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s Mutuns são excelentes indicadores da qualidade das nossas florestas. Onde eles estão presentes é sinal de que há baixa pressão dos caçadores. Além disso, dispersam sementes pela floresta, contribuindo para a regeneração de muitas espécies de plantas. A despeito da importância ecológica dessas aves, algumas espécies estão severamente amea- çadas de desaparecer por causa da caça e da destruição dos seus hábitats. Aves de grande porte, com as maiores espécies chegando a pesar mais de quatro qui- los, os Mutuns pertencem à família Cracidae, uma das mais importantes da região Neo- tropical. Apesar de construírem o ninho no alto das árvores, no qual botam dois ovos brancos, passam a maior parte da vida no solo das flo- restas. Nelas buscam frutos, sementes, brotos e, eventualmente, pequenos animais. Sua plumagem é basicamente negra. As fêmeas podem apresentar variação de cor mais críptica (com tons que as ajudam a se escon- der no ambiente), útil como camuflagem. Outra característica comum são as penas brancas ou marrons na região ventral dos Mutuns. É também notável a presença de áreas brilhantemente coloridas na cabeça, de colorido que varia entre vermelho, amarelo, laranja e azul, mais comum nos machos. Essas áreas podem incluir toda a cobertura córnea do bico ou apenas a base dele, numa região conhecida como cera. A presença de um topete formado por penas encaracoladas é mais uma característica que per- mite reconhecer prontamente os Mutuns. Sete espécies de Mutum já foram regis- tradas no Brasil. Três do gênero Pauxi e quatro do gênero Crax. Nas espécies do gênero Crax, há um marcado dimorfismo sexual de plu- magem. Os machos apresentam geralmente a barriga branca e a cera colorida. Já nas fêmeas, com exceção das de uma espécie, as penas da região ventral são marrons e a cera não apre- senta coloração chamativa. A virada do Mutum-do-Sudeste Apenas uma espécie do gênero Crax é ainda encontrada na Mata Atlântica e por pouco ela não ficou conhecida apenas por exemplares depositados em museus. Trata-se do Mutum-do-Sudeste (Crax blumenbachii), que habitava originalmente as baixadas quentes da Mata Atlântica primária, em parte dos Estados do Rio de Janeiro (região central e norte), leste e norte de Minas Gerais (rios Doce e Jequitinhonha), Espírito Santo e sul 44 CÃES & CIA • 365 Mundo das Aves É possível salvar o Mutum-do-Sudeste? Esta ave, que ocorre apenas no Brasil e que só habitava originariamente a Mata Atlântica de bai- xada, esteve próxima de desaparecer. Mas hoje há projetos na Bahia, no Espírito Santo, em Minas Gerais e no Rio de Janeiro que tentam salvá-la O Por LUÍS FÁBIO SILVEIRA Mutum-do-Sudeste ( Crax blumenbachii) : cabeça do macho Luís Fábio Silveira caes-nova365:Layout 1 9/23/09 7:46 PM Page 6

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s Mutuns são excelentes indicadores daqualidade das nossas florestas. Onde elesestão presentes é sinal de que há baixa

pressão dos caçadores. Além disso, dispersamsementes pela floresta, contribuindo para aregeneração de muitas espécies de plantas. Adespeito da importância ecológica dessas aves,algumas espécies estão severamente amea -çadas de desaparecer por causa da caça e dadestruição dos seus hábitats.

Aves de grande porte, com as maioresespécies chegando a pesar mais de quatro qui-los, os Mutuns pertencem à família Cracidae,uma das mais importantes da região Neo -tropical. Apesar de construírem o ninho no altodas árvores, no qual botam dois ovos brancos,passam a maior parte da vida no solo das flo-restas. Nelas buscam frutos, sementes, brotose, eventualmente, pequenos animais.

Sua plumagem é basicamente negra. Asfêmeas podem apresentar variação de cor maiscríptica (com tons que as ajudam a se escon-der no ambiente), útil como camuflagem.

Outra característica comum são as penasbrancas ou marrons na região ventral dosMutuns. É também notável a presença de áreasbrilhan temente coloridas na cabeça, de coloridoque varia entre vermelho, amarelo, laranja e azul,mais comum nos machos. Essas áreas podemincluir toda a cobertura córnea do bico ou apenasa base dele, numa região conhecida como cera.A presença de um topete formado por penasencaracoladas é mais uma característica que per-mite reco nhecer prontamente os Mutuns.

Sete espécies de Mutum já foram regis -tradas no Brasil. Três do gênero Pauxi e quatrodo gênero Crax. Nas espécies do gênero Crax,

há um marcado dimorfismo sexual de plu -magem. Os machos apresentam geralmente abarriga branca e a cera colorida. Já nas fêmeas,com exceção das de uma espécie, as penas daregião ventral são marrons e a cera não apre-senta colo ração chamativa.

A virada do Mutum-do-SudesteApenas uma espécie do gênero Crax é

ainda encontrada na Mata Atlântica e porpouco ela não ficou conhecida apenas porexemplares depositados em museus. Trata-sedo Mutum-do-Sudeste (Crax blumenbachii),que habitava originalmente as baixadasquentes da Mata Atlântica primária, em partedos Estados do Rio de Janeiro (região centrale norte), leste e norte de Minas Gerais (riosDoce e Jequitinhonha), Espírito Santo e sul

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Mundo das Aves

É possível salvar oMutum-do-Sudeste?Esta ave, que ocorre apenas no Brasil e que sóhabitava originariamente a Mata Atlântica de bai -xada, esteve próxima de desaparecer. Mas hoje háprojetos na Bahia, no Espírito Santo, em MinasGerais e no Rio de Janeiro que tentam salvá-la

OPor LUÍS FÁBIO SILVEIRA

Mutum-do-Sudeste (Crax blumenbachii): cabeça do macho

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da Bahia. Embora já aparecesse em relatos deviajantes e de aventureiros que aportaram noRio de Janeiro e na Bahia desde o séculoXVIII, o Mutum-do-Sudes te só foi descritocientificamente em 1825 pelo famoso natura -lista J. B. Spix, que capturou primei ro umafêmea, próximo da cida de do Rio de Janeiro,e depois um macho, nas matas do mesmoEstado. Spix, sem saber que se tratava damesma espécie, deu ao ma cho o nome deCrax rubrirostris (“bico verme lho”). Emboraesse nome seja até mais apropriado parareco nhecer a espécie, o nome válido atual-mente para essa ave é Crax blumenbachii

(homenagem ao orientador do Spix, Dr.Blumen bach), em função das regras de prio -ridade da nomenclatura zoológica.

Durante o final do século XIX e na pri -meira parte do século XX, diversos natura -listas percorreram a Mata Atlântica do lestebrasileiro na árdua tarefa de conhecer e cata-logar a sua incrível diversidade. E, claro, umaave do porte do Mutum-do-Sudeste não pas-sou despercebida por nenhum deles. En tre -tanto, os relatos desses naturalistas já aler-tavam para a preocupante situação dessa ave

na Natureza. Podemos citar, entre os pes qui -sadores, o Príncipe de Wied, que viajou entreo Rio de Janeiro e a Bahia. Wied relata emseus livros diversas situações nas quais a pre-sença do Mutum só podia ser atestada porpenas encontradas em acampa m entos decaçadores!

Helmut Sick, outro ornitólogo famoso,também alertou di ver sas vezes sobre a rari-dade dessa ave provocada pela in ces santecaça. A si tua ção chegou a tal ponto que, nadécada de 1940, a espécie foi consideradacomo “à beira da ex tinção”, numa época em

que a conservação da Natureza não eraassunto corrente como hoje.

Além do extermínio dessa bela ave pelacaça em grande parte da sua distribuição(foi extinta no Rio de Janeiro e relatos da suapresença atual em Minas Gerais são incon-clusivos), a des truição da Mata A tlân ticatambém contribuiu. O relevo sua ve, comfeição semelhante à das matas amazônicas eque apresentava árvores de porte elevado,favoreceu o extermínio dessa floresta empoucos anos. O es plen dor do quase nadaque restou nos dá uma ideia da exuberânciaantes da destruição.

Quanto à população que resta do Mutum-do-Sudeste, está longe de ser consideradasegura para a sobrevivência da espécie. AReserva Natural da Vale e a Reserva Biológicade Sooretama, ambas no norte do Espírito San -to, abrigavam e ainda abrigam as maiores po -pulações dessa ave, que não devem somarmais de 200 exemplares nas duas áreas. OMutum-do-Sudeste pode ser encontrado tam-bém na Reserva Biológica de Una, na Reservada Cia. Michelin e, quem sabe, nos ParquesNacionais do Monte Pascoal e do Des co -brimento, todos no sul da Bahia.

Felizmente, a situação começou a mudara partir do final da década de 1970, quandoum abnegado criador de aves mineiro, Dr.Roberto Aze re do, por iniciativa própria, cap-turou alguns exemplares em matas na regiãode Teixeira de Freitas, na Bahia (os demaisexemplares logo desapareceram porque afloresta foi derrubada). Após anos deesforços e de muito aprendizado, Robertoconseguiu multiplicar a população emcativeiro. Hoje, mais de 500 exemplares sãoencontrados em criadouros e zoológicos detodo o Brasil. E a maior parte da populaçãovive ainda no criadouro do Dr. Roberto.

Após o domínio da criação em cativeiro,mais um passo importante foi dado. Na déca-da de 1990, Roberto iniciou um ousado proje-to de reintrodução dessa ave na baixada dorio Doce. Após anos de estudos e aprendiza-do, finalmente o Mutum-do-Sudeste voltavaao seu hábitat. Diversos filhotes já foramobservados, atestando o sucesso da iniciativa.Hoje, “filhotes” do projeto já podem ser vistosem uma reserva no Rio de Janeiro, onde aespécie estava exti nta havia 50 anos. Depoisdesse grande passo para a conservação daespécie, novas áreas devem ser foco de pro-jetos de reintrodução, desde que adequada-mente protegidas de caçadores.

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Luís Fábio Silveira é professor do Departamento de Zoologiada Universidade de São Paulo, com doutorado em CiênciasBiológicas (Zoologia); curador associado das coleções orni-tológicas Museu de Zoologia da USP; editor-chefe da RevistaBrasileira de Ornitologia; membro do Comitê Brasileiro deRegistros Ornitológicos (CBRO); pesquisador associado daWorld Pheasant Association (UK); autor de oito livros sobreaves e de dezenas de artigos científicos publicados.Mutum-Cavalo (Pauxi tuberosa)

Fêmea de Mutum-do-Sudeste Macho de Mutum-do-Sudeste

Pauxi pauxi

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