se para ou verter-se em uma ultravida. Esta volta ou versão de nosso ser para o ultravital ou irreal é a diversão. A distração, a diversão é algo consubstancial à vida humana, não é um acidente, não é algo de que se possa prescindir. E não é frívolo, senhores, aquele que se diverte, senão aquele que crê que não há que divertir-se. (131)

E mais especificamente, sobre o teatro, Gasset conclui a necessidade da fantasmagoria e da farsa no ser humano, em caráter duplo, ao ser farseado e farsante:

O homem ator se transfigura em Hamlet, o homem espectador se metamorfoseia em convivente com Hamlet, assiste à vida deste - ele também, pois, o público, é um farsante, sai do seu ser habitual para um ser excepcional e imaginário e participa em um mundo que não existe, em um Ultramundo; e nesse sentido não só a cena, mas também a sala e o teatro inteiro resultam ser fantasmagoria, Ultravida. (132)

Enfim, não é preciso muito mais, para percebermos que “É proibido brincar” é um texto de natureza teatral por si próprio, em seu caráter de jogo, de humor, onde a fantasia exibe presença marcante, em convívio harmonioso com um painel também caracterizado pela nossa realidade urbana.

É um texto teatral infantil sim, pois acima de tudo não nega, e mesmo exige, o direito à criação coexistente à brincadeira.

Se, em “Lasanha e Ravióli in casa” teatralizamos o próprio teatro infantil, com crítica e humor, e em “Tuhu, o menino Villa-Lobos” afirmamos definitivamente o caráter infantil como impreterivelmente poético e artístico, aqui, em “É proibido brincar” distribuímos a todos o espírito teatral, onde de forma inesperada, a democracia se estabelece.

Os deuses do teatro agradecem.

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Notas de Rodapé

97. Ostrower, Fayga. “Criatividade e processos de criação”. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 166. 98. Castro, É proibido brincar, 1998, p.1. 99. Ibidem, p.2. 100. Op. Cit, p.22. 101. Yunes, Eliana. “Onde está o outro” in Leituras Compartilhadas, ano 5. RJ: Leia Brasil/ Ediouro, p. 97. 102. Op. Cit. p. 5-6. 103. Ibidem, p. 19. 104. Expressão usada pelo personagem Pé de Arraia. Op.cit., p. 1. 105. Op.Cit. p.9. 106. Antunes, Arnaldo. Britto, Sérgio e Fromer, Marcelo. “Comida”. Letra extraída do CD Titãs Acústico, s/d. 107. Ver Blog do Wotzik, 17/01/2006. 108. Apud Miralles, p. 81. 109. Guénoun, A exibição das palavras. Rj: Teatro do Pequeno Gesto, 2003. 110. Guénoun, Denis, A exibição das palavras, p. 39. 111. Ibidem, p. 41. 112. Idem. 113. Mamet. Três usos da faca, sobre a natureza e a finalidade do drama. RJ: Civilização Brasileira, 2001. 114. Ibidem, p. 30. 115. Ibidem, p. 69. 116. Gasset y Ortega, A idéia do teatro, p. 37. 117. Exemplo citado por Brook em A porta aberta, p. 22. 118. No caso o diretor cita Paris como exemplo. 119. Op.cit, 18-19. 120. Op.Cit. 121. Op.Cit, p. 21-22. 122. Brougère, p. 103. 123. Op. Cit, p. 3-4. 124. Op.Cit. p. 8-9. 125. Camus, O pouco que conheço de moral aprendi nos campos de futebol e no palco, s/p. 126. Idem. 127. Idem. 128. Gasset, p.39. 129. Idem. 130. Idem. 131. Ibidem, p. 51-52. 132. Ibidem, p. 54.

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CONCLUSÃO

Primeiramente, verifico, ainda hoje, a dificuldade de fazer um trabalho artístico que envolva a criança e este trabalho ser visto de um modo sério.

A nossa sociedade ainda continua, infelizmente, com a idéia de que a arte relacionada à criança é algo de menor qualidade, comprometimento ou profundidade.

Com esta mentalidade, pessoas despreparadas profissionalmente são também atraídas para o trabalho vinculado a este público, a fim de obter êxito “sem grandes esforços”.

A literatura infantil ainda é vista como uma literatura menor e tem dificuldades em alcançar o mesmo prestígio de uma literatura dita adulta.

Por quê com o teatro seria diferente?

Parecemos estar num círculo vicioso. O tempo passa, a ciência avança, os estudos progridem, antigos paradigmas são derrubados, as artes experimentam novos caminhos... Mas quando se trata de um trabalho que envolva a arte e a criança, ainda olhamos de olhos enviesados. Até quando?

Será que ao baixarmos os olhos para dialogar com uma criança, a consideramos um ser humano “menor”? Que o seu “tempo ainda não chegou”?

Infelizmente, muitas vezes, a criança ainda é vista como um projeto, “algo a ser modelado”, um vir a ser. Ela continua a ser considerada um mero “apêndice” do mundo adulto, sem grande importância em nossa cultura. E conseqüentemente, inúmeros equívocos decorrem deste preconceito.

E quando se discute arte?

Num país como o nosso, com a multiplicidade de problemas básicos a serem resolvidos, a tendência é colocarmos a arte como adorno, um “objeto” quase inútil. E de certa forma é. A arte, definitivamente, não é para ser útil como um sapato. A arte não é nem um objeto, mas sim um sujeito. E por esta dita inutilidade, sabemos que ela é relevada a último plano.

Vimos aqui, que o espaço da brincadeira, do teatro e da arte em si, é o espaço do vazio, o mesmo espaço vazio onde o ócio trabalha junto à fantasia, para a vinda do inesperado e do diferente. E a criança conhece este espaço, pois é o lugar onde ela reina.

Penso que por todas estas questões, a criança e a expressão artística são sempre relegadas em nossa cultura.

E se resolvemos discutir uma arte que dialogue especificamente com a criança?

Bom, se a arte é vista como algo irrelevante, num país impregnado de dificuldades como o nosso, e a criança é considerada como um mero apêndice dos adultos, sem valor por si própria, a conclusão se torna fácil: falar de arte para crianças torna-se menos ainda. E sequer mencionei a palavra teatro!

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O Brasil não é um país com tradição teatral. As pessoas não possuem o hábito de ir ao teatro ou ler teatro. Também, por esta mesma conseqüência, não temos uma tradição de dramaturgos. Temos nomes importantes e pessoas buscando um comprometimento teatral, mas o fato é que não temos o teatro inserido realmente em nossa cultura.

Não retornarei aqui aos diversos problemas econômicos e a atual mentalidade direcionada à valorização dos bens materiais, mas é fato que tudo isto torna mais difícil ainda a decisão de fazer e discutir o teatro.

Além do que, o teatro é uma arte de espírito coletivo, e hoje, encontram-se todos profundamente isolados e narcisistas. Uma arte que trabalhe a coesão grupal estará, em nossa atualidade, naturalmente, na contramão dos tempos.

Acrescente-se o fato de o teatro ser uma arte de caráter artesanal, diferente do cinema, por exemplo. É uma arte com maior dificuldade de ser “comercializada”, o que de certa forma, pode tornar-se uma benção também.

Analisando o teatro infantil então, não era de se supor que o quadro fosse de ampla excelência artística. E de fato, não é.

Se o teatro possui dificuldades de expressão em nossa cultura, decorrente de diversas problemáticas, e a criança ainda é vista como um vir a ser, é natural que o teatro infantil esteja caminhando com fragilidades.

Infelizmente, a maior dificuldade para este desenvolvimento do teatro infantil é a mentalidade ainda equivocada com a qual vemos e tratamos a criança. A desvalorização da criança irá influenciar o que se refere ao seu universo, e aí, insere-se também o teatro.

O dramaturgo, diretor e crítico Carlos Augusto Nazareth insiste na importância de tratarmos o teatro e a dramaturgia infantil como essencialmente obras de arte. Não é porque se trata de um trabalho voltado para a criança, que iremos fazer teatrinho ou escrever um textinho teatral.

A criança possui um ponto de vista próprio sim, e este ponto de vista irá apontar para determinados interesses, porém ela vivencia o mesmo mundo pertencente aos adultos. Portanto segregá-la ou segregar o próprio teatro infantil será uma tolice. Muitas coisas que julgamos escapar às crianças, não escapam. Elas apenas percebem e vivenciam suas experiências de uma maneira diferenciada do homem adulto.

A criança julga este mundo, muito mais a partir de suas sensações e afetos do que pelo raciocínio lógico, por exemplo. Por isto também, ela está mais receptiva a transitar pela fantasia e pela ludicidade. Esta forma de vivência é propiciada pelo fato dela ainda estar apreendendo a realidade circundante e não ter assimilado profundamente os códigos sociais. E assim, a criança torna-se um ser humano capaz de transformar a vida através da liberdade de ação. O pensamento para a criança não é cindido da ação, algo muito forte no comportamento adulto.

Logo, a tese de que a criança é um ser humano já em seu momento presente, dotado de potência transformadora, impõe que tudo aquilo que lhe é dirigido não pode idiotizá-la.

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Aqui foi apresentada uma leitura por uma crítica especializada em atividade, baseada na hipótese de que o equívoco maior no teatro infantil ocorre, muitas vezes, pela ausência de uma dramaturgia consistente. Afinal, quando não há realmente o que dizer, é muito possível que a futura encenação seja frágil.

Partindo de uma concepção na qual o teatro não é somente um texto dramático, mas tendo este como ponto de partida fundamental, tratei justamente de focalizar determinadas dramaturgias infantis contemporâneas de autores cariocas. Assim quis, nesta dissertação, mostrar que apesar do painel geral do teatro infantil ser visto com pessimismo e indignação por muitos artistas e críticos, existe também a presença de textos dramatúrgicos infantis relevantes para o nosso teatro.

Por quê textos relevantes?

Os textos eleitos por mim são relevantes, primeiro porque são dotados de uma dramaturgia tecnicamente consistente. Segundo porque possuem algo interessante a dizer, motivando assim sua leitura e/ou encenação. E basicamente relevantes porque tratam a criança com o respeito merecido.

Nenhum dos três textos apresentados possui traços didáticos, moralizantes ou maniqueístas. Traços considerados por todos como grandes equívocos presentes na dramaturgia para crianças e frutos ainda da recente história do teatro infantil, relacionada à restrição da obra teatral como instrumento educativo.

Todos textos têm uma escrita fundamentalmente teatral, pois nos levam para o espaço cênico, ainda no processo de leitura, fomentando assim o desejo de ver o espetáculo e participar do fenômeno teatral.

Cada um dos textos possui uma temática e uma expressão diferenciada, o que valorizou a demarcação de um espaço específico para análise. Entretanto, todas as três dramaturgias, além de valorizarem a criança como potência transformadora e possuírem uma escrita de tom teatral marcante, aproximam a imagem infantil da expressão artística. Isto, para mim, resultou na confirmação feliz de que o estado da infância é essencialmente irmão do fazer artístico. Esta assertiva afirmou mais uma vez a qualidade teatral dos textos, pois foi reconhecido que dramaturgia e teatro infantis têm uma dimensão de obra de arte.

As dramaturgas de “Lasanha e Ravióli in casa”, Ana Barroso, Mônica Biel e Thereza Falcão, apresentam em sua escrita teatral certas inovações referentes ao humor lúdico e crítico e à fusão de expressão de linguagens, no caso, a mescla entre circo e teatro.

Karen Acioly traz, em “Tuhu, o menino Villa Lobos”, a questão da memória cultural para o universo infantil sem nenhum ranço didático, com qualidade teatral baseada em extrema valorização da infância, aproximando-a, através de uma linguagem poética, da própria arte.

Já Paulo Corrêa e Castro, dramaturgo do grupo “Nós do Morro”, inova, em “É proibido brincar”, ao instaurar a imagem da criança como sujeito ativo na política social de nossa realidade urbana e sem por isto, abdicar do jogo lúdico e da fantasia. Esta dramaturgia afirma, definitivamente, a possibilidade da fantasia conviver em harmonia com o nosso cotidiano.

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Como já disse anteriormente, a dramaturga e ensaísta Maria Helena Kühner observa que, em nosso panorama de teatro infantil, muitas vezes, os artistas procuram novas formas de expressão cênica, mas esta renovação não transparece desde a dramaturgia.

Apresento em minha pesquisa o reconhecimento de ares renovadores para o teatro infantil evidenciados, a priori, na própria escrita teatral. Minha análise aponta para uma possível amostra da existência de tendências autorais contemporâneas, com vistas a uma dramaturgia caracterizada por vitalidade e concepções atualizadas.

Procurei a inclusão de textos originais, visto que a grande maioria dos artistas procura fazer adaptações, ou de contos populares europeus ou populares brasileiros. Friso que não considero esta opção como desmerecimento, mas o fato é que pude evidenciar a percepção de uma dramaturgia nova e de qualidade.

Reconheço que realmente o painel do teatro infantil atual não é muito animador. Ademais, a ausência de uma forte e inédita dramaturgia é constatada pela maioria crítica como uma das grandes causas problemáticas deste painel. Porém, reitero a conclusão, de que há autores buscando caminhos para uma produção de qualidade, firmada num comprometimento da obra teatral infantil, acima de tudo, com a função artística. Além disto, a imagem da infância, quando presente nas obras, é respeitada e valorizada, atribuindo dignidade à criança leitora e/ou espectadora.

O teatro infantil e a sua dramaturgia são recentes, e o grande ponto de confluência destes textos apresentados consiste na negação dos freqüentes equívocos. Pode parecer pouco, mas no atual painel, é muito.

Apesar das dificuldades encontradas durante o processo de pesquisa, termino confirmando a possibilidade de outros pesquisadores contribuírem para esta área de conhecimento. Afinal, minha contribuição foi realizar uma possível amostra de tendências autorais contemporâneas. E espero ter explicitado bem minha proposta. Outros textos, dos mesmos autores escolhidos por mim, podem vir a ser analisados, como também de outros autores. Há nomes interessantes fora do cenário carioca enfocado em minha pesquisa. Outra possibilidade consistiria no estudo das inovações cênicas presentes nos palcos, ou ainda numa análise da tendência atual concentrada na mescla entre narrativa oral cênica e teatro.

O teatro infantil está à procura de seus caminhos, e apesar de muitos profissionais equivocados, minha dissertação conclui a existência de nomes comprometidos com uma investigação dramatúrgica e cênica, vinculada a uma excelência artística e consideração à criança.

Devido aos preconceitos existentes, percebo que o campo de análises sobre dramaturgia e/ou teatro infantil não é muito explorado.

Então, quem desejar, é somente arregaçar as mangas e mãos à obra! Antes, um aviso: é necessário saber jogar.

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