6
MARY ROURKE DUAS MULHERES DA GALILEIA Tradução Ana Beatriz Manier 3ª prova Abertura galileia-a 02.06.11 12:12 Page 3

Duas Mulheres da Galileia - Prólogo

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Uma narrativa de suspense, romance e história ambientada na Galileia do século I, transitando entre o esplendor em decadência da corte de Herodes, em Tiberíades, e o opulento palácio do governo de Pôncio Pilatos, em Jerusalém. Ao dar vida a Joana, seguidora de Jesus brevemente citada no Novo Testamento, Mary Rourke nos apresenta uma nova perspectiva para a mulher mais reverenciada do mundo ─ Maria, mãe de Jesus.

Citation preview

Page 1: Duas Mulheres da Galileia - Prólogo

MARY ROURKE

DUAS MULHERESDA GALILEIA

Tradução

Ana Beatriz Manier

3ª prova

Abertura galileia-a 02.06.11 12:12 Page 3

Page 2: Duas Mulheres da Galileia - Prólogo

PRÓLOGOPRÓLOGO

Os doze iam com ele, e também algumas mulheres

que haviam sido curadas de espíritos malignos e de enfermidades.

[...] Joana, mulher de Cuza, procurador de Herodes, [...] e muitas outras,

as quais lhe prestavam assistência com os seus bens.

Lucas 8:1-3

A casa em Nazaré está vazia agora. Ninguém pensaria em morar lá

desde que Maria se foi. Não querem correr o risco de herdar

seu infortúnio, uma viúva com um filho crucificado. Não obstante, este

é um lugar sagrado. Alguém precisa cuidar de sua segurança.

Em uma idade mais avançada, Maria viajou para cidades distantes na

companhia de João, o mais jovem dos discípulos de seu filho, zelando

por ele como mãe. Naqueles anos, era mais fácil se deslocar pelo Império.

Cláudio o governava de Roma, e, pelo menos desta vez, o estrangeiro que

controlava a Judeia era simpático com os hebreus.

3ª prova

Abertura galileia-a 02.06.11 12:12 Page 9

Page 3: Duas Mulheres da Galileia - Prólogo

Difícil acreditar que, após doze anos de Nero, tal época algum dia

existiu. Jerusalém encontra-se sob cerco desde a Páscoa dos Judeus, e o

embargo romano impossibilita a entrada de comida pelos portões da

cidade. Para nós aqui no Norte, notícias sobre a luta chegam com as

caravanas. As piores parecem nos atingir com a velocidade de uma fle-

cha. Há a história de um homem que engoliu todo o seu ouro antes de

tentar fugir da Cidade Sagrada. Quando os soldados o capturaram,

abriram-lhe a barriga e arrancaram-lhe as moedas. Ele ainda estava vivo.

Presenciou o ato.

A casa desocupada de Maria foi meu consolo depois que ela partiu.

Senti tanto sua falta que passei horas lá, sozinha. Imaginando que ainda

estivesse comigo, vi detalhes seus que antes não percebera. Seus cabelos,

uma vez fartos e escuros, haviam adquirido a cor prateada da pedra da lua.

Sua pele ainda tinha a nuança cálida de casca de amêndoa, mas o brilho

rosado que uma vez tingira suas faces desaparecera. O passar dos anos

deixara suas formas arredondadas como seixos rolados.

Uma tarde, enquanto eu sonhava acordada, ela passou por mim a

caminho do celeiro, pegou um punhado de sementes secas, derramou-as

dentro de um pequeno saco de aniagem e esmagou os piolhos brancos

de uma caçamba próxima na qual ficavam os grãos em processo de ama-

durecimento. Sem parar para me cumprimentar, pegou uma jarra de

barro da prateleira e saiu na direção do poço, detendo-se apenas o sufi-

ciente para olhar satisfeita para mim. Ouvi-a recitar as orações de graças

e comecei a entoá-las junto com ela. Antes de conhecer Maria, eu não

sabia nenhuma oração.

Em sua casa vazia, comecei a me lembrar de algumas coisas. Do per-

fume de alecrim nas panelas e das prateleiras cheias de cestas que aguar-

davam para serem ocupadas com os bolos de sua cozinha. Todos os seus

pertences estavam gastos pelo uso.

10 MARY ROURKE

3ª prova

Abertura galileia-a 02.06.11 12:12 Page 10

Page 4: Duas Mulheres da Galileia - Prólogo

Sua casa pequenina não parecia o tipo de lugar capaz de atrair visi-

tantes durante todas as horas do dia, mas eram tantos os que vinham na

esperança de receber sua bênção que boa parte deles tinha de voltar do

portão. Relembrando esses dias confusos, ainda me pergunto: terá qual-

quer um de nós que lhe pediu ajuda realmente entendido ou suspeitado

o que Maria era capaz de fazer por aqueles que amava? Quando chegasse

a hora, ela arriscaria a vida. Alguns até diriam: a alma.

Em uma tarde, uma enxurrada de sujeira interrompeu meu deva-

neio. Caiu do teto da casa de Maria pela parte mais desgastada do telha-

do. Acima de minha cabeça, folhas de palmeira silvaram como mensagei-

ros dos ventos à brisa. Eu podia vê-las pelos vãos abertos no teto. Palha

enfiada no emboço. Eu não havia percebido ainda.

Restaurar tal dano era minha forma de honrar Maria, mas também

uma estranha ambição para uma mulher como eu, que nada sabia de ser-

viços domésticos. Eu, Joana, esposa de Cuza, procurador-chefe de

Herodes, fui criada para ser a soberana de um Estado. Tinha pouca

experiência com limpeza de casa ou qualquer outro trabalho braçal. Por

causa de Maria, aprendi.

A partir do momento em que tomei minha decisão, comecei a levantar

da cama antes de o sol iluminar os quartos do andar superior de minha

casa. Deixando de lado os lençóis frescos de linho, preparei-me para um

dia de reparos na casa decadente de Maria. Enchendo grandes cestas com

jarros de vinho, cantis de óleo, vidros de perfume e joias antigas — artigos

que eu conseguiria permutar por serviços de reparo —, troquei os deuses

de mármore e as colunatas de minha cidade romana de Séforis pelos cam-

pos de cevada do leste da Galileia. Foi como viajar de volta no tempo.

Phineas, meu cocheiro, percorreu os quase cinco quilômetros em

uma corrida contra a alvorada. Já havia feito viagens muito mais perigosas

por mim, durante seus longos anos a meu serviço. Nem uma vez sequer

DUAS MULHERES DA GALILEIA 11

3ª prova

Abertura galileia-a 02.06.11 12:12 Page 11

Page 5: Duas Mulheres da Galileia - Prólogo

me desapontou. Portanto, repousei tranquila à medida que ele seguia aos

solavancos na direção de Nazaré, passando por ovelhas de face marrom,

que vagavam pela estrada e nos encaravam não habituadas a carruagens

trafegando em velocidade. Não habituadas, também, a ver uma mulher

como eu, com unhas arredondadas e limpas e pele alva que raramente se

expunha a longas horas ao sol.

Quando nos aproximamos da cidade, meninos do campo atacaram

minha carruagem com azeitonas podres. Phineas rosnou como um lobo

planejando um ataque e os manteve afastados. Suas faces suavizadas de

eunuco e sua cabeça brilhante assentavam-se com orgulho sobre ombros

largos e braços musculosos. Ele era dotado de um físico vigoroso e ins-

pirava respeito.

Quando passamos pelo portão da cidade de Nazaré, o rangido das

dobradiças de ferro perturbou os vizinhos de Maria, que saíram aos

tropeços de suas casas de dois cômodos ou de suas grutas rasas para ver

quem havia entrado. Suas expressões incrédulas questionavam o que

uma mulher rica estaria fazendo naquela parte da província. Eu não

tinha uma resposta fácil. Além disso, a morrinha de ovelha em suas

túnicas rústicas irritava meu nariz. Eu evitava conversar.

Foi em uma dessas viagens matinais que decidi escrever sobre Maria.

No início, achei que minha existência tempestuosa não teria lugar em

sua história. Minha saúde debilitada, as intrigas na corte de Herodes

Antipas e os problemas resultantes em meu casamento não pareciam

revelar coisa alguma sobre sua forma de viver.

No entanto, logo percebi que ela havia me conduzido pelos eventos

mais íntimos de minha vida, até minha atual situação. Nada me resta a

não ser contar nossas histórias como uma só.

Éramos primas. Só vim a descobrir já adulta, quando fui vê-la pela

primeira vez. Precisava de sua ajuda. Eu estava morrendo, e Maria tinha

12 MARY ROURKE

3ª prova

Abertura galileia-a 02.06.11 12:12 Page 12

Page 6: Duas Mulheres da Galileia - Prólogo

um filho, um curandeiro que solucionava casos desesperadores.

Queria que me arranjasse um encontro a sós com ele.

Minha doença me afligia desde a infância. A tuberculose era parte do

legado que os romanos deixaram para o Ocidente. Os exércitos de César

a levavam com eles conforme avançavam, conquistando tudo em seu

caminho.

Minha família considerava minha doença parte do preço que a

Judeia pagava pelo progresso. As estradas pavimentadas e o comércio

internacional deixaram meus parentes ricos. Simpatizantes dos romanos

muito antes de meu nascimento, eles não consideravam a vida de sua

única filha um tributo demasiadamente exorbitante por sua fortuna.

Eu, no entanto, não estava preparada para morrer pelo comércio.

Após várias tentativas de cura, incluindo um verão insuportável em uma

estância de tratamento próxima ao Mar Morto, minhas entranhas

encharcadas se recusavam a secar.

Como última esperança, recorri a Maria. Eu estava preparada para

recompensá-la com generosidade. Sempre fui uma mulher de posses.

DUAS MULHERES DA GALILEIA 13

3ª prova

Abertura galileia-a 02.06.11 12:12 Page 13