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E dar-lhe-ei a estrela da manhã

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Nunca diga que o tempo somente degenera e corrompe as coisas. Ele traz sabedoria, e essa é a única virtude a que devemos nos apegar; nunca diga que o tempo levou de você o viço das épocas juvenis, quando você espargia o perfume de frutos carnudos de cálida acidez, e o toque de seus dedos ondulavam energias na superfície da minha pele, e essa era a minha sabedoria; nunca diga que não lhe procurei nos fios de cabelo desprendidos pelos ventos quentes carregados de areia cintilante, ou mesmo na pelagem do cão, revirada pelo seu afago, e que só em você encontrava abrigo do desprezo. Nunca diga que fui menos do que seu pai.

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José Luiz Kohler

São Paulo, 2013

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ColeçãoNOVOS TALENTOS DA LITERATURA BRASILEIRA

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DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIçãO àNOVO SéCULO EDITORA

Alameda Araguaia, 2190 - 11o andarCEP 06455-000 - Barueri -SP

Tel. (11) 3699-7107 – Fax (11) 3699-7323www.novoseculo.com.br

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Copyright © 2013 by José Luiz Kohler

Coordenação editorial Equipe Novo Século

Projeto Gráfico e Composição Claudio Tito Braghini Junior

Capa monalisa morato

Preparação Julian Guilherme F. Guimarães

Revisão Vera Ayres

Kohler, José Luiz E dar-lhe-ei a estrela da manhã / José Luiz Kohler. -- 1. ed. -- Barueri, SP : Novo Século Editora, 2013. -- (Coleção novos talentos da literatura brasileira) 1. Ficção brasileira I. Título. II. Série. 13-04016 CDD-869.93

1. Ficção : Literatura brasileira 869.93

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Índices para catálogo sistemático:

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Deixai entrar a morte

Deixai entrar a morte, a Iluminada,A que vem pra mim, pra me levar.Abri todas as portas par em parComo asas a bater em revoada.

Que sou eu neste mundo? A deserdada,A que prendeu nas mãos todo o luar,A vida inteira, o sonho, a terra, o mar,E que, ao abri-las, não encontrou nada!

Ó mãe! Ó minha mãe, pra que nasceste?Entre agonias e em dores tamanhas,Pra que foi, dize lá, que me trouxeste

Dentro de ti?... Pra que eu tivesse sidoSomente o fruto amargo das entranhasDum lírio que em má hora foi nascido!...

Florbela Espanca

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Parte Um

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Ritmados com a respiração, os movimentos de so-freguidão diluíram-se em uma gemência prolongada de pra-zer. E então a moça gorda e o homem velho enovelaram-se em um abraço úmido e quente, entrecortado pelos movi-mentos dos corpos sacudidos pela respiração, agora ofegante e ondulante em notas de delicada acidez e suor; então seu corpo manifestou novamente promessas de sedução no de-samparo da nudez de ambos a escorrer por entre as pernas e pelos poros dilatados no semiescuro do quarto /olhos cerrados, a morder lábios em meio a gemidos a vazarem pelos cantos da boca /. Ouviram os ruídos de trancas abertas com mal disfar-çado cuidado e de súbito os estalidos do mecanismo da porta repercutiram neles. Levantaram-se num esforço de acroba-tas fatigados e esperaram por um instante que se prolongou com ranços de eternidade. O velho, temeroso, volatilizou-se numa incerteza nevoenta atirando-se pela janela, enquanto ela manteve-se amansada num estado de torpitude exausta.

Com minúsculas fissuras a testemunhar histórias re-motas, cujo destino é o despercebimento inexorável no cor-

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po metálico por falta de quem se importe com cicatrizes de metal, a chave girou num movimento tenso na tentativa vã de impor silêncio a todo o mecanismo de engrenagens e fer-ragens que ela atiçara para que a porta fosse aberta, numa insistência de lamentos metálicos recém-sonhados, como recém-sonhado o amor.

Acordada de sobressalto, pouco à vontade e com uma sensação imprecisa de mal-estar oprimindo a barriga, próxi-mo ao púbis, algo a meio caminho entre uma cólica e a an-tecipação de expectativas excitantes, pôs-se a divagar, depois de espreguiçar-se demoradamente em torno de lembranças, tantas vezes revividas que já não alimentava certeza sobre a veracidade delas, como se a cada recordação se juntassem pe-quenas frações de memórias e ela reeditasse o mesmo drama sob roupagens levemente modificadas por remendos ora omi-tidos, ora espremidos até a essência da fibra crua em relação à reminiscência anterior. Os mesmos olhos tristes do pai – os meus olhos – pousaram sobre mim e já havia no rosto pon-tilhado de espinhas um meio sorriso de secreta admiração. Anteviam-se também, há pouco, os dentes amarelos a revelar expressões tímidas de aproximação; ocorreu-me a visão do cachorro, com pelo denso, pontudo e besuntado a grudar--me nas mãos, que estavam erguidas em transe passageiro até o horizonte do olhar à procura de não sei o quê, a cata-logar impressões sobre o comportamento e o pelo do cão, e a revirar o rosto com tantos carrapatos gordos semeados no pelo, bolas de natal como as que o pai guardava na caixa de papelão: um pequeno sarcófago onde eram depositadas as exéquias do Natal passado e toda alegria de vê-las pendura-das na arvoreta preparada pela mulher de pernas compridas

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e dedos finos, como os galhos em que enlaçavam as bolas ou adereços grávidos a balançarem-se no ritmo das passadas do animal, prontos a desprenderem-se, repletos de sangue, a semear gerações de carrapatinhos pacientes e famintos por todos os lugares pelos quais andássemos (e entre os dedos do pé um prurido inofensivo, mas persistente, a germinar o te-mor de um bicho-de-pé ou um carrapato insolente). Quan-do ele me olhou, muito tempo depois e após muitos carrapa-tos nascidos e mortos na azáfama da curta sobrevivência, seu olhar era de cansaço, daquele tipo de cansaço derrotado pela imutabilidade da condição presente, que não permite sequer sonhar mais, porque não há sonho de cão que perdure ao fim iminente. E apenas em reflexo sonolento, os olhos acompa-nharam o movimento arrastado dos passantes. Aos poucos, ele deitou a cabeça sobre as patas e exalou doloridamente um último suspiro, como a cumpliciar-se pela última vez com a vida, com o mundo, a quem oferecia um tanto de ar que en-trava nele pela última vez e retornava à atmosfera compacta, quente, cruel, quase palpável na sua densidade derradeira, a trazer consigo naquela exalação sua alma. E então ele se foi, sem alarde ou sequer notado, um ponto minúsculo na história da gente e dos companheiros cães, fugaz nas lem-branças e invocações de memória, enterrado na indiferença discreta do esquecimento. Para onde você foi? / aproximação contida do pai, de permeio com perguntas bobas: “como vai?”, “como?”, “o quê?” – repertório frágil, a vasculhar minhas rea-ções e a tentar esvaziar os sentidos dúbios das preocupações que povoavam minha cabeça feito insetos revoltos a escapar-me pela janela do olhar distraído, a ausentar-me em devaneios rápidos /. Lembranças a imprimir uma vaga, mas palpável, preocupação adolescente no rosto espinhento de dentes amarelos e olhos

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tristes, os mesmos do pai, as bolas coloridas do natal, carra-patos prenhes de expectativas de alegrias, quebrando-se todas ao longo da caminhada. Nem sangue nem fetos vindos à luz, tão somente a superfície prateada do vazio.

O pai a sofrer daquela dor de coluna que lembramos, eu e o cão, pelo praguejar e insultos raivosos nas crises mais agudas (e os olhos mais tristes ainda) a atrapalhar-lhe o ca-minhar, o sentar, o defecar, o tossir, e a todo o resto, lan-çando sobre os olhos tristes um véu de dor que lhe retirava sumo da vida e o deixava revoltado com essa dor imensa. Se fosse quadrúpede, como escreveram num almanaque a propósito de lumbagos, nada disso lhe sucederia. Se ao me-nos fosse cristão praticante de fé no improvável, nada disso aconteceria, e ainda teria um bônus redentor a respeito da compreensão e resignação diante das provações e ditames divinos, de certo reconhecíveis e debitados das dores que te-mos de suportar todo dia. E a consciência a debater-se entre suprimir essa dor ou dar-lhe sentido. Uma dor com sentido não é menos dolorosa na sua angústia de existir e expressar--se. Castigo penoso o do pai, constringindo a coluna como a querer lhe partir ao meio, a respiração ruidosa / nem ofegante nem resignado; com o fim, a respiração era um ponto minúsculo em volatilização na densidade de pelos que era o cão encolhido e os carrapatos a livrarem-se da escravidão da fome; e ele volta-ria a dormir sem sonhos na morte /, o arreganhar de dentes e o torcer do rosto, carrapato a sugar-lhe o tutano dos ossos, vergando-o sob o peso de uma dor presumivelmente injus-ta; e nem tossir, defecar, sentar, comer e todo o resto. mal podendo pensar. Se ao menos um lenitivo, uma cataplasma de ervas, um quiroprático, qualquer coisa a distanciá-lo da dor, a dar-lhe um pouco de sossego / cale a boca! O meu es-

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tômago em contorções a subirem-me na garganta em gangorra de exasperação /.

A chave encontrada sob o capacho roído da casa esco-lhida, prestes a tombar sob o peso do tempo, embora per-meada por uma atmosfera de encanto remanescente do pas-sado, em que caramanchões enroscaram-se nas pilastras que ladeiam a entrada e alastraram-se sobre uma treliça segura por dois fios coloridos. Guardada no bolso da camisa, um certo poder desprende-se da chave marcada de cicatrizes no corpo oxidado e queima-me o peito em ardumes passionais. O poder de abrir-me à desgraça sob o ranger enfadonho de molas da cama ou fechar-me para sempre, embotado pela suspeita, pela decepção / eu a observar o rosto triste de minha filha, concentrado nos seus/meus olhos azuis embaçados de dor, submersos por lágrimas que não choramos, congenitamente tris-tes nós dois; seu rosto povoado por pústulas de acne, e nós a mini-mizarmos a feiura dessas espinhazinhas a lhe marcarem boche-chas e testa; seus dentes alinhados naquele seu sorriso de nuances amarelas, desprovido de graça, a lembrar-me de algo, não fosse essa maldita dor nas costas /. Prudência paternal, ao sair à pro-cura de água, você deitada, submergida em sonhos, a chave a proteger-lhe de uns quantos saqueadores, ou o velho, no cio extemporâneo, em fechamentos ou aberturas de represamen-tos sanguíneos a encher-lhe e esvaziar-lhe de luxúrias.

mesa disposta na simplicidade preguiçosa da meni-na, com talheres díspares distribuídos de modo aleatório sobre a superfície amarrotada de uma toalha irremedia-velmente condenada por sujidades acumuladas, deitados próximos a pratos encardidos por incontáveis lavagens malfeitas, enodoados de gordura e crostas de algo que um

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