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...E O Vento Levou Margaret Mitchell Título original: GONE WITH THE WIND Copyright 1936 by The Macmillan Company Copyright renewed 1964 by Stephens Mitchell and Trust Company of Georgia as Executors pf Margaret Mitchell Marsh Copyright renewed 1964 by Stephens Mitchell All rights reserved Protected under the Berne, Universal and Buenos Aires Conventions Tradução de Maria Franco e Inés Duque Ribeiro 1.' edição 1954 2.' edição-1959 3.- edição 1265 (reimpressão: 1971) 4.' edição 1988 Coedição EDITORIAL MINERVA Rua da Alegria, 30 Lisboa CONTEXTO, EDITORA Rua Ilha Terceira, 42-D, Pavilhão 2, Lisboa ...E O Vento Levou Margaret Mitchell VOLUME 1 PRIMEIRA PARTE SCARLETT O'HARA não seria bela, mas só muito raramente os homens davam por isso quando seduzidos pelo seu encanto pessoal, como era o caso dos gêmeos Tarletons. No seu rosto combinavam-se em contraste flagrante as feições suaves da mãe, aristocrata do litoral, de origem francesa e os traços grosseiros do pai, irlandês vermelhusco. Contudo, era deveras interessante, com a sua carinha de maxilares fortes e queixo aguçado. Os olhos, de um verde-pálido em que não se vislumbrava a mais leve tonalidade castanha, brilhavam em duas molduras de pestanas negras, sedosas, levemente arqueadas nas extremidades. A coroá-los, as sobrancelhas cor de ébano, espesgas e oblíquas destacavam-se de forma surpreendente sobre a tez de magnólia - o tom de cútis que as mulheres do Sul tanto apreciam e tão cuidadosamente protegem do sol ardente de Geórgia, com chapéus, véus e miberies. Formava um quadro encantador, sentada com Stuart e Brent Tarleton à sombra fresca do alpendre da Tara –a fazenda do pai - naquela tarde radiosa de Abril de 1861. O vestido novo de casisa verde, florida, em cuja confecção tinham sido empregados doze metros de tecido, caía-lhe às mil maravilhas sobre a volumosa saia de balão e condizia perfeitamente com os sapatinhos rasos de marroquim, que o pai lhe tinha trazido de Atlanta, pouco tempo antes, 0 vestido realçava-lhe a esbelteza da cintura' a mais fina das redondezas; o corpete justo revelava seios bem desenvolvidos para os seus dezesseis anos: Mas, não obstante a simplicidade da saia, rodada, a maneira modesta como usava o cabelo, enrolado sobre a nuca, e a quietude das pequeninas mãos brancas que lhe repousavam, cruzadas, no regaço, a sua verdadeira personalidade conseguia sobressair. Apesar da expressão calma que a fisionomia normalmente ostentava, os olhos dela eram irrequietos, voluntariosos, cheios de vida, o que estava em completo desacordo, com a sua atitude recatada, As maneiras discretas, estudadas, tinham-lhe sido impostas pelas suaves repressões

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  • ...E O Vento Levou Margaret Mitchell Ttulo original: GONE WITH THE WIND Copyright 1936 by The Macmillan Company Copyright renewed 1964 by Stephens Mitchell and Trust Company of Georgia as Executors pf Margaret Mitchell Marsh Copyright renewed 1964 by Stephens Mitchell All rights reserved Protected under the Berne, Universal and Buenos Aires Conventions Traduo de Maria Franco e Ins Duque Ribeiro 1.' edio 1954 2.' edio-1959 3.- edio 1265 (reimpresso: 1971) 4.' edio 1988 Coedio EDITORIAL MINERVA Rua da Alegria, 30 Lisboa CONTEXTO, EDITORA Rua Ilha Terceira, 42-D, Pavilho 2, Lisboa ...E O Vento Levou Margaret Mitchell VOLUME 1 PRIMEIRA PARTE SCARLETT O'HARA no seria bela, mas s muito raramente os homens davam por isso quando seduzidos pelo seu encanto pessoal, como era o caso dos gmeos Tarletons. No seu rosto combinavam-se em contraste flagrante as feies suaves da me, aristocrata do litoral, de origem francesa e os traos grosseiros do pai, irlands vermelhusco. Contudo, era deveras interessante, com a sua carinha de maxilares fortes e queixo aguado. Os olhos, de um verde-plido em que no se vislumbrava a mais leve tonalidade castanha, brilhavam em duas molduras de pestanas negras, sedosas, levemente arqueadas nas extremidades. A coro-los, as sobrancelhas cor de bano, espesgas e oblquas destacavam-se de forma surpreendente sobre a tez de magnlia - o tom de ctis que as mulheres do Sul tanto apreciam e to cuidadosamente protegem do sol ardente de Gergia, com chapus, vus e miberies. Formava um quadro encantador, sentada com Stuart e Brent Tarleton sombra fresca do alpendre da Tara a fazenda do pai - naquela tarde radiosa de Abril de 1861. O vestido novo de casisa verde, florida, em cuja confeco tinham sido empregados doze metros de tecido, caa-lhe s mil maravilhas sobre a volumosa saia de balo e condizia perfeitamente com os sapatinhos rasos de marroquim, que o pai lhe tinha trazido de Atlanta, pouco tempo antes, 0 vestido realava-lhe a esbelteza da cintura' a mais fina das redondezas; o corpete justo revelava seios bem desenvolvidos para os seus dezesseis anos: Mas, no obstante a simplicidade da saia, rodada, a maneira modesta como usava o cabelo, enrolado sobre a nuca, e a quietude das pequeninas mos brancas que lhe repousavam, cruzadas, no regao, a sua verdadeira personalidade conseguia sobressair. Apesar da expresso calma que a fisionomia normalmente ostentava, os olhos dela eram irrequietos, voluntariosos, cheios de vida, o que estava em completo desacordo, com a sua atitude recatada, As maneiras discretas, estudadas, tinham-lhe sido impostas pelas suaves represses

  • maternas e pela disciplina mais dura que a ama preta a fizera observar; mas os olhos eram dela, muito seus, e s,6 a ela obedeciam. Os gmeos ladeavam-na, comodamente instalados em espreguiadeiras entortando os olhos para o sol, atravs dos copos altos dos refrescos cruzando negligentemente as pernas, metidas em botas de montar abotoadas at ao joelho, que quase estalavam sob a presso dos msculos que escondiam e eram fruto de longa prtica na sela. Com dezenove anos de idade, um metro e noventa de altura, ossatura alongada e msculos rijos, faces queimadas pelo sol e cabelos castanhos arruivados, olhos sorridentes e arrogantes, e o corpo envolto em identicos casacos azuis e cales cor de mostarda, esses irmos pareciam-se como duas gotas de gua. Enquanto os trs riam e conversavam, o Sol ia descendo l fora, no ptio, derramando luz dourada sobre os noveleiros cobertos ento de massas compactas de flores brancas, que se recostavam sobre o fundo verde-claro da folhagem. As montadas dos dois gmeos, amarradas a duas rvores da majestosa alameda eram animais corpulentos de plo semelhante cor do 6belo dos donos; entre as pernas dos alazes brigavam os galgos, possantes e nervosos 'que acompanhavam Stuart e Brent por toda a parte. Um pouco mais longe como convinha a um aristocrata, um co malhado descansava o focinho sobre as patas, aguardando pacientemente que os gmeos voltassem para casa, a fim de jantar. Entre os cavalos, os ces e os dois irmos havia algo de mais profundo que os laos criados por uma convivncia quase constante. Possuam traos comuns: eram todos eles animais juvenis e sadios, fortes impetuosos, guapos, que viviam despreocupadamente; e, embora os rapazes fossem to fogosos como os alazes que montavam, to fogosos e perigosos, isso no impedia que se tornassem mansos e dceis quando manobrados por mos hbeis. Ap@sar de a infncia dos.trs jovens que conversavam debaixo do alpendre haver decorrido no ambiente calmo das fazendas, sob a vigilncia permanente duma criadagem solcita que lhes satisfazia todos os desejos, os seus rostos no denotavam o mais leve vestgio de fraqueza ou de brandura. Tinham a, vivacidade e a energia caractersticas das pessoas que passam os dias ao ar livre e pouco se preocupam com os problemas enfadonhos de que os livros tra- io tam. A vida na comarca de Clayton, ao norte de Gergia, continuava a ser a mesma, uma vida simples e, segundo o padro de Augusta, Savarinali e Charleston, um tanto rstica. Os habitantes das comarcas mais antigas do Sul, indivduos avisados e circunspectos, torciam o nariz aos, fazerideiros do Norte; mas ali, na zona setentrional de Gergia, a ausncia dos requintes de uma educao clssica no desprestigiava ningum, contanto que se fosse conhecedor das coisas que na realidade interessavam. E cultivar bom algodo, montar com destreza, atirar bem, danar com elegncia, mostrar-se delicado, no trato com as senhoras e aguentar o, lcool como um fidalgo, era de facto o que interessava. Ambos os gmeos manifestavam em todos estes captulos uma capacidade notria, -como notria era tambm a sua, incapacidade para'assimilar o contedo dos livros, fosse qual fosse o assunto neles versado. A famlia Tarleton tinha mais dinheiro, mais -cavalos, mais escravos do que qualquer outra da comarca, mas os dois rapazes eram incontestvelmente muito menos cultos do que a maioria dos seus vizinhos, que viviam na pobreza. Era precisamente por essa razo que Stuart e Brent se encontravam naquele momento sob o alpendre de Tara, naquela tarde de Abril. cabavam de ser expulsos da Universidade de Gergia, a quarta que os havia recambiado para a casa paterna no curto espao de dois anos; e os dois irmos mais velhos 'Tom e Boyd, tinham regressado juntamente com eles, pois que de forma alguma lhes agradaria prosseguir os estudos numa instituio em que os gmeos eram mal vistos, Stuart e Brent teciam os mais jocosos comentrios em torno da sua recente expulso e Scarlett, que de sua livre vontade no tornaria a abrir um livro desde que abandonara a Academia Feminina de Fayetteville ' um ano antes, encarava o acontecimento com o mesmo bom humor dos companheiros.

  • - Sei perfeitamente que vocs os dois no ligam importncia nenhuma ao caso, e que Tom tambm se no deve ralar muito com isso -disse ela. - Boyd que com cer- teza, ficou furioso. Est disposto a tirar um cur@o e vocs ambos j o obrigaram a sair das Universidades de Virgnia, de Alabama, de Carolina do Sul.e,, agora, de Gergia. Por esse andar, nunca mais conseguira chegar ao fim. . . -Ora, ele pode muito bem e@udar Direito com o Julz 11 Parmalee, em Fayetteville -respondeu Brent.- Alis, isso verdadeiramente no importa. F~ como fosse, teramos de voltar para csa antes quk,- o perodo acabasse. - Porqu? - Por causa da guerra, tolinha! Est prestes a rebentar, e voc decerto no nos supe capazes de continuarmos tranquilamente na Faculdade com toda a gente aos tiros c por fora, pois no? - Sabe muito bem que no haver guerra nenhuma - ripostou Searlett, aborrecida. - Isso tudo conversa, nada mais. Ainda a semana passada, Ashley Wilkes e o pai afirmaram c em casa, que os nossos delegados em Washington chegariam a um... a um acordo amigvel com o senhor LincoIn sobre a Confederao. E, alm do mais, os yankees tm demasiado medo de ns para se atreverem a dar-nos luta. No haver guerra nenhuma e, se querem que lhes diga, j estou farta de ouvir falar nisso. -No haver guerra nenhuma? -exclamaram os gmeos, indignados, como se algum acabasse de os defraudar. - No diga isso Scarlett - redarguiu Stuart, instantes depois. - No pode@ deixar de haver guerra. certo que os yankees nos temem a valer, mas depois de o general Beauregard os ter expulsado a tiro do Forte Suniter, anteontem, no tero outro remdio seno pegar em armas se quiserem evitar que toda a gente lhes chame cobardes. E a Confederao... @,a-1eU f. uma careta de impacincia. - Se voltam a falar em guerra mais uma vez que seja, garanto-lhes que vou para casa e que fecho a porta. Alm da palavra guerra s h outra que me causa to grande aborrecimento: Secesso. O meu pai leva o dia inteiro a falar na guerra e os homens que vm visit-lo, parecem todos exclusivamente preocupados em discutir a questo do Forte Suniter, os Direitos Estaduais e a poltica de Abraham Lincoln. Fico to saturada de os ouvir que s vezes at me d vontade de gritar. E os rapazes tambm no falam seno da guerra e do Regimento. J nesta Primavera ningum se divertiu, pois que os moos at durante as festas nos maavam com as suas teorias acerca da situao. Por isso, j sabem: se repetem a palavra guerra,. nem que seja apenas mais uma vez vou-me embora. E estava resolvida a faz-lo porque Scarlett no podia tolerar durante muito tempo uma conversa de que no 12 fosse ela o foco Principal. No entanto, sorriu ao dizer aquilo, acentuando propositadamente as covinhas do rosto e batendo as plpebras de pestanas negras e sedosas, que mais pareciam as asa; frementes de urna borboleta. Os gmeos ficaram encantados -precisamente o que ela pretendia - e apressaram-se a pedir-lhe desculpa de estarem a enfad-la. Contudo, no ficaram mal impressionados em face do desinteresse demonstrado por ela. Muito pelo contrrio. A guerra, era um assunto que no competia s mulheres discutir, mas sim aos homens, e os dois rapazes viram na atitude da sua graciosa companheira uma prova da feminilidade que devia ser apangio de todas as rapargas.. Tendo conseguido desta forma desviar a conversa do tema desagradvel em perspectiva, Scarlett, procurou interessar-se novamente pela sorte dos dois gmeos. - Que lhes disse a me quando soube que vocs: tinham sido expulsos outra vez?

  • Os -rapazes entreolharam-se, contrafeitos, recordando com certa inquietao a recepo que a me lhes dispensara trs meses antes, quando tinham voltado para casa a pedido do reitor da Universidade de Virgnia. - Ora... - respondeu Stuart - para lhe falar com f ranqueza, ela ainda no teve ocasio de nos dizer nada. Tom saiu de casa connosco, de manh cedo antes de a me se levantar e foi passar o dia com os F@ntajne. Ns viemos para aqui... -E quando chegaram, ontem noite, no disse nada? - Ontem noite, tivemos urna sorte dos demnios. Chegmos pouco depois de terem ido entregar l a casa o garanho que a me comprou em Kentucky o ms passado, e estava tudo em rebulio, 0 animal um colosso, Scarlett. H-de dizer ao seu pai que o v ver quanto antes. Durante o caminho deu urna dentada no brao do moo que o conduzia e arrancou-lhe um pedao. de carne. Alm disso, atropelou os dois moleques que a nossa me mandou estao -de Jonesboro a fim de esperarem o comboio, e quase deitou abaixo a @@trebaria. Acertou uma parelha de coices em Strawberry, velho garanho da fazenda,_que por um triz o no matou. Quando ns entrmos, a mae estava na cavalaria com um saco de acar, tentando acalmar o bicho, de tal maneira que gostava que voc a visse. os moleques tinham trepado para os barrotes do tecto, apavorados, mas 13 - @__ @_-Uw a me falava com o cavalo corno se estivesse tratando cora uma criana mimalha e punha na palma da mo torres de aacar, que ele comia gulosamente, No h ningum que saiba lidar com cavaloscomo, a nossa me! Quando ela nos viu, perguntou apenas: "Santo Deus que fazem vocs os quatro outra vez em casa nesta altur'a do ano? So Piores do que as pragas do, Eg'lpto!" Mas o animal comeou a relinchar e a fazer marcha-atrs e a me pouco mais nos disse. "Vo-se embora, vo-se embora. No vem que o cavalo j est nervoso coitadinho? Amanh de manh, falaremos". Fomo-nos'eitar, imediatamente e hoje, mal a,ni,anheceu, levantmo-nos os trs, antes que ela fosse tratar-nos da sade, e deixmos Boyd incumbido de acalmar as iras maternas. -'Acham que a me bater em Boyd? Como sucedia com to-da a populao da comarca, tambm Searlett nunca lograra compreender a maneira rude como a pequenina senhora Tarleton tratava os filhos, homens j feitos, a ponto de os castigar com o chicote sempre que as faltas comet@das assumiam a seus olhos aspectos graves. Beatrice Tarleton era uma mulher que andava sempre atarefada com w afazeres domsticos, pois tinha a seu cargo no s uma extensa plantao de algodo, unia centena de escravos e oito filhos mas tambm a maior coudelaria de todo o Estado. De g@nio fcilmente irritvel, no podia. conformar-se com as frequentes expulses dos filhos, e ra a ningum permitisse vergastar um negro ou um c@veMaI@era de opinio de que uma chicotada de vez em quando no fazia mal nenhum aos rapazes. -Tenho a certeza de que nem sequer lhe tocar. Ela nunca gostou de bater em Boyd, talvez por ser o hiais velho e tambm o mais pequeno da ninhada - afirmou Stuart, muito ufano da sua estatura. -Foi por isso que o incumbimos de explicar tudo me, Corri franqueza, tempo de perder a in-ania de nos chicotear! Ns j fizemos dezanove anos e Tom tem vinte e um; apesar disso, trata~rios como se ainda usssemos cales. tar o novo garanho, -A me de vocs tenciona mon para ir festa em casa dos Wllkes, amanh? - Est com vontade disso, mas o meu pai diz que um perigo. Seja como for, estou certo de que as nossas irms a dissuadiro da ideia, Ainda no desistiram de a conven- 14 cer a '!.r, pelo menos a uma festa, de carruagem, como compete a uma senhora.

  • - Espero que no chova amanh - disse Scarlett. - H uma semana que chove todos os dias. No h nada pior do que uma festa ao ar livre transformada ltima hora num piquenique dentro de quatro paredes, -Oh, amanh vai estar um dia lindo e quente, como os dias de Junho! - declarou Stuart. - lhe para o cu. J viu como est vermelho? Parece mesmo cor de fogo. No difcil fazer a previso do tempo pelo pr-do-Sol. Olharam atravs da extenso imensa dos campos de algodo de Gerald O'Hara, recenternente arados 'e contemplaram o horizonte encarniado. Agora que o Sol estava prestes a sumir-se atrs das colinas, para l do rio Flint, * calor tpido daquela tarde de Abril comeava a dar lugar * uma brisa suave e fresca. A Primavera. tinha chegado cedo nesse ano, apressando com as suaschuvas quentes 'de breve durao, -a florao Idos pessegueiros e dos noveleiros, cujos botes rosados se destacavam como estrelas brancas na superfcie escura do rio e nas colinas distantes. A lavra estava quase terminada e o esplendor sangrento do crepsculo intensificava os tons purpreos dos novos sulcos abertos no solo argiloso de Ge6rgia. A terra hmida, que aguardava com avidez as sementes do algodo, apresentava tons levemente rosados ao longo das leiras, enquanto nas trincheiras urna srie de tonalidades escalonadas entre o vermelho e o castanho formavam sombras intensas. A residncia dos O'Haras, casa de tijolo, calada de branco, fazia lembrar uma ilhota perdida em mar revolto, num oceano rubro em que as ondas se continuavam em espirais gigantescas e que pM-ela ter-se petrificado no momento em que as vagas, de cristas cor-de-rosa, se quebravam sobre a sua superfcie. Porque ali no se viam as leiras rasgadas em linha recta, como nos campos de argila amarelada de Ge6rgia Central, onde o terreno no era to acidentado, e nas vastas planuras de terra castanha-escura das regies costeiras. Nas comarcas de Gergia Setentrional, cujo solo se desdobrava em cadelas ininterruptas de colinas e outeiros, as fazendas eram lavradas segundo linhas curvas, para evitar que as guas das chuvas arrastassem a terra fecunda ao longo das encostas, deixando-a perder-se no rio. Era uma regio trrida e agreste, cuja terra adquiria 15 cor de sangue depois das chuvas e se cobria de poeira cor de tijolo aps as secas prolongadas; contudo, no havia no mundo inteiro outra como aquela para cultivar algodo. Na imensido dos campos, erguiam-se as minsculas casas dos fazendeiros, sucediam-se os terrenos de cultivo deslizavam rios preguiosos, de guas amarelentas. A palsagem, oferecia os mais diversos contrastes, alterando as sombras acolhedoras com os soalheiros inspitos. Os lavrados para as plantaes e os terrenos de cultivo sorriam para um sol abrasador, plcido e complacente. A cerc-los, quais molduras verdejantes, erguiam-se florestas virgens, sombrias e frescas, mesmo nas tardes mais clidas, levemente sinis-tras, impregnadas de mistrio e pinhais sussurrantes, que pareciam espreitar, com um@ pacincia secular o ensejo de realizarem a ameaa que segredavam, baixinho: "Cuidado! Cuidado! Essa terra j foi nossa. Havemos de a recuperar um dia!" Aos ouvidos da rapariga e dos dois rapazes chegavam os rudos dos cascos dos animais no solo, o tilintar das correntes dos arreios e o riso agudo e descuidado dos pretos,, que regressavam dos campos, conduzindo as parelhas de muares. No interior da casa, soou a voz suave da me de Scarlett, Ellen O'Hara'chamando negrinha que trazia a cesta das chaves. Respondeu-lhe uma vozita infantil e estridente. "J vai, sinhora". Seguiu-se-lhe um rumor de passos que se encaminhavam para a porta das traseiras, em direco despensa, onde Ellen distribuiria as raes aos trabal-hadores que se aproximavam. Dentro de casa elevava-se tambm o tinir da loua de porcelana e dos talheres de prata que o copeiro de Tara de nome Pork, punha, na mesa o@de mais tarde seria serv'ido o. jantar.

  • Ao ouvirem estes rudos, os dois irmos compreenderam que j eram horas de regressar a casa. Mas estavam com receio de enfrentar a me e retardaram a partida, pensando que talvez Scarlett se decidissea convid-los para o jantar. - Escute, Scarlett - disse Brent. - 0 facto de termos estado fora, e de ignorarmos que os W11kes iam dar uma festa amanh, no a impede de danar connosco vrias vezes, no verdade? Ainda no prometeu todas as valsas, pois no? - Prometi, pois! Como havia, eu de adivinhar que ch gavam ontem? No podia arriscar-me a servir de jarro por causa de vocs. 16 -Servir de jarro? Os rapazes riram s gargalhadas. - Seja como for, tem de reservar a primeira valsa para mim e a ltima para Stuart. Alm disso, queremos que nos faa companhia durante a, ceia. Iremos sentar-nos no pata- @nar da escada., como fizemos no ltimo baile, e pediremos a velha Jiney que nos leia a sina, -No gosto que Jincy me leia a sina. Bem sabem que ela me disse da outra vez que eu havia de casar com um homem de cabelo preto como azeviche e de bigodes grandes, e eu detesto os homens de cabelo preto. - Prefere os ruivos, no ? - perguntou Brent, com um sorriso feliz. - Vamos, prometa que danar connosco todas as valsas e que nos far companhia ceia. - Se prometer, contar-lhe-emos um segredo - acrescentou Stuart. -Que segredo ?-inquiriu Scarlett, manifestando curiosidade infantil. -Referes-te ao que nos disseram ontem em Atlanta, Stuart? Se isso, lembra-te de que prometemos no revelar nada a ningum. - Foi uma coisa que a senhora Pitty nos disse. - Senhora qu? - Pittypat, Hamilton, tia de Charles e de Melanie Hamilton, que vive em Atlanta. Conhece, no conhece? prima de AshIey Wilkes... - Conheo muito bem e confesso que nunca encontrei uma velha assim to estpida, em toda a minha- vida. - Estivemos a conversar com ela ontem porta da estao de Atlanta., enquanto espervamos pelo comboio. Ia a passar na sua carruagem quando nos avistou, e deteve-se uns minutos a falar connosco. Foi nessa altura que nos disse que amanh, no baile dos Wilkes, ser oficialmente anunciado um casamento. -Ora, isso j eu sei h muito tempo -declarou Scarlett'sem ocultar a sua decepo. -Deve ser o idiota do sobrinho dela, Charles Hamiltou com Honey Wilkes. Toda a gente sabia h sculos que eles'acabariam por casar, mais cedo ou mais tarde, embora no se mostrassem muito entusiasmados com a ideia. - Acha que Charles idiota? - perguntou Brent. - No entanto, ainda o ano passado, pelo Natal, voc deixava-O andar atrs de si. 2 - Vento Levou -I 17 - Que havia eu de fazer? No o podia impedir de andar atrs de mim - redarguiu Scarlett, encolhendo os ombros negligentemente. - Que at o acho bastante efeminado. -Pois est enganada. No o casamento dele que vai ser anunciado - ripostou Stuart, em tom de triunfo - mas sim o de AshIey Wilkes com a irm de Charles, Melanie Hamilton! A fisionomia de Scarlett no sofreu a mais leve alterao, mas os lbios tornaram-se-lhe brancos, como os de uma pessoa que, sem esperar, recebe um choque tremendo, e fica paralisada de surpresa durante alguns momentos, incapaz de compre@nder o que lhe aconteceu. Encarou Stuart com uma exproso to parada que o rapaz cuja perspiccia deixava muito a desejar, julgou que @ atitude dela traa apenas espanto e curiosidade.

  • - A senhora, Pitty disse-nos que eles s tencionavam casar-se para o ano, porque a MeIly tem andado adoentada; mas, com todos estes boatos que correm acerca da guerra, ambas as famlias concordaram que seria conveniente apressar o enlace e resolveram anunci-lo amanh noite, num dos intervalos da ceia. E, agora que j lhe contmos o segredo, voc tem de prometer que cear connosco... -Prometo-disse Scarlett, maquinalmente. -...E que nos conceder todas as valsas... - Est bem. - uma jia! Aposto que toda a rapaziada vai ficar louca de raiva. - Que fique! - exclamou Brent. - Ns os dois szinhos, podemos muito bem com todos eles. Escute, Scarlett: Venha amanh pela manh, connosco, ver assar as reses. -0 qu? Stuart repetiu o pedido. - Como quiserem. Os gmeos entreolharam-se, radiantes, mas com certa surpresa. Embora se considerassem pretendentes privilegiados, a verdade que nunca at ali tinham obtido com tanta facilidade provas to concludentes. Geralmente obrigava-os a pedir e a suplicar, recusando-se a dIzer-lh@s sim ou no, lanando-lhes a confuso no esprito, rindo se os via ficarem tristes, mostrando-se fria e altiva, se eles se irritavani. Contudo, Scarlett acabava de prometer dedicar- _lhes praticamente todo o seu dia. Prometera assistir ao espectculo das espetadas, danar com eles todas as valsas 18 (e tratariam de arranjar as coisas de forma que s tocassem valsas) e passar na sua companhia os intervalos da ceia. Como recompensa de terem sido expulsos da Universidade no podiam esperar melhor prmio, Arrastados pelo entusiasmo do xito alcanado, continuaram a conversar, esquecidos das horas, falando acerca da festa, do baile, de Astiley Wilkes e de Melane Hamilton, interrompendo-se mtuamente, gracejando e rindo dos seus ditos'mostrand claramente o desejo de que a rapariga os convidasse para jantar. S mais tarde repararam que Scarlett quase no havia falado. A atmosfera mudara, como e porqu no sabiam os gmeos explicar. Sabiam apenas que o encanto daquela tarde de Abril se extinguira de repente. Scarlett pouca ateno parecia prestar quilo que eles diziam, embora lhes respondesse sempre acertadamente. Cnscios de ter sucedido algo que no logravam perceber, desconcertados e aborrecidos, os dois irmos ainda se demoraram mais algum tempo, at que se levantaram com manifesta relutncia, consultando o relgio com olhares significativos e eloquentes. 0 Sol estava prestes a desaparecer na linha do horizonte, lanando os derradeiros clares do dia sobre os campos lavrados de fresco. Os bosques densos e sombrios, que se estendiam para l do rio, recortavam uma silhueta negra, imensa, contra o fundo alaranjado do firmamento. As andorinhas, que tinham os seus ninhos na chamin, cruzavam velozmente o ptio de Tara em voos baixos, enquanto as galinhas 'os patos e os perus regressavam s capoeiras, vindos de todas as direces, bamboleando-se sobre as pernas curtas. Stuart cliamou: "Jeeros!" e no tardou que um preto, de estatura aproximadamente igual deles e que aparentava a mesma idade, surgisse das traseiras da casa, correndo rpidamente em direco ao local onde os gmeos tinham deixado os alazes amarrados. Jeems era o pajem dos dois irmos e, como acontecia com os ces, tambm ele os seguia para toda a parte, Fora-lhes oferecido para companheiro de folguedos, ao completarem o seu dcimo aniversrio natalcio. Ao verem-no aproximar-se, os galgos puseram-se de p, sacudindo a poeira avermelhada que se lhes agarrara ao plo enquanto aguardavam arhegada dos donas. Stuart e Bren despediram-se de Scarlett com uma ligeira vnia e um aperto de mo, e no se retiraram sem lhe dizerem que 19

  • iriam cedo para casa dos Wilkes, a fim de esperarem por ela. Em seguida, encaminharam-se pressa ao longo da alameda orlada de cedros, montaram nos cavalos e partiram em galope desenfreado, acenando-lhe com o chapu e gritando-lhe palavras de adeus, Assim que acabaram de descrever a curva da estrada poeirenta que lhes ocultou a casa dos O'Haras, Brent fez estacar a sua montada sob um macio de noveleiros e Stuart imitou o irmo, enquanto o pajem negro se imobilizava alguns passos mais atrs. Os cavalos, sentindo as rdeas folgadas, curvaram o pescoo para comerem a erva tenra e os galgos, armapdo-se de toda a sua pacincia, tornaram a deitar-se no leito poeirento da estrada, observando com olhares vidos as andorinhas que evolucionavam rente s rvores, sobre as quais o crepsculo vespertino faza descer j as primeiras sombras, Brent tinha estampada no rosto largo e ingnuo uma expresso intrigada, em que se lia tambm leve indignao, - Ouve - disse ele para o irmo - no te parece que Scarlett devia ter-nos convidado para jantar? - Decerto - respondeu Stuart. - Ainda esperei que ela tivesse essa ateno, mas foi o que se viu. -Como interpretas a sua atitude? -De maneira nenhuma. No percebo. Na minha opinio, ela no foi l muito delicada para connosco, nesse ponto. Tanto mais que j no nos via h bastante tempo. E ns ainda tnhamos um ror de coisas para lhe contar. -Tive a impresso de que Scarlett, ficou deveras satis-feita quando nos viu aparecer. -Tambm eu. -E, no entanto, h questo de meia hora, como que perdeu a fala. -Tambm reparei nisso, mas confesso que no liguei importncia. Ter-se- ela sentido mal, de repente? -No fao deia. Ns no dissemos nada que pudesse t-la aborrecido, pois no? Quedaram-se ambos a ponderar esta hiptese. -Creio que no. Alis, quando Scarlett se aborrece com algum, v-se logo. Ela no se d ao trabalho de disfarar o seu enfado, como a maioria das raparigas costuma fazer. -Tens razo. essa justamente uma das coisas que mais me agradam nela. Scarlett diz na cara das pessoas aquilo que sente - no usa de fingimentos ou de subterf- 20 gios. Contudo, suponho que foi alguma coisa que ns lhe dissemos ou fizemos que provocou aquela reaco. Calou-se de repente, como se estivesse com uma dor de cabea horrvel, e depois disso no tornou prticamente a falar. Eu era capaz de jurar que a nossa vinda lhe causou grande alegria e que ela tencionava na realidade convidar-nos para o jantar. - Quem sabe se no foi por termos sido expulsos outra vez? - Que ideia 'meu Deus! No sejas tolo. Lembra-te s da maneira como ela se riu quando lhe contmos a nossa proeza. Scarlett tem tanto amor aos livros coffio, ns. Brent voltou-se na sela e chamou o preto: - Jeems! - Sinh? -Ouviste a nossa conversa com a menina Scarlett, no ouviste? -No ouvi nada, sinh Brent. No escuto, conversa de branco. - Deixa-te disso, homem! Vocs sabem tudo o que se diz. Sim 'e escusas de mentir, pois que eu te vi, com os meus lhos, agachado atrs do canteiro de jasrnins, junto parede do prdio, um pouco para l do alpendre. Ouviste-nos dizer alguma coisa que pudesse ter ofendido ou irritado, a menina Scarlett? Vendo-se desmascarado, Jeems desistiu de continuar a fingir que no tinha ficado escuta e franziu a testa negra e reluzente. - No, sinh, no

  • Os gmeos entreolharam-se e assentiram com a cabea, embora estivessem cada vez mais intrigados. - Jeems tem razo. Mas no compreendo o que aConteceu - confessou Stuart. - Meu Deus! AshIey no deve ser para ela mais do que um amigo. Scarlett no o ama, com certeza. Est doidinha por ns. Brent inclinou a cabea, num gesto de aquiescncia. - Talvez ela tenha ficado aborrecida pelo facto de Ashley no lhe haver participado a sua inteno de anunciar 21 o casamento amanh noite - alvitrou. - Tu bem sabes como as raparigas so. Gostam de ser sempre as primeiras a saber estas coisas e ficam furiosas quando isso no acontece. Scarlett deve ter ido aos arames> por ver que Ashley, seu amigo h tantos anos, a no ps ao corrente da situao. - possvel, mas como poderia ele p-la ao corrente da situao se. se tratava duma surpresa? Alm disso, a gente tem o, direito de guardar segredo daquilo que entende, no tem? Ns mesmos ainda no saberamos nada se a tia de Melly no houvesse dado com a lngua nos dentes. E Scarlett no devia ignorar que AshIey acabaria por casar com Melanie. J tradicional nas duas famlias os primos casarem com as primas. Era certo e sabido que Ashley Wilkes desposaria Melanie Hamilton e certo e sabido que Charles Hamilton desposar Honey Wilkes num futuro mais ou menos prximo. -Deixemos isso. Tenho pena de que ela no nos convid se para jantarmos l em casa. No me seduz nada a ideias de ter a me novamente perna por havermos sido expulsos outra vez. Ela diz sempre a mesma histria; no 4j forma de se habituar. - Talvez Boyd j tenha conseguido acalm-la um pouco. Conheces bem as falnhas mansas daquele mariola. Acaba, sempre por levar a me certa. -L isso verdade, mas s vezes demora bastante tempo, Lembra-te dos rodeios que Boyd tem de fazer e das complicaes que precisa de imaginar para obrigar a me * desistir de compreender o que aconteceu. E ento, com * cabea feita em gua, ela diz-lhe que se cale e aconselha-o a poupar a voz para os exames de Direito. A estas horas ainda ele no teve tempo de comear. A me est to excitada com o cavalo que comprou que s quando vir Boyd sentado mesa para jantar que se compenetrar de que j estamos de volta outra vez. E ento, no queiras saber. Vai ser o bom e o bonito. Ho-de bater as dez horas antes que Boyd consiga explicar-lhe que no seria decente que algum de ns continuasse na Faculdade depois -do que o reitor nos disse, a ti e a mim. E s por volta da meia-noite ter logrado virar a me do avesso contra o pobre do reitor, a ponto de ela lhe perguntar por que motivo no ferrou um tiro no patife do homem, Nada! No me atrevo a entrar em casa antes da meia-noite. Os dois irmos fitaram-se mtuamente, com olhares 22 sombrios. No tinham medo nenhum de montar cavalos selvagens, de provocar rixas ' de excitar contra eles a m--vontade da vizinhana, mas quase se finavam com receio da me, das suas repreenses severas e do chicote de montar, com que ela no tinha o menor escrpulo de lhes vergastar o lombo. -Ento, olha-sugeriu Brent-talvez no seja i-pai pensado irmos at casa dos W11kes. As pequenas ficaffio radiantes e no deixaro de nos-convidar para jantar. Stuart no se mostrou entusiasmado com a ideia, -No, acho melhor no irmos l. Devem estar atrapalhado@; com os preparativos para amanh e, alm disso... - Oh, diabo, nem de tal coisa me lembrava! - exclamou Breht, com vivacidade. -De facto, no convm irmos l.

  • Esporearam a montada e galoparam em silncio, durante alguns minutos. As faces morenas de Stuart haviam-se ruborzadp de constrangimento, Stuart tinha namorado India Wilkes at meados do Vero transacto, de pleno acordo de ambas as famlias e de toda a populao da 4-,omarca. Era opinio geral que o temperamento calmo e reservado de India Wilkes no deixaria de exercer sobre

  • um olhar que conhecia a razo da sbita mudana operada na atitude dele. Era muito bem educada para isso. Todavia, Stuart sentia-se culpado e comprometido diante dela. Tinha conscincia de que havia despertado o amor de India e sabia que ela continuava a am-lo e, no seu ntimo, pesava-lhe o remorso de no ter procedido como um cavalheiro. Ainda gostava bastante dela e admirava-a pela finura do trato, pela cultura literria, pelas boas qualidades que possua. Mas, seiscentos diabos, era to plida, to inspida e atraente, no havia que hesitar. Uma pessoa podia prever as reaces de India, mas o mesmo no sucedia com Scarlett. E se isto, por um lado, era suficiente para levar um homem loucura, por outro no deixava de ter os seus encantos. - Nesse caso, podemos ir jantar a casa de Cade Calvert. Scarlett disse que Cathleen j regressou de Charleston. Talvez ela saiba acerca do que se passou no Forte Sumter alguns pormenores que ns ignoramos. - Duvido que Cathleen saiba o que quer que seja a esse respeito. Aposto contigo, dobrado contra singelo ' que ela no sabia que o posto era defendido por um forte e muito menos que esse forte estava repleto de yankees at ns corrermos com eles. Ela s sabe o que se refere aos bailes a que assistiu e aos namorados que arranjou. -Em todo o caso, Cathleen sabe contar as coisas com graa, e ns sempre teramos onde estar enquanto a -me no fosse para a cama. - At a est tudo muito bem. Cathleen uma rapariga simptica, tem muita piada a falar, e eu gostaria imenso de ouvir notcias de Caroline Rhett e da rapaziada de Charleston. Mas confesso que s a ideia de ficar toda uma refeio junto da madrasta dela me causa arrepios. - Isso j embirrao tua, Stuart. Ela no faz aquilo por mal. -No embirrao nenhuma. Tenho imensa pena dela, mas no se obrifado a gostar das criaturas de quem se tem pena. E ela preocupa-se tanto em nos rodear de atenes, em nos pr vontade que, quase sempre, a sua atitude acaba por produzir em ns o efeito exactamente oposto. 25 Desculpa, Brent mas aquela mulher contende-me com os nervos. E, como @ yankee, pensa que todos os habitantes do Sul so brbaros primitivos. Foi ela prpria que o disse nossa me. Tem um medo louco dos sulistas. Quando ns l vamos a casa, fica transida de pavor. D-rfle a ideia duma galinha choca empoleirada numa cadeira, com os olhos brilhantes, vazios e espavoridos, pronta a bater as asas e a bicar uma pessoa -ao primeiro gesto suspeito que faa. - Seja como @or, no tens o direito de a censurar por isso. Lembro-te do tiro que deste na perna de Cade. - Nessa altura eu estava de cabea perdida, pois de contrrio no o teria feito -redarguiu Stpart. -' E Cade no\ guardou qualquer espcie de ressentimento contra mim. E o mesmo se verificou -tanto com Cattileen, como com Raiford e o senhor Calvert. Foi s a madrasta que barafustou e se atreveu a dizerque eu era pior que um selvagem e que nenhuma pessoa decente podia viver tranquila nesta terra de brbaros. - Continuo na minha: no tens o direito de a censurar. Ela yankee e, ainda por cima no tem boas maneiras. E, vistas bem as coisas, tu alvejaste Cade, que seu enteado. -Ora, ora! Isso no era razo para me insultar! Tu no s enteado da nossa me e, no entanto, ela no barafustou quando Tony Fontaine te acertou na perna. Limitou-se a mandar chamar o velho Dr. Fontaine, para fazer o curat@vo' e_a observar que a pontaria de Tony andava muito por baixo, acrescentando que certamente era o lcool que o impedia de ser bom atirador. Tony foi aos axames, recordas-te? Os dois rapazes desataram a rir s gargalhadas. -A me um grande ponto! -exclamou Brent, afectuosamente. - Sabe fazer as coisas como deve ser e nunca nos deixa mal colocados diante de estranhos. - Pois sim, mas talvez no nos deixe muito bem vistos aos olhos do pai e das pequenas esta noite, quando chegarmos a casa - disse Stuart em tom lgubre. - Desta vez que ns podemos perder a

  • esperana de ir Europa, Brent. Lembra-te de que ela nos ameaou de no nos dar dinheiro para a viagem, caso voltssemos a ser expulsos de mais alguma Universidade. -Quero l saber disso' No perderemos grande coisa, acredita. Que haver na Europa digno de se ver, no me 26 dirs@ Tenho a certeza de que em nenhum pas de l existem coisas que ns no tenhamos aqui, em Gergia, Aposto que no possuem raparigas mais bonitas nem cavalos mais velozes do que os nossos e estou convencido de que, por muito que procurssemos, no encontraramos em parte alguma um whisky de centeio que se compare ao que o nosso pai faz. -Ashley Wilkes afirma que na Europa h paisagens maravilhosas e que a msica esplndida. AshIey veio encantado. No fala noutra coisa, -No admira. Tu bem sabes como os Wilkes so. Adoram a msica, a leitura, as paisagens, A nossa me explicou-me um dia que por causa do av deles ter nascido e vivido muitos anos em Virgnia. Em Virginia que as pessoas ligam grande importncia a essas coisas, diz ela. -Tanto melhor para eles. Dem-me um bom cavalo para montar, uma garrafa de aguardente velha para beber, uma moa bonita para namorar e outra para passar uns momentos agradveis, e a Europa que v para o diabo. Que podemos ns perder em no fazermos a viagem? Supe que estvamos na Europa, com a guerra prestes a rebentar aqui. No conseguiramos chegar a tempo. E eu prefiro uma guerra a todas as viagens possveis e imaginveis. - Tambm eu... Olha, Brent! J sei onde havemos de ir jantar. Podemos atravessar o pantano e ir procurar Able Wynder para lhe darmos a notcia de que estamos de volta os trs e queremos recomear com a instruo. - Boa ideia! - exclamou Brent, entusiasmado. - Ficaremos a conhecer as ltimas novidades acerca do Regimento e saberemos enfim qual a cor que acabaram por escolher para os uniformes. -Se for a mesma cor da farda dos zuavos, garanto-te que no me alistarei. At nem me sentiria bem, com aqueles horrveis cales vermelhos enfiados nas pernas. Parecem-se com as calas de flanela que as mulheres usam. -Sinhs vo a casa de sinh Wynder? Porque si vo no contem com jant-disse Jeems.-O cozinheiro dele t morto e inda no compr outro. Tem preta agora a cozi~ nh e ngos todo diz que no h pi nas redondeza. - Santo Deus! E por que foi que o senhor Wynder no comprou outro cozinheiro? - Onde branco pobre ir arranj dinheiro p'ra compr escravo? Sinh Wynder nunca teve mais de quatro h90. 27 A voz 4e Jeems traduzia franco desprezo. A situao dele era firme, pois que os Tarletons. possuam uma centena de pretos, e, como todos os escravos dos fazendeiros ricos, encarava com certo desdm os lavradores menos abastados ' que no podiam ter ao seu servio mais do que meia dzia,deles. -Esse atrevimento vai sair-te caro-ripostou Stuart, em tom feroz. 'No permito que te refiras a Able Wynder dessa maneira. ]@ pobre, sem dvida, mas, isso no obsta a que seja merecedor da nossa admirao e estima. E eu no estou disposto a admitir que algum, seja de que raa for, lhe falte ao respeito. No h nesta comarca outro homem que lhe chegue aos calcanhares; de contrrio, como se explicaria que lhe tivessem dado o posto de alferes? - Nunca compreend isso muito bem - retrucou Jeems, sem se importar com a expresso ameaadora do amo. - Quanto a mim, eles no devia escolh ofici seno das famlia rica, em lug de gente do panto. - J te disse que Able Wynder pessoa respeitvel. Ou querers tu compa -lo aos Slatterys? Esses sim, que so ordinrios. Able t apenas contra si o, f@cto de no ser rico. P, um Iavrado ouco endinheirado e as suas propriedades so pobres, mas, se os rapazes o julgaram suficientemente

  • digno para o nomearem alferes, nenhum preto tem o direito de o desconiderar. A tropa sabe muito bem o que faz. 0 corpo de cavalaria tinha sido criado trs meses antes, no prprio dia em que Gergia se separara da Unio. Desde ento , todos os recrutas aguardavam impacientemente o "-",Meo das hostilidades. Embora no faltassem, 'sugestes, oR dirigentes do movimento ainda no tinham assentado numa designao a dar ao grupo de voluntrios j alistados. Todas as pessoas emitiam uma opinio muito prpria sobre o assunto, opinio essa que teimavam em fazer prevalecer sobre as dos outros, e o mesmo se verificava no que dizia respeito cor e ao feitio dos uniformes. "Gatos Selvagens de Clayton", "Homens de Fogo", "Hussardos de Gergia do Norte", "Zuavos", "Fuzileiros do lnterior" (embora as tropas fossem armadas de pistolas sabres e facas de mato, mas no de fuzis), "Voluntrios de iayton", "Tonantes e Audazes", "Os Sempre Prontos", eram as designaes que tinham mais partidrios. Enquanto se aguardava a soluo do caso, toda a gente se referia milcia pela designao

  • Estes ltimos estavam to desejosos de combater os yonkees como os seus vizinhos ricos 'caso rompesse a, guerra; mas havia que atender ao delicado aspecto financeiro da questo. Eram poucos os pequenos lavradores que tinham cavalos, pois quase todos eles cultivavam as suas propriedades com o auxlio de muares. Raramente possuam mais do que quatro e, como este nmero s6 muito dificilmente, lhes bastava, no poderiam dispensar nenhuma, mesmo que o Regimento as aceitasse, -hiptese que estava completa, mente posta---de parte. Quanto aos brancos pobres, j se dariam por--muito felizes se tivessem uma mula s que fosse. Os habitantes dos bosques e os caadores dos pntanos, esses no possuam nem cavalos nem muares. Viviam ,exclusivamente do produto das suas leiras e da caa nos charcos, baseando as transaces no sistema de trocas, pelo que s excepcionalmente chegavam a ter cinco dlares em caixa ao fim do ano. Nestas condies, tanto os cavalos como os uniformes estavam fora do seu alcance, Apesar dis@o, mostravam-se to orgulhosos e altivos na sua pobreza como os fazendeiros na sua opulncia, @e jamais aceitariam dos vizinhos ricos fosse o que fosse que pudesse cheirar- ,lhes a esipola. Foi por este motivo que, para dotar o Regirnento, de tudo o que precisava sem ferir susceptibilidades, o pai de Scarlett, juntamente com John Wilkes, Buck Munroe, Jim Tarleton e Hugh Calvert, ou seja a totalidade dos grandes fazendeiros da comarca, com a excepo nica de Angus Mac Intosli, contriburam com fundos para completar o equipamento ndividua -1 @_ colectivo. Por fim ficou assente que cada fazendeiro pagaria o equipamento dos filhos e de certo nmero de outros rapazes, e que seriam tomadas as providncias necessrias no sentido de permitir aos recrutas mais pobres aceitarem cavalos e equipagem, sem se sentirem feridos no seu amor-prprio. 30 Os recrutas reuniam-se duas vezes por semana em Jonesboro, onde recebiam instruo e suplicavam a Deus o rompimento das hostilidades. No obstante os esforos dos diri~ gentes, havia muitos homens que ainda no dispunham de montada. No entanto, aqueles a quem j tinham sido distribudos cavalos executavam nos terrenos atrs do tribunal movimentos confusos que a seus olhos constituam autnticas manobras de cavalaria, levantando nuvens de poeira, enrouquecendo de tanto gritar, brandindo @abres antigos, dos tempos da Revoluo, retirados das paredes dos sales. Os que ainda no haviam conseguido cavalos passavam as horas de instruo sentados na beira do passeio fronteiro aos Armazns Bullard entretendo-se a observar os seus camaradas a mascar t@-baco e a contar anedotas, quando no organizavam concursos de tiro ao alvo. Nao havia necessidade de ensinar os recrutas a atirar. A maioria dos sulistas tinha nascido com uma arma na mo e o gnero de vida que levavam, em caadas constantes, fazia deles belssimos atiradores, Dos solares dos fazendeiros e das cabanas dos caadores, os recrutas levavam para aquelas reunies armas de todas as espcies e feitios: velhas espingardas de caa, de cano longo, que tinham sido estreadas contra os Alleghenes, bacamartes antigos, de carregar pela boca, que tinham abatido mais de um ndio quando Gerga ensaiava ainda os primeiros passos, pistolas de aro, usadas em 1812 nas guerras do Mxico e na luta contra os Semnolas, pistolas de duelo, com guarnies de prata, revlveres, caadeiras e carabinas de fabrico ingls, novinhas em folha, com a coronha reluzente, de madeira preciosa. Os exerccios militares terminavam sempre nos botequins de Jonesboro. E, ao cair da noite ' eram tantas as rixas entre os recrutas que os oficiais se viam em palpos de aranha para evitar que houvesse mortos e feridos antes que a guerra estalasse. Foi durante uma dessas contendas que Stuart Tarleton atingiu Calvert e Tony Fontaine feriu Brent. Os gmeos tinham sido corridos da Universidade de Virgnia havia pouco tempo e estavam em casa quando o Regimento foi criado. Alistaram-se, entusiasmados, mas, aps o incidente do tiroteio ocorrido em Jonesboro dois meses antes a me tinha-os expedido para a Universidade Estadual, com ordens formais para se absterem de proezas susceptveis de provocar nova expulso. Durante esse Pe- 31

  • rodo, os dois irmos tinham sentido profundamente o seu afastamento ao verem-se privados das alegrias da instruO militar. Seria de bom grado que ambos interromperiam os estudos contanto que os deixassem galopar, gritar e dar tiros n@ companhia dos seus camaradas do Regimento. - Podemos ir pelO, atalho - sugeriu Brent. - Atravessaremos o charco do senhor O'Hara e o prado dos Fontaineg e chegaremos a casa de Able antes de escurecer. - Ns no vai ach nada p'ra com, sino cueio e ligume - protestou Jeems. 1 -Mas tu nem mesmo os legumes provars @ resmungou Stuart. -Vais voltar para casa imediatamente a f im de prevenir a minha me de que no jantaremos em casa. - No, isso no! - implorou Jeems, alarmado. - No quero i, sinh! Tambm no gost de apanh chicotadas nos lombo.. Sinhora vai logo pergunt como que deixei meus amos se expulso. Depois h-de pergunt porque que no levei sinh p'ra casa p'ra ela d tambm chicotadas nas costas. Depois, vai atir-se a mim como pata a carac... e ngo pag tudo, como da outra vez. Se sinh no me lev a casa de sinhora Wynder, durmo toda a noite nos mato. No quero apanh tunda de sinhora quando est de mau hum. Os gmeos encararam o escravo, perplexos e indignados. - Este parvo muito capaz de se deixar apanhar pelas patrulhas e ento ningum poder aturar a me nestas semanas mais prximas. Talvez no queiras crer, mas no h nada que mais me aborrea do que estes selvagens. s vezes penso que os abolicionistas esto dentro da razo. - Seja como for, no acho justo expornios Jeems a uma sorte que ns prprios desejamos evitar. Temos de lev-lo connosc o, Mas ouve bem o que eu te digo, negro idiota. Se tu fores armar-te em fidalgo para junto dos pretos do senhor Wynder e te puseres para l com insinuaes de que ns ternos todos os dias, em nossa casa, galinha assada e presunto, e eles no comem outra coisa seno coelho e legumes, j sabes. Contarei tudo senhora. E, para cas- tigo, no te de@ixaremos ir guerra connosco. - Arm em fidalgQ? Arm em fidalgo diante de ngos barato? No, sinh; sou bem educado. Sinhora tambm insin a mim p'ra t boas maneira. - Pois olha que no conseguiu grande coisa COM ne- nhum de ns os trs, - observou Stuart. - Vamos -embora. 32 0 rapaz obrigou o ginete a dar meia volta e aplicou-lhe as esporas nos flancos, levando-o a transpor sem dificuldade a cerca de madeira que o separava da'plantao de Gerald O'Hara. Brent imitou o irmo, seguido por Jeems, que se agarrou desesperadamente crina e ao selim. Jeems detestava saltar barreiras, mas j tinha pulado outras bastante mais altas do que aquela, no querendo renunciar companhia dos gmeos. Galoparam atravs do terreno rasgado pelos sulcos avermelhados recentemente abertos pelo arado, descendo a colina em direco ao rio, sobre o qual j tinham cado as primeiras sombras da noite. A certa altura, Brent gritou para o irmo: -Ouve, Stuart! No te parece que Scarlett devia ter-nos convidado para jantar? -Eu sempre esperei que ela o fizesse- respondeu Stuart.-Por que diabo seria que... 2 Assim que os gmeos se afastaram, deixando-a szinha, de p, sob a alpendre de Tara, e o tropeldos cavalos se desvaneceu ao longe, Scarlett voltou para a sua cadeira, como uma sonmbula. Tinha as feies endurecidas, como se estivesse a sentir-se mal, e doam-lhe bastante os msculos da face, que contrara em sorrisos forados para impedir os dois irmos de adivinharem o seu segredo. Deixou-se cair na cadeira com ar cansado, sentand(>-se sobre uma das pernas. 0 corao como que lhe inchara no peito, a tal ponto que parecia prestes a estalar de dor, palpitando desordena- damente, em rpidas pulsaes irregulares. As mos dela estavam frias como gelo e oprimia-a um augrio de catstrofe, numa angstia indizvel. 0 seu rosto denotava um misto de intenso sofrimento e doloroso espanto como o de uma criana mimada, que sempre tinha visto @atisfeito os seus desejos e caprichos e que, pela primeira vez, se via face a face com as contrariedades da vida.

  • Ashley ia casar com Melanie Hamilton! Oli, no podia ser verdade! Os gmeos estavam enganados. Aquilo no passava de mais uma partida do gnero, que eles tanto gostavam de pregar. Asliley no gostava de 3 - Vento Levou - 1 33 Melanie. Era impossvel. Ningum poderia gostar de uma lambisgia como Melanie. Scarlett recordou com desdm a figura magrizela e infantil de Melanie, com o seu rosto em forma de corao, to destitudo de atractivos que chegava a ser quase grosseiro. E Ashley no a via h tanto tempo!... No tinha ido a Atlanta mais do que duas vezes, depois da festa que havia dado nos Doze Carvalhos no ano anterior. No, Ashley no podia estar apaixonado por Melanie, porque... porque estava apaixonado Dor ela. Tinha a certeza disso. Ela, Scarlett, era a nica mulher que Asliley amav&... sabia-o muitssimo bem. Scarlett ouviu os passos pesados da ama preta atravessando o vestbulo. Endireitou-se na cadeira, cor@igindo a posio da perna, e tentou imprimir ao rosto uma expresso mais calma, Precisava de evitar a todo o custo que Bab desconfiasse de alguma coisa. A pobre negra convencera-se de que os O'Haras lhe pertenciam de corpo e alma e julgava-se no direito de conhecer todos os seus segredos. Assim qtTe pressentia a existncia de um mistrio punha-se imediatamente em campo e no descansava enquanto no descobria o que, se estava passando ou o que havia acontecido. Scarlett sabia por experincia prpria que, se a velha ama no visse a sua curiosidade prontamente satisfeita, iria confiar as suspeitas a Ellen e ento ela no teria outro remdio seno contar tudo me ou inventar pressa qualquer mentira plausvel para lhe dizer. Bab emergiu do vestbulo. Era uma preta retinta, obesa, j idosa, de tipo genuinamente africano, tez luzidia olhos pequeninos e maliciosos como os dum elefante. De@licada aos O'Haras at ltima gota do seu sangue, constItua o principal, esteio de Ellen, o desespero de Scarlett e das suas duas irms e o terror dos outros criados da casa. No obstante pertencer raa negra, tinha um cdigo moral e uma noo de respeitabilidade que nada ficavam a dever aos dos senhores. Comeara como criada de quarto de Solange Robillard, me de Ellen O'Hara, francesa de nariz afilado, de feitio difcil e ndole reservada, que infligia ' tanto aos filhos como aos criados, o justo castigo por todo e qualquer atropelo etiqueta. Mais tarde, servira de ama a, Ellen, que nunca tnais abandonou, nem sequer quando ela se casou e veio fixar-se na zona mais acidentada da comarca de Clayton. Exigia das pessoas que estimava uma perfeio absoluta e, como adorava Scarlett e tinha um orgulho ilimitado 34 nela, passava prticamente todo o seu tempo a repreend-la por isto e por aquilo. -Os gemes j foi emb? Porqu no fez eles fic para jant, minina Scarlett? J mandei Pork p mais dois tai na mesa para eles. Que maneiras s essa? - J estava to farta de os ouvir falar em guerra que no conseguiria atur-los durante o jantar, tanto mais que o pap no deixaria de fazer coro com eles e de lhes apontar outra vez todos os defeitos do senhor LincoIn. - Minina no tem mais educao que ngo dos campo e sinhora e eu trabai para nada porque minina no aprende. Inda por cima t aqui fora sem xale com a cacimba da noite caindo! Quantas vezes j ouviu a mim fal nas febre que d na gente quando se fica ao relento com os ombo destapados? E' mi minina vi p'ra dento, j. Scarlett voltou-se com uma negligncia estudada, satisfeita ao ver que a ama estava demasiadamente preocupada com a questo do xaile para reparar na sua fisionomia. -Ainda cedo. Quero ficar aqui para ver o pr-do-Sol. 15, to lindo! Vai buscar o meu xaile depressa, sim? 0 pap deve estar a chegar e eu esperarei por ele aqui. - Minina t com voz rouca e vai se constip - resmungou a negra, com desconfiana.

  • - No digas tolices - redarguiu a rapariga impaciente. - Vai buscar-me o xaile, se fazes favor. A velha ama afastou-se, bamboleando as ancas largas, e desapareceu no vestbulo, Scarlett ouviu-a chamar, em voz baixa, a criada preta que se encontrav&ao cimo das escadas. - Rosa! D xale de minina Searlett. - E, momentos depois, acrescentou, erguendo a voz: - No serve para nada, esta nga. T sempre nos lug onde no precisa. Agora tenho de subi para i busc! Scarlett ouviu os degraus da escada gemerem sob o peso da ama e levantou-se de mansinho. Quando ela voltasse, decerto prosseguiria o sermo j iniciado sobre a ma falta de hospitalidade. E Scarlett, com o corao a estalar de dor, no se sentia em condies de suportar a arenga da velha preta. Hesitou por instantes perguntando a si prpria onde refugiar-i@e at que a m@goa intensa que a atormentava se desvanecesse um i)ouco. De sbito ' ocorreu-lhe uma ideia que fez raiar no seu esprito uma plida esperana. 0 pai dela tinha ida a cavalo aos Doze Carvalhos, designao por que era conhecida a fazenda dos Wilkes, na 35 @o de comprar Dilcey, a gorda mulherdo seu criado nten, Dilcey era quem. dirigia o servio feminino e l tamPork as de parteira; mais delicad , bm .MpenhaVa as funes, tinha dado desde que se casara, seis meses atrs Pork no ,o ao amo @@indo-Il:'e: que COMum momente, de descaw, a pra,sise Dilcey, para que os dois fIc@s@em a viver na rtIC5111 nessa tarde, com a pacincia completamente plantao. E, dirigira-se a esgotada, Gerald O'Hara montara a cavalo e dc>s Wilkes, a fim de tentar adquirir a es@crava. casa Ilgum, f unda- (LO pap decerto saber dizer-me se tem 1 a'absurda que grneos Ine contaram", Mento a hist6r@ do ne' "Ain,da que ele no tivesse ouVI pensou Scarlett. Leixaria de notar a natural nhuma aluso directa no 4d excitao dos rtiernbro@ da famlia ' nem lhe passaria des- rada no ambiente Se puder percebida a modilicao opei talvez Consiga escQb-cir a Ialar-lhe a s,6s antes de jantar, au gosto dos 01 tudo uma brincadeira de m verdade -que f dois Manos Tarletons)@. se queria conversar com Gerald devia estar a e---hegar 'e or que tinha -ret@s o Melh salvo de ouvidos 1 da e le a , encontro. Esper-lo-ia ao princpio fazer era ir-lhe ao a Desceu sem ato onde a estY ada se b!furcav@ alameda, no Po' utelosamente Por rudo os degraus da entrada, olhando ca .t ama no estaria a esprei cima do ombro paraver se a rdo-sp cado atravs das vidraas do , lMo andaT, Tei , certffi. a to negro, coroado pela densa carapinh de que o largo ros emboscado atrs das cortinas branca, no se encontrava janelas, Scarlett arregaou ondulantes que.guarneciam as a em direco levemente a saia -verde de balo e correi os sapatinhos alameda, o mais depressa que lhe permitiam de fitas. 3,Mbos os lados do caminhO Os cedros que cresciam de ' s formando um. drI@@hs entrelaavam os ramo , ta na calado de pe k se -viu envol longo tnel, verde e sombrio Assim que os das rvores, que e-umbra projectada Pelos b@aos nodos Scarlettabrandou o Passo, of e-

  • P obre a sua ca @ le casa. Estav se erguiam s -Ia @ < --- de que, j no podeTam "v4@ Lpertado, Mal uOdIa ta tilho to o , @@ id ue com o espa ) mas P gante, pois q inuou a avanar < idade re,gPirar; n? en6nto, cOlIlt outra extrem 1 No tardou a, alcanar a guiu a mente possive . @ar na estrada mas prosse da alameda e a desenibo( interps' entre ela e a Casa marcha at dobrar a curva, que um denso grupo de rvores. 36 Corada e arquejante, sentou~se num cepo, resolvida a aguardar a chegada do pai. J passava um pouco da hora a que Gerald O'Hara costumava voltar paracasa, mas Scarlett deu graas a Deus pela demora. Assim, teria tempo para restabelecer o ritmo normal da respirao e compor a expresso fisionmica; precisava de evitar que o pai suspeitas-se de qualquer coisa. Esperava a cada momento ouvir o tropel das ferraduras de um cavalo subindo a encostada colina num galope desenfreado, e ver recortar-se contra o fundo azul do cu a silhueta da montada e do cavaleiro. Mas os minutos iam passando sem que Gerald aparecesse. Scarlett perscrutou as trevas que principiavam a descer sobre a estrada. De novo o seu corao comeou a sobressaltar-se, "Oh, no pode ser verdade!" pensava ela. "Por que no ter o pai voltado ainda?" Percorreu atentamente com os olhos a fita coleante da estrada, a cujo leito argiloso a chuva tinha dado uma tonalidade cor de sangue. Quando a perdeu de vista,, continuou a segui-Ia mentalmente, descendo a vertente do outeiro at margem do rio Flint, que corria, preguioso, ao fundo, atravessando o pntano, e subindo ao topo do cerro onde morava AshIey. E, para ela, a estrada acabava ali, no ponto em que Astiley vivia e se elevava a majestosa residncia de colunas brancas, que dominava a colina como um templo grego. "Oh! Ashley! Ashley!" pensava Scarlett enquanto o ' frmito des@ corao se lhe agitava, dentro do peito, num compassado. Conseguira recalcar em parte a sensaao glacial de surpresa e de angstia que a oprimia desde o momento em que os gmeos Tarletons lhe haviam dado a terrvel nova e em seu lugar surgira a febre que h dois anos a vinha queimando como um fogo lento e pertinaz, cada vez mais intenso. Pareca-lhe estranho que AshIey nunca a houvesse impressionado tanto como agora, desde que o seu e-orao desabrochara para o amor. Durante longos anos, vira-o chegar e partir, no uma nem duas vezes 'mas centenas de vezes, e, todavia, nunca os seus olhos tinham visto nele mais do que um vizinho como qualquer outro. At que um dia, AshIey, de regresso a Clayton aps uma estadia de tr.s anos no velho continente, fora a Tara apresentar cumprimentos famlia O'Hara. Scarlett, vira-o ento com Outros 37 olhos, e, a partir dessa altura, nunca mais deixara de pensar nele. E desta forma simples o amor raiara no seu corao juvenil. Scarlett estava debruada na varanda da frente quando o avistou, subindo a cavalo a longa alameda de cedros. A@shley trajava nessa tarde um fato cinzento, de fazenda fina, e uma gravata preta que se destacava harmoniosamente sobre o peitilho da camisa, orlado de um folho estreito. E, embora j tivessem decorrido dois anos sobre esse dia memorvel, Searlett ainda se recordava dos mais pequenos pormenores relativos ao modo de trajar, dos reflexos brilhantes que o sol arrancava das botas altas, cuidadosamente engraxadas, do alfinete que ostentava na gravata, um cainafeu representando a cabea de Medusa, do largo panam que instantneamente tirou da cabea, assim que a viu. Desmontou e, atirando as rdeas a um moleque, quedou-se a olhar para ela. Os seus olhos cinzentos, sonhadores, pareceram alargar~se num sorriso 'e o sol 'radioso, como que lhe transformava a cabeleira loura num capacete de oiro reluzente. "Fez-se uma senhora durante a minha ausncia, Scarlett", dissera-lhe ele. E, subindo os degraus da entrada, pegara-lhe na mo- e

  • beijara-a. E a sua voz!... Scarlett jamais esqueceria o sobressalto que a fez estremecer quando a ouviu: uma voz bem tmbrada, pausada, musical. Desejara-o desde esse primeiro instante, com a mesma simplicidade, com a mesma naturalidade com que at ali desejara alimentos para saciar a fome, cavalos para montar, uma cama para dormir. No decurso desses dois anos, Ashley havia-a acompanhado a toda a parte, a bailes, a festas, a pescarias, aos julgamentos no tribunal de Atlanta. Contudo nunca a procurara com tanta insistncia como os gmeo@ Tarletons ou Cade Calvert, nem se mostrara to empreendedor como os dois filhos mais novos dos Fontaine.s. Apesar disso, no se passava uma semana sem que ele fosse fazer-lhe uma visita. Que Astiley nunca lhe tinha feito a corte, era certo. Scarlett, nunca, lhe notara nos olhos aquele brilho ardente que tantas vezes via dilatar as pupilas dos homens que se deixavam apaixonar por ela. E, no entanto... tinha a certeza de que AshIey a amava, No podia estar enganada. Seu instinto, mais forte do que o raciocnio, a sua experincia, fruto de uma longa prtica, dizia-lhe que ele a amava. Quantas vezes no o surpreendera a observ-la com 38 um olhar diferente do que lhe era habitual, no sonhador e distante, mas temo e trisrte, que tanto a intrigava? Era impossvel que Ashley a no amasse, Contudo, por que nunca lho teria dito? No conseguia perceber. Mas a verdade que havia muito mais coisas acerca dele que nunca lograra compreender. ' Ashl" mostrava-se sempre de uma condescendncia respeitosa, mas permanecia distante, como se vivesse noutro planeta. Ningum era capaz de lhe decifrar o pensamento e Scarlett muito menos do que qualquer outra pessoa. Numa regio em que toda a gente se apressava a manifestar as suas ideias assim que elas lhe acudiam ao esprito a reserva de AshIey tornava-se exasperante. No ficava at'@s dos outros rapazes da mesma idade no que dizia respeito aos divertimentos usuais da comarca. Caava jogava, danava e discutia poltica com a mesma facili6je que todos eles e, em equitao era,lhes muitssimo superior; apenas diferia dos restantes pelo facto de no colocar naquele gnero de actividades o objectivo e o ideal da sua vida. Por isso, era o nico moo em toda a regio que se interessava pelos livros, pela msica e pela poesia, que para ele constitula uma verdadeira paixo. Da talvez o principal motivo por que se isolava doscompanheiros, buscando, na solido da floresta ou na tranquilidade do quarto, o ambiente pr6prio para dar largas ao seu temperamento de artista. Oh, por que teria ele um cabelo to lindG, dum louro to brilhante? Por que teimaria em manter uma itude to distante e respeitosa? Por que seria s vezes to maador com os seus discursos acerca, da Europa, dos livros da msica, da poesia e de tantas outras coisas que para carlett eram letra morta... e apesar de todos estes contras, to simptico e atraente? koite aps noite, quando -ia deitar-se depois de ter passado curtas horas sentada ao lado dele na penumbra da varanda, Scarlett ficava, s voltas na cama, durante muito, tempo buscando, lenitivo na esperana de que Astiley se deciarasse no dia seguinte. Mas o dia seguinte chegava e ele vinha e ia-se embora outra vez, sem que nada acontecesse... nada a no ser o redobramento da paixo que a devorava. Scarlett, amava Ashley de todo o seu corao, desejava-O ardentemente, embora no o compreendesse. Era to natural e simples como a brisa que soprava sobre Tara, como o rio de guas barrentas que serpenteava entre as colinas 39 .ot verdejantes, e, por muitos anos que vivesse jamais lograria c@0mPre'erLder uma coisa complicada. E ago@@, pela primeira vez na sua ainda curta existncia Searlett encontrava-se em face de uma natureza cornplex@.

  • AshIey descendia de uma linhagem de indivduos que dedicavam os seus momentos de cio no a actividades insensatas, mas reflexo e concepo de estranhas fantas'as, em que no se vislumbrava o mais pequeno traO de realidade. Ashley vivia num mundo parte, interior, mais belo do. que Gergia, o, qual s com multa relutncia abandonava. Encarava a vida como um espectador sem entusiasino nem tristeza. Observava os homeng como se eles pertencessem a urna espcie desconhecida, diferente da sua, sem rnanfestaLr por eles amor nem averso. Acei:tava o Universo e o lugar que nele lhe fora reservado na medida do seu justo valor e, encolhendo os ombros, procurava refgio num mundo melhor, com 9 seus livros e a sua msica, Scarlett no sabia explicar como Ashley com uma maneira de ser to diferente da sua, pudera enieiti-la assim. 0 mistrio que envolvia a personalidade dele espicaava a sua curiosidade, corno uma porta sem chave nem fechadura. Tudo aquilo que nele no lograva compreender era como que um incentivo para o amor que lhe votava e a sua corte, to estranha, to cheia de reticncias, no fazia mais do que vincar no esprito da rapariga a ideia de o conquistar s para si. Scarlett jamais duvidara de que AshIey acabaria por pedi-Ia em casamento. Era a@nda muito jovem e vivera sempre rodeada de todas as atene@s, de forma que no conhecera nunca o travo duma derrota: E eis que, de sbito, desabava sobre ela a maior de to-das as catstrofes. AshIcy ia casar com Melanie! No, no podia ser verdade. Ainda na semana anterior, quando regressava de Fair~ hill, a cavalo, ao entardecer, ele afirmara-. "Scarlett, tenho uma coisa importante para lhe dizer, mas confesso que no sei como me exprimir". E ela baIxara, os olhos modestamente, enquanto o corao lhe galopava no peito, louco de alegria, convencda de que tinha chegado o. momento pelo qual h tantos meses suspirava. Mas AshIey apressara-se a acrescentar- "Hoje, no. J estamos quase ao p de sua casa e no haveria tempo, Oh, Scarlett, corno sou cobarde!" E, aplicando as 40 esporas aos flancos da montada, subira desfilada a vertente da colina. Sentada sobre o cepo, Scarlett meditou nestas palavras, que a haviam transportado ao stimo cu e, de repente ' viu que elas podiam ser tomadas noutro sentido muito diferente e adquirir um horrvel significado. Quem sabe se no seria o seu proximo casamento que Asliley pretendera anunciar-lhe? "Por que ser que o meu pai se demora tanto hoje?" No podia suportar por mais tempo aquela expectativa. De novo perscrutou a fita interminvel da estrada e de novo sofreu uma decepo. 0 Sol tinha desaparecido na linha do horizonte e o claro avermelhado que tingira o cu na zona do poente comeava a diluir-se em tons rse>s. 0 firmamento ia passando gradualmente de azul celeste tonalidade verde-azulado dw ovos do pintarroxo, enquanto a calma sobrenatural do crepsculo se espraiava furtivamente em torno de Scarlett. As trevas da noite comeavam a descer sobre os campos. Os sulcos rubros, abertos pelo arado, e a faixa vermelha da estrada tinham renunciado magia da sua cor sangrenta e no eram mais do que simples retalhos de terra castanha. Nas pastagens que se estendiam para l da estrada, os cavalos, as mulas e as vacas permaneciam imvQ!s, com o focinho apoiado sobre a cerca. das propriedades, aguardando o momento de regressarem aos estbulos para comerem. As sombras projectadas pelas moitas que ladea, vam os prados infundiam temor aos animais que miravam Searlett com as orelhas fitas e os olhos briffiantes de gratido, como se os tranquilizasse a sua companhia. Destacando-se sobre a misteriosa tela do lusco-fusco ' as silhuetas esguias dos pinheiros que cresciam de um e de outro lado do rio, de um verde to quente quanto luminado pelo sol, assemelhavam-se agora a gigantes negros, encarregados de dissimular as guas barrentas que desliz&vam lentamente a seus ps. Na colina que dominava a margem oposta, as alta@ chamins brancas da e-asa dos Wilkes iam-se esbatendo gradualmente na noite que tombava, perdendo-se na escurido que j envolvia em parte os vastos soutos. Apenas as luzes vacilantes e longnquas dos candeeiros pousados sobre a mesa, denunciava a existncia duma habitao naquele local. Urna brisa morna, carregada de humidade, trazia at Scarlett o delicioso perfume

  • 41 da terra lavrada de fresco e da vegetao que brotava das leiras, buscando o contacto vivificante do ar livre. 0 pr-do-Sol, a Primavera, os mantos verdejantes, o renovamento'das culturas no representavam milagre algum aos olhos de Scarlett. Eram espectculos cujos encantos ela aceitava naturalmente, como o ar que respirava e a gua que bebia., pois que a beleza sbmente a impressionava quando revestia aspecto de coisas reais e tangveis, como um rosto feminino, um cavalo ou um vestido de seda. No entanto, a penumbra serena que baixara sobre os terrenos bem tratados da vaista fazenda de Tara trouxe certa tranquilidade ao seu esprito atormentado. Inconscientemente, Scarlett amava aquela terra com todas as veras da sua alma, da mesma maneira que amava o rosto materno quando iluminado pela luz bruxuleante do candeeiro., hora da prece comum. Continuava a no distinguir vestgios de Gerald na estrada sinuosa. A velha ama j devia andar procura dela, a fim de a rebocar para casa e de censurar o seu procedimento. Enquanto investigava com o olhar a escurido que se adensava sobre, a estrada, ouviu o tropel dis@tante dum ginete, algures na pradaria, e viu as vacas e os cavalos fugirem amedrontados em todas as direces. Cortando atravs dos campos Gerald O'Hara regressava a casa num galope desenfreado.' No momento em que o avistou, vinhaele j galopando a encosta da colina, montado no seu alazo, cavalo corpulento, de peito largo e pernas finas. Ao longe, fazia lembrar um adolescente cavalgando um animal em demasia grande para o seu tamanho. Com a sua longa cabeleira encanecida flutuando ao vento., incitava com gritos e leves chicotadas o cavalo que parecia voar com a barriga rente ao solo. Mau grado a angstia que a dominava, Searlett contemplou o pai com um orgulho terno pois que Gerald O'Hara era sem dvida um excelente cav'aleiro. "Gostaria de saber por que motivo o pap se julga na obrigao de saltar as vedaes sempre que bebe demais", pensou ela. "Depois da, queda que deu, justamente neste sitio, e que teve como consequncia a fractura de uma rtula, devia mostrar-se mais prudente. E, ainda por cima, jurou mama que no voltaria a saltar". Scarlett no tinha receio nenhum do pai e sentia-se muito mais prxima dele do que das irms. Transpor 42 obstculos a cavalo, s escondidas da mulher e@tar de posse dum segredo que nem mesmo Ellen coecia, produziam em Gerald uma satisfao pueril, uma alegria maliciosa apenas comparvel ao prazer que Scarlett experimentava em ludibriar a me. Levantou-se do tronco em que estava sentada, a fim de melhor observar o pai, 0 fogoso cavalo aproximou-se da cerca, tomou balano e elevou-se no ar com a leveza dum pssaro. 0 cavaleiro soltou um grito de entusiasmo e agitou o pingalim acima da cabea, com a cabeleira branca solta ao vento. As trevas que j reinavam sob o arvoredo impediram Gerald de avist.r a filha. Assim que chegou estrada, fez estacar o ginete e ps-se a acariciar com a mo o pescoo do animal. - No h outro que te iguale, nas redondezas. Nem sequer em toda a Gergia- acrescentou, orgulhoso, falando para a montada, numa linguagem em que se notava o sotaque caracterstico da comarca de Meath, e que ainda no perdera, apesar de viver na Amrica havia trinta e nove anos. Comp4s apressadamente a cabeleira revolta., meteu a fralda da'camisa para dentro e endireitou a gravata, eufa n lhe tinha, ido parar atrs duma orelha. Scarlett sabia que o pai se entregava queles preparativos sumrios com o nico objectivo de aparecer diante da mulher com a aparncia circunspecta dum indivduo que volta tranquilamente paracasa aps a visita a um vizinho. E sabia. tambm ser aquela a melhor altura para entabular conversa com o pai, sem denunciar a verdadeira razo da, sua presena ali quela hora.

  • Soltou uma gargalhada sonora que despertou ecos adormecidos. Sucedeu precisamente o que ela esperava, Gerald, surpreendido por aquele rudo inslito, estremeceu e, ao reconhecer a filha, estampou~se-lhe no rosto uma expresso meio provocante, meio comprornetida, como uma criana apanhada em flagrante, mas que no quer dar parte de fraca. Desmontou com certa dificuldade ' devido anquilose do joelho e, passando as rdeas volta do brao, aproximou-se de Scarlett. - Com que ento, minha bisbilhoteira -disse ele, belis-cando,-Ihe a face - vieste espiar-me para depois ires contar tudo me, como a, tua irm Suellen fez, ainda no h uma semana? A voz dele, grave e levemente roufenha, exprimia ao 43 mesmo tempo irritao e meiguice. Para o arreliar, Searlett fez estalar a lngua contra os dentes enquanto lhe ajeitava a gravata, num gesto decidido, e ekielente. Sentiu no rosto o hlito quente do pai, impregnado dum forte cheiro a whisky, ao qual se juntava o aroma de hortel. Alm destes Gerald O'Hara exalava tambm certos odores [email protected] dum fazendeiro de Gergia, tais como os do taba,co mascado, do couro ensebado e de cavalos; Scarlett, associava sempre a esses cheiros a figura do seu pai e, instintivamente, gostava de os encontrar tambm em certos homens. -No, pap. Descanse que eu no sou mexeriqueira como Suellen -afirmou recuando um passo a fim de exa@minar melhor o vesturio paterno. Gerald era, baixo. No media mais do que um metro e sessenta e cinco de altura, mas tinha o trax to desenvolvido e o pescoo to grosso que, quando o viam sentado, quase todas as pessoas o julgavam mais alto do que na realidade era. 0 corpo macio apoia,va-se sobre duas pernas curtas e robustas, normalmente aprisionadas em botas de montar, do mais fino couro, e levemente arqueadas. Quase todo os homens de baixa estatura que pretendem impor-se aos outros acabam por cair no ridculo; mas assim como um galito da India se faz respeitar na capoeira, tambm com Gerald O'Hara se verificava uma circunstncia anloga, pois que a ningum ocorreria a, ideia temerria de o julgar figura ridcula. Apesar de contar j sessenta anos e de os seus cabelos ondulados estarem completamente encanecidos, o rosto dele no apresentava; rugas e os olhos, pequeninos e duros, dum azul profundo e quase transparente, conservavam a juventude eterna dum indivduo que nunca se preocupava com problen-ias mais graves do que saber quantas cartas deitar fora numa partida de poker. Encamava 0. tipo perfeito do irlands que se topava a cada passo na ptria longnqua, abandonada havia to longos anos-cara redonda, verme- lhusca, nariz curto, boca larga e agressiva. Sob a sua aparncia belicosa, Gerald O'Hara ocultava o mais terno dos coraes. No podia, Ver um escravo choramingar aps uma repreenso, por inais justa que ela tivesse sido, nem ouvir um gato miar aflitivamente ou umacriana chorar, mas horrorizava-o a ideia de que algum se apercebesse da sua fraqueza. ignorava que cinco minutos de con- 44 versa com ele eram mais do que suficientes para uma pessoa lhe adivinhar a natureza bondosa. 0 seu amor-prprio sofreria rude choque se um dia viesse a descobrir o facto, pois que lhe era grato pensar que, quando berrava uma orem com a sua voz tontruante, toda a gente tremia e se apressava a obedecer. Nunca lhe passara pela cabea a ideia de que a nica voz que em Tara se fazia prontamente obedecer era a voz suave de Ellen. E esse segredo jamais ele a descobriria porque, desde a mulher ao mais humilde do@g trabalhadores, todos conspiravam tacitamente para o deixarem viver na iluso de que a sua palavra era lei. Quem menos se deixava, impressionar com os rompantes e os gritos estrondosos de Gerald era Scarlett, a mais velha das trs filhas. A partir do momento. em que se compenetrara de que j no lhe restava possibilidades de gubstituir por outros filhos vares os trs rapazes que dormiam o sono

  • eterno no cemitrio da famlia Gerald tinha@se habituado a tratar Scarlett como se foss@ um homem, coisa que a ela agradava imenso. Scarlett, era mais parecida com o pai do que as irms, Carreen e Suellen. A,primeira, cujo, nome verdadeiro era Caroline Irene, possula constituio mdia e esprito sonhador; a segunda, baptizada com o nome de Susan Elinor, tinha, a mania da elegncia e das boas maneiras. Scarlett e o pai encontravam~se coligados por um pacto de silncio. Se Gerald surpreendia a filha a. saltar uma vedao a fim de evitar a volta dum quilmetro para chegar a determinado local, ou se a descobria a uma hora inconveniente nos degraus da entrada a namorar algum dos seus inmeros pretendentes ' encarregava-se ele prprio de a admoestar severamente, nunca dizendo nada nem a Ellen nem velha ama. E, quando Scarlett o via transformar os terrenos de cultivo num campo de obstculos, aps a promessa solene que tinha feito mulher, ou Por intermdio, das comadres da terra vinha a saber o montante exacto das suas perdas ao poker, impunha-se a si prpria a obrigao de guardar segredo, ao contrrio do que se verificava com Suellen, artista consumada no captulo das inconvenincias premeditadas. Tanto Scarlett como o pai partilhavam da opinio de que levantar estas que8tes em frente de Ellen seria mago-la profundamente e por nada deste mundo eles queriam causar-lhe desgokst". Scarlett, examinou o pai luz frouxa -do dia que expi- 45 rava e, sem saber porqu, sentiu-se reconfortada. na sua presena. Havia em Gerald O'Hara algo de primitivo e rude -que lhe agradava. Como era desprovida de qualquer sentido crtico, estava longe de atribuir o facto afinidade existente entre " respectivas naturezas, pois que, at certo ponto, ambos possuam as mesmas qualidades, apesar dos porfiados esforos que Ellen e a ama tinham feito para as abalar, no caso de Scarlett. - Agora j est mais apresentvel - disse ela - e, a menos que v gabar-se, ningum suspeitar da proeza que acaba de cometer. Mas tenho a impresso de que, depois de ter quebrado o joelho, no ano passado, ao saltar aquela vedao... -Ora a es@t! S me faltava mais esta, que a minha prpria filha viesse ensinar-me aquilo que eu no devo fazer!-exclamou, beliscarido-lhe a face ' outra vez. -Se eu partir a espinha, isso comigo! E, j agora, quero que me expliques uma coisa, minha atrevida: Que andas tu a fazer por aqui, sem xaile, a uma hora destas? Vendo naquela pergunta um pretexto para desviar o rumo da conversa, Scarlett enfiou o brao no do pai e respondeu: , -Estava sua espera. No fazia ideia de que pudesse vir to tarde. Queria simplesmente saber se sempre comprou Dilcey, -Pois comprei, por um preo fabuloso, deixa-me dizer-te. E tambm comprei Prissy, a filha dela. John Wilkes estava disposto a oferecer-ma-s, mas eu no quero que pensem que Gerald O'Hara se aproveita da-s, suas amizades para explorar o prximo. Obriguei-o a aceitar trezentos dlares pelas duas. -Meu Deus! Trezentos dlares! E para mais o pap no tinha necessidade nenhuma de comprar Prissy. -Pronto! L est a iWlfiha filha outra vez a criticar as aces do pai - repontou Gerald, sem convico.. - Prissy uma... -Eu conheo-a muito bem. P, uma criatura estpida e preguiosa -atalhou Scarlett, no se deixando intimidar pelo clamor paterno. -E a nica razo por que o pai a comprou foi por que Dilcey lho pediu, com certeza. Como sempre acontecia quando era apanhado em falso, dando provas da sua extrema bondade, Gerald ficou emba- 46 raado. E a filha, ao notax a sua atrapalhao, soltou uma risada alegre.

  • -E depois, que mal tem isso? De que nos adiantaria comprarmos Dilcey e deixarmos l a filha? No nos faltariam choraminguices em casa. Mas est,% histria serviu-me de emenda. Nunca mais permitirei que um preto meu se " com uma escrava de outro fazendeiro. A brincadeira saiu-me cara. Vamos andando, filha. J so mais do que horas. As trevas adensavamse cada vez mais. Os ltimos reflexos esverdeados haviam desaparecido do cu e a brisa ,tpida, primaveril, comeava a arrefecer. Mas Scarlett ~rdava o passo, perguntando a si prpria como aflorar o assunto que a levara ao encontro do pai, sem que este suspeitasse das suas intenes. Era um problema difcil pois que Scarlett no primava pela subtileza e Gerald ' que conhecia a filha to bem com se conhecia a si prprio, descortinava,os pobres subterfgios a que ela recorria com a mesma facilidade com que a rapariga descortinava os seus, por uma razo recproca. E, como ambos careciam da mais elementar parcela de tacto, desmasicaravam-se mutuamente, com a maior sem-cerimnia. -Como vo todos por l, nos Doze Carvalhos? - Como de costume. Cade Calvert apareceu no momento em que eu acabava de efectuar a transaco e depois fomos sentar-nos os trs na varanda. Tommos ponche e aproveitmos a oportunidade para conversarmos um pouco. Cade tinha chegado de Atlanta nessa mesma tarde e contou-nos que a populao de l se encontra em completa eferves@ cncia com a ideia da guerra... Searlett suspirou. Se' por infelicidade, o pai comeasse a dissertar acerca das possibilidades dum conflito e do problema da Secesso, no se calaria naquelas duas horas mais prximas. Para evitar que tal acontecesse, ela de&viou bruscamente o rumo da conversa. -Falaram alguma coisa a respeito do piquenique de amanh? -Agora que me perguntas, creio que sim, que falaram. Aquela pequena muito simptica que esteve c no ano passado... no me recordo do nome dela... Mas tu sabes quem , a, prima de Ashley... uma Hamilton, suponho... Exactamente Melanie Hamilton. Ela e o irmo chegaram hoje, de Atla@ta, e... 47 - Ah, ela j chegou?! -Pois j. n uma rapariga muito delicada, muito metida consigo. Nunca ouvi aquela alma dizer uma palavra a seu respeito. Assim que todas as mulheres deviam ser. Vamo,andando, filha; no te deixes ficar para trs, seno a tua me ainda vem por a nossa procura. A notcia da chegada de Melanie abalou rudemente o corao de Scarlett. Alimentara a esperana absurda de que qualquer incidente inesperado retivesse Melan@e Ilamilton em Atlanta, onde vivia. E, ao verificar que o seu prprio pai manifestava to grande apreo pelo carcter afvel e tranquilo de Melanie, to @ffi1erente do seu, decidiu queimar os ltimos cartuchos. -E AshIey? Tambm l estava? - Tambm. Gerald largou o brao da filha e, voltando-se para ela, fitou-a a direito, nos olhos. - Se foi para saberes isso que vieste ao meu encontro, por que no mo disseste abertarn@ente, em vez de andares a brincar s -escondidas e~go? Scarlett, no encontrou resposta para lhe dar. Sentiu o sangue aflur-lhe ao rosto e um calor intenso, queimar-lhe as faces. -Vamos, desembucha, Scarlett continuava a guardar silncio. Por sua vontade, naquele momento, teria agredido o pai, para o obrigar a calar-se. - AshIey estava em casa e tanto ele corno as irms me perguntaram por ti. AshIey disse-me que estavam todos a contar contigo para a festa de amanh. Quanto a mim, estou convencido de que nada te impedir de ir-declarou o pai, com um sorriso irnico. -E agora, vejamos: Que h entre ti e Ashley? , -No h nada-respondeu Scarlett, puxando o pai pelo brao.-Venha, papa.

  • - Inverteram-se os papis, plo que vejo. Agora s tu que ests com a pressa toda. Pois eu no sairei daqui enquanto no me disseres o que se passa. Quero saber aquilo com que posso contar. De facto, tu tens andado esquisita, ltimamente. Ele fez-te namoro? Falou-te em casamento? - No - respondeu Scarlett, secamente. - Nem falar - asseverou Gerald. Searlett parecia prestes a explodir, num assomo de 48 fria, mas o pai acalmou-a, erguendo o brao num gesto conciliatrio. -Poupa a saliva, filha. John Wilkes disse-me, esta tarde, confidencialmente, que AshIey desposar Melanie, num futuro, prximo, 0 casamento ser anunciado amanh. A mo de Scarlett caiu, inerte. Por consequncia, sempr,e era verdade! Sentiu o -corao dilacerado por uma dor aguda, como se um animal feroz nele houvesse cravado as suas garras aceradas. Gerald observava a filha com um olhar em que se vislumbrava uma pontinha de tristeza e, ao mesmo tempo, um leve aborrecimento, por se ver em face de problema que ele noestava altura de solucionar. Adorava a filha, mas no lhe agradava nada que ela o colocasse em obrigao de lhe resolver os problemas. Ellen que @@abia encontrar resposta para tudo. Scarlett teria feito melhor em confiar me as suas preocupaes. - Com que ento a menina andou a dar espectculo? - prosseguiu, erguendo a voz, como era seu costume nos momentos deexcitao. - Deixaste que esse vizinho fizesse troa de ti, e de ns, No tiveste vergonha de correr atrs dum homem que no te amava, tu que podias e podes aspirar aos melhores partidos da regio? 0 despeito e o amor-prprio, suavizaram um pouco o sofrimento de Scarlett. - Eu no corri atrs dele, pap. Apenas... apenas fiquei surpreendida. -Mentes-ripostou Gerald. E, inclinando-se sobre o rosto angustiado da filha, acrescentou, num impulso de sbita ternura: - Tenho imensa pena, minha querida. Mas kWa-te de que s ainda uma criana e de que no faltam rapazes por a. - A mam tinha s quinze anos quando casou consigo e eu j fiz dezasseis-ripostou ela, com voz sumida. -A tua me era diferente. Nunca foi to leviana como tu. Vamos, filha, preciso ter coragem. Para a semana que vem, irs passar uns dias com a tua tia Eulalie, em Charleston, e com a barafunda que por l vai, devido aos acontecinientos ocorridos no Forte Sumter, vers que depressa esqueces AshIey. "Toma-me por uma criana", pensou Scarlett, sufocada pela mgoa e pelo furor. "Est convencido de que bastar oferecer-me um brinquedo para eu olvidar o golpe que acabo de receber". 4 - Vento Levou - 1 49 - Escusas de fazer essa cara, minha filha -continuou Gerald.-Se tu tivesses uma centelha de juzo, h muito que estarias casada com Stuart ou com Brent, Tarleton. Pensa nisso, minha querida. Casa-te com um dos gmeos e as duas fazendas ficaro numa s famlia. Mandaremos construir, Jim Tarleton e eu, uma belssima casa para vocs viverem, no meio do pinhal que fica... - Por favor, no continue a tratar-me como a uma criana! - exclamou Scarlett. - No tenciono ir para Charleston, no desejo casar com nenhum dos gmeos, nem to,-pouco me interessa que mande construir uma casa no meio do pinhal, seja ela para quem for. 0 que eu quero Calou-se bruscamente mas j era tarde. Gerald adivinhou-lhe @ pensamento e, numa voz que de sbito se tornou calma, disse pausadamente, como se estivesse a ir buscar as palavras a um recndito do pensa, mento, de que raras vezes se utilizava: -.0 que tu queres Ashley, @nas no o ters. E, mesmo que ele viesse pedir-me a tua mo, seria com a maior das apreenses que eu daria, o meu consentimento, pois a amizade, profunda que me

  • liga a John Wilkes no me permitiria uma recusa. -E, ao reparar no olhar espantado com que Scarlett o fitava, concluiu: -Quero que a minha filha seja feliz e acredita que o no serias com ele. - Seria, sim, pap! Tenho a certeza! -No digas isso, filha. S pode haver felicidade num casamento quando entre o marido e a mulher existem afinidades. Scarlett sentiu de repente vontade de lhe gritar: "Mas o pap. e a mam foram felizes e, todavia, no h afinidade alguma entre os dois". Conteve-se, porm, com receio de que o pai a esbofeteasse pela sua impertinncia. -A nossa famlia muito diferente da deles - prosseguiu Gerald lentamente, continuando a escolher as pala. vras. -Os WiU@es so diferentes de todos os nossos vizinhos... de todas--as famlias que conheo. So criaturas esquisitas. Mais vale que continuem a casar-se com os primos e com as primas, pois que, dessa maneira, conservaro toda a esquisitice na famlia. - Mas Astiley no ... - Caluda, menina! Eu no disse nada contra o rapaz, tanto mais que simpatizo bastante com ele. Esquisitice no tem nada que ver com loucura. A dele nem de longe se com- 50 para com as dos Calverts que so capazes de apostar toda a sua riqueza num cavaI@, nem com as dos Tarletons, que ficam sempre a cair de bbados quando tomam um copo de vinho a mais, nem com as dos Fontaines, que at pare- cem feras e no hesitam em matar um homem por qualquer afronta imaginria. Esse gnero de esquisitice fcil de compreender e estou certo de que, sem a ajuda de Deus, Gerald O'Hara reuniria na sua humilde pessoa todos esses defeitos. Tambm no quero dizer que Asliley fosse pessoa para fugir com outra mulher, uma vez casado contigo, nem para te bater. No entanto, talvez fosses mais feliz se ele procedesse assim, pois que sempre compreenderias a sua atitude nesse caso. A esquisitice de Asliley de outra espcie, de uma naturez ia que ningum entende. Gosto muito do rapaz, mas na minha opinio, a maior parte dascoisas que ele diz no tm ps nem cabea. Confessa, minha filha, que nem tu prpria consegues perceber a preocupao dele @ livros, com a msica, a poesia, a pintura a leo e com os eu sei l que mais. - Oli, pap, por amor de Deus! -exclamou Scarlett, impaciente. - Se eu casasse com ele modific-lo-ia por completo. - Gostaria de ver isso - ripostou Gerald, lanando filha um olhar penetrante. -Ainda conheces muito mal os homens. Deixa Asliley em paz. Nenhuma mulher at hoje logrou modificar o carcter do marido. No te esqueas disto. Quanto a essa ideia. de converter um Wilkes... nem parece tua. Toda a famlia l pela mesma cartilha; tm sido sempre assim e creio que continuaro a s-lo atravs dos sculos. Aquilo j nasce com eles. Repara s nos trabalhos em que se metem para irem a Nova Iorque e Boston ouvir uma pera ou ver uma exposio de quadros a leo. Mas h mais. Encomendam livros franceses e alemes aos yankees e ficam horas esquecidas a l-los e a pensar no sei em qu, em vez de passarem o tempo, a caar ou a jogar ao poker;como fazem os homens dignos desse nome. -No h ningum por aqui que monte a cavalo to bem como Asliley -protestou Scarlett, furiosa por ver o pai acusar o rapaz @ de ser efeminado - a no ser talvez o pai dele. Quanto ao poker, no verdade que Ashley ainda a semana passada lhe ganhou duzentos dlares, em Jonesboro? - Os Calverts andaram outra vez com mexericos - res- 51 mungou Gerald, resignado - pois, de contrrio, tu no saberias ao certo quanto perco. De facto, Ashley o melhor cavaleiro, e tambm o melhor jogador de poker. Alm disso, quando ele se mete a beber, no h ningum que consiga acompanh lo at ao fim. Vo, rolando todos para debaixo da mesa at Asliley ficar szinho, sem competidores. Ele faz isso, certo, mas