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E M  T R Ê S  A N D A M E N T O S     

 Em Três AndamentosCarlos Frazão

2004 

 

     

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E M  T R Ê S  A N D A M E N T O S                                        À memória do meu pai

     

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E M  T R Ê S  A N D A M E N T O S E M  T R Ê S  A N D A M E N T O SÍNDICE

PRIMEIRO ANDAMENTO  DIÁRIO

AGOSTOESPLANADASEM DATAOUTONOCADERNO DE APONTAMENTOSANOTAÇÕESFIM DE TARDEHOTEL ROOMIN FRONT OFLES ENVIRONS

SEGUNDO ANDAMENTO           MEMORANDO MSTERDAM

EDVARD MUNCHCIDADE ANÓNIMAMADRUGADAGRÉCIANARRATIVAIRLANDA

ÚLTIMO ANDAMENTO          EPÍLOGO

1.       NUMA CIDADE REVISITADA2.       ÚLTIMO ANDAMENTO

CITAÇÕES 

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17 18 20 21 23 25 27 29

31 32 34 36

 

Entrámos em quartos amaldiçoados                    e iluminámos o escuro                    com as pontas dos dedos.

                    Ingeborg Bachmann

                    Now the ears of my ears awake and                    now the eyes of my eyes                    are opened.

                    E.E. Cummings                                           

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E M  T R Ê S  A N D A M E N T O S E M  T R Ê S  A N D A M E N T O S

PRIMEIRO ANDAMENTO Diário

     

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AGOSTO

De noite. À noite uma vegetação cristalina irrompe de um lugar longínquo. A superfície marcada por um azul incessante que o olhar sustém. Com palavras habitadas: na boca árida do ar as aves silenciosas sobre os muros. Contemplar os objectos perturbados ao vento álgido, para depois te perder fascinado pelos sulcos do teu corpo - o teu corpo por onde deslizam as pétalas íntimas da alegria. Com as palavras: nas horas em que fizemos da inquietação a certeza de um amor cumprido. De sílabas sucessivamente objectivas. Decifráveis. À noite as aves deslizam pela vegetação. 

 

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E M  T R Ê S  A N D A M E N T O S E M  T R Ê S  A N D A M E N T O S

ESPLANADA

Eu podia falar-lhe sobre a morte: na tarde iluminada pelos insectos da lucidez, com o rosto imponderável na vertigem das metáforas - da morte. Voltar-me para a folhagem e fixar o intelectual sentido de que nada permanece: um equívoco de frases repousa sobre os nossos lábios atónitos. A paisagem esvai-se numa profusão de cinzas que nos vigia. Amanhã os pássaros voltarão pela conspícua aurora - outros corpos, outros barcos, uma subterrânea dor que avança , a linguagem feliz dos adolescentes, o infortúnio para coar os sonhos - e estaremos no esquecimento decomposto das purpúreas veias. E. Podia falar-lhe: da planície dos espelhos sem imagens, de um cenário indistinto de palavras (palavras diluídas) - da morte. Na tarde iluminada.(Os insectos oscilantes).

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SEM DATA

  Desenho um mapa, um percurso que os desígnios da melancolia não apagam. Agora um romance pode começar no interior solar das emoções. Fruindo o instante, como disse Kierkegaard, ao ritmo comovido dos dedos circunstanciais dos amantes. Até que o acto seja quase sublime. Até que os lábios se diluam no bordo vítreo da luz; à luz da atmosfera indemne. Anónimo: deslumbro o que na fotografia do rosto se torna numa legibilidade efémera. Percurso convocado de emoções instantâneas.

 

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E M  T R Ê S  A N D A M E N T O S E M  T R Ê S  A N D A M E N T O S

OUTONO

Descíamos para a solidão do dia agarrados à pele dos enigmas que nos consumia. Podíamos sentir a lâmina do vento assim como quem escuta um rumor sinistro. Extenuados pela dança das imagens, compreendemos que o lume dos afectos já só habitava uma memória estranha e imprecisa. Verdadeiramente: os lagos por onde passam rápidas as sombras - onde a mágoa se extinguia no contracto cúmplice dos ombros, lembras-te? - exprimem a litania ontológica de viagem de náufragos. Descíamos ao encontro das pálpebras líquidas: do dia. Por dentro da pele, pelo enigma dasimagens.

  

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CADERNO E APONTAMENTOS

Tenho a debilidade própria de quem está no sonho.1) De quem está no sonho: um curso sanguíneo, onde árvores infinitas - ou estátuas que respiram, ou colunas expostas à eternidade - elevam-se nas estradas por entre os espasmos roxos da neblina. E figuras elásticas e figuras aladas sobre um rastro extenso de oceanos inumeráveis (o azul da águaprofundo, grave).

2) Mais: serres baços vagueiam pelos círculos do crepúsculo. Um dorso inclinado sobre o mármore real. Ou as mãos no lugar onde a morte desagua. Depois, intimar os corpos que ardem por dentro numa latitude soletrada de astros, papéis flutuando pelo abismo emocionável da noite. Depois. As linhas sombreadas como signos para escrever nas fontes

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E M  T R Ê S  A N D A M E N T O S E M  T R Ê S  A N D A M E N T O S

(apontamentos). Enquanto os olhos permanecem nas oníricas árvores infinitas.

3) Ainda: a debilidade do teu corpo experimento na respiração dos sonhos, quando em círculos as árvores sanguíneas povoam a noite. Ideias.

4) Deixo escrito no litoral extenso das folhas, dos inumeráveis signos de apontamentos, um indício (como corpos, figuras, ou a morte, as ideias) reitera o sonho - frágil, desmedido.

      

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ANOTAÇÕES

Guardo aquele instante (tudo o que dura é um instante!) pequenas anotações, palavras súbitas e frases sublinhadas para escapar ao tédio. O hálito das tílias imprime-se aos vapores do lago (artificial). Palavras. Sublinhadas. Divago: as ideias sufocam-me num riso prestável. Rio. Os objectos são mais leves do que os olhos, talvez a realidade seja , num momento, quase imóvel. Anotações breves para não cair no vazio. Divago: podia reconhecer nas margens os barcos, sombras imperceptíveis e suicidas com olhos esverdeados - antes de fixar a expressão oculta daquela mulher verdadeiramentepresente no fundo de si. Quase imóvel. Como uma ficção que escolhemos para escapar ao tédio.

   

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E M  T R Ê S  A N D A M E N T O S E M  T R Ê S  A N D A M E N T O S

FIM DE TARDE

O azul das estradas ao poente, plátanos como na insónia as aves voltejam sobre a mente - talvez, talvez na casa deserta reste o filtro da voz, a pele despida numa certeza imersa (não voltarei para sentir o teu brilho!). Nenhuma dor súbita, nenhuma dor para lavrar na cicatriz aberta pela ausência (o que se escreve enquanto se consome a solidão veloz!). Subtilmente os objectos desvelados com o tubular entardecer - pelos campos corre um céu magnético que não perturba a cúpula luminosa do ar. Entre as folhas, entre os vidros esconsos, revejo o silêncio de janelas etéreas (janelasonde nunca está ninguém) - em coágulos cai a espuma dos sentidos.(A película azul das estradas ao poente): 

 

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HOTEL ROOM 

Preenchia o branco das fotografias com as emoções. As circunstâncias a que não voltamos para viver. Com o silêncio pendurado às palavras ou os dentes alvos de todas as viagens. Viagens de roteiro cumprido, com saídas obrigatórias ao infinito. Os hotéis ficavam no deserto e abria as persianas antes de desenhar nas paredes as manchas devoradas pelos olhos. Ao fundo do corredor duma noite dealegria instantânea havia a morte desperta na substância dosono. 

     

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E M  T R Ê S  A N D A M E N T O S E M  T R Ê S  A N D A M E N T O S

IN FRONT OF

A neblina é uma lâmpada sobre as pontes, o vento exulta no parque, mais tarde vamos deixar o quarto entregue ao pó, nele fruímos - com o perfume das veias - a noite submarina e a sua ilustração.

            

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LES ENVIRONS

Ao longe as árvores são como agulhas insidiosas em torno da solidão do bosque, a penumbra cai pelo interior liquescente das folhas, é o regresso da melancolia ao verde declínio das horas. 

         

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E M  T R Ê S  A N D A M E N T O S E M  T R Ê S  A N D A M E N T O S

SEGUNDO ANDAMENTOMemorando

           

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AMSTERDAM

Do que me lembro é do lugar, dos postais ilustrados - o fulgurante dia onde a memória

emerge dum tempo (espaço) sem limites. Acordado pelas altas horas: perdia-me obcecado a

compreender o exercício de frases irreais e avaliava para lá das cortinas o que vai morrendo

nas luzes rápidas (amarelas) de um céu aceso. Um quarto, o quarto sob os astros, fotografias que

deixam da realidade um silvo marítimo; sombras enigmáticas à distância dos navios que partem no

nevoeiro; a roupa coladaaos membros; com o rosto da véspera nos

espelhos.Lembro-me do lugar, da ontológica leveza do teu corpo poisado na penumbra. Uma queimadura

subsiste enquanto as veredas enevoadas do sono me confundem e retenho no olhar o perfil sibilante

da cidade agora deserta; armazéns seculares anunciam

 

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E M  T R Ê S  A N D A M E N T O S E M  T R Ê S  A N D A M E N T O S

uma solidão líquida que permanece - circulara pelos canais digerindo um esquecimento melancólico. A ontológica beleza das sombras nos teus olhos. Essa despedida envolve-me sem equívocos; não há a músicainterna para ouvir, aquela voz que lábios toquem pelashoras do crepúsculo; esse rumor nos degraus do desejo - porque não fixar a textura débil dos sentimentos, a verdade do que se percepciona perante o nada: o dilúvio que fica de um encontro solene?  Um quarto sob os astros, a alegria empírea colada aos membros. Repito a beleza extrema deste lugar alucinado.

     

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EDVARD MUNCH

Oslo. O grito de Edvard Munch. 91x73 cm. A hora aproxima- se da noite, a hora imperecível, o rosto vermelho no cetim da noite. Pergunto o teu nome, de novo, desejo que se instalem em mim as tuas sílabas: flutuantes. recordas - com uma certeza límpida - os dias percorridos para norte. Querias encontrar um sentido para a descrição da vida.

Corpos dançam em movimento perpétuo, a boca mais perto do fim como a angústia presente pelas

áleas das avenidas (sombras esguias flutuam enquanto cai a noite colorida). Querias saber o

nome do grito, há quem procure o nome pela alma dos objectos. Objectos distorcidos, autênticos, sem

lugar, como todos os seres que dançam. Oslo. A hora aproxima-se da noite vertida sobre a boca

dos corpos. A luz vertida - longamente - na cor que evolui até ao sangue da noite: flutuante.

 

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E M  T R Ê S  A N D A M E N T O S E M  T R Ê S  A N D A M E N T O S

CIDADE ANÓNIMA 

Ouço a música do dia (indelével) depois do nevoeiro. Os sons da cidade sentem-se numa alegria ténue ao dobrar as esquinas de ruas repetitivas ou desoladas. Como os sinais anónimos de quem anda com olhos trémulos sob as nuvens. E. E. Sob as nuvens. O teu rosto é branco: análogo à película aquosa que cobre os edifícios. Com o fim do Verão tudo se torna repentino, o vento assola o espaço e o frio penetra-nos rente aos ossos. Divirto-me a formular a mim próprio questões de solução desconhecida - num gozo circular que conhece as regras de uma argumentação impossível. Confesso as palavras e não me absolvo. O curioso é que a confissão é dirigida ao futuro, ao tempo que há-de vir, o tempo que nos devora até à exaustão e nos deixa felizes e sem perdão. Passo pelas mesmas avenidas, o céu não desperta de um sono suave, as imagens correm atrás de sombras espelhadas.

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Passo pelas avenidas inventariando as marcas de um itinerário com destino. Ir pelo prazer de ir, o  devir eterno e difuso. E aqueço o corpo, ou o coração, os dedos das mãos verdadeiros ou contingentes. O teu rosto é branco aqui neste lugar ausente, mutável, aqui onde arrumas as palavras navegantes, onde ausente ilumino o corpo: a meio de um dia eventual sob as nuvens. Atrás de sombras espelhadas. A meio do dia também eu não desperto de um sono perplexo, bebo a inteligibilidade num mundo onde a existência é multiplicável. Divirto-me a poisar as impressões digitais sobre a poeira, a dobrar as esquinas de ruas repetitivas e desoladas. 

  

  

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E M  T R Ê S  A N D A M E N T O S E M  T R Ê S  A N D A M E N T O S

MADRUGADA

Uma hermenêutica notável faz-me habitar o vidro das imagens. Na inconsciência do dia, os fragmentos do vento inundam a natureza com o seu hálito frio. Num aceno voluntário, descubro um firmamento de aves inventadas; Sobre a terra, a noite vegetal inicia a viagem insidiosa da obscuridade. E criamos deuses enquanto adormecemos com o eco dos olhos velados pelas pálpebras. Estendes os ombros, sinto as margens do sangue na planura universal; Uma hermenêutica notável faz-nos habitar o reflexo dos vidros. A linguagem invisível dos ciprestes e mesmo a esverdeada água que escorre das estátuas são o palco duma apoteose cinematográfica. Lâmpadas próximas do som das aves. Descubro o rosto feminino da madrugada concentra-                 

   

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do no meu rosto absorto e, com o lirismo lunar por espectáculo, escuta a melodia incólume das veias; 

Sinto o sangue nas margens da planura. 

Os jardins de onde viemos com as aves agora desertoscomo nós em todos os vidros.

 

      

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E M  T R Ê S  A N D A M E N T O S E M  T R Ê S  A N D A M E N T O S

Faz tudo como se alguémte contemplasse

Epicuro                 

GRÉCIA1.Deixa o teu dorso próximo da luz, os cabelos coroam com anémonas a face e a manhã resplandece na febre dos gestos solares. Deixa a luz descer pelo vácuo da manhã, pela face solar do teu desejo.2. Nenhuma frase pode omitir o cântico liquescente e demorado da água. Num espelho contra o céu renascem os braços aéreos da neblina. E dizes nunca é tarde para amar a poética dos instantes e dizes sob o céu trágico dos espelhos liquescentes(eis a tua eloquência!). 

  

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3.Grécia. Poderei atravessar as nuvens do Olimpo, à espera que os presságios se insinuem por estas alamedas de um esculpido mármore. Ou ouvir os deuses, ouvir os deuses embalado pelas Cárites de olhos sedutores. Grécia - em todo o caso, ó mulher recitativa, a alvura das divindades de Élis aproxima-me de ti, dá-me a garantia da tua boca errante no veio traçado da minha boca errante.4.Deixa a febre consumir as horas, os sentidos convocados pelo fluxo das amplas artérias. Deixa o desejo descer à face seduzida do meu olhar divino.

  

  

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E M  T R Ê S  A N D A M E N T O S E M  T R Ê S  A N D A M E N T O S

NARRATIVA SOBRE LOS ANGELES

O cenário possível de uma narrativa.Estou exposto à brancura do espaço, demasiado exposto ao alvorecer de um Agosto de rastros inclinados para o Sol. A cor vertiginosa sobre os vitrais assinala as circunstâncias do drama: por estas pedras onde se filtram os dedos subtis da existência. Exposto - ao alvorecer da planície de betão idealizo um cenário de entres soletrando as vogais e as consoantes da morte, eis um tema desferido por uma narrativa possível.. Exposto, as folhas esvoaçam numa cor fúlgida que desaparece rapidamente por detrás da atmosfera, talvez desmaiada. As esplanadas estão agora desertas ou quase na planície para quando vier a noite (próxima e inexorável) e o tempo suspenso. Idealizo um cenário de entes de rostos perturbados, os passos infindáveis na escuridão e as sombras delidas 

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num desenho vulgar. Estas palavras ideais (ditas em voz firme) afloram à iminência dos lábios ou ao cuspo do palato. Um sulco no tremor tangível das árvores róseas, vales povoados de luzes artificiais, escadas de zinco em patamares secretos ( e muitas outras cenas para descrever na geometria regular do espaço). As luzes publicitárias inundam de tons feéricos a sala - sem ruído, inabitada, aberta, uma cor ténue nas paredes, o vento que vem do infinito e se instala -, a sala onde estou para criar a narrativa possível como se uma narrativa última fosse possível por entre as horas mortas da existência. 

    

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E M  T R Ê S  A N D A M E N T O S E M  T R Ê S  A N D A M E N T O S

That crazed girl improvising her musicHer poetry, dancing upon the shore

Her soul in division 'om its (...)W. B. Yeats

IRLANDA(1979) Irlanda, um mês de nevoeiro. Definitivamente ospássaros brancos de Yeats planam sobre o mar ininterrupto, o mar esfomeado da rapariga enlouquecida.  (Nota de rodapé)(...) enlouquecida pelo modo como fixa a água que crê nascer do verde lívido dos olhos o labirinto d alma em cada hora que passa o rosto assombrado murmurando para o vento a música melancólica da Irlanda o Atlântico batido por relâmpagos diagonais que fazem do céu nocturno uma chapa metálica de lâmpadas fluorescentes volta ainda o rosto largo e todas as

   

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imagens se erguem com os braços essa rapariga celebra nos navios o périplo das ondas que a levam ao som desesperado da espuma e veste-se de deusa e corre pelo convés haurida quando sem saber eu a amo em todos os portos solitários essa rapariga enlouquecida a sua voz imutável nas margens de Dublin ou de Galway houve quem visse os traços insuspeitos de uma história abreviada 

         

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E M  T R Ê S  A N D A M E N T O S E M  T R Ê S  A N D A M E N T O S

quem sentisse o pulsar mais íntimo de uma experiência favorável(...)

 

No matter what disaster occuredIdem, ibidem

 

Irlanda, um nevoeiro pálido (1979). 

         

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ÚLTIMO ANDAMENTOEpílogo

     

           

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E M  T R Ê S  A N D A M E N T O S E M  T R Ê S  A N D A M E N T O S

1.Numa cidade revisitada.A descrição perfeita de uma história sem vítimas. Sempre haveria de falar da tarde em que foi a angústia a conduzir o destino que não defendo. Da boca saíam palavras mais limpas que o ar inacessível. Tinham ficado (ou resistido) fragmentos de linguagem:acaricia o meu peito em transe esvaindo o perfume dos teus raios violáceos, talvez tu sejas a rapariga debruçada sobre a ponte - aquela paixão vertida da claridade inteira. Nunca há tempo para o esquecimento, tudo se grava inconscientemente numa memória que nos levará ao fim. Pensava numa confissão solene - uma confissão que tornasse o amor sério -, enquanto íamos ouvir o mar (como os Solitários de Munch) de ombros preenchidospela serena voragem do poente. Sabíamos como se constroem os instrumentos breves e insuspeitos do quotidiano. Sabíamos que não havia muito mais - muito mais - sobre a

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teoria das convicções para aprender. Sabíamos que do outro lado das avenidas imobiliárias alguém esperava um táxi (verde) para a morte, alguém regressa do fundo do seu dia com o esgar próprio dos momentos fúnebres. E nos edifícios as persianas escondem esqueletos vivos sentados nas cadeiras que os suportam. Uma cabeleira dourada desce até mim, inebriante. Inebriante. Fragmentos de uma linguagem que me paralisa os lábios: és ainda tu (vestida de um tom enlanguescido) com os dedos ancorados no meu corpo - em transe. Depois as sombras complacentes arrastam- se pelos labirintos da tarde. Uma confissão solene para um destino em que não acredito - pensava. Depois.

 

   

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E M  T R Ê S  A N D A M E N T O S E M  T R Ê S  A N D A M E N T O SD’ où viennent mes sommeils et mes

moindres mouvements?Rimbaud

2.Último andamento.Caminhar. Andar perdido. Anestesiado nas intenções,como nas experiências de Wilder Penfield. Os membros movimentam-se, mãos e pés, sem consciência, sem vontade aparente. Durante horas. Ouço o nome das flores quando atravesso as alamedas e recorro a uma bússola para me orientar no espaço nocturno de vozes indolentes. Durante horas. Nuvens abrem crateras no universo. O mundo corre, passa, transforma-se perante o meu corpo (ou o que há do meu corpo). Assistir ao espectáculo como um observador exterior, como um deus ausente que tudo sabe mas que se aliena. Talvez este seja o estádio da morte, penso ( e escrevo com as unhas afiadas na pele). A instância suprema da morte, a instância de sensações digitais, de uma pele transparente envolta em lírios. Mas esta morte cansa, há uma

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dor física inegável, uma dor de agulhas na garganta. Paro, já não caminho. Ulmeiros crescem em hangares de fumo (asténico).Ouço o nome das aves no invólucro da paisagem.Teria ainda uma longa estrada para percorrer: Os candeeiros acendem-se lentamente, projectam-me em furtivas sombras avermelhadas. O nome dos mortos nos jardins. Grito à realidade, escarro para os muros entre áleas. Jardins adormecidos no limiar da morte. Ficam marcas de dedos no que toco. Cartazes anunciam viagens turísticas à eternidade.Vou de novo pela estrada fora evitando os carros.(A chuva contínua na morada solene do universo, vultos distantes, distorcidos - talvez felizes!). 

 

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E M  T R Ê S  A N D A M E N T O S E M  T R Ê S  A N D A M E N T O S

Citações     

        

                                                   

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1.Teoria da dilucidação. Reinvento sinais, enunciados tautológicos nas marcas que deambulam ao encontro das paredes, sinais como textos cujo significado se oculta pelos interstícios das palavras. A linguagem é um jogo possível , nela determinamos os objectos - eis os que na penumbra se tornam legíveis por entre as sombras vulneráveis ao olhar. 

  

       

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E M  T R Ê S  A N D A M E N T O S E M  T R Ê S  A N D A M E N T O S

2.O silêncio escorre pelos vidros, no horizonte as aves desúbito desaparecem, uma linha incólume parece prolongar o desenho dos dedos. No interior do espaço da criação, em cada metáfora se pronunciam as sílabas de uma linguagem fluída. Construímos signos e regras, estruturando uma realidade que habitamos circunstancialmente. 

 

    

                                                   

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3.O mar próximo, o mar coalhado - escrevo. Tenho consciência que os lábios compõem corpos acidentais e os gestos e as imagens distantes. E. As imagens próximas como o teu cabelo líquido de uma chuva frágil.

  

         

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E M  T R Ê S  A N D A M E N T O S

4..Assim, todas as árvores deste jardim só existem porquetêm nome, nomes usuais, nomes provenientes de situações concretas e comuns. Ao vento, experimentamos - com a nitidez influente das sensações - o tumulto de folhas outonais, a melancolia das pedras e dos caminhos. Escrevo: a noite que desliza para o âmago de si, o mundo como cenário de uma gramática profunda que modela os nossos actos.

     

                                                   

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