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Estácio dE Lima VOLTA SECA e o Estranho Mundo dos Cangaceiros e-book.br EDITORA UNIVERSITÁRIA DO LIVRO DIGITAL https://issuu.com/e-book.br/docs/volta_seca

e o Estranho Mundo dos Cangaceirosmundo estranho dos cangaceiros”. Convém destacar que, antes de conceber a sua obra essencial, Está-cio de Lima realizou algo mais no-tável ainda:

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  • Estácio dE Lima

    VOLTA SECAe o Estranho Mundodos Cangaceiros

    e-book.brEDITORA UNIVERSITÁRIA

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  • O professor Está-cio de Lima, ao assu-mir a cátedra de NinaRodrigues, na velhaFaculdade de Medici-na da Bahia, desenvol-ve um importante tra-balho de estudo do ca-ráter dos cangaceirosaprisionados, juntan-do a isso a defesa maisacirrada do seu pro-cesso de integração àsociedade.

    Os livros eletrônicosda coleção E-Poket,conforme o título jáindica, têm como ca-racterística o tama-nho reduzido, similaràs pequenas coleçõesde bolso. No caso pre-sente, o formato de-nominado e-poket foidesenvolvido para serlido, com toda como-didade visual, em ce-lulares e outros equi-pamentos de tamanhodiminuto.

  • Estácio de Lima

    VOLTA SECAe o Estranho Mundo

    dos Cangaceiros

    e-book.brEDITORA UNIVERSITÁRIA

    DO L IV RO DIGITAL

    Organização, introdução e notas:Cid Seixas

  • estácio de l ima

    4 coleção e-poket

    CONSELHO EDITORIAL:Cid Seixas (UFBA | UEFS)

    Délio Pinheiro (UFBA)Ester Ma de Figueiredo Souza (UESB)

    Francisco Ferreira de Lima (UEFS)Gildeci de Oliveira Leite (UNEB)

    Coleçãoe-poket

    Tipologia: Original Garamond 14Formato: 100 x 170 mm

    64 páginas | Março de 2020

    Capa sobre pintura deJuraci Dórea

  • volta seca e o estranho

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    SUMÁRIO

    Da antropologiaà ficção sertaneja

    página 7

    Lídia, mulher valentepágina 19

    Volta Secapágina 23

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    Lampião repousava no pon-to das Caatingas de Mirandela,quando um de s eus cabra s lheanunciou que um menino che-gara das bandas do Saco Tortode Sergipe, insistindo para vero Chefe.

    Estácio de Lima

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    DA ANTROPOLOGIAÀ FICÇÃO SERTANEJA

    Há mais de meio século, preci-samente no ano de 1965, o tana-tologista, catedrático das faculda-des de Medicina e Direito da Uni-versidade da Bahia, presidente doConselho Penitenciário do Estadopor algumas décadas, professorEstácio de Lima, publicou um li-vro que pode e deve ser chamadode memorável: O Mundo Estranhodos Cangaceiros (Ensaio biossocio-lógico).

    Cid Seixas

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    Naquela época, a repercussão daobra de Euclides da Cunha, emmeio não apenas aos eruditos, masa todas as pessoas escolarizadas,era notável na Bahia e no Nordes-te, se estendendo a outras regiõesdo país. Desse modo, não é de es-tranhar que, nas mais prestigiadasfaculdades da Bahia, onde NinaRodrigues iniciou sua trajetória edeixou seguidores, os estudos an-tropológicos ocupassem lugar dedestaque, focando os limites dacriminalidade na árida vida serta-neja. Convém observar que essavertente teórica estava inteiramen-te contaminada pelos princípioslombrosianos, tidos como crista-lina expressão da verdade científi-ca de última moda.

    O mundo estranho dos canga-ceiros, de Estácio de Lima, maior

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    obra de vulto publicada pelo autor,permaneceu um tanto velada, oumesmo esquecida, até que, no fi-nal do século vinte, um ex-repór-ter – conhecedor do extraordiná-rio esforço do velho professor deMedicina Legal em defesa da rein-tegração dos remanescentes docangaço à vida em sociedade – cha-mou atenção da intelectualidadebaiana para o valor documental etextual dessa obra singular.

    O antigo repórter, responsávelpelo renascimento de interesse pelolivro, era o escritor e acadêmicoGuido Guerra, que recolocou soba atenção dos seus pares da Aca-demia de Letras da Bahia e de ou-tros espaços culturais a importân-cia do alentado livro sobre o temado cangaço. Foi em decorrênciadesse empenho que em 2006, ano

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    do centenário de Nina Rodrigues,o professor Délio Pinheiro, ex-di-retor do Instituto de Geociênciasda UFBA, na qualidade de Asses-sor de Cultura da AssembleiaLegislativa do Estado da Bahia,conhecendo o entusiasmo de GuidoGuerra pelo livro, resolveu publi-car uma nova tiragem, pela Cole-ção Ponte da Memória, da Assem-bleia Legislativa.

    Coube a mim, por escolha deGuido e Délio, preparar a segundaedição do livro, bem como cuidarda sua concepção gráfica. Conhe-cendo a vivência telúrica do pintorJuraci Dórea e suas fantásticasapreensões do universo sertanejo,pedi-lhe para imaginar novas ilus-trações para a obra, vez que a edi-ção princeps trazia uma pintura decapa feita por Caribé. Juraci, em

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    pouco tempo, preparou dois qua-dros com motivos temáticos. Nas-ciam, assim, a capa, a contra-capae as orelhas da nova edição.

    Nesse trabalho de reedição es-tiveram também envolvidos doismédicos legistas e antigos assisten-tes do doutor Estácio de Lima, aprofessora Maria Teresa Pacheco eo professor Lamartine de AndradeLima, escolhidos para escrever oPrefácio e o Posfácio da referidaedição. Ambos conviveram duran-te longo tempo com os antigos in-tegrantes do bando de Lampiãoque, sob a tutela do mestre Estáciode Lima, trabalharam em órgãospúblicos estaduais e federais, emnotável processo de reinserção so-cial dos prisioneiros.

    Devemos à Dra. Teresa Pachecoimportantes informações tanto

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    sobre a obra de Estácio de Limaquanto sobre a sua convivência comos cabras de Lampião recolhidos àPenitenciária do Estado. Em lon-gas conversas, durante idas à suaresidência, pude compreender par-te do que o autor chamou de “omundo estranho dos cangaceiros”.

    Convém destacar que, antes deconceber a sua obra essencial, Está-cio de Lima realizou algo mais no-tável ainda: a análise criteriosa e adescrição da personalidade dos te-midos cangaceiros. Dia após dia,como membro e depois presiden-te do Conselho Penitenciário, omédico e dentista, por formaçãoacadêmica, e, posteriormente, cri-minologista, não por ter “ralado”os bancos de uma faculdade deDireito, mas por ousadia intelec-

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    tual e precisa intuição de estudio-so pioneiro.

    Advogados e juízes que se en-carregaram dos processos dos te-midos bandoleiros, como mostramos documentos da época, demons-traram o mais gritante despreparopara fazer justiça, deixando-se con-taminar pelos clamores da opiniãopública, exaltada e fundada no ódiogeneralizado.

    Estácio de Lima atuou no caso,simultaneamente, como médico,tanatologista, antropólogo e juris-ta. Espantosamente, conseguiu re-verter quase todas as condenaçõesa centenas de anos de prisão, pro-feridas contra os “cruéis guerrei-ros” das caatingas. Enquanto a opi-nião pública, a imprensa e os juris-tas viam o problema pelo ângulocego da vingança exemplar da so-

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    14 coleção e-poket

    ciedade, contra aqueles que ousa-ram desafiá-la, a sensibilidade dodoutor Estácio descortinava outrospatamares. Foi o que lhe permitiuassegurar a reintegração total dosantigos cangaceiros à vida em so-ciedade.

    Cumprido esse papel, por de-cisão de Deus ou do diabo – comopoderiam supor os perseguidoresdos cangaceiros – um cangaceiri-nho menino não teve a mesma sor-te dos demais: Volta Seca. Aceitopelo bando, depois de muita relu-tância do chefe, aos dez anos deidade, recaiu sobre o menino An-tonio dos Santos toda a puniçãoreservada ao cangaceirismo. Cap-turado ainda criança e trazido paraa penitenciária de Salvador, VoltaSeca ficou vinte anos preso, até quea defesa tenazmente materializada

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    por Estácio de Lima levou o entãopresidente da república, MarechalDutra, a conceder o indulto dapena. Isso depois do conceituadoestudioso assumir responsabilida-de total sobre os possíveis atos doantigo bandoleiro menino.

    Para compor este pequeno e-book da Coleção E-Poket foi sele-cionado o sintético relato do autorde O mundo estranho dos canga-ceiros sobre a entrada de Volta Secano bando de Lampião até a sua to-tal aceitação pela sociedade da épo-ca, ainda traumatizada pelos trági-cos acontecimentos.

    Como os meninos e as mulhe-res foram figuras não muito co-muns nas lides guerreiras do canga-ço, este pequeno livro que o leitortem em mãos é aberto por umacontundente narrativa sobre a pas-sagem da desafortunada Lídia pe-

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    las cruentas aventuras das caatin-gas. Nesta página de descrição biosocial que é também um conto bre-ve e bem contado, o autor expõe olugar de total aniquilamento damulher no mundo sertanejo.

    Seu poder de fabulação do tex-to, simultaneamente épico e dra-mático, demonstra o absoluto do-mínio de construção da escrita.Pode-se dizer que o médico Estáciode Lima não foi apenas um tana-tologista, estudioso pioneiro dosfenômenos eclodidos no sertão.Assim como o engenheiro Euclidesda Cunha, Estácio de Lima resva-lou brilhantemente do estudo só-cio biológico para o universo damais pungente arte da escrita, fa-zendo nascer um narrador segurodo seu ofício.

    * * *

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    O pequeno trecho do livro quese lê como pórtico do e-book, sen-do, principalmente, uma acuradaanálise biossocial do mundo doscangaceiros, é também um mini-conto de forte tensão narrativa, queevidencia a vocação do escritor.

    Por fim, lemos o trecho extraí-do do capítulo sobre a presença dascrianças guerreiras no cangaço, de-dicado a Volta Seca, que dá título aesta publicação eletrônica.

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    Capa da primeira edição, de 1965,com pintura de Caribé

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    LÍDIA, MULHERVALENTE

    Mas o Zé Baiano era temível eninguém acreditava que a moça vi-esse a falsear. Muito escondida-mente, porém, ela, com todas aque-las provocações, namorou o Bem-te-viu. Na maioria, os cangaceirosnão diziam Bem-te-vi. Houve maisde um, com semelhante alcunha.Este Bem-te-viu era claro, cabelofino. Um tanto meloso e derreti-do. Não pegava, entretanto, qual-quer parada, e de qualquer jeito.Não, senhor!

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    Assim mesmo, foi ousado de-mais!

    Besouro, outro cangaceiro or-dinário, ruim (havia de tudo nosbandos – gente boa e gente péssi-ma), Besouro vivia nos calcanha-res de Lídia. Orelha afiada, ou por-que andasse espionando, ouviu eleo mato estalar a certa distância etambém “um ronco de onça co-mendo bezerro”, no dizer de La-bareda.

    Aproximou-se devagarinho,com a precaução dos felinos. Es-piou, e reconheceu a moça “agar-rada” ao Bem-te-viu. Acercou-se,candidatando-se... Também que-ria... Tornou a pedir... Ela recusa,com energia. Ele ameaça contar aZé Baiano. Este andava por fora.Bem-te-viu, uma lesma, escapuliu.Quando Zé Baiano chegou, Besou-

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    ro, atrevidamente, disse-lhe tudo,e na vista de todos. Lampião pre-sente. Lídia não era medrosa. Sus-tentou o que havia acontecido, quese entregara, de fato, ao Bem-te-viu, porém, contou, Tim-tim, porTim-tim, o episódio da chantagem.Besouro estava assim falando, por-que ela não quis a ele oferecer-se.

    – E se tenho de morrer quemorra logo. Mas esse cabra safadonão me come!

    O Capitão Virgulino sentiu averdade de tudo. Rapidamente,pulou como um acrobata profissi-onal, e abriu de foice, em duas me-tades, a cabeça do delator. As coi-sas se passaram num momento, ecom aprovação geral Besouro ar-riou, pronto, ali, sem remissão.

    Zé Baiano, por sua vez, decre-tou o fim de Lídia sem que Lam-

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    pião esboçasse o mínimo gesto dedefesa. A moça, afirmou o Chefe,era propriedade do preto, que ti-nha todos os direitos sobre ela.

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    Lampião repousava no pontodas Caatingas de Mirandela, quan-do um de seus cabras lhe anunciouque um menino chegara das ban-das do Saco Torto de Sergipe, in-sistindo para ver o Chefe.

    Com a má vontade natural dequem não é de muitas conversas,particularmente com a meninada,o Capitão Virgulino custou bas-tante a condescender na entrevis-ta. Afinal...

    Trazia o garoto uma franguinhadebaixo do braço.

    VOLTA SECA

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    Os cangaceiros gargalhavam àscustas do pequeno. Chamaram-no,logo, Antônio da Pinta. A Pintaera o presente que trazia, talvez pracomprar, ou comover, o maioral.

    O futuro veio a demonstrarque não havia razão para chalaças.O menino passaria, um dia, aosanais da delinqüência sertaneja,com o maior destaque.

    Lampião, dentro da sua linhadoutrinária, repeliu o engajamentodo menor, nas hostes bandoleiras.Também o achava demasiado con-versador.

    – Mas porém si o Sinhô achaqui nun sirvo prouta coisa, deixeeu ficá pra lavá os animá, fazê man-dado, limpá o chão... Já sirvi dequêmadêro, fiz trabaio de roça, seiamontá in osso, e dou recado semerrá...

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    Dez anos – era a idade do fu-turo Volta Seca – dez anos, nas ca-atingas, às vezes valem mais quedezesseis nas praias. Dificuldadese sofrimentos são grandes mestresda vida. Soltam, até, a língua pre-cocemente, ou a fazem emudecerquando preciso, e geram destemo-res incríveis..

    Cabeça baixa, entre desconfia-do e altivo, o garoto magricela ar-riou a franguinha que mantivera naaxila, e pôs a descoberto a sua te-nacidade.

    – Mas o Sinhô nun vai mi batê,pruquê eu quero ficá! Tamém vaivê, nun vai se arrependê...

    O Chefe não era o desabusadoque sempre recuasse conselhos, ouponderações dos companheirosgraduados.

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    – Cumpade, ispirimente o mi-nino...

    Experimentou, e “deu certo”...Não gostou, porém, da alcunha

    ridícula de Antonho ou Tonho daPinta, para o garoto que passou àcondição de sua ordenança... Eapresentava o novo “cangaceiro” devocação, Antônio dos Santos,como o seu Comandante.

    – Ispia ali, Coroné Vorta Secalimpano os fuzí...

    Nem Volta Seca sabe, de certe-za, as razões desse vulgo. Prova-velmente, os cambitos escuros, re-alçados pelas calças curtas; e osbraços, dois gravetos confundin-do-se com os garranchos recurvosdas caatingas, talvez dessem, aoCapitão, a idéia... De longe, umacousa só: mato sem verde, pernase braços de moleque, tudo intrin-

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    cado e enrolado, verdadeiro cipoalseco, volta sobre volta, volta seca...

    De todos os jagunços proces-sados, foi ele o que padeceu maistempo de prisão, e sem razões mé-dico-psicológicas, jurídicas, ou so-ciais. Formalidades em demasia.Excessos. Temores desarrazoados.Revides incompreensíveis, tantosanos depois, de uma sociedademadrasta, que não soubera assis-tir e educar.

    Ao Conselho Penitenciário daBahia, levamos o Parecer que vai,parcialmente, transcrito adiante,buscando retirar do Cárcere aque-le que não era mais adolescente,pois amadurecera sob as grades.Relativamente à idade do rapaz, econfirmando a adolescência, haví-amos praticado, logo que ele pre-so, a perícia radiológica, publicada

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    nos Arquivos do Instituto NinaRodrigues, onde a encontrarão mi-nuciosa, os interessados.

    A prisão, a nosso ver, deve sermantida enquanto atenda aos in-teresses da coletividade, na sua de-fesa, na recuperação do delinqüen-te e, até mesmo, na própria satis-fação ao meio. Fora daí, traduzirávingança despropositada.

    O pequenino Antônio da Pin-ta foi uma criança perdida no tur-bilhão da vida sertaneja. Não a-prendera outra cousa, senão admi-rar o cangaço, pois as tentativasprofissionais de queimadeiro ou la-vrador não lhe enchiam o coração.Não era, porém, inadaptável. Osfatos mais tarde o comprovaram.Vejamos a análise que fizemos, di-ante do Conselho Penitenciário.

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    “Volta Seca é um nome célebreno Brasil inteiro. Tristíssima cele-bridade. Poucos delinqüentes, nomundo, terão tido publicidade tãogrande. Até a imprensa estrangei-ra, americana ou européia, andouestampando-lhe o retrato, emgrandes manchetes de escândalo.Aos quandos, como os surtos deuma enfermidade cíclica, ressur-gem as novelescas publicações.Hoje, o próprio chefe do bando si-nistro, Lampião, vai perdendo,com a morte que nivela e perdoa,e com o tempo que passa e muitofaz esquecer, aquela importânciaruidosa de alguns lustros pretéri-tos.

    Mas o pobre Volta Seca está naberlinda. A reportagem sensacio-nalista, periodicamente, retoma aofensiva, e ao público, sempre cu-

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    rioso e, às vezes, inconseqüente, éservido o repasto de sua vida sembeleza, cheia de agonias e de misé-rias. Não raro, no que se imprime,a realidade sofre deformações ne-fastas. Além disso, o cangaceiroadolescente, sob a disciplina bru-tal de Lampião, adquirira, como osoutros, certo grau de taciturni-dade.

    Apresentara-se, ainda menino,ao grupo, um bocado palrador.Com o tempo, habituou-se às pa-lavras comedidas.

    Chegou à Penitenciária daBahia, interiorizado, falando pou-co, evasivo. Às vezes, aconteceisso. A transmutação do esquizoti-mia na extroversão. É raro, masacontece. Por motivos de explica-ção difícil, aquela alma solitária esinistra foi ganhando, ou recupe-

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    rando, seus velhos atributos deconversador, sem adquirir, todavia,as linhas somáticas do gorducho(pícnico). São exceções, que o pró-prio Kretschmer registrara.

    Volta Seca passou a meio falas-trão. E a reportagem ávida das no-vidades e das sensações invadiu aPenitenciária da Bahia, no velhoEngenho da Conceição, para asentrevistas repetidas.

    Ora lhe arrancavam inconveni-entes confissões, ora lhe obtinhamfantasias, ou verdades pelo meio.

    – Que importava não fossemuito real a narrativa, e que a suadivulgação escandalosa custasse aVolta Seca mais alguns anos de pri-são?

    O que interessa é emocionar aoleitor...

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    O jornalismo, infelizmente,não promana, sempre, de um filãode ouro puro. No seu tempo, já omestre de A Comédia Humanacuidara do assunto. A imprensapresta à sociedade serviços inesti-máveis. Mas, aqui ou ali, têm ocor-rido cousas lastimáveis. Diga-se,então, mais uma vez: não são daarte, os erros do artista.

    O fato é que o 1119, númerode ordem que apuseram ao peitodo adolescente, continua, ainda, nocartaz e, para muita gente é, ainda,perigoso, indomável, bárbaro, in-corrigível, na perspectiva de retor-nar ao crime das caatingas.

    No entanto, o cangaceirismonão foi, e todos o sabemos, umacriminalidade resultante de ano-malias físicas, desordens orgânicas,alterações glandulares. Também

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    não consta que os bandidos recru-tassem doentes mentais, ou per-sonalidades psicopáticas perversas,para as famigeradas arrancadas. Ofenômeno era, e ainda, é, tipica-mente social. Há o fundamentoeconômico iniludível, e toda umasérie de motivações outras, quenão vem a propósito aqui minu-denciar.”

    Em seguida, no Parecer, estu-dávamos a personalidade do nor-destino, pondo em confronto aspalavras de Euclides da Cunha, nosseus retratos perfeitos, com as fi-guras atuais dos delinqüentes dosertão. Os mesmos traços mar-cantes. As condições de vida tam-bém imutáveis. Aludíamos, ainda,aos cangaceiros presos que se

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    transformaram, depois de 5 anos,em corretos sentenciados. Comu-tações de pena obtiveram, por nos-so intermédio, e, a seguir, o livra-mento condicional, visto comonão ofereciam mais perigo à cole-tividade. As armaduras sociais fun-cionaram bem, relativamente aosadultos. Quando, porém, tenta-mos obter a sua marcha, para opobre Antônio dos Santos, a apa-relhagem emperrou.

    Tornemos ao Parecer.

    “Enquanto isto, Volta Seca per-manece, há quase vinte anos,enclausurado. É o único antigocangaceiro, remanescente do gru-po de Lampião, que perdura, do-lorosamente, dentro das grades deferro, como se fora, realmente, fe-roz e tenebroso.

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    Não o é. Todos os órgãos daPenitenciária – Diretoria, SecçãoPenal, Instituto de Criminologiae de Psiquiatria são concordes: oAntônio dos Santos está, perfei-tamente, readaptado.

    E a esse pensar uníssono, jun-to o meu depoimento, com as res-ponsabilidades de professor cate-drático de Medicina Legal, de Di-retor do renomado Instituto NinaRodrigues e de Presidente desteegrégio Conselho: as arestas doseu caráter e do seu temperamen-to estão esbatidas. É um homemnas condições de retornar ao con-vívio social, sem oferecer perigo.

    Ademais, deveria a sociedadeenvergonhar-se do seu comporta-mento falho ou grotesco, em rela-ção a esse triste presidiário.

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    Primeiro, porque não o assis-tiu quando criança. Como qual-quer outro de sua terra e de suaidade, brincava, na puerícia descui-dada e trêfega, de bandido e depolícia. Ninguém queria ser polí-cia. O bandido era valente, impul-sivo, generoso às vezes, constan-temente em perigo e cercado, sem-pre, do mistério. Ainda hoje, oCinema de aventuras e as Revis-tas do gênero Gibi consagram he-róis que a gente não sabe se mere-cem o altar, ou o cubículo de gra-des. E a meninada sorri, aprecia,tem inveja. De qualquer forma,cavalgadas ousadas, incêndios, ti-roteios, beijos ardentes e, no final,para o jovem impúbere, que leu aRevista ou assistiu ao Cinema, umanoite nem sempre tranquila...

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    Foi, justamente, com a alma ar-rebatada pelas lendas relativas àsbravatas dos cangaceiros, que omenino de 10 anos, desassistidofamiliar e socialmente, entrou, pelavez primeira, em contato com aogrupo de Lampião. Queria incor-porar-se. Recusado a princípio, in-sistiu, afirmando que não dariatrabalho a ninguém, e tomaria con-ta dos animais, pelas caatingas emfora... E partiu, sem forças, aindapara empunhar o fuzil. Somentemais tarde, entre os 13 e os 14anos, é que, armado cavalheiro, re-cebeu o mosquetão municiado,para as refregas por que ansiava.O punhal, já o trazia, antes, na cin-ta.

    Teve, logo, o seu batismo defogo. O pré-adolescente mirrado,chocho, atirava como quem brin-

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    ca de picula, aos saltos, gritando,sorrindo. Não sabia, porém, dis-tinguir, com nitidez, o bem do mal.E ainda lhe faltava continuidade deação, às vezes, se sumia do com-bate... Acreditava ser a maior vir-tude o destemor, e que os “maca-cos” mereciam morrer, porque ru-ins e traiçoeiros. Se acaso lhe in-dagassem por que ruins e traiçoei-ros, diria, simplesmente, porquesão assim de verdade, e... acabou!Conta-se que os disparos de Vol-ta Seca partiam tão rápidos e, pos-sivelmente, tão certeiros, que eracomo se empunhasse fuzil metra-lhadora...

    – Que se poderia esperar deuma personalidade infantil, e soba influência de exemplos tais?

    A alma da criança – já é sabidoe cediço – quando não encontra as

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    coerções da educação inteligente,sofre desvirtuamentos graves, eentregue ao império dos desejos,cai no domínio das paixões desen-freadas e mergulha no abismo dosinstintos que desconhecem senti-mentos e razão. Muitas vezes pode,ainda, ocorrer recuperação integral.Nem sempre. Há cicatrizes domeio que ficam indeléveis.

    Os psicólogos registram o queseja uma contenda de garotos, osquais, nessas horas, costumam ira extremos de provocações e deviolências, sempre que lhes faltamos freios de uma boa orientação.

    Exclamara Jolly, o velho clássi-co:

    “Quando o adolescente mergu-lha no crime, não o faz pela meta-de”?

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    – Que é que se poderia, então,exigir de Volta Seca?

    Um dia, o bando toma contade Queimadas, na Bahia. O peque-no ex-tratador de cavalos, antigoqueimadeiro e moleque de recados,já usava o clássico chapéu rebati-do, estrelas bordadas, enfeites vis-tosos. Um grande punhal bem àmostra e um fuzil do exército bra-sileiro, com as munições mais no-vas...

    – Quem mais criminoso: –Volta Seca, o menino portador dearmas do Brasil, ou o intermediá-rio que, por dinheiro, ou pelo quefosse, as entregava em mãos?!

    Queimadas, bem no coração donordeste baiano, tornara-se bastan-te conhecida desde quando o es-critor insigne a retratou nas pági-nas d´Os Sertões.

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    Entre os dias funestos de An-tônio Conselheiro e a era trágicade Lampião, Queimadas permane-ceu mais ou menos a mesma, semprogressos sensíveis, sem impul-sos civilizadores, sem notorieda-de especial. População escassa.Gente de boa índole, porém sub-alimentada, na maioria. E não pou-cos enfermos. O seu ambiente dedoçuras não tem alcançado como-ver o poder público.

    A vila, pegada de surpresa, nãoteve possibilidades de reagir aoscangaceiros, entregando-se de ar-mas e bagagens, sem um disparo,sem um protesto aparente, de tododominada pelo pavor.

    Os poucos soldados do desta-camento policial viram-se, de ime-diato, cercados e presos. Ocorreu,então, nesse dia, 22 de dezembro

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    de 1929, crime nefando: o assas-sínio frio, brutal, das sete praçasindefesas. Trazidas para fora da ca-deia, algumas, até, humildes comoovelhas, no matadouro. Dois outrês “macacos” abatidos a tiro deparabelo; cinco, ou quatro, sangra-dos a punhal.

    Volta Seca teria, nessa época,entre 14 e 15 anos. Coube-lhe“executar” três dos prisioneiros,condenados à morte pelo Capitão.

    O adolescente deseducado e vi-olento, ignorando as doçuras e umlar, vivia seduzido pelas brutalida-des do cangaço. Não poderia dis-cutir as ordens do Chefe. Sentiu,até, indisfarçável orgulho com amissão, orgulho congênere ao dequalquer componente de um pe-lotão de fuzilamentos, nas revolu-ções, ou nas guerras. Mesmo que

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    se tivesse oferecido para a sinistramissão... Queria parecer “gentegrande”, e mostrar de que era ca-paz o Antonho da Pinta...

    Depois desse episódio espan-toso, com o seu acompanhamen-to de galhofas, bebedeiras, roubose danças que assumiram aspectomacabro, quase não se teve maisnotícia de Volta Seca. Pelo menos,de bravatas parecidas.

    Dois anos e meses mais tarde,surgiu, de repente, a novidade: pre-so o jovem e terrível bandoleiro!

    Processado, respondeu, sozi-nho, pelos delitos de Queimadassobre ele, sozinho sempre, caiu opeso integral da condenação, me-recendo sete vezes 17 anos de pri-são, ou sejam cento e dezenove,além de umas quebras pelos rou-bos, nos quais, entretanto, não to-

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    mou parte direta, nem sequeracompanhou os assaltantes na oca-sião, em nada influindo, para a suaexecução.

    Os trâmites processuais anda-ram mal orientados. Percebe-se apreocupação de um “castigo exem-plar”, vingança do meio, ainda soba emoção do grande impacto deQueimadas. O menino pagaria portodos, de vez que era impossívelatingir os adultos e os maiorais.

    Houve tentativas de conside-rar o rapazinho maior de 21 anos.Mas foi impossível destruir a pro-va radiográfica da idade, que noInstituto Nina Rodrigues realiza-mos.

    Dificílimo encontrar um defen-sor para Volta Seca. Depois demuito custo, o Juiz chegou a no-mear curador para o menor, e este

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    curador aparece nos autos para de-clarar-se inimigo do preso, poistambém fora vítima da extorsãodos bandidos, e não se sentia coma força e a coragem de Jesus (pala-vra textuais, constantes dos autos)para perdoar, e, menos ainda, paradefender o criminoso...

    Afinal, aceitou alguém a incum-bência, para omitir-se, todavia, aomáximo. As únicas palavras do seupronunciamento foram estas, semuma vírgula a mais, ou a menos:

    “Em nome do meu curateladosob a sabia jurisdição do julgamen-to de V. Exa., espero, em nome dalei, Justiça”.

    Esse trecho encerra toda a de-fesa que deram a Volta Seca. E ojovem sertanejo, quase meninoainda, e que se achava nas mãosvingadoras da sociedade, fora o

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    participante ou executor, aos 14anos apenas, das ordens de umChefe cruel.

    – Quem possuiria coragem, ouserenidade bastante, em Queima-das, para lembrar atenuantes oudirimentes, e qual seria o louco, ouo destemido, capaz de apontar airresponsabilidade penal do peque-no cangaceiro?

    Não há que censurar compor-tamento semelhante. As lembran-ças permaneciam acesas. As emo-ções ressurgiam a cada passo. Oespetáculo dos homicídios não sedissipara. Mas a verdade é que,mesmo longe do ambiente, inúme-ras pessoas, forradas de erudição,mais ou menos real, apreciavam ofenômeno sob um prisma tão pri-mitivo, quase, quanto o dos ban-doleiros.

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    A Justiça tinha, assim que serimplacável, na crença ingênua deque intimidaria o grupo. Cento emuito anos de prisão correspon-deriam a condenar Volta Seca àmorte, no cárcere. Diziam que eleera tenebroso “lombrosiano”, co-mo se a expressão tivesse um sig-nificado definido. Ou um ser hu-mano sem entranhas, incorrigível.Tarado. Monstro predestinado aoscrimes infames. O poder públicoteve, porém, um mérito: Alcançoupreservar a vida do rapa-zinho. Oque não terá sido fácil.

    “É preciso fazer com ele, o queele fez com os soldados: sangrarno pescoço”.

    Até na Capital baiana, o lincha-mento andou por um triz.

    De acordo com a organizaçãojudiciária do Estado, o julgamen-

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    to foi ter às mãos do Juiz de Bon-fim. Este prolatou a sentença: 123anos e 4 meses pelos sete homicí-dios de Queimadas, inclusive 4anos e meses pelos roubos, ali, pra-ticados. Seguindo-se recurso ex-ofício, o Superior Tribunal de Jus-tiça do Estado, sem lhe ocorrer aaudiência da Curadoria, confirmoua pena de um século e mais aque-les anos e meses de prisão.

    A Sociedade não se emanciparado pânico e prosseguia inimiga dopobre moço, que merecia orienta-ções, regime disciplinar humano,instrução de algumas letras, e edu-cação cívica e profissional.

    Num período, ainda, de forma-ção da personalidade, numa faseem que o meio é fundamental, jo-garam Volta Seca na Penitenciáriado Estado, então uma Casa dos

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    Mortos, congênere à de Dostoi-evski, mal situada, mal dirigida,sob promiscuidade lamentável eque logo envolveu o aturdido rapa-zola, misturando-o com os senten-ciados adultos de todos os mati-zes, e os malandros corruptos einadaptáveis de todos os vícios edelitos.

    Volta Seca não se perdeu, parasempre, por um desses milagres dodestino.

    Porém andou, no princípio, aostropeços, sob as grades, sem sa-ber empregar o tempo, nem esco-lher as amizades.

    De começo, mandaram-no paralastimável mister: fabrico de flo-res de miolo de pão! Ora, sendo oambiente prisional favorável a de-formações do caráter, com os des-vios da libido, o fato de escalarem

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    o rapaz para essa habilidade, eradeixá-lo exposto aos motejos dosdemais, afora os prejuízos resul-tantes da falta de um trabalho decaráter viril.

    O Conselho Penitenciário in-terferiu para que se não prolongas-se a equívoca situação.

    Outro elemento negativo daeducação de Volta Seca foi o pro-fessor de Moral da Penitenciária,na época, tão descuidado no cum-primento das obrigações. Consis-tia sua assistência aos presos nu-mas raras e talvez confusas prega-ções de Catecismo, sem maior in-teligência dos assuntos explanados,e nunca teve qualquer aproxima-ção com o 1119, entregue a si mes-mo, sem mão amiga que procuras-se levantá-lo.

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    Em 20 anos de prisão, apenasduas “faltas” e duas fugas estãoanotadas.

    Jogo de cartas, uma vez...– Como iria empregar as horas

    de monotonia o desolado rapaz?A outra, registra o prontuário,

    ocorreu há mais de cinco anos:desatenção ao guarda, na hora dasvisitas.

    – Ou o guarda pretendeu“mostrar-se”, repreendendo, de pú-blico, o famoso cangaceiro, numaexibição de “importância” e de “co-ragem”?

    Isolado, abandonado, e sob tan-tas agonias, não está certo consi-derar ambas essas faltas, indica-tivas de perigosidade.

    – E as duas fugas sucessivas?...Penitenciaristas cheios de pre-

    ciosismos, consideram-nas faltas

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    imperdoáveis, as piores talvez.Não me parece, entretanto, que

    tenham razões.A Psicologia carcerária não

    pode enquadrar, entre as síndro-mes temíveis, este gosto muito na-tural, este sonho de liberdade bemcompreensivo. Nem foram, ade-mais, fugidas rocambolescas e àmão armada. Talvez traduzissemreação humana a clamorosa desi-gualdade, pois, enquanto o adoles-cente de 1929 continuava sob cus-tódia, os cangaceiros adultos jáhaviam sido postos em liberdade...

    No transcurso desses intér-minos tempos de prisão de VoltaSeca, o banditismo sertanejo haviaprosseguido nas suas tropelias ter-ríveis. Mas combatido sempre,acabara vencido em Angicos. Pre-sos e processados, múltip los

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    bandole iros v ieram para essamesma Penitenciária. Estudadasas suas personalidades, conside-rados homens readaptados soci-almente, foram livres, um lustrodepois, pelo indulto.

    Mas Volta Seca perdurava es-quecido da Justiça, lembrado, ape-nas, pelos repórteres que devassa-vam e publicavam as intimidadese as palavras ingênuas, ou imagi-nosas, de um falador sem malíci-as, não sabendo como, nem quan-do, veria terminada a sua angusti-ante prisão.

    Um dia, mandaram-no à Cida-de para “um passeio de caráter ex-perimental”, informou o Diretor.Foi, e não voltou, desaparecera...E, de outra vez, na companhia deum sentenciado amigo, esgueirou-

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    se, pelo portão principal, sem serpercebido, e partiu...

    Não fez quaisquer desatinosem ambas as oportunidades. Naprimeira, nem sequer tentou sairda Capital, permanecendo nas ruas,sem orientação predeterminada.Esta escapula deve-lhe de ter sur-gido ao espírito de momento. Nãohavia planejamento, nem cogitarapara ode ir, ou o que fazer.

    Arguiram-no de abuso de con-fiança, pois fugara enquanto fruíaespecial favor.

    Em parte, isso é verdade, sen-do mister, entretanto, considerarseu estado de espírito, vendo osdemais bandoleiros já livres, e eleencurralado, sem esperanças, háquase 20 anos.

    A segunda, sim, fora uma eva-são premeditada. Burlando todas

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    as vigilâncias, ganhou o mundo, vi-ajando, a pé, dias e dias, pelos ma-tos. O companheiro passando aenfraquecer, faltando-lhe energiaspara as caminhadas sem destino,adoeceu gravemente, lá longe, bemlonge, nos agrestes despovoados...

    Volta Seca poderia embrenhar-se nas caatingas, tão suas conheci-das, e em cujas orlas se achava,mergulhando nos chapadões semfim. Mas largar sozinho, por ali, ocamarada, seria matá-lo, indubita-velmente. A impiedade, a insensi-bilidade moral, a crueldade nãomoravam mais no coração do ex-menino cangaceiro e que assaltaraQueimadas, sob as ordens de Lam-pião. O egoísmo, agora, não so-brepujava a solidariedade.

    Continuar, sozinho, seria aconcretização do grande anelo que

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    o empolgava nas longas e desespe-radas noites da Penitenciária daBahia. O que tinha para a frente,diante dos olhos, deixara de ser ilu-são, ou simples miragem, por des-fazer-se a qualquer momento... Oque lhe surgia à vista deslumbradae atônita era o seu sertão querido,onde muitos fazendeiros o recebe-riam de braços abertos.

    O pecado da fuga ofereceu oensejo para um gesto virtuoso. Nãoabandonou o amigo enfermo.Abraçou-se ao seu corpo meio des-falecido, e empregando forças ex-tremas, trouxe-o carregado ao pri-meiro povoado, sabendo que salva-ria uma vida, mas isto lhe custaria oretorno aos tormentos de presidiá-rio. Aconteceu isso mesmo.

    Escapadas dessa natureza nãopodem ensombrecer uma vida

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    carcerária, para que se negue o li-vramento condicional, e nuncamais se conceda qualquer favor re-gulamentar, trancando-se, parasempre, no túmulo dos vivos, osrestos da mocidade de Volta Seca.

    Enquanto o prontuário lhe ano-ta esses quatro fatos negativos,outros, aí, se encontram, de inilu-dível positividade, através do pro-nunciamento do Diretor da Casa,dos serviços médico-psicológicos,dos mestres de oficinas, da chefiados guardas; boa conduta, bonspropósitos de trabalho e correção.

    Salvou-se, em suma, o 1119, àscustas do próprio esforço, readap-tando-se socialmente.

    Os demais cangaceiros, osadultos, e que vieram depois deAngicos, foram mais felizes, oumenos desgraçados, porque o

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    ambiente penitenciário já entãomelhorara.

    Pode Volta Seca tornar à vidalivre sem oferecer ameaças à cole-tividade. Está em condições deconstituir família, e que tanto de-seja, e de prover à subsistência pró-pria e dos seus às custas do traba-lho produtivo. Mas o emérito juizdas Execuções Criminais não pen-sa desse modo, e houve por bemnegar-lhe o Livramento Condici-onal, sob a alegação de não ser asua existência carcerária isenta defaltas. Não analisou o provectojulgador o problema da seriedademaior ou menor dos malfeitos dorapaz, na prisão; e, menos ainda,aludiu aos últimos anos de com-portamento correto, com as múl-tiplas notas abonadoras. O Mi-

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    nistério Público foi humano e sá-bio, opinando pela concessão.

    E como se não bastassem asfalhas razões de que se valeu, oilustre juiz considerou haver rein-cidência, sem analisar as circuns-tâncias do banditismo sertanejo(continuidade criminal), mas, so-bretudo, os aspectos legais da ver-dadeira reincidência, tanto maisque Volta Seca fora processado,somente, pelo morticínio de Quei-madas. Dentro desse equívoco,interpretou não estivesse satisfei-to o fator tempo.

    Assim tolhido no anseio res-peitável de liberdade, e inconfor-mado com a sentença denegadora,bateu às portas do egrégio Superi-or Tribunal, em busca de uma re-forma do julgado...

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    O parecer aprecia, em seguida,os trâmites do caso na Corte deJustiça, e como um insigne juristade espírito liberal, pôde ser envol-vido pelas emoções do meio, deci-dindo contra a verdade biossocio-lógica, para ater-se aos excessos dojudiciarismo.

    E o coitado do Volta Seca tevede retornar, acorrentado aos pre-conceitos de uma decisão desuma-na, aos velhos e sombrios pavi-lhões da Penitenciária...

    Fomos, então, ao Chefe doPoder Executivo, intentando sal-var a vida do 1119, através do in-dulto total da pena, depois dos 20anos que padeceu encarcerado. Asociedade somente queria enxergaro sangrador dos soldados de Quei-madas. Não entendia que os mauspodem tornar-se bons!

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    Arrematamos, com estas pala-vras, nosso pronunciamento, naderradeira instância:

    “A batalha no Judiciário foi per-dida por Antônio dos Santos, oVolta Seca de tão malsinada me-mória. Assumo, agora, perante oSr. Presidente da República e o paísinteiro, as responsabilidades todaspelo comportamento do desgraça-do rapaz, na vida livre!”

    Fomos atendidos! E alguns lus-tros são passados. Continuamostranqüilos. A figura sinistra docangaceiro-menino está, de todo,transmutada no pai feliz de tantosfilhos... O marechal Dutra terávisto que praticou um dos gran-des atos de seu nobre governo.

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    As publicações da E-Book.Brcomportam tiragens impressas pelas

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    A batalha no Ju-diciário foi perdidapor Antônio dosSantos, o Volta Secade tão malsinadamemória. Assumo,agora, perante o Sr.Presidente da Repú-blica e o país intei-ro, as responsabili-dades todas pelocomportamento dodesgraçado rapaz,na vida livre!

    Fomos atendi-dos! E alguns lus-tros são passados.Continuamos tran-quilos. A figura si-nistra do cangacei-ro-menino está, detodo, transmutadano pai feliz de tan-tos filhos.

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    VOLTA SECAe o Estranho Mundo

    dos Cangaceiros

    Lampião repousava no pontodas Caatingas de Mirandela, quan-do um de seus cabras lhe anunciouque um menino chegara das ban-das do Saco Torto de Sergipe, in-sistindo para ver o Chefe.

    Estácio de Lima