Drummond - Poemas

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Drummond

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  • TARDE DE MAIO Como esses primitivos que carregam por toda parte o maxilar inferior de seus mortos, assim te levo comigo, tarde de maio, quando, ao rubor dos incndios que consumiam a terra, outra chama, no-perceptvel, e to mais devastadora, surdamente lavrava sob meus traos cmicos, e uma a uma, disjecta membra, deixava ainda palpitantes e condenadas, no solo ardente, pores de minh'alma nunca antes nem nunca mais aferidas em sua nobreza sem fruto. Mas os primitivos imploram relquia sade e chuva, colheita, fim do inimigo, no sei que portentos. Eu nada te peo a ti, tarde de maio, seno que continues, no tempo e fora dele, irreversvel, sinal de derrota que se vai consumindo a ponto de converter-se em sinal de beleza no rosto de algum que, precisamente, volve o rosto, e passa... Outono a estao em que ocorrem tais crises, e em maio, tantas vezes, morremos. Para renascer, eu sei, numa fictcia primavera, j ento espectrais sob o aveludado da casca, trazendo na sombra a aderncia das resinas fnebres com que nos ungiram, e nas vestes a poeira do carro fnebre, tarde de maio, em que desaparecemos, sem que ningum, o amor inclusive, pusesse reparo. E os que o vissem no saberiam dizer: se era um prstito lutuoso, arrastado, poeirento, ou um desfile carnavalesco. Nem houve testemunha. No h nunca testemunhas. H desatentos. Curiosos, muitos. Quem reconhece o drama, quando se precipita sem mscaras? Se morro de amor, todos o ignoram e negam. O prprio amor se desconhece e maltrata. O prprio amor se esconde, ao jeito dos bichos caados; no est certo de ser amor, h tanto lavou a memria das impurezas de barro e folha em que repousava. E resta, perdida no ar, por que melhor se conserve, uma particular tristeza, a imprimir seu selo nas nuvens.

    ONDE H POUCO FALVAMOS

    um antigo piano, foi de alguma av, morta em outro sculo.

    E ele toca e ele chora e ele canta sozinho, mas recusa raivoso filtrar o mnimo acorde, se o fere mo de moa presente.

  • Ai piano enguiado, Jesus! Sua gente est morta, seu prazer sepultado, seu destino cumprido, e uma tecla pe-se a bater, cruel, em hora espessa de sono. um rato? O vento? Descemos a escada, olhamos apavorados a forma escura, e cessa o seu lamento.

    Mas esquecemos. O dia perdoa. Nossa vontade amar, o piano cabe em nosso amor. Pobre piano, o tempo aqui passou, dedos se acumularam no verniz rodo. Floresta de dedos, montes de msica e valsas e murmrios e sandlias de outro mundo em chos nublados. Respeitemos seus fantasmas, paz aos velhos. Amor aos velhos. Canta, piano, embora rouco: ele estronda. A poeira profusa salta, e aranhas, seres de asa e pus, ignbeis, circulam por entre a matria sarcstica, irredutvel. Assim nosso carinho encontra nele o fel, e se resigna.

    Uma parede marca a rua e a casa. toda proteo, docilidade, afago. Uma parede se encosta em ns, e ao vacilante ajuda, ao tonto, ao cego. Do outro lado a noite, o medo imemorial, os inspetores da penitenciria, os caadores, os vulpinos. Mas a casa um amor. Que paz nos mveis. Uma cadeira se renova ao meu desejo. A l, o tapete, o liso. As coisas plcidas e confiantes. A casa vive. Confio em cada tbua. Ora, sucede que um incubo perturba nossa modesta, profunda confidencia.

    irmo do corvo, mas faltam-lhe palavras, busto e humour. Uma dolncia rgida, o reumatismo de noites imperiais, irritao de no ser mais um piano, ante o potico sentido da palavra, e tudo que deixam mudanas, viagens, afinadores, experimento de jovens, brilho fcil de rapsdia, outra vez mudanas, golpes de ar, madeira bichada, tudo que morte de piano e o faz sinistro, inadaptvel, meio grotesco tambm, nada piedoso.

    Uma famlia, como explicar? Pessoas, animais, objetos, modo de dobrar o Unho, gosto de usar este raio de sol e no aquele, certo copo e no outro, a coleo de retratos, tambm alguns livros, cartas, costumes, jeito de olhar, feitio de cabea,

  • antipatias e inclinaes infalveis: uma famlia, bem sei, mas e esse piano?

    Est no fundo da casa, por baixo da zona sensvel, muito por baixo do sangue.

    Est por cima do teto, mais alto que a palmeira, mais alto que o terrao, mais alto que a clera, a astcia, o alarme.

    Cortaremos o piano em mil fragmentos de unha? Sepultaremos o piano no jardim? Como Anbal o jogaremos ao mar? Piano, piano, deixa de amofinar! No mundo, tamanho peso de angstia e voc, girafa, tentando.

    Resta-nos a esperana (como na insnia temos a de amanhecer) que um dia se mude, sem noticia, clandestino, escarninho, vingativo, pesado, que nos abandone e deserto fique esse lugar de sombra onde hoje impera. Sempre imperar?

    ( um antigo piano, foi de alguma dona, hoje sem dedos, sem queixo, sem msica na fria manso. Um pedao de velha, um resto de cova, meu Deus, nesta sala onde ainda h pouco falvamos.)

    .A FLOR E A NUSEA

    Preso minha classe e a algumas roupas, Vou de branco pela rua cinzenta. Melancolias, mercadorias espreitam-me. Devo seguir at o enjo? Posso, sem armas, revoltar-me'?

    Olhos sujos no relgio da torre: No, o tempo no chegou de completa justia. O tempo ainda de fezes, maus poemas, alucinaes e espera. O tempo pobre, o poeta pobre fundem-se no mesmo impasse.

  • Em vo me tento explicar, os muros so surdos. Sob a pele das palavras h cifras e cdigos. O sol consola os doentes e no os renova. As coisas. Que tristes so as coisas, consideradas sem nfase.

    Vomitar esse tdio sobre a cidade. Quarenta anos e nenhum problema resolvido, sequer colocado. Nenhuma carta escrita nem recebida. Todos os homens voltam para casa. Esto menos livres mas levam jornais e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

    Crimes da terra, como perdo-los? Tomei parte em muitos, outros escondi. Alguns achei belos, foram publicados. Crimes suaves, que ajudam a viver. Rao diria de erro, distribuda em casa. Os ferozes padeiros do mal. Os ferozes leiteiros do mal.

    Pr fogo em tudo, inclusive em mim. Ao menino de 1918 chamavam anarquista. Porm meu dio o melhor de mim. Com ele me salvo e dou a poucos uma esperana mnima.

    Uma flor nasceu na rua! Passem de longe, bondes, nibus, rio de ao do trfego. Uma flor ainda desbotada ilude a polcia, rompe o asfalto. Faam completo silncio, paralisem os negcios, garanto que uma flor nasceu.

    Sua cor no se percebe. Suas ptalas no se abrem. Seu nome no est nos livros. feia. Mas realmente uma flor.

    Sento-me no cho da capital do pas s cinco horas da tarde e lentamente passo a mo nessa forma insegura. Do lado das montanhas, nuvens macias avolumam-se. Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pnico. feia. Mas uma flor. Furou o asfalto, o tdio, o nojo e o dio.

    PORO

    Um inseto cava cava sem alarme perfurando a terra sem achar escape.

    Que fazer, exausto, em pas bloqueado, enlace de noite raiz e minrio?

  • Eis que o labirinto (oh razo, mistrio) presto se desata:

    em verde, sozinha, antieuclidiana, uma orqudea forma-se.

    CAMPO DE FLORES

    Deus me deu um amor no tempo de madureza, quando os frutos ou no so colhidos ou sabem a verme. Deus - ou foi talvez o Diabo - deu-me este amor maduro, e a um e outro agradeo, pois que tenho um amor.

    Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretritos e outros acrescento aos que amor j criou. Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso e talhado em penumbra sou e no sou, mas sou.

    Mas sou cada vez mais, eu que no me sabia e cansado de mim julgava que era o mundo um vcuo atormentado, um sistema de erros. Amanhecem de novo as antigas manhs que no vivi jamais, pois jamais me sorriram.

    Mas me sorriam sempre atrs de tua sombra imensa e contrada como letra no muro e s hoje presente. Deus me deu um amor porque o mereci. De tantos que j tive ou tiveram em mim, o sumo se espremeu para fazer um vinho ou foi sangue, talvez, que se armou em cogulo.

    E o tempo que levou uma rosa indecisa a tirar sua cor dessas chamas extintas era o tempo rriais justo. Era tempo de terra. Onde no h jardim, as flores nascem de um secreto investimento em formas improvveis.

    Hoje tenho um amor e me fao espaoso para arrecadar as alfaias de muitos amantes desgovernados, no mundo, ou triunfantes e ao v-los amorosos e transidos em torno, o sagrado terror converto em jubilao.

    Seu gro de angstia amor j me oferece na mo esquerda. Enquanto a outra acaricia os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura e o mistrio que alm faz os seres preciosos viso extasiada.

    Mas, porque me tocou um amor crepuscular, h que amar diferente. De uma grave pacincia ladrilhar minhas mos. E talvez a ironia tenha dilacerado a melhor doao.

  • H que amar e calar. Para fora do tempo arrasto meus despojos e estou vivo na luz que baixa e me confunde.

    ELEGIA

    Ganhei (perdi) meu dia. E baixa a coisa fria tambm chamada noite, e o frio ao frio em bruma se entrelaa, num suspiro.

    E me pergunto e me respiro na fuga deste dia que era mil para mim que esperava os grandes sis violentos, me sentia to rico deste dia e l se foi secreto, ao serro frio.

    Perdi minha alma flor do dia ou j perdera bem antes sua vaga pedraria? Mas quando me perdi, se estou perdido antes de haver nascido e me nasci votado perda de frutos que no tenho nem colhia?

    Gastei meu dia. Nele me perdi. De tantas perdas uma clara via por certo se abriria de mim a mim, estela fria. As rvores l fora se meditam. O inverno quente em mim, que o estou berando, e em mim vai derretendo este torro de sal que est chorando.

    Ah, chega de lamento e versos ditos ao ouvido de algum sem rosto e sem justia, ao ouvido do muro, ao liso ouvido gotejante de uma piscina que no sabe o tempo, e fia seu tapete de gua, distrada.

    E vou me recolher ao cofre de fantasmas, que a notcia de perdidos l no chegue nem aule os olhos policiais do amor-vigia. No me procurem que me perdi eu mesmo como os homens se matam, e as enguias loca se recolhem, na gua fria.

    Dia, espelho de projeto no vivido, e contudo viver era to flamas na promessa dos deuses; e to rspido em meio aos oratrios j vazios em que a alma barroca tenta confortar-se mas s vislumbra o frio noutro frio.

  • Meu Deus, essncia estranha ao vaso que me sinto, ou forma v, pois que, eu essncia, no habito vossa arquitetura imerecida; meu Deus e meu conflito, nem vos dou conta de mim nem desafio as garras inefveis: eis que assisto a meu desmonte palmo a palmo e no me aflijo de me tornar plancie em que j pisam servos e bois e militares em servio da sombra, e uma criana que o tempo novo me anuncia e nega.

    Terra a que me inclino sob o frio de minha testa que se alonga, e sinto mais presente quanto aspiro em ti o fumo antigo dos parentes, minha terra, me tens; e teu cativo passeias brandamente como ao que vai morrer se estende a vista de espaos luminosos, intocveis: em mim o que resiste so teus poros. Corto o frio da folha. Sou teu frio.

    E sou meu prprio frio que me fecho longe do amor desabitado e lquido, amor em que me amaram, me feriram sete vezes por dia, em sete dias de sete vidas de ouro, amor, fonte de eterno frio, minha pena deserta, ao fim de maro, amor, quem contaria? E j no sei se jogo, ou se poesia.

    MOS DADAS

    No serei o poeta de um mundo caduco. Tambm no cantarei o mundo futuro. Estou preso vida e olho meus companheiros. Esto taciturnos mas nutrem grandes esperanas. Entre eles, considero a enorme realidade. O presente to grande, no nos afastemos. No nos afastemos muito, vamos de mos dadas. No serei o cantor de uma mulher, de uma histria, no direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela, no distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida, no fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins. O tempo a minha matria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente.

    PROCURA DA POESIA

    No faas versos sobre acontecimentos. No h criao nem morte perante a poesia.

  • Diante dela, a vida um sol esttico, No aquece nem ilumina.

    As afinidades, os aniversrios, os incidentes pessoais no contam. No faas poesia com o corpo, esse excelente, completo e confortvel corpo, to infenso efuso lrica.

    Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro so indiferentes. Nem me reveles teus sentimentos, que se prevalecem do equvoco e tentam a longa viagem. O que pensas e sentes, isso ainda no poesia.

    No cantes tua cidade, deixa-a em paz. O canto no o movimento das mquinas nem o segredo das casas. No msica ouvida de passagem: rumor do mar nas ruas junto linha de espuma.

    O canto no a natureza nem os homens em sociedade. Para ele, chuva e noite, fadiga e esperana nada significam. A poesia (no tires poesia das coisas) elide sujeito e objeto.

    No dramatizes, no invoques, no indagues. No percas tempo em mentir. No te aborreas. Teu iate de marfim, teu sapato de diamante, vossas mazurcas e abuses, vossos esqueletos de famlia desaparecem na curva do tempo, algo imprestvel.

    No recomponhas tua sepultada e merencria infncia. No osciles entre o espelho e a memria em dissipao. Que se dissipou, no era poesia. Que .se partiu, cristal no era.

    Penetra surdamente no reino das palavras. L esto os poemas que esperam ser escritos. Esto paralisados, mas no h desespero, h calma e frescura na superfcie intata. Ei-los ss e mudos, em estado de dicionrio. Convive com teus poemas, antes de escrev-los. Tem pacincia, se obscuros. Calma, se te provocam.

    Espera que cada um se realize e consuma com seu poder de palavra e seu poder de silncio. No forces o poema a desprender-se do limbo. No colhas no cho o poema que se perdeu. No adules o poema. Aceita-o como ele aceitar sua forma definitiva e concentrada no espao.

    Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta

  • pobre ou terrvel, que lhe deres: Trouxeste a chave?

    Repara: ermas de melodia e conceito, elas se refugiaram na noite, as palavras. Ainda midas e impregnadas de sono, rolam num rio difcil e se transformam em desprezo.

    SENTIMENTO DO MUNDO

    Tenho apenas duas mos e o sentimento do mundo, mas estou cheio de escravos, minhas lembranas escorrem e o corpo transige na confluncia do amor.

    Quando me levantar, o cu estar morto e saqueado, eu mesmo estarei morto, morto meu desejo, morto o pntano sem acordes.

    Os camaradas no disseram que havia uma guerra e era necessrio trazer fogo e alimento. Sinto-me disperso, anterior a fronteiras, humildemente vos peo que me perdoeis.

    Quando os corpos passarem, eu ficarei sozinho desfiando a recordao do sineiro, da viva e do microscopista que habitavam a barraca e no foram encontrados

    ao amanhecer esse amanhecer mais noite que a noite.