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POÉTICAS DA REPRESENTAÇÃO ARTÍSTICA | E-fólio Reconhecendo a complexidade e dificuldade em estabelecer fronteiras para os períodos literários, cujo debate ganha pertinência a partir do Romantismo, será mais confortável referir que estes resultam ou renovam-se em função da conceção evolutiva do próprio fenómeno literário, quase sempre em sintonia com contextos políticos, históricos, socioculturais ou académicos. Para esse processo construtivo intervêm atores diversos, como a escola, a academia, o grupo, a tertúlia ou a geração, que defendendo discursos ideológicos, descobertas técnico-científicas ou práticas artísticas, seja através de manifestos, revoluções ou polémicas, podem despoletar ou acelerar a sua afirmação enquanto período literário, conforme explica Carlos Reis (1994: 83). Ainda assim, pode afirmar-se que os períodos literários não se anulam definitivamente, podendo coexistir no mesmo período temporal e no mesmo espaço, fase intermédia essa em que o antigo alimenta o novo, seja pela sua negação, aceitação ou assimilação, até ao momento da sua total autonomia. O Modernismo exalta toda essa complexidade, uma interação artística e literária vanguardista feita de experimentalismos inovadores, da multiplicação de ismos e da afirmação dessa expressão. Passa a glorificar o mundo moderno, tema e motivo já presentes no movimento simbolista e no impressionismo 1 , que se opunham à tradição e focavam especialmente a sensação, referindo- se a escritores que criticavam a literatura instituída, sendo natural que essas críticas possam ter assu- mido certa personalização cultural atribuindo ao termo “Modernismo” diferentes sentidos consoante essas outras culturas, como explica Maria Luísa Malato (2008: pp 228 a 231): O Modernismo anglo-saxónico, inglês e norte-americano corta com o misticismo romântico procurando uma língua- gem mais visual e comum para a literatura, que evidenciasse os temas da vida moderna. O Moder- nismo hispânico reinterpreta “o Parnasianismo-Simbolismo-Decadentismo francês em prol da “arte- pela-arte […] recriando, na poética sul-americana, um exotismo oriental ou a nostalgia clássica”. O Modernismo brasileiro afirma o cosmopolitismo e a pluralidade rácica e cultural, sublinhando a sua própria originalidade e identidade. Já o Modernismo português teve em Fernando Pessoa (1888- 1935) importante teorizador e um dos principais protagonistas da Geração de Orpheu, manifestan- do desde cedo uma visão cosmopolita e europeísta, indicando o caminho para a literatura nacional. Pessoa afasta-se das suas raízes simbolistas e do saudosismo português assumindo o Sensacio- nismo como a soma dos movimentos anteriores e por essa razão refere que da ação dos român- ticos, da Escola de Coimbra e dos “Nefelibatas” não resultou nem um quadro ideológico literário e artístico próprio (português) nem uma visão ampla do mundo capaz de gerar interação. Esse mundo de que Pessoa fala e trata é marcado por um tempo socialmente perturbado e de certa fragmentação cultural e intelectual, que por sua vez resultam de um modo de vida progressis- ta e de um violento processo entre guerras que marcaram a Europa no final do século XIX e primei- E-fólio Poéticas da Representação Artística António Campos ra metade do século XX. É neste contexto de crise ideológica que se revela uma decadência e alie-

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POÉTICAS DA REPRESENTAÇÃO ARTÍSTICA | E-fólio

Reconhecendo a complexidade e dificuldade em estabelecer fronteiras para os períodos literários,

cujo debate ganha pertinência a partir do Romantismo, será mais confortável referir que estes

resultam ou renovam-se em função da conceção evolutiva do próprio fenómeno literário, quase

sempre em sintonia com contextos políticos, históricos, socioculturais ou académicos.

Para esse processo construtivo intervêm atores diversos, como a escola, a academia, o grupo, a

tertúlia ou a geração, que defendendo discursos ideológicos, descobertas técnico-científicas ou

práticas artísticas, seja através de manifestos, revoluções ou polémicas, podem despoletar ou

acelerar a sua afirmação enquanto período literário, conforme explica Carlos Reis (1994: 83). Ainda

assim, pode afirmar-se que os períodos literários não se anulam definitivamente, podendo coexistir

no mesmo período temporal e no mesmo espaço, fase intermédia essa em que o antigo alimenta o

novo, seja pela sua negação, aceitação ou assimilação, até ao momento da sua total autonomia.

O Modernismo exalta toda essa complexidade, uma interação artística e literária vanguardista feita

de experimentalismos inovadores, da multiplicação de ismos e da afirmação dessa expressão.

Passa a glorificar o mundo moderno, tema e motivo já presentes no movimento simbolista e no

impressionismo1, que se opunham à tradição e focavam especialmente a sensação, referindo- se a

escritores que criticavam a literatura instituída, sendo natural que essas críticas possam ter assu-

mido certa personalização cultural atribuindo ao termo “Modernismo” diferentes sentidos consoante

essas outras culturas, como explica Maria Luísa Malato (2008: pp 228 a 231): O Modernismo

anglo-saxónico, inglês e norte-americano corta com o misticismo romântico procurando uma língua-

gem mais visual e comum para a literatura, que evidenciasse os temas da vida moderna. O Moder-

nismo hispânico reinterpreta “o Parnasianismo-Simbolismo-Decadentismo francês em prol da “arte-

pela-arte […] recriando, na poética sul-americana, um exotismo oriental ou a nostalgia clássica”. O

Modernismo brasileiro afirma o cosmopolitismo e a pluralidade rácica e cultural, sublinhando a sua

própria originalidade e identidade. Já o Modernismo português teve em Fernando Pessoa (1888-

1935) importante teorizador e um dos principais protagonistas da Geração de Orpheu, manifestan-

do desde cedo uma visão cosmopolita e europeísta, indicando o caminho para a literatura nacional.

Pessoa afasta-se das suas raízes simbolistas e do saudosismo português assumindo o Sensacio-

nismo como a soma dos movimentos anteriores e por essa razão refere que da ação dos român-

ticos, da Escola de Coimbra e dos “Nefelibatas” não resultou nem um quadro ideológico literário e

artístico próprio (português) nem uma visão ampla do mundo capaz de gerar interação.

Esse mundo de que Pessoa fala e trata é marcado por um tempo socialmente perturbado e de

certa fragmentação cultural e intelectual, que por sua vez resultam de um modo de vida progressis-

ta e de um violento processo entre guerras que marcaram a Europa no final do século XIX e primei-

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ra metade do século XX. É neste contexto de crise ideológica que se revela uma decadência e alie-

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nação social e a crise de unidade do sujeito, tomado em dúvidas, ansiedades e tensões (temas

dominantes na obra de Pessoa, que foca também o impressionismo afeto ao dinamismo do seu

tempo), determinando o seu desdobramento artístico, “a despersonalização do sujeito poético e a

homóloga perda da identidade do Eu”, citando Dionísio Vila Maior (2001: pp 65 e 66), que no

contexto literário português assiste ao surgimento de uma estética ideológica marcada pelos ismos

pessoanos, destacando-se o Interseccionismo, o Sensacionismo ou o Futurismo, e pelos seus

heterónimos, como Álvaro de Campos, Alberto Caeiro ou Ricardo Reis, ou ainda um desassos-

segado Bernardo Soares, na qualidade de semi-heterónimo.

A estética literária modernista rompe assim com as formas tradicionais quotidianas da vida e com

uma “representação literária de índole realista e mimética” (Reis, 1994: 98), passando a cantar a

beleza do novo, uma visão nova do mundo, uma cultura assente nas descobertas tecnológicas que

os novos tempos propiciam, mas muito especialmente, como preferia Fernando Pessoa, cantava as

suas emoções traduzidas por certo Sensacionismo.

Essa manifestação está implícita no excerto do poema de Álvaro Campos 2, cujas marcas literárias

bebem ao Simbolismo, Decadentismo ou Impressionismo, como se viu, apresentando certa carga

ideológica e especialmente relação com o Imaginismo, definindo ideias como sensações: “Afinal, a

melhor maneira de viajar é sentir”, começa por dizer, continuando a acentuar esse jogo de sensa-

ções (marca do Sensacionismo) com que constrói o poema, e também a virtualidade-estética que

caracteriza Pessoa na sua desconstrução, traduzida nos seus heterónimos, ao dizer: “Quanto mais

eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas, Quantas mais personalidades eu tiver, (…)

Mais possuirei a existência total do universo, Mais completo serei pelo espaço inteiro fora. (…)”.

Marcado por fases poéticas diferentes (Decadentista, Futurista/Sensacionista e Intimista/Pessi-

mista), Álvaro de Campos experimenta assim toda a extensão e os opostos das sensações e dos

sentimentos, a multiplicidade e a pluralidade, sendo essa a base da sua estética e da sua arte

enquanto visão do mundo, “Sentir tudo de todas as maneiras, Sentir tudo excessivamente, Porque

todas as coisas são, em verdade, excessivas” 3, pois tudo solicita a nossa sensação.

A sua viagem é uma viagem pelos sentidos e pela emoção, sente e canta o progresso, o desen-

volvimento tecnológico e industrial e os seus efeitos nos Homens, “Meu corpo é um centro dum

volante estupendo e infinito […] cruzando-se em todas as direcções, com outros volantes” 4,

estando aqui implícita essa exaltação e admiração pelo Mundo moderno que proporciona como

nunca evolução e novas emoções à humanidade, e ao mesmo tempo a crítica pela mecanização

dessa mesma sociedade, sentida como extensão da própria máquina. Sendo de certa forma mais

emocional e dramático, Álvaro Campos é também, de certo modo, “a parte desligada da realidade

emocional de Pessoa” 5, aí residindo a sua essência e o princípio construtivo de toda a sua obra.

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Bibliografia: AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel, Teoria da Literatura, Livraria Almeida, Coimbra, 1999. AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel, Teoria e Metodologia Literárias, Lisboa, Universidade Aberta, 1990. MALATO, Maria Luísa, História da Literatura Europeia: Uma Introdução aos Estudos Literários, Lisboa, Quid Juris- Sociedade Editora, 2008. MAIOR, D.V. (2001) - Literatura em Discurso (s) – Saramago, Pessoa, Cinema e Identidade, Pé de Página Editores, Coimbra. REIS, Carlos, O Conhecimento da Literatura. Introdução aos Estudos Literários, Coimbra, Livraria Almedina, 1994 (Capítulos VII e VIII). Álvaro de Campos, Página acedida a 12/01/2013 em URL: http://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%81lvaro_de_Campos#Alguns_poemas Guimarães, Fernando, Simbolismo, Página acedida a 08/01/2013 em URL: http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&task=viewlink&link_id=284&Itemid=2, em E-Dicionário de Termos Literários, coord. de Carlos Ceia, ISBN: 989-20-0088-9, <http://www.edtl.com.pt>, Simeini, Cristiane, A DESCONSTRUÇÃO DO EU EM FERNANDO PESSOA, Mestranda em Letras-Literatura Portuguesa - (USP) pdf. O Modernismo, Página acedida a 08/01/2013 em URL: http://auladeliteraturaportuguesa.blogspot.pt/2010_02_01_archive.html Quanto mais eu sinta como várias pessoas, Página acedida a 11/01/2013 em URL: http://xailedeseda.blogspot.pt/2012/05/hoje-dia-da-lingua-portuguesa-e-da.html

Referências: 1 Uma Introdução aos Grandes Movimentos Literários e Artísticos da Europa Moderna e Contemporânea, Tema 4: As Estéticas Finisseculares - O Simbolismo; Tema 5: O Modernismo e o Futurismo; Plano de Estudo da Unidade Curricular Poéticas da Representação Artística, Universidade Aberta (2012). 2 e 3 Extrato do Poema de Álvaro Campos disponibilizado para a realização do E-fólio B da Unidade Curricular Poéticas da Representação Artística, Universidade Aberta (2012).

4 A Melhor Maneira de Viajar é Sentir, Página acedida a 08/01/2013 em URL: http://www.citador.pt/poemas/a-melhor-maneira-de-viajar-e-sentir-alvaro-de-camposbrbheteronimo-de-fernando-pessoa 5 Análise do poema "o que há em mim é sobretudo cansaço", Página acedida a 08/01/2013 em URL: http://www.umfernandopessoa.com/an%C3%A1lises/poema-o-que-ha-em-mim-e-sobretudo-cansaco.htm

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