Durkheim e a Globalizacao

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Durkheim e a Globalizao como

AS DIMENSES DA GLOBALIZAO

GIOVANNI ALVES

Durkheim e a Globalizao como

Fonte de Solidariedade Social

Durkheim nos apresentou em sua obra A diviso

do trabalho social, de 1893, a diviso do trabalho

como fonte de solidariedade social. Ele

caracterizou, por outro lado, a anomia, como sendo algo

decorrente de um perodo de rpidas transformaes da economia

e da sociedade, em virtude do prprio desenvolvimento da diviso

do trabalho social. Em virtude disso, indicou a necessidade de

regulamentaes mais complexas, salientando o papel do Estadonao

e do governo.

Mas, para Durkheim, com o tempo tenderia a se formar tais

regulamentaes sociais, capazes de instaurar e realizar a natureza

da prpria diviso do trabalho mais desenvolvida: a solidariedade

orgnica. Deste modo, para ele, a anomia seria temporria e

um fenmeno excepcional nas sociedades mais complexas. Na

sua perspectiva, est implcito um otimismo com o

desenvolvimento das sociedades modernas.

Se Durkheim criticou o otimismo dos utilitaristas e dos

economistas diante da mo invisvel do mercado, de certo modo,

ele prprio acreditava que o desenvolvimento da diviso do trabalho

social tenderia a incrementar a solidariedade social. Para isso,

depositou seu otimismo nas instncias da regulamentao

juridico-moral da sociedade, como uma mera manifestao da

natureza da prpria diviso do trabalho mais desenvolvida.

A nfase de Durkheim no consenso social caracteriza um ponto

de vista corporativo que, de certo modo, iria predominar nas

sociedades capitalistas desenvolvidas europias, no ps-guerra, com

as experincias de Estado social e que hoje, encontram-se em crise

diante da globalizao.

Globalizao Como Fonte de Solidariedade ?

Na tica de Durkheim, a globalizao poderia ser considerada

expresso de um desenvolvimento ampliado do capitalismo moderno,

que tenderia a impulsionar a diviso do trabalho social compreendida

como sendo a especializao ligada produtividade do trabalho.

Ela, a diviso do trabalho enquanto especializao, , na

linguagem dos economistas, o resultado de um esforo inteligente

do homem para tirar o maior produto e o maior proveito dos fatores

de produo, incluindo seu prprio trabalho. Sob a globalizao,

assistimos a exacerbao da lgica da especializao numa escala

planetria:

Em uma economia global, nem o capital, nem o trabalho, nem as

matrias-primas constituem, em si, o fator econmico

determinante. O importante a melhor relao entre esses trs

fatores. Para estabelec-la, a firma global no leva em

considerao as fronteiras nem as regulamentaes, mas

somente a explorao inteligente que pode fazer da informao,

organizao do trabalho e revoluo da gesto (Romanet, 1998)

Entretanto, Durkheim reconheceu que a busca pelos produtores

da mais alta produtividade atravs da especializao mais inteligente

no basta para assegurar uma diviso do trabalho vivel. A diviso

do trabalho e a concorrncia criam problemas medida que os

resolvem. A diviso do trabalho supe uma alocao prvia dos

recursos e uma diviso ulterior do produto, das quais no so e no

podem ser de antemo calculados e desejados todos os aspectos e

conseqncias. Diz ele:

Se, normalmente, a diviso do trabalho produz a solidariedade

social, pode acontecer contudo que ela tenha resultados

completamente diferentes, ou mesmo opostos (Durkheim,

1985:145)

Deste modo, num primeiro momento, Durkheim critica o vis

otimista que os evolucionistas e os utilitaristas atriburam a mo

invisvel do mercado (Smith e Spencer). Apesar disso, como iremos

ver, ele no deixa de incorporar um certo otimismo diante da direo

natural da diviso do trabalho.

Para Durkheim, a direo natural da diviso do trabalho a

solidariedade social, mas algo a faz desviar-se da sua direo

natural. Esse algo a anomia, o desregramento. Para ele, a diviso

do trabalho, mesmo acompanhada de uma especializao das

tarefas, no nvel da alocao dos recursos e de uma elevao da

produtividade no que concerne ao produto, tambm e antes de

tudo, um fato de organizao, ou seja, utilizando a acepo de

Durkheim, um fenmeno de solidariedade. Ela no um

fenmeno natural, mas propriamente social; alm disso, esse

fenmeno no espontneo, mas, por assim dizer,

sistematicamente organizado e coordenado.

Durkheim enfatiza a coordenao das tarefas, principalmente

sob a solidariedade orgnica, correspondente a nossa poca,

onde a diferenciao das atividades produtivas ocorre de acordo

com critrios de eficcia e de competncia. Ocorre, segundo ele,

uma mudana marcante e incessante na hierarquia do status, que

exige um enorme desenvolvimento das funes de coordenao,

que se tornam cada vez mais metdicas e conscientes. Por exemplo,

Durkheim salienta a preponderncia do direito cooperativo sobre

o direito repressivo como uma manifestao da solidariedade

orgnica que caracteriza as sociedades complexas.

Como as diferenas resultantes da especializao provocam

o aumento da freqncia e da intensidade das trocas entre os

produtores, com os riscos de conflitos inerentes a esses contatos

e a essas trocas, a diviso do trabalho deve ser colocada sob a

vigilncia de autoridades dotadas de uma viso mais abrangente do

processo de produo do que cada um dos produtores. Para

Durkheim essa funo de coordenao e de reflexo tanto

mais importante quanto mais diferenciadas forem as tarefas

produtivas.

A srie de citaes abaixo demonstram a importncia dos

meios de coordenao para o desenvolvimento da solidariedade

social em sociedades mais complexas:

medida que as diferenas se tornam mais numerosas, a

coeso torna-se mais instvel e tem necessidade de ser

consolidada por outros meios (Durkheim, 1985b:157)

..essa falta de regulamentao no permite a harmonia regular

das funes (Durkheim, 1985b:160)

Se a diviso do trabalho no produz solidariedade, porque

as relaes dos rgos no so regulamentadas, porque

esto num estado de anomia (Durkheim, 1985b:162)

A diviso do trabalho para Durkheim no somente

especializao das aptides e das competncias; tambm

coordenao das tarefas. O que supe como necessidade da

reproduo social de uma maior organizao e maior coordenao

das trocas. Alguns diriam: uma nova regulao, termo utilizado

por uma escola de economistas franceses.

Ora, o que a globalizao seno o desenvolvimento ampliado

do capitalismo moderno, com a agudizaro da diviso do trabalho

social numa escala planetria, cujos resultados perversos, na

perspectiva de Durkheim, seriam decorrentes de uma anomia

universal (Durkheim no utiliza tal expresso) ?

Na tica durkheiminiana, a especializao, o aumento da

freqncia e da intensidade das trocas no acompanhado, na

mesma medida, de uma maior organizao e coordenao por

parte das autoridades do processo produtivo. Por isso, ela tende

a gerar uma srie de fenmenos anormais ou patolgicos.

A falncia do Estado social-democrata (Welfare State). que

conseguiu nas ltimas dcadas do sculo XX, constituir uma coeso

social relativa, instaurando a solidariedade orgnica a partir de

uma srie de regulamentaes sociais e jurdicas, tendeu a conduzir

o mundo capitalista a um novo perodo social e histrico

caracterizado pela desregulamentao, pelo predominio da lgica

privatista em detrimento do espao pblico, onde a crise dos valores

agudiza, cada vez mais, a capacidade do sistema social recompor-se

e, quem sabe, de reproduzir-se (utilizando uma analogia organicista).

O mrito de Durkheim foi salientar a importncia das normas

e valores para a reproduo de organismos sociais complexos,

como so as sociedades capitalistas modernas, principalmente

na era da globalizao, onde maior a integrao e intensidade

das trocas e da produo.

Na medida em que processos sociais vinculados a diviso do

trabalho social em escala planetria conduzem o mundo capitalista a

uma srie de transformaes muito rpidas, criando uma situao

de anomia, a inexistncia de um Estado mundial, de um governo

global como impulsionador da coeso social, receptculo de valores

da solidariedade orgnica, tenderia a complicar, ainda mais, a

capacidade de resolver a situao de anomia, intrinseca a prpria

natureza das transformaes rpidas proporcionadas pelo

desenvolvimento da diviso do trabalho social.

O que percebemos, hoje, que, o que era considerado por

Durkheim como excepcional, tende a torna-se crnico. A sada, com

certeza, na perspectiva durkheiminiana, seria uma nova

regulamentao mundial, atravs da constituio de organismos

de coordenao global, rudimentos ainda pouco eficazes de um

governo e de autoridades mundiais, capazes de exercer uma vigilncia

mais abrangente do processo do globalismo (utilizando a expresso

de Ianni).

Deste modo, para Durkheim, seria a natureza da diviso do

trabalho social, cada vez mais complexa, que poderia explicar,

por exemplo, o surgimento de rgos de coordenao multilaterais,

tais como o G-8 ou ainda, a OMC, o FMI e o Banco Mundial.

Com certeza, Durkheim seria um crtico da globalizao tal como

ocorre em nossos dias, na medida em que ela se desenvolve sem

uma coordenao global, propiciando, portanto, uma situao de

anomia. Mas ele no seria um crtico da globalizao em si, na

medida que iria reconhecer nela uma positividade: o

desenvolvimento de novas formas de solidariedade, inevitvel no

atual estgio da diviso do trabalho.

Globalizao e a Anomia Universal

A anomia uma entidade observvel apenas atravs de

manifestaes diversas. um fenmenos de desregramento que

possui significaes mltiplas. Ela se vincula aos malogros do sistema

de diviso do trabalho que caracterizam as sociedades industriais.

Para Durkheim, a anomia seria um conceito que poderia explicar,

por si s, a srie de resultados perversos da globalizao, no podendo,

ser identificada meramente com o conceito de alienao, utilizado

pelos marxistas, tendo em vista que a alienao decorreria de algo

que iria alm dela mesma: a propriedade privada).

Para Durkheim, os seguintes fenmenos sociais so

manifestaes da anomia. claro que podem haver outras formas

de anomia, mas aquelas que vamos falar disse ele - so as

mais gerais e as mais graves (Durkheim, 1985):

1. As rupturas parciais da solidariedade orgnica so as

propiciadas pelas crises industriais e comerciais, tais como as

falncias, que testemunham que certas funes no esto

ajustadas umas s outras. Por exemplo, elas poderiam ser

vinculadas s crises capitalistas, prpria instabilidade sistmica

da economia moderna sob a direo hegemnica do capital

financeiro. Na tica de Durkheim poderiamos apreender que tende

a ocorrer hoje, uma srie de disfuncionalidades entre a economia

nacional e a economia global. O surgimento de um mercado

mundial cada vez mais integrado pelo livre comrcio, tenderia a

incrementar, ainda mais, o que Durkheim denominou de rupturas

parciais da solidariedade orgnica.

2. O antagonismo entre o trabalho e o capital ocorre

principalmente na medida em que a especializao se desenvolve

no mundo do trabalho, constituindo a grande indstria (cabe salientar

que para Durkheim a alienao, no sentido marxista, seria apenas

uma manifestao e uma conseqncia da anomia). Para ele, a

pequena indstria - e vamos pensar hoje nas oficinas ps-fordistas-

mais suscetvel de cultivar uma solidariedade orgnica, com a

unidade e a concertao proliferando entre capital e trabalho, sendo

a grande indstria propicia a desenvolver o antagonismo entre trabalho

e capital. Na medida em que prolifera a grande indstria e seu espao

de atuao, indo alm dos mercados locais e nacionais, tende a tornar

mais agudo o antagonismo entre capital e trabalho. Diz ele: apenas

na grande indstria que estes conflitos se encontram em estado

agudo.(Durkheim, 1985:149). Ao salientar a agudeza do antagonismo

entre capital e trabalho na grande industria , Durkheim prenunciara

uma das principais causas da crise do fordismo, salientadas pelos

regulacionistas franceses, a organizao taylorista-fordista do

trabalho, baseada na especializao radical do trabalho (Lipietz, 1985;

Boyer, 1985).

3. A especializao sempre crescente da pesquisa cientfica

acarreta um efeito de atomizao, decorrente do prprio processo

de especializao das cincias. Contra a atomizao das

especialidades da cincia, Durkheim sugere que necessrio

encarregar uma cincia nova de a reconstituir. Diz ele,aquilo

que o governo , face sociedade no seu todo, a filosofia deve

s-lo face s cincias.

A situao de anomia, salientadas por Durkheim, no decorre

de uma natureza da diviso do trabalho mais complexa, que, para

ele, fato de solidariedade social. O que poderia nos levar a

perceber que, para ele, a globalizao, compreendida como uma

etapa superior da diviso do trabalho social, tenderia a no

conduzir, por sua prpria natureza, a tais resultados sociais

perversos.

A perversidade da globalizao no campo social, na tica de

Durkheim, poderiam ser situaes excepcionais. Tais perversidade

sociais que ela produziria seriam decorrentes da falta de

regulamentao, isto , da anomia (para Durkheim, a ausncia

de normas explica a anormalidade):

A diviso do trabalho no produz estas conseqncias em

virtude de uma necessidade da sua natureza, mas apenas em

circunstncias excepcionais e anormais (Durkheim,1985:166)

A imagem da sociedade-organismo que incontestavelmente

transparece na noo durkheiminiana de solidariedade orgnica. Por

isso, ele considera os fenomnos de perversidade social, decorrentes do

desenvolvimento do capitalismo moderno, como anormais e excepcionais

e no como a verdadeira situao normal das sociedades modernas.

Disse ele: ...como todos os fatos biolgicos, ela apresenta formas

patolgicas, que necessrio analisar (Durkeim, 1985:145)

Na obra O suicidio, de 1897, a noo de anomia imersa

num conjunto de dicotomias conceituais que esclarecem novos

aspectos do conceito, aplicvel a poca em que vivemos. Por

exemplo: ele contrape egosmo x altrusmo e ainda anomia e

fatalismo. Na obra de 1893, ele j criticava a especializao

egosta, que cria a anomia:

...que o indivduo no se feche a estreitamente, mas se

mantenha em relao constante com as funes

vizinhas..(Durkheim, 1985b:167)

Ou ainda:

...o indivduo curvado sobre a sua tarefa, isola-se na sua atividade

particular; deixa de sentir os colaboradores que trabalham ao seu

lado na mesma obra que ele, deixa absolutamente de ter idia desta

obra comum (Durkheim, 1985b:150).

Tais desdobramentos conceituais da anomia, principalmente no

campo da relao do indivduo com a sociedade e seu grupo social,

poderiam apreender uma srie de aspectos do desregramento no

postos na obra pretrita A diviso do trabalho social.

importante a percepo analtica de Durkheim (ainda baseada na

imagem de uma sociedade-organismo) de que a complexificao dos

sistemas sociais ocasiona uma individualizao crescente dos membros

da sociedade, o que propicia efeitos crescentes de desregramento,

considerado por ele como situaes excepcionais:

A diversidade das funes til e necessria; mas, tal como

a unidade, que no menos indispensvel, no surge delas

espontaneamente, o cuidado de a realizar e de a manter dever

constituir, no organismo social, uma funo especfica,

representada por um rgo independente. Este rgo o

Estado ou o Governo (Durkheim, 1985:151)

Entretanto, Durkheim no defende um governo forte, que

imponha de cima para baixo a regulamentao que propicie a

unidade e o consenso entre as partes da sociedade. Diz ele que,

O que faz a unidade das sociedades organizadas, como de

todo o organismo, o consensus espontneo das partes,

essa solidariedade interna, que no s to indispensvel

como a ao reguladora dos centros superiores, mas que

tambm sua condio necessria, porque eles apenas a

traduzem num outra linguagem e, por assim dizer, a consagram

[...] As partes devem ser j solidrias uma das outras para

que o todo tome conscincia de si e reaja como tal. (o

grifo nosso) (Durkheim, 1985:153)

A complexificao social que produz a solidariedade

orgnica. Na viso dos utilitaristas, como o caso de Spencer, a

solidariedade orgnica seria exclusivamente contratual, seria livre

de toda a regulamentao. Entretanto, para Durkheim, tal

solidariedade seria instvel: O que manifesta a extenso da ao

social a extenso do aparelho jurdico. necessrio, portanto,

uma regulamentao complexa, um aparelho jurdico.

Durkheim ansiava por uma sociedade em que os indivduos

fossem guiados por um sistema de valores e normas, isto , por

uma moral, que os encorajasse e os convidasse a se satisfazerem

com sua posio no sistema de diviso do trabalho. Ele assimila

sociedade e organizao, sociedade e organismo: O papel da

solidariedade no suprimir a concorrncia, mas modera-la.. E

mais adiante salienta que

...estas perturbaes so naturalmente tanto mais freqentes

quanto mais especializadas forem as funes; porque quanto

mais complexa uma organizao mais se faz sentir a

necessidade de uma regulamentao complexa (Durkheim,

1985b:161)

Durkheim acreditava que o estado de anomia seria temporrio.

Decorre de uma fase do desenvolvimento social caracterizado por

rpidas mudanas. Por exemplo, ele pergunta: de onde provm o

estado de anomia ? Durkheim responde:

Uma vez que um corpo de normas a forma definida que tomam

com o tempo as relaes que se estabelecem espontaneamente

entre as funes sociais, pode-se dizer a priori que o estado de

anomia impossvel em toda a parte em que os rgos solidrios

esto em contacto suficiente e suficientemente prolongado

(Durkheim, 1985)

Por isso, na medida em que as partes contguas perceberem,

em cada circunstncia, a necessidade que tm uma das outras, e

viverem, atravs da troca, um sentimento vivo e contnuo de sua

mtua dependncia, elas iro consolidar, com o tempo, a solidariedade,

prevendo e fixando as condies do equilbrio do organismo. Na

perspectiva de Durkheim, portanto, com o tempo, os conflitos

tendem a se equilibrar.

A situao de anomia bastante perceptvel na poca histrica

de Durkheim. Lembremos que ele viveu a poca de passagem

do capitalismo concorrencial para o capitalismo monopolista, uma

etapa do desenvolvimento capitalismo moderno caracterizada pelo

imperialismo (a virada para o sculo XX). Ele pertence a uma

poca de transformaes rpidas na vida social e na economia

internacional, nas empresas e na prpria cincia.

Na tica de Duirkheim poderamos dizer que a diviso do

trabalho, e por que no dizer, a globalizao que ocorre hoje

trazendo em seu bojo uma srie de resultados sociais perversos,

deve seus resultados a rapidez das transformaes capitalistas,

sendo que, com o tempo, ela ira tender a alcanar uma condio

de equilbrio que desvendaria seu verdadeiro sentido e finalidade:

ser uma fonte de solidariedade e no apenas, como os

economistas muitas vezes salientam, um meio de aumentar o

rendimento das foras sociais.

A seguinte longa transcrio de Durkheim importante para

mostrar como as transformaes do mercado, segundo ele,

atingem a empresa e a relao capital e trabalho e possuem

implicaes na prpria cincia social e moral. So implicaes na

economia, no mundo do trabalho e na prpria atividade cientfica:

... medida que o tipo organizado se desenvolve, a fuso dos

diversos segmentos uns nos outros implica a dos mercados

num mercado nico, que abraa aproximadamente toda a

sociedade. Este estende-se mesmo para alm dela e tende a

torna-se universal, porque as fronteiras que separam os povos

esbatem-se ao mesmo tempo que as que separam os

segmentos de cada um deles. Da resulta que cada indstria

produz para consumidores que esto dispersos sobre toda a

superfcie do Pas, ou mesmo do mundo inteiro. O contato

no portanto j suficiente. O produtor no pode abarcar o

mercado com olhar, nem mesmo com o pensamento; no

pode j representar-lhe os limites, uma vez que ele , por

assim dizer, ilimitado. Por conseqncia, a produo carece

de freio e de regra; ela apenas pode tatear ao acaso e, no

decurso destas tentativas, inevitvel que a medida seja

ultrapassada quer num sentido quer no outro. Da essas crises

que perturbam periodicamente as funes econmicas. O

aumento dessas crises locais e restritas, que so as falncias,

verdadeiramente um efeito desta mesma causa.

medida que o mercado se estende, a grande indstria surge.

Ora, ela tem por efeito transformar as relaes dos patres e

dos operrios. Uma maior fadiga do sistema nervoso, junta

influncia contagiosa das grandes aglomeraes aumenta as

necessidades destes ltimos. O trabalho mecnico substitui o

do homem; o trabalho na manufatura, o da pequena oficina. O

operrio est arregimentado fora da famlia todo o dia; vive

cada vez mais afastado daquele que o emprega, etc. Estas

condies novas da vida industrial reclamam naturalmente uma

organizao nova; mas, como estas transformaes se realizam

com uma extrema rapidez, os interesses em conflito no tiveram

ainda tempo para se equilibrar.

Finalmente, o que explica que as cincias morais e sociais

estejam no estado que dissemos que foram as ltimas a

entrar no crculo das cincias positivas. Com efeito, h pouco

mais de um sculo que este novo campo de fenmenos se

abriu investigao cientifica. Os cientistas instalaram-se,

num ou noutro lado, segundo os seus gostos naturais.

Dispersos sobre esta vasta superfcie, permaneceram at o

presente demasiado afastados uns dos outros para sentir

todos os laos que os unem. Mas, porque levaro as suas

pesquisas sempre mais longe dos seus pontos de partida,

acabaro necessariamente por atingir-se e, por conseguinte,

por tomar conscincia da sua solidariedade. A unidade da

cincia formar-se- assim por si mesma; no pela unidade

abstrata duma frmula, de resto demasiado exgua pela

infinidade de coisas que ela deve abarcar, mas pela unidade

viva de um todo orgnico. Para que a cincia seja una, no

necessrio que ela caiba inteira no horizonte de uma e mesma

conscincia o que de resto, impossvel mas basta que

todos aqueles que a cultivam sintam que colaboram numa

mesma obra. (o grifo nosso)(Durkheim, 1985b:63-165)

As partes grifadas por ns salientam portanto dois aspectos

importantes do pensamento durkheiminiano:

1. A anomia decorrncia de rpidas transformaes sociais e

portanto, possuem um carter de excepcionalidade, o que leva a

crer que, com o tempo, os interesses em conflito tendero a se

equilibrar.

2. O equilbrio social, salientado por Durkheim, tende a ocorrer,

na medida em que surgirem, no decorrer do prprio desenvolvimento

social, regulamentaes mais complexas, por parte do Estado-nao

e dos governos que apenas manifestariam um consenso espontneo

das partes, que no poderia ser imposto pelos centros superiores.

O que quer dizer que, Durkheim cultiva um vis otimista sobre os

desdobramentos da diviso do trabalho social e, por conseguinte, do

que poderamos considerar, hoje, a globalizao.

Surge uma questo crucial: no haveria em Durkheim uma

valorizao exacerbada e idealizada do aparelho jurdico, do

Direito, como cimento ideolgico e regulador da coeso social,

contra o movimento do capital ? E mais do que isso: uma crena

inabalvel na capacidade reguladora do Estado-nao sobre o

desenvolvimento irremedivel da modernizao capitalista (o

Estado-nao posto como o referencial heurstico da sociologia

clssica) ?

Com certeza, Durkheim teve a importante percepo de um

aspecto da sociabilidade na etapa moderna do capitalismo: o Direito

como sendo a expresso-mor da ideologia que coordena e regula a

reproduo social, principalmente numa poca onde o movimento

do capital,sob a etapa da mundializao financeira, possui duas

dimenses paradoxais: por um lado, o capital financeiro tem um medo

pnico das regulamentaes pblicas que poderiam se opor a esse

livre movimento de financeirizao (por exemplo, uma taxa Tobin)

e, por outro lado, os investidores institucionais - e os governos - tm

um temor visceral das instabilidades sociais provocadas pelo

movimento exacerbado do capital financeiro.

Algo a ser destacado que Durkheim salientava que a nova

regulamentao social capaz de superar as anomias da

modernidade deveria nascer do consenso espontneo entre as

partes, ao invs de serem impostos por um Estado onisciente,

verdadeiro Leviat, tal como surge hoje, no receiturio neoliberal.

Na verdade, Durkheim um dos precursores ideolgicos dos

pactos tripartites de cariz neocorporativo tal como proposto

pela social-democracia moderna.