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Eça de Queiróse

Ramalho Ortigão

O Mistério da Estrada de Sintra

Publicado originalmente em 1870.

José Maria de Eça de Queirós(1845 — 1900)

José Duarte Ramalho rti!"o(18#$ — 1915)

 “Projeto Livro Livre”

%i&ro 101

Poeteiro Editor Digital

São Paulo - 2014www.poeteiro.com 

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Projeto Livro Livre

O “Projeto Livro Livre” é uma iniciativa que propõeo compartilhamento, de forma livre e gratuita, de

obras literárias já em domnio p!blico ou quetenham a sua divulga"#o devidamente autori$ada,especialmente o livro em seu formato %igital&

'o (rasil, segundo a Lei n) *&+-, no seu artigo .,os direitos patrimoniais do autor perduram porsetenta anos contados de / de janeiro do ano

subsequente ao de seu falecimento& O mesmo se observa em Portugal& 0egundoo 12digo dos %ireitos de 3utor e dos %ireitos 1one4os, em seu captulo 56 e

artigo 7), o direito de autor caduca, na falta de disposi"#o especial, 8- anosap2s a morte do criador intelectual, mesmo que a obra s2 tenha sido publicadaou divulgada postumamente&

O nosso Projeto, que tem por !nico e e4clusivo objetivo colaborar em prol dadivulga"#o do bom conhecimento na 5nternet, busca assim n#o violar nenhumdireito autoral& 9odavia, caso seja encontrado algum livro que, por algumara$#o, esteja ferindo os direitos do autor, pedimos a gentile$a que nos informe,a fim de que seja devidamente suprimido de nosso acervo&

:speramos um dia, quem sabe, que as leis que regem os direitos do autor sejamrepensadas e reformuladas, tornando a prote"#o da propriedade intelectualuma ferramenta para promover o conhecimento, em ve$ de um temvel inibidorao livre acesso aos bens culturais& 3ssim esperamos;

3té lá, daremos nossa pequena contribui"#o para o desenvolvimento daeduca"#o e da cultura, mediante o compartilhamento livre e gratuito de obrassob domnio p!blico, como esta, do escritor portugu<s :"a de =ieir2s> “O

Mistério da Estrada de Sintra”&

? isso; 

Iba [email protected]

www.poeteiro.com

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ÍNDICE

Prefácio da 2ª edição .................................................................................

Exposição do Doutor *** ...........................................................................

Intervenção de Z ........................................................................................

De F… ao medico .......................................................................................

ota ..........................................................................................................

!e"unda carta de Z… .................................................................................

arrativa do mascarado a#to .....................................................................

$s reve#aç%es de $. &. '. ...........................................................................

$ confissão de#a .......................................................................................

'onc#uem as reve#aç%es de $. &. '. .........................................................

$ (#tima carta ..........................................................................................

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PREFÁCIO

CARTA AO EDITOR DO “MISTÉRIO DA ESTRADA DE SINTRA” 

Há catorze anos, numa noite de Verão, no Passeio Público, em frente de duas chávenas decafé, penetrados pela tristeza da grande cidade que em torno de nós cabeceava de sonoao som de um soluante  pot-pourri   dos Dois Foscaris, deliberamos reagir sobre nósmesmos e acordar tudo aquilo a berros, num romance tremendo, buzinado ! "ai#a dasalturas do Diário de Notícias$

Para esse fim, sem plano, sem método, sem escola, sem documentos, sem estilo,recolhidos ! simples %torre de cristal da &maginaão', desfechamos a improvisar este livro,

um em (eiria, outro em (isboa, cada um de nós com uma resma de papel, a sua alegria e asua audácia$

Parece que (isboa efetivamente despertou, pela simpatia ou pela curiosidade, pois quetendo lido na larga tiragem do Diário de Notícias, o Mistério da Estrada de Sintra, ocomprou ainda numa edião em livro) e ho*e manda+nos V$ as provas de uma terceiraedião, perguntando+nos o que pensamos da obra escrita nesses velhos tempos, querecordamos com saudade$$$

Havia *á então terminado o feliz rei nado do enhor' -oão V&$ .alecera o simpático /arão,

0olentino o *ucundo, e o sempre chorado 1uita$ 2lém do Passeio Público, *á nessa épocaevacuado como o resto do pa3s pelas tropas de -unot, encarregava+se também de falar !simagina4es o r$ 5ctave .euillet$ 5 nome de .&aubert não era familiar aos folhetinistas$Ponson du Terrail  trove*ava no inai dos pequenos *ornais e das bibliotecas econ6micas$ 5r$ -ules 7laretie publicava um livro intitulado$$$ 8ninguém ho*e se lembra do t3tulo9 do qualdiziam comovidamente os cr3ticos: ; <is a 8uma obra que há de ficar=$$$ >ós, enfim,éramos novos$

5 que pensamos ho*e do romance que escrevemos há catorze anos?$$$ Pensamossimplesmente ; louvores a @eus= ; que ele é e#ecrável) e nenhum de nós, quer como

romancista, quer como critico, dese*a, nem ao seu pior inimigo, um livro igual$ Porque nelehá um pouco de tudo quanto um romancista lhe não deveria p6r e quase tudo quanto umcr3tico lhe deveria tirar

Poupemo+lo ; para o não agravar fazendo+o em trAs volumes ; ! enumeraão de todasas suas deformidades? 7orramos um véu discreto sobre os seus mascarados de diversasalturas, sobre os seus médicos misteriosos, sobre os seus louros capitães ingleses, sobre assuas condessas fatais, sobre os seus tigres, sobre os seus elefantes, sobre os seus iates emque se arvoram, como pavilh4es do ideal, lenos brancos de cambraia e renda, sobre os

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seus sinistros copos de ópio, sobre os seus cadáveres elegantes, sobre as suas toilettes romBnticas, sobre os seus cavalos esporeados por cavaleiros de capas alvadias

desaparecendo envoltos no pó das fantásticas aventuras pela Porcalhota fora=$$$0odas estas coisas, aliás simpáticas, comoventes por vezes sempre sinceras, desgostamtodavia velhos escritores, que há muito desviaram os seus olhos das perspectivasenevoadas da senti mentalidade, para estudarem pacientemente e humildemente asclaras realidades da sua rua$

7omo permitimos pois que ser e publique um livro que, sendo to do de imaginaão,cismado e não observado$ desmente toda a campanha que temos feito pela arte de análisee de certeza ob*etiva?

7onsentimo+lo porque entendemos que nenhum trabalhador deve parecer envergonhar+se do seu trabalho$

7onta+se que Curat, sendo rei de >ápoles, mandara pendurar na sala do trono o seuantigo chicote de postilhão, e muitas vezes, apontando para o cetro, mostrava depois oaoite, gostando de repetir: 7omecei por ali$ <sta gloriosa história confirma o nossoparecer, sem com isto querermos dizer que ela se aplique !s nossas pessoas$ 7omo tronotemos ainda a mesma velha cadeira em que escrev3amos há quinze anos) não temos dosselque nos cubra) e as nossas cabeas, que embranquecem não se cingem por enquanto decoroa alguma, nem de louros, nem de >ápoles$

Para nossa modesta satisfaão basta+nos não ter cessado de trabalhar um só dia desdeaquele em que datamos este livro até o instante em que ele nos reapareceinesperadamente na sua terceira edião, com um petulante aninho de triunfo que, ! fé de@eus, não lhe vai mal=

<ntão, como agora, escrev3amos honestamente isto é o melhor que pod3amos desse amorda perfeião, que é a honradez dos artistas, veio talvez a simpatia do público ao livro danossa mocidade$

Há mais duas raz4es, para autorizar esta reedião$ 2 primeira é que a publicaão destelivro, fora de todos os moldes até o seu tempo consagrados, pode conter, para umageraão que precisa de a receber, uma tal lião de independAncia$

2 mocidade que nos sucedeu, em vez de ser inventiva, audaz, revolucionária, destruidorade 3dolos, parece+nos servil, imitadora, copista, curvada de mais diante dos mestres$ 5snovos escritores não avanam um pé que não pousem na pegada que dei#aram outros$<sta pusilanimidade torna as obras tr6pegas, dá+lhes uma e#pressão estafada) e a nós, quepartimos, a geraão que chega faz+nos o efeito de sair velha do bero e de entrar na artede muletas$

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5s documentos das nossas primeiras loucuras de coraão queimamo+los há muito, os dasnossas e#travagBncias de esp3rito de se*amos que fiquem$ 2os vinte anos é preciso que

alguém se*a estróina, nem sempre talvez para que o mundo progrida, mas ao menos paraque o mundo se agite$ Para se ser ponderado, correto e imóvel há tempo de sobra navelhice$

>a arte, a indisciplina dos novos, a sua rebelde fora de resistAncia !s correntes datradião, é indispensável para a revivescAncia da invenão e do poder criativo, e para aoriginalidade art3stica$ 2i das literaturas em que não há mocidade= 7omo os velhos queatravessaram a vida sem o sobressalto de uma aventura, não haverá nelas que lembrar2lém de que, para os que na idade madura foram arrancados pelo dever !s facilidades daimprovisaão e entraram nesta região dura das coisas e#atas, entristecedora e mesquinha,

onde, em lugar do esplendor dos hero3smos e da beleza das pai#4es$ ó há a pequenez doscaracteres e a miséria dos sentimentos, seria doce e reconfortante ouvir de longe a longe,nas manhãs de sol, ao voltar da Prima vera, zumbir no azul, como nos bons tempos, adourada abelha da fantasia

2 última razão que nos leva a não repudiar este livro, é que ele é ainda o testemunho da3ntima confraternidade de dois antigos homens de letras, resistindo a vinte anos deprovaão nos contatos de uma sociedade que por todos os lados se dissolve$ <, se isto nãoé um triunfo para o nosso esp3rito, é para o nosso coraão uma suave alegria$

(isboa, DE de @ezembro de DFFE$@e V$

2ntigos amigos, <G2 @< 1<&IJ I2C2(H5 5I0&/K5

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EXPOSIÇÃO DO DOUTOR ***

72PL0(5 D

r$ Iedator do Diário de Notícias: Venho p6r nas suas mãos a narraão de um casoverdadeira mente e#traordinário, em que intervim como facultativo, pedindo+lhe que,pelo modo que entender mais adequado, publique na sua folha a substBncia, pelo menos,do que vou e#por$

5s sucessos a que me refiro são tão graves, cerca+os um tal mistério, envolve+os uma talaparAncia de crime que a publicidade do que se passou por mim torna+se important3ssimacomo chave única para a desencerraão de um drama que suponho terr3vel conquanto

não conhea dele senão um só ato e ignore inteiramente quais foram as cenasprecedentes e quais tenham de ser as últimas$

Há trAs dias que eu vinha dos subúrbios de intra em companhia de .$$$, um amigo meu,em cu*a casa tinha ido passar algum tempo$

Contávamos dois cavalos que .$$$ tem na sua quinta e que de viam ser reconduzidos aintra por um criado que viera na véspera para (isboa$ <ra ao fim da tarde quandoatravessamos a charneca$ 2 melancolia do lugar e da hora tinha+se+nos comunicado, ev3nhamos silenciosos, abstra3dos na paisagem, caminhando a passo$

2 cerca talvez de meia distancia do caminho entre $ Pedro e o 7acém, num ponto a quenão sei o nome porque tenho transita do pouco naquela estrada, s3tio deserto como todoo caminho através da charneca, estava parada uma carruagem$

<ra um coupé pintado de escuro, verde e preto, e tirado por uma parelha cor de castanha$5 cocheiro, sem libré, estava em pé, de costas para nós, diante dos cavalos$ @ois su*eitosachavam+se curvados ao pé das rodas que ficavam para a parte da estrada por ondet3nhamos de passar, e pareciam ocupados em e#aminar atentamente o *ogo da carruagem$m quarto indiv3duo, igualmente de costas para nós, estava perto do valado, do outro lado

do caminho, procurando alguma coisa, talvez uma pedra para calar o trem$

; M o resultado das sob+rodas que tem a estrada ; observou o meu amigo$ ; ei#opartido ou alguma roda desembu#ada$

Passávamos a este tempo pelo meio dos trAs vultos a que me re feri, e .$$$ tinha tidoapenas tempo de concluir a frase que proferira, quando o cavalo que eu montava deurepentinamente meia volta rápida, violenta, e caiu de chapa$

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5 homem que estava *unto do valado, ao qual eu não dava atenão porque ia voltado ae#aminar o trem, determinara essa queda, colhendo repentinamente e com a má#ima

fora as rédeas que ficavam para o lado dele e impelindo ao mesmo tempo com umpontapé o flanco do animal para o lado oposto$ 5 cavalo, que era um poldro de poucafora e mal mane*ado, escorregou das pernas e tombou ao dar a volta rápida e precipitadaa que o tinham constrangido$ 5 desconhecido fez levantar o cavalo segurando+lhe asrédeas, e, a*udando+me a erguer, indagava com interesse se eu teria molestado a pernaque ficara debai#o do cavalo$ <ste indiv3duo tinha na voz a entoaão especial dos homensbem+educados$ 2 mão que me ofereceu era delicada$ 5 rosto tinha+o coberto com umamáscara de cetim preto$ <ntrelembro+me de que trazia um pequeno fumo no chapéu$ <raum homem ágil e e#tremamente forte, segundo denota o modo como fez cair o cavalo$<rgui+me alvoroadamente e, antes de ter tido ocasião de dizer uma palavra, vi que, ao

tempo da minha queda, se travara luta entre o meu companheiro e os outros doisindiv3duos que fingiam e#aminar o trem e que tinham a cara coberta como aquele de que

 *á falei$

Puro Ponson du Terrail = dirá o r$ Iedator$ <videntemente$ Parece que a vida, mesmo nocaminho de intra, pode !s vezes ter o capricho de ser mais romanesca do que pede averossimilhana art3stica$ Cas eu não fao arte, narro fatos unicamente$

.$$$, vendo o seu cavalo subitamente seguro pelas cambas do freio, tinha obrigado alargá+lo um dos desconhecidos, em cu*a cabea descarregara uma pancada como cabo do

chicote, o qual o outro mascarado conseguira logo depois arrancar+lho da mão$

>enhum de nós trazia armas$ 5 meu amigo tinha, no entanto, tirado da algibeira a chavede uma porta da casa de intra, e esporeava o cavalo estirando+se+lhe no pescoo eprocurando alcanar a cabea daquele que o tinha seguro$ 5 mascarado, porém, quecontinuava a segurar em uma das mãos o freio do cavalo empinado, apontou com a outraem revólver ! cabea do meu amigo e disse+lhe com serenidade: + Cenos fúria= Cenosfúria=

5 que levara com o chicote na cabea e ficara por um momento encostado ! portinhola do

trem, visivelmente atordoado mas não ferido, porque o cabo era de baleia e tinha porcastão uma simples guarnião feita com uma trana de cima, havia *á a este tempolevantado do chão e posto na cabea o chapéu que lhe ca3ra$ 2 este tempo o que mederribara o cavalo e me a*udara a levantar tinha+me dei#ado ver um par de pequeninaspistolas de coronhas de prata, daquelas a que chamam em .rana coups de poing e quevaram uma porta a trinta passos de distBncia$ @epois do que, me ofereceu delicadamenteo brao, dizendo+me com afabilidade:

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; Parece+me mais c6modo aceitar um lugar que lhe ofereo na carruagem do que montaroutra vez a cavalo ou ter de arrastar a pé daqui ! farmácia da Porcalhota a sua perna

magoada$>ão sou dos que se amedrontam mais prontamente com a ameaa feita com armas$ eique há um abismo entre prometer um tiro e desfechá+lo$ <u movia bem a perna trilhada, omeu amigo estava montado em um cavalo possante) somos ambos robustos) poder3amostalvez resistir por dez minutos, ou por um quarto de hora, e durante esse tempo nada maisprovável, em estrada tão frequentada como a de intra nesta quadra, do que aparecerempassageiros que nos prestassem au#3lio$ 0odavia, confesso que me sentia atra3do para oimprevisto de uma tão estranha aventura$ >enhum caso anterior, nenhuma circunstBnciada nossa vida nos permitia suspeitar que alguém pudesse ter interesse em e#ercer

conosco pressão ou violAncia alguma$

em eu bem poder a esse tempo e#plicar porquA, não me parecia também que as pessoasque nos rodeavam pro*etassem um roubo, menos ainda um homic3dio$ >ão tendo tidotempo de observar miudamente a cada um, e tendo+lhes ouvido apenas algumas palavrasfugitivas, figuravam+se+me pessoas de bom mundo$ 2gora que de esp3rito sossegado pensono acontecido, ve*o que a minha con*ectura se baseava em várias circunstBncias dispersas,nas quais, ainda que de relance, eu atentara, mesmo sem propósito de análise$ (embro+me, por e#emplo, que era de cetim alvadio o forro do chapéu do que levara a pancada nacabea$

5 que apontara o revólver a .$$$ trazia calada uma luva cor de chumbo apertada com doisbot4es$ 5 que me a*udara a levantar tinha os pés finos e botas envernizadas: as calas, decasimira cor de avelã, eram muito *ustas e de presilhas$ 0razia esporas$

>ão obstante a disposião em que me achava de ceder da luta e de entrar no trem,perguntei em alemão ao meu amigo se ele era de opinião que resist3ssemos ou que nosrendAssemos$$

; Iendam+se, rendam+se para nos poupar algum tempo que nos é precioso= ;dissegravemente um dos desconhecidos ; Por quem são, acompanhem+nos= m diasaberão por que motivo lhes sa3mos ao caminho, mascarados$ @amos+lhe a nossa palavrade que amanhã estarão nas suas casas, em (isboa$ 5s cavalos ficarão em intra daqui aduas horas$ @epois de uma breve relutBncia, que eu contribu3 para desvanecer, o meucompanheiro apeou+se e entrou no coupé$ <u segui+o$ 7ederam+nos os melhores lugares$5 homem que se achava em frente da parelha segurou os nossos cavalos) o que fizera cairo poldro subiu para a almofada e pegou nas guias) os outros dois entraram conosco esentaram+se nos lugares fronteiros aos nossos$ .echaram+se em seguida os stores  demadeira dos postigos e correu+se uma cortina de seda verde que cobria por dentro osvidros fronteiros da carruagem$ >o momento de partirmos, o que ia a guiar bateu na

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vidraa e pediu um charuto$ Passaram+lhe para fora uma charuteira de palha de -ava$ Pelafresta por onde recebeu os charutos lanou para dentro do trem a máscara que tinha no

rosto e partimos a galope$ 1uando entrei para a carruagem pareceu+me avistar ao longe,vindo de (isboa, um 6nibus, talvez uma sege$ e me não iludi, a pessoa ou pessoas quevinham no trem a que me refiro terão vis to os nossos cavalos, um dos quais é ruo e ooutro castanho, e poderão talvez dar not3cia da carruagem em que 3amos e da pessoa quenos servia de cocheiro, 5 coupé  era, como *á disse, verde e preto$ 5s stores, de mognopolido, tinham no alto quatro fendas estreitas e oblongas, dispostas em cruz$

.alta+me tempo para escrever o que ainda me resta por contara horas de e#pedir aindaho*e esta carta pela posta interna$ 7ontinuarei$ @irei então, se o não suspeitou *á, o motivopor que lhe oculto o meu nome e o nome do meu amigo$

72PL0(5 N

-ulho, NE de DFO$ ; 2cabo de ver a carta que lhe dirigi publicada integralmente por V$ nolugar destinado ao folhetim do seu periódico$ <m vista da colocaão dada ao meu escritoprocurarei nas cartas que houver de lhe dirigir não ultrapassar os limites de marcados aesta secão do *ornal$

Por esquecimento não datei a carta antecedente, ficando assim duvidoso qual o dia em

que fomos surpreendidos na estrada de intra$ .oi quarta+feira, N do corrente mAs de-ulho$

Passo de pronto a contar+lhe o que se passou no trem, especificando minuciosamentetodos os pormenores e tentando reconstruir o diálogo que travamos, tanto quanto mese*a poss3vel, com as mesmas palavras que nele se empregaram$

2 carruagem partiu na direão de intra$ Presumo, porém, que deu na estrada algumasvoltas, muito largas e bem dadas por que se não pressentiram pela intercadAncia davelocidade no passo dos cavalos$ (evaram+me a sup6+lo, em primeiro lugar as diferenas

de declive no n3vel do terreno, conquanto estivéssemos rodando sempre em uma estradamacadamizada e lisa) em segundo lugar umas leves altera4es na quantidade de luz quehavia dentro do coupé  coada de seda verde, o que me indicava que o trem passava porencontradas e#posi4es com relaão ao ol que se escondia no horizonte$

Havia, evidentemente, o des3gnio de nos desorientar no rumo definitivo que tomássemos$M certo que, dois minutos depois de termos principiado a andar, me seria absolutamenteimposs3vel decidir se ia de (isboa para intra ou se vinha de intra para (isboa$ >acarruagem havia uma claridade baa e tAnue, que todavia nos permitia distinguir osob*etos$ Pude ver as horas no meu relógio$ <ram sete e um quarto$ 5 desconhecido que ia

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defronte de mim e#aminou também as horas$ 5 relógio, que ele não introduziu bem naalgibeira do cole te e que um momento depois lhe caiu, ficando por algum tempo patente

e pendido da corrente, era um relógio singular que se não confunde facilmente e que nãodei#ará de ser reconhecido, depois da not3cia que dou dele, pelas pessoas que alguma vezo houvessem visto$ 2 cai#a do lado oposto ao mostrador era de esmalte preto, liso, tendono centro, por bai#o de um capacete, um escudo de armas de ouro encobrado e polido$

Havia poucos momentos que caminhávamos, quando o indiv3duo sentado defronte de .$$$,o mesmo que na estrada nos instara mais vivamente para que o acompanhássemos, nosdisse: <u *ulgo inútil asseverar+lhes que devem tranquilizar+se inteiramente quanto !segurana das suas pessoas$$$

; <stá visto que sim ; respondeu o meu amigo +, nós esta mos perfeitamente sossegadosa todos os respeitos$ <spero que nos faam a *ustia de acreditar que nos não tAm coatospelo medo$ >enhum de nós é tão criana que se apavore com o aspecto das suas máscarasnegras ou das suas armas de fogo$ 5s senhores acabam de ter a bondade de nos certificarde que não querem fazer+nos mal) nós devemos pela nossa parte anunciar+lhes que desdeo momento em que a sua companhia principiasse a tomar+se+nos desagradável, nada nosseria mais fácil do que arrancar+lhes as máscaras, arrombar os stores, convidá+los peranteo primeiro trem que passasse por nós a que nos entregassem as suas pistolas, e rela#á+losem seguida aos cuidados policiais do regedor da primeira paróquia que atravessássemos$Parece+me, portanto, *usto que principiemos por prestar o devido culto aos sentimentos

da amabilidade, pura e simples, que nos tem aqui reunidos$ @outro modo ficar3amos todosgrotescos: os senhores terr3veis, e nós as sustados$

7onquanto estas coisas fossem ditas por .$$$ com um ar de bondade risonha, o nossointerlocutor parecia irritar+se progressivamente ao ouvi+lo$ Covia convulsivamente umaperna, firmando o cotovelo num *oelho, pousando a barba nos dedos, fitando de per to omeu amigo$ @epois, reclinando+se para trás e como se mudasse de resoluão: + >o fim decontas, a verdade é que tem razão e talvez que eu fizesse e dissesse o mesmo no seu lugar$

<, tendo meditado um momento, continuou: + 1ue diriam, porém, os senhores se eu lhes

provasse que esta máscara em que querem ver apenas um sintoma burlesco é em vezdisso a confirmaão da seriedade do caso que nos trou#e aqui .$$$ 1ueiram imaginar porum momento um desses romances como há muitos: uma senhora casada, por e#emplo,cu*o marido via*a há um ano$ <sta senhora, conhecida na sociedade de (isboa, estágrávida$ 1ue deliberaão há de tomar? Houve um silAncio$

<u aproveitei a pequena pausa que se seguiu ao enunciado um tanto rude daqueleproblema e respondi: ; <nviar ao marido uma escritura de separaão em regra$ @e pois,se ética, ir com o amante para a 2mérica ou para a u3a) se é pobre, comprar umamáquina de costura e trabalhar para fora numa água+furtada$ M o destino para as pobres e

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para as ricas$ @e resto, em toda a parte se morre depressa nessas condi4es, num cottage! beira do lago de /enebra ou num quarto de oito tost4es ao mAs na Iua dos Vinagres$

Corre+se igualmente, de t3sica ou de tédio, nos esfalfamento do trabalho ou no enEoo doid3lio$

; < o filho?

; 5 filho, desde que está fora da fam3lia e fora da lei, é um desgraado cu*o infortúnioprovém em grande parte da sociedade que ainda não soube definir a responsabilidade dopai clandestino$ e os pais fazem como a legislaão, e mandam buscar gente ! estrada deintra para perguntar o que se há de fazer, o melhor para o filho é deitá+lo ! roda$

; 5 doutor discorre muito bem como filósofo distinto$ 7omo puro médico, esquece lhe

talvez que na con*untura de que se trata, antes de deitar o filho ! roda há uma pequenaformalidade a cumprir, que é deitá+lo ao mundo$

; &sso é com os especialistas$ 7reio que não é nessa qualidade que estou aqui$ + <ngana+se$ M precisamente como médico, é nessa qualidade que aqui está e é por esse t3tulo queviemos buscá+lo de surpresa ! estrada de intra e o levamos a ocultas a prestar au#3lio auma pessoa que precisa dele$ + Cas eu não fao cl3nica$

; M o mesmo$ >ão e#erce essa profissão) tanto melhor para o nosso caso: não pre*udicaos seus doentes abandonando+os por algumas horas para nos seguir nesta aventura$ Cas é

formado em Paris e publicou mesmo uma tese de cirurgia que despertou a atenão emereceu o elogio da .aculdade$ 1ueira fazer de conta que vai assistir a um parto$ 5 meuamigo .$$$ p6s+se a rir e observou:

; Cas eu que não tenho o curso médico nem tese alguma de que me acuse na minhavida, não quererão dizer+me o que vou fazer?+ 1uer saber o motivo por que se encontraaqui?$$$ <u lho digo$

>este momento, porém, a carruagem parou repentinamente e os nossos companheiros,sobressaltados, ergueram+se$

72PL0(5 Q

Percebi que saltava da almofada o nosso cocheiro$ 5uvi abrir sucessivamente as duaslanternas e raspar um fósforo na roda$ enti depois estalar a mola que comprime aportinha que se fecha depois de acender as velas, e rangerem nos anéis dos cachimbos ospés das lanternas como se as estivessem endireitando$ >ão compreendi logo a razão porque nos tivéssemos detido para semelhante fim, quando não tinha ca3do a noite e 3amos

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por bom caminho$ &sto, porém, e#plica+se por um requinte de precauão$ 2 pessoa que nosservia de cocheiro não quereria parar em lugar onde houvesse gente$ e tivéssemos de

atravessar uma povoaão, as luzes que principiassem a acender+se e que nós ver3amosatravés da cortina ou das fendas dos stores, poderiam dar+nos alguma ideia do s3tio emque nos achássemos$ Por esta forma esse meio de investigaão desaparecia$ 2o passarmosentre prédios ou muros mais altos, a pro*eão da luz forte das lanternas sobre as paredes ea refle#ão dessa claridade para dentro do trem impossibilitava+nos de distinguir seatravessávamos uma aldeia ou uma rua iluminada$ (ogo que a carruagem comeou a rodardepois de acesas as lanternas, aquele dos nossos companheiros que Prometera e#plicar a.$$$ a razão por que ele nos acompanhava, prosseguiu:

; 5 amante da senhora a quem me refiro, imagine que sou eu$ abem+no unicamente

neste mundo trAs amigos meu) amigos 3ntimos, companheiros de infBncia, camaradas deestudo, tendo vivido sempre *untos, estando cada um constantemente pronto a prestaraos outros os derradeiros sacrif3cios que pode impor a amizade$ <ntre os nossoscompanheiros não havia um médico$ <ra mister obtA+lo e era ao mesmo tempoindispensável que não passasse a outrem, quem quer que fosse, o meu segredo, em queestão envoltos o amor de um homem e a honra de uma senhora, 5 meu filho nasceráprovavelmente esta noite ou amanhã pela manhã) não devendo saber ninguém quem ésua mãe, não devendo sequer por algum ind3cio vir a suspeitar um dia quem ela se*a, épreciso que o doutor ignore quem são as pessoas com quem fala, e qual é a casa em quevai entrar$ <is o motivo por que nós temos no rosto uma máscara) eis o motivo por que os

senhores nos hão de permitir que continuemos a ter cerrada esta carruagem e que lhesvendemos os olhos, antes de os apearmos defronte do prédio a que vão subir$ 2goracompreende ; continuou ele dirigindo+se a .$$$ ; a razão por que nos acompanha$ <ra+nos imposs3vel evitar que o senhor viesse ho*e de intra com o seu amigo, era+nosimposs3vel adiar esta visita, e era+nos imposs3vel também dei#á+lo no ponto da estrada emque tomamos o doutor, 5 senhor acharia facilmente meio de nos seguir e de descobrirquem somos$

; 2 lembrana ; notei eu ; é engenhosa mas não é lison*eira para a minha discrião$ + 2confiana na discrião alheia é uma traião ao segredo que nos não pertence$

.$$$ achava+se inteiramente de acordo com esta maneira de ver, e disse+o elogiandoesp3rito da aventura romanesca dos mascarados$ 2s palavras de .$$$, acentuadas comsinceridade e com afeto, pareceu+me que perturbaram algum tanto o desconhecidofigurou+se+me que esperava discutir mais tempo para conseguir persuadir+nos e que odesnorteava e surpreendia desagradavelmente esse corte imprevisto$ <le, que tinha aréplica pronta e a palavra fácil, não achou que retorquir ! confiana com que o tratavam, eguardou, desde esse momento até que chegamos, um silAncio que devia pesar ! suastendAncias e#pansivas e discursadoras$

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M verdade que pouco depois deste diá trem dei#ou a estrada de macadame em que até a3rodara e entrou num caminho vicinal ou num atalho$ 5 solo era pedregoso e esburacado)

os solavancos da carruagem, que seguia sempre a galope governada por mão de mestre, eo estrépito dos stores embatendo nos cai#ilhos mal permitiram conversar$ 0ornamos porfim a entrar numa estrada lisa$ 2 carruagem parou ainda uma segunda vez, o cocheiroapeou rapidamente, dizendo: + (á vou=

Voltou pouco depois, e eu ouvi alguém que dizia: ; Vão com raparigas para (isboa$ 5 tremprosseguiu$

eria uma barreira da cidade? &nventaria o que nos guiava um prete#to plaus3vel para queos guardas nos não abrissem a portinhola? <ntender+se+ia com os meus companheiros afrase que eu ouvira?

>ão posso dizA+lo com certeza$ 2 carruagem entrou logo depois num pavimento la*eado eda3 a dois ou trAs minutos parou$ 5 cocheiro bateu no vidro, e disse: + 7hegamos$

5 mascarado, que não tornara a pronunciar uma palavra desde o momento que acimaindiquei, tirou um leno da algibeira e disse+nos com alguma comoão: + 0enhampaciAncia= Perdoem+mo$$$ 2ssim é preciso=

.$$$ apro#imou o rosto, e ele vendeu+lhe os olhos$ <u fui igual mente vendado pelo queestava em frente de mim$ 2peamo+nos em seguida e entramos num corredor conduzidos

pela mão dos nossos companheiros$ <ra um corredor estreito segundo pude deduzir domodo por que nos encontramos e demos passagem a alguém que sa3a$

; (evo o trem?+ 2 voz do que nos guiara respondeu: ; (eva$ @emoramo+nos ummomento$ 2 porta por onde hav3amos entrado foi fechada ! chave, e o que nos servira decocheiro passou para diante dizendo: ; Vamos= @emos alguns passes, subimos doisdegraus de pedra, tomamos ! direita e entramos na escada$ <ra de madeira, 3ngreme evelha, coberta com um tapete estreito$ 5s degraus estavam desgastados pelos pés, eramondeados na superf3cie e esbatidos e ar redonda dos nas saliAncias primitivamenteangulosas$ 2o longo da parede, do meu lado, corria uma corda, que servia de corrimão)

era de seda e denotava ao tato pouco uso$ Iespirava+se um ar úmido, impregnado dee#ala4es interiores dos prédios desabitados$ ubimos oito ou dez degraus, tomamos !esquerda num patamar, subimos ainda outros degraus e paramos num primeiro andar$

>inguém nha proferido uma palavra, e havia o que quer que fosse de lúgubre nestesilAncio que nos envolvia como uma nuvem de tristeza$

5uvi então a nossa carruagem que se afastava, e senti uma opressão, uma espécie desobressalto pueril$ <m seguida rangeu uma fechadura e transpusemos o limiar de uma

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porta, que foi outra vez fechada ! chave depois de havermos entrado$ + Podem tirar oslenos ; disse+nos um dos nossos companheiros$

@escobri os olhos$ <ra noite$ m dos mascarados raspou um fósforo, acendeu cinco velasnuma serpentina de bronze, pegou na serpentina, apro#imou+se de um móvel que estavacoberto com uma manta de viagem, e levantou a manta$ >ão pude conter a comoão quesenti, e soltei um grito de horror$ 5 que eu tinha diante de mim era o cadáver de umhomem$

72PL0(5 E

<screvo+lhe ho*e fatigado e nervoso$ 0odo este obscuro negócio em que me acho

envolvido, o vago perigo que me cerca, a mesma tensão de esp3rito em que estou paracompreender a secreta verdade desta aventura, os hábitos da minha vida repousadasubitamente e#altados +tudo isto me dá um estado de irritaão mórbida que me aniquila$

(ogo que vi o cadáver perguntei violentamente: + 1ue quer isto dizer, meus senhores? mdos mascarados, o mais alto, respondeu: ; >ão há tempo para e#plica4es$ Perdoem tersido engana dos= Pelo amor de @eus,doutor, ve*a esse homem$ 1ue tem? <stá morto? <stáadormecido com algum narcótico?

@izia estas palavras com uma voz tão instante, tão dolorosamente interrogadora que eu,

dominado pelo imprevisto daquela situaão, apro#imei+me do cadáver, e e#aminei+o$<stava deitado numa chaise-longue, com a cabea pousada numa almofada, as pernasligeiramente cruzadas, um dos braos curvado descansando no peito, o outro pendente ea mão inerte assente sobre o chão$ >ão tinha golpe, contusão, ferimento, oue#travasamento de sangue) não tinha sinais de congestão, nem vest3gios de estrangulaão$2 e#pressão da fisionomia não denotava sofrimento, contraão ou dor$ 5s olhos cerradosfrou#amente, eram como num sono leve$ <stava frio e l3vido$

>ão quem aqui fazer a história do que encontrei no cadáver$ eria embaraar estanarraão concisa com e#plica4es cient3ficas$ Cesmo sem e#ames detidos, e sem os

elementos de apreciaão que só podem fornecer a análise ou a autópsia, pareceu+me queaquele homem estava sob a influAncia *á mortal de um narcótico, que não era tempo dedominar$

; 1ue bebeu ele? ; perguntei, com uma curiosidade e#clusivamente médica$

>ão pensava então em crime nem na misteriosa aventura que ali me prendia) queria só teruma história progressiva dos fados que tinham determinado a narcotizaão$

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m dos mascarados mostrou+me um copo que estava ao pé da chaise-longue sobre umacadeira de estofo$

; >ão sei ; disse ele +, talvez aquilo$ 5 que havia no copo era evidentemente ópio$ + <stehomem está morto ; disse eu$

; Corto= ; repetiu um deles, tremendo$ <rgui as pálpebras do cadáver, os olhos tinhamuma dilataão fi#a, horr3vel$ <u fitei+os então um por um e disse+lhes serenamente: ;&gnoro o motivo por que vim aqui) como médico de um doente sou in útil) comotestemunha posso ser perigoso$

m dos mascarados veio para mim e com uma voz insinuante e grave: + <scute, crA, emsua consciAncia, que esse homem este*a morto? ; @ecerto$ ; < qual pensa que fosse a

causa da morte?+ 5 ópio) mas creio que devem sabA+lo melhor do que eu os que andammascarados surpreendendo gente pela estrada de intra$ <u estava irritado, queriaprovocar algum desenlace definitivo que cortasse os embaraos da minha situaão$

; Perdão ; disse um +, e há que tempo sup4e que esse homem este*a morto? >ãorespondi, pus o chapéu na cabea e comecei a calar as luvas$ .$$$ *unto da *anela, batia opé impaciente$ Houve um silAncio$

2quele quarto pesado de estofos, o cadáver estendido com refle#os l3vidos na face, osvultos mascarados, o sossego lúgubre do lugar, as luzes claras, tudo dava !quele momento

um aspecto profundamente sinistro$ + Ceus senhores ; disse então lentamente um dosmascara dos, o mais alto, o que tinha guiado a carruagem +, compreendem perfeitamente,que se nós tivéssemos morto este homem sab3amos bem que um médico era inútil, e umatestemunha importuna= @esconfiávamos, é claro, que estava sob a aão de um narcótico,mas quer3amos adquirir a certeza da morte$ Por isso o trou#emos$ 2 respeito do crime,estamos tão ignorantes como os senhores$ e não entregamos este caso ! polida, secercamos de mistério e de violAncia a sua visita a esta casa, se lhes vendamos os olhos, éporque re ceávamos que as indaga4es que se pudessem fazer, conduzissem a descobrir,como criminoso ou como cúmplice, alguém que nós temos em nossa honra salvar) se lhesdamos estas e#plica4es$$$

; <ssas e#plica4es são absurdas= ; gritou .$$$ + 2qui há um crime) este homem estámorto, os senhores, mascarados) esta casa parece solitária, nós achamo+nos aquiviolentados, e todas estas circunstBncias tAm um mistério tão revoltante, uma feião tãocriminosa, que não queremos nem pelo mais leve ato, nem pela mais involuntáriaassistAncia, ser parte neste negócio$ >ão temos aqui nada que fazer) queiram abrir aquelaporta$

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7om a violAncia dos seus gestos, um dos mascarados riu$ + 2h= 5s senhores escarnecem= ;gritou .$$$ < arremessando+se violentamente contra a *anela, ia fazer saltar os fechos$ Cas

dois dos mascarados arro*aram+se poderosamente sobre ele, curvaram+no, arrastaram+noaté uma poltrona, e dei#aram+no cair, ofegante, trAmulo de desespero$

<u tinha ficado sentado e impass3vel$ + Ceus senhores ; observei +, notem que enquantoo meu amigo protesta pela cólera, eu protesto pelo tédio$ < acendi um charuto$

; Cas, com os diabos= tomam+nos por assassinos= ; gritou um violentamente$ ; >ão secrA na honra, na palavra de um homem= e vocAs não tiram a máscara, tiro+a eu= Mnecessário que nos ve*am= >ão quero, nem escondido por um pedao de cartão, passarpor um assassino=$$$ enhores= dou+lhes a minha palavra que ignoro quem matou estehomem$

< fez um gesto furioso$ >este movimento, a máscara desapertou+se, descaindo$ <le voltou+se rapidamente, levando as mãos abertas ao rosto$ .oi um movimento instintivo,irrefletido, de desesperaão$ 5s outros cercaram+no, olhando rapidamente para .$$$, quetinha ficado impass3vel$ m dos mascarados, que não tinha ainda falado, o que nacarruagem viera defronte de mim, a to do o momento observava o meu amigo com receio,com suspeita$ Houve um longo silAncio$ 5s mascarados, a um canto, falavam bai#o$ <u, noentanto, e#aminava a sala$ <ra pequena, forrada de seda em pregas, com um tapete mole,espesso, bom para correr com os pés nus$ 5 estofo dos móveis era de seda vermelha com

uma barra verde,única e transversal, como tAm na antiga heráldica os bras4es dosbastardos$ 2s cortinas das *anelas pendiam em pregas amplas e suaves$ Havia vasos de *aspe, e um aroma tépido e penetrante, onde se sentia a verbena e o perfume demarechala$ 5 homem que estava morto era moo, de perfil simpático e fino, de bigodelouro$

0inha o casaco e colete despidos, e o largo peitilho da camisa reluzia com bot4es depérolas) a cala era estreita, bem talhada, de uma cor clara$ 0inha apenas calado umsapato de verniz) as meias eram de seda em grandes quadrados brancos e cinzentos$

Pela fisionomia, pela construão, pelo corte e cor do cabelo, aquele homem parecia inglAs$

2o fundo da sala via+se um reposteiro largo, pesado, cuidado samente corrido$ Parecia meser uma alcova$ >otei admirado que apesar do e#tremo lu#o, de um aroma que andava noar uma sensaão tépida que dão todos os lugares onde ordinariamente se está, se fala e sevive, aquele quarto não parecia habitado) não havia um livro, um casaco sobre umacadeira, umas luvas ca3das, alguma destas mil pequenas coisas confusas, que demonstrama vida e os seus incidentes triviais$

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.$$$ tinha+se apro#imado de mim$ + 7onheceste aquele a quem caiu a máscara? ;perguntei$

; >ão$ 7onheceste?+ 0ambém não$ Há um que ainda não falou, que está sempre olhandopara ti$ Ieceia que o conheas, é teu amigo talvez, não o percas de vista$

m dos mascarados apro#imou+se, perguntando: + 1uanto tempo pode ficar o corpo assimnesta chaise-longue? <u não respondi$ 5 que me interrogou fez um movimento colérico,mas conteve+se$ >este momento o mascarado mais alto, que tinha sa3do, entrara, dizendopara os outros:

; Pronto=$$$ Houve uma pausa) ouvia+se o bater da pAndula e os passos de .$$$, quepasseava agitado, como sobrolho duro, torcendo o bigode$

; Ceus senhores ; continuou voltando+se para nós o mascarado +, damos+lhe a nossapalavra de honra que somos completamente estranhos a este sucesso$ obre isto nãodamos e#plica4es$ @esde este momento os senhores estão retidos aqui$ &maginem quesomos assassinos, moedeiros falsos ou ladr4es, tudo o que quiserem$ &maginem que estãoaqui pela violAncia, pela corrupão, pela astúcia, ou pela fora da lei$$$ como entenderem=o fato é que ficam até amanhã$ 5 seu quarto ; disse+me ; é naquela alcova, e o seu ;apontou para .$$$ ; lá dentro$ <u fico consigo, doutor, neste sofá$ m dos meus amigosserá lá dentro o criado de quarto do seu amigo$ 2manhã despedimo+nos amigavelmente epodem dar parte ! pol3cia ou escrever para os *ornais$

7alou+se$ <stas palavras tinham sido ditas com tranquilida de$ >ão respondemos$ 5smascarados, em quem se percebia um certo embarao, uma evidente falta de serenidade,conversavam bai#o, a um canto do quarto, *unto da alcova$ <u passeava$ >uma das voltasque dava pelo quarto, vi casualmente, perto de uma poltrona, uma coisa brancasemelhante a um leno$ Passei defronte da poltrona, dei#ei voluntariamente cair o meuleno, e no movimento que fiz para o apanhar, lancei despercebidamente mão do ob*etoca3do$ <ra efetivamente um leno$ /uardei+o, apalpei+o no bolso com grande delicadeza detato) era fino, com rendas, um leno de mulher$ Parecia ter bordadas uma firma e umacoroa$

>este momento deram nove horas$ m dos mascarados e#clamou, dirigindo+se a .$$$ ;Vou mostrar+lhe o seu quarto$ @esculpe+me, mas é necessário vendar+lhe os olhos$ .$$$tomou altivamente o leno das mãos do mascarado, cobriu ele mesmo os olhos, e sa3ram$.iquei só com o mascarado alto, que tinha a voz simpática e atraente$

Perguntou+me se queria *antar$ 7onquanto lhe respondesse negativamente, ele abriu umamesa, trou#e um cabaz em que havia algumas comidas frias$ "ebi apenas um copo deágua$ <le comeu$

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(entamente, gradualmente, comeamos a conversar quase em amizade$ <u sounaturalmente e#pansivo, o silAncio pesava+me$ <le era instru3do, tinha via*ado e tinha lido$

@e repente, pouco depois da uma da noite, sentimos na escada um andar leve e cauteloso,e logo alguém tocar na porta do quarto onde estávamos$ 5 mascarado tinha ao entrartirado a chave e havia+a guardado no bolso$ <rguemo+nos sobressaltados$ 5 cadáverachava+se coberto$ 5 mascarado apagou as luzes$

<u estava aterrado, 5 silAncio era profundo) ouvia+se apenas o ru3do da chave que apessoa que estava fora !s escuras procurava introduzir na fechadura$

>ós, imóveis, não respirávamos$ .inalmente a porta abriu+se, alguém entrou, fechou+a,acendeu um fósforo, olhou$ <ntão vendo+nos, deu um grito e caiu no chão, imóvel, com osbraos estendidos$

2manhã, mais sossegado e claro de recorda4es, direi o que se seguiu$ P$ $ ; macircunstBncia que pode esclarecer sobre a rua e o s3tio da casa: @e noite senti passaremduas pessoas, uma tocando guitarra, outra cantando o fado$ @evia ser meia+noite, 5 quecantava dizia esta quadra:

“Escrei uma carta a !upido " mandar-lhe perguntarSe um cora#$o o%endido&&&'

>ão me lembra o resto$ e as pessoas que passaram, tocando e cantando, lerem estacarta, prestarão um notável esclarecimento dizendo em que rua passavam, e de fronte deque casa, quando cantaram aquelas rimas populares$

72PL0(5 R

Ho*e, mais sossegado e sereno, posso contar+lhe com precisão e realidade, reconstruindo+o do modo mais n3tido, nos diálogos e nos olhares, o que se seguiu ! entrada imprevistadaquela pessoa no quarto onde estava o morto$ 5 homem tinha ficado estendido no chão,

sem sentidos: molhamos+lhe a testa, demos+lhe a respirar vinagre de toilette$ Voltou a si,e, ainda trAmulo e pálido, o seu primeiro movimento instintivo foi correr para a *anela=

5 mascarado, porém, tinha+o envolvido fortemente com os braos, e arremessou+o comviolAncia para cima de uma cadeira, ao fundo do quarto$ 0irou do seio um punhal, e disse+lhe com voz fria e firme:

; e faz um gesto, se dá um grito, se tem um movimento, varo+lhe o coraão=+ Vá, vá ;disse eu$ ; "reve= responda$$$ 1ue quer? 1ue veio fazer aqui?

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<le não respondia, e com a cabea tomada entre as mãos, repetia maquinalmente: ; <stáperdido tudo= <stá tudo perdido=+ .ale ; disse+lhe o mascarado, tomando+lhe rudemente

o brao$ ; 1ue veio fazer aqui? 1ue é isto? 7omo soube?$$$ 2 sua agitaão era e#trema:luziam+lhe os olhos entre o cetim negro da máscara$

; 1ue veio fazer aqui? ; repetiu agarrando+o pelos ombros e sacudindo+o como umvime$ ; <scute$$$ ; disse o homem convulsivamente$ ; Vinha saber$$$ disseram+me$$$ >ãosei$

Parece que *á cá estava a polida$$$ queria saber a verdade, indagar quem o tinhaassassinado$$$ vinha tomar informa4es$$$

; abe tudo= ; disse o mascarado, aterrado, dei#ando pender os braos$ <u estava

surpreendido: aquele homem conhecia o crime, sabia que havia ali um cadáver= ó ele osabia, porque deviam ser de certo absolutamente ignorados aqueles sucessos lúgubres$Por consequAncia quem sabia onde estava o cadáver, quem tinha uma chave da casa,quem vinha alta noite ao lugar do assassinato, quem tinha desmaiado vendo sesurpreendido, estava positivamente envolvido no crime$$$

; 1uem lhe deu a chave? ; perguntou o mascarado$ 5 homem calou+se$

; 1uem lhe falou nisto? 7alou+se$ + 1ue vinha fazer, de noite, !s escondidas, a esta casa?

7alou+se$ + Cas como sabia deste absoluto segredo, de que apenas temos conhecimentonós?$$$ < voltando+se para mim, para me advertir com um gesto im percept3vel doe#pediente que ia tomar, acrescentou: +$$$nós e o senhor comissário$

5 desconhecido calou+se$ 5 mascarado tomou+lhe o paletó e e#aminou+lhe os bolsos$<ncontrou um pequeno martelo e um mao de pregos$ ; Para que era isto? ; 0razianaturalmente isso, queria consertar não sei quA, em casa$$$ um cai#ote$$$ 5 mascaradotomou a luz, apro#imou+se do morto, e por um movimento rápido, tirando a manta deviagem, descobriu o corpo: a luz caiu sobre a l3vida face do cadáver$ + 7onhece estehomem?

5 desconhecido estremeceu levemente e pousou sobre o mor to um longo olhar,demorado e atento$ <u em seguida cravei os meus olhos, com uma insistAncia implacávelnos olhos dele, dominei+o, disse+lhe bai#o, apertando+lhe a mão: + Porque o matou?

; <u? ; gritou ele$ ; <stá doido= <ra uma resposta clara, franca, natural, inocente$ + Casporque veio aqui? ; observou o mascarado$ ; 7omo soube do crime? 7omo tinha achave? Para que era este martelo? 1uem é o senhor? 5u dá e#plica4es claras, ou daqui auma hora está no segredo, e daqui a um mAs nas galés$ 7hame os outros + disse ele paramim$

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; m momento, meus senhores, confesso tudo, digo tudo= +gritou o desconhecido$

<speramos) mas retraindo a voz, e com um a entoaão demora da, como quem dita: ; 2verdade ; prosseguiu ; é esta: encontrei ho*e de tarde um homem desconhecido, queme deu uma chave e me disse: sei que é .ulano, que é destemido, vá a tal rua, númerotantos$$$

<u tive um movimento ávido, curioso, interrogador$ &a enfim saber onde estava= Cas omascarado com um movimento impetuoso p6s+lhe a mão aberta sobre aboca,comprimindo+lhe as faces, e com uma voz surda e terr3vel:

; e diz onde estamos, mato+o$ 5 homem fitou+nos: compreendeu evidentemente que eutambém estava ali, sem saber onde, por um mistério) que os motivos da nossa presena

eram também suspeitos, e que por consequAncia não éramos empregados da pol3cia$<steve um momento calado e acrescentou: + Ceus senhores, esse homem fui eu que omatei, que querem mais? 1ue fazem aqui?

; <stá preso ; gritou o mascarado$ ; Vá chamar os outros, doutor$ M o assassino$ +<sperem, esperem ; gritou ele$ ; >ão compreendo= 1uem são os senhores? upus queeram da pol3cia$$$ ão talvez$$, disfaram para me surpreender= <u não conheo aquelehomem, nunca o vi$ @ei#em+me sair$$$ 1ue desgraa=+ <ste miserável há de falar, ele tem osegredo= ; bradava o mascarado$

<u tinha+me sentado ao pé do homem$ 1ueria tentara doura, a astúcia$ <le tinhaserenado, falava com inteligAncia e com facilidade$ @isse+me que se chamava 2$ C$ 7$, queera estudante de medicina e natural de Viseu$ 5 mascarado escutava+nos, silencioso eatento$ <u, falando bai#o com o homem, tinha+lhe pousado a mão sobre o *oelho$ <lepedia+me que o salvasse, chamava+me seu amigo$ Parecia+me um rapaz e#altado,dominado pela imaginaão$ <ra fácil surpreender a verdade dos seus atos$ 7om um mo do3ntimo, confidencial, fiz+lhe perguntas aparentemente sinceras e simples, mas cheias detraião e de análise$ <le, com uma boa+fé ine#periente, a todo o momento se descobria, sedenunciava$

; 5ra ; disse+lhe eu +, uma coisa me admira em tudo isto$ + 1ual? ; < que não tivessedei#ado sinais o arsAnico$$$ ; .oi ópio ; interrompeu ele, com uma simplicidade infantil$<rgui+me de salto$ 2quele homem, se não era o assassino, conhecia profundamente todosos segredos do crime$ + abe tudo ; disse eu ao mascarado$

; .oi ele ; confirmou o mascarado convencido$ <u tomei+o então de parte, e com umafranqueza simples: + 2 comédia acabou, meu amigo, tire a sua máscara, aperte monos amão, demos parte ! pol3cia$ 2 pessoa que o meu amigo receava descobrir, não temdecerto que ver neste negócio$

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; @ecerto que não$ <ste homem é o assassino$ < voltando+se para ele com um olharterr3vel, que flame*ava debai#o da máscara: + < porque o matou?

; Catei+o$$$ ; respondeu o homem$ + Catou+o ; disse o mascarado com uma lentidãode voz que me aterrou ; para lhe roubar NQ libras em ban(-notes, que aquele homemtinha no bolso, dentro de uma bilheteira em que estavam monograma das duas letras deprata, que eram as iniciais do seu nome$

; <u=$$$ para o roubar= 1ue infBmia= Cente= <u não conheo esse homem, nunca o vi, nãoo matei= ; 1ue malditas contradi4es= ; gritou o mascarado e#altado$ 2$ C$ 7$ ob*etoulentamente:

; 5 senhor que está mascarado$$$ este homem não era seu amigo, o único amigo que ele

conhecia em (isboa?

; 7omo sabe? ; gritou repentinamente o mascarado, tomando+lhe o brao$ ; .ale,diga$

; Por motivos que devo ocultar ; continuou o homem ; sabia que este su*eito, que éestrangeiro, que não tem rela4es em (isboa, que chegou há poucas semanas, vinha a estacasa$$$

; M verdade ; atalhou o mascarado$ + 1ue se encontrava aqui com alguém$$$ ; Mverdade ; disse o mascarado$ <u, pasmado, olhava para ambos, sentia a lucidez das ideias

perturbada, via aparecer uma nova causa imprevista, temerosa e ine#plicável$

; 2lém disso ; continuou o homem desconhecido ; há de saber também que umgrande segredo ocupava a vida deste infeliz$$$ ; M verdade, é verdade ; dizia omascarado absorto$ ; Pois bem, ontem uma pessoa, que casualmente não podia sair decasa, pediu+me que viesse ver se o encontrava$$$

>ós esperávamos, petrificados, o fim daquelas confiss4es$ + <ncontrei+o morto ao chegaraqui$ >a mão tinha este papel$ < tirou do bolso meia folha de papel de carta, dobrada$ ;(eia ; disse ele ao mascarado$ <ste apro#imou o papel da luz, deu um grito, caiu sobre

uma cadeira com os braos pendentes, os olhos cerrados$

<rgui o papel, li:

) declare that ) hae (illed m*sel% +ith opium$ 8@eclaro que me matei com ópio9$

.iquei petrificado$ 5 mascarado dizia com a voz absorta como num sonho: + >ão époss3vel$ Cas é a letra dele, é= 2h= que mistério, que mistério=

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Vinha a amanhecer$ into+me fatigado de escrever$ 1uero aclarar as minhas recorda4es$2té amanhã$

72PL0(5 S

Peo+lhe agora toda a sua atenão para o que tenho de contar+lhe$ 2 madrugada vinha$entiam+se *á os ru3dos da povoaão que desperta$ 2 rua não eram acadamizada, porqueeu sentia o rodar dos carros sobre a calada$ 0ambém não era uma rua larga, porque o ecodas carroas era profundo, cheio e pró#imo$ 5uvia preg4es$ >ão sentia carruagens$

5 mascarado tinha ficado numa prostraão e#trema, sentado, imóvel, com a cabea

apoiada nas mãos$ 5 homem que tinha dito chamar+se 2$ C$ 7$ estava encosta do no sofá,com os olhos cerrados, como adormecido$ <u abri as portas da *anela: era dia$ 5stransparentes e as persianas estavam corridos$ 5s vidros eram foscos como os dos globosdos candeeiros$ <ntrava uma luz lúgubre, esverdeada$

; Ceu amigo ; disse eu ao mascarado +, é dia$ 7oragem= M necessário fazer o e#ame doquarto, móvel por móvel$

<le ergueu+se e correu o reposteiro do fundo$ Vi uma alcova, com uma cama, e ! cabeceirauma pequena mesa redonda, coberta com um pano de veludo verde$ 2 cama não estava

desmanchada, cobria+a um adredão de cetim encarnado$ 0inha um só travesseiro largo,alto e fofo, como se não usam em Portugal) sobre a mesa estava um cofre vazio e uma

 *arra com flores murchas$ Havia um lavatório, escovas, sabonetes, espon*as, toalhasdobradas e dois frascos esguios de violetas de Parma$ 2o canto da alcova estava umabengala grossa com estoque$

>a disposião dos ob*etos na sala não havia nenhuma parti cularidade significativa$ 5e#ame dela dava na verdade a per sua são de que se estava numa casa raramentehabitada, visitada a espaos apenas, sendo um lugar de entrevistas, e não um interiorregular$

2 casaca e o colete do morto estavam sobre uma cadeira) um dos sapatos via+se no chão,ao pé da chaise-longue) o chapéu acha vá+se sobre o tapete, a um canto, comoarremessado$ 5 paletó estava ca3do ao pé da cama$

Procuraram+se todos os bolsos dos vestidos do morto: não se encontrou carteira, nembilhetes, nem papel algum$ >a algibeira do colete estava o relógio, de ouro encobrado,sem firma, e uma pequena bolsa de malha de ouro, com dinheiro miúdo$ >ão se lheencontrou leno$ >ão se p6de averiguar em que tivesse sido trazido de forno ópio) nãoapareceu frasco, garrafa, nem papel ou cai#a em que tivesse estado, em liquido ou em pó)

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e foi a primeira dificuldade que no meu esp3rito se apresentou contra o suic3dio$ Pergunteise não havia na casa outros quartos que comunicas sem com aquele aposento e que

devAssemos visitar$; Há ; disse o mascarado +, mas este prédio tem duas entra das e duas escadas$ 5raaquela porta, que comunica com os demais quartos, encontramo+la fechada pelo outrolado quando chegamos aqui$ (ogo este homem não saiu desta sala depois que subiu da ruae antes de morrer ou de ser morto$

7omo tinha então trazido o ópio? 2inda quando o tivesse *á no quarto, o frasco, ouqualquer invólucro que contivesse o narcótico devia aparecer$ >ão era natural que tivessesido aniquilado$ 5 copo em que ficara o resto da água o piada, ali estava$ m ind3cio maisgrave parecia destruir a hipótese do suic3dio: não se encontrou a gravata do morto$ >ãoera natural que ele a tivesse tirado, que a tivesse destru3do ou lanado fora$ >ão eratambém racional que tendo vindo !quele quarto esmeradamente vestido como para umavisita cerimoniosa, não trou#esse gravata$ 2lguém, pois, tinha estado naquela casa, oupouco antes da morte ou ao tempo dela$ <ra essa pessoa que tinha para qualquer fimtomado a gravata do morto$ 5ra a presena de alguém naquele quarto, coincidindo com aestada do suposto suicidado ali, tirava a possibilidade ao suic3dio e dava presun4es aocrime$

2pro#imamo+nos da *anela, e#aminamos detidamente o papel em que estava escrita a

declaraão do suicida:; 2 letra é dele, parece+me indubitável que é ; disse o mascarado ; mas, na verdade,não sei porquA, não lhe acho a feião usual da sua escrita= 5bservou+se o papelescrupulosamente) era meia folha de escrever cartas$ >otei logo no alto da página aimpressão muito apagada, muito indistinta, de uma firma e de uma coroa, que devia terestado gravada na outra meia folha$ <ra, portanto, papel marcado$ .iz notar estacircunstBncia ao mascarado) ele ficou surpreendido e confuso$ >o quarto não havia papel,nem tinteiro, nem penas$ 2 declaraão, pois, tinha sido escrita e preparada fora$

; <u conheo o papel de que ele usava em casa ; disse o mascarado +, não é deste) nãotinha firma, não tinha coroa$ >ão podia usar doutro$

2 impressão da marca não era bastante distinta para que se percebesse qual fosse a firmae qual a coma$ .icava, porém, claro que a declaraão não tinha sido escrita nem em casadele, onde não havia daquele papel, nem naquele quarto, onde não havia papel algum,nem tinteiro, nem um livro, um buard , um lápis$ 0eria sido escrita fora, na rua, ao acaso?<m casa de alguém? >ão, porque ele não tinha em (isboa, nem rela4es 3ntimas, nemconhecimento de pessoas cu*o papel fosse marcado com coroa$

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0eria sido feita numa lo*a de papel? >ão, porque o papel que se vende vulgarmente naslo*as não tem coroas$ eria a declaraão escrita em alguma meia folha branca tira da de

uma velha carta recebida? >ão parecia também natural, por que o papel estava dobradoao meio e não tinha os vincos que dá o envelope$

@emais a folha tinha um aroma de pós de marechala, o mesmo que se sentia, suavementeembebido no ar do quarto em que estávamos$ 2lém disso, pondo o papel diretamentesobre a claridade da luz, distingui o vest3gio de um dedo polegar, que tinha sido assentesobre o papel no momento de estar suado ou úmido, e tinha embaciado a sua brancuralisa e acetinada, havendo dei#ado uma impressão e#ata$ 5ra este dedo parecia delgado,pequeno, feminil$ <ste indicio era notavelmente vago, mas o mascarado tinha a essetempo encontrado um, profundamente eficaz e seguro$

; <ste homem ; notou ele ; tinha o costume invariável, me cBnico, de escrever,abreviando+a, a palavra that ) deste modo: dois 00 separados por um trao$ <staabreviatura era só dele, original, desconhecida$ >esta declaraão, aliás pouco inglesa, apalavra thatacha-se escrita por inteiro$

Voltando+se para C$ 7$: + Porque não apresentou logo este papel? ; perguntou omascarado$ ; <sta declaraão foi falsificada$ + .alsificada= ; e#clamou o outro, erguendo+se com sobressalto ou com surpresa$

; .alsificada) feita para encobrir o assassinato) tem todos os ind3cios disso$ Cas o grande,o forte, o positivo ind3cio é este: onde estão as NQ libras em notas de &nglaterra, que estehomem tinha no bolso?

C$ 7$ olhou+o pasmado, como um homem que acorda de um sonho$ + >ão aparecem,porque o senhor as roubou$ Para as roubar matou este homem$ Para encobrir o crimefalsificou este bilhete$

; enhor ; observou gravemente 2$ C$ 7$ +, fala+me em NQ libras: dou+lhe a minhapalavra de honra que não sei a que se quer referir$

<u então disse lentamente, pondo os olhos com uma perscrutaão demorada sobre asfei4es do mancebo: ; <sta declaraão é falsa, evidentemente) não percebo o que querdizer este novo negócio das NQ libras, de que só agora se fala) o que ve*o é que estehomem foi envenenado: ignoro se foi o senhor, se foi outro que o matou, o que sei é queevidentemente o cúmplice é uma mulher$ + >ão pode ser, doutor= ; gritou o mascarado$; M uma suposião absurda$

; 2bsurda=?$$$ < este aposento, este quarto forrado de seda, fortemente perfumado,carregado de estofos, iluminado por uma claridade baa coada por vidros foscos) a escadacoberta com um tapete) um corrimão engenhado com uma corda de seda) ali aos pés

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daquela volteriana aquele tapete feito de uma pele de urso, sobre a qual me parece queestou vendo o vest3gio de um homem prostra do? >ão vA em tudo isto a mulher? >ão é

esta evidentemente uma casa destinada a entrevistas de amor?$$$; 5u a qualquer outro fim

; < este papel? <ste papel de marca pequen3ssima, do que as mulheres compram emParis, na casa Caquet, e que se chama papel da &mperatriz?

; Cuitos homens o usam=+ Cas não o cobrem como este foi coberto, com um sachet  emque havia o mesmo aroma que se respira no ambiente desta casa$ <ste papel pertence auma mulher, que e#aminou a falsificaão que ele encerra, que assistiu a ela, que seinteressava na perfeião com que a fabricassem, que tinha os dedos úmidos, dei#ando no

papel um vest3gio tão claro$$$ 5 mascarado calava+se$

; < um ramo de flores murchas, que está ali dentro? m ramo que e#aminei e que éformado por algumas rosas, presas com uma fita de veludo? 2 fita está impregnada doperfume da pomada, e descobre+se+lhe um pequeno vinco, como o de uma unhadaprofunda, terminando em cada e#tremidade por um buraquinho$$$ < o vest3gio flagranteque dei#ou noveludo um gancho de segurar o cabelo=

; <sse ramo podiam ter+lho dado, podia tA+lo trazido ele mesmo de fora$ ; < este lenoque encontrei ontem debai#o de uma cadeira? < atirei o leno para cima da mesa$ 5

mascarado pegou nele avidamente, e#aminou+o e guardou+o$ C$ 7$ olhava pasmado paramim, e parecia aniquilado pela dura lógica das minhas palavras$ 5 mascarado ficou poralguns momentos silencioso) depois com uma voz humilde, quase suplicante: + @outor,doutor, por amor de @eus= esses ind3cios não provam$ <ste leno, de mulherindubitavelmente estou convencido que é o mesmo que o morto trazia no bolso$ Mverdade: não se lembra que não lhe encontramos leno?+ < não se lembra também quenão lhe encontramos gravata?

5 mascarado calou+se sucumbido$ + >o fim de contas eu não sou aqui *uiz, nem parte ;e#clamei e u$ ; @eploro vivamente esta morte, e falo nisto unicamente pelo pesar e pelo

horror que ela me inspira$ 1ue este moo se matasse ou que fosse morto, que ca3sse !smãos de uma mulher ou !s mãos de um homem, importa+me pouco$ 5 que devo dizer+lheé que o cadáver não pode ficar por muito mais tempo insepulto: é preciso que o enterremho*e$ Cais nada$ M dia$ 5 que dese*o é sair$

; 0em razão, vai sair *á ; cortou o mascarado$ < em seguida, tomando C$ 7$ pelo brao,disse+me: + m momento= <u volto *á=

< sa3ram ambos pela porta que comunicava como interior da casa, fechando+a ! chavepelo outro lado$ .iquei só, passeando agitadamente$ 2 luz do dia tinha feito surgir no meu

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esp3rito uma multidão de pensamentos inteiramente novos e diversos daqueles que me haviam ocupado durante a noite$ Há pensamentos que não vivem se não no silAncio e na

sombra, pensamentos que o dia desvanece e apaga) há outros que só surgem ao clarão dool$

<u sentia no cérebro uma multidão de ideias estremunhadas, que ! luz repentina damadrugada voe*avam em turbilhão como um bando de pombas amedrontadas peloestridor de um tiro$

Caquinalmente entrei na alcova, sentei+me na cama, encostei um brao no travesseiro$<ntão, não sei como, olhei, reparei, vi, com estranha comoão, sobre a alvura dotravesseiro, preso num botão de madrepérola, um longo cabelo louro, um cabelo demulher$

>ão me atrevi logo a tocar+lhe$ Pus+me a contemplá+lo, ávida e longamente$

%+ <ra então certo= 23 estás, pois= <ncontro+me finalmente$$$ Pobre cabelo= 2pieda+me asimplicidade inocente com que te ficas te a3, patente, descuidado, preguioso, lBnguido=Podes ter maldade, podes ter malvadez, mas não tens mal3cia, não tens astúcia$ 0enho+tenas mãos, fito+te com os meus olhos) não foges, não estremeces, não coras) dás+ te,consentes+te, facilitas+te, meiga, doce, confiadamente$$$ <, no entanto, tAnue, e#3gua,quase microscópica, és uma parte da mulher que eu adivinhava, que eu antevia, que euprocuro= M ela autora do crime? M inteiramente inocente? M apenas cúmplice? >ão sei,nem tu mo poderás dizer?'

@e repente, tendo continuado a considerar o cabelo, por um processo de esp3ritoine#plicável, pareceu+me reconhecer de súbito aquele fio louro, reconhecA+lo em tudo: nasua cor, na sua nuance especial, no seu aspecto= (embrou+me, apareceu+me então amulher a quem aquele cabelo pertencia= Cas quando o nome dela me veioinsensivelmente aos lábios,disse comigo:

%5ra= Por um cabelo= 1ue loucura= < não pude dei#ar de rir$ <sta carta vai *ádemasiadamente longa$ 7ontinuarei amanhã$

72PL0(5 O

7ontei+lhe ontem como inesperadamente havia encontrado ! cabeceira da cama umcabelo louro$ Prolongou+se a minha dolorosa surpresa$ 2quele cabelo luminoso,languidamente enrolado, quase casto, era o ind3cio de um assassinato, de umacumplicidade pelo menos= <squeci+me em longas con*ecturas, olhando, imóvel, aquelecabelo perdido$

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2 pessoa a quem ele pertencia era loura, clara, decerto, pequena, mignonne, porque o fiode cabelo era delgad3ssimo, e#traordinariamente puro, e a raiz branca parecia prender+se

aos tegumentos cranianos por uma ligaão tAnue, delicadamente organizada$ 5 caráterdessa pessoa devia ser doce, humilde, dedicado e amante, porque o cabelo não tinha aocontato aquela aspereza cortante que oferecem os cabelos pertencentes a pessoas detemperamento violento, altivo e ego3sta$ @evia ter gostos simples, elegantementemodestos a dona de tal cabelo, *á pelo impercept3vel perfume dele, *á porque não tinhavest3gios de ter sido frisado, ou caprichosamente enrolado, domado em penteadosfantasiosos$

0eria sido talvez educada em &nglaterra ou na 2lemanha, por que o cabelo denotava nasua e#tremidade ter sido espontado, hábito das mulheres do >orte, completamente

estranho !s meridionais, que abandonam os seus cabelos ! abundante espessura natural$

&sto eram apenas con*ecturas, dedu4es da fantasia, que nem constituem uma verdadecient3fica, nem uma prova *udicial$ <sta mulher, que eu reconstru3a assim pelo e#ame deum cabelo, e que me aparecia doce, simples, distinta, finamente educa da, como poderiater sido o protagonista cheio de astúcia daquela oculta tragédia? Cas conhecemos nós,porventura, a secreta lógica das pai#4es? @o que eu estava perfeitamente convencido éque havia uma mulher como cúmplice$ 2quele homem não se tinha suicidado$ >ão estavadecerto sé, no momento em que bebera o ópio$ 5 narcótico tinha+lhe sido dado, semviolAncia evidentemente, por ardil ou engano, num copo de água$ 2 ausAncia do leno, o

desaparecimento da gravata, a colocaão do fato, aquele cabelo louro, uma covarecentemente feita no travesseiro pela pressão de uma cabea, tudo indicava a presenade alguém naquela casa durante a noite da catástrofe$ Por consequAncia: impossibilidadede suic3dio, verossimilhana de crime$

5 leno achado, o cabelo, a disposião da casa 8evidentemente destinada a entrevistas3ntimas9, aquele lu#o da sala, aquela escada velha, devastada, coberta com um tapete, acorda de seda que eu tinha sentido$$$ tudo isto indicava a presena, a cumplicidade de umamulher$ 1ual era a parte dela naquela aventura? >ão sei$ 1ual era a parte de 2$ C$ 7$? <rao assassino, o cúmplice, o ocultador do cadáver? >ão sei$ C$ 7$ não podia ser estranho a

essa mulher$ >ão era decerto um cúmplice tomado e#clusivamente para o crime$ Para darópio num copo de água não é necessário chamar um assassino assalariado$ 0inham porconsequAncia um interesse comum$ <ram amantes? <ram casados? <ram ladr4es? <acudia+me ! memória aquela inesperada referAncia a NQ libras que de repente me tinhaaparecido como um novo mistério$ 0udo isto eram con*ecturas fugitivas$ Para que hei derepetir eu todas as ideias que se formavam e que se desmanchavam no meu cérebro,como nuvens num véu varrido pelo vento? Há decerto na minha hipótese ambiguidades,contradi4es e fraquezas, há nos ind3cios que colhi lacunas e incoerAncias: muitas coisassignificativas me escaparam por certo, ao passo que muitos pormenores ine#pressivos se

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me gravaram na memória, mas eu estava num estado mórbido de perturbaão,inteiramente desorganizado por aquela aventura, que inesperadamente, com o seu

corte*o de sustos e mistérios, se instalara na minha vida$ 5 senhor redator, que *ulga deBnimo frio, os leitores, que sossegadamente, em sua casa, lAem esta carta, poderãomelhor combinar, estabelecer dedu4es mais certas, e melhor apro#imar+se pela induãoe pela lógica da verdade oculta$

<u achava+me só havia uma hora, quando o mascarado alto entrou, trazendo o chapéu nacabea e no brao uma capa de casimira alvadia$ + Vamos ; disse ele$

0omei calado o meu chapéu$ ; ma palavra antes ; disse ele$ + <m primeiro lugar dA+mea sua palavra de honra que ao subir agora ! carruagem não terá um gesto, um grito, ummovimento que me denuncie$

@ei a minha palavra$ + "em= ; continuou$ + 2gora quero dizer+lhe mais: aprecio adignidade do seu caráter, a sua delicadeza$ er+me+ia doloroso que entre nós houvesse emqualquer tempo motivos de desdém, ou necessidades de vingana$ Por isso afirmo+lhe: souperfeitamente estranho a estes sucesso$ Cais tarde talvez entregue este caso ! pol3cia$ Porora sou eu pol3cia, *uiz e talvez carrasco$ <sta casa é um tribunal e um cárcere$ Ve*o que odoutor leva daqui a desconfiana de que uma mulher se envolveu neste crime: não osuponha, não podia ser$ >o entanto, se alguma vez lá fora falar, a respeito deste caso, emalguma pessoa determinada e conhecida, dou+lhe a minha palavra de honra, doutor, que o

mato, sem remorso, sem repugnBncia, naturalmente, como corto as unhas$ @A+me agora oseu brao$ 2h= esquecia+me, meu caro, que os seus olhos estão destinados a ter estaslunetas de cambraia$ <, rindo, apertou+me o leno nos olhos$

@escemos a escada, entramos na carruagem, que tinha os stores fechados$ >ão pude verquem guiava os cavalos porque só dentro do coupé  achei a vista livre$ 5 mascaradosentou+se ao pé de mim$ Via+lhe uma pequena parte da face tocada da luz$ 2 pele era fina,pálida, o cabelo castanho, levemente anelado$ 2 carruagem seguiu um caminho, que pelosacidentes da estrada, pela diferena de velocidade indicando aclives e declives, pelasalternativas de macadame e de calada, me parecia o mesmo que t3nhamos seguido na

véspera, no comeo da aventura$ Iodamos finalmente na estrada larga$

; 2h, doutor= ; dizia o mascarado com desenfado$ ; abe o que me aflige? M que o voudei#ar na estrada, só a pé= >ão se pode remediar isto$ Cas não se assuste$ 5 7acém fica adois passos, e a3 encontra facilmente conduão para (isboa$

< ofereceu+me charutos$

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@epois de algum tempo, em que fomos na maior velocidade, a carruagem parou$ ;7hegamos ; disse o mascarado$ ; 2deus, doutor$ < abriu por dentro a portinhola$ +

5brigado= ; acrescentou$ ; 7reia que o estimo$ Cais tarde saberá quem sou$ Permita@eus que ambos tenhamos no aplauso das nossas consciAncias e no prazer que dãocumprimento de um grande dever o derradeiro desenlace da cena a que assistiu$ Iestituo+lhe a mais completa liberdade$ 2deus=

2pertamos a mão, eu saltei$ <le fechou a portinhola, abriu os stores e estendendo+me parafora um pequeno cartão: ; /uarde essa lembrana ; disse$ ; M o meu retrato$ <u, de pé,na estrada, *unto das rodas, tomei a fotografia avidamente, olhei$ 5 retrato estavatambém mascarado=

; M um capricho do ano passado, depois de um baile de máscaras= ; gritou ele,estendendo a cabea pela portinhola da carruagem que comeava a rodar a trote$ Via+aafastando+se na estrada$ 5 cocheiro tinha o chapéu derrubado, uma capa traada sobre orosto$ 1uer que lhe diga tudo? 5lhei para a carruagem com melancolia= 2quele tremlevava consigo um segredo ine#plicável$ >unca mais veria aquele homem$ 2 aventuradesvanecia+se, tinha findado tudo

5 pobre morto, esse lá ficava, estendido no sofá, que lhe servia de sarcófago$ 2chei+me só,na estrada$ 2 manhã estava nevoada, serena, melancólica$ 2o longe distinguia ainda otrem$ m camponAs apareceu vindo do lado oposto !quele por onde ele desaparecia$

; 5nde fica o 7acém?+ @e lá venho eu, senhor$ empre pela estrada, a meio quar to delégua$

2 carruagem, pois, tinha+se dirigido para intra$ 7heguei ao 7acém fatigado$ Candei umhomem a intra, ! quinta de .$$$, saber se tinham chegado os cavalos) pedi para (isboauma carruagem, e esperei+a a uma *anela, por dentro dos vidros, olhando tristemente paraas árvores e para os campos$ Ha via meia hora que estava ali, quando vi passar a toda abrida um fogoso cavalo$ Pude apenas distinguir entre uma nuvem de pó o vulto quaseindistinto do cavaleiro$ &a para (isboa embuado em uma capa alvadia$

0omei informa4es a respeito da carruagem que passara na véspera conosco$ Haviacontradi4es sobre a cor dos cavalos$ Voltou de intra o homem que eu ali mandara,dizendo que na quinta de .$$$ tinham sido entregues os cavalos por um criado do campo, oqual dissera que os senhores, ao pé do 7acém, tinham encontrado um amigo que os levara consigo em uma caleche para (is boa$ @a3 a momentos chegou a minha carruagem$ Volteia (isboa, corri a casa de .$$$ 5 criado tinha recebido este bilhete a lápis:

>ão esperem por mim estes dias$ <stou bom$ 2 quem me procurar, que fui para Cadrid$

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Procurei+o debalde por toda a (isboa$ 7omecei a inquietar+me$ .$$$ estava evidentementeretido$ Ieceei por mim$ (embraram+me as ameaas do mascarado, vagas mas resolutas$

>a noite seguinte, ao recolher para casa, notei que era seguido$ <ntregar ! pol3cia estenegócio, tão vago e tão incompleto como ele é, seria tornar+me o denunciante de umaquimera$ ei que, em resultado das primeiras not3cias que lhe dei, o /overnador 7ivil de(isboa oficiou ao administrador de intra convidando+o a meter o esforo da sua pol3cia nodescobrimento deste crime$ .oram inúteis estas providAncias$ 2ssim devia ser$ 5 sucessoque constitui o assunto destas cartas está por sua natureza fora da alada das pesquisaspoliciais$ >unca me dirigi !s autoridades, quis simples mente valer+me do público,escolhendo para isso as colunas populares do seu periódico$ Iesolvi homiziar+me,receando ser v3tima de uma emboscada$

ão óbvias, depois disto, as raz4es por que lhe o meu no me: assinar estas linhas seriapatentear+me) não seria esconder+me, como quero$

@o meu impenetrável retiro lhe diri*o esta carta$ M manhã$ Ve*o a luz do ol nascenteatravés das minhas gelosias$ 5uo os preg4es dos vendedores matinais, os chocalhos dasvacas, o rodar das carruagens, o murmúrio alegre da povoaão que se levanta de pois deum sono despreocupado e feliz$$$ &nve*o aqueles que não tendo a fatalidade de secretasaventuras passeiam, conversam, moure*am na rua$ <u ; pobre de mim= ; estouencarcerado por um mistério, guardado por um segredo=

P$ $ ; 2cabo de receber uma longa carta de .$$$ <sta carta, escrita há dias, só ho*e me veio! mão$ endo+me enviada pelo correio, e tendo+me eu ausentado da casa em que viviasem dizer para onde me mudava, só agora pude haver essa interessante missiva$ 23 tem,senhor redator, copiada por mim, a primeira parte dessa carta, da qual depois de amanhãlhe enviarei o resto$ Publique+a, se quiser$ M mais do que um importante esclarecimentoneste obscuro sucesso) é um vest3gio luminoso e profundo$ .$$$ é um escritor público, edescobrir pelo estilo um homem é muito mais fácil do que reconstruir sobre um cabelo afigura de uma mulher$ M grav3ssima a situaão do meu amigo$ <u, aflito, cuidadoso,hesitante, perple#o, não sabendo o que faa, não podendo deliberar pela refle#ão, rendo+me ! decisão do acaso, e elimino, *untamente com a letra do autógrafo, as duas palavras

que constituem o nome que firma essa longa carta$ >ão posso, não devo, não me atrevo,não ouso dizer mais$ Poupem+me a uma derradeira declaraão, que me repugna$2divinhem$$ se puderem$ 2deus=

INTERVENÇÃO DE Z.

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>ota do Diário de Notícias  $ ; >o original da carta publica da ontem havia algumaspalavras a lápis, nas quais só fizemos re paro depois de impresso o *ornal$ <ssas palavras

continham esta observaão:2 fotografia do mascarado foi feita em casa de Henri que >unes, Iua das 7hagas, (isboa$0alvez a3 possa haver noticia do su*eito fotografado$

2ntes de darmos ! estampa a longa carta de .$$$, cu*a primeira parte nos foi ontem enviadapelo médico, é dever tornar conheci da uma outra important3ssima que recebemos pelaposta interna, assinada com a inicial T, e que temos em nosso poder há *á trAs dias$ <stacarta, que tão estreitamente vem prender+se na história dos sucessos que constituem oassunto desta narrativa, é a seguinte:

enhor redator do Diário de Notícias$ ; (isboa, Q de -ulho de DFO$ ; <screvo+lheprofundamente indignado$ Principiei a ler, como quase toda a gente em (isboa, as cartaspublicadas na sua folha, em que o doutor an6nimo conta o caso que essa redaão intitulou

, Mistério da Estrada de Sintra$ &nteressava+me essa narrativa e segui+a com a curiosidadedespreocupada que se liga a um canard   fabricado com engenho, a um romance !semelhana dos 0hugs e de alguns outros do mesmo gAnero com que a veia imaginosa dosfantasistas franceses e americanos vem de quando em quando acordar a atenão da<uropa para um sucesso estupendo$ 2 narraão do seu periódico tinha sobre as demaisque tenho li do o mérito original de se passarem os sucessos ao tempo que se vão lendo,de serem an6nimas as personagens e de estar tão secretamente encoberta amolaprincipal do enredo, que nenhum leitor poderia contestar com provas a veracidade docaso portentosamente romanesco, que o autor da narrativa se lembrara de lanar derepente ao meio da sociedade prosaica, ramerraneira, simples e honesta em que vivemos$&a+me parecendo ter diante de mim o ideal mais perfeito, o tipo mais acabado do oman

 %euilleton, quando inesperadamente encontro no folhetim publicado ho*e as iniciais de umnome de homem ; 2$ C$ 7$ ; acrescentando+seque a pessoa designada por estas letras éestudante de medicina e natural de Viseu$ <u tenho um amigo querido com aquelas iniciaisno seu nome$ M *ustamente estudante de medicina e natural de Viseu= 5 acaso não podia

reunir tudo isto$ Havia, portanto, o intuito de fazer cobardemente uma insinuaãoinfam3ssima$ &sto não é l3cito a romancista nenhum$

2 primeira impressão que senti foi a da repulsão e do tédio$ aindo de casa pouco depoisda leitura do seu periódico, procurei o meu amigo para lhe ler a passagem que lhe diziarespeito, e p6r+ me ! sua disposião no caso que precisasse de mim para pedir, quantoantes, ! redaão do Diário de Notícias a satisfaão de honra, que homens de educaão ede brio não poderiam decerto recusar a semelhante agravo$ <m casa do meu amigo acabo,porém, de saber, cheio de confusão e de surpresa, que ele desapareceu e que é ignorado oseu destino=

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<ste desaparecimento e a coincidAncia achada na carta do doutor levam+medesgraadamente a acreditar que por estranhas fatalidades o meu infeliz amigo se acha

involuntariamente envolvido neste tenebroso negócio$ 2 data do desaparecimento delecondiz perfeitamente com a que encontro na carta do seu correspondente$ M claro que há,pois, em volta da pessoa de 2$ C$ 7$, uma intriga real, uma emboscada talvez, uma traião$

erei tristemente obrigado a ter por ver3dica, no todo ou em parte, a not3cia que leio nasua folha? -ulgo do meu dever assegurar o seguinte: >ão seio que o meu amigo 2$ C$ 7$ iafazer alta noite a essa casa desconhecida, tendo uma chave dela, martelo e pregos$ >ão seiporque se declarou autor do assassinato, negando o depois$ &gnoro a 3ntima verdadedestas contradi4es$

Cas o que sei, aquilo de que posso *á dar testemunho, e não só eu, mas amigos, masnumerosas pessoas, é que na noite que se mostra ter sido a do assassinato ele esteve, atéquase de madrugada, em minha casa, conversando, rindo, bebendo cerve*a$ aiu talvez !strAs horas da noite$

@eclaro também, e isto pode ser igualmente apoiado por seguras testemunhas: que !snove horas da manhã do dia seguinte estive no quarto dele$ 2inda dormia, acordousobressaltado ! minha voz, e tornou a adormecer enquanto eu procurava entre os seuslivros um volume de 0aine$ 2s donas da casa que o hospedam disseram+me que ele entrarapela madrugada$

; 2li pela volta das trAs e meia ; con*ecturavam elas$ 5ra da minha casa, de onde saiu !strAs, até casa dele, onde entrou !s trAs e meia, o caminho que é longo, ocupa *ustamenteeste espao de tempo$

Por consequAncia, respondam: quando cometeu ele o crime? 5 emprego do seu tempoestá todo *ustificado: das nove da noite até madrugada em minha casa, numa conversa

 *ovial e 3ntima) da madrugada até !s nove, num sono pac3fico em sua própria casa$

Iesta unicamente a meia hora do caminho, da qual não há testemunhas$ M cr3vel que emmeia hora pudesse ir alguém a essa casa, preparar ópio, fazA+lo beber a um homem,

falsificar uma declaraão e vir sossegadamente dormir? 0em isto lógica?

@emais o crime foi cometido numa casa, o ópio foi deitado num copo de água, dadotraioeiramente$ 5 cadáver estava meio despi do$ 0udo isto indica que entre o assassino eo desgraado houve uma entrevista, tinham conversado intimamente, tinham rido decerto) o que depois morreu tinha talvez calor, p6s+se livremente, tirou o casaco, contaramporventura anedotas, e num momento de sede, o ópio foi dado num copo de água$ < tudoisto só faz em meia hora= <m meia hora= @evendo, meus senhores, descontar+se desta

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meia hora o tempo que vai de minha casa ! casa do crime, e da3 a casa de 2$ C$ 7$= Podeisto ser?

2gora outro argumento: eu conheo 2$ C$ 7$) o seu caráter é digno, impecável) o seucoraão é compassivo e simples) a sua vida é laboriosa e isolada) não e#iste nela nemmistério, nem aventura, nem patético: estava para casar, sem romance, trivialmente$

<u sabia de todos os seus passos, conhecia as suas rela4es$ <stou certo que nunca viu oassassinado, o qual, no dizer do doutor, parecia estrangeiro, sem rela4es aqui, edomiciliado há pouco tempo em Portugal= Poderia ser um encontro casual, uma ri#ainesperada? &mposs3vel$ e o homem foi encontrado estendido num sofá, morto com ópio=

Poderia C$ 7$ ter sido assalariado para cometer este crime? 1ue loucura= m homem da

sua inteligAncia, do seu caráter, da sua elevaão de esp3rito= 2lém de que, ho*e o empregode homicida, regular e devidamente retribu3do como uma funão pública, não e#iste noscostumes$

Pode+se conceber que um homem que premedita um crime este*a até o momento decisivodistra3do, espirituoso, desabotoando os seus parado#os, bebendo cerve*a? < que depois vásossegadamente dormir, e que um amigo que o visite na manhã seguinte encontre sobre asua banca de cabeceira, uma chávena de chá e um livro de história? < dA+se isto com umhomem de caráter t3mido, de hábitos modestos, homem de estudo, sem energia de aão,e de uma notável franqueza de impress4es=

e me perguntarem, porém, porque aparece C$ 7$ de noite naquela casa com um martelo,com pregos, e se declara assassino ; isso não o sei e#plicar$ uspeito que ha*a uma grandeinfluAncia que pesa sobre ele, alguém que com promessas e#traordinárias, com sedu4esindiz3veis, o obriga a apresentar+se como autor do crime$ C$ 7$ evidentemente sacrifica+se$Por quem, ignoro+o$ Cas sacrifica+se, e na ignorBncia de que estas dedica4es são sempredesapreciadas perante o trabalho da pol3cia, quer e#piar o crime de outro) perde+se parasalvar alguém$ 7om que interesse? Por que sedu4es? >ão sei e#plicar$ <le, tão indiferenteao dinheiro= tão r3gido de costumes e de sensa4es= Pois bem= C$ 7$ pode sacrificar+se)pode+o fazer$ >ós, seus amigos, é que não podemos consenti+lo$ 5 seu corpo, que lhepertence e#clusivamente, pode dá+lo ! infecão de um cárcere ou ao peso de uma grilheta$Cas o seu caráter, a sua honra, a sua reputaão, a sua alma, essa pertence também aosseus amigos, e a par te que nos pertence havemos de defendA+la cora*osamente$ >ão= C$7$ não foi o assassino$ @i+lo a evidAncia, a fatal lógica dos fatos, a terr3vel matemática dotempo, o conhecimento do seu caráter, e a coerAncia dos temperamentos, que é umaverdade nas ciAncias fisiológicas$ >ão, não é o assassino$ e o diz, está louco, mente$ @igo+lhe claramente, em frente, diante dos seus próprios olhos fitos sobre os meus: ; e tedeclaras o autor desse crime, mentes= <le tem decerto o senso moral transviado$ e medei#assem falar+lhe=$$$ <sclaream+lhe, pelo amor de @eus, aquela razão cheia de escuras

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nuvens da pai#ão e da dor= &sto é aflitivo= Honra, amor, fam3lia, esperana, tudo esqueceuesse homem= 1ue se lembre, o desgraado, que não é só neste mundo$ 1ue se lembre que

talvez a estas horas, no fundo da prov3ncia, sua mãe, suas irmãs, sabem *á que ele estáaqui apontado como assassino= 1ue se lembre da terr3vel desonra, do seu futuro perdido,das horas solitárias da prisão, da atroz vergonha de um interrogatório público, e do ecoprofundo que faz na alma humana o ru3do sinistro dos ferros da grilheta$ >ão ponho nofim desta carta o meu nome, porque pressinto vagamente neste grupo de sucessos,confusamente conglobados perante a minha apreciaão, a passagem misteriosa e fatal deum crime que vai poderosamente na direão do seu fito, esmagando e despedaando osestorvos que o impecem$ 5ra eu não quero que a publicidade do meu nome leve oscúmplices no atentado de que se trata, ou, porventura, a pol3cia, a aniquilar ou aembaraar de qualquer modo a intervenão espontBnea que eu próprio vou ter no

descobrimento dos réus$ 7onto com os meus recursos, mas preciso para os p6r em práticade toda a minha liberdade$ 7reia+me, senhor redator, etc$

DE F... AO MÉDICO

72PL0(5 D 

D -ulho ND, ! D hora da noite$ ; Ceu querido amigo$ ; &gnoro se estás em tua casa, para

onde te diri*o esta carta, ou se continuas, como eu, permanecendo aqui em cárcereprivado$ <m qualquer dos casos, recebidas agora ou encontradas mais tarde, estas letrasficarão encenando para aquele de nós que houver de as ler a lembrana proveitosa dashoras mais e#traordinárias da nossa vida$

<screvo mais para coordenar e fi#ar na memória estes mo mentos do que para empregarnoutro destino puramente hipotético esta carta$ erá uma página das minhas confidAnciasque entregarei ! discrião ou ao acaso da posta, reservando+me o direi to de lhe pedir quemas restitua a seu tempo$

>ão tornei a ter noticias tuas desde que nos separamos ontem ! noite, pouco tempodepois de termos entrado na sala em que estava o cadáver$ 5 mascarado que seencarregara de me conduzir ao quarto onde me acho, deu+me o seu brao e disse+me aoouvi do um nome de mulher, a indicaão de uma rua e o número de uma porta$ <ra onome da pessoa que sabes e a designaão da casa em que ela mora= 7reio queinvoluntariamente estremeci, mas consegui dizer serenamente:

; >ão o compreendo$ <ste indiv3duo era o mesmo que na carruagem se conservarasempre calado, o mesmo que na sala me observava com atenão e desconfiana$

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2quela estatura, aquela fala, aquela voz, posto que apenas percept3vel ao meu ouvido, nãoeram novas para mim$

<le respondeu falando+me ainda mais bai#o: + >ão poderá sair daqui antes de dois ou trAsdias$ Ve*a se precisa de escrever uma carta ou de mandar um recado$

Passou+me pela mente uma ideia a respeito daquele homem$$$ e fosse$$$ 5correu+me queteria um meio de desenganar+me se era efetivamente ou se não era um amigo intimo queeu tinha ao meu lado: arrancar+lhe o relógio) bastar+me+ia apalpá+lo, ainda vendado comoeu estava, para reconhecer o dono$ 2 ser o indiv3duo que eu supunha, a caindo relógioteria lisura do esmalte e no centro a saliAncia de um brasão$

; <screverei duas linhas ; disse eu +, quererá dar+me um lápis? 03nhamos chegado ao

quarto que me era destinado e eu desvendei+me ao tempo em que ele safa prometendotrazer+me o necessário para escrever$ 5 indiv3duo que voltou com papel e penas: não era omesmo que acabara de sair$ 2ssim tinha eu perdido a ocasião de confirmar uma suspeitaou de desvanecer uma dúvida$

<m todo ocaso escrevi duas linhas ao meu criado serenando+o: com relaão ao meudesaparecimento$

; Cais nada? +interrogou o desconhecido tomando o meu bilhete$ + >ada mais$ msentimento de delicadeza e uma sombra de desconfiana impediam+me de escrever

diretamente ! pessoa a quem o mascarado se referira$ .echaram a porta e fiquei só$

2chei+me num quarto de interior, bastante espaoso, mas sem *anela$ 2 um lado havia umlavatório) sobrepostas a um canto trAs malas de viagem, de couro de Varsóvia com pregosde ao, estrela tias com senhas de caminho+de+ferro, de hotéis e de paquetes) a queestava por cima das outras tinha em grandes letras pretas sobre uma tira de papel ested3stico: .rand-/otel-Paris) uma das senhas era dos paquetes ingleses da carreira da Lndia$Para outro lado do quarto havia uma cama$ 7ompletava a simples guarnião desteaposento um sofá forrado de marroquim verde, colocado n meio da casa defronte de umaampla mesa em que estava posta a minha ceia ! luz fulgurante de um grande candeeiro

com largo abat0our $

1ueres que te confesse a verdade? 2gradou+me aquele recolhi mento, aquele sossego,aquela solidão, depois da grande sobre+e#citaão em que me tinha achado=

<stirei+me no sofá, pus+me a olhar maquinalmente para o c3rculo da luz trepidantepro*etada pelo candeeiro e contornada no teto pela abertura do abat-0our , e comearam adesafogar+se+me os comprimidos espasmos do coraão em boce*os longos acompanhadosde estremecimentos nervosos, que me convidavam suavemente ao repouso$ 2 minhaimaginaão, ocupada num trabalho inconsciente semelhante ao dos sonhos, ia tirando, no

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entanto, do caso que eu presenciara as ramifica4es mais ilógicas e mais fantásticas$ 5ssucessos por que passamos desde a estrada de intra até ! minha entrada neste quarto

apareciam+me redemoinhando convulsamente no ar como um enorme enigma figurado,cu*os ob*etos tumultuavam impelidos pelos pontapés de diabinhos sarcásticos, que se riampara mim e me deitavam de fora as linguazinhas em brasa$

.ui caindo molemente num despego lBnguido, fecharam+se+me os olhos, adormeci$ 2oacordar, depois de um sono breve mas sossegado e repara dor, encarei na ceia que reluziaaos meus olhos$

Havia sobre a mesa um pão, uma cai#a de lata com sardinhas de >antes, uma terrinazinhade  %oie gras, uma perdiz, uma fatia de quei*o e trAs garrafas de vinho de "orgonha,lacradas de verde) *unto destas, quatro garrafas de soda$ >a argola de prata doguardanapo estava passado o saca+rolhas$ obre uma bande*a de metal erguia+se um ei#ode charutos cor de chocolate, luzidios, gordos, apertados nas e#tremidades com duas fitasde seda carmesim$ <m cima da cai#a das sardinhas achava+se colocado o instrumentodestinado a abri+la$ 5 copo era de cristal fin3ssimo, o garfo de prata dourada, a faca decabo de madrepérola, os pratos de porcelana brancos, cercados de um estreito filetedourado e verde$ 2tirei rapidamente com os pés para o chão$ entei+me no sofá, senti afome encavalar+se+meno dorso, carregar+me na cabea para cima da ceia, cingir+me a cintacom as suas pernas esgalgadas e cravar+me no est6mago vazio os acicates da gula$ 2omesmo tempo ergueu+se+me do outro lado da mesa a abantesma do susto, cravando os

olhos em mim e espalmando por cima das iguarias a sua mão descamada e trAmula comum gesto proibitivo e solene$ 2tarantado, perple#o, escutei então dentro de mim umbreve diálogo semelhante !queles que Uavier de Caistre travava de quando em quandocom a besta, na sua viagem ! volta do quarto$ Havia uma voz pausada e grave que dizia:

; 2tenta no que fazes, temerário= 2bre teus olhos, inconsiderado mortal= <ssa perdiz,cu*o peito insidioso e pérfido está loure*ando a teus olhos) foi apimentada com arsAnico$2quele 7hambertin, que te espera como uma onda dá lagoa <st3gia, emboscada por detrásdaquele letreiro envernizado, aparentemente simples, elegante, convidativo, mas emverdade tenebroso e fatal como o d3stico do festim de "altasar, aquele vinho, que te

oferece um bei*o refalsado e fementido, está destemperado com ácido prússico$ 2s trufas,lúbricas, venais, devassas, envoltas nesses f3gados de pato, estão empapadas nostemperos letais da cozinhados "órgias=

2 outra voz, insinuante e meiga, dizia numa vaga melodia de ereia: ; 7ome, se tensfome, estúpido= <stás com medo do papão, maluco?$$$ P4e os olhos nesse lacre: não seráum penhor seguro da pureza do l3quido que ele tapa a marca desse abonado sinete? >ãovAs hermeticamente fechada, chumbada e garantida com os mais especiais lavores a latadessas sardinhas pescadas nas costas de .rana e cozinhadas há seis meses em Carselha?>ão vAs religiosamente grudada e selada com as etiquetas insuspeitas e sagradas da

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acreditada casa !heet   essa terrina de  %oie gras? up4es acaso, ó parlapatão, que meiomundo se con*urasse para te arrancar essa vida inútil? 7ome, bebe e dorme) aproveita nos

braos da sabedoria as horas gostosas da solidão com que te brinda o acaso$ @eleita+teconversando depois contigo e repousando+te no seio tépido da melancolia, dessa deliciosafada que só aparece evocada pelos namorados e pelos solitários, e que é na terra a irmãmais nova da tristeza, a irmã gatée, a irmã feliz= <u, no entanto, havia cortado a cai#a dassardinhas, desgrudado a tampa da terrina e desarrolhado uma garrafa de vinho e umagarrafa de soda que misturara num copo$ Pus+me, por fim, a comer caiu apetite, comvalor, com del3cia, com uma espécie de bestialidade voluptuosa, sentindo vagamenteade*arem em volta de mim os esp3ritos benéficos do cárcere que bafe*aram as pris4es de3lvio Pélico$

M singular isto: achava+me bem= @epois da ceia acendi um charuto e comecei a passear noquarto, dizendo comigo: + Visitemos o pa3s=

>a parede que ficava ao lado da porta por onde se entrava ha via uma outra porta$<#aminei+a$ <stava apenas segura com um ferrolho e#terior$ 2fastei a cama encostada !parede em que se achava esta porta e abri+a$

<ra um armário na espessura do muro, largo, profundo, dividido a meia altura por umprateleiro espaoso e sólido$

5correu+me que ao fundo do armário haveria talvez um tabique delgado através do qualme seria poss3vel escutar o que se passasse na casa cont3gua$ Penetrei no armário, estendi+me no prateleiro, escutei$ @o outro lado havia um ru3do volumoso e macio$ Parecia que seestava arrastando um móvel pesado e grande$ 5 fundo do armário era efetivamenteformado por um tapamento franzino$ <ra poss3vel que tivesse havido primitivamente umaporta no lugar em que se fizera o armário$ Havia um ponto em que a argamassa ca3ra, e euvia diante de mim um pedao de ripa atravessado diagonalmente e descamado da cal$

Peguei no saca+rolhas e no lugar indicado fui esburacando devagarinho eprogressivamente o cimento do muro, até operar um orif3cio impercept3vel, pelo qual meera dado ver a luz e ouvir distintamente o que se dizia do outro lado$

<is aqui o que !s onze horas e meia da noite se estava passando no quarto cont3guo !queleque me serve de prisão:

72PL0(5 N

Havia dois homens que arrastavam um grande leito de madeira do lugar em que ele estavapara ao pé da parede que divide a casa em que eu me acho daquela em que se passava a

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cena que descrevo, e e#atamente para *unto do lugar em que eu acabava de abrir o buracoque me servia de olho e de orelha$

m desses homens dizia assim: ; erá o que muito bem quiser, mas eu é que não torno avir cá a andar aos trambolh4es com os móveis ! hora da meia+noite$

; Há deter muita razão de quei#a= ; tornava o outro$ ; @ou+lhe uma libra para mea*udar, quero saber se não é melhor isto do que estar lá em bai#o estendido ao pé daman*edoura, ! espera que chegue o trem para ir tratar dos cavalos, a enfastiar+se, semganhar vintém$

2quele que dizia estas palavras, conquanto se e#pressasse claramente, tinha todos osdefeitos de pronúncia que distinguem o estrangeiro que fala portuguAs$ Pela aspiraão

especial de certas vogais e pela contraão labial com que pronunciava os aa, era por certoalemão$

5 que primeiramente falara, prosseguiu: ; M bom lucro$$$ Parece que é bom lucro, mas eupara mim não o quero$ < olhe que não encontra seis homens aqui na rua que entrem cá denoite, a estas horas, ainda que os pese a ouro=+ Para mudar uma cama=

; >ão é pela cama, é por ser a casa que é= ; 5ra adeus= que tem a casa?=$$$ + >ão temnada= M uma graa= <la é de tal casta que o senhorio teve+a quatro anos por alugar, foisempre bai#ando na renda e por fim dava+a *á de graa e não tinha alma viva que lhe

pegasse= 2 última gente que cá morou esteve só duas noites, e foi+se daqui tolhida com ascoisas que lhe apareceram e com as trapalhadas que ouvia$ 7ruzes, dem6nio= cruzes,diabo=+ Petas= histórias da vida=

; 5 senhor= >ão me diga a mim que são petas= Pois eu não vi a fam3lia=$$$ >ão estive comeles=? .ugiram de noite, fugiram ! segunda noite que dormiram cá, estarrecidos de medo$

; <ntão que viram eles?+ <les não viram nada$

; <ntão a3 tem$ ; >ão viram, mas ouviram$ + Haviam de ouvir boas coisas=

; 5uviram, sim, senhor, ouviram$ < não foi só a eles que sucedeu isso, foi a todos quantoscá moravam$ < era gente de bem, que não mentia, que não tinha precisão de mentir, quetinham pago a sua renda e que ficaram com ela perdida=

; <ntão que ouviam eles?+ 5 senhor bem o sabe=$$, 5 que eles ouviam? 5uviam panca dasnas portas, quando ninguém batia, nem lhes tocava= 5uviam espirrar o lume e estalaremos carv4es e#atamente como se estivessem abanando ! fogueira, quando estava a cozinhasó e o fogão apagado= entiam o bater das asas de um pássaro que principiava a voar pelascasas apenas se apagavam as luzes) ouviam+no arque*ar e bufar apro#imando+se cada vez

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mais dos que estavam deitados, pairando tão rente das camas que se sentia o estremecerdas penas, o calor de lume que ele deitava do bico e ao mesmo tempo o frio de neve que

fazia a mover as asas=+ 5ra adeus= tinham ouvido falar nisso e pareceu+lhes que sentiam otal pássaro, de que *á falavam os inquilinos anteriores, os quais também tinham ouvi dofalar nele, não havendo no fim de contas ninguém que verdadeiramente o tivesse ouvido$ +<ntão o senhor não sabe porque foi que eles fugiram, os últimos que estiveram cá, fazagora quatro anos?+ 5uvi falar nisso, mas por alto, não me deram pormenores$

; <is a3 está por que o senhor não acredita= 2 coisa foi esta: <les eram gente pobre mashonrada: marido, mulher e uma filha de seis anos$ Para o que desse e viesse dormiamtodos *untos na mesma sala$ 2 pequenita, a quem eles não contavam nada por causa domedo, estava numa caminha a um lado$ @ormiam com luz na lamparina, e como

trabalhavam muito de dia e estavam cansad3ssimos ! noite, lá pegavam no sono apesar dobarulho das faúlhas do fogareiro e das argoladas nas portas$ Vai senão quando, ! segundanoite que passavam cá, acordam aos gritos da criana$ 0inha+se apagado a luz$ 2cenderam+na a toda a pressa$ 2 porta do quarto estava fechada por dentro$ 5s fechos das *anelasachavam+se corridos$ >o quarto não havia mais ninguém$ Cas a roupa da cama da crianaestava ca3da a dois ou trAs passos de distBncia do bero em que ela dormia, e a pequenita,nua, transida de medo, branca como o travesseiro e tremendo como varas verdes, disse,quando lhe chegou a fala, que teve perdida por um bocado, que sentira umas coisas comoos pés de uma galinha muito grande que se lhe pousavam na cama) que se achara depoisdescoberta e ouvira umas coisas suspiradas envoltas em soluos e bei*os, mimos que

metiam medo e que ela não entendia, enquanto um peito coberto de penas se lhe roavapelo seio nu$ 2 mãe então vestiu+lhe ! pressa uns fatinhos, embrulhou+a num #ale,estreitou+a nos braos, p6s+se a dar+lhe bei*os e a acalentá+la com o bafo, e saiu para amaaterrada e como doida$ 5 homem, que era valente e destemido, correu a casa toda comluz e sem luz, metendo+se por todos os cantos e recantos, rangendo os dentes e picando asparedes enfurecido com uma faca de ponta que levava em punho$ >ão apareceu ninguém=>inguém podia ter sa3do= >inguém podia ter entrado$ >o dia seguinte foi levar a chave doprédio ao senhorio, dizendo+lhe que se algum dia tivesse dinheiro lhe compraria esta casapara ele mesmo a deitar abai#o a picão e a machado, para lanar o fogo a quanto pudessearder, e calcar depois aos pés e salgar o monte de cinzas, que ficasse no chão$

; Pois senhor, eu nenhuma dessas coisas tenho ouvido, e é esta a segunda noite quedurmo aqui$ ; /abo+lhe o gosto= < não tem medo? ; >enhum$ + Por isso por a3 dizem dosenhor o que dizem=

; <ntão o que dizem por a3 de mim? ; @izem, com o devido respeito, que o senhor é umalemão da Courama e que tem partes com o dem6nio$

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; Cais um bocadinho para trás, que eu o a*udo= ; e#clamou o estrangeiro, mudando detom$ ; &sto assim? ; 2inda mais$$$ um quase nada$$, até ficar a cabeceira unida !

ombreira da porta$$ "asta=; >ão quer mais nada?+ Cais nada$ 2qui tem a sua libra, e leve dali uma daquelas velaspara que o ave*ão não apetea na escada ao apanhá+lo !s escuras$

; >ão o diga a rir, que eu pela minha parte não me rio= o senhor gosta$$$ + 2 falar+lhe averdade, gosto=

; eu proveito= 5lhe lá: quando se aborrecer com as almas que andam cá, ve*a se passa a3para a casa que fica ao lado= ; "em me queria a mim parecer que a casa do lado tambémtem$$$ ; e tem= <ssa então é o diabo, é o próprio diabo que lá mora= 5 homem que viera

a*udar ! mudana da cama acendeu a luz e desceu a escada$ 5 alemão ficou só, fechou aporta, e principiou a despir+se para se deitar$ 5 diálogo que eu acabava de ouvir tinha+meimpressionado singularmente e despertado em mim o mais curioso interesse$

em procurar diretamente indagar coisa alguma, comeava a entrar pelo modo maisestranho no conhecimento de fatos que, posto que deturpados pela superstião ou pelaignorBncia, e#plicariam decerto o desfecho a que viemos assistir e a presena do cadávernasala em que o fomos encontrar$

2gora nós, meu interessante e precioso vizinho=

72PL0(5 Q 

2 cama do alemão tinha ficado, como disse, por bai#o do meu buraco de observaão$ 5meu vizinho deitou+se e soprou a vela$ 5 quarto ficou !s escuras, e eu senti os colch4esque rangiam com o peso do corpo que se a*eitava para dormir$

; 2h= 0u amas o murmúrio dos esp3ritos invis3veis?$$$ ; e#clamei eu dirigindo+mementalmente ao filósofo que me ficava do outro lado do muro$ ; 2prazem+te as

ondula4es sonoras das moléculas da vida animal que vagueiam dispersas no espao,procurando o sopro misterioso que as condense para entrarem na corrente dos seresvivos? 1ueres encadear ao teu esp3rito esses elos informes e incoerc3veis, que ligam omundo das coisas conhecidas ao mundo dos seres ignotos? 5ra vamos lá a ver como tu empregas as tuas faculdades de médium$$$

< pensando isto, bati+lhe com os nós dos dedos na parede trAs pancadinhas secas,metodicamente espaadas, como as dos sinais ma6nicos$ enti roar a mão dele pelopapel que forrava o muro, como quem procurasse apalpar algum sinal do rumor queouvira$ <ntrei então a repetir com sucessiva frequAncia o rebate que lhe dera percorrendo

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diferentes pontos da parede que servia de fundo ao armário$ Percebi que ele se sentava nacama$ 5uvi estalar um fósforo$ 2cendeu+se a luz$ Parei$ Houve uma pausa, durante a qual

me conservei silencioso e imóvel$ 5 meu vizinho apagou finalmente a luz ao cabo dealguns minutos, e eu recomecei a bater devagarinho: e repetidamente como primeirofizera$ <le, tendo escutado por algum tempo !s escuras, acendeu outra vez a vela ecomeou a e#aminar detidamente o espao da parede, *unto do qual lhe ficava a cama$ >omomento em que a chama da vela perpassava na mão de le por defronte do meu brao,soprei+lhe de repente e apaguei a luz$ 5 alemão, que se achava de *oelhos em cima dacama a revistar a parede, e#pediu um pequeno grito, que me pareceu mais de surpresaque de tenor, conquanto o acompanhasse um estrondo pesado e e#tremamentesignificativo$ 5 que produzira esse estrondo fora o baque do corpo dele caindo da camaabai#o$

(ogo depois ouvi a voz do vizinho perguntando com decisão e firmeza: + 1uem está a3?Iespondi+lhe: ; ou eu$ + 1uem és tu?

; < tu quem és?+ .rederico .riedlann, cidadão prussiano$ ; 2h= ; disse eu$ ; Via*o porconta da primeira fábrica de produtos qu3micos de "udapeste, dos quais sou encarregadode tornar conhecidos dos grandes industriais da <uropa$

; "em= ; observei$ <le continuou impassivelmente: ; 7ontou+me um *udeu meu amigoque havia em (isboa trAs prédios de que ele tinha not3cia, os quais se achavam

abandonados depois de algum tempo por terem ganhado fama de serem habitados poralmas do outro mundo$ Iesolvi morar sucessivamente nas casas que ele me indicou e éesta a primeira que habito$ 7omponho um livro com investiga4es a respeito doespiritismo$ Poderei saber agora a quem me diri*o?

; Pois não= ; tornei+lhe eu$ ; 7hamo+me fulano, e vivo dos rendimentos das minhaspropriedades, ora via*ando, ora residindo em (isboa, e ocupando+me de quando emquando com a pol3tica ou com a literatura, quando não tenho outra coisa menos ins3pida emenos inútil em que agitar a minha ociosidade e o meu tédio$ >ão sou espiritista$

; Pois faz mal= 5 espiritismo é um sistema e pode bem suceder que venha ainda a seruma religião$

; Puff$ ; e#clamei rindo$ ; 5 quA= ; continuou ele$ ; 5 materialismo, guiado de umlado pelas conquistas das ciAncias f3sicas e naturais e de outro lado pelo rela#amento doscostumes contemporBneos e pela depressão sucessiva e assustadora da moral, vaicomendo no campo da filosofia o espao não *á muito vasto em que residia a fé$ >ovascrenas e novas doutrinas virão sucessivamente substituir as crenas e as doutrinas mortaspor que se regulava o sobrenatural$ 5 homem, que segundo todas as probabilidades, nãopoderá nunca prescindir do maravilhoso, desse atrativo supremo da sua imaginaão, irá

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então naturalmente buscar ao espiritismo, modificado e aperfeioado pela ciAncia futura,a teoria de uma tal ou qual sobrevivAncia que o lison*eie, e a base de correla4es ainda

não estudadas dos seres que e#istem com aqueles que os precederam e com os que se lhehão de seguir$ 5s espiritistas de ho*e serão, de entre todos os filósofos contemporBneosque não querem aceitar em absoluto o dogma estéril desconsolador da matériaonipotente, os únicos que hão de colaborar na filosofia do futuro$ + 5ra há dedar+melicena que lhe pergunte uma coisa$$$

; 0em+me !s suas ordens$ ; em com isto querer fazer agravo ao seu *u3zo=+ <stimareimuito satisfazer a sua curiosidade, qualquer que se*a a natureza dela$

; 2credita em alguma das coisas em que esteve a3 falando o homem que veio a*udá+lo amudar a cama? <sta pergunta era capciosa$ <u queria desenganar+me se estava falandocom um doido, com um visionário, com um monoman3aco, ou simplesmente com umhomem de esp3rito e#travagante, com um e#cAntrico$

; <u não creio nem também descreio de coisa alguma que ouo ; responde+me ele$ ; Mmeu sistema admitir tudo quanto este*a para se provar e duvidar de tudo aquilo que meapresentem como coisa positiva$ M o único meio prudente de nunca nos afastarmos muitoda verdade$ e escutou a conversa de há pouco, tem uma parte da história desta casa$>eguei quanto me disse o homem que esteve aqui porque me obriguei como senhorio doprédio a desvanecer com as minhas informa4es o anátema que pesa sobre a sua

propriedade$ 2 verdade é que tenho ouvido distintamente há duas noites consecutivas umrumor insistente e prolongado semelhante aos estalidos que produz, ao atear+se, umafogueira de carvão, e tenho aqui sobre uma banca um busto de 2llan ardec que, sem eupoder e#plicar como nem porquA, se move, sem que ninguém lhe toque, do centro damesa em que o coloquei para uma das e#tremidades dela$ 5 pó aglomerado em volta dabase do busto, e que eu tenho o mais escrupuloso cuidado em não espanar nunca, vaidei#ando sucessivamente sobre a superf3cie da mesa o vest3gio desse movimentovagaroso, lento, quase impercept3vel, mas progressivo e constante$ >esta porta, ao pé daqual coloquei ho*e a cama, ouo em cada noite, ora por duas ora por trAs vezes, umaargolada per feitamente clara e distinta$ 2bro imediatamente a porta 8mudei a cama para

este ponto a fim de poder fazA+lo do modo mais rápido9, fica sempre ine#plicável para mima razão por que se levanta a ar gola do ferrolho e bate de per si mesma na porta=

0odas estas coisas eram asseveradas pelo prussiano com a Anfase da sinceridade e daconvicão mais profunda= ; < desta casa de cá ; observei+lhe eu ; que tem ouvido? 5que sabe? 1ue lhe consta? ; <u lhe digo$$$

; inceramente= ; Por mim pessoalmente nada tenho ouvido, 5 inquilino que meprecedeu conta que ouvia no silAncio da noite um rumor confuso de vozes, o estalar de

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risadas e o tilintar de dinheiro$ 2lguns vizinhos tAm visto entrar vultos misteriosos$ 0udoisto, porém, se e#plica do modo mais natural deste mundo$

; 1ual é então o seu *u3zo, ve*amos?+ M evidentemente$$$

; @iga= @iga=+ Presumo eu, pelo menos$$$ ; Vamos= em rodeios, francamente= ; @eduas uma: ou uma lo*a ma6nica, ou uma casa de *ogo$

72PL0(5 E 

2s palavras do alemão acabavam de lanar no meu esp3rito a luz súbita de uma revelaão

que me obrigava a meditar$ 5 que se passava por mim, o mistério que me cercava, ocadáver que vira, a presunão

; ainda que vaga ; da concorrAncia de um ou mais amigos meus envolvidos nesteacontecimento, tudo is to era tão e#traordinário e tão grave que eu não ousava referi+loao homem desconhecido que o acaso me deparava por vizinho$

<ra *á positivo para mim que me achava em (isboa$ @ese*ava naturalmente saber qual eraa rua e a casa em que estava: não me ocorria, porém, um prete#to plaus3vel para levar oalemão a dizer +mo, sem que eu o interrogasse de um modo amb3guo, que poderia

levantar sobre a situaão em que me acho suspeitas talvez perigosas para a segurana daspessoas comprometidas neste negócio$ 7ontentei+me, pois, em alegar o inc6modo a queme obrigava aposião em que estava, e dei as boas+noites ao meu vizinho$ <le despediu+sebatendo no muro trAs pancadas espaadas por pausas iguais !s daquelas com que euprimeiro lhe despertara a atenão$ (embrou+me que poderia ser maão aquele homem, eque nas circunstBncias em que eu estava me serviria a proteão que lhe pedisse em nomede *uramentos rec3procos e de compromissos comuns$ @ei+lhe então uma letra, elerespondeu+me com outra e assim constru3mos sucessivamente a palavra da senha: + Salut1mon %r2re3 ; e#clamou ele$ + egredo= ; disse+lhe eu bai#inho, respondendo com os nósdos dedos no muro ao sinal que me dera$ .echei em seguida o armário, cheguei a cama

para o lugar de onde a tinha removido, e deitei+me vestido$ >ão podia dormir$ Principiei apensar e a entristecer$

>esta casa, debai#o destes mesmos tetos, está morto um homem, moo, elegante e belo,que entrara aqui, cheio talvez de esperanas, de alegrias, de pro*etos no futuro, e quederepente caiu para todo o sempre envenenado por mão misteriosa, ignorado,desconhecido, só, longe de uma mulher amada que o espera talvez a esta hora, longe dafam3lia que o acarinhou em pequeno, longe dos lugares saudosos que o viram nascer, damãe lacrimosa que lhe cerrasse os olhos, do pai angustiado que em nome da humanidadelhe lanasse a derradeira bAnão$ @esventurado rapaz= 1uem sabe as torturas por que

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passou o teu esp3rito para se desprender violentamente da terra, dei#ando na sociedade oteu corpo inerte, impass3vel, mudo como a interrogaão de um enigma posto

anonimamente no meio de uma página branca? 1uem sabe os pensamentos que a morteimobilizou no teu cérebro? 1uem sabe os afetos que ela enregelou no teu coraão, ondehá pouco tempo ainda golfava abundantemente a fecunda seiva dessa mocidadeesterilizada e e#tinta agora para sempre? Pobre moo= 0ão digno de lástima como és,merecedor talvez de profundas saudades, a3 estás adormecido no teu sono eterno, vestidode baile, coberto com uma manta de viagem, estirado num sofá, insens3vel para sempre !salegria se !s amarguras desta vida miserável) e não haverá, porventura, uma só lágrimaque come more, na história breve da tua passagem na terra, este prazo tãopungentemente melancólico em que os mortos estão esperando dos vivos o derradeiro esupremo favor que a humanidade pode dispensar !queles que mais preza e que mais ama:

a doaão da cova em que reside o esquecimento= 5s olhos daqueles que te amam aindanão choram por ti$ <stão fechados talvez pelo sono tranquilo e doce, atravessado emsonhos pela tua imagem querida) estão, porventura, fitos no conhecido caminho por ondeesperam sentir+te chegar, conhecer+te o passo retardado, ouvir+te a voz cantarolando aúltima valsa que o baile te dei#ou no ouvido, ver+te finalmente aparecer, descuidado,risonho e feliz$ 7oitados=$$$ 5s passos daquele que ainda ho*e talvez se despediu de vóscontando voltar a encontrar+vos poucas horas depois, não tornarão a medir o caminho dacasa em que o esperam) a sua voz não responderá mais ! voz que o chame) os seus olhosnunca mais se embeberão nos olhos que o fitavam) os seus lábios não voltarão outra vez aapro#imar+se dos lábios que se colavam nos dele= <u não choro a tua memória, porquenão te conheo, porque nunca nos encontramos, porque não sei quem és$ Cas não queroinsultar a dor que ade*a sobre a tua morte, dei#ando+me dormir na mesma casa em que

 *azes insepulto, enquanto alguém te espera vivo no mundo$

.oi impelido por estes sentimentos, meu querido amigo, que eu me levantei da cama emque me estendera e vim para a mesa em que ceei, passar a noite escrevendo+te estaslongas páginas, que decerto estimaremos ler um dia, em disposião de esp3rito bemdiferente daquela em que ambos nos achamos ho*e$ 0inha em pouco mais de meio anarraão que te estou fazendo, quando o silAncio que me envolvia, cortado apenas pelofrAmito da minha pena no papel, foi interrompido pelas vozes dos mascarados falandobai#o no aposento que atravessei antes de entrar naquele em que estou$ 0inha terminadoo parágrafo anterior a este, quando o mesmo rumor se repetiu, e tive então curiosidadede escutar o que se dizia$ 2pro#imei+me da porta e colei o ouvido ao buraco da fechadura,pelo qual nada via$ >ão sendo natural que os nossos aprisionadores este*am !s escuras, éprovável que ha*a um corre dor, uma passagem ou um pequeno quarto entre aquele emque eu me acho e o quarto pró#imo em que eles falam$ >ão podia perceber o que diziam$2penas de quando em quando alguma palavra solta e destacada me chegava ao ouvido$@ispunha+me a vir continuar a escrever ou a terminar esta carta, quando um levantou maisa voz e eu ouvi distintamente estas palavras:

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; Cas as notas de banco, NQ libras em notas= >ão as trazia ele? ; ei que as trazia ;dizia outra voz$ + M atroz, então=

<stas palavras, únicas que ouvi, fizeram+me a impressão que podes calcular=M provadopara mim que a casa a que fomos trazidos não é um simples ninho consagrado aentrevistas de amor, como eu primeiro supus$ @as hipóteses do prussiano éabsolutamente necessário aceitar uma: isto ou é uma casa de *ogo ou uma lo*a ma6nica$2ssim o provam convincentemente os ru3dos que se ouviam na morada cont3gua$ >umretiro de pai#4es temas não se escancaram risadas a horas mortas ao som do dinheiro quetilintanas mesas$ 2 referAncia dos vultos misteriosos feita pela vizinhana permite asuspeita de reuni4es secretas$ 5 tinir do ouro, as risadas, o mesmo aspecto do boudoir  emque estivemos não consentem duvidar+se que esta casa é uma caverna de *ogo e de orgia$

2s palavras que há pouco ouvi sugerem+me sobre estas suposi4es a mais tenebrosasuspeita$

5 desgraado que *az a3 dentro podia ter sido v3tima de um homic3dio, premeditado com ointuito de roubar+lhe a quantia que ele trazia consigo$

5corre uma contradião: na sugerida hipótese para que foram buscar um médico?<#plicam+no as palavras que ouvi$ 5s criminosos, que tinham propinado ópio ! sua v3timacom o intuito de a roubarem, encontram iludido este pro*eto com o desaparecimento dasnotas que lhe supunham na algibeira$ >esta con*untura sobrevém+lhes, naturalmente, a

idéia de tentar um recurso e#tremo: procurar um médico que não possa denunciar ocrime, mostrar+lhe o ópio, e quererem por esta prova de zelo, de solicitude, de confianana sua inocAncia, afastar de si a presunão do crime, e criar as dificuldades de ummistério= M poss3vel que eu não atin*a e#atamente a verdade do que se passou$ 5indubitável, porém, é que o desaparecimento *á constatado da soma que o assassinadotrazia consigo não pode adunar+se dentro desta casa com a probidade e com a honra$

@epois disto, é quase escusado dizer+te qual é a determinaão que vou tomar$ 5 meuvizinho prussiano é um homem um tanto fantástico, mas parece+me sincero e honrado$Vou fechar esta carta, sobrescritá+la e pedir+lhe que a lance no correio$ 2charei facilmente

meio de a passar para o quarto dele$ e conseguir arrombar completamente, sem que mepressintam, o tapamento que serve de fundo ao armário, passarei eu em vez de e#pedir acarta$ >o caso contrário, apenas se abrir aquela porta, precipito+me sobre a pessoa oupessoas que me embargarem o passo, e abrirei o meu caminho como todo o homem debem que em sua consciAncia delibera passar por cima de meia dúzia de miseráveis$

e te achas aqui, encarcerado como eu, por @eus *uro+te que nos veremos amanhã$ eestás solto, se receberes esta carta, e vinte e quatro horas depois não souberes de mim,escreve a .rederico .riedlann, posta restante, (isboa$ <le te procurará no lugar que lheindicares e te dirá onde estou$ ; 2deus$ ; .$$$

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NOTA

-untamente com a carta publicada ontem achavam+se as seguintes folhas de papel escritaspela mesma letra das cartas do médico, anteriormente publicadas nesta folha:

.$$$ não apareceu$ >o mesmo dia, dois dias e trAs noites depois de haver recebido ae#tensa carta que ele me dirigiu e de que enviei logo a primeira parte, depois as seguintes,a essa redaão, procurei por todos os meios ter not3cias dele$ .oram inúteis todos osesforos que empreguei$ <screvi a .rederico .riedlann$ >ão houve resposta$ Candei aocorreio e soube que ainda ali se achava a carta que lhe dirigi e na qual lhe aprazava umaentrevista$

<stou vivamente inquieto, sobressaltado, cuidadoso$ .$$$ é um homem arrebatado,irasc3vel, pundonoroso até o de l3rio$ Ieceio do seu caráter e da violAncia das suasdetermina4es$ uma e#plosão que teria podido talvez ser+lhe fatal$ 2presso+me, porém, adeclarar+lhe, senhor redator, que discordo completamente da opinião dele quanto !qualidade moral das pessoas com quem estivemos reunidos na casa onde encontramos ocadáver$

5 mascarado alto, com quem tive ocasião de falar por mais tempo, não pode ser umassassino cobarde$ .$$$ demorou+se pouco tempo conosco, não p6de atentar nos

indiv3duos que o rodeavam$ 5uviu apenas uma frase, que para mim próprio é aindaine#plicável e terr3vel, e baseou nela a sua indignaão e o seu ódio$ <u tratei apenas comum desses homens ; o mais alto ; mas com este falei incessantemente durante todo oespao de uma noite$ >ão podia estudar+lhe os movimentos da fisionomia, mas via+lhe osolhos grandes, luminosos, cintilantes$ 5uvia+lhe a voz metálica, pura, clara, vibrante,obedecendo naturalmente, na modulaão das infle#4es, ao flu#o e ao reflu#o dossentimentos$

>as discuss4es que tivemos, na conversaão que travamos, nos diversos incidentes queacompanharam o inquérito de 2$ C$ 7$, escutei+lhe sempre com interesse, com simpatia,

algumas vezes com admiraão, a palavra sincera, fácil, despresumida, espontBnea,original, pitoresca sem literatismo, eloquente sem propósitos ora tórios ; l3mpido espelhode uma alma enérgica, integra, perspicaz e sens3vel$ 0inha arrebatamentos, indigna4esconvictas, concentra4es melancólicas, que se via provirem desse fundo de lágrimas, quetodas as naturezas privilegiadamente boas e honestas tAm no &ntimo da sua essAncia$Pareceu+me, finalmente, um coraão leal e honrado, e não é fácil enganar+se por estemodo, depois de uma provaão suprema e definitiva como aquela em que nos achamos,um homem com aminha e#periAncia do mundo e a minha prática dos fingimentoshumanos$ <stas são, senhor redator, as principais considera4es que do princ3pio logo me

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impediram de tornar público o nome do meu amigo violentamente retido em cárcereprivado$ .$$ é um homem conhecido, é quase um homem célebre) em (isboa ninguém há

que não conhea o seu nome entre os escritores mais aplaudidos, ninguém que nãodistinga a sua figura altiva, esmerada, picante, entre os vultos e#tremamente uniformesdos passeios, das salas e dos teatros$

e eu comunicasse ! pol3cia o desaparecimento do meu amigo, é quase seguro que elaencontraria meio de o descobrir$ Cas não equivaleria isto denunciar simultaneamentecomo criminosos 5 mascarado alto  e os seus companheiros, que eu todavia consideroinocentes?

2 carta de .$$$, apesar da revelaão que encerra sobre o desaparecimento das NQlibras,confirma por outro lado a convicão em que eu me acho$

>a carta de .$$$ encontra+se o seguinte per3odo: %5correu+me que teria um meio dedesenganar+me se era efetivamente ou se não era um amigo 3ntimo que eu tinha ao meulado: arrancar+lhe o relógio: bastar+me+ia apalpá+lo, ainda como eu estava, parareconhecer o dono$ 2 ser o indiv3duo que eu supunha, a cai#a do relógio teria a lisura doesmalte e no centro a saliAncia de um brasão$'

5ra o relógio a que nestas linhas se alude, se bem lembrado está, é e#atamente o mesmoque descrevi na segunda carta que enviei a esse periódico, o mesmo que usava omascarado que ia sentado defronte de mim na carruagem, e que eu lhe vi por algumtempo fora da algibeira do colete, suspenso na corrente$ (ogo, o mascarado que conduziu.$$$ ao quarto em que ele se acha preso, é efetivamente um amigo dele, intimo eparticular$

Posso eu, sem semear remorsos que mais tarde entenebrecerão talvez a minha vida comuma sombra eterna, denunciar ! pol3cia uma particularidade, um nome, uma circunstBnciapositiva, que a ponha no encalo deste crime e no descobrimento das pessoas, inocentesou culpadas, que circulam fatalmente em torno dele? 2s mesmas not3cias que lhe tenhodado, as cartas que precipitadamente comecei a escrever+lhe, e que ho*e, posto queacobertado pelo an6nimo, me ve*o na obrigaão moral de concluir e desenlaar, não serão

 *á perante a severidade incorrupt3vel, despreocupada e fria dos homens de bem, umatraião aos imprescrit3veis deveres da amizade, um agravo ! inviolabilidade do sigilo, umaofensa a esse culto intimo que se baseia na delicadeza, no melindre, no primor ; cultoque para as almas honradas constitui uma parte dos princ3pios supremos da primeira dasreligi4es ; a religião do caráter?

Cas podia também calar+me? .icar mudo, impass3vel, inerte, neutro, diante deste sucessoobscuro mas tremendo? Podia acaso aceitar na impassibilidade e no silAncio a

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responsabilidade terr3vel de um homic3dio tenebroso, do qual sou eu a única testemunhacom iniciativa, com liberdade, com faculdade de aão?$$$

@ecidam+no as pessoas que por um momento quiserem imaginar+se nas circunstBnciase#cepcionais e únicas em que eu estou$ >a onda de con*ecturas, de planos, dedetermina4es, de obstáculos em que me achei envolvido, assoberbado, só, escondido,inquieto, nervoso, sem um único momento que perder, uma só coisa me ocorreu, poss3vel,clara, solvente: publicar anonimamente o que me sucedera, entregar por este modo !sociedade a história da minha situaão e esperar dos outros, do público, a soluão doproblema que eu não sabia resolver por mim$

>em uma palavra de conselho, de análise, de cr3tica= <stou profundamente triste, abatido,doente$ Preciso de ar, de espao, de liberdade$

>ão posso ficar eternamente imóvel, como um condenado, como pesado fuzil de umsegredo soldado a um pé$

@ois dias depois de receber esta minha carta, senhor redator, terei partido para fora dopa3s$ 2s ambulBncias do e#ército francAs precisam de cirurgi4es$ Vou alistar+me comofacultativo$ 5 meu pa3s dispensa+me, e eu, como todo um homem na presena dosinfortúnios irremediáveis, sinto a doce necessidade de ser útil$ .ica sabendo o meudestino$ m dia saberá o meu nome$

@espedindo+me ; seguramente para sempre ; dos seus leitores, cu*a atenão tenholargamente prendido com a narrativa deste caso lúgubre, se*a+me permitido acrescentaruma derradeira palavra:

2$ C$ 7$, cu*o nome não ouso delatar escrevendo+o por e#tenso nesta página, 2$ C$ 7$, queeu não incriminei nem denunciei, apesar de tudo quanto em contrário quis alegar o amigodele que sob a letra T$ veio defendA+lo neste mesmo lugar, 2$ C$ 7$, quais quer que se*amas causas que o levaram a intervir nas circunstBncias que rodeiam o crime, conhece+ointeriormente, tem o fio do trama que eu debalde procurei achar$

e estas linhas chegarem aos olhos desse moo, uma coisa lhe peo em nome da suahonra e da sua dignidade, em nome da honra e da dignidade das pessoas envolvidas emtão estranho sucesso$ Procure no correio uma carta que lhe diri*o nesta mesma data$>essa carta verá quem eu sou, onde poderá enviar as suas cartas ou ver+me e falar+mepessoalmente$ e a sua idade, se as condi4es da sua posião na sociedade, se osinteresses da sua carreira, a tranquilidade da sua fam3lia, a incompetAncia da suaautoridade, ou outra qualquer razão o impedirem de acompanhar este acontecimento até! última das suas consequAncias, arrancando a tal mistério a secreta verdade que eleenvolve, diri*a+se a mim, colaboraremos *untos nessa obra, que tenho por meritória e por

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honrada$ <u aceitarei clara e abertamente para todas as consequAncias e para todos osefeitos a responsabilidade que da3 pro venha, e terei meio de salvar o seu nome, a sua

pessoa e a sua honra de qualquer suspeita que o ensombre ou o macule$ 1uanto a ti, meuquerido e meu honrado .$$, não creio que se*a v3tima de uma emboscada traioeira eindigna= 5 teu único perigo está, a meu ver, no teu impaciente melindre, nos teusdelicados escrúpulos, no teu valor, finalmente, e no teu brio$

1ue te matassem cobardemente no cárcere clandestino que há pouco tempo ainda tuiluminavas com a tua pachorra e a tua alegria, não pode ser$ 1ue a esta hora tenhas sidoobrigado a *ogar a tua vida trocando em desagravo de honra uma estocada ou um tiro comalgum dos teus misteriosos comensais, isso acho lógico, e é poss3vel$ Punge+me não sei quevago e triste pressentimento$$$ Ceu pobre .$$$= e estará destinado que não nos tornemos

a ver= e o dia fatal em que regressamos ambos de intra, descuidados, contentes,suspirando com as nossas alegrias, sorrindo com os nossos infortúnios, terá acaso de ser oúltimo dessa doce convivAncia que por tanto tempo nos *untou=$$$ < são as amargurasalheias, são as desgraas dos outros que nos arrastam envolvidos num turbilhãoimplacável e terr3vel da crua solidariedade humana=

1ue remédio?= e a vida é isto, aceitemo+la cora*osamente como ela é, e avante= 2prenda+se a ser desgraado, visto que é essa a mais segura maneira de se ser feliz=

SEGUNDA CARTA DE Z.

enhor redator$ ; 2cabo de ver publicada na sua folha de ho*e uma carta em que odoutor WWW, com uma insistAncia malévola, torna a inculcar, como cúmplice no atentadode que ele se fez o historiador voluntário, o meu pobre amigo 2$ C$ 7$ @isse+lhe na minhaprimeira carta, senhor redator, que eu ia, com o au#3lio único da minha coragem e daminha astúcia, p6r+me ao servio da curiosidade de todos, procurando penetrar e desfiar atenebrosa história que, há mais de uma semana, vem todos os dias sucessivamente, nofolhetim do seu *ornal, apresentar diante de um público at6nito um quadro misterioso elúgubre$ >ão pude, porém, descobrir nada: indaga4es, interrogatórios, visitas aos lugares,tudo foi inútil$ 2 história perde+se cada vez mais numa névoa que a afoga: e o meu pobreC$ 7$ lá esta ainda ; não sei se num retiro voluntário, se numa sequestraão forada$ >aimpossibilidade de descobrir, fisicamente, por essas ruas, a verdade, resolvi vir buscá+la !smesmas cartas do doutor$ 2nalisei+as, decompu+las palavra por palavra$ < sem contar osprocessos, apresento os resultados$

, Mistério da Estrada de Sintra  é uma invenão: não uma invenão literária, como aoprinc3pio supus, mas uma invenão criminosa, com um fim determinado$ <is aqui o quepude deduzir sobre os motivos desta invenão:

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Há um crime) é indubitável) é claro$ m dos cúmplices deste crime é o doutor WWW <le estáenvolvido no an6nimo) não tenho por isso dúvida em apresentar esta acusaão formal$

e o seu nome fosse conhecido, se as suas cartas estivessem assinadas, eu, só com provas *udiciárias, me atreveria a escrever esta grave afirmativa$ im, o doutor WWW é o cúmplicede um crime: o meu pobre amigo C$ 7$ é um desgraado incauto, sobre quem se queremfazer re cair as suspeitas que se possam ter *á, e as provas que mais tarde venham a*untar+se$ <ste crime, que e#iste, aparece+nos envolvi do nas roupas literárias de um mistério deteatro$ 2s cartas do doutor WWW são um romance pueril$ Ve*amos$M poss3vel que numacidade pequena como (isboa, em que todos são vizinhos, amigos de tu, e parentes, odoutor WWW, que parece ser um homem notado na sociedade, vivendo nela, frequentandoas suas salas e os seus teatros, não conhecesse nenhum destes quatro mascarados, que

pelas suas indica4es pertencem a essa mesma sociedade, se sentam nos mesmos sofás,escutam a mesma música nos mesmos sal4es e nos mesmos teatros? ma máscara develudo preto não basta para disfarar um conhecido$ 5 seu cabelo, o seu olhar, a suaestatura, a sua figura, a sua voz, a suas mãos, a sua toilette, são bastantes para revelar,trair o indiv3duo$ 5 doutor WWW pois nunca os tinha visto? 5 quA? Pois eram tão elegantes,tão distintos, governam tão bem as suas parelhas, falam tão bem as l3nguas, pareciam tãoricos, e o doutor um médico, um homem relacionado, um velho diletante de $ 7arlos,nunca os viu, nunca os percebeu, nesta terra, em que toda a vida se concentra nos dozepalmos de lama do 7hiado= < .$$$ tem um amigo 3ntimo entre os mascarados, diante de si,na carruagem, *oelho com *oelho, e não o reconhece, pelas mãos, pelos olhos, pelo corpo,

pelo silAncio até$ 7omédia=

< o menos conhecido, o menos célebre dos rapazes de (isboa, mascara+se no 7arnavaldeturco, enche+se de barbas, cobre+se de plumas, veste+se de Cefistófeles, de 7idevant, oude melão, e não há ninguém que, no salão de $ 7arlos, não diga ao passar por ele: (á vaifulano= < é de noite, !s luzes, e as mulheres olham+nos, e estamos distra3dos, e nãoestamos numa estrada, de dia, surpreendidos e violentados= 0anto nos conhecemos todos=7omédia= 7omédia=

< aqueles mascarados são tão inocentes, tão ingAnuos, que vão procurar, num momento

tão perigoso, o homem que pelas suas rela4es, pela sua posião, pela sua inteligentepenetraão, mais facilmente os poderia reconhecer$ e lhes era repugnante seremdescobertos, para que procuraram aquele homem? e lhes era in diferente, para que semascararam?

< depois, para que era um médico? <ra para verificar a morte?+ Para acudir? Para salvar?>esse caso então que homens são esses que, em lugar de irem ! botica mais pró#ima, acasa do primeiro médico rapidamente, avidamente, logo, logo vão, em sossego, mascarar+se nos seus quartos, para irem ao crepúsculo, para uma charneca, a duas léguas dedistBncia, representar os velhos episódios de floresta dos dramas de oulié? upunham,

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porventura, que ele estava morto? Para que era então um médico, uma testemunha? < senão receavam as testemunhas, para que punham nos seus rostos uma máscara, e nos

olhos dos surpreendidos um leno de cambraia? 7omédia= 7omédia sempre=Ve*a+se o doutor WWW diante do cadáver) não há ali uma palavra que se*a cient3fica: desde aserenidade das fei4es até ! dilataão das pupilas, tudo é falso naquela descriãosintomática$

< que homens são, o doutor WWW e o seu amigo .$$$, que na rua de uma cidade, dentro deuma casa, com os braos livres, não deitam a mão !quelas máscaras? 7omo é que, sendogenerosos e altivos, suportam certas violAncias humilhantes? 7omo é que, sendo honestose dignos, aceitam pela sua atitude condescendente uma parte da cumplicidade? < 2$ C$ 7$=7omo o representam, ali, pueril, nervoso, t3mido, imbecil e coato= <le de uma tão grandefora de temperamento= @e uma tão enérgica coragem= @e um tão altivo sangue+frio=7omo se pode acreditar naquela astúcia infantil, com que o doutor WWW o envolve?

; 5 que admira é que não dei#asse vest3gios o arsAnico=+ Cas foi o ópio= ; responde C$7$, segundo conta o doutor WWW 1ual é a imbecil ingenuidade do homem que possa descera esta simplicidade lorpa?

<, enfim, que mulher é aquela, que a3 se entrevA? Porque a quer o mascarado salvar? 1ueroubo é aquele de NQ libras? e*amos lógicos: dado o tipo do mascarado, cavalheiroso enobre, como é que ele, vendo que o crime teve por origem o roubo, procura salvar e temconsidera4es por uma mulher que mata para roubar?

e ele suspeita que o crime cometido por essa mulher teve por móbil a pai#ão, comoe#plica o roubo? @emais, se desconfiava que ela estivesse envolvida naquele fato, seestava tão ligado com ela que a queria salvar, porque a não procurou logo, porque a nãointerrogou, em lugar de ir surpreender gente para as estradas, e vir fazer tableau em voltade um cadáver? 2h= 7omo toda esta história é artificial, postia, pobremente inventada=2quelas carruagens como galopam misteriosamente pelas ruas de (isboa= 2quelesmascarados, fumando num caminho, ao crepúsculo, aquelas estradas de romance, onde ascarruagens passam sem parar nas barreiras, e onde galopam, ao escurecer, cavaleiros comcapa salvadias= Parece um romance do tempo do ministério Villele$ >ão falo nas cartas de.$$$ que não e#plicam nada, nada revelam, nada significam ; a não ser a necessidade quetem um assassino e um ladrão de espalmar a sua prosa oca, nas colunas de um *ornalhonesto$ @eduão: o doutor WWW foi cúmplice de um crime) sabe que há alguém que possuiesse segredo, pressente que tudo se vai espalhar, receia a pol3cia, houve algumaindiscrião) por isso quer fazer poeira, desviar as pesquisas, transviar as indaga4es,confundir, obscurecer, rebuar, enlear, e enquanto lana a perturbaão no público, faz assuas malas, vai ser cobarde para .rana, depois de ter sido assassino aqui=

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5 que faz no meio de tudo isto o meu amigo C$ 7$ ignoro+o$ enhor redator, peo+lhe,varra depressa do folhetim do seu *ornal essas inveross3meis inven4es$ ; T$

NARRATIVA DO MASCARADO

72PL0(5 D

enhor redator$ ; 2 pessoa que lhe escreve esta carta é a mesma que nessa aventuradaestrada de intra, popularizada pela carta do doutor WWW, guiou a carruagem para (isboa$ou *á conhecido, com a minha máscara de cetim preto e a minha estatura, por todas aspessoas que tenham seguido com interesse a sucessiva aparião destes segredos

singulares: eu era nas cartas do doutor WWW designado pelo ; mascarado mais alto ; oueu$ >unca supus que me veria na necessidade lamentável de vir ao seu *ornal trazertambém a minha parte de revela4es= Cas desde que vi as acusa4es improvisadas, semanálise e sem lógica, contra o doutor WWW e contra mim, eu devia ao respeito da minhapersonalidade e ! consideraão que me merece a impecável probidade do doutor WWW o virafastar todas as contradi4es hipotéticas e todas as improvisa4es gratuitas, e mostrar averdade real, implacável, indiscut3vel$ @etinha+me o mais forte escrúpulo que podedominar um caráter altivo: era necessário falar numa mulher, e arrastar pelas páginas deum *ornal, o que há no ser feminino de mais verdadeiro e de mais profundo: a história docoraão$ Ho*e não me re+tAm essas considera4es) tenho aqui, diante da página branca emque escrevo, sobre a minha mesa, este bilhete simples e nobre: ; %Vi as acusa4es contrasi e os seus amigos, e contra aquele dedicado doutor WWW$ <screva a verdade, imprima+anos *ornais$ <sconda o meu nome com uma inicial falsa apenas$ <u *á não perteno aomundo, nem !s suas análises, nem aos seus *u3zos$ e não fizer isto, denuncio+me !pol3cia$'

2pesar, porém, destas grandes e sinceras palavras, eu resolvi nada revelar do crime, econtar apenas os fatos anteriores que me tinham ligado com aquele infeliz moo, tãofatalmente morto, motivado a sua presena em (isboa, e determinado esse desenlacepassado numa alcova solitária, numa casa casual, ao desmaiado clarão de uma vela, ao péde um ramo de flores murchas$ 5utros, os que o sabem, que contem os transes dessanoite$ <u não$ >ão quero ouvir apregoar pelos vendedores de periódicos a história dasdores mais profundas de um coraão que estimo$

enhor redator, há trAs anos a casa onde eu mais vivia em (is boa, aquela em que tinhasempre o meu talher e a minha carta de +hist , onde ria as minhas alegrias e faziaconfidAncias das minhas tristezas, era a casa do conde de X$ 2 condessa era minha prima$

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<ra uma mulher singularmente atraente: não era linda, era pior: tinha a graa$ <ramadmiráveis os seus cabelos louros e espessos) quando estavam entrelaados e enrolados,

com refle#os de uma infinita doura de ouro, parecia serem um ninho de luz$ m só cabeloque se tomasse, que se estendesse, como a corda num instrumento, de encontro !claridade, reluzia com uma vida tão vibrante que parecia ter+se nas mãos uma fibra tiradaao coraão do ol$ 5s seus olhos eram de um azul profundo como o da água do CediterrBneo$ Havia neles bastante império para poder domar o peito mais rebelde) e haviabastante meiguice e mistério, para que a alma fizesse o estranho sonho de se afogarnaqueles olhos$

<ra alta bastante para ser altiva) não tão alta que não pudesse encostar a cabea sobre ocoraão que a amasse$ 5s seus movi mentos tinham aquela ondulaão musical, que se

imagina do na dar das sereias$

@e resto, simples e espirituosa$ @izer+lhe que os meus olhos nunca se demoraram amorosamente na pureza infinita da sua testa, e na curva do seu seio, seria de um estranhoorgulho$ 0ive, sim, nos primeiros tempos em que fui !quela casa, um amor indefinido, umafantasia delicada, um$ @ese*o transcendente por aquela doce criatura$ @isse+lho até) elariu, eu ri também) apertamo+nos gravemente a mão) *ogamos nessa noite o écarté) e elaterminou por fazer numa folha de papel a minha caricatura$ @esde então fomos amigos)nunca mais reparei que ela fosse linda) achava+a um digno rapaz, e estava contente$7ontava+lhe os meus amores, as minhas d3vidas, as minhas tristezas) ela sabia ouvir tudo,

tinha sempre a palavra precisa e de finitiva, o encanto consolador$ @epois, também, elacontava+me os seus estados de esp3rito nervosos, ou melancólicos$

; <stou ho*e com os meus blue deils  ; dizia ela$ .az3amos então chá, falávamos aofogão$ <la não era feliz com o marido$ <ra um homem frio, trivial e libertino) o seupensamento era estreito, a sua coragem preguiosa, a sua dignidade desabotoada$ 0inhaamantes vulgares e grosseiras, fumava impiedosamente cachimbo, cuspia o seu tanto nochão, tinha pouca ortografia$ Cas os seus defeitos não eram e#cepcionais, nemdestacavam$ 4orde /renleY dizia dele admirado: + 1ue homem= >ão tem esp3rito, não temmão de rédea, não tem ar, não tem gramática, não tem toilette, e, todavia, não é

desagradável$ Cas a natureza fina, aristocrática, da condessa, tinha ocultas repugnBncias,com a presena desta pessoa trivial e monótona$ <le, no entanto, estimava+a, dava+lhe

 *óias, trazia+lhe !s vezes um ramo de flores, mas tudo isso fazia indiferentemente, comoguiava o seu dog-cart $ 5 conde tinha por mim um entusiasmo singular achava+me o maissimpático, o mais inteligente, o mais bravo) pendurava+se orgulhosamente do meu brao,citava+me, contava asminhas audácias imitava as minhas gravatas$

<m tempo a condessa comeou a descorar e a emagrecer$ 5s médicos aconselhavam umaviagem a >ice, a 7ádis, a >ápoles, a uma cidade do CediterrBneo$ m amigo da casa, quevoltava da Lndia, onde tinha sido secretário+geral, falou com grande admiraão de Calta$

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5 paquete da Lndia havia sofrido um transtorno) ele tinha estado retido cinco dias emCalta, e adorava as suas ruas, a beleza da pequena enseada, o aspecto heróico dos

palácios, e a animaão petulante das maltesas de grandes olhos árabes$$$; 1ueres tu ir a Calta? ; disse uma noite o conde a sua mulher$ + Vou a toda aparte)mas, não sei porquA, simpatizo com Cal ta$ Vamos a Calta$

Venha também primo$ + <stá claro que vem= ; gritou o conde$

< declarou que não fazia a viagem sem mim, que eu era a sua alegria, o seu parceiro de#adrez e o inventor das suas gravatas, que me roubava num navio, e que me dei#ava seuherdeiro$

7edi$ 2 condessa estava encantada com a viagem: queria ter uma tempestade, queria irdepois a 2le#andria, ! /récia, e beber água? do >ilo) hav3amos de caar os chacais, ir aCeca disfarados ; mil planos incoerentes que nos faziam rir$$$

Partimos num vapor francAs para /ibraltar, onde dev3amos tomar o paquete da Lndia$Passamos no 7abo de ão Vicente com um luar admirável, que se erguia por trás do cabo,dava uma dureza saliente e negra aos ásperos Bngulos daquela ponta de terra e vinhaestender+se sobre a vasta água como uma malha de rede luminosa$ 5 mar ali é sempremais agitado$ 2 condessa estava na tolda, sentada numa cadeira de braos, de vime, acabea adormecida, os olhos descansados, as mãos imóveis, uma sensaão feliz na atitude

e no rosto$

; abe? ; disse ela de repente, bai#o, com a voz lenta$ + <stou com uma sensaão tãofeliz de plenitude, de dese*os satisfeitos$$$ < mais bai#o: +$$$e de vago amor$$$ abe e#plicar+me isto?

<stávamos sós, no alto mar, sob um luar calmo, o conde dor mia) a longa ondulaão deágua arfava como um seio, sob a luz) sentia+se *á o magnético calor da Zfrica$ <u tomei+lheas mãos e disse+lhe num segredo: + abe que está linda=

; 5h= primo= ; interrompeu ela rindo$ ; Cas nós somos amigos velhos= <stá doido= 5que é falar de noite, sós, ao luar, em amor= 2h= meu amigo, creia que o que senti,ine#plicável como é, não foi por si, graas a @eus, foi por alguém que eu não conheo, quevou encontrar talvez, que não vi ainda$ abe? .oi um pressentimento$$$ 23 está= 7omo oluaré traioeiro, meu @eus= < eu que estou velha=

<u ia responder, rir$ ma luz brilhou a distBncia, na bruma noturna: o capitão apro#imou+se: + 7onhecem aquela luz?

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; >unca via*ei neste mar, capitão ; respondi$ + ão portugueses, não .$$$ 2quela luz é ofarol de 7euta$ <ra uma luz melancólica e humilde$ >enhum de nós se impor tava com

7euta$ @a3 a momentos descemos ! cBmara$ <u estava surpreendido, nunca tinha ouvido !condessa palavras que caracterizassem tanto o estado do seu coraão$ 2chava+se naqueleper3odo em que um amor pode apoderar+se para sempre de uma e#istAncia$ 1uesucederia se lhe aparecesse um homem belo, nobre, forte, que lhe dissesse de *oelhos,uma noite, sob o luar como há pouco, as coisas infinitas da pai#ão?

>a manhã seguinte avistamos o morro de /ibraltar$ @esembarcamos$ >uma praa, !entrada, um regimento inglAs, de uniformes vermelhos, manobrava ao som da canão dogeneral "oum$

; @etesto os &ngleses ; disse a condessa$ + 5 quA?= ; gritou o conde com uma vozindignada$ ; 5s &ngleses= @etestas os

&ngleses? < voltando+se para mim, com uma atitude profundamente pasmada e abatida

; @etesta os &ngleses, menino=

72PL0(5 N

enhor redator$ ; <m /ibraltar fomos para o !lub /ouse-/otel , 5s quartos abriam sobre a

muralha do lado do mar) v3amos defronte, afogada numa luz admirável, uma linha demontanhas, e mais longe, do lado do estreito, nas brumas esbatidas, a terra de Zfrica$.omos passear logo num daqueles canos de /ibraltar que são dois bancos paralelos, costascom costas, assentes sobre duas rodas enormes, pu#ados por um cavalo inglAs robusto,rápido, e tendo *á adquirido nas convivAncias espanholas um esp3rito teimoso$

5 belo passeio de /ibraltar é uma estrada, que, a meia vertente por cima da cidade,contorna a montanha, e é orlada de cottages, de *ardins, de pomares, cheios *á dasestranha+se poderosas vegeta4es do 5riente, aloés, no pais, catos e palmeiras) e vA+sesempre, através da folhagem, lá no fundo, a azul imobilidade luminosa do CediterrBneo$ 2

condessa estava encantada) aquela luz ampla e magn3fica, a água pesada pelo sol, osilAncio religioso do espao azul, as brumas vaporosas e ro#as das montanhas, a vigorosafora das vegeta4es, tudo dava !quela pobre alma contra3da uma e#pansão inesperada$Iia, queria correr, tinha verve, e uma luz bailava+lhe nos olhos$ .omos sentar+nos no

 *ardim de /ibraltar$ 5s senhores &ngleses artilharam+no talvez um pouco demais$ >ão háfontes, mas há estátuas de generais) as pirBmides de balas estão encobertas pelas moitasde rosas, e a estúpida impassibilidade dos canh4es assenta sob arbustos de magnólias$Cas, que serenidade= 1ue silAncio abstrato e divino= 1ue ar imortal= Parece que as coisas,os seres vegetais, a terra, a luz, tudo está parado, absorto numa contempla ão, suspenso,

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escutando, respirando sem rumor= <m bai#o está o CediterrBneo, liso como um cetim,delicado, coberto de luz$ Cais longe, vaporizadas,docemente esbatidas nas névoas azuis,

as duras formas d o monte 2tlas$ >ada se move: apenas as vezes uma pomba passa,voando com uma serenidade inefável$ m momento veio+nos debai#o, onde passava umregimento de Highlanders, o som das cornemuses que tocavam as árias melancólicas dasmontanhas da <scócia$ < os sons chegavam+nos doces, etéreos, como se fossem habitantessonoros do ar$ 2 condessa tinha ficado sentada, e imóvel, calada, penetrada daquelaadmirável serenidade das coisas, da beleza da luz, do sono da água, dos vivos aromas$

; >ão é verdade ; disse ; que dá vontade de morrer, aqui, brandamente, só$$$ + ó? ;perguntei eu$

<la sorriu, com os olhos perdidos na bela decoraão do horizonte luminoso$ + ó$$$ ; disseela ; não= ; 2h= minha rica prima, cuidado= cuidado= ; observei eu$ ; 7omea+secismando assim vagamente, vem um pequeno sonho bem inocente, acampa no nossocoraão, comea a cavá+lo, e depois, querida prima, e depois$$$

; < depois vai+se *antar ; disse o conde que tinha chegado ao pé de nós, radiante por terapertado a mão de um coronel inglAs, e colhido um cato vermelho$ @escemos ao hotel$ [noite passeávamos no Cartillo$ <ra a hora de recolher) uma fanfarra inglesa tocava umamelopeia melancólica$ 5uviu+se no mar um tiro de pea$ + 7hegou o paquete da Lndia ;disse o nosso guia$ < no alto do morro um canhão respondeu com um eco cheio e

poderoso$; @esembarcam, no dia em que chegam, os passageiros? ; perguntei$ + 5s militaresquase sempre, senhor$ Vão desembarcar lá em bai#o, com licena do governador$ 1uandopelas D horas entramos, depois de termos passeado ao luar nas esplanadas, sentimos nasala de !lub-/ouse, ru3do, vozes alegres, estalar de rolhas, toda a feião de uma ceia dehomens$ 2 condessa subiu para o seu quarto$ <u entrei na sala, com o conde$ 5ficiaisingleses que vinham de outhampton, e que iam para a estaão de Calta, tinhamdesembarcado, e ceavam$ + >ós t3nhamo+nos sentado, bebendo cerve*a, quando tiveocasião de apro#imar de um dos oficiais ingleses que estava pró#imo de mim, o frasco da

mostarda$ 5 frasco caiu, su*ou+me, ele sorriu com polidez, eu ri alegremente,conversamos, e ao fim da noite passávamos ambos pelo brao, na esplanada que ficavadefronte das *anelas do hotel e que está sobre o mar$ Havia um amplo e calado luar queespiritualizava a decoraão admirável das montanhas, a vasta água imóvel$

<u tinha simpatizado com aquele oficial, *á pelo seu perfil altivo e delicado, *á pela feiãooriginal do seu pensamento, *á por uma gravidade triste que havia na sua atitude$ <ramoo, capitão do artilharia, e batera+se na Lndia$ <ra louro e branco) mas o sol do &ndostãotinha amadurecido aquela carnaão fresca e clara, aprofundado a luz dos olhos, e dado aoscabelos uma cor fulva e ar dente$

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Passeávamos, conversando na esplanada, quando, repentinamente, se abriu uma *anela, euma mulher com um penteado branco apoiou+se levemente na varanda, e ficou olhando o

horizonte luminoso, a melancolia da água$ <ra a condessa$5 luar envolvia+a, empalidecia+lhe o rosto, adelgaava+lhe o corpo, dava ! sua forma todaa espiritualizaão de uma figura de antiga legenda: o seu penteador ca3a largamente aoredor dela, em grandes pregas quebradas$

; 1ue linda= ; disse o oficial parando, com um olhar admira do e profundo$ ; 1uemserá? ; omos um pouco primos ; disse eu rindo$ ; M casada$ M a condessa de X$ Partepara Calta amanhã no paquete$ 2 bordo levar+lhe+ei o meu amigo para a entretercontando+lhe histórias da Lndia$ 2dora o romanesco, aquela pobre condessa= <m Portugal,nem nos romances o há, 7aou o tigre, capitão?

; m pouco$ .ala o inglAs sua prima? 7omo uma portuguesa, mal) mas ouve com osolhos, e adi vinha sempre$

eparamo+nos$ + 2rran*ei+lhe um romance, um lindo romance, prima ; disse eu entrandona sala, onde o conde escrevia cartas, cachimbando: ; um romance onde se caam tigrescom ra*ás, onde há ba*aderas, florestas de palmeiras, guerras inglesas e elefantes$$$ + 2h=como se chama?

; 7hama+se 7aptain IYtmel, oficial de artilharia, NF anos, em viagem para Calta, bigode

louro, um pouco da &ndianos olhos, muito da &nglaterra na e#centricidade, um perfeitogentleman$

; m bebedor de cerve*a= ; disse ela, desfolhando a flor de catos$ + m bebedor decerve*a= ; gritou o conde erguendo a cabea com uma indignaão c6mica$ ; Cinhaquerida, diante de mim, pelo menos, não digas isso se não queres fazer+me cabelosbrancos= <stimo os &ngleses e respeito a cerve*a$ m bebedor de cerve*a= m moodaquela perfeião=$$$ ; murmurava ele, fazendo ranger a pena$

2o outro dia sub3amos para bordo do paquete da Lndia: o 7eilão$ <ram O horas d amanhã$

5 morro de /ibraltar, mal acordado, tinha ainda o seu barrete de dormir feito de nevoeiro$Havia *á via *antes e oficiais sobre a tolda$ 5 chão estava úmido, havia uma confusãoviolenta de bagagens, de cestos de fruta, de gaiolas de aves) a escada de servio via+secheia de vendedores de /ibraltar$ 2 condessa recolheu+se ! cabina para dormir um pouco$[s \ horas quase todos os passageiros que tinham entrado em /ibraltar e os que vinhamde outhampton estavam em cima) o vapor fumegava, os escaleres afastavam+se, onevoeiro estava desfeito, o sol dava uma cor rosada !s casas brancas de 2lgeciras e de $Ioque, e ouvia+se em terra o rufar dos tambores$ 2 condessa, sentada numa cadeiraindiana, olhava para as pequenas povoa4es espanholas que assentam na ba3a$ 5 oficial

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inglAs, 7aptain IYtmel, conversava a distBncia com o conde, que adorava *á a sua figuracativante e altiva, as suas aventuras da Lndia, e a e#cAntrica forma do seu chapéu, que ele

trazia com uma graa distinta e audaz$ 5 capitão tinha na mão um álbum e um lápis$ +7aptain ; disse+lhe eu tomando+lhe o brao +, vou levá+lo a minha prima, a senhoracondessa$ <sconda os seus desenhos, ela é implacável e faz caricaturas$ 2 condessaestendeu ao inglAs uma pequena mão, magra, nervosa, macia, com umas unhas polidascomo o marfim de @iepa$

; Ceu primo disse+me, 7aptain IYtmel, que tinha mil histórias da Lndia para me contar$ -álhe digo que lhe não perdoo nem um tigre, nem uma paisagem$ 1uero tudo= 2doro a Lndia,a dos Lndios, *á se vA, não a dos senhores &ngleses$ -á esteve em Calta? M bonita?+ Calta,condessa, é um pouco de &tália e um pouco do 5riente$ urpreende por isso$ 0em um

encanto estranho, singular$ @e resto é um rochedo$

; @emora+se em Calta? ; perguntou a condessa$ + ma semana$

2 condessa estava torcendo a sua luva) ergueu os olhos, pousou+os no oficial, tossiubrandamente, e com um movimento rápido: ; 2h= Vai dei#ar+me ver o seu álbum$ ; Cas,condessa, está branco, quase branco) tem apenas desenhos lineares, apontamentostopográficos$ ; >ão creio) deve ter paisagens da Lndia, há de haver a3 um tigre, pelomenos, a não ser que ha*a uma bo*adera= <, com um gesto de graa vitoriosa, tomou oálbum da mão do oficial$

5 capitão fez+se todo vermelho$ <la folheou o livro e de repente deu um pequeno grito,corou, e ficou com o álbum aberto, os olhos úmidos, risonhos, os lábios entreabertos$5lhei: na página estava desenhada uma mulher com um penteador branco, debruada auma *anela, tendo defronte um horizonte com montanhas e o mar$ <ra o retrato perfeitoda condessa$ <le tinha+a visto assim na véspera, ao luar, ! *anela do !lub-/ouse$ 5 condetinha+se, apro#imado$

; 7omo= 7omo= Ms tu, (u3sa= Cas que talento= M um homem adorável, capitão$ 1uedesenho= 1ue verdade= ; 5h= >ão= >ão= ; disse o capitão$ ; 5ntem estava no meuquarto, em !lub-/ouse) instintivamente tinha o álbum aberto, e o lápis, sem eu querer,sem intenão minha, espontaneamente, fez este retrato$ M um lápis que deve sercastigado=

; 5 quA= ; gritou o conde$ ; M um lápis encantado$ 7apitão, está decidido que vai *antarcomigo, logo que cheguemos a Calta$ -á o não largo, meu caro= Há de ser o nosso ciceroneem Calta$ Cas que talento= 1ue verdade= < falando em portuguAs para a condessa:

; M um bebedor de cerve*a, hem? >esse momento uma sineta tocou: era o almoo$

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0alvez estranhe, senhor redator, a escrupulosa minuciosidade com que eu conto estesfatos, conservando+lhes a paisagem, o diálogo, o gesto, toda a vida palpável do momento$>ão se admire$ >em tenho uma memória e#cepcional, nem fao uma invenão fantasista$

0enho por costume todas as noites, quando fico só, apontar num livro branco os fatos, asideias, as imagina4es, os diálogos, tudo aquilo que no dia o meu cérebro cria ou a minhavida encontra$ ão essas notas que eu copio aqui$

2 mesa do almoo estavam *á sentados os passageiros$ 5 nosso lugar era ao pé do capitão$5 comandante do 7eilão era um homem magro, esguio, com uma pele muito vermelha, deonde sa3am com a hostil aspereza com que as urzes saem da terra, duas su3as brancas$ 2o

seu lado sentavam+se duas e#cAntricas personalidades de bordo: o Purser , que é ocomissário que vela pela instalaão dos via *antes e pelos regulamentos de servio, e Cr$7olneY, empregado do correio de (ondres$ 5 Purser  era tão gordo que fazia lembrar umgrupo de homens robustos metidos e apertados numa farda de ma rinha mercante$ Cr$

7olneY era alto e seco com um imenso nariz agudo e enristado em cu*a ponta repousavapedagogicamente o arco de ouro dos seus óculos burocráticos$ 5 Purser   tinha umafraqueza que o dominava ; era o dese*o de falar bem brasileiro$ 0inha via*ado no "rasil,admirava o Caranhão, o Pará, os grandes recursos do &mpério$ 2 todo o momento seapro#imava de mim para me perguntar certas subtilezas da pronúncia brasileira$ Cister7olneY, esse, era gago e tinha a mania de cantar canonetas c6micas$ 5s outrospassageiros eram oficiais, que iam tomar servio na Lndia, algumas misses alegre e louras,um clerg*man  com doze filhos, e duas velhas filantrópicas, pertencentes ! ociedadeeducadora dos pequenos patag6nicos$ (ogo que 7aptain IYtmel entrou na sala, seguindo acondessa, um homem que se debatia gulosamente no prato com a anatomia de uma avefila, encarou+o, ergueu+se, e com uma alegria ruidosa gritou:

; 5ia Dios= M 7aptain IYtmel= <h= 1uerido= Cil abraos= <stá gordo, hombre, está maisgordo=

<nvolvia+o nos abraos robustos, olhava+o ternamente com dois grandes olhos negros$7aptain IYtmel depois do primeiro instante de surpresa, em que se fez pálido, apressou+sea ir apertar a mão a uma senhora, e#tremamente bela, que estava sentada ao pé daquelehomem guloso e e#pansivo, o qual era um espanhol, negociante de sedas, e se chamava>icazio Puebla$

2 senhora, que se chamava 7ármen, era cubana, e segunda mulher de @$ >icazio) era alta,deformas magn3ficas, com uma carnaão que fazia lembrar um mármore pálido, uns olhospretos que pareciam cetim negro coberto de água, e cabelos anelados, abundantes, desses

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a que "audelaire chamava tenebrosos$ Vestia de seda preta e com mantilha$ + <stavam em/ibraltar? ; perguntou 7aptain IYtmel$

; <m 7ádis, meu caro ; disse @$ >icazio$ ; Viemos ontem$ Vamos a Calta$ Volta para aLndia? 2h= 7aptain IYtmel, que saudade de 7alcutá= (embra+se, hem? ; 7aptain IYtmel ;disse sorrindo friamente 7ármen ; esquece depressa, e bem= >o entanto, nós olhávamoscuriosamente para 7ármen Puebla$ 5 conde achava+a sublime$ <u, admirado também,disse bai#o ! condessa:

; 1ue formosa criatura=+ im= 0em ares de uma estátua malcriada ; respondeu elasecamente$

5lhei para a condessa, ri: ; J prima= M uma mulher adorável, que devia ser em miniatura

para se poder trazer+nos berloques do relógio) uma mulher que decerto vou roubar, aquino alto mar, num escaler) uma mulher cu*os movimentos parecem música condensada= Jprima= 7onfesse que é perfeita$$$ Cenino= ; acrescentei para o conde ; passa+medepressa a soda, preciso calmantes$$$

>o entanto, 7aptain IYtmel, sentado *unto de 7ármen, falava da Lndia, de velhos amigosde 7alcutá, de recorda4es de viagens$ 2 condessa não comia, parecia nervosa$ ; Voupara cima ; disse ela de repente +) mandem+me chá$ 1uando a viu subir, IYtmel ergueu+se, perguntando ao conde: + <stá incomodada a condessa?

; (evemente$ Precisa de ar$ Vá+lhe fazer um pouco de companhia, fale+lhe da Lndia$ <u,não posso dei#ar este caril$$$ <u tinha interesse em ficar ! mesa defronte da luminosa7ármen) concentrei+me sobre o meu prato$ 5 capitão tinha tomado logo o seu e#cAntricochapéu 3ndio, orlado de véus brancos$

2o vA+lo seguir a condessa, a espanhola empalideceu$ Comentos depois ergueu+setambém, tomou uma larga capa de seda ! maneira árabe de um bournous, enrolou+a emrodado corpo, e subiu para a tolda, apoiada numa alta bengala de castão de marfim$

5 almoo tinha acabado$ .alava+se da Lndia, do teatro de Cal ta, de 4ord   @erbY, dos

.enians) eu enfastiava+me, fui apertar a mão ao comandante, e fumar para cima um bomcharuto, sentindo a brisa fresca do mar$ 2 condessa estava sentada num banco ! popa) aopé dela o capitão IYtmel, num pliant  de vime$

7ármen passeava rapidamente ao comprido da tolda) !s vezes, firmando+se nascordagens, subia o degrau que contorna interiormente a amurada, e ficava olhando para omar, enquanto a sua mantilha e a sua capa se enchiam de vento, e lhe davam umaaparAncia ondeada e balanada, que a assemelhavam 2quelas divindades que osescultores antigos enroscavam no flanco dos gale4es=

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@$ >icazio Puebla, que o Purser  me apresentara *á, viera fumar para o pé de mim$ + <stevena Lndia, !abellero? ; perguntei+lhe eu$ + @ois anos, em 7alcutá$ .oi lá que conheci ocapitão IYtmel$ 7onviv3amos muito$

-antávamos sempre *untos$ .ui ! caa do tigre com ele$ 7acei o tigre$ @eve ir a 7alcutá=1ue palácios= 1ue fábricas=

; 5 capitão é um valente oficial$ + M alegre$ 5 que nós riamos= < bravo, então= e lheparece= alvou+me a vida$ ; >alguma caada? ; <u lhe conto$ 03nhamo+nos apro#imadoda popa, falando$ >este momento vi eu a espanhola encaminhar+se para o lugar em que a

condessa falava com IYtmel, e com uma resoluão atrevida, a voz altiva, dizer+lhe:

; 7apitão, tem a bondade, dá+me uma palavra? 2 condessa fez+se muito pálida$ 5 capitãoteve um movimento colérico, mas ergueu+se e seguiu a espanhola$

<u apro#imei+me da condessa$ + 1uem é esta mulher? 1ue quer?$$$ ; disse+me ela todatrAmula$ <u sosseguei+a e dirigi+me a @$ >icazio$ ; Viu aquele movimento de sua mulher?+Vi$

; M inconveniente: o cavalheiro responde decerto pelas fantasias ou pelos hábitos

daquela senhora$$$ + <u= ; gritou o espanhol$ ; <u não respondo por coisa alguma$ 5senhor que quer? M um monstro essa mulher= (ivre+me dela, se pode= 5lhe: quere+a osenhor? /uarde+a$ <stá sempre a fazer destas cenas= < não lhe posso fazer umaobservaão= M uma fúria, usa punhal=

; <sta mulher ; fui eu dizer ! condessa ; é uma criatura sem consideraão e parece quesem dignidade$ >ão a olhe, não a escute, não a perceba, não a pressinta$ e houver outrainconveniAncia eu dirige+me ao comandante, como se ela fosse um grumete  insolente$ Mpena$$$ é terrivelmente linda=

2 espanhola, no entanto, *unto da amurada, falava violentamente ao capitão IYtmel, quea escutava frio, impass3vel, com os olhos no chão$ 5 conde subiu neste momento$ 5utrassenhoras vieram, os grupos formavam+se, comeavam as leituras, as obras de costura, o

 *ogo do boi$$$ <u apro#imei+me de @$ >icazio e disse+lhe sem lhe dar mais importBncia:

; <ntão esta sua senhora dá+lhe desgostos? ; M sempre aquilo como capitão$ .oi desde atal caada ao tigre$$$ 1uer que lhe conte?$$$

; @iga lá$ entei+me na tenda onde se fuma, acendi um charuto, cruzei as pernas, recosteia cabea e, embalado pelo lento mover do navio, cerrei os olhos$

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; m dia em 7alcutá ; comeou o espanhol +, dia de grande calor$$$ Cas não, senhorredator$ <u quero que esta história a saiba do próprio capitão$ 23 tem a traduão fiel de

uma das mais vivas páginas de um dos seus álbuns de impress4es de viagem$%$$$ abes ; escrevia ele a um amigo ; que o sonho de todo o negociante que chega !Lndia é caar um tigre$ @$ >icazio Puebla quis caar o tigre$ ua mulher 7ármen decidiuacompanhá+lo$ <ssa, sim) que tinha a coragem, a violAncia, a necessidade de perigos de umvelho e#plorador Hundodo= <u estimava aquela fam3lia$ 7ombinamos uma caada comalguns oficiais meus amigos, então em 7alcutá$ 2 duas léguas da cidade sabiam ose#ploradores que fora visto um tigre$ 0inha mesmo saltado, havia duas noite, uma paliadade bambus, na propriedade de um doutor inglAs, antigo colono, e tinha devorado a filhade um malaio$ @izia+se que era um tigre enorme, e formosamente lis trado$ Partimos de

madrugada, a cavalo$ m elefante, com um palanquim, levava 7ármen$ m boi conduziaágua em bilhas encanastra das de vime$ &am alguns oficiais de artilharia, sipaios, trAsmalaios e um velho caador e#perimentado, antigo brBmane, degenerado e devasso, quevivia em 7alcutá das esmolas dos nababos e dos oficiais ingleses$ <ra destemido, meiolouco, cantava estranhas melodias do &ndostão, adorava o /anges, e dormia sempre emcima de uma palmeira$

>ós levávamos espingardas e#celentes, punhais recurvados, espadas de dois gumes,curtas, ! maneira dos gládios romanos, e o terr3vel tridente de ferro que é a melhor armapara a luta com o tigre$ &a uma matilha de cães, forte e destra, da confiana dos malaios$

[s DD horas do dia penetrávamos em plena floresta$ 5 tigre devia ser encontrado numaclareira conhecida$ Lamos calados, vergando ao peso implacável do sol, entre palmeiras,tamarindos, espessuras profundas, num ar sufocado, cheio de aromas acres$ 0oda aquelanatureza estava entorpecida pela calma: os pássaros, silenciosos, tinham um voo pesado)assuas penas coloridas, vermelhas, negras, ro#as, douradas, resplandeciam sobre o verde+negro da folhagem$ 5 céu mostrava uma cor de cobre ardente) os cavalos marchavam como pescoo pendente) os cães arque*avam) o boi que levava a água mugialamentavelmente) só o elefante caminhava na sua pompa impass3vel, enquanto osmalaios, para esquecer a fadiga, diziam, com a voz monótona e lenta, cantigas de

"ombaim$ <stávamos ainda distantes do tigre: nem os cavalos tinham rinchado, nem oelefante soltara o seu grito melancólico e doce$ 0odavia, achávamo+nos pró#imo daclareira$

<u cheguei+me ao palanquim de 7ármen e bati nas cortinas$ 7ármen entreabriu+as:estavapálida da fadiga do sol e do prazer do perigo) os olhos reluziam+lhe e#traordinariamente$2nsiava pela luta, pelos tiros, pelo encontro da fera$ Pediu+me uma cigarrette e um poucode conhaque e água$$$ <u, desde que a conhecia, tinha muitas vezes olhado 7ármen cominsistAncia, e tinha visto sempre o seu olhar negro e acaricia dor envolver+merespondendo ao meu$ 0inha+lhe algumas vezes dado flores, e uma noite que, num terrao

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em 7alcutá, olhávamos as poderosas constela4es da Lndia, o céu pulverizado de luz, elatinha um momento esquecido as suas mãos entre as minhas$ 2 sua beleza perturbava+me

como um vinho muito forte$ < ali, naquela floresta, sob um céu afogueado, entre osaromas de magnólias, 7ármen aparecia+me com uma beleza prestigiosa, cheia detenta4es a que se não foge$

; 2h, 7ármen= ; disse eu$ ; 1uem sabe os que voltarão a 7alcutá=+ <stá rindo, capitão$$$; >a caada do tigre pode+se pensar nisto: o tigre é astuto) tem o instinto do inimigo maisbravo e do que mais lamentado$ + >inguém ho*e seria mais lamentado que o capitão$

; ó ho*e$ + empre, e bem sabe porquA$ @e repente o meu cavalo estacou$ ; 5 tigre= 5tigre= ; gritaram os malaios$

5s cavalos da frente recuaram) os sipaios entraram nas fileiras da caravana$ 5s cãeslatiam, os malaios soltavam gritos guturais, e o elefante estendia a tromba, silencioso$ @erepente, houve como uma pausa solene e triste, e um vento muito quente passou nasfolhagens$

<stávamos defronte de uma clareira coberta de um sol faiscante$ @o outro lado havia umbosque de tamarindos: era ali decerto que a fera dormia$ Voltei+me para @$ >icazio: vi+opálido e inquieto

; @$ >icazio= @A o primeiro tiro, o sinal de alarme= @$ >icazio picou rapidamente o cavalo

para mim, murmurou com uma voz sufocada: ; 1uero subir para o elefante$ 7ármen nãodeve estar só, pode haver perigo$$$ .alei aos malaios, que desdobraram a estreita escadade bambu, por onde se sobe ao dorso dos elefantes$ 5 cornaca dormia encruzado no vastopescoo do animal$ @$ >icazio subiu com avidez, arremessou+se para dentro do palanquim,e de lá, pela fenda das cortinas, espreitava com o olho faiscante e medroso$

Cas então foi 7ármen que não quis ficar dentro do palanquim, pediu, gritou, queriamontar a cavalo, sentir o cheiro ! fera$ + 0irem+me daqui, tirem+me daqui= >ão fiz esta

 *ornada toda para ficar dentro de uma gaiola$$$ >ão havia sela em que mulher montasse,nem cavalo bastante fiel) não se podia consentir que 7ármen descesse$ Cas eu tive uma

ideia estranha, perigosa, tentadora, imprevista: era p6+la ! garupa do meu cavalo$ @isse+lho$ <la teve um gesto de alegria, quase se dei#ou escorregar, agarrando+se !s cordas dopalanquim, pelo ventre do elefante) correu, p6s o pé no meu estribo, enlaou+me acintura, e com um lindo pulo, sentou+se ! garupa$ 5s oficiais e#clamavam que era umaimprudAncia$ <la queria, instava, e apertava+me contra a curva do seu peito, rindo, *urandoque nem as garras do tigre a arrancariam dali$$$ 5s malaios preparavam os tridentes,dispunham a matilha$ <u, como levava 7ármen ! garupa, tinha+me colocado atrás dogrupo, cerrado, com os pés firmes no estribo, atento, os olhos fitos na espessura dostamarindos$ Cas nem se ouviam rugidos, nem um estremecimento de folhagem$

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7ármen apertava+me e#altada$ + Vá= Vá= ; pediu+me ela bai#o$ ; 5 tigre, o tigre= @A osinal= <rgui um revólver, e disparei$ 5 eco foi cheio e poderoso$ < logo ouviu+se um rugido

surdo, lúgubre, rouco, que era a resposta do tigre$ <stava perto, entre os primeirostamarindos$ 2 matilha rompeu a ladrar$$$

; 1ue ninguém se alargue= ; disse o velho brBmane, que tinha trepado a uma palmeira,e de lá olhava, fare*ava, ordenava$ 0odos conservaram a espada ou tridente inclinado emriste, esperando o salto do tigre$ <u dera uma cuchilla a 7ármen, tinha na mão da rédeaum forte revólver e na outra um punhal curvo$$$

@e repente os arbustos estremeceram, as altas ervas curvaram+se, sentiu+se um bafoquente, um cheiro de sangue, e o tigre veio cair, com um rugido, diante dos caadores, nomeio da clareira, estacado e imóvel$

<ra muito comprido, de pernas curtas e espessas, a cabea óssea, os olhos fulvos, ferozes,num movimento perpétuo e convulsivo) e a l3ngua vermelha como sangue coalhado,pendia+lhe fora da boca$ m momento o tigre arrastou+se, batendo os ilhais com a cauda$@epois, com um gemido profundo, saltou$ Cas os cães, arremessando+se, tinham+noprendido no ar, pelas orelhas, pela pele espessa do pescoo, pelas pernas, vestindo+o demordeduras, rasgando+o, rugindo, cobrindo+o todo$ 2lguns ficaram logo despedaados$ <no instante em que a fera, tendo cuspido todos os cães, ficou só, magn3fica e de cabeaalta, o brBmane fez um sinal$ @uas balas partiram$ 5 tigre rugiu, rolou+se freneticamente

no chão$ <stava ferido$&mediatamente ergueu+se, arremessou+se sobre os homens$ 0odos tinham o tridente eospunhais enristados, o ventre da fera veio rasgar+se nas lBminas agudas$ Prendera, porém,um malaio entre as ganas, e rasgava+lhe o peito$ [ uma to dos enterravam as facas nocorpo do animal, e ele, sucumbindo sob o peso, sob as feridas, varado por uma bala,debatia+se ainda ferozmente, esmigalhando na agonia os membros do pobre malaio$

; >ada de bala= >ada de bala= ; gritava o brBmane$ <u estava fascinado$ 7ármenconvulsivamente apertada a mim, com os olhos chame*antes, vibrando por todo o corpo,dava gritos surdos de e#citaão$ 5 tigre ficara estendido, escorrendo sangue$ <u devorava+o com a vista, seguia+lhe a mais pequena contraão dos músculos$ Vi+o arquear+se derepente, e com um pulo vertiginoso arremessar+se sobre mim e sobre 7ármen$ 7om umadeterminaão súbita, disparei um tiro do meu revólver no ouvido do cavalo quemontávamos$ 5 animal caiu sobre os *oelhos, nós rolamos no chão$ 5 tigre levava um puloelevado, roou pelas nossas cabeas, foi cair a distBncia, revolvendo+se na terra$ <rgui+me,arro*ei+me a ele, cravando+lhe o punhal entre as patas dianteiras com um movimentorápido, que lhe foi ao coraão$ 5 tigre ficou morto$ 2bai#ei+me, e com uma faca malaia emforma de serra cortei+lhe uma pata, e apresentei+a a 7ármen$ + Hurra ; gritaram todos, eo eco deste grito estendeu+se pela floresta$

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7ármen tinha+se apro#imado do tigre morto, acariciava+lhe a pele aveludada, tocava+lhecom as pontas dos dedos no sangue que escorria$ + Hurra= Hurra= ; continuavam gritando

os caadores$7ármen, então, arremessando+se aos meus braos, bei*ou+me na testa comentusiasmo,dizendo alto: ; alvou+me a vida= @evo+lhe a vida=$$$ < mais bai#o, murmurou+me ao ouvido: + 2mo+te$

2 tarde ca3a$ ent3amos os braos fracos, e grande sede$ 7omeamos a dirigir+nos para7alcutá$ @escansamos numa plantaão de 3ndigo$ < ao comear da noite, com archotesacesos e cantando, partimos alegremente para a cidade, pela floresta, num caminhoconhecido e seguro$ 2s luzes davam ! ramagem atitudes fantásticas) pássaros acordandoesvoaavam) e sentia+se o fugir dos chacais$ <ra como a volta de uma caada bárbara, dasvelhas legendas da Lndia$ 7ármen tinha aberto as cortinas do palanquim$ <u montava, aolado dela, o cavalo do malaio morto$ <la inclinou+se para mim e com a voz abafada:

; -uro+te ; disse+me ; que te amo, como só no nosso pa3s se ama$ -uro+te que em todasas circunstBncias, sempre darei a minha vida pela tua, quererei os teus perigos, serei a tuacriatura, e só te peo uma coisa$

; 5 quA?+ < que de vez em quando, quando não tiveres melhor que fazer, te lembres umpouco de mim$

; 5 momento, o sitio, os perfumes acres, as fantásticas sombras da floresta, a luz dosarchotes, a beleza maravilhosa e fatal de 7ármen, os tiros, os sons das trompas, osrelinchos dos cavalos, os gritos dos chacais, tudo me tinha perturbado, e#altado, eesquecendo o senso e a lógica, disse+lhe:

; -uro+te que te amo, que sempre te serei leal, e que no dia em que vires que te esqueo,quero que me mates= <le segurou a mão que lhe estendi, e com uma car3cia humilde, comum gesto de fera que raste*a, curvou+se toda na grade do palanquim, e bei*ou+me osdedos$

2 noite, no entanto, enchia+se de enormes estrelas cintilantes$$'

72PL0(5 R

2o terceiro dia de viagem do 7eilão, um dia antes de avistar mos Calta, um oficial inglAs,ao almoo, lembrou que naquele dia fazia NF anos o pr3ncipe de /ales$ 1uase todo sosoficiais que estavam abordo conheciam o pr3ncipe, estimavam o seu caráter, o seutemperamento eminentemente b*roniano$ Iesolveram, com a cedAncia do comandante,

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celebrar a data e valsar ! noite, na tolda, ! luz de um  punch  colossal$ 5 *antar foi *áruidoso) o champanhe resplandeceu como opala liquida nas taas facetadas) a  pesada pale

ale espumou) o #erez ferveu na soda +ater $ 7ármen, pela sua beleza e pela estranha verveda sua agitaão, foi a alegria daquele pesado e longo banquete de anos reais$

Houve toasts, ! rainha e aos pr3ncipes ingleses, ao lorde+almirante, ! companhia P$ and  5$)e um inglAs rico fez um speech aos estrangeiros: The count and countess o% 6 $

; Peo um toast  ; disse 7ármen, de repente$ 5s copos tiniram, estalaram as rolhas$

; 2 caada do tigre= 2os palanquins de cortinas brancas= 2os caadores que salvam asdamas que tAm ! garupa= 2 maior parte não compreendeu, alguns riram, mas como otoast  era e#cAntrico, foi escoltado de aplausos$

; 5h= shoc(ing= ; disse ao meu lado uma velha irlandesa, que tinha pelo amplo ventredoPurser  uma fascinaão concentrada$

; Not at all1 Madam= ; disse eu$ ; M apenas o sangue meridional$ 2quela viveza, aquelesolhos luzentes, é o sangue meridional: se ela agora quebrasse todas as garrafas deencontro ao teto da sala, era o sangue meridional$$$

2 inglesa escutava, como quem se instrui$ + $$$ e ela tomasse de repente a roda do leme earremessas se o paquete contra um rochedo, era o sangue meridional) se ela ousasse

arrancar com mãos 3mpias os seus óculos, miladY$$$

; ,uh= ; gritou ela$ ; $$$era ainda o sangue meridional=+ 5h= 5er* shoc(ing the sanguemeridional= 5s oficiais ingleses, esses, estavam entusiasmados com 7ármen$ >o entanto,as senhoras tinham+se erguido) e em volta do conde *untara+se um grupo de bebedoresconvictos e sérios$ erviu+se o conhaque e os alcoóis$ 7ármen ficara entre os homens,bebendo licor, rindo e fumando cigarrettes$ 2 condessa subira pelo brao de 7aptainIYtmel$

@$ >icazio, esse, comia impassivelmente o seu quei*o adorna++do de mostarda, desalada,

de vinagre, de sal, de rábanos e de um leve pó apimentado de 7eilão$ >ão sei como, falou+se de mulheres, e de caracteres femininos$ ; <u ; disse logo 7ármen ; compreendo agravidade devo ta das misses: como senhoras inglesas é sua educaão) nasceram paraserem hirtas, louras, frias e leitoras da eista de Edimburgo$ <stão na verdade do seucaráter: um pouco menos vivas seriam de biscuit, um pouco mais seriam shoc(ings$ Cas oque eu detesto, são as canduras alemães, os modos virginais de criaturas que, pelo seuclima, pelo sol do seu pa3s, pertencem ao que a vivacidade tem de mais petulante$ maespanhola, uma italiana, uma portuguesa, caindo no missismo e dando+se ares vaporosos,hipócritas e beatos, serve sempre para esconder um amante, quando não serve paraesconder dois$

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2quelas palavras eram, evidentemente, uma alusão sanguinolenta !s maneiras reservadasda condessa, que, sendo loura, discreta, suave, contrastava poderosamente com aquela

trigueira e ruidosa espanhola$; Perdão, senhora ; disse+lhe eu em espanhol +, ho*e as verdadeiras maneiras não são osalero, são a gravidade$ 5 salero pode ser bom no teatro, na zarzuela, nos corpos de baile,nas gravuras de uma viagem ! <spanha, mas é de todo o ponto inconveniente numa sala$<la empalideceu levemente, e fitou+me:

; !aballero ; perguntou +, és usted pedante de rhetorica? <u ri+me, estendi+lhe a mão, etudo acabou com um novo toast $ Cr$ 7o]neY, que escutava a espanhola, tinha atendido !snossas palavras, tinha achado um som pitoresco e estranho naquele dizer ; pedante derhetorica, e e#clamava para os outros ingleses, rindo: + ,h *es1 Pedant de hetori# it is er*

 phantastic= <ntretanto, a noite ca3a$ <u senti+me pesado, recolhi ! cabina, adormeciligeiramente$

Pelas nove horas subi ! tolda$ .iquei surpreendido$ >ão havia luar, nem estrelas, nemvento$ 2o fim da tolda ar dia o  punch$ <ra enorme, a sua chama larga, azulada, fantástica,subia, palpitava, fazia sobre o navio toda a sorte de refle#os e de sombras$ @os lugaresescuros safam risadas de  %lirtations$ Havia uma flauta e uma rabeca$ < *á um ou outro parvalsava em roda da clarabóia da tolda$

2 mastreaão do navio, tocada em grandes linhas azuladas pela luz do punch, fazia lembrarum galeão de legenda, o paquete de atã$ 2lgumas senhoras estavam vestidas de branco,e quando no c3rculo da valsa passavam sob a zona da luz, e eram envolvidas numaclaridade fosfórica, os vestidos brancos toma amtons espectrais, os cabelos louros luziamcomum encanto morto, havia em tu do aquilo como uns longes de dana macabra$$$7ármen estava possu3da da mesma agitaão da chama do  punch, travava do brao a um,valsava com outro, escarnecia, tinha réplicas, batia o leque$ @$ >icazio, esse ressonavaperto da amurada$ @e vez em quando entornavam+lhe  punch  pela boca: ele abria umafrestado olho:

; Than( *ou1 caballeros ; e adormecia$ + 5nde está 7aptain IYtmel? ; disse de repente7ármen$ +0ragam+no$$$ 1uero valsar com ele$

IYtmel conversava com a condessa sossegadamente, longe da luz$ + IYtmel= IYtmel= ;chamaram várias vozes$

Vimo+lo apro#imar+se contrariado, mas rindo$ + ma valsa= ; gritou+lhe a espanhola9 2flauta comeou: ela tomou os ombros do capitão, e despediram em grandes c3rculos) osvestidos de 7ármen enchiam+se de ar, os seus cabelos desmanchavam+se) a luz do  punchtremia) ao compasso rápido, os giros vertiginosos, enlaados, pareciam voos, lembravam a

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valsa do diabo cantada por "Yron$ <la vergava nos braos de IYtmel, com a cabeaerrante, os olhos cerrados, os beios entreabertos e úmidos$

; "ravo= "ravo= ; gritavam os ingleses em roda$ 2 luz do punch erguia+se, balanava+se,valsava também$ 7ármen e IYtmel passavam como sombras, levados por um vento leve,cheios dos refle#os idealizadores da chama azul$

5 som frenético da flauta perseguia+os) parecia que eles iam voar, desaparecer entre ascordagens, dissipar+se na noite$ 5s ingleses gritavam, erguendo os chapéus$

; Hip= Hip= Hip= <u notava na condessa, entretanto, uma vaga sobre+e#citaão) estavaobservando de longe com os olhos resplandecentes, o seio arque*ante$ 2penas a valsafindou, ela tomou o brao do capitão, e ouvi+lhe dizer numa voz grave e repreensiva:

; >ão dance mais$ .iquei surpreendido$ 1ue havia? m segredo? Pois a condessa, tãoaltiva, tão casta, tão t3mida=

2pro#imei+me dela$ + Prima, é tarde$ >ão quer descer?$

<la olhou+me serenamente, sorrindo$ + >ão$ PorquA? < afastou+se com o capitão IYtmelpara ao pé da tenda onde de dia se fumava, e agora deserta e quase escura$ <u,maquinalmente, fui+os seguindo, cheguei+me imperceptivelmente pelo lado oposto, equase sem querer ouvi$ 5 capitão dizia+lhe:

; Cas porque duvida? <u desprezo aquela mulher$ 2 nossa amizade nada perde, e nadasofre$ <la foi para mim um capricho, e historia de um momento$ 2gora nem umarecordaão é$$$

7ontinuaram falando bai#o, e melancolicamente$ <u fui encostar+me um momento !amurada$ <rguera+se vento, e o vapor comeava a *ogar$$$ ; 5nde se some aquele capitãoIYtmel? @esapareceu outra vez com a condessa, não viram? Vamos procurá+los$7ompreendi a traião$ 7orri rapidamente, sem ser percebido, ! tenda  %umoir , entrei,sentei+me num banco, conversando alto, ao acaso$ 2 tenda estava apenas alumiada por

uma lanterna$ 2 condessa ao ver+me aparecer assim tão bruscamente, fizera+se pálida decólera$ Cas, nesse momento, chegavam alguns oficiais, gritando:

; IYtmel= IYtmel= <u adiantei+me, dizendo: ; 1ue é? <stamos aqui) não queremosdanar mais$$$ 5s oficiais afastaram+se$ 2 condessa percebeu que eu a tinha salvado deuma situaão penosamente equivoca, e o seu olhar agradeceu+me, profundamente$

; @esa, condessa, desa ; segredei+lhe eu$ <la disse com um sorriso melancólico aIYtmel: ; <stá frio, adeus= IYtmel e eu voltamos para o grupo dos oficiais$ <u queriavingar+me de 7ármen) lembrou+me o torná+la o centro de ru3do e de orgia$

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; Se7orita= ; disse+lhe eu$ ; 7ante+nos uma seguidilla ou uma habanera= .az um beloefeito no alto mar$ <stão aqui gentlemen que nunca ouviram a música dos nossos pa3ses$ +

im, sim ; gritaram todos$ ; ma seguidilla=$$$ <la queria recusar+se, descer ao beliche$ +>ão, não, cante, miladY, cante= 5s pedidos eram instantes e ruidosos$ <la cedeu, ergueu avoz, no meio do silAncio, acompanhada pelo monótono ru3do do vapor e pelo ventocrescente, e cantou com uma voz forte e lBnguida:

 " la puerta de mi casa /a* una piedra mui larga$$$

5s ingleses estavam e#táticos$ >o fim os aplausos estalaram como foguetes, encheram+seos copos, um gritou:

; Pela se7orita 7ármen= Hip= Hip= Hurra= 5s aplausos ecoaram no mar$

<la estava e#tremamente embaraada, compreendia que só, no meio daquelasaclama4es de homens, a sua posião era equivoca e ousada$ ; 5ra ve*am= ; disse euentão, com uma bonomia mefistofélica$ ; M pena que as senhoras não ouvissem, e queeste*amos aqui sós, entre rapazes, na pBndega$ 7ármen deitou+me um vivo olhar de ódio:eu estava vingado$

m dos ingleses, no entanto, Cr$ Iedor, continuava erguendo o copo, cheio de  punch: ;2 7ármen Puebla= Hip= hip= hip=+ Hurra= ; responderam os outros entusiasmados$

< o eco triste do mar, repetiu: + Hurra= 0ocou uma sineta$ <ram onze horas$ 2pagaram+seas luzes$ 1uase todos desceram rapidamente$ Havia um forte vento de no roeste$ 5balano do navio crescia$ >avegávamos então ! vista da terra de Zfrica$ 1uando a toldaficou deserta, sentiu+se mais vivamente o vento uivar nas cordagens, e bater a grandepancada do mar$ @e espao a espao a sineta marcava os quartos: e a voz melancólica domarinheiro de vigia, dizia, pausadamente: +  "ll is +ell $ Havia duas horas que eu tinhadescido ao beliche$ <stava naquela confusa penumbra que não é o sono, nem a vig3lia, masum vago sonho vivo que se sente e que se domina) via a condessa passar numa nuvemcom IYtmel, alegre, bebendo cerve*a) via 7ármen vestida de monge, danando sobre acorda bamba) e estas vis4es confundiam+se com o balano e com o bater da hélice$ @e

repente senti uma pancada pavorosa$ 5 navio estremeceu, parou, ressoou um grandegrito$

72PL0(5 S

@ei um salto, corri ! porta do beliche: ; Ste+art3 Ste+art3  5 Ste+art   apareceuesguedelhado, quase nu$ + 1ue é? <stamos perdidos? "atemos num rochedo?

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; >ão sei$ >ão há de ser nada, o navio é seguro$ 5uvia em cima marinheiros correndo, omovimento que se faz num perigo$ %<stamos perdidos', pensei eu, vestindo+me com uma

precipitaão angustiada$ 2 cada momento esperava ver o navio descer, afundar+se, e umaenorme onda pesada entrar, alagar a cabina$

7orri ! tolda$ /iravam lanternas$ 1uase todos tinham subido: os vestidos brancos, ospenteados das mulheres, davam aos grupos um vago mais lúgubre$ 2 oficialidade estavaimpass3vel$ + 1ue foi? 1ue foi? ; perguntei a alguém$

; >ão se sabe, quebrou+se a máquina$ Cas temos sobre nós um terr3vel vendaval$$$ ;<stamos perdidos=+ 5 navio é seguro ; respondeu o outro$

2o lado diziam: + 5 capitão devia deitar as lanchas ao mar$ 5 céu estava limpo: luziam

estrelas$ 5 vento assobiava mais forte$ 5 navio tinha 7riado dos quartos$ 2quela oscilaãolúgubre de bombordo a estibordo, que tAm os grandes pei#es mortos quando bóiam aocimo da água$ 5lhei os astros, o céu impass3vel, a água negra ; e senti um imensodesprezo pela vida$ <m rodado mim a cada instante ouviam+se vers4es contraditórias$ nsdiziam que ficar3amos ! capa, esperando firmemente o mau tempo) outros que o navioestava perdido$$$ m oficial disse ao passar) + 5h, senhores= &sto não vale nada: conserta+se) *á me aconteceu duas vezes de 2den a "ombaim$ >ão havia a menor confusão) tudocontinuava tão sereno e regular, como se caminhássemos num largo rio, ! clara luz do ol$5 comandante, enfim, apareceu:

; Ceus senhores ; disse ele +, é apenas um contratempo$ Houve um desarran*o gravenamáquina$ >ão sei se poderei navegar$ 7om calmaria, talvez$ Cas com o vento que vemsobre nós, é caso para um atraso de quatro ou cinco dias$ >o entanto, o vento crescia$Havia por todo o mar flocos de espuma$ 5uvia+se no horizonte um ru3do surdo, como omarchar de mil batalh4es$

2 maior parte dos ingleses, pesados de sono e de vinho, tinham voltado para as cabinas,indiferentes ao perigo$ 2lgumas ladies, transidas, mas graves, ficaram no convés$ <m bai#o,os engenheiros e os maquinistas trabalhavam pode rosamente, e sem cessar$ 7aptainIYtmel apro#imou+se de mim$

; M um perigo, e é um perigo sem luta$ <ste imbecil deste comandante navegou de maispara sul$ <stamos perto da costa de Zfrica$ e o vendaval nos apanha agora atira+nos paralá$$$ 0oda via, o nosso engenheiro de bordo, Persnester , é um homem de gAnio$ 5nde estáa condessa?

@escemos ! sala comum$ 2 condessa lá estava encostada, ! mesa, serena e pálida$ + uba,prima, suba ; disse eu$ ; 2o menos em cima vA+se o céu, a água e o perigo=

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Viemos encostar+nos ! amurada, agarrados !s cordagens$ 2s estrelas davam uma claridadenebulosa$ 2s ondas profundamente cavadas, orladas de espuma, reluziam sob aquela luz

vaga$ 5 vento era terr3vel$; Porque não deitam lanchas ao mar? ; dizia a condessa$ + 2o menos lutava+se, havia acoragem$ Cas ser arremessado o paquete para a Zfrica como uma baleia morta=$$$

<la quis passear, mas o movimento do navio era muito violento) era necessário encostar+seao brao de 7aptain IYtmel$ <u dificilmente me equilibrava$ 2 pancada da onda contra ocostado tinha um som lúgubre$ 2 sineta de bordo tocava com uma voz desconsolada ashoras e os quartos$ 0inham+se acendido mais faróis no alto dos mastros$ 5 ru3do dovento,de temeroso, parecia uma passagem violenta de almas condenadas$

@esci ! cBmara para beber conhaque, porque o frio era agudo$ 7ármen, sentada no sofá,no alto da sala, estava ali imóvel, com os olhos vagos, as mãos cruzadas$ ; Corremos,hem? ; perguntou ela$ ; 0em medo? ; disse eu$ + m pouco, de morrer afogada$ @euma bala ou de uma facada, não me custava$ C as aqui, estupidamente, neste antipáticoelemento, é cruel= 2o menos não morro só= (á se vai a sua linda prima=$$$

; Porque odeia a pobre condessa? ; disse+lhe eu, sorrindo$ ; <u= @e modo algum$ 2cho+a piegas, detesto aqueles ares sentimentais, desonra a Pen3nsula$ 23 está$

; >ão é isso: é porque sup4e que 7aptain IYtmel se interessa de mais por ela$ + < que me

importa a mim esse cavalheiro? < deu uma curta risada$ >o entanto, o ar abafado da sala,o movimento do navio perturbava+me$ ubi ! tolda$ 2 condessa e IYtmel não passeavam$0inham+se sentado, segundo depreendi, debai#o da tenda$ <u, de pé, através da lonapodia escutar, apesar do ru3do do vento$

ma curiosidade indomável, a necessidade de compreender a situaão de esp3rito dacondessa, a certeza de que estávamos na aflião de um perigo ; e as a4es humanasnesses momentos não se podem su*eitar ao critério da vida trivial +, tudo me levou a irescutar, apesar das repugnBncias do meu caráter$ 2cerquei+me, fiz ouvido de espião$IYtmel dizia:

; < custa+lhe morrer?+ Cuito e nada ; respondia a condessa$ ; Cuito porque mor recomigo o primeiro interesse que tenho na vida, que é a sua amizade) nada, porque,francamente, sou eu feliz?

; e a minha amizade é para si um interesse profundo$$$ 2 condessa calou+se$

; 5h= compreendo+a bem ; disse IYtmel$ ; abe porque não é feliz, apesar da minhaamizade? < porque não é a minha amizade o que o seu coraão precisa$ 5h= @ei#e+mefalar$ < o amor profundo, inalterável, onipotente, que este*a em todos os momentos da

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sua vida e em todas as ideias do seu esp3rito) que viva do prazer e viva do sacrif3cio) quese*a a última razão da vida, a consolaão, a esperana, o ideal absoluto) que pelo que há

de mais ardente prenda os seus olhos, e pelo que há de mais elevado prenda a sua alma$$$+ 7ale+se, cale+se ; dizia a condessa$ ; M uma loucura falar assim$$$ Vamos passear, vamosver o mar$

5 vento agora era terr3vel$ 5 mar estava como água de sabão a perder de vista$ 5 naviooscilava perdidamente e sem rumo$ >o entanto, na máquina trabalhava+se sempre$

IYtmel continuava falando ! condessa$ ; 7ale+se, cale+se ; dizia ela bai#o e comovencida$ + >ão) devo dizer+lho: esta palavra %amizade' é falsa$ @aqui a duas horas talvez,estamos perdidos$ 2o pé da morte a sinceridade é uma *ustia$ @igo+lhe$ 2mo+a$ >ão seerga$ 5 vento levará consigo esta confissão$ 2mo+a$ e estamos culpados depois destaspalavras, o mar é um bom túmulo e o mar lava tudo$ 2mo+a$$$

; >ão diga isso$ M um engano) é apenas simpatia$ @emais, o amor a que nos levaria? 5uao desprezo ou ! tortura$$$

<u ouvia mal$ <les falavam bai#o$ 2 tormenta chegava$ 5 navio gemia lamentavelmente$ 2scordagens, que o vento quebrava de repente, assobiavam como cobras$ 5s marinheirossomam$ entiam+se a voz do comando, os martelos, os trabalhos na máquina$ ma vagaentrou, alagou o convés$ @e repente senti um movimento dentro da tenda: a condessaergueu+se) a sua voz era alta e vibrante: + 7aptain IYtmel, pensa em sua honra que vamosmorrer?

; Penso, condessa$ ; Pois bem, quero dizer+lho então: amo+o= < depois de um momento:

; 5h= 2mo+o ; repetiu ela com uma e#plosão de pai#ão$ ; -á que tenho a certeza dequemorro pura, quero morrer sincera$ 2doro+o$ >este momento um ru3do estranho tomou onavio$ Percebi uma forte dominaão de oscilaão, uma resistAncia contra a vaga$ 5smovimentos da embarcaão *á não pareciam inertes$ Via+se que ela tinha retomado a suavitalidade$$$ <ntão senti a hélice$$$ a hélice= 5 navio movia+se$ Via+se a onda esmigalhadapela proa$ 7aminhávamos= <u saltei para a abertura que desce ! máquina$

; 1ue é? ; perguntei a um oficial que subia$ ; m milagre de Pernester =

0odos tinham corrido$ <ra uma ansiedade$ 5 capitão trepou rapidamente pela escada deferro polida que do interior da máquina sobe ao pavimento do navio$ <stava radiante$

; &maginem que Pernester $$$ ; im, sim ; interrompi +, mas então?+ Vamos a caminho$2gora sopra, tormenta, sopra= 2manhã estamos em Calta$

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; "ravo, Pernester = "ravo= ; gritavam todos$ 5 grande homem subiu a escada damáquina, ofegante, impass3vel, vermelho, grave, ainda com a gravata branca do *antar$

<spon*ou a calva, e disse num tom suave:; No*1 ) should en0o* a nice glass o% beer $$$

72PL0(5 O 

>o dia seguinte chegamos a Calta$ <ra de noite, não havia es trelas$ 2 água da ba3a estavaimóvel e negra$ Via+se defronte 4a 5aleta, elevada como uma colina, altiva como umcastelo, pespontada de luzes$ <m redor do paquete as g6ndolas corriam silenciosamente

tendo ! popa, esguia e alta, uma lanterna pendente$ Havia um grande silAncio, umasuavidade inefável$ 5s gondoleiros remavam calados$ 2quilo era doce e regular$ entia+seo mistério italiano e a polida inglesa$

@esembarcamos: fomos para !larence-/otel , na trada+Ieale, defronte da célebre &gre*ade $ -oão$ IYtmel hospedou+se em casa dos oficiais ingleses$ @$ >icazio e 7ármen vierampara !larence-/otel , também$ 5s trAs primeiros dias em Calta foram ocupados empercorrer os monumentos: o palácio dos grão+mestres, os palácios chamados <stalagens, eque eram pertencentes !s diferentes nacionalidades da ordem, as grandes ruas brancas,com elevadas e altivas casas no gosto da Ienascena, e os arredores de Calta, 7ivita+Vecchia, "engama, "oschetto, e a ilha de 7alipso, que tem tantos encantos em Homem eque é um rochedo úmido, cheio de cavernas tenebrosas$ @esde o primeiro dia, IYtmel ealguns oficiais iam *antar a !larence-/otel $ 2 condessa comia sempre nos seus quartos$ 5ru3do, a petulBncia da mesa, era 7ármen$ @ei#ara+se logo seguir sempre por um rapazfrancAs, espirituoso e ligeiro, louro e ardente, um Cr$ PernY, via*ante por tédio, dizia ele$7ármen não se apro#imava de IYtmel$ Havia entre eles como uma separaão combinada ediscreta$ IYtmel, pelo contrário, não se afastava de nós em todas as e#curs4es ao campo,!s fortifica4es, ! ba3a) todas as noites nos acompanhava ao teatro$ 5 conde tinha ficadologo cativado das grandes tranas louras de uma rapariga que nós v3amos sempre na D^

ordem do teatro, com a tez inglesa e os olhos malteses, de uma frescura de miss emovimentos de andaluza, e que era uma radiosa Mademoiselle  Iize, danarina emdisponibilidade$ @e resto, o conde não podia separar+se de IYtmel$

2li, em Calta, os movimentos da condessa e do oficial não estavam tanto sob o dom3nioda minha vista$ <u, !s vezes, não via a condessa um dia, dois dias, absorto na companhiade alguns oficiais ingleses, em passeios no mar, no campo, em ceias e no *ogo$7ompreendia, porém, que aquela pai#ão da condessa a dominava absolutamente$ IYtmelparecia+me também perdidamente namorado$

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>ão lhe quero dizer, senhor redator, os racioc3nios interiores, que me determinaram a serindiferente !quela situaão$ 7ompreenderá claramente os motivos por que resolvi não

saber, não olhar, não perceber, isolar+me numa discrião completa e delicada$ Poucotempo depois de chegarmos a Calta, t3nhamo+nos relacionado com 4orde  /renleY, queestava ali passando o &nverno e curando os seus blue deils$ 0inha vindo de &nglaterra numlindo iate, chamado The omantic que nós v3amos todos os dias na ba3a borde*ar, fazendoreluzir ao sol os seus cobres polidos e o seu esbelto costado branco$ 4orde /renleY ligara+se muito com o conde$ <ra também o &ntimo de IYtmel$

7ármen tinha+se encontrado pouco com a condessa, a não ser no teatro, onde a crivava deolhares impertinentes, em plena e altiva indiferena da condessa$ 7ármen, irritada, nãovivendo nas rela4es de ladies, não a encontrando, como nos sete metros do tombadilho

do paquete, sob a aão dos seus largos gestos e das suas ásperas ironias, desforrava+se !mesa de !larence-/otel , envolvendo indiretamente IYtmel em toda a sorte de alus4es ede palavras cáusticas$ 2 sua última táctica era instigar sempre Cr$ PernY contra o oficial,arremessá+lo contra todas as ideias, todas as opini4es de IYtmel) não sei se com aesperana perversa de um duelo, se apenas pelo gosto de o ver contrariado$$$

m dia falava+se da Lndia$ IYtmel dizia a transformaão fecunda que a &nglaterra lhe tinhafeito$ ma grande risada inter rompeu+o$ <ra PernY$

; Ii+se? ; disse IYtmel, levemente pálido$ + Iio+me? <stalo de riso, tenho apople#ias de

riso$ 1ue transformaão fecunda fez a &nglaterra ! Lndia? 2 transformaão da poesia, daimaginaão, do sol, numa coisa chata, trivial e cheia de carvão$ <u estive na Lndia, meussenhores$ abem o que fizeram os transformadores ingleses? 2 traduão da Lndia, poemamisterioso, na prosa mercantil do Morning Post $ >a sombra dos pagodes p4em fardos depimenta) tratam a grande raa 3ndia, mãe do ideal, como cães irlandeses) fazem navegarno divino /anges paquetes a trAs #elins por cabea) fazem beber !s ba*aderas, pale ale, eensinam+lhes o *ogo do cric(et ) abrem s8uares a gás na floresta sagrada) e, sobre tudo isto,meus senhores, destronam antigos reis, misteriosos, e quase de marfim, e substituem+nospor su*eitos de su3as, crivados de d3vidas, rubros de por ter, que quando não vão serforados em 9otan*-9a* , vão ser governadores da Lndia= < quem faz tudo isto? ma ilha

feita metade de gelo e metade de rosbee% habitadapor  piratas de colarinhos altos, odresde cerve*a=

7aptain IYtmel ergueu+se risonho, apro#imou+se de mim, e disse: + Peo+lhe que no fim do *antar pergunte !quele engraado doido o seu lugar, a sua hora e as suas armas$

< foi sentar+se serenamente$ <u, ! sobremesa, afastei+me com PernY, e transmiti+lhe aspalavras do meu amigo$

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PernY riu, disse que estimava os &ngleses, que apreciava os seus servios na Lndia, quetinha sido instigado por 7ármen a contrariar IYtmel, que o achava um adorável

gentleman, que pedia das suas palavras as mais humildes desculpas, que o seu lugar erapor toda a parte, a sua hora sempre, as suas armas quaisquer$$$ + Cas, dadas essase#plica4es ; disse eu +, nada temos que ver com as armas$$$

; 2h= perdão= ; disse o francAs ; Há ainda uma pequena coisa: é que eu acho que openteado do 7aptain IYtmel é profunda mente ofensivo do meu caráter e da dignidade da.rana$ &sto é que e#ige reparaão$

>omearam+se padrinhos nessa noite$ 7ombinou+se que o duelo não fosse em Calta:IYtmel era oficial, e os duelos nas praas de armas tAm as mais severas penalidades$ <radif3cil, porém, estando numa ilha inglesa, não se baterem em território inglAs$ Iesolveu+seentão que o duelo fosse no alto mar, a um tiro de canhão da costa inglesa$ 4orde /renleYemprestou o seu iate e partimos de madrugada com um vento fresco e um sol alegre$ 2scoisas foram rápidas$ Pusemo+nos ! capa a R milhas de Calta, arriamos o pavilhão inglAs, amarinhagem subiu !s vergas, e como havia igualdade de n3vel, um dos adversários foicolocado ! popa e outro ! proa$ 5 sol dava+nos de estibordo$ <ram O horas da manhã,pequenas nuvens brancas esbatiam+se no ar$ 5 duelo era ao primeiro tiro, havendoferimento grave$ 4orde /renlY deu o sinal, os dois adversários fizeram fogo$ PernY dei#oucair a pistola, e abateu+se sobre os *oelhos$ <stava gravemente ferido com a clav3culapartida$ .oi deitado numa cabina preparada$ (evantou+se o pavilhão inglAs e navegamos

para Calta$ Vinha caindo a tarde$

<u dirigi+me logo aos quartos de @$ >icazio$ 7ármen estava só$ + abe o que fez? ; disse+lhe eu$ ; PernY está ferido$

; &sso cura+se, eu mesma o curarei, agora o que é sério, é o que se está tramando aquidentro deste hotel$$$ <u não sei bem o que é, desconfio apenas$$ @iga ao conde que vigie acondessa=

<u encolhi os ombros, sorri, dirigi+me ao quarto da condessa: estava o conde, IYtmele4orde  /renleY$ 5 ferimento de PernY fora declarado sem perigo, o capitão estavatranquilo$

7onversava+se alegremente$ 7ombinava+se uma visita ! ilha de /ozzo, a oito quil6metrosde Calta$ /renleY tinha proposto a e#cursão, e oferecia o seu iate$ 5 conde esquivava+se,dizendo que o mar o incomodava, no estado nervoso em que estava$ + Cenino, é aquelamaldita Iize= +veio+me ele dizer em voz bai#a$ ; 0enho+lhe para amanhã prometido umpasseio a "engama$

; Cas, então?+ 2companha tu a condessa$ Vai /renleY e IYtmel$ .az+me isto$ "em vAs=

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Mademoiselle  Iize é e#igente, mas pobrezinha, dela, tem o sangue maltAs= Cais tarde,quando eu atravessava para o meu quarto, um vulto veio a mim no corredor e tomou+me

pela mão$; <scute ; disse+me uma voz subtil como um sopro$ <ra 7ármen$

; e é um homem de honra, cautela amanhã com o passeio a /ozzo$ < desapareceu$

72PL0(5 F 

>o outro dia !s seis da manhã fui a casa de IYtmel$ 2 condessa havia estado durante anoite sob o dom3nio de uma e#trema agitaão nervosa, mas não queria renunciar ao

passeio de /ozzo$ <ncontrei 4orde /renleY com IYtmel, tomando chá$

Pareceu+me pela fadiga das suas fisionomias, que se não tinham deitado: 4orde  /renleYdecerto que não, porque estava de casaca, como na véspera, e tinha ainda na bontonnie:re um *asmim+do+cabo, murcho e amarelado$

; "onita madrugada= ; disse IYtmel$ 0inham aberto a *anela, o ar fresco entrava) nasárvores do *ardim cantavam os pássaros$ + 2dorável= ; disse eu$ ; 2 condessa estevetoda a noite doente, mas não se transtorna o passeio$$ 5utra coisa: tem um revólver,IYtmel?

; Para quA?+ @isseram+me que era muito curioso atirar aos pássaros que se escondem nascavernas, em /ozzo$ Há um eco e#cAntrico$ Precisamos de uma arma$ IYtmel deu+me umpequeno revólver marchetado$

; (eve+o: eu tenho as algibeiras cheias da álbuns e de canetas para tirar desenhos$$$ 2h=abe que este /renleY não vai?+ PorquA? 7omo assim, Milorde?

; m *antar oficial com o governador ; disse 4orde  /renleY +) é horr3vel$ 0enho umapena imensa$$$ [s sete horas fomos buscar a condessa$ 5 marido acompanhou +nos até ocais Carsa Cuscheto$

>otei ao entrar no iate que a equipagem estava aumentada e havia um piloto árabe$(argamos com um vento fresco, !s oito horas da manhã) as gaivotas voavam em roda dasvelas, as casas brancas de 4a 5aleta  tinham uma cor rosada, ouviam+se as músicasmilitares, o céu estava de uma pureza encantadora$

2 condessa, um pouco e#citada, olhava com uma alegria ávida, para o vasto mar azul, livre,infinito, coberto de luz$ + 5 que são as mulheres= ; pensava eu$ ; <sta, tão altiva e tãodiscreta, está encantada por se ver só, com rapazes, num iate, no alto mar$ M para ela

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quase uma aventura= <u, confesso, estava embaraado$ 2 minha situaão era um poucopedante$ Iepresentar eu ali o marido, a fam3lia, o dever, diante de duas criaturas moas,

belas, namoradas, e ser eu, aos vinte e quatro anos, ardente e apai#onado, o encarregadode fazer a pol3cia daquele romance simpático=

 ; la grace de Dieu= 5 mar é largo, o céu profundo, a honra e#iste, daqui a duas horasestamos em /ozzo, passeamos, rimos, *antamos, e ao anoitecer, quando @eus espalharaseu rebanho de estrelas, voltaremos na viraão e na fosforescAncia, calados, ouvindo opiloto árabe cantar as doces melopeias da 3ria, ao ru3do lBnguido da maresia$$$ IYtmeltinha descido a dar as ordens para o almoo, 2 condessa ficara de pé, ! proa, com umvestido curto de #adrez, botinas altas, envolta numa manta escocesa, de largas pregas$>unca eu a vira tão linda$

7osteávamos Calta com vento oeste$ 2pro#imamo+nos da ilha de 7umino$ IYtmel veio+nos dizer que dever3amos almoar, e que ao fim de meia hora desembarcávamos em/ozzo, na !alle Maggiara) ir3amos ver as curiosidades da ilha, tomar3amos a embarcarpara tornear /ozzo, e ver as terr3veis cavernas, onde o mar se abisma e se perde, e aoanoitecer tocar3amos o cais de 4a 5aleta$ 5 almoo foi muito alegre$ Havia champanhe, umrena adorável, um guisado árabe e um piano na cBmara$ 7aptain IYtmel, cu*o aspecto meparecia ter uma preocupaão ine#plicável, fez ao piano depois do almoo intermináveisimprovisa4es$ 7aminhávamos sempre$ 7asualmente, tirei o relógio, e tive um sobressalto=Havia duas horas e meia que t3nhamos descido= 5ra quando o almoo comeara, faltava+

nos meia hora para desembarcarem Caggiara= Porque segu3amos então? ubirapidamente ! tolda$ 5 piloto árabe estava ao leme$ >ão se via quase a terra) 3amos nomar alto, navegando com uma e#traordinária velocidade sob o vento$

; 5nde está /ozzo? ; gritei ao árabe em inglAs, depois em francAs, depois em italiano$ 5árabe nem sequer se dignou olhar+me$ >este momento IYtmel e a condessa subiam$ +5nde está /ozzo? ; perguntei eu a IYtmel$

; Há talvez uma bruma ; respondeu ele vagamente e voltando o rosto$ 5 horizonte,porém, estava limpo, puro, sem mistério, a perder de vista$ 2o longe via+se uma sombra

indefinida que denunciava a terra) e nós afastávamo+nos dela=

7orri ! bússola$ >avegávamos para oeste$ + >avegamos para oeste, 7aptain IYtmel=2fastamo+nos de Calta= 1ue é isto? Para onde vamos? IYtmel olhou longamente acondessa, depois a mim e disse:

; Vamos para 2le#andria$ >um relance compreendi tudo$ IYtmel fugia com a condessa=$$$<u fitei IYtmel, e disse+lhe tremendo todo:

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; &sso é uma infBmia= <le empalideceu terrivelmente: mas a condessa, interpondo ; se,com uma voz vibrante: ; >ão= ou eu= ou eu que vou para 2le#andria$

; >esse caso sou eu o infame, prima$ Houve um silAncio$ 5s olhos da condessa estavamúmidos$ 7orreu para mim, tomou+me uma das mãos, murmurou entre soluos: + 1uequer? >inguém tem culpa$ 2mo este homem, fu*o com ele$

IYtmel tomara+me a outra mão$ ; 2gora ; dizia ; é imposs3vel voltar$ M um passo dado,ir reparável$ <u estava sucumbido: aquela situaão imprevista dei#ava+me sem racioc3nio,sem voz, sem vontade$ <u, amigo do conde=$$$ <u, cúmplice daquela fuga= 2lém disso, ali,no meio daqueles dois amantes encantadores, que me suplicavam apertando+me as mãos,eu sentia+me rid3culo ; e isto aumentava o meu desespero$ 2 condessa, no entanto,continuava: + Primo ; disse ela ; que importa? <stou desonrada, bem sei$ Cas quequeria? 1ue eu ficasse ao lado de meu marido, amando este, numa mentira perpétua,vivendo alegre mente instalada na infBmia? <ssa situaão nunca= M su*a= 2o menos isto éfranco$

Iompo com o mundo, sou uma aventureira, fico sendo uma mulher perdida, masconservo+me para um só e sendo pura para ele$ + 7aptain IYtmel +disse eu +, então mandedeitar uma lancha ao mar$

; 1ue quer fazer? ; gritou a condessa$ + <u? /anhar a terra$ 2cha que também não éuma infBmia instalar+me neste navio? ; <stá louco ; disse IYtmel$ ; Há só um escaler abordo$ 5 vento cresce, o mar incha$ 5 escaler não se aguentará dez minutos$ + Celhor= mescaler ao mar= ; gritei eu$

; >inguém se me#a= ; bradou IYtmel$ < voltando+se para a condessa: + Cas diga+lhe queé a morte= 1ue cumplicidade tem ele? .oi forado, foi levado$ >ão responde por nada$ +m escaler ao mar= ; gritava eu$

Cas, de repente, IYtmel tomando um machado correu ao bordo de onde pendia o escaler,cortou as correias de suspensão) o bar co caiu na água com um ru3do surdo, ficou *ogandosobre as ondas meio voltado, sobrenadando como um corpo morto$

<u bati o pé, desesperado$ + 2h, que infBmia, 7aptain IYtmel= 1ue infBmia= < por umainspiraão absurda, querendo desabafar, fazendo alguma coisa de violento, gritei paraalguns marinheiros que estavam ! proa: + Há algum inglAs a3 que preze a sua bandeira?

0odos se voltaram admirados, mas sem compreender$ + Pois bem= ; gritei eu$ ; @eclaroque esta bandeira cobre uma torpeza, tem a cumplicidade da desonra, e que é sobre todaa face inglesa que eu cuspo, cuspindo no pavilhão inglAs$ <, correndo ! popa, cuspi, ou fiz ogesto de cuspir sobre a larga bandeira inglesa$ m dos maru*os então decertocompreendeu, porque teve um movimento de ameaa$ + >inguém se mova= ; gritou

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IYtmel$ ; <u sou o ofendido, meu amigo ; disse ele com a voz sufocada +, tem razão)desde que abandonei Calta, dei#ei de ser oficial inglAs$ ou um aventureiro$ <sta bandeira,

com efeito, não tem que fazer aqui= 2diantou+se, arriou o pavilhão de tope da popa$< numa e#altaão tão insensata como a minha, arremessou o pavilhão ao mar) as ondasenvolveram+no, e por um estranho acaso, no encontro das águas, a bandeira desdobrou+se, e ficou estendida sem movimento, serena, imóvel, ! superf3cie do mar, até que seafundou$

IYtmel, então, por um impulso romanesco e apai#onado, tomou o leno das mãos dacondessa, amarrou+o ! corda da bandeira, e iando+o rapidamente, gritou: ; @e ora emdiante o nosso pavilhão é este= <u achava+me no meio de todas aquelas coisas violentas,como entre as incoerAncias de um sonho$

>um movimento que fiz, senti no bolso o revólver: não sei que desvairadas ideias de honrame alucinaram, tirei+o, engatilhei+o, brandi+o, gritei: + "oa viagem=

; -esus= ; bradou a condessa$

72PL0(5 \ 

IYtmel precipitou+se sobre mim e arrancou+me o revólver$ <u murmurei simplesmente: +

"em= erá no primeiro porto a que chegarmos$

2 condessa então adiantou+se, l3vida como a cal, e disse 8nunca me esquecerá o som dasua voz9: + IYtmel, voltemos para Calta$

; Voltar para Calta= Voltar para Calta= Para quA, santo @eus? <u interpus+me, disse ascoisas mais loucas: ; IYtmel, dA+me esse revólver, se*amos homens$ 1ue as nos sas a4estenham a altura dos nossos caracteres$ >ada mais simples$ >em a pai#ão pode retroceder,nem a honra condescender$ 2 soluão é a morte$ <u mato+te, fugi vós para bem longe$$$

Cas a condessa, que era a única que parecia ter ainda uma luz de razão dentro de si,repetiu, com a mesma firmeza, onde se sentia a dor oculta: + IYtmel, voltemos para Calta$

<le olhou+a um momento: a consciAncia da nossa odiosa situaão pareceu então invadi+lo,sub*ugá+lo) vergou os ombros, obedeceu, foi dizer algumas palavras ao capitão do iate$

@a3 a um instante corr3amos sobre Calta$ Houve um grande silAncio, como o cansaodaquela luta da pai#ão$ IYtmel passeava rapidamente pelo convés, e sob a serenidade doseu rosto, sentia+se a tormenta que lhe ia dentro$

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; 2qui está= ; disse ele de repente, parando e cruzando os braos, com um estranhofogo nos olhos$ ; 2cabou tudo= Voltamos:para Calta$ 1ue mais querem? 1ue nos resta

agora? @izer+nos adeus para sempre, para sempre= Lamos a 2le#andria) estávamos$ salvos,sós, novos, felizes= < agora? .elicidade, amor, pai#ão, esperana, alegria, acabou tudo$ 2h,pobre ingAnuo= .alam+te na honra= 1ue honra a que me vai matar todos os dias, a que mearranca do meu para3so, a que me toma o último desditoso= Honra= 1ue me resta a mim?ma bala na Lndia$ Correr para ali, só, como uni cão$

2 condessa não dizia nada, com os olhos perdidos no mar$ < IYtmel vindo para mim,tomando+me o brao, com um gesto desesperado: ; VAs tu= VAs isto? <u sofria tudo porela: a desonra, a infBmia, o desprezo) abandonava o mundo, renegava a minha farda,queria a pobreza, o escárnio, tudo por ela$ @iz+se a um homem ; amo+te, vai+se fugir com

ele, está+se num navio, e de repente, a meia hora da felicidade e do para3so, quando *á senão vA terra, vem um escrúpulo, uma mágoa, uma saudade do marido talvez, umalembrana de um baile, ou de uma flor que ficava bem ; e adeus para sempre= < quer+sevoltar) e tu, miserável, sofre, chora, arrepela+te, e morre para a3 como um cão$ Ceu amigo,eu não tenho voz, nem fora: previna o piloto: a senhora condessa tem pressa de chegar aterra=$$$ ; Xilliam= Xilliam= ; gritou a condessa, precipitando+se, tomando+lhe as mãos$; Cas tu não percebes nada? <m Calta, como em 2le#andria, eu sou tua, só tua$$$ tuadiante de @eus, tua diante dos homens$$$

>este momento ouviu+se a voz distante de um sino= <ram os sinos de Calta$ 2 terra ficava

defronte$ 2 suavidade da hora era e#trema) o ar estava inefavelmente l3mpido$ Viam+se *áas aldeias brancas, o altivo perfil de (a Vale ta, 5 ol descia$ 5s seus últimos raios obl3quosfaziam cintilar os miradouros$ @istinguiam+se no cais os vendedores de flores$ @uasg6ndolas corriam para nós$ Houve um grande ru3do nas velas, assobios de manobras, onavio parou, e a Bncora caiu na água= 03nhamos chegado$ 5s sinos de Calta continuavamrepicando$

72PL0(5 \

1uando desembarcamos corri ao hotel$ 5 conde ainda não tinha vindo do seu passeio a"engama com Mademoiselle  Iize$ IYtmel foi encerrar+se em casa, num triste estado dee#altaão e de pai#ão$ 7ármen veio logo procurar+me ao meu quarto$ <ntrou rapidamente,perguntou+me:

; Voltaram? 7omo foi? ; abia então alguma coisa? ; interroguei admirado$ + 0udo$ Porum acaso$ abia que queriam fugir$ @urante toda a noite IYtmel andou fazendopreparativos$ <ra uma combinaão de há trAs dias$ 4orde /renleY sabia$ < agora?

; 2gora ; disse eu +tudo terminou$ 2 condessa naturalmente parte no primeiro paquete$

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; @uvido$ Cas se não partem, ha uma desgraa$ M uma fatalidade, bem o sei, mas quequer? 2mo aquele homem, amo IYtmel$ @emais é uma obrigaão, salvou+me a vida$ M,

sobretudo, uma pai#ão estúpida que me rói, que me mata$ < ainda me não mata tãodepressa como eu queria$ .ao tudo para me matar$ Ponho+me a suar, levanto+me e vouapanhar o orvalho para o terrao$ Para que vivo eu? Vivia desta pai#ão$ 7resceu desde queo vi agora$

< diga+me quem o não há de adorar? [s vezes lembra+me matá+lo=$$$ 7onversamos algumtempo$ 2 pobre criatura tinha nos olhos um fulgor febril, na face uma palidez de mármore$<u procurei acalmá+la$ 7omeava a simpatizar com ela$$$

2 condessa não saiu do seu quarto dois dias$ <u contei ao conde que ela tivera em /ozzoum susto terr3vel, porque t3nhamos esta do em perigo, na visita !s cavernas da costa, ondea navegaão é cheia de desastres$ <stive quase sempre, depois, com IYtmel$ (entamente aesperana renascia no seu esp3rito$ 2comodava+se, ainda que com certas repugnBncias, auma situaão mais racional, ainda que menos pura$ <ra um convalescente da pai#ão$ <, aofim de cinco dias, senhor redator 8tanto a natureza humana é cheia de concilia4es=9, aofim de cinco dias a condessa apareceu no teatro fresca, radiante, e ao lado da brancurados seus ombros reluzia nas dragonas de ouro de 7aptain IYtmel= <ntramos então numavida serena, sem romance e sem luta$ 5s cora4es tinham acalmado, e falavam bai#o$ 5conde passeava no campo com Mademoiselle Iize) 4orde /renleY fumava, cheio de tédio,o seu cachimbo de ópio) eu *ogava as armas com os oficiais ingleses) @$ >icazio negociava)

IYtmel tinha um ar feliz e misterioso) a condessa recebia, guiava os seus p6neis, e todas asnoites, no teatro, fazia reluzir ao gás o louro esplendor dos seus cabelos e a palidezpreciosa das suas pérolas$ anta paz=

5 tempo estava adorável$ Calta resplandecia, abafa reluzia ao sol, os *ardins floresciam, osolhos das maltesas suspiravam$ <ra o tempo das flores da laran*eira$ ó 7ármen emagreciae vivia re tirada$ Cr$ PernY entrava em convalescena) passava o tempo deita do num sofá,de dia compondo uma ópera c6mica, ! noite *ogando com alguns oficiais, e salpicando agravidade britBnica de calemburgos bonapartistas$

ma ocasião, ao sair de casa dele, onde tinha perdido algumas dúzias de libras, recolhia eua !larence-/otel , levemente irritado, e sentindo um prazer e#cAntrico em cantar o fadopela ruas de Calta, a mil léguas do "airro 2lto$ 5 pavilhão que nós habitávamos em!larence-/otel   dava sobre um *ardim todo escuro de árvores e de moitas de flores$5rdinariamente o conde e eu entrávamos pelo *ardim$ 03nhamos uma pequena chave queabria a portinhola verde, no muro, todo coberto de musgo e de copas de arbustosorientais$ >essa noite, ao abrir a porta, cantando em voz alta, senti sumir+se rapidamentena espessura das folhagens um vulto$ 5 ar estava sereno, acendi um fósforo, e !quela luztrAmula, entrei na sombra, para descobrir o vulto, entre as ramagens$ Cas a pessoa,

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vendo+se seguida, e sentindo a impossibilidade de se esquivar rapidamente, retrocedeu,com uma naturalidade visivelmente artificial, e proferiu o meu nome$ <ra 7ármen$

; 1ue faz aqui? ; disse eu$ + Cato+me$ >ão lhe disse que, sempre que suava de noite, meerguia e vinha apanhar o orvalho? Cas ela estava completamente vestida de seda preta, etinha até sobre os ombros uma larga capa escura, de forma árabe, com grande capuz=

; 2h= minha cara ; disse eu +, mata+se, mas é de amores$ 2 esta hora, com essa toilette,neste *ardim, com este aroma de laran*eiras=$$$ 1ue história me vem contar de orvalhos ede suor?$$$

; @igo+lhe a verdade$ &magina que eu não preferiria aqui nesta sombra encontraralguém?$$$ ; < @$ >icazio? Pea a @$ >icazio que lhe faa a corte, que lhe dA uma serenata,

que suba por uma escada de corda, que a seduza neste *ardim$$$ <nquanto eu falava,davam horas na &gre*a de $ -oão, e 7ármen mostrava uma agitaão impaciente$ 2 todo omomento olha va para a porta do *ardim, torcendo freneticamente uma luva descalada$

<u compreendi que ela esperava alguém$ 2lguém, isto é, el 8uerido1 el precioso1 elsaleroso1 el ni7o de toda a legítima andalu<a$ 2fastei+me discretamente, como umconfidente, e no momento que pisava a rua areada que levava ao pavilhão, senti a portado *ardim ranger com uma ternura plangente$'M ele', pensei eu$ %M o nin7o$ Pobre7ármen= "ebe vinagre, apanha os orvalhos por causa de IYtmel, e mal chega a noite, nãopode ser superior a vir receber debai#o das laran*eiras algum cabeleireiro francAs com vozde tenor, ou algum tenor maltAs com bigodes de cabeleireiro$'

ubi ao meu quarto, mas não tinha sono) a noite era suave e lBnguida, mordia+me umaáspera curiosidade, e com a astúcia de um ladrão napolitano, desci as escadas, costeei omuro do *ardim, debrucei+me, espreitei, e vi 7ármen$ estava só= <#trema surpresa=+ < el8uerido? ; perguntei+lhe eu rindo$ <la voltou+se em sobressalto e perguntou+me com avoz agitada:

; 1ual querido? ; 5 que entrou agora? >ão entrou ninguém$ + <u vi$

; 7onheceu? ; >ão, onde está?

; 2briu as asas, voou= ; disse ela rindo+se e afastando+se em direão aos seus quartos$

; @iabos= ; pensei eu$ ; M uma segunda edião da 0orre de >esle$ Iecebe+os, parte+osaos bocadinhos e enterra+os na areia=

>o entanto, tinha a curiosidade e#citada$ 2lguém tinha entrado misteriosamente, comuma chave falsa decerto, porque só o conde e eu t3nhamos a chave daquela porta do

 *ardim$ Cas onde estava esse alguém? 0eria entrado, e sa3do logo? >esse caso não era

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uma entrevista de amor= Cas se não era um segredo de coraão, para que era o mistério,a hora escura, o silAncio, a chave falsa?

2lguém teria ficado escondido no *ardim? 7orri+o todo, arbusto por arbusto, *asmim por *asmim$ <stava deserto$ @eitei+me preocupado com aquela aventura$ >o outro dia, aoalmoo, um criado em voz alta declarou que se tinha achado no *ardim um pequenopunhal e que o hóspede a quem ele pertencesse o reclamasse em bai#o, no o%%ice$ <ra umpunhal de forma curva como se usa no &ndostão$ 0inha sido encontrado numa moita debu#o, de tal sorte que não parecia perdido, mas voluntariamente arremessado$ >inguémreclamou o punhal$ 0udo isto me causava uma singular curiosidade$

; @iabo= ; dizia eu comigo$ ; <stamos em terra italiana, apesar da pol3cia inglesa, e éprovável que apesar da muita cerve*a que habita Calta, ainda por a3 ha*a alguma águatofana$ e*amos prudentes$

>a noite seguinte, pela uma hora, eu, sentado ! minha secretária, escrevia para Portugal,quando senti no corredor passos rápidos, e a porta abriu+se violentamente$

2bafei um grito de tenor$ @e pé, ! entrada do quarto, l3vida, com os cabelosdesmanchados, um penteador branco cheio de sangue, estava a condessa$ + 1ue foi? ;bradei$

<la tinha ca3do num sofá, muda, com os olhos fi#os, meio loucos, os dentes trAmulos$ <u

borrifava+a de água, tomava+lhe as mãos, falava+lhe bai#o, e perguntava+lhe, aterrado,dando+lhe os nomes mais doces para a serenar:

; 1ue foi, minha querida, que foi? Via+lhe os vestidos cheios de sangue$

; .eriram+na? <la fez um gesto negativo$ ; <ntão? <ntão? ; disse eu$ 2 pobre senhoraqueria falar, erguia+se, sufocava, ansiava, parecia numa agonia$ @e repente, atirou+se aosmeus braos e desatou a chorar$

; .ale, diga$$$ ; insistia eu$ + Cataram+no ; disse ela$ ; Cataram quem? ; IYtmel=+

7omo? 5nde?

; >o *ardim$$$ Vá=

72PL0(5 D

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7orri ao *ardim$ 5s meus passos, instintivamente, apressaram+me para o lado da pequenaporta verde aberta no muro$ <stava aberta$ 2o lado, *unto de uma moita de baunilhas, es

tendido no chão, levemente apoiado no cotovelo, vi IYtmel$; <ntão? ; gritei+lhe, abai#ando+me ansiosamente para ele$

; ó ferido$ ; 7omo? 5nde? >ão respondeu, os olhos cerraram+se+lhe e desfaleceu sobrea relva$ 7orri ao tanque, trou#e um leno ensopado em água, molhei+ lhe as faces e asmãos: a ferida era na parte superior do peito, do lado direito, por bai#o da clav3cula$ Vi quenão era mortal$ <u estava numa e#trema hesitaão$ Para onde levar aquele homem?

5 mais racional era conduzi+lo a um quarto do hotel) mas isso era dar ao fato umapublicidade ruidosa, fazA+lo cair sob o dom3nio da pol3cia, arrastar até ! aão dos tribunais

ingleses o nome da condessa$ Porque eu tinha compreendido tudo$ abia agora, bem,quem na véspera entrara rapidamente pela porta verde com uma chave falsa$ abia bem aquem pertencia o punhal 3ndio acha do nas moitas de bu#o$ 7ompreendia a comoão de7ármen, quando eu a surpreender a ali, no *ardim, embuada num burnous, esperando$ <compreendia, desgraadamente, a que quarto se dirigiam os passos de IYtmel dentro do

 *ardim de !larence-/otel $

<ra, pois, necessário encobrir aquela aventura$ < IYtmel, apesar dos obscurecimentosdodesmaio e da dor, tinha+o pensado também, porque me disse com uma voz e#pirante:

; <scondam+me em qualquer parte= ai logo ! rua$ Passava um daqueles canos ligeiros,de um só cavalo, que percorrem, com e#trema velocidade, e com imensa doura, as masinclinadas de 4a 5aleta$ 5 etturino era italiano$ .alei+lhe vagamente num duelo, dei+lheum punhado de #elins, ameacei+o com os  policemen, e pu+lo absolutamente ao servio domeu segredo$ 7olocamos IYtmel no cano) com mantas fizemos+lhe uma espécie de ninho,c6modo e mole, e o cavalo trotou, rapidamente, pela Iua de $ Carcos, para casa deIYtmel$ 23 grande rumor entre os oficiais ingleses$ <u contei uma incoerente história deassalto ao florete, em que a minha arma, subitamente, se tinha desembolado$ 2 históriaera inaceitável) mas era fácil compreender que havia por trás dela um segredo delicado, eisto era o bastante para a altiva reserva de gentlemen$

IYtmel, aos primeiros curativos, serenou e adormeceu$ 0udo tinha sido feito em silAncio,despercebidamente$ .ui tranquilizar a condessa$

<ram trAs horas da noite$ Havia temporal, e eu sentia quebrar o mar nas rochas da baia$0udo dormia em !larence-/otel $ ; 2gora nós= ; disse eu$ < dirigi+me ao quarto de7ármen$ Havia luz$ 2bri a porta, corri o reposteiro, entrei$ 2 luz era frou#a, desmaiada$ 2oprinc3pio não distingui ninguém e ouvi apenas soluar$ <nfim sobre um sofá, deitada,enroscada, sepulta da, vi 7ármen, com a cabea escondida, o penteado solto, coberta de

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sangue e abraada a um crucifi#o$ 2o pé, sobre uma mesa, ha via uma garrafa deconhaque e um pequeno frasco azul facetado$ 1uando sentiu os meus passos no tapete,

7ármen levantou+se um pouco no sofá$ >aquele momento a sua beleza era prodigiosa$0inha os cabelos soltos: os olhos reluziam como ao negro, e o penteador, aberto sobre opeito, dei#ava ver a beleza maravilhosa do seio$ 7onfesso que não foi a ideia da vingana edo castigo que me tomou o esp3rito diante daquela mulher tão terrivelmente possu3da dapai#ão$ (embraram+me as figuras trágicas da arte, (adY Cacbeth e 7litemnestra, e tantabeleza, tanto esplendor, fizeram+me subir ao cérebro um vapor de amores pagãos$

<la tinha+se erguido e, com uma voz seca: + 1ue quer? <u fiquei calado$ ; "em sei$ Vembuscar+me$ .ui eu que o matei$ <stá a3 a polida, não? <stou pronta$ M p6r um #ale$ ;>inguém o sabe ; disse+lhe eu bai#o, e, sem saber porquA, comovido$ ; 1ue me

importa? >ão o oculto$ Catei o meu amante$ .ui eu$ 2h= Pois quA? >ós outras damos anossa vida, a nossa pai#ão, a nossa alma, entregamos to do o nosso ser, pomos nisto todaa nossa e#istAncia, a nossa honra, a nossa salvaão na outra vida, e lá porque vem outraque tem os cabelos mais louros ou a cinta mais fina, adeus tu, para sempre= 5lá, criatura=@esprezo+te, tu foste para mim o momento, o capricho, a futilidade$ 2h= im? <ntão quemorra$ 1ue quer mais? Vá buscar os policemen$ <u disse+lhe então, em voz bai#a:

; .ui encontrá+lo banhado em sangue$ <la olhou+me desvairadamente um momento, e derepente, arremessando+se sobre o sofá, abraou+se ao crucifi#o e com grandes lágrimas,com um del3rio de soluos:

; 2h, meu @eus, perdoai+me= Perdoai+me, -esus= Per doai+me= .ui eu que o matei= <stoudoida decerto$ Pobre IYtmel= IYtmel= IYtmel da minha alma= >ão o torno a ver, não lhetorno a falar= 2cabou+se para sempre=$$$ -esus, o que eu sinto na cabea=$$$ <m 7alcutáadorou+me, aquele homem$ 2*oelhava aos meus pés, eu queria morrer por ele$ @iga+me,escute: enterraram+no? <stá muito ferido? <u não o feri no rosto? >ão, isso não= Vádepressa$ Vá buscar a pol3cia=$$$ Cas, porque me não prendem? 2h, meu pobre IYtmel= <umorro, eu mono, eu morro= @aqui a pouco comeam a tocar os sinos=

<rgueu+se com gestos de louca, foi ao espelho, comp6s o cabelo com ar desvairado, e de

repente voltou a abraar, apai#onadamente, o crucifi#o negro$ + <scute ; disse+lhe eu$ ;IYtmel não morreu$

; >ão morreu? ; gritou ela$ @e repente, arro*ou+se aos meus braos, que a ampararam,tomou+me a cabea entre as mãos, e fitando+me com uma grande angústia$

; @iz+me: não morreu? <stá salvo?+ <stá ; disse eu$ ; -uras? ; -uro$ + 1uero vA+lo,quero vA+lo *á ; gritou ela$ ; 5 meu #ale, o meu #ale= Procure+me a3 o meu #ale$ 2postoque não lhe fizeram bem o curativo$$$ Positivamente não lho fizeram= enão lhe acudo=

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1ue diz ele? 7hora? Pobrezinho= 2dormeceu? 5nde é a ferida? Caldita se*a eu= Calditase*a eu=

7om uma e#altaão delirante procurava abrir as gavetas, derrubava os móveis,arremessava as roupas, falando, gesticulando, e !s vezes cantando$

; Ceu @eus, faz+se tarde= 1ue ando eu a procurar? 1ue horas são? <le falou no meunome? Veio tomar+me o brao: ; Vamos$ + 5nde?

; VA+lo$ 1uero vA+lo$ 1uero= >ão me diga que não$ 1uero pedir+lhe perdão, amá+lo, servi+lo, ser a sua criada, a sua enfermeira$$$ Parou, e, desprendendo+se do meu brao: ; < aoutra? >ão a quero ver lá= <la está lá? >ão quero que ela o trate$ Cato+a, se a ve*o$ 2outra, não, não, não= >ão a dei#e chegar ao pé dele$ Peo+lhe a si$ >ão, não a dei#e

chegar$ <u só, só eu basto$ ubitamente cerrou os olhos, estremeceu, deu um grandesuspiro, e caiu no chão imóvel$

(evantei+a, deitei+a no sofá, borrifei+a de água) e ela com uma voz e#pirante:

; <u morro= <u morro$$$ 7hame um padre$ >ão lhe tinha di to$$$ <nvenenei+me$ ;<nvenenou+se? ; gritei aterrado$ ; >aquele frasco, ali=

72PL0(5 DD

5 médico, apressadamente chamado, declarou que não havia perigo$ 7ármen tinhatomado o veneno num preparado fraco, e nu ma porão diminuta$ Podia, porém, recear+seque a sua e#trema susceptibilidade nervosa, a e#altaão do seu esp3rito, provocassemuma febre cerebral$ Cas, ao despontar do dia, adormeceu, vencida por uma prostraãoabsoluta, em que a vida só se fazia sentir pelos ais soluados que se lhe desprendiam dopeito$ .ui então ver a condessa$ >ão se tinha deitado$ .icara em brulhada num #ale,sentada aos pés da cama, numa atitude absorta de dor e de inércia que me encheu depiedade$ <ra dia$ Cas as *anelas conservavam+se fechadas, e as luzes ardiam

melancolicamente$ 2s *arras estavam cheias de flores$

obre uma pequena mesa havia um servio de chocolate, de porcelana azul, para duaspessoas$ 5 chocolate tinha arrefecido, as flores murchavam$

; <ntão? ; disse ela quando me nu$ + <ntão= <le está curado, e bom num mAs$ 2condessa deve partir dentro de quinze dias$

; 2o menos quero dizer+lhe adeus$$$ um momento, um instante que se*a= >ão me podeimpedir isto: não me impea, não?

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; @e modo algum, prima$ <u mesmo lhe facilito$ ; < ela?+ <la, minha prima? <ntrei noquarto dela para a arrastar ao primeiro policeman que passasse$ ai *urando que em toda a

parte aquela mulher me havia de achar ao seu lado para defender e, se ela o quisesse,para a amar$

; 0em talvez razão: é uma verdadeira mulher$ ; M mais do que isso, minha prima$$$ ealguma vez a pai#ão se encarnou neste mundo num aspecto divino foi naquela mulher$ M adeusa da pai#ão$ @e resto tem a grande qualidade: ; a lógica$ <u, na realidade, tomarapor 7ármen uma grande admiraão= <u, que na sua saúde, e na sua beleza feliz, nunca lhedissera uma palavra galante, era agora, nas suas horas de dor e doena, o seu fielcaalliere seriente$ Vi+a convalescer sob os meus cuidados$ @$ >icaziotinha ido para ic3lia$ustentei os primeiros passos que ela deu no seu quarto, e#tremamente magra, como

olhar quebra do, uma transparAncia mórbida na fisionomia, e a imaginaão doente$

7omeou logo a entregar+se alongas ora4es, a leituras piedosas$ 5 seu intento era entrarnum convento em <spanha, e ali, matar o seu corpo na penitAncia e na dor$ Passava agoraos dias nas igre*as$ <stava mudada nos seus hábitos e nas suas maneiras$ 2 sua belezamesmo tomava uma e#pressão ascética$ 0inha+se verdadeiramente desligado do mundo$[s vezes olhava+me, e dizia de repente, lembrando o convento:

; M triste= 2os vinte e oito anos= Cas a e#altaão religiosa retomava+a, e então perdia+seem esperanas, ideias de uma redenão pela oraão, pele *e*um, pelo silAncio e pela

contemplaão$ >aquele esp3rito visitado por todas as pai#4es, e sempre numa vibraãoe#altada, entrava por seu turno e sombrio catolicismo espanhol, e vende o lugar desertodas outras ideias do mundo, acampava lá serenamente$

m dia pediu+me para ir ver IYtmel antes de partir para <spanha$

; M como irmã da caridade que o quero ver= (evei+a a casa de IYtmel, uma noite$ 5quarto estava mal iluminado pela desmaiada luz de velas de estearina$ 2 palidez de IYtmelera dolorosa sobre a brancura do seu travesseiro$ 7ármen entrou, arremessou+se de

 *oelhos ao pé da cama dele, tomou+lhe uma das mãos e ficou ali soluando longo tempo$IYtmel chorava também$

<u tinha+me encostado ! parede, e sentia invadir+me uma tristeza, profunda e insondávelcome a noite$ m vizinho, cu*a *anela abria para o estreito pátio, para onde dava tambéma *anela de IYtmel, tocava nesse momento na sua rabeca, com uma melancolia plangente,a valsa do "aile de Cáscaras, que, sendo doce e tenebrosa, desperta não sei que ideias defesta e de morte, de amor e de claustro$

IYtmel queria levantar 7ármen, falar+lhe$ Cas ela estava prostrada, com o rosto escondidona beira de leito, soluando) e apenas a espaos dizia: ; Perdoe+me, perdoe+me= IYtmel,

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por fim, com uma ternura insistente, ergueu+a, tomou+a nos braos, e disse+lhe as coisasmais elevadas e mais doces) e com uma meiguice e um encanto infinito bei*ou+a nos olhos$

2 pobre criatura corou, eu senti renascerem+se as lágrimas$ 1uerido e pobre IYtmel= comoele teve naquele momento a ternura ideal, e o divino encanto do perdão= <la, com umasimplicidade, em que *á se sentia a imensa fora interior que lhe dava a fé, falou a IYtmelde @eus, do convento em que queria entrar, da ordem que preferia, com palavras naturaise tocantes, que nos enchiam de mágoa$ Por fim bei*ou a mãe do seu amante$

; 2deus ; disse ela$ ; Para sempre= Iezarei por si$ < ia sair, devagar, sucumbida, quandode repente, ! porta do quarto, parou, voltou+se, olhou+o longamente os olhos encheram+se+lhe de uma luz sombria e terrivelmente apai#onada) o peito arque*ou+lhe) empalideceu,e com os braos abertos, os lábios cheios de bei*os, num 3mpeto da sua antiga natureza,

correu para se atirar aos braos dele com o frenesi das velhas pai#4es$ Cas quando tocouno leito, estacou, caiu de *oelhos, e num grande silAncio e num grande recolhimentobei*ou+lhe castamente os dedos= @epois tomou+me o brao, e sa3mos$

2o outro dia chamou as criadas, e repartiu por elas todos os seus vestidos, rendas etoilettes$ @eu as suas *óias a um padre inglAs para as distribuir pelos pobres$ .rascos,bi*utarias, essAncias, tudo destruiu$ 7onfessou+se, esteve todo o dia rezando na igre*a de $

-oão e preparou+se para partir$ 0odos os que a conheciam choravam$ 2 noite, quando faziaa sua pequena mala, mandou+me chamar, fechou a porta do quarto e entregou+me o seu

testamento, para eu o dei#ar depositado em Calta, de sorte que @$ >icazio o recebesse !sua volta da ic3lia$ @ei#ava+lhe tudo$

@epois foi silenciosamente ao espelho, tirou uma rede da cabea e o seu imenso cabelocaiu, quase até ao chão, em grossos anéis, esplAndido, forte, imenso, e de uma poesiasensual$

0omou uma tesoura, e febrilmente, a grandes golpes, abateu aquelas tranas admiráveis,que teriam sido uma glória pública no tempo da /récia$ <u estava absorto pela beleza,magoado como desastre$ Parecia+me *á aquilo o comeo do claustro$ 7ármen apanhou ocabelo ca3do, embrulhou+o num leno, e, entregando+mo, disse:

; /uarde essa lembrana$ M a verdadeira 7ármen, a outra, que eu lhe dei#o a3$ 2gorapeo+lhe uma derradeira coisa$ Prepare tudo e leve+me a 7ádis$ 2manhã$$$ é poss3vel? ;2manhã, não) mas dentro de uma semana, *uro+lhe, teremos visto do mar as montanhasde ValAncia$ <la, no entanto, passava rapidamente as mãos pelos cabelos, dando+lhes umafeião masculina$ <ra encantadora assim$ 2 sua beleza tomava uma e#pressão ingAnua deum e#traordinário mi mo$ <la sorria ao espelho, eu olhava+a, e ia, entre as duas luzes, a suaimagem, como num leve vapor azulado e luminoso$ <la, lentamente, esquecida, tinhatomado o pente e compunha o *eito do cabelo$ <u, por trás dela, sorria$ (ia, no enlevo do

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espelho, na surpresa de se achar linda com o cabelo cortado, sorria também$ parecia+mever+lhe as faces tomarem a cor da vida e o seio a ondulaão das pai#4es$ &a dizer+lhe

alguma coisa doce, chamá+la ao mundo$$$ @e repente arremessou o pente, e, curvando acabea, foi silenciosamente a*oelhar diante de uma cruz grande, que havia *unto do seuleito, e sobre a qual agonizava um 7risto com a cabea pendente, a testa gote*ante, osbraos distendidos, o peito constelado de chagas=

72PL0(5 DN 

@a3 a doze dias, a condessa e o conde voltavam no paquete da Lndia a /ibraltar$ 5 condepartia triste: Mademoiselle Iise ficava, e o 7hiado esperava+o= @emais, o estar só com a

condessa embaraava+o) as melancolias dela, as suas lágrimas ine#plicáveis, a sua palidezapai#onada, toda a incoerAncia do seu caráter, que aquele e#celente libertino e#plicavapelo nervoso e pelo histerismo, davam+lhe uma certa fadiga enfastiada, e, como ele dizia,embirrava com romantismos$ 2 condessa, essa, partia resignada:

IYtmel, depois da sua convalescena, iria para a &tália, para aquecer as suas foras aosolde >ápoles, e mais tarde, em Paris, e de pois em (isboa, teriam alguns meses livres, para,como diziam os antigos poetas, os tecerem de ouro, seda e bei*os$

.oi com saudade que os vi embarcar$ <u ali ficava para cumprir uru dever melancólico:

acompanhar a 7ádis aquela infeliz 7ármen, ainda há pouco de uma beleza tão radiante, eagora vencida pelas amargas penitAncias$ 4orde  /renleY, que ia para 7ádis dentro dequatro dias, tinha+nos oferecido, a 7ármen e a mim, o seu iate$ 2ceitei com alegria$ <ra umtransporte c6modo e livre, e 4orde  /renleY uma companhia simpática, porque meassustava a ideia de ver, durante uma longa viagem no mar, a debilidade de 7ármenestiolar+se ao meu lado$ <nfim, uma tarde partimos$

<ra ao escurecer, o céu estava nublado, quase chuvoso$ 7ármen ia profundamente doente$Cagra, transparente, l3vida, sem poder suster+se, sem dormir, alimentando+se quase só dechá, a sua vida parecia estar a todo o momento a passar os limites humanos$ >ão erguia os

olhos dos seus livros de ora4es$ 2quela e#altaão a que faltava a terra procuravafebrilmente todos os caminhos do 7éu$

.oi com uma grande tristeza que vi Calta sumir+se nas brumas da noite$ >unca maistornaria a ver aquela branca cidade$ >ão fora ali feliz$ Cas amamos todos aqueles lugaresem que por qualquer sentimento ou por qualquer ideia a nossa natureza palpitoufortemente$ < ali tinham ficado lágrimas minhas$ (ogo no primeiro dia de viagem, 7ármenesteve e#pirante$ Ha via um forte balano$

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5rnar era grosso, e nós receávamos mau tem po quando nos avizinhássemos das correntesdo golfo de (ião$

7ármen quase sempre queda estar na tolda, ao ar, ao sol, vendo o mar$ 2rran*ava+se+lheuma cama) e ali ficava, olhando, cismando, sofrendo, e conversando com o capelão de4orde /renleY, velho cheio de unão, que tinha um encanto singular falando das coisas do

7éu$ 2quela cena era profundamente triste sobretudo de tarde) o ol ca3a, a imensasombra comeava a cobrir o mar) 7ármen falava bai#o) nós, em redor, escutávamo+la) oucalados, segu3amos ocorrer da maresia, olhávamos o fim da luz$ m marinheiro escocAsvinha !s vezes cantar as árias das suas montanhas, cantos de uma tristeza suave e largacomo a vista de um lago$ 2o terceiro dia de viagem, 7ármen, subitamente, teve um grandeacesso de febre e quis confessar+se$ 5 médico disse+nos que ela não chegada a ver asmontanhas da <spanha$ 1ue horas dolorosas= >ão imagina, senhor redator, queintensidade tAm, na vasta e#tensão das águas, as dores humanas= -unta+se+lhes osentimento da imensidade, e não sei que terr3vel instinto do irreparável$ 2 confissão de7ármen foi longa$ 1uando terminou quis falar+me$

; 2deus ; disse+me ela$ ; Vou morrer$ @isse+lhe que não, quis dar+lhe esperanasefAmeras$ ; >ão, não ; respondeu ela +, nada de enganos$ 0enho coragem$ 1uem a nãotem para ser feliz? 7hame 4orde /renleY$ 7omeou então diante de nós a falar da sua vida$@isse+nos qual fora a sua mocidade, os desvarios do seu coraão, a e#igAncia das suas

pai#4es, e falou+nos da sua ligaão com IYtmel, com elevaão, como de um sentimentoquase leg3timo$ >ão teve uma quei#a, uma saudade, um desdém$ 2s _ltimas palavras dasua vi da eram dignas$ @epois tirou um rosário do seio$ + Veio de -erusalém ; disse+me ;dA+lho a ela$ <u tinha os olhos umedecidos$ 7ármen, entretanto, empalideciaterrivelmente$ + (evem+me para cima, quero ver o mar, quero ver a luz$

<ra uma manhã nebulosa e triste$ 5 mar estava mais sereno$ 7olocamos 7ármencuidadosamente sobre almofadas e mantas, voltada para Calta$ (á tinha ficado a sua vida$<steve muito tempo calada, com as mãos cruzadas$

; 1ue terra é aquela? ; perguntou mostrando, com a mão trAmula, uma linha escura nohorizonte$ + 2 Zfrica ; respondeu 4orde /renleY$

<la ficou olhando vagamente: + .ui uma vez a 0Bnger ; disse com uma voz lenta +, eranova então= <ra feliz= <stava um dia lindo$$$ <ra em Caio$$$

7alou+se$ < voltando+se para mim: + .az agora meses que passamos nesta altura, lembra+se? < aquele  punch  a bordo do 7eilão? 1uando eu cantei uma habanera= <u cantavaentão$$$ 5 que é ser alegre= 0udo acabou, nunca mais= nunca mais=

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< como falando consigo mesmo: ; 0anta pai#ão, tanta inquietaão= < aqui está: venhomorrer só, no meio deste mar$ Pobre de mim= < no fim, se eu em nova, em solteira, o

tivesse encontrado, a ele$$$ <u pedia pouco então: um coraão leal$ 0ive gostos simplessempre$ 2s loucuras vieram depois$$$ 5 marinheiro que canta as árias escocesas, ondeestá? 7hamem+no$ >ão, não o chamem que me vai fazer chorar$

>ós escutávamo+la) a sua alma falava como um pássaro canta ao morrer$ 2s nuvensdesfaziam+se, o azul aclarava, ia aparecer o sol$

; Ve*am isto ; continuou ela$ ; <m nova diziam+me és bonita, amo+te= < agora quemorro aqui, quem se lembra de mim? 5s que me conheceram onde estão? ns mortos,todos esquecidos$ Ms tão agora alegres, amam outras, vão para os teatros$ < eu estou aquia morrer$ < ele? (embrar+se+á de mim? 0ambém não$ 7horo, choro, quando penso que onão ve*o, que não está aqui, que morro e que ele se não lembra de mim=

< soluava, com a cabea escondida no travesseiro$ + IYtmel é uma alma nobre$ <stima+a,creia$$$ ; Cas esquece+me= ; dizia ela suspirando e limpando os olhos$ ; @e resto, demim ninguém se lembra$ <u não sou uma mulher de quem se se*a enfermeiro$ %<stás boa?<stás alegre? 2mo+te'$ %<stás a morrer? Vai+te fazer enterrar para outro s3tio$' M bem tristeeste mundo=

4orde  /renleY, com os olhos rasos de água, mordia convulsivamente o seu cachimbo$ +/uarde bem os meus cabelos, sim? ; dizia+me ela$ ; @iziam que eram bonitos$ e eu poracaso não morresse, hav3amos de ir todos a evilha$ 1ue lindo que é evilha$ 2 tarde, nas@el3cias, todo o mundo traz um ramo de flores$ @e repente abriu demasiadamente osolhos como diante de uma coisa pavorosa: levou as mãos ! face, gritou: + Ceu padre, meupadre, tenho medo$ >ão é *á o castigo, não? e caio no &nferno, meu @eus=

; 5 &nferno é uma visão, minha pobre senhora= ; dizia o capelão$ ; 5s castigos de @eusnão são feitos com o fogo$

; 0em razão, tem razão$ into+me morrer, venham todos$ (embrem+se de mim, sim?2lguns marinheiros tinham+se apro#imado$ 5 capelão a*oelhou: todos tiraram os barretes,

rezavam bai#o$ 4orde  /renleY ficara de pé, descoberto, imóvel$ /rossas nuvens escurascorriam outra vez no céu$ 5 vento comeava a assobiar$ + 2deus ; disse+me ela$ ; @A+mea sua mão$ "em$ .ui uma boa rapariga, por fim$$$

m pouco estróina, talvez$$$ 4orde /renleY, obrigada$ 1ue tristeza, ter morrido alguém noseu iate=$$$ 1ue é aquilo, além, ao longe? M a terra? ão nuvens$ 2h= meu querido IYtmel=2h= meu amor, ouve+me, onde estás tu?

@uas grandes, tristes lágrimas, correram+lhe na face teve ainda fora para as en#ugar$@epois, sorrindo:

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; 5lhem, não pensem em mim com tristeza$ omente, !s vezes, quando estiverem *untos,e ele estiver também lembrem+se desta pobre rapariga que para aqui morreu no mar$$$ <

digam: pobre 7ármen= 23 está uma que sabia amar deveras=< dizendo isto, estremeceu, falou desvairadamente em Calta, em evilha, em IYtmel, e,dando um gemido profundo, morreu$ 5 sino de bordo comeou a tocar lentamente, 4orde /renleY turvou+se, bei*ou+lhe a testa, e cerrou+lhe os olhos$ <u chorava$ <ntão um velhomarinheiro apro#imou+se, e sobre aquele corpo, que fora 7ármen, estendeu a bandeirainglesa$

72PL0(5 DQ 

&magine, senhor redator, em que lamentável estado de esp3rito nós ficamos$ 4orde /renleYencerrou+se no seu camarote, eu e o capelão ficamos velando *unto do cadáver$ 2 tardedescia$ ma névoa e#tensa cobria o mar$ 5 rugido do vento era lúgubre$ 0odos estavamprofundamente apieEados$ 2 velhos marinheiros, que tinham naufragado no mar da Lndiae dobrado o 7abo, eu vi saltarem as lágrimas$$$ + Pobre criana= ; diziam eles$

Para aquelas rudes naturezas simples, essa mulher nova, vestida de branco, palidamentelinda, era a miss, a virgem, a criana= um arran*ou+lhe uma coroa de algas secas, e foipiedosamente p6r+lha sobre o peito$ <ra o ramo das flores do mar$

<u pensei algum tempo em conduzir o corpo de 7ármen até <spanha, mas o pilotoobservou+mo que ter3amos ainda E ou R dias de viagem, e o corpo não podia esperar nasua pureza durante esta longa demora$ Por isso resolvemos deitá+la ao mar, quando viessea noite$ 2ssim, ficamos, o capelão e eu, durante a tarde, *un to do cadáver, lembrando assuas belezas e as suas desgraas$

2 noite caiu) cobriu as águas$ 5 capelão desceu$ .iquei só$ Havia sobre o cadáver,pendente de uma corda, uma lBmpada$ @escobri+lhe o rosto, afaguei+lhe os cabelos$ 2 suabeleza tinha+se fi#ado numa imobilidade angélica como se a morte lhe tivesse restitu3do avirgindade$ 2 curva adorável do seu seio aparecia em relevo na bandeira que a cobria)

nunca tanta fora tinha produzi do tanta graa= 5lhei+a durante muito tempo, enlevado nasua contemplaão$ 2s lágrimas ca3am+lhe dos olhos$

; Pobre criatura= ; dizia eu na solidão dos meus pensamentos$ ; Pobre criatura= Vaispara a mais profunda das covas, para a sepultura errante das águas$ ma febre de amorconsumiu+te na vida, uma tempestade eterna te agitará na morte= 7ondiz o túmulo com ae#istAncia= 7omo o mar, tu foste bela, orgulhosa e ruidosa$ 7omo o mar, tu tiveste as tuastormentas, as tuas calmarias ocultas, as tuas grutas, os teus monstros secretos, a tuaelevaão religiosa, a tua espuma imunda$ 7omo sobre o mar, sobre o teu cérebro correram

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as doces ideias geniais e puras como velas de pescadores) as pesadas ambi4es modernas,rápidas e incisivas como rodas de paquetes) as brutais e#igAncias do temperamento,

estúpidas e vitoriosas como monitores armados$ @espedaaste+te de encontro ! friareserva de um amor que se e#tingue, como ele se esmigalha contra a escurainsensibilidade das rochas$ 7omo ele tem o vento que é o seu tirano, tu tiveste a pai#ão$Vai, pobrezinha, repousar em paz, no fundo das algas verde+negras= 0riste destino= 1uemmais do que tu, sentiu, amou, estremeceu, corou, quis, venceu? 1uantas lágrimascausaste= 1uantas loucas palpita4es= 1uantos dese*os para ti voaram como bandós depombas= 1uantas vozes perdidas te chamaram= 1uanta fé fizeste renegar= 1uanta altivezfizeste sucumbir= < tanta vida, tanta aão, tanta vontade, um tão grande centro vital comotu foste, um grumete amarra+lhe duas balas aos pés e atira com ela ao mar= < aqui *az oru3do do vento, e aqui *az a espuma da onda=

%@e que te serviu o ser, o que fizeste ao sangue, ! vontade, aos nervos, ao pensamento,que trou#este do seio da matéria? 1ue ideia dei#aste, que memória, que piedade? 1uefoste tu mais do que um corpo belo, dese*ado e fotografado? .izeste parte, durante avida,daquelas insens3veis belezas naturais, que o homem usa e arremessa$ .oste comouma camélia, ou como a pena de um pavão$ .oste um adorno, não foste um caráter$>unca tiveste um lugar definido na vida, como não terás um túmulo certo na morte=2deus, pois, para sempre, oh doce efAmera= 5 teu destino é a dispersão=

%Por isso aqui estás só= 5s que te amaram onde estão? 5nde estão os que tu amaste? 2qui

estás só, vestida com o teu penteador branco, na tua manta de #adrez, sobre o convés deum navio, só, sempre nomeio de homens, como na vida= >ão há uma flor aqui que se tedeite em cima, nem uma renda em que se te envolva a face morta$ Corres entrecordagens, nomeio de rudes marinheiros, que vAm agora da sua raão de aguardente$>em um padre católico tens que te fale dos an*os, doces camaradas da tua mocidade$ >emum parente, sequer, te comporá a dobra do teu lenol= >ão se cantará nenhum responsoem volta do teu cai#ão$ >ão farás cismar as noivas que te vissem passar no teu enterro$ 2smãos alcatroadas de velhos marinheiros te arremessarão ao mar='Pois bem, minha pobreamiga= 1ue importa? <stás na lógica do teu destino, que é a revolta$ Viveste longe dasestreitas conveniAncias humanas, morres em plena liberdade da natureza$

%>ão verás o teu leito cercado de parentes ávidos, de criados in diferentes, de padres quete dAem os santos óleos boce*ando, num quarto escuro e abafado, entre o cheiro dosremédios: morres diante do céu, aos embalos domar, ao cheiro da maresia, entre velhosmarinheiros da Lndia, que te choram, sob o sublime céu, na plena liberdade doselementos='>ão serás vestida com velhas sedas, não levarás na cabea antigas coroasfúnebres, não te cobrirão com gal4es de ouro falso) irás com o teu penteador branco,como para uma alegria nupcial=

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%>ão te pregarão num cai#ão estreito, nem te apertarão como um fardo) terás o contatodas coisas vivas) as lágrimas do mar correrão sobre os teus cabelos) poderás toucar+te de

algas) os raios do ol poderão ir procurar+te como antigos amantes dos teus olhos, e atampa do teu esquife será o infinito azul$

%>ão sentirás em volta de ti, no teu enterro, cantos em mau latim, o som das campainhas,a voz aguda dos meninos do com, os comentários estúpidos da multidão, as grosseirasen#adadas do coveiro$ erás lanada ! tua cova do mar nomeio de um silAncio militar,levando por mortalha a bandeira inglesa, ao cantochão infinito dos ventos e das águas$

%>ão ficarás para sempre apertada em cinco palmes de terra, sentindo a boca das ra3zespastar o teu seio e a multidão dos vermes entrar no teu corpo como numa cidadelavencida$ >ão= a tua morte será uma perpétua viagem) viverás nas grutas transparentes daluz, guardarás os tesouros misteriosos, visitarás as cidades de coral que luzem no fundodomar, amarás o corpo encantado de algum louro pr3ncipe, outrora pirata normando=2ndarás dispersa no elemento, sombra infinita, alma da água=

%obre o teu túmulo não virão sentar+se os burgueses, benzer+se os sacristãos, cacare*ar asgalinhas) sobre a tua azul sepultura errará o vento, melancólico velho que visita os seusmortos$'>ão terás um epitáfio metrificado por um poeta eleg3aco, e aprovado pela7Bmara Cunicipal) serão os refle#os inefáveis das estrelas que se encruzarão para formarsobre a tua sepultura as letras do teu nome$$$'m marinheiro bateu+me no ombro:

; ão DD horas ; disse ele$ <rgui+me em sobressalto, e pensando nas vAs quimeras que setinham estado formando no meu cérebro, naquele triste cismar, disse comigo:

; Pobre de mim= 0inham+me esquecido os tubar4es$ <ram DD da noite$ >ão havia estrelas$0odos estavam reunidos na tolda$ 0inham+se posto lanternas nas cordagens, e acendidoarchotes$

@ois marinheiros tomaram o cadáver nos braos$ 5 padre abenoou+o$ (igou+se+lhe aocorpo com uma corda a bandeira inglesa$ 5s grumetes trou#eram duas balas$ m a foiamarrada aos pés, outra ao pescoo$ 2s botinhas dela, de seda preta, apareciam fora da

orlado vestido e da bandeira que a envolvia$ 2s luzes dos archotes faziam tremer sobre omar vagas claridades$ >o silAncio sentia+se o estalar da resina$

5 sino de bordo comeou a tocar$ 5s marinheiros elevaram o corpo ! altura pró#ima daamurada$ <ntão ergueu+se um canto grave, melancólico, de uma infinita tristeza$ 5 padrerezava com as mãos impostas sobre o cadáver$ < afastando+se, disse: + )n aeternum sit =0odos responderam:

;  "men= 5 vento gemia$ 4orde /renleY adiantou+se e disse em voz alta: ; >este dia, abordo do omantic  navio inglAs, morreu 7ármen Puebla, de naão espanhola, e para

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eterna proteão do seu corpo, como sendo sepultada em território britBnico, foiamortalhada na bandeira inglesa$ )n pace$

;  "men= ; responderam os marinheiros$ + <m nome do Padre ; disse o capelão +, do.ilho e do <sp3rito, santa se*a a sepultura a que ela é deitada, e que fique como em terrasagrada nestas águas do mar=+  "men= ; murmuraram os marinheiros$ + 2o mar= ; disse4orde /renleY com voz forte$

5s dois marinheiros suspenderam o cadáver sobre o mar) to dos se apro#imaram, fazendoc3rculo com os archotes) o cadáver, arremessado, mergulhou com um som lúgubre,desapareceu, e a espuma das vagas correu+lhe por cima$

5s archotes foram apagados num triste silAncio$ 5 navio afastava+se$ <u, encostado !

amurada, tinha os olhos fitos no ponto vago onde o corpo desaparecera$ <la ali ficavamorta$

<ncheu+me o peito uma longa saudade$ (embrava+me dela, danando no convés do 7eilão,rindo ! mesa do !larence-/otel $ 0inha tudo acabado$ >unca mais= nunca mais= 2li ficavacom uma bala aos pés=

5 vento refrescou$ + Vento de este= ; disse o marinheiro de quarto$ %Vem de Calta$$$',pensei eu$ < as minhas últimas lágrimas ca3ram sobre o mar$$$

72PL0(5 DE 

7heguei ao fim das minhas confidAncias$ 1uando desembarquei em (isboa a condessatinha ido para intra$ Via+a, ao fim desse Verão, em 7ascais$ <la mostrava+se alegre, o queera talvez uma maneira de estar triste=

7ascais estava imbecilmente *ovial: batia+se o fado= >o &nverno seguinte a condessaencontrou+se, em Paris e em (ondres, com IYtmel$ Voltou dessa viagem mais triste e maispálida$ (entamente, pareceu+me que a confiana do seu coraão se afastava de mim$

2partei+me, numa reserva discreta$ >unca mais nos nossos diálogos, todos e#teriores eefAmeros, se aludiu ! viagem de Calta$

<u, no entanto, continuava recebendo de IYtmel as cartas mais e#pansivas e mais 3ntimas$2 nossa amizade, que a e#altaão e o acaso das pai#4es formara, afirmava+se agora numacomunhão serena de sentimentos e de ideias$ >uma dessas cartas IYtinel falava+me demiss horn, uma rapariga irlandesa$$$ %M uma neta dos bardos, uma sombra ossiBnica, aalma da verde <rin=', dizia+me ele$

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>o comeo desta Primavera recebi uma carta de IYtmel que continha estas palavras:%Parto para a3: um quarto livre e solitário em tua casa) bons charutos) uma casa afastada e

livre num bairro pobre) um coupé  escuro com bons stores) reserva e amizade$ ; .rater,IYtmel$ %<#ecutei escrupulosamente as suas determina4es$

Há sessenta dias, talvez, IYtmel chegou, no paquete de outhampton$ Pareceu+me maistriste mais concentrado$ Havia certamente um segredo, uma preocupaão, um cuidadoqualquer, que habitava no seu peito$ <sperei que ele se abrisse e#pansivamente comigonalguma das longas horas 3ntimas, em que, no *ardim da minha casa, falávamos naessAncia dos sentimentos$ >unca dos lábios dele saiu uma confidAncia: apenas duas outrAs vezes o nome de miss horn, que, segundo ele me disse, era uma relaão recente desua irmã, apareceu vagamente no indefinido da conversaão$

2 sua vida, em minha casa, era de um e#tremo recolhimento$ Parecia mais um refugiadopol3tico do que um amante amado$ >ão tinha rela4es nem convivAncias$ [s vezes demanhã sa3a num coupé cuidadosamente fechado, que perpetuamente estacionava ! porta$@e tarde, !s oito horas, sa3a também, e só o via no outro dia ao almoo, em que eleaparecia sempre levemente contrariado pelas cartas que lhe vinham de (ondres e de Paris$>otei por esse tem po umas certas tendAncias m3sticas no seu esp3rito, de ordinário tãopositivo e tão retil3neo$ urpreendi+o mesmo uma vez lendo a )mita#$o$

>um caráter lógico e frio como o de IYtmel, aquele estado de esp3rito era decerto o

sintoma de uma grave perturbaão do coraão$ .alava !s vezes de 7ármen, sempre comsaudade$ /ostava de conversar das coisas de religião e das legendas do 7éu$ .alava na0rapo, no sossego imortal dos claustros, e nas quimeras da vida$ <u estranhava+o$

@esde que ele viera para (isboa eu não voltara a casa da condessa por um certosentimento altivo de reserva e de orgulho$ >esse tempo estava ela absolutamente livre$ 5conde achava+se em "ru#elas, onde Mademoiselle Iize o tinha cativo dos nervosos e ágeisbicos dos seus pés, que então escreviam pequenos poemas no tablado do Thé=tre di<Prince o*al $ m dia, inesperadamente, recebi da condessa um bilhete que dizia:

%Ceu primo, se um gelado tomado num terrao com uma velha amiga não sobre+e#citae#cessivamente os seus nervos, espero+o esta tarde em$$$ 8era uma quinta ao pé de (isboaque ela habitava algumas vezes no Verão9$ 0raga o seu amigo IYtmel'Costrei o bilhete aIYtmel, e pelas seis horas da tarde rodávamos na estrada de$$$ num coupé com os stores corridos$

2 condessa tinha acabado de *antar$ Passeamos nas sombrias ruas da quinta, apanhamosflores, e voltaram aquelas boas horas 3ntimas de outrora, cheias de abandono e deesp3rito$ 2 condessa estava radiante$ 2s onze horas da noite fomos tomar chá para oterrao$ Havia um admirável luar$ 5 terrao tem na sua base um grande tanque, cheio de

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plantas da água, de largas folhas, e de nenúfares, e onde poderia navegar um escaler$ 2água escorre ali com um murmúrio doce$ 2h hora era adorável$ 2s redondas massas de

verdura do *ardim, os arvoredos, apareciam como grandes sombras pesadas e cheias demistério$ 2o longe os campos e os prados esbatiam+se num vapor docemente luminoso epálido$ Havia um silAncio suspenso$ 2s coisas pareciam contemplar e sonhar$

obre uma mesa no terrao estava um bule do -apão e trAs pequeninas chávenas deevres, uma das quais, de um gosto original e feliz, era a da condessa$ 03nhamos tomadochá, e eu notava a e#cAntrica forma, o delicado desenho, a pura perfeião daquelamaravilhosa e pequena chávena, que a condessa chamava a sua taa$ + 5rei 2rtur só podiabeber pelo seu copo de estanho$$$ ; disse IYtmel, sorrindo$

< eu só posso tomar chá por esta taa ; disse a condessa$ ; >ão sei porquA, representapara mim o sossego, a felicidade$ 1uando estou triste e bebo por ela parece+me que sedissipa a nuvem$ ma flor que eu queira conservar ponho+a dentro dessa chávena, e a flornão murcha$ @emais o chá bebido por ela tem um gosto especial: ora ve*a, 7aptain IYtmel,beba$

0oda aquela glorificaão da chávena tinha tido por fim o poder IYtmel, na minhapresena, sem isso ser menos discreto, beber pela chávena da condessa ; encantosupersticioso e romBntico, que pertence de grande antiguidade ! tradião do amor=

IYtmel agradeceu, deitou uma gota de chá na pequenina chávena dourada$ <u, noentanto, olhava a condessa$

<stava originalmente linda$ 0inha o vestido levemente decota do sobre o seio$ < o luardava+lhe aquele nimbo poético que todas as claridades misteriosas, ou venham de astrosmortos ou de luzes desmaiadas, dão !s figuras louras$

Havia um piano no terrao) a condessa sentou+se, e sob os seus dedos o teclado de marfimchorou um momento$ 5 silAncio, o infinito da luz, a atitude contemplativa das coisas, omurmuroso chorar da água nas bacias de mármore, tudo nos tinha insensivelmentelanado num estado de suave e vago romantismo$$$

@e repente a condessa elevou a voz e cantou$ <ma balada do Iei de Vale$ 2lguém tinhatraduzido aquela balada em rimas populares$ < era assim que a condessa gostava de adizer, em lugar de usar as palavras italianas com a sua banalidade de libretto$

/oue outrora um rei de 5ale " 8uem1 em doce legado1Dei>ou ? amante ao morrer@m copo dAouro larado&

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<u ficara *unto do piano, fumando$ IYtmel, de pé, encostado ! balaustrada, enlevado nopenetrante encanto daquela canão, olhava a água do tanque, onde tremia a claridade da

(ua, conservando a taa na mão$5s dedos da condessa volteavam no teclado de marfim) e a sua voz continuava, tristecomo a própria balada:

Sempre o rei achaa nele@m sabor da antiga mágoa1E se por ele bebiaTinha os olhos rasos dAágua&

; >ão cante mais ; disse IYtmel, de repente, voltando+se$[ luz da (ua eu vi+lhe os olhos

úmidos como os do rei da canão, e na sua mão tremia a pequena chávena dourada$ <lavoltou para IYtmel um longo olhar triste, e a sua voz pros seguiu, vibrando mais saudosano silAncio:

Calta esplanada normanda "atida ia onda Ieúne os seus irmãos d`armas 2 uma távolaredonda$$$

Parou com as mãos esquecidas sobre o teclado: ; .oi talvez como uma noite destas ;disse ela$ + <stamos em plena legenda$ 5 terrao batido da água, a (ua, os velhos amigosreunidos, a lembrana da pobre amante, que se apaga na memória dele, o pressentimento

da morte$$$ 1ue linda noite para o rei atirara sua taa ao mar= < cantou os derradeirosversos da balada:

.oi+se com trAmulos passos >a amurada debruar$$$ < com as suas mãos antigas 2tirou ataa ao mar=

-unto ao seu corpo real <stão os pa*ens a velar < a taa vai via*ando Por sobre as águas domar$$$

@e repente IYtmel deu um pequeno grito: descuido, movimento, ou irreprim3vel impulso

de um coraão que se revela, IYtmel dei#ara cair a pequena chávena ao tanque, entre asfolhas dos nenúfares$ 2 condessa ergueu+se, e#tremamente pálida, apertando com ambasas mãos o coraão: e com os olhos mare*ados de lágrimas, disse para IYtmel:

; 5 rei de 0ule ao menos esperou que ela morresse= <le desculpava+se banalmente, comose todo o mal fosse per der+se aquela frágil preciosidade de evres$ 2 condessa deu+me obrao um pouco trAmula, e penetramos na sala$ @a3 a dias foi a catástrofe$ 5utros que acontem$ <u deponho aqui a minha pena, com a consciAncia de que ela foi sempre tãodigna, quanto a minha intenão foi sincera $

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AS REVELAÇÕES DE A. M. C.

72PL0(5 D

enhor Iedator$ ; @irigindo+lhe estas linhas, submeto+me ! sentena de um tribunal dehonra constitu3do para *ulgar a questão levantada perante o público pelas cartas do doutorWWW estampadas nessa folha$ 5briguei+me a referir quanto se passou por mim como atordesse doloroso drama, e venho desempenhar+me deste encargo$ Possam estasconfidAncias, escritas com o mais consciencioso escrúpulo, conter a lião que e#istesempre no fun do de uma verdade= 2 e#istAncia 3ntima de cada um de nós é uma parteintegrante da grande história do nosso tempo e da humanidade$ >ão há coraão que,

desvendado nos seus atos, não oferea uma referenda ou uma contestaão aos princ3piosque regem o mundo moral$ 1uando o romance, que é ho*e uma forma cient3fica apenasbalbuciante, atingir o desenvolvimento que o espera co mo e#pressão da verdade, os9al<acs e os Dic(ens  reconstituirão sobre uma só pai#ão um caráter completo e com elatoda a psicologia de uma época, assim como os 7uviers reconstituem *á ho*e um animaldesconhecido por meio de um único dos seus ossos$ abem que sou natural de Viseu$7riei+me numa aldeia encra vada entre dois montes da "eira) aoitado de quando emquando por meu pai quando lhe esgalhava alguma árvore mimosa do quinteiro)abenoado por minha mãe como a esperana dos seus velhos anos) coberto de profecias

de glória, como o pequeno Carcelo clã freguesia, pelo reitor, o qual algumas vezes depoisde lhe a*udar ! missa, aos dez anos de idade, me argumentava na sacristia as declina4eslatinas$ <ra escutado este prod3gio por um auditório composto do sacristão e dotesoureiro, que com os chapéus debai#o do brao, cocavam na cabea e olhavam paramim arregalados e at6nitos$ 2 um recanto, minha mãe sorria, com os olhos banhados deternura, do fundo da caverna formada em redor do seu rosto pela coca de uma ampla epoderosa mantilha de pano preto$

.iz depois os estudos preparatórios no liceu da cidade, e vim finalmente matricular+me em(isboa na escola de medicina$

Vivo pobre, humilde e obscuramente, tenho a minha e#istAncia adstrita a uma pequenamesada, ! convivAncia de alguns companheiros de estudo e ao trato de duas senhorasvelhas e pobres, irmãs de um capitão reformado, antigo aboletado de meu pai, em cu *acasa d e hóspedes eu tenho por módico preo a minha moradia na capital$ 2 única luz queatravessava a sombra da minha vida de desterro, de desconsolo e de trabalho, era alembrana de 0eresinha$$$ 0eresinha= 2 doce, a meiga, a querida companheira, ! qual euconsagro principalmente estas páginas, que são o cap3tulo único da minha vida que ela nãoconhece, a confissão sincera, a história completa do único erro de que posso acusar+meperante a sua inocAncia, a sua bondade e o seu amor=

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0eresinha= 2dorada flor escondida entre as estevas dos nossos montes, que ninguémconhece, que ninguém viu, de quem ninguém se ocupa, e que no entanto inundas

inefavelmente a minha mocidade e a minha vida com o sagrado perfume de um amorcasto, puro, imperturbável e calmo como a luz das estrelas$ e tu as entenderás, minhainocente amiga, estas palavras=

e me perdoarás, tu, a enfermidade passageira e misteriosa, cu*a história eu ponhoconfiadamente nas tuas mãos, pedindo+te, não o bálsamo da cura para uma chaga queestá fechada para sempre, mas o sorriso da benevolAncia e do perdão para a vaga e sobressaltada melancolia do convalescente a*oelhado aos teus pés= 7omo quer que tenha de ser,minha noiva, eu entendo cumprir perante a minha consciAncia um dever sagradocontando+te, sem omiss4es e sem reticAncias, tudo, absolutamente tudo, quanto se

passou por mim$ 2 verdade é que te amo= que te amo, e que te amei sempre= 5utraimagem, incoerc3vel, vaporosa, vaga, perpassou por mim, mas esvaiu+se como a sombra deum sonho doentio, varada sempre pelo teu olhar cBndido que através dela se fi#ava e seembebia constantemente no meu$ ma noite, há dois meses, recolhendo+me por volta dasnove horas a minha casa, que fica situada em um dos bairros e#cAntricos de (isboa,encontrei parada uma carruagem de praa, cu*o cocheiro altercava grosseiramente comuma senhora, que estava em pé *unto do trem, vestida de preto e coberta com um grandevéu de renda$ <sta senhora trocou algumas palavras com outra mais idosa que aacompanhava e disse ao cocheiro com uma voz singularmente fina, trAmula, delicada,musical, como nenhuma até então ouvida por mim:

; 5nde quer que lhe mande pagar?$$$ >ão trago mais dinheiro$ + &mporta+me pouco isso; respondeu o cocheiro$ ; 1uem não tem dinheiro anda a pé$ -á lhe disse ! senhoraquanto é que me deve pela tabela$ e não paga o resto, chamo um pol3cia$ e não trazdinheiro, dA+me um penhor$ <la então bateu impacientemente com o pé no chão, ergueu aparte do véu que lhe cobria o rosto, e principiou a descalar convulsivamente uma luva$upus que iria tirar um anel$ 5 cocheiro apressou+se a passar as guias pela grade daalmofada e apeou$ 0inha+me, no entanto, apro#imado, e no momento em que ele dava oprimeiro passo, impelido por uma forte comoão nervosa, estendi+lhe com as costas damão uma bofetada que o fez cambalear e cair de encontro ! parelha$ < dando+lhe em

seguida uma libra, que trazia no bolso:

; 23 tem pela bofetada) contente+se como que lhe deram pela corrida$ @iria que alguémpor trás de mim sugerira estas palavras romBnticas, a tal ponto ainda ho*e pasmo de as tereu mesmo inventado como soluão de efeito oratório, para semelhante contingAncia= 5cocheiro levantou a moeda, e#aminou+a ! luz da lanterna, subiu outra vez ! almofada, epartiu dizendo+me:

; "oa noite, meu amo= <u atarantado, confuso, tirei maquinalmente o chapéu, e titubeeialgumas palavras vagas, não sabendo como despedir+me da pessoa que tinha ao meu lado$

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<ra a primeira vez que me achava perto de uma dessas formosas senhoras da sociedade,tenra, fina, delicada, como nunca vi ninguém= 0inha uma carnaão láctea e aveludada,

como a pétala de uma camélia ; prod3gio de mimo só comparável ao de uma outramulher que não conheo, e que uma noite passou por mim no salão de $ 7arlos,encostada no brao de um homem e envolta em uma grande capa branca de listas cor+de+rosa$

2queles que as conhecem, que as vAem e lhes falam todos os dias, é poss3vel que se nãoimpressionem como aspecto destas criaturas transcendentes$ Para quem as encontra deperto pela primeira vez em sua vida não há coisa no mundo que mais perturbe$ Homenshabituados a arrostar com as mais violentas como4es, a olharem denodadamente para operigo, para a desgraa ou para a glória, tremem diante destas simples coisas: o primeiro

contato de uma mulher elegante= @a3 vem o velho prestigio magnético das rainhas sobreos pa*ens, das castelãs sobre os menestréis$ M uma sensaão única$ 5 ser humanobestificado converte+se por momentos num vegetal que vA$

<u ficara imóvel e mudo$ <la correu+me de cima a bai#o com um olhar rápido, e dizendo+me obrigada com uma comoão trAmula, estendeu+me de entre a nuvem negra das suasrendas a mão de que tinha descalado a luva$

<ntreguei a minha grossa mão a essa mão delicada, magnética, convulsa e fria, e sentipercorrer+me todos os nervos um estremecimento elétrico despedido do sha(e-hands que

ela me deu de um só movimento sacudido, fazendo tinir os elos de uma grossa cadeia quelhe servia de bracelete$

5brigado a dizer alguma coisa, soltei instintivamente as palavras monstruosas de umafórmula que se usa em Viseu, mas que estou bem certo nunca até esse dia haviam sidoouvidas por tal criatura, e que certamente lhe produziram o efeito do grito estr3dulo de umanimal selvagem, escutado pela primeira vez entre ma tos desconhecidos$ Vergonhaeterna para mim= <ssas palavras, que eu desgraa da mente conservara no meu ouvido deprovinciano e que a minha boca dei#ou bestialmente cair, foram estas:

; Para o que eu prestar, estou sempre !s ordens$ < dizendo isto, tendo+o ouvido comhorror a mim mesmo, voltei rapidamente costas, e afastei+me a passos largos$ &a ve#ado,envergonhado, corrido, como se houvesse proferido uma obscenidade sacr3lega$ @ava+mevontade de me meter pelas paredes ou de me sumir pela terra dentro= >ão me atrevia aolhar para trás, mas parecia+me que ia envolto em gargalhadas fantásticas, que não ouvia$.igurava+se+me que tudo se ria de mim, os candeeiros, os cães noct3vagos, as pedras darua, os números das portas, os letreiros das esquinas, os aguadeiros que passavamuivando com os seus barris, e os cai#eiros que pesavam arroz sobre o balcão ao fundo dastendas$

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<ntrei precipitadamente em casa, subi as escadas, fechei+me por dentro e pus+me apassear !s escuras no meu quarto$ >as trevas apareciam+me iluminadas por um clarão

satBnico essas duas mãos que pela primeira vez acabavam de se apertar na rua ; a minhae a dela ; uma trigueira, áspera e quente, a outra branca, nervosa e gelada$ @epoisentravam a reconstruir+se ! minha vista os vultos completos das pessoas$

<la, de uma palidez ebúrnea, com o perfil melancólico de uma madona a que tivessemlevado dos braos o seu bambino, movendo+se molemente entre rendas e cetim com umaondulaão de sereia$

<u, inteiriado e embasbacado diante dela, não sabendo como segurar o chapéu e abengala, na mais flagrante e minuciosa ostentaão dos meus defeitos e da minha pobrezaincaracterizada e burguesa$ 2o lado de quanto nela havia ideal, transcendente, etéreo, iaeu vendo, enormemente avultado e saliente, quanto o meu as peto oferecia mais bai#o emais vil: casaco comprado ao barato num algibebe) as botas de duas solas torpementedeformadas e orladas de lama) as calas com umas *oelheiras que me dão !s per nas naposião vertical o desenho das de um homem que se está sentando) os punhos da camisaamarrotados) e a ponta do dedo má#imo da mão direita su*a de tinta de escrever=Mramosverdadeiramente os ant3podas um do outro, postos na mesma latitude pela estupidez doacaso, e separados logo para sempre por aquelas palavras terr3veis que me zuniam nosouvidos como os prenúncios de uma congestão: %Para o que eu prestar, estou sempre !sordens='

>ão sei que estranha atraão amarrava o meu esp3rito ! lembrana da mulher que euacabava de ver= >ão era indefinida simpatia, não era oculto dese*o, não era um vago amor$&nteressava+me detidamente, e o único movimento que encontrava no meu coraão ;sinceramente o confesso ; era o do ódio$ Jdio !quela mulher, ódio ine#plicável,monstruoso, como aquele que imagino ser o de um en*eitado ! sociedade em que nasceu=

2 distinão aristocrática, a elegBncia da raa daquela gentil criatura aviltava+me, enfurecia+me, revolvia no meu interior esse fermento de rebelião demagógica que todo o plebeutraz sempre escondido, como uma arma proibida, no fundo da sua alma$

2quela mulher tinha, certamente, um esp3rito menos culto do que o meu, uma razãomenos firme, uma vontade menos forte, um destino menos amplo$ Para compensar estasdepress4es assistia+lhe uma superioridade repugnante, inadmiss3vel: a que procede dacasta$ m bero de lu#o, uma constituião delicada, um leito de penas, a infBnciaresguardada na sombra, entre estofos, sobre tapetes, ao som de um piano ; isto basta,para que fique rid3culo, miserável, desprez3vel ao pé dela um homem que se criou aoclarão do dia, ! luz do ol, tendo por tapetes a aspereza das montanhas, e por melodias oroncar das carvalheiras e o gemer dos pinhais=

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< entre mim e ela será isto perpetuamente uma barreira$ <la ficará sempre bela,dominativa, sedutora por natureza, instintivamente cativante, querida) amimada,

estremecida, dentro da sua zona de aromas, de veludos, de cristais e de luzes= <u, entre aminha estante de pinho adornada com um boneco de gesso e a minha cama de ferrocoberta de chita, ficarei sempre tenebroso e inútil ; desgraado quando não quisertomar+me tão rid3culo, e irrisório, quando tiver a veleidade de não querer serdesgraado=$$$

2cendi as duas torcidas do meu candeeiro de latão e tentei estudar$ &mposs3vel$ 2s letrasde um livro que tinha aberto diante de mim percorri+as com a vista pelo espao de trAs ouquatro páginas, maquinalmente, sem compreender o sentido de uma só palavra$ @ei#ei olivro e fiquei por algum tempo inerte, estúpido, neutro, com a vista fi#a nas órbitas ocas de

uma caveira que tinha sobre a mesa, e que se ria para mim como escancelado sarcasmoque trazem da cova os esqueletos desenterrados$ 2borrecia+me a vida$ 2paguei a luz,despi+me e deitei+me$ 0inham+me feito a cama nesse dia com dois desses lenóis de folhosengomados, com que minha mãe enriquecem liberalmente o meu baú de estudante$ <steslenóis tinham a aspereza do linho novo e o cheiro caracter3stico do bragal daprov3ncia$'Pobre mãe, coitada=' pensava eu, deitado e embebido nessa long3nquae#alaão olfática da casa paterna$ %7oitada de ti, que na simplicidade dos teus *u3zos

 *ulgaste dotar+me com um lu#o que faria comoão em (isboa, orlando+me dois lenóis comesta enorme renda longamente trabalhada por ti mesma nos teus bilros infatigáveis= esoubesses que este paciente lavor das tuas mãos em dois anos de aplicaão consecutiva,

ninguém aqui o admirou, ninguém o viu, ninguém atentou nele, a não ser a criada, queesta manhã me perguntou, entre risadas sacr3legas, se os padres na minha terra seembrulhavam nos meus lenóis em dias de missa cantada= 1ue importa, porém, que o nãoapreciem os outros?$$$ 0oda esta gente é má, corrupta, perversa= 2gradeo+te eu, minhaobscura, minha velha amiga$ >os arabescos desta renda, que eu estou apalpando na mãoe que tu me consagraste, figura+se+me sentir o correr caprichoso e ondeado das lágrimasque choraste enquanto o vento ramalhava nas árvores, a saraiva estrepitava nas *anelas, etu desvelavas as tuas noites de &nverno, resignadamente a*oelhada *unto do bero em querabu*ava o teu pequeno$ 1uando sinto no rosto o áspero contato dos teus eriados folhosbordados, bei*o+os piedosamente, bei*o+os eu, como se fosse um an*o bom que me tocasse com a ponta das suas asas purificadoras e brancas='

Cas além do cheiro do bragal, que me envolvia como um afago mandado de longe, haviana minha cama outro perfume que contrastava singularmente com este$ <ra o quearomatizava apele daquela mulher desconhecida, e que me ficara na mão que ela apertou$Iespirei+o com uma curiosidade irritante, que me pungia e me dilacerava$ 2i de mim=7oleios lábios na mão aberta sobre o meu rosto, e principiei a sorver esse misteriosorespiro de um para3so ignoto e long3nquo$M monstruoso, infernal, o turbilhão das ideiasque esse aroma estranho, penetrante e cálido, me revolveu na cabea$

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entia os fogachos, as palpita4es, a alucinaão da febre$ 1uando pela manhã me levantei,sem haver dormido em toda a noite, tinha o travesseiro inundado em lágrimas$$$

Perdoa+me, 0eresinha= Cinha 0eresinha, perdoa+me$$ >ão foi pensando em ti, meu puroan*o, que eu chorei tanto nessa noite=

72PL0(5 N 

oube da3 a dias que a senhora com quem me encontram era a condessa de X$ 2figuradela tinha+me ficado moldada na memória como o rosto de um cadáver em uma máscarade gesso$ <stava no Iossio quando me disseram o seu nome, ao vA+la passar em

carruagem descoberta$ &a reclinada para o canto de uma vitória, quase deitada, mórbida,abstra3da, indiferente, como se uma auréola invis3vel a segregasse dos aspectos e dosru3dos da rua, grosseiros demais para lhe tocarem$ 0inha uma seduão alucinante, vestidade verão, com uma simplicidade cheia de mimo e de frescura, uma graa que seadivinhava mais do que se via e que menos apetecia ver do que respirar$ (evava no seiouma rosa cor de palha, e uma pequena ma dei#a de cabelos finos, dourados,transparentes, soltos do penteado, ca3a+lhe na testa$ 7ravei os olhos nela e tirei o meuchapéu) ela viu o meu cumprimento, olhou+me, como se eu lhe aparecesse pela primeiravez, com a mesma indiferena com que olharia para uma vidraa vazia ou para umatabuleta sem d3stico, e prosseguiu inalterável e imóvel como a imagem preguiosa daformosura arrebatada do seu pedestal por um cocheiro agaloado e por dois cavalos atrote$

7ontinuei a passear com um amigo com quem estava e cobri tanto quanto pude comalgumas palavras rancorosas a respeito da pol3tica a comoão que sentia$

Comentos depois, passou, na mesma direão que tinha tomado a carruagem da condessa,um coupé  escuro, sem letras nem armas, com todas as cortinas cerradas$ <stacircunstBncia, aliás natural3ssima, encheu+me de indignaão e de rancor$ &maginei poss3velque aquele trem seguisse o da condessa e, não sei porque processo do coraão ou do

esp3rito, nasceu+me o dese*o de arrombar essa carruagem e calcar aos pés o homem que láestivesse dentro$ + <stás a tremer= ; disse+me o amigo a quem eu dera o brao$

; >ão é nada$$$ um estremecimento nervoso$ ; <mpalideceste, tens os beios brancos eas orelhas encarna das$$$ + .oi uma vertigem$ @á+me isto !s vezes$

; 23 tens= M o efeito das vig3lias e do abuso do tabaco nas fun4es do coraão$ + Mdebilidade resultante da fome ; e#clamei eu sorrindo e mal podendo conservar+me depé$ ; 2deus, que vou *antar=

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< entrei na primeira carruagem de praa que passou por nós, enquanto o meucompanheiro acrescentava:

; 2gora estás afogueado e vermelho como lacre: toma ferro e brometo$ 1uando chegueia casa tinha febre, e via por fora do casaco o bater do coraão$ >ão tomei mais a encontrá+la senão na noite da catástrofe$ 5 meu romance misterioso e absurdo acabou então,cedendo o seu lugar ! tragédia em que entramos *untos$

72PL0(5 Q

.oi na noite de N de -ulho passado$ <u voltava de casa de T$$$ com quem tinha estado até

!s duas horas) ia chegar quando senti atrás de mim os passos de duas mulheres$ Parei$ <laspassaram por mim, descendo do passeio em que eu estava, e caminhandoapressadamente, <ntrevi+as ! luz de um candeeiro$ ma era alta, seca, direita, idosa) aoutra+ para que hei de descrevA+la? ; era ela$ m relance de olhos, e conheci+a logo$

&a inquieta, arque*ante, abafada em pranto e em soluos$ 7omoveu+me tanto o aspectopassageiro dessa grande angústia, dessa dor suprema naquela formosa mulher há poucosdias ainda tão patentemente feliz, radiosa, intemerata, que eu daria, nesse momento, aminha vida inteira para a não ver assim dobrada na lama de uma rua escura e deserta,pelo que há mais violento, mais voluntário, mais hostil, mais implacavelmente humano: a

desgraa$$$ <la, a viva imagem da delicadeza e do mimo, e#pressão suprema da beleza, dodom3nio, da onipotAncia termal, via+a de repente sucumbir envolvida pela serpente cu*acabea eu imaginava segura pelo seu pé sobre um crescente de (ua=

.iquei por um momento perple#o, Por fim, os meus passos apressaram+se para ela, sa3+lheao encontro e disse+lhe convulsivamente: ; enhora condessa de X$$$, ve*o que chora$ Mcertamente um sucesso e#traordinário e terr3vel$ V$ <#+a parece+me só e desprotegidaneste bairro) somente em tão e#cepcionais circunstBncias eu poderia permitir+me aliberdade de lhe falar$ @isponha de mim, minha senhora, como se disp4e de uni amigo oude um escravo, para a vida e para a morte$ <la parecia escutar sem me compreender,

numa grande in quietaão$ 2 última palavra que proferi:

; Para a morte= ; repetiu ela num grito de del3rio$ ; 1uem lho disse? 7omo o soube? <apoiando+se no brao da senhora que a acompanhava, segurou+se nela com ummovimento convulsivo de pavor, ergueu o rosto para mim e fitou+me, trAmula, suplicante,com os olhos alucinados e lacrimosos$ + 1ue quer? @iga= ; acrescentou ela$ ; 1uerprender+me? 2qui me tem$ (eve+me$

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< tendo dito isto, voltou+se sucessivamente para todos os lados, olhando a rua com amaise#altada e#pressão da confusão, da vergonha e do medo$ <ra a angústia personificada pela

maneira mais viva e mais lancinante$ <u sentia o coraão cheio de lástima e de piedade$; Perdão ; disse+lhe +, sossegue por quem é= <u nada sei$ >ão venho prendA+la, nemvenho interrogá+la$ >ão sou um *uiz, nem um espião, nem um carrasco$ M esta a terceiravez que a ve*o em minha vida$ 2 primeira foi nesta mesma rua há cerca de um mAs, nomomento em que um cocheiro lhe pedia o aluguer de um trem$ 2 segunda vez foi depassagem no Iossio, há quinze dias$ ou um amigo seu desconhecido, obscuro, an6nimo$upunha+a no apogeu da fortuna e da felicidade$ 0ive+lhe inve*a e ódio$ <ncontro+a, ao queparece, ! beira de um abismo e não acho na minha alma doente e magoada senãoenternecimento e dedicaão= Pobre senhora= M, então, desgraada também como os

outros$$$ 7oitadinha=coitadinha=$$$

< a minha dor era profunda e sincera, a minha compai#ão ilimitada$ ; >ão sei ; tornouela +, estou tão perturbada que não o compreendo bem) estou tão aflita que não oreconheo bem, entrelembro+me apenas$$$ Cas parece+me generoso e compadecido$$ 2h=<u não posso ter+me em pé= @ei+lhe o brao, que ela aceitou, e ficou um momento amparada em num e na pessoa que a acompanhava, imóvel, com a cabea reclinada para trás e aboca aberta, bebendo ar alongas sorvos$ + Vamos= +disse ela depois de uma pausa$ ; >ãoposso ficar, não posso morrer aqui) tenho que escrever, preciso de chegar a casa quantoantes$ < fazendo um grande esforo, continuou a caminhar, apoiada como estava, com

passo vacilante e vagaroso, ansiada, arque*ante, parando a todo o momento para recebernos pulm4es o ar que lhe faltava$ <u ia absorvido pelo aspecto de tamanha dor$ 2cudia+mede longe a longe uma palavra, que não me atrevia a pronunciar, receando que ela pudesseimaginar que eu tentava perscrutar a causa do seu infortúnio com uma indiscriãogrosseira$ 2 rua em que 3amos andava+se consertando e estava coberta de uma camada desei#os britados e soltos, por cima de cu*os Bngulos percucientes e cortantes éramosobrigados a caminhar$ 7hegávamos ! esquina da rua quando ela, voltando+se para apessoa que a acompanhava, e que então vi ser uma criada, lhe disse:

; "ettY, cala+me o sapato$ aiu+me do pé$ 2 criada a*oelhou+se, e e#clamou: ; 5 cetim

está despedaado= 5 pé deita sangue= 2 condessa pareceu não ouvir, e continuou acaminhar resolutamente$ Caravilhava+me e compungia+me o valor de alma daquela débilnatureza, e sentia+me arrebatado a levantar do chão e a trans portar nos meus braosaquele formoso corpo tão cora*osamente sub*ugado$ .elizmente, de uma travessa pró#imadesembocou, pouco depois, um trem de praa vazio$ 2 condessa, que tinha visivelmente amaior pressa de chegar, entrou, com a criada que a acompanhava, na carruagem que eumandei apro#imar$ .echei a portinhola e disse ! condessa bai#o, quase ao ouvido, dando+lhe o meu bilhete:

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; Cinha senhora, quaisquer que se*am as causas, quaisquer que se*am as consequAnciasda estranha aventura que acaba de apro#imar+se de V$ <#$', vá na firme certeza de que

ninguém no mundo saberá do encontro que acabamos de ter$ e nunca precisar de mim,continuarei como até ho*e sendo na sua e#istAncia um homem inteiramentedesconhecido, o qual doravante considerará as suas rela4es com V$ <#$' e#atamente noestado em que estavam antes de a ter visto pela primeira vez$

<la respondeu+me enternecidamente: + "em ha*a por essas palavras de bondade, que sãotalvez as últimas benévolas que eu tenho de ouvir neste mundo$ 1uando souber ; porquetem de se saber isto, meu @eus= ; o que, desde esta horrorosa noite, eu fico sendoperante a *ustia e perante a sociedade, diga a sua mãe, ! sua irmã, ! sua amante, se temamante, que me não odeiem elas, ao menos= 1ue eu sou menos crimino sado que lhes hei

de parecer, que fui eu que lhe confessei isto, ao despedir+me de si, entre a vida e a morte$2deus=$$$ >ão lhe dou a mão$$$ ou indigna da amizade das pessoas de bem$ 5 mais que euposso pedir, eu, é piedade$$$ 0enha piedade de mim$$$ 2deus=

2 carruagem tinha rodado a distBncia de alguns passos, quando parou outra vez a umgesto da condessa) ela mesma abriu a portinhola, desceu e dirigiu+se a mim$ .ui ao seuencontro$

; 1uero falar+lhe ainda ; disse ela$ < depois de uma pequena pausa, em que pareciacoordenar ideias dispersas, acrescentou:

; .oi talvez providencial o nosso encontro aqui, a esta hora, nesta rua$$$ M talvez a únicapessoa que @eus quer permitir que me prote*a, que se*a por mim$ 0enho um parente aquem vou escrever imediatamente entregando+lhe este segredo$ Ieceio que ele se nãoache em (isboa$ endo assim, não sei de quem me confie$ e tiver no seu coraão tantamisericórdia e tanta bondade que queira valer+me, procure+me em minha casa, amanhã,!s DD horas$ < dando+me a sua morada em (isboa, entrou outra vez no trem que partiu$

ingular comoão a que produziu em mim essa mulher de quem acabava de saber quetinha cometido um crime) sentia+me inclina do a a*oelhar+me aos seus pés dilacerados e aadorá+la=

72PL0(5 E 

>o dia seguinte, ! hora assinada, apresentei+me em casa da condessa$ <ra um prédio deum sé andar, simples, branco, todo fechado$ 2briu+se++me a porta da rua, apareceu+me umcriado vestido de casaca azul com bot4es brancos, colete encarnado, calão curto$ <ra umhomem velho, de cabelos brancos, polido e nédio como um embai#ador, sério como umaestátua, penteado como um gentleman$ .alou+me em francAs e conduziu+me$ 2s escadas

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eram pintadas e envernizadas de branco, luzidias como o peito engomado de uma camisa$2o meio dos degraus cor ria um tapete de veludo passado em varetas de cobre reluzente$

>o patamar pro*etava+se da parede uma concha de alabastro, cheia de plantas de longasfolhas, em cima das quais gote*ava a água de uma pequena fonte$ >o alto da escada amob3lia era branca, as paredes forradas de verde, cobertas de molduras douradasencerrando quadros a óleo$ 2 luz, suave e alta, vinha através de vidros baos$ Havia o arsereno e o perfumado silAncio de uma tranquilidade elegante e feliz$ >ão me parecia opalácio de um fidalgo, nem o palacete de um burguAs, mas sim o ninho doméstico de umpoeta ou de um artista$

(evantou+se um reposteiro e entrei numa sala forrada de couro, circundada de sofás e depoltronas com estofos de marroquim crave*ado de ao, grandes vasos de porcelana e

alguns bronzes, um dos quais representava o busto da condessa, assinado e datado deCilão$ m dos espessos reposteiros que cobriam as portas estava corrido e dei#ava ver, nomeio da casa pró#ima, que era um salão antigo, um piano de ébano volumoso e longo emcu*o flanco se lia em grandes caracteres de prata o nome de <rard$ -unto do piano,inclinado sobre um %auteuil , achava+se um violoncelo defronte de uma estante de marfim$obre as chaminés de mármore havia alguns livros e vasos com flores$ 5s móveis estavamdispostos de maneira que parecia conversarem bai#inho em coisas delicadas e intimas$entia+se que estava ali,domiciliada num aconchego feliz, uma e#istAncia espirituosa econtente: percebia+se no ar e no aspecto das coisas, o vago vest3gio do perfume) deharmonia, de calor, que as pessoas que a3 tivessem estado haviam derramada em volta de

si, conversando, lendo, fazendo música$ <u tinha levantado os olhos de um livro sobre amesa do centro da sala, quando vi defronte de mim, ao fundo de um grande espelho, umafigura imóvel, tétrica, espectral$ Voltei+me rapidamente, e não pude reprimir um grito depasmo e de terror$ <ra a condessa$

Horr3vel transformaão por que ela passara= @urante as poucas horas que haviam mediadoentre esse momento e a última vez que a vira, a condessa de X$$$ tinha envelhecido dezanos$ 5s olhos profundamente encovados haviam tomado uma e#pressão apaga da eimóvel) a carne tinha uma cor térrea e opaca) os músculos faciais, contra3dos na maisviolenta opressão, davam+lhe ao rosto, transversalmente vincado por dois sulcos escuros,

o aspecto de uma magreza e#trema) os cabelos apanhados todos para trás, alisados eseguros num rolo sobre a nuca, avultavam+lhe o nariz afilado e despregavam+lhe do crBnioas orelhas l3vidas, de uma saliAncia ri*a e cadavérica$

.ez+me sinal que a acompanhasse$ egui+a com a sensaão enregelada de quem ; entranos dom3nios da morte$ 2travessamos uma sala e entramos num dos quartos dela$2pontou para um sofá e sentou+se ao meu lado, olhando para mim, impass3vel$

.icou assim por um momento na mudez de uma dor intraduz3vel, pausa terr3vel em que aalma emerge de um abismo de lágrimas e se debate violentamente antes de aparecer na

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voz$ 0inha os lábios entreabertos como os de quem vai soltar um grito, e o quei#o,trAmulo, oscilava+lhe como o das crianas sub*ugadas pelo terror no instante de lhes

rebentar o pranto$ Por fim, disse+me lentamente, com palavras pesadas, firmes,entrecortadas como se estivesse retalhando o coraão e dando+mo em bocados:

; Peo+lhe que não me condene pelas primeiras palavras que vai ouvir$ <, em voz bai#a,depois de um breve silAncio, acrescentou: ; <u matei um homem$ + 1ue diz? ; gritei euestupefato$ ; <stá louca= <nlouqueceu=

; >ão$ >ão estou louca ; tomou ela grave e serenamente$ ; >ão enlouqueci ainda$ <admiro isto$ 7omo tAm decorrido estas horas, minuto por minuto, segundo por segundo,sem que a minha razão sucumbisse nesta desgraa infinita, sem remédio, sem ter mo, semremissão= Catei um homem$$ &nvoluntariamente, sim, mas matei+o$ 1uero entregar+meaos tribunais, estou pronta, estou deliberada$ <stendo os olhos ao meu futuro e não ve*osenão uma esperana, senão um lenitivo único no prazer de morrer em tormentos, que euabenoarei como os maiores beneficies do 7éu, de morrer de fome, de desprezo, demiséria, prostrada no fundo de uma en#ovia, no porão de um navio, ou abandonada numapraia da

Zfrica, abrasada pelo sol, sobre as areias ardentes, ro3da pelo cancro, devorada pela sede epela febre$ Por mim uma só coisa temo: a loucura que um momento em minha vida meconsinta a alegria horr3vel de cuidar que ainda sou amada e feliz) ou a morte repentina que

me arrebate a consolaão única que @eus concede aos grandes culpados: a liberdade desofrer$ Cas ele$$$ 5 seu nome descoberto= 5 seu cadáver profanado= 5 seu segredotra3do=$$$

< falando, como num sonho, abstratamente: + @esventurado homem= 1ue fatal destino oencaminhou para mim, arremessando+o de encontro ao meu coraão, em que estava a suamorte? Porque não amou outras mulheres que o mereciam mais do que eu? Porque nãose dei#ou amar por 7ármen Puebla, que o adorava e que morreu por ele? 1ue cego, queimprudente, que desgraado que foi=$$$

< escondendo a face nas mãos, desatou a chorar num pranto convulso e desfeito, em quea vida parecia despedaar+lhe o seio e *orrar para fora em borbot4es de lágrimas e desoluos$

; Vamos ; disse+lhe eu quando esta crise abrandou +, serenemos um momento, epensemos no que importa fazer$ M então positivo que o conde está morto? ; 5 conde?$$$; interrogou ela, erguendo+se de súbito e en#ugando os olhos$ ; im, tem razão, euainda lhe não disse tudo$$$ 5 homem que eu matei não é meu marido$ <, postando+sedefronte de mim, fitou+me com um olhar alucinado, e acrescentou com voz demudada eprofunda: + M o meu amante$

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<m seguida ficou imóvel, esperando as minhas palavras na postura de um réu que vaiescutar a sentena da boca de um *uiz$ 2 sensaão que e#perimentei ao ouvir essa

confissão breve, seca, inesperada, foi a da surpresa primeiro, de uma instintiva repulsãodepois$ <rgui+me maquinalmente e dei alguns passos na casa$ 2 condessa permanecia namesma posião, numa insensibilidade que tanto podia ser a prostraão doarrependimento como o cinismo da culpa$ <u estava surpreendido e revoltado$ 2quelamimosa e pura estátua, ! qual eu levantara quase um altar no meu coraão, assimrepentinamente baqueada num lamaal, causava+me horror$ Poderia suportá+la criminosa)não podia considerá+la prostitu3da$ Cedi+a com um olhar em que senti darde*ar odesprezo que ela nesse momento me inspirava, e depois de um silAncio repassado demágoa:

; M horr3vel isso= <la estremeceu, cerrou desfalecidamente os olhos e amparou++ sevacilante ao espaldar de uma cadeira$

; <stranha talvez a lástima e o horror que me causa? ; insisti eu$ ; M natural$ 0endoouvido que, em (isboa, a sociedade vA benevolamente essas quedas como incidentestriviais da e#istAncia doméstica$ <u, porém, que sou um selvagem, eu que me criei noprinc3pio de que a fidelidade é no caráter de uma mulher um dever tão sarado como ahonra no caráter de um homem, eu protesto, em nome das únicas mulheres que a minhaine#periAncia me tem permitido conhecer no mundo ; em nome daquela que me gerou eem nome daquela que eu amo ; contra semelhante interpretaão da liberdade de amar$

>ão compreendo que caia em tal erro uma pessoa limpa$ 5 adultério é uma indecAncia euma por caria$ Catar um homem em tais circunstBncias, é mais do que faltar ferozmenteao respeito devido ! inviolabilidade da vida humana) é faltar igualmente a respeito damorte$$$ M atirar um cadáver a um cano de esgoto$$$ M trágico ; e coisa ainda mais horr3vel; é su*o$$$

<la escutava+me em silAncio, e#tática, como que hipnotizada pela minha instintiva mascruel grosseria$ @e repente, sem uma e#clamaão, sem um grito, sem um gesto, caiudesamparadamente no chão, fulminada, inerte, como se estivesse morta$ 1uis chamaralguém, ia a tocar no botão de uma campainha, quando me ocorreu a inoportunidade de

qualquer intervenão nesta cena$ .ui para ela, que ficara estirada de costas sobre o tapete$(evantei+lhe a cabea$ >ão lhe senti o pulso$ <rgui+a em peso, tomei+a nos braos$ 2 frontedela pendeu sobre o meu ombro, ficando perto dos meus lábios a sua face desmaiada$2pro#imei+me de um sofá$ @epois, por um sentimento supersticioso de respeito, coloquei+a numa cadeira de braos, e corria os aposentos cont3guos !quele em que estávamos$ 5quarto pró#imo era um gabinete de vestir$ 0rou#e um frasco de água+de+col6nia queestava num lavatório$ medeci+lhe as fontes e os pulsos, fiz+lhe respirar o álcool$2uscultei+a$ 5 coraão comeava a bater$ 5 pulso reaparecia$ <u tinha+me a*oelhado *untoda poltrona em que ela *azia e contemplava melancolicamente a sua figura e#Bnime$

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5s olhos cerrados, a boca entreaberta dei#ando ver os dentes miúdos e cor de pérola, acabea reclinada no espaldar, davam ao seu rosto, assim em escoro, a e#pressão de uma

figura de an*o, ascendendo de um túmulo$ 5s pés estreitos e finos, calados em meias deseda e sapatos de cetim preto, sobressa3am da orla do vestido numa imobilidade sepulcral$ma das mãos, através de cu*a lividez se via a rede tAnue e azul das veias, tendo no dedoanular um c3rculo de grossos brilhantes entremeados de rubis, repousava+lhe no regao, edo seu roupão de rendas pretas e#alava+se o mesmo perfume, o perfume dela, que meficara na mão a primeira vez que a vi$ (embrei+me então da sua figura entrevista de noite,ao gás de um candeeiro dama, tomada a ver depois, ! luz do dia, no Iossio, passando emcarruagem descoberta$ < estas coisas, tão vivas na minha lembrana, faziam+me, todavia, aimpressão de haverem passado há muitos anos$

<la estava velha= Cuitos dos seus cabelos, secos, baos, como mortos, tinhamembranquecido nas fontes e no alto da cabea$

2 contraão violenta de todos os músculos da dor transformara numa só noite as suasfei4es e desfigurara a sua fisionomia$ 5s cantos da boca tinham desca3do ao peso daslágrimas como ao peso dos anos, e dois vincos profundos sulcavam+lhe as faces flácidas namesma direão obl3qua que tinham tomado os sobro lhos, riscando+lhe a testa em rugascurvil3neas, miúdas e trans versais$

1ue medonha, que tenebrosa, que incomparável angústia de via ter passado em algumas

horas por este desgraado corpo para o devastar assim=>a rua, a pequena distBncia, um reale*o tocava um  pot-pourri  de várias óperas, e, ao somdesse corrido martelar idiota da música mecBnica, pareceu+me ver desfilar em loucadebandada no ar, entre mim e a pobre senhora, como numa espécie de evocaão aomesmo tempo trágica e grotesca, todos os grandes s3mbolos das educa4es sentimentais,ladainha viva das pai#4es elegantes, girando sob a manivela desse reale*o, numredemoinho fúnebre, de dana dos mortos, em torno desse corpo desfalecido, como asvis4es da vida passada, figuradas nos velhos retábulos, em torno do leito das mon*asmoribundas$ <ra como se, no decorrer dessa música, automática como um andar de

sonBmbulo, eu visse perpassar no espao a grande ronda das tenta4es que na vidalevaram consigo o destino desta criatura) os pálidos Canriques e os febris Canfredos,trazendo sob a capa das poéticas aventuras a bravura cavaleirosa de campeador Iui de"ivar ou do paladino

Iolando, a melancolia de Hamlet, a e#altaão sentimental de Xerther, a revolta do .austo,a saciedade de @$ -oão, o tédio de 7hilde Harold) e toda a legião dramática das belasmulheres amadas: .rancesca, Cargarida, -ulieta, 5félia, Virg3nia e Canon$

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<, em grinaldas de bei*os secos, de bei*os de pau, matraquea dos no instrumento dama,todas essas figuras de amorosas legen das bailavam misteriosamente ao som da Traiata,

da 4Bcia, do 9allo in maschera$%2mor= amor= amor=', tal foi decerto a letra da grande ária que constantemente lhecantaram através de toda a sua e#istAncia de mulher bela, elegante, instru3da e rica$

.oi nesse mundo moral que a sua imaginaão habitou e que se fez o seu pobre esp3rito delinda criatura ociosa e dese*ada$ 7omo poderia ela adivinhar a honesta serenidade dosdestinos simples no meio de uma e#istAncia tão complicadamente artificial como a sua?.ora dos interesses da elegBncia, da moda, talvez da arte, que conhecia ela de sério e degrave na vida, senão a religião e o amor? 0inha um missal és um marido$ M pouco para oequil3brio de uma alma, principalmente desde que o missal cessa de convencer e o maridocessa de amar$

2s que tAm um salão, uma carruagem, um camarote na ópera, um cofre cheio de *óias, umquarto cheio de vestidos, não podem ser as singelas mulheres que passam a vida a dar demamar aos filhos e a vender cerve*a, como diz o lago, de ha]espeare) nem podemresumir o seu destino fácil em ter filhos, chorar e fiar na roca, co mo diz ancho Pana$<sta não vendia cerve*a, não a ensinaram a fiar$$$ 7horou apenas$

1uem sabe se na sua dourada e#istAncia a amargura das lágrimas a não compensou ho*ede tudo quanto ignora da amargura da vida=

< tive uma compai#ão sincera com um remorso profundo das palavras cruéis que lhedissera$ 1ue poderia eu fazer para a salvar? >ão o sabia$ 2chava+me, porém, resolvido atudo, a sacrificar+me inteiramente, para lhe valer$ @evo dizer também que, vendo+a,ouvindo+a, eu não supus nem por um momento que no homic3dio de que ela se acusavapudesse haver o que se chama verdadeiramente um crime, isto é, uma intenão infame ouperversa$ m criminoso, um cobarde, um assassino, nem chora assim, nem fala assim, nemse denuncia, nem se inculpa, nem se entrega por esta forma a uma pessoa quase estranha,quase desconhecida$ <la tinha+mo dito com a mesma simplicidade com que o gritaria da

 *anela para a rua, sem a m3ni ma preocupaão de se salvar$ 7heguei a pensar por ummomento que não tinha diante de mim senão uma estranha nevrose, um caso dealucinaão, de del3rio raciocinado$ Cas o del3rio não faz padecer tanto$ 0enho visto muitosloucos no hospital$ 2 e#pressão deles, ainda a mais dolorida, não apresenta nunca aprofundidade desta$ M preciso ter toda a integridade da sensibilidade e da razão parasofrer assim$ >o padecimento dos loucos há um não+sei+quA, sem nome talvez nasintomatologia do sofrimento, mas a que poder3amos chamar ; a isolaão da alma$ 2ovoltar a si, a condessa parecia um pouco mais calma$ Para evitar um recrudescimento dee#citaão proveniente de uma longa narrativa de episódios que me pareceu discretoevitar, um pouco como estudante de medicina, principalmente como homem honrado,

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disse+lhe: ; abe mais alguém deste caso? ; abe+o a minha criada de quarto, a que meacompanhava ontem quando nos viu, e sabA+lo+á dentro em pouco meu primo H$$$ a quem

ho*e escrevi$ Ceu primo, porém, está em7ascais$ 5 morto é um estrangeiro$ >inguém, a não ser meu primo, o conhece em (isboa$&gnorava+se mesmo que ele e#istisse aqui$ <ntregá+lo aos trBmites policiais, ter de revelar oseu nome, descobrir a sua naturalidade, a sua fam3lia, eis o que principalmente euquereria evitar$ 7onseguido isto, entrego+me aos tribunais, mato+me, fu*o, enterro+meviva$$$ como quiserem=

; < sabe seu primo como ele morreu? ; >ão$ Vai saber apenas que está morto$$$ + Podecontar com o silAncio da sua criada, por alguns dias ao menos?

; Posso$ Por toda a vida$ + <vite, se pode, que seu primo receba ho*e a sua carta$ <$$$ ele,onde está?+ >a mesma rua em que nos encontramos ontem, no prédio n$$$

; Para entrar na casa$$$ + Há uma chave ; respondeu ela$ < tendo meditado ummomento: + 5ntem ; prosseguiu ; quando lhe disse que viesse ho*e a minha casa, estavalouca de desesperaão e de honor$ Parecia+me que tudo quanto se apro#imava de mim metrazia a punião, o castigo, e que tudo quanto se afastava fugia para longe como meu último amparo, com o derradeiro socorro que eu ainda poderia ter neste mundo=$$$ .oi nestedel3rio que lhe pedi a V$$$, um estranho, um desconhecido, que viesse ver+me$$$ Para quA?$$>em eu sabia para quA$$$ Para contar isto a alguém, para me decidir, para ter uma soluão,para apressar um desenlace qualquer, para fugir de mim mesma$$ &r ! pol3cia era entregaresse infeliz ! mais horrorosa das profana4es$ @irigir+me a alguma das senhoras queconheo, ir bater ! porta de uma fam3lia tranquila, que me receberia na casa de *antar aolevantar da mesa, que me apertaria as mãos, que me traria os seus filhos para eu bei*ar, edepois dizer+lhes de repente: %eu, que aqui estou, tinha um amante, e matei+o) venhoconvidá+los para esta festa de desonra e de ignom3nia=$$$' >ão$ <ra melhor fugir para odesconhecido, entregar+me ao acaso$$$ <m tudo isto pensei confusamente, não sei como,sem continuidade, sem ne#o, aos pedaos, depois que o vi, durante esta noite medonha$>ão tenho ho*e mais lucidez de esp3rito do que tinha ontem$$$ >ão sei o que hei de fazer$$$

into apenas que estou perdida, que é preciso que alguém venha, que é preciso que melevem$$$ 5 senhor parece+me um homem generoso, leal, compadecido e bom$$$ abe *á oque me sucedeu, sabe onde ele está$

@isse+lhe qual era a casa, disse+lhe o número da porta$ 2qui tem a chave$ < tirando do seiouma corrente de ferro, de elos angulosos como de um cil3cio, que trazia suspensa dopescoo por dentro do roupão, abriu uma argola que lhe servia de remate, soltou umapequena chave, e entregou+ma$ @ei#ou+se cair num  %auteuil , inclinou a cabea para trás eficou prostrada, silenciosa, no abatimento, no abandono, no entorpeci mento profundoque de ordinário se sucede !s grandes crises nevrálgicas$

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em saber o que fizesse, pensando todavia que uma ideia qualquer me ocorreria maistarde como desfecho poss3vel para esta situaão imprevista, tão e#traordinária, guardei a

chave$ enti que me era preciso, primeiro que tudo, sair dali, retomar o ar livre, achar+mea sós comigo mesmo, refletir, raciocinar$ + Cinha senhora ; disse+lhe então +, se amanhã,até ao meio+dia, eu não lhe tiver reenviado esta chave, será sinal que me prenderam, queestá tudo perdido$ e não souber mais de mim, quero dizer, se lhe não for restitu3da estachave, fu*a, esconda+se, faa como quiser$ &nterrogada, negue tudo$ <u preferirei mil vezesaceitara responsabilidade desta morte a imputar+lha, e, por acaso algum do mundo, será

 *amais o seu nome proferido por mim$ @aqui até lá, para coordenar as suas ideias, paraequilibrar a sua razão, para não enlouquecer, se quer um conselho de fisiologista, violente+se uni pouco, abra uma *anela, sente+se diante de um caderno de papel e escreva o que sepassou$ @epois, queime o que escrever$ 5 único meio de dominar uma situaão como a

sua, o único meio de verdadeiramente a compreender, é analisá+la$ Houve um filósofo quedei#ou aos infelizes esta má#ima: %e a tua dor te aflige, faz dela um poema$' Vá escrever$.aca as suas memórias ou faa o seu testamento, mas escreva, e queime depois$ 2gora,adeus$ 2deus até amanhã, ou quando não, adeus para sempre$

<la conservava sempre a atitude e#tática em que ca3ra na cadeira de braos$ 0inha abocaentreaberta, o lábio inferior tremia+lhe, com esse tocante gesto infantil que toma adesolaão no rosto das mulheres, e grossas lágrimas silenciosas corriam+lhe em fio pelasfaces e gote*avam lentamente nas rendas do vestido$ .ez um movimento para se erguer,procurando articular uma palavra de agradecimento$ Profundamente enternecido, dei um

passo para trás, inclinei+me com respeito, e sa3$

72PL0(5 R 

0endo fechado a porta do aposento em que ela ficara, ao passar na sala em que primeiroestivera, ocorreu+me de repente uma ideia$ obre uma das mesas achavam+se doisgrandes álbuns$ .olheei+os rapidamente$ m deles encerrava apenas uma série deapontamentos de viagem tomados por uma só pessoa, segundo se via da uniformidade da

letra a lápis e em portuguAs$ <ntre os apontamentos escritos estavam colados ou pregadosnas páginas alguns espécimes de plantas e flores, e viam+se delineados vários esboos deconstru4es e de fragmentos arquitet6nicos$ <ra um álbum de estudos$ 5 outro continhauma coleão de pensamentos, de má#imas, de versos, de desenhos, de aquarelas,firmados por muitos nomes diversos$ <u devorava com os olhos o conteúdo de cada lauda$

>ão ousara perguntar ! condessa o nome do seu amante$ 7ompreendia que a boca delanunca mais poderia pronunciá+lo, e não obstante, eu precisava de sabA+lo, de ver letradele$

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<stava certo de que esse nome desconhecido figuraria indubitavelmente entre os que euestava lendo, que a letra dese*ada se encontrava nomeio dos escritos que me estavam

passando pelos olhos$ 7omo poderia, porém, adivinhá+lo, sem tempo, sem vagar, sem osossego de esp3rito necessário para meditar a intenão de cada uma das frases que ialendo .$$$ <ra+me foroso abandonar este recurso, e o álbum que tinha nas mãos era,todavia, talvez, o único meio que me restava de poder descobrir o que dese*ava= Hesiteium momento, e sai por fim, levando o livro comigo$

2penas me achei na rua tomei um trem, que dirigi para minha casa, acantoei+me nacarruagem e pus+me a ler sucessivamente cada um dos trechos em verso e em prosa, deque se compunha a coleão$

abia pela condessa que o morto era estrangeiro$ <sta informaão era insuficiente paraque eu o distinguisse naquela torre de "abel$ @e página para página ia+me surpreendendouma nova l3ngua$ Havia francAs, italiano, alemão, inglAs, espanhol$$$ 5 nome de <rnestoIenan aparecia sobreposto a duas palavras caldáicas: /arcin de 0assY, orientalista naorbona, firmava um per3odo em l3ngua indostBnica) 2bd+el+ader tinha dei#adosimplesmente o seu nome árabe) a princesa @ora @istria assinava de 0urim um pequenote#to albanAs$ >omes portugueses, apenas dois$

2 leitura dos te#tos não me adiantava mais do que a simples inspecão da variedade dosnomes e da diferena de l3nguas$

2o chegar a casa, vi que o número que a condessa me indicara era o de um prédio de umsó andar, pobre de aparAncia, quase fronteiro ! casa que eu habitava, perto de umaesquina, colocado ao lado de um prédio mais saliente, e tendo a porta num Bnguloreentrante que a escondia da parte principal da rua$ Para o lado oposto até ! esquinapró#ima havia uns armazéns desabitados$ @efronte corria um velho muro, ao alto do qualsobressa3am as ramas secas de um canavial$ 2 situaão topográfica da casa onde estava omorto permitia+me, pois, entrar e sair dela sem ser visto$

2li dentro haveria talvez um papel, uma carta, uma nota, que me revelasse o nome quedese*ava conhecer$ ; @ei a volta ! chave e entrei$ >o alto da escada, *unto de uma portacerrada, estava ca3da uma luva e dois bocados de papel$ m era meia folha pequena, lisa,em branco$ 5 outro era um pedao de envelope) tinha no alto um carimbo do correio de(isboa com a data do dia anterior) a um canto havia inutilizada uma estampilha francesa)no sobrescrito lia+se: Cr$ X$ IYtmel$ <ste nome achava+se no álbum da condessa por bai#ode dois versos ingleses$

2 luva, que levantei do chão, era de mão de homem, e de pelica branca com cord4espretos$ Por dentro tinha em letras azuis a marca de um luveiro de (ondres$ <ra evidenteque tinha achado o que procurava$ IYtmel era o nome do morto$ 2bri em seguida a porta

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que tinha em frente de mim e estreme ci de honor$ <stendido num sofá estava o cadáver$2 e#pressão do seu rosto inculcava um sossego feliz$ Parecia dormir$ 2palpei+o) estava frio

como mármore$ 7olocado perto dele estava um copo com um pouco de l3quido$ <ra ópio$Percorri o aposento com um relance de olhos$ >o forro de cetim preto do chapéu, queestava ca3do no chão, vi bordadas em verme lho uma coroa de barão e duas grandes letras+ um X$ e um I$

>ão podia perder tempo$ .ui para casa, sentei+me pacientemente ! minha banca e abri oálbum defronte de mim na página em que estavam os versos assinados por X$ IYtmel$ Mde saber que tenho aquela espécie de habilidade que 2le#andre @umas consideraaviltante e vilipendiosa para a inteligAncia: sou, como terá visto pela letra destas cartas,um e#celente cal3grafo$ 7opiei escrupulosamente, desenhando letra a letra, por trinta ouquarenta vezes consecutivas, os dois versos que tinha patentes$ @epois principiei aconstruir, com letras da mesma forma das que tinha copiado, outras palavras diferentes$.inalmente, depois de muito estudo e de muitos ensaios, peguei na meia folha de papelque tinha encontrado na casa em que se dera a catástrofe, e fiz em inglAs com escrita queninguém no mundo duvidaria ser a da pessoa que escreveu no álbum os versos assinadospelo nome de

IYtmel, uma declaraão pessoal do suic3dio por meio do ópio$ @este modo, quer maistarde me ocorresse, quer não, o meio mais conveniente de sepultar o cadáver, as

suspeitas de homic3dio desapareciam$2 condessa estava salva desde que, antes demais ninguém, eu entrasse na casa ecolocasse *unto do corpo o bilhete que escrevera$

Cas eu ficava sendo um falsário$ Iepeti a mim mesmo esta pa lavra sinistra e estremeci dehorror$ <ra preciso achar outro meio, que eu procurava debalde$ <, no entanto, o tempocorria$ Veio a noite$ (embrei+me que o primo da condessa poderia vir de 7ascais prevenidopor ela, e cheguei a sair de casa com pregos e um martelo para encravar a fechadura daporta e retardar a entrada no prédio onde se achava o morto$ 5correram+me mil ideiasfantásticas, cada qual mais absurda$ Passei por muito longe, a pé, meditando, inquieto,nervoso, congestionado, estafado, devorado de febre, palpando no fundo do bolso obilhete terr3vel com que poderia desviar a responsabilidade da cabea de um criminoso,tomando, todavia, para mim uma parte igual no seu remorso$

.inalmente, por volta da meia+noite, sem bem saber porquA, nem para quA, levado poruma atraão terr3vel, atrás de uma su prema inspiraão, cingi+m e com o muro, abri aporta, penetrei na casa$ <ntão me encontrei inesperadamente com o doutor e com apessoa conhecida no decurso desta história pelo nome de mascarado alta$ 5 primo dacondessa, tendo chegado de 7ascais ao meio+dia, acompanhado de dois amigos 3ntimos,

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inquieto pelo desaparecimento de IYtmel, que era seu hóspede e vivia como homiziadoem casa dele em (isboa, foi ao prédio misterioso de que possu3a uma chave e que sabia ser

frequentado regularmente pelo inglAs, e encontrou a3 o cadáver$ 7onhecendo as rela4esde IYtmel com a condessa, ponderando quanto havia de delicado na necessidade demanter o maior sigilo em volta daquela catástrofe, e *ulgando por outro lado indispensávelque o testemunho de um médico constatasse a morte, que poderia ser apenas aparente,planeou e realizou a emboscada em que surpreendeu o doutor WWW que ele sabiacasualmente que passaria nessa tarde pela estrada de intra$ abem o que se passou nessanoite$

72PL0(5 S 

>o dia seguinte !s onze horas da manhã, todos nós, os que ha v3amos ficado nessacasafatal, nos achávamos reunidos, de rosto descoberto, em torno do cadáver$ 5 doutorhavia sido conduzido ao ponto da estrada de intra, em que fora tomado na véspera$ .$$$,encarcerado durante a noite num quarto interior da casa, havia comunicado com umalemão que habitava o prédio cont3guo, e passara+lhe de manhã, por um buraco feito notabique, a carta ao doutor, publicada mais tarde no Diário de Notícias$ <m seguidaarrombou a porta do quarto que lhe servia de cárcere, e depois de uma altercaãoviolenta, arrancou a máscara ao primo da condessa$ 5s outros dois mascarados, vendo o

seu companheiro descoberto, tiraram igualmente as máscaras$ m deles era 3ntimo amigode .$$$

; 1ue é isto?$$$ 7omo pode isto ser?$$$ ; gritou .$$$ e#altado$ < apontando em seguidapara o cadáver, continuou: + 2quele homem está morto, e foi roubado$ @epressa,e#pliquem+se= 7omo pode isto ser? ; Ceus senhores ; e#clamou o mascarado alto +, osegredo que eu tenho tido em meu dever guardar dentro dos muros desta casa, e queespero fique para sempre sepultado nela, pertence a uma senhora$ ma parte destesegredo, aquela que mais particularmente nos interessa, a que e#plica a presena daquelecadáver diante de nós, conhece+a este senhor$

< voltando+se para mim ao dizer estas palavras, acrescentou: + <m nome da nossadignidade) emprazo+o pela sua honra a que declare o que sabe$ ; -urei não o dizer ;respondi eu +, não o direi nunca$ 2o entrar aqui, em presena de um perigo que *ulgueiiminente sobre a cabea das pessoas mais particularmente envolvidas neste mistério,perdi os sentidos, desmaiei mulheril e miseravelmente$ .alta+me diante do perigo aenergia f3sica, que é a feião vis3vel do valor$ >ão imaginem, por isso, que também careode fora moral precisa para guardar um segredo, ! custa que se*a da minha própria vida=&nterrogado por gente mascarada, que não conhecia, era+me l3cito mentir, p6r também naresposta uma máscara$ @iante de gente de bem, que me interroga invocando a sua honra,

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o meu dever é calar+me$ Previno+os de que são absolutamente inúteis to das as tentativasque fizerem para me obrigar a outra coisa$ + >ão é dif3cil de cumprir o seu dever= ;

5bservou com ironia o mascarado alto$ ; 5 corpo daquele desgraado não pode ficar alipor mais tempo$ M urgente que tomemos uma deliberaão decisiva e que salvemos aresponsabilidade que pesa sobre nós, de mo do tal que fique para sempre tranquila aconsciAncia que nos ditar o conselho que houvermos de seguir$ Visto que este senhor serecusa a principiar, comearei eu$

< traou sobre uma folha de papel as seguintes linhas, que ia pronunciando ao mesmotempo que as escrevia$

Cinha prima: %>a rua de$$$ n$$$ acham+se neste momento reunidos diante de um cadáveros seguintes homens: 8seguiam+se os nossos nomes9$ M um tribunal supremo constitu3dopelo acaso e que vai *ulgar em derradeira e única instBncia o crime su*eito pela fatalidade,! nossa *urisdião$ e em presena deste tribunal a minha prima tiver que depor, peo+lheque o faa$'

; Perdão$$$ ; observei eu$ ; Peo licena para acrescentar uma linha:'2$ C$ 7$ nãodevolve a chave$' <le escreveu o que ditei, assinou, dobrou o papel, e disse a um dos seusamigos: + Vai *á entregar este escrito ! condessa de X$$$ Ceia hora depois uma carruagemque percorrera a rua a galope parou ! porta do prédio em que estávamos$ Iolamos paradentro da alcova o sofá em que se achava o cadáver, e cerramos o reposteiro da sala$

2briu+se a porta, e a condessa entrou$eguira o alvitre que lhe propus$ 2s vinte e quatro horas decorridas desde que eu a dei#araaté ao momento de partir para ali, tinha+as empregado em escrever com uma eloquAnciaapai#onada e febril a história da sua desgraa$ 5 caderno que lhe remeto encerra, senhorredator, a cópia da longa carta dirigida por ela a seu primo$ 7edo o lugar que estavaocupando nas colunas do seu periódico ! publicaão deste documento, queverdadeiramente se poderia chamar , auto de autCpsia de um adultério$ @epois direi odestino que demos ao cadáver, e o fim que teve a condessa$

A CONFISSÃO DELA

72PL0(5 D

Parece+me !s vezes que tudo isto se passou numa vida distante como um romance escrito,que me causa saudades e dor, ou uma velha confidAncia de que a minha alma se lembra$Cas, de repente, a realidade cai arrebatadamente sobre mim, e creio que sofro maisentão, por ter a consciAncia de que não devia nunca ter dei#a do de sofrer$ .oi bom que

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me determinasse a esta confissão$ 7ontar uma dor é consolá+la$ @esde que me determineia escrever estas confidAncias, há no meu peito um al3vio e como um movi mento de dores

cruéis que desamparam os seus recantos$5 princ3pio das minhas desgraas foi em Paris$ (á comecei a morrer$ (embra+me o dia, ahora, a cor da relva, acordo meu vesti do$ .oi no fim do penúltimo &nverno, em Caio$ <leestava também em Paris$ V3amo+nos sempre$ [s vezes sa3amos da cidade$ Lamos passar odia a .ontainebleu, Vincenas, "ougival, para o campo$ 2 Primavera era serena e tépida$ -áestavam floridos os lilases$ (evávamos um cabazinho da Lndia com fruta, num leito defolhas de alface$ I3amos como noivos$$$ Havia trAs meses que estávamos em Paris: o conde; creio que o disse ; estava na <scócia com 4orde /renleY caando a raposa nas tapadasdo pr3ncipe de "eaufort$

Houve então um baile no Hotel de Ville, um desses bailes oficiais em que uma multidão depraa pública se acotovela sob os lustres, brutalmente$ 0inha eu acabado de danar umavalsa com um coronel austr3aco, quando a viscondessa de ($$$, que vivia então em Paris,veio a mim, toda risonha$ + 7onheces este nome: miss horn? ; >ão$ ma americana?+ma irlandesa$ ma maravilha, 5 perfeito danou com ela: a condessa Xalevs]a bei*ou+ana testa$ /ustavo @oré prometeu+lhe um desenho$ Vai ser apresentada nas 0ulherias$ >ofim, queres que te diga? 2cho+a insignificante$ "onitos cabelos, sim$ >ão se fala noutracoisa= Cas tu deves conhecA+la$$$

; PorquA?+ 0em danado com 7aptain IYtmel, parecem 3ntimos$ 0u ris? ; <u? ; >ão$$$tu riste=+ >unca rio, senão quando quero chorar, minha querida=

; Tiens1 tiens= ; murmurou ela olhando muito para mim$ < afastou+se$ 5 meu pobrecoraão ficou em desordem$ [s vezes, na nossa alma, toca+se de repente a rebate, e asdesconfianas adormecidas, acordam, tomam as suas armas, e fazem sobre nós um fogocruel$ 7aptain IYtmel apro#imara+se$

; Vem radiante ; disse+lhe eu$ ; 1uem é miss horn? <le respondeu, gravemente: ; M aamiga 3ntima da minha irmã$ .omos danar$ <ra uma quadrilha$ Pareceu+me triste$ 5smovimentos da dana lembravam+me as cerim6nias de um culto$ 5 meu ramo ficouespalhado pelo chão$ >esse instante, sem saber porquA, detestei Paris, o ru3do, o império)dese*ei as sombras de intra, os retiros melancólicos de "elas, cheios dos murmúrios daágua$

1uis sair$ >uma das últimas salas uma mulher alta, loura, tomava das mãos de um velhoe#tremamente magro e distinto a sua sortie de ball $ 7aptain IYtmel, que me dava o brao,inclinou+se ao passar *unto dela, e falando bai#o para mim:

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; Miss horn= ; disse ele$ <ra realmente linda$ /randes cabelos louros, fortes, luminosos)os olhos largos, inteligentes, sérios) um corpo perfeito$

>essa noite chorei$ >o meu quarto as luzes e o fogão estavam acesos$ <ntrei, fui aoespelho precipitadamente$ @ei#ei cair dos ombros o burnous$ <rgui a cabea, olhei a medo$2 minha imagem aparecia ao fundo do quadro num vapor luminoso$ 2chei+me feia$ 5lheimais$ 0inha os braos nus, a cabea erguida em plena luz$ (entamente a consciAncia deque eu estava linda assim, penetrou+me, encheu+me de alegria$ M tão bom ser linda=

@ali a dois dias houve uma revista militar no campo de 4ongchamps$ 7aptain IYtmelacompanhou+me$ <u tinha um lugar na tribuna do  oc(e* $ Havia uma enorme multidão$<stava a impera triz, a corte, a diplomacia ; a tribuna resplandecia de fardas, de *óias, deplumas, de refle#os de seda$ 5s regimentos tinham comeado a desfilar$ 2s músicas, osclarins, o rufar altivo dos tambores, o surdo ru3do dos batalh4es em marcha, o luzir dasbaionetas, as vozes de comando, o galopar dos cavalos, o brilho dos capacetes, o céuresplandecente, como um largo pavilhão azul, tudo fazia palpitar, dava estranhossentimentos de guerra e de glória$ < todo o corpo estremecia quando aquelas poderosasmassas de gente passavam gritando:

; Viva o &mperador= ou uma pobre mulher, mas estremeci também= 2 infantaria tinhapassado$ IYtmel fora falar com miss horn, que estava em companhia de (adY (Yons$ 5barão Xerther, embai#ador da Prússia, ficara colocado *unto dela$ &a passar a artilharia e a

cavalaria$ 5 &mperador, com o seu <stado+Caior, tinha vindo colocar+se ao pé da tribunado oc(e* $ >ós todos nos inclinávamos para ver os generais que o cercavam: Contauban, oque tomara Pequim) 7anrobert com os seus longos cabelos brancos) a espessa figura de"ezaine) o altivo perfil trigueiro de Cac+Cahon, que viera da 2lgéria$$$

Miss horn era também muito olhada na tribuna do  oc(e* $ @izia+se que a &mperatriz lhetinha sorrido e que madame de 0alouet lhe mandara, sem a conhecer, um ramo devioletas do pólo$

Cas os olhos comeavam a voltar+se para o fundo da plan3cie, de onde a cavalaria deviapartir, e corria um arrepio de entusiasmo perante um tão grande poder militar$ >essamanhã falava+se em certas reservas entre o gabinete de "erlim e as 0ulherias$ (embrava+se adova, mil coisas que eu não sei) e olhava+se muito para o barão Xerther, que sorriacom o seu túmido sorriso prussiano$

>o entanto, a cavalaria formara em linha$ 5s clarins tocavam, as bandeiras desdobravam+se) e de repente aquela enorme massa despediu ! carga cerrada do fundo do campo paraa tribuna do oc(e* $ 5s capacetes, as couraas, as espadas, faiscavam ao sol$ 5 chão tremiasob o compasso do galope$ entia+se *á o tinir dos ferros$ @istinguiam+se *á os coronéis,esbeltos moos condecorados$ 5uvia+se o respirar ofegante dos cavalos$ 5 &mperador

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tinha+se descoberto, todos na tribuna estavam de pé$$ @e repente, por um movimentoúnico, toda aquela enorme coluna estacou firme, vibrante, imóvel, reluzente, agitando as

espadas, e gritando: + rra= Viva o &mperador=2 tribuna, de pé, respondeu: ; Hurra=

<ntão, vendo uma tão admirável cavalaria, uma tão grande fora, tanto prestigio imperial,e tomados do indomável orgulho das tradi4es ou possu3dos da febre do sangue militar,muitos oficiais, que estavam nas outras alas, adiantaram+se, e elevando as espadas,gritaram:

; 2 "erlim= a "erlim= Por todo o campo se ouviam agora gritos e#altados: + 2 "erlim= a"erlim=

< na tribuna algumas vozes clamavam também: + im, sim, a "erlim= 5 &mperador então,erguendo+se nos estribos, estendeu a mão aberta como impondo silAncio, ou comodizendo: <sperai= 2quele grito inesperado todo o Estado-maior   se tinha aperta do emtorno do &mperador, e eu, que estava nos primeiros bancos da tribuna, vi o marechal Cac+Cahon deter subitamente o cavalo, voltar meio corpo rapidamente, e com a mão apoiadano #airel escarlate bordado a ouro, que cobria a anca do animal, erguer os olhos meiorisonhos para o lado da tribuna em que estava o embai#ador da Prússia$ <u segui o olhardo marechal, olhei também e vi$$$como hei de dizA+lo? Vi IYtmel$ Vi+o *unto de miss horn,curvado, falando+lhe, sorrindo+lhe, absorto, afogado na luz dos seus olhos$ <la olhava+o,e#tremamente séria, com um longo olhar de morado e convencido, em que eu vi todo ofim da minha vida=

72P_0(5 N 

@a3 a dez dias o conde chegou) partimos para Portugal$ @urante esse tempo que aindaestive com IYtmel em Paris, nem eu tra3 as minhas dúvidas, nem ele mostroupreocupa4es alheias aos interesses do nosso amor$

Vim para (isboa) recebia regularmente cartas dele$ <studava+as, decompunha as frasespalavra por palavra para encontrar a oculta verdade do sentimento que as criara$ <terminava sempre ; meu @eus= ; por descobrir uma serenidade gradual no seu mo dode sentir$ IYtmel escrevia+me com muito esp3rito e com muita lógica para poder p6r ocoraão no que escrevia$ <videntemente, o seu amor passava da pai#ão para o racioc3nio$7riticava+o: prova de que não estava dominado por ele$ 0inha até *á palavras engenhosas eliterárias$ Valia+seda retórica= 2o mesmo tempo a sua letra tornava+se mais firme) *á nãoeram aquelas linhas tortas, convulsivas e arrebatadas que palpitavam, que me envolviam$$$<ra um infame cursivo inglAs, pausado e correto$ -á me não escrevia como dantes em

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papel de acaso, em folhas de carteira, em pedaos de cartas velhas, que denotavam asinspira4es do amor, os sobressaltos repentinos da pai#ão) escrevia+me em papel Caquet,

perfumado= Pobre querido, o que o seu coraão tinha de menos em amor tinha de mais oseu papel em marechala= < eu? M talvez ocasião de falar aqui do meu sentimento$ @uvideifazA+lo$ >ão queria colocar o meu coraão sobre esta página como numa banca deanatomia$ Cas pensei melhor$ <u *á não sou alguém$ >ão e#isto, não tenhoindividualidade$ >ão sou uma mulher viva, com nervos, com defeitos, com pudor$ ou umcaso, um acontecimento, uma espécie de e#emplo$ >ão vivo da minha respiraão, nem dacirculaão do meu sangue: vivo abstratamente, da publicidade, dos comentários de quemlA este *ornal, das discuss4es que as minhas mágoas provocam$ >ão sou uma mulher, souum romance$

72P_0(5 Q 

>ão pense que digo isto com amargura$ 2 maior alegria que eu posso ter é a aniquilaãoda minha individualidade$ Por isso não tenho escrúpulos$ 2s almas e#tremamentedesgraadas são como as criancinhas: devem mostrar+se nuas$

2lém de tudo suponho que estas páginas podem ser uma revelaão proveitosa paraaquelas que este*am nas ilus4es da pai#ão$ 1ue me escutem pois=

ão DD horas da noite$ >este momento, quantas sei eu que sofrem, que esperam, quementem, possu3das de um sentimento, que pouco mais lhes dá do que a felicidade deserem desgraadas= 0u, minha pobre -$$$, mulher de discretos mart3rios a quem tantasvezes vi os olhos pisados das lágrimas= tu, pobre 0$$$, que tens passado a tua vida a tremer,a recear, a humilhar+te, a espreitar, e a fugir$$$, vós todas que estais envolvidas peloelemento cruel da pai#ão, quase fora da vida, e em luta com a verdade humana, vós todasescutai+me=

@esde que amei, a minha vida foi um desequil3brio perpétuo$ >ão era voluntariamenteque eu cedia ! atraão, era com uma repugnBncia altiva$ Cil coisas choravam dentro emmim, sofria sobretudo o orgulho$ <ra imposs3vel fazer com ele uma conciliaão$ Ieagiusempre, protesta ainda$ Parece vencido, resignado, mas de repente ergue+se dentro demim, esbofeteia+me o coraão$

5 que eu sofri= 5 que eu corei= 7orei diante da minha pobre -oana, da minha velha ama,um an*o cheio de rugas, que sabe sobretudo amar quando tem de perdoar= 7orava diantedas minhas criadas$ -ulgava+me feliz quando elas me sorriam, tremia quando lhes via oaspecto sério$ @ava+lhes vestidos, ensinava+lhes penteados$ aiam !s vezes de tarde,recolhiam alta noite) eu corava profundamente no meu coraão, e sorria+lhes$

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5 olhar dos homens era+me insuportável: parecia+me envolver uma afronta$ &maginavaque era pública a aventura do meu coraão, que era *ulgada como uma criatura de pai#4es

fáceis, o que dava a todos o direito de me fazerem corar$ 1uantas vezes sa3 do teatroafogada em lágrimas= 2nalisava os gestos, os olhares, os movimentos dos lábios$ %.ulanaolhou+me com desdém= 2quele$ riu+se insolentemente, quando eu passei= 2queloutraafetou não me ver$' e numa modista, ao escolher um vestido, me diziam: %<sta cor éalegre, é bonita=' eu pensava comigo: %"em sei, aconselham+me as cores vivas, ruidosas,as cores do escBndalo, o gAnero artiste=' < sa3a, fechava os stores do meu coupé, choravadesafogadamente$

>ão me atrevia a bei*ar uma criana) olhava+a com uma ternura inefável, ia a tomá+la nosbraos, mas dizia comigo: %@ei#a esse pobre an*inho, não és bastante pura para lhe tocar=

@evo dizer tudo$ 7orava diante do meu cocheiro= orria+lhe com o maior carinho: temia atodo o momento uma má resposta, uma audácia, uma palavra acusadora$ 1uando euentrava para a carruagem, e de se erguia respeitosamente, eu ficava tão satisfeita daquelaprova de atenão, que tinha vontade de o abraar$$$

2cha odioso, não? @efino o meu estado por uma palavra precisa e terr3vel: quando meumarido me apertava e#pansivamente a mão, eu sofria tanto como se o outro meatraioasse=

2i de mim= 1uantas vezes quis eu consolar o meu orgulho, pensando nas glórias

dramáticas do sofrimento e do mart3rio= 1uantas vezes me comparei !s figuras l3ricas dapai#ão, que contam as legendas da sua dor ao ru3do das orquestras, ! luz das rampas, eque são Traiata, 4Bcia, Elira,  "mélia, Margarida,  ulieta, Desdémona= 2i de mim= Casonde estavam os meus castelos, os meus pa*ens, e o ru3do das minhas cavalgadas? mapobre criatura que vive da e#istAncia do 7hiado, que veste na 2line, que glorifica4es podedar ! sua pai#ão?

< depois é cruel, e é foroso dizA+lo: há sempre um momento em que uma mulherpergunta a si mesma se realmente são as grandes qualidades morais do seu amante que adominaram$ Porque então haveria *ustifica4es$ < há uma profunda humilhaão em nossa

consciAncia quando nos chegamos a convencer de que, se ama mos um homem, não foi sóa nobreza das suas ideias e o ideal dos seus sentimentos que nos dominaram, mas um não+sei+quA, em que entra talvez a cor do seu cabelo e o nó da sua gravata$ e*amos francas:para que havemos de disfarar a pequenez estreita das nossas inclina4es? Para quehavemos de colorir de ideal a origem vulgar das nossas preferAncias? >ão quero dizer queas eleva4es morais não se*am um au#iliar poderoso ! simpatia instintiva) mas o que narealidade nos domina é o e#terior de um homem$ 1ue todas as que lerem estasconfidAncias dolorosas se consultem no silAncio do seu coraão e digam o que determinounelas a sensaão) se foi o caráter ou se foi a fisionomia$ < as que forem francas dirão quena sua vida influiu talvez mais a cor de um fraque, do que a elevaão de um esp3rito$

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im, digo+o francamente, daqui deste canto do mundo, em que o ru3do das coisas tem osom oco da tampa de um esquife) os desvarios do coraão em nós outras, nada os absolve,

quase nada os e#plica$.ui nova) tive, como todas, as minhas horas de tédio assalta das de quimeras) tive os meusromances 3ntimos, que nasciam, sofriam, morriam entre duas flores do meu bordado$ 7rieiaventuras, dramas apai#onados e fugas dramáticas aconchegadamente encolhida naminha poltrona, ao canto do fogão$ 7onheci mais tarde muitos caracteres femininos e ahistória de muitas sensibilidades$

<#perimentei eu também os sobressaltos da pai#ão ; e nunca vi, nunca soube que estasimagina4es, que estas atra4es nascessem de uma verdade da natureza, da lógica dascircunstBncias, da irreparável aão do coraão$ Vi sempre que sa3am de um pequenomundo efAmero, romBntico, literário, fict3cio, que habita no cérebro de todas as mulheres$Ve*o+o daqui a sorrir$$$ >ão se admire de me ver falar assim$ (embra+se daquelasconversa4es tão 3ntimas e tão sérias na rua de$? (embra+se do terrao de !larence-/otel ,em Calta, quando a (ua silenciosa cobria o mar? >ão se recorda das minhas ideias então edaquelas imagina4es que eu denominava gloriosamente os meus sistemas? >ão selembra que me chamava então filósofo louro? 5 filósofo sentiu, chorou, sofreu, teve porisso o melhor estudo$ 1ue maior ensino que as lágrimas? 2 dor é uma verdade eterna, quefica, enquanto as teorias passam$ >ão imagina o que tenho aprendido da vida desde quesou desgraada= >ão imagina quantas ideias retas e precisas saem das incoerAncias do

pranto= Por isso ho*e não creio em certas fatalidades, com que as mulheres pretendemesquivar+se !s responsabilidades$ >ão creio no que se chama teatralmente as fatalidadesda pai#ão$ 2 vontade é tudo) é um tão grande princ3pio vital como o ol$ 7ontra ela asfatalidades, as febres, o ideal, quebram+se como bolas de sabão$

Iespondem+me chorando: a fatalidade= Cas, meu @eus= tomemos um e#emplo ; aaventura trivial, a comum, o que se pode ria chamar a aventura+tipo, o que se vA todos osdias, em qualquer rua, no primeiro número par ou 3mpar$$$ a aventura que nósacotovelamos no passeio, que toma conosco neve na 7onfeitaria &ta liana, e que se enterraao pé de nós no 2lto de $ -oão$

2 cena é simples, de trAs personagens$ <u, por e#emplo, sou a mulher$ Ceu marido é umhomem honesto e trabalhador$ 7ansa +se, luta, prodigaliza+se: logo de manhã sai para oseu escritório, ou para o seu *ornal, ou para o seu oficio, ou para o seu ministério) cerceia oseu sono, almoa ! pressa, quebra o seu descanso$ 0odo ele é atenão, vig3lia, trabalho,sacrif3cio$ Para quA?

Para que os nossos filhos tenham uns bibes  brancos, e uma ama asseada) para queasminhas cadeiras se*am de estofo e não de pau) para que os meus vestidos se*am de seda

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e talhados na Carie, e não de chita e cosidos pelas minhas mãos, de noite, a um candeeiroamortecido$

Ceu marido é um homem honesto, simpático, sério, afável$ >ão usa pó+de+arroz, nembrilhantina, não tem gravatas de aparato, não tem a e#trema elegBncia de ser moo deforcado, não escreve folhetins) trabalha, trabalha, trabalha= /anha com o seu cansao,com os seus tédios, em horas pesadas e longas, o *antar de todos os dias, o vestuário detodas as esta4es$ 2 sua consolaão sou eu, o centro da sua vida sou eu, o seu ideal e o seuabsoluto sou eu= >ão faz poemas romBnticos, porque eu sou o seu poema 3ntimo, a musados seus sacrif3cios) não tem aventuras porque a3 sou a sua esposa) não tem viagensgloriosas pelos desertos nem o prest3gio das distBncias, porque o seu mundo não é maiordo que o espao que enche o som da minha voz) não ganhou a batalha de adova mas

ganha todos os dias a terr3vel e obscura batalha do pão dos seus filhos$$$M *usto, é bom, édedicado$ @orme profundamente porque o seu cansao é leg3timo e puro) gosta da suarobe-de-chambre porque trabalhou todo o dia$ -ulga+se dispensado de trazer uma flor naboutonniére porque traz sempre no coraão a presena da minha imagem$ Pois bem= 1uefao eu?

2borreo+me$ (ogo que ele sai, abro um romance, ralho com as criadas, penteio os filhos,tomo a boce*ar, abro a *anela, olho$

Passa um rapaz, airoso ou forte, louro ou trigueiro, imbecil ou med3ocre$ 5lhamo+nos$ 0raz

um cravo ao peito, uma gravata com plicada$ 0emo cabelo mais bonito do que o do meumarido, o talhe das suas calas é perfeito, usa botas inglesas, pateia as danarinas= <stouencantada= orrio+lhe$ Iecebo uma carta sem esp3rito e sem gramática$ <nlouqueo,escondo+a, bei*o+a, releio+a, e desprezo a vida$

Canda+me uns versos ; uns versos, meu @eus= e eu então esqueo meu marido, os seussacrif3cios, a sua bondade, o seu trabalho, a sua doura) não me importam as lágrimas nemas desespera4es do futuro) abandono probidade, pudor, dever, fam3lia, conceitos sociais,rela4es, e os filhos, os meus filhos= tudo ; vencida, arrastada, fascinada por um sonetoerrado, copiado da /rinalda= Iealmente= M a isto, minhas pobres amigas, que vós chamais

; fatalidade da pai#ão= <, no entanto, como corresponde ele a este sacrif3cio terr3vel?

7omo tem uma aventura, não pode ocultar a sua alegria, toma ares misteriosos, provocaas perguntas) compromete+me) dei#a+me para ir esperar os touros em intimidadesignóbeis) mostra as minhas cartas em cima da mesa de um café, ao pé de uma garrafa deconhaque) *ura aos seus amigos que me não ama, e que é ; para se entreter) e se meumarido o chicotear nomeio do 7hiado, como é vil, cobarde, vulgar e imbecil, irá quei#ar+se! "oa Hora=

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Et oilá D& uan= >ão= M necessário demolir pelo rid3culo, pela criatura, pelo chicote e pelapol3cia correcional, esse tipo indigno que se chama o conquistador$ 5 conquistador não

tem atraão, nem beleza, nem elevaão, nem grandeza como tipo ; e como homem nãotem educaão, nem honestidade, nem maneiras, nem esp3rito, nem toilette, nemhabilidade, nem coragem, nem dignidade, nem limpeza, nem ortografia$$$ Perdoe+me, meuprimo, estas e#alta4es$ ou impressionável, vou como se costuma dizer ; atrás da frase$<squeo !s vezes as minhas dores modernas, para me lembrar das minhas velhasindigna4es$

< pensa que, por condenar estes amores triviais, eu me absolvo a mim? >ão$ 2pesar de teramado um homem de todo o ponto e#celente, cu*a superioridade de esp3rito o meu primoconhecia e amava, de uma distinão tão perfeita e tão completa) posto que a nossa

afeião tivesse vivido num meio tão elevado, tão nobre, tão altivo ; apesar de tudo, eutenho+me por tão condenável como aquelas de quem falei ; e *ulgando+me sem *ustia efora da graa fao penitAncia diante do mundo$

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< quanto, quanto sofri então, na modéstia da minha vida, no apartamento do meusegredo= 1uanto dese*ei ser uma pobre costureira que leva o seu filho pela mão= @entrodo meu coupé, pu#ado a largo trote ! sa3da do teatro, envolvida num cachemire, com umapele de marta nos pés, e um aro ma doce na seda das almofadas, quantas vezes inve*ei aspequenas burguesas que sa3am das torrinhas, embrulhadas em disformes mantas deagasalho, pisando a lama= >o dia em que recebia as cartas dele, sa3a de (isboa, fugia, iapara o campo= (evava as, amarrotadas e bei*adas, ia para a quinta de$$$, penetrava nassombras espessas, ali ficava longo tempo, envolta no calor tépido do sol, entorpecida pelorumor sereno das ramagens, e pelo murmuroso correr da água nas bacias de pedra=

5h doce vida das árvores e das plantas= passividade da relva, irresponsabilidade da água,pac3fico sono dos musgos, suave pousar da sombra= 1uantas vezes me consolastes, e meensinastes a sofrer calada= 1uantas vezes inve*ei a imobilidade do vosso ser=

<ra ali só, relendo essas cartas cruéis, que eu sentia o amor daquele homem fugir+mecomo a água de um regato que se quer to mar entre os dedos$

1ue me restaria então? Voltar outra vez ! serenidade leg3tima da vida? >ão podia, ai demim= <stava para sempre e#pulsa do para3so pac3fico da fam3lia, da casta sombra do dever$(anar+me nas aventuras e na re volta? Ceu @eus= &sso repugnava+me tanto ao meucaráter como o contato de um animal viscoso ! pele do meu peito$

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.icava, pois, sem situaão na vida$ >ão tinha nela um lugar definido$ <ntrava nessa legiãodolorosa e tristemente miserável ; das mulheres abandonadas$

2 minha única honestidade agora devia ser conservar+me cativa daquele sentimento$ 2minha única absolvião estava na verdade da minha pai#ão$ 1uanto mais me separasse domundo e me desse ao meu amor) mais me apro#imava da dignidade$ >as situa4esdefinidas e cora*osas há sempre um lado honesto) o que repugna ao instinto casto são asconcilia4es hipócritas$ 2 posião que me restava, o dever que me restava, a virtude queme restava, era ser de IYtmel, só dele e para sempre: e eu sentia que ele se ia lentamenteafastando de mim como eu me afastava de meu marido$ <ra a minha entrada na e#piaão$

>estes amores, o castigo não vem só do mundo: eles mesmo contAm os elementos da *ustia cruel$ 5 coraão é o primeiro castigado pela mesma pai#ão$ 2 punião da faltacontra a honra vem mais tarde pelos *u3zos dos homens$

<u estava diante da maior miséria moral em que se pode encontrar uma mulher nestascondi4es lamentáveis$ <u amava IYtmel, IYtmel queria casar$ 1ue faria, meu @eus? &riaem nome da minha pai#ão desviar aquela e#istAncia de homem, da linha natural, simples,humana, que leva ao casamento, ! fam3lia, ao dever?

@evia eu impedir que ele casasse? Cas não era isto impedir, abafar a legitima e#pansão dasua vida? >ão era proscrevA+lo das fecundas e serenas alegrias da fam3lia, para o ter presonos ásperos, nos estéreis sobressalto e de uma pai#ão romBntica?

0inha eu o direito de sequestrar aquele homem para uso e#clusivo do meu coraão,encarcerá+lo dentro de uma ligaão ileg3tima e secreta, onde ele se esterilizaria, onde osseus talentos e as suas qualidades se enferru*ariam como armas inúteis, e toda a sua aãosocial se limitada a seguir o frufru dos meus vestidos? >ão dava isto ao meu sentimentoum aspecto de ego3smo animal? >ão tirava isto ao meu amor a melhor qualidade: avirtude do sacrif3cio?

Poderia eu privá+lo de ter um dia os filhos, que fossem a continuaão do seu ser e a suaimortalidade? Podia eu privá+lo em nome do meu ideal de ter na velhice aquela doce e

branca companheira, sob cu*o olhar pac3fico, o homem *usto espera, sossegado, o nobremomento da morte?

< era só isto?$$$ Pode um esp3rito sincero acreditar na duraão destes amores e#altados,feitos de sensibilidades e de mart3rios, que não tAm o dever por base, e tAm a traião pororigem? < por dois ou trAs anos mais que esta aventura continuaria, tinha eu o direito de irquebrar o destino da outra, dela, pobre rapariga, que o amava, que edificava a sua vidasobre o coraão dele, que se preparava para ser no lar, e para sempre, a presena da graae a consciAncia viva? >ão: isto não podia ser$

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Cas por outro lado, era *usto que eu, tendo sacrificado por ele tudo, desde o pudor 3ntimoaté ! honra social, fosse agora arremessada como uma luva velha?

<u que tinha sido tudo quando se tratava da sua imaginaão, não seria nada agora porquese tratava do seu interesse? >ão me e#ilara eu por ele, do para3so doméstico? Por ele nãorenunciara !s alegrias pac3ficas da vida, e ! sublime esperana de uma morte digna? 7omoeu tinha sacrificado por ele a honra de um homem, não podia ele sacrificar por mimasesperanas romanescas de uma criana? <ra *usto ter+me trazido enganada, envolvida,como num arminho, nas aparAncias do amor, ter+me conduzido com os olhos vendados,atra3da, suspensa do ritmo dos seus passos, a um lugar perigoso, a uma situaãointolerável, e chegando a3 dizer+me: %2deus, agora= <u vou para a felicidade$ 0u, fica) mascuidado, que para trás não podes voltar) e se deres um passo para diante, vais abismar+te

na infBmia='$ >ão, isto não deve ser) o amor não é uma criaão literária, é um fato danatureza: como tal produz direitos, origina deveres$ < os direitos do amor não os abdico$

Pois quA= Por causa da outra= Hei de dar tamanha consideraão !s lágrimas que choramdois olhos alheios, que nunca vi, que estão a duzentas léguas de distBncia e não hei deapiedar+me das minhas lágrimas, que escorrem aqui na minha face, e que eu aparo natremura das minhas mãos=

%Ms casada', dizem+me$ 5 quA= Porque perdi mais, devo ser atendida menos= <u, que vivoquase fora do mundo, sem estar ligada a nenhuma destas coisas superiores que amparam

a vida, suspensa sobre a morte por um leve fio, por este amor único, é por isso que devo ircom as minhas mãos quebrar esse fio, quebrar esse amor= Há algum direito humano quee#i*a isto de mim? Há alguma piedade que o ve*a friamente? Há alguma consciAncia que o

 *ustifique? e há, essa consciAncia poderia ensinar a serem duros os rochedos do mar=Cas, meu primo, tudo isto é aqui, neste papel em que lhe escrevo$ Porque na realidade eunão podia lutar com ela= <la era a miss, a que havia de ser esposa e mãe ; vencia tudo=<levava+se sobre as velhas afei4es, sobre os velhos erros, como a imagem da Virgemsobre o globo feito de barro e de lama, onde se enrosca a ser pente$

>em tentei lutar= < foi por esse tempo que recebi uma carta em que ele me dizia: Parto

para Portugal$ 1ue vinha fazer? 5 que era? Vinha despedir+se de mim? Vinha ver asminhas agonias? Vinha consolar+me? Vinha convencer+me? Vinha de novo dar+se cativo aomeu amor?

Vinha$ >em ele mesmo sabia mais nada=

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IYtmel chegou$ 2 primeira vez que o vi foi em minha casa$ 5 conde estava então em"ru#elas$ <ra noite e na minha sala de música achavam+se reunidas algumas pessoas: a

marquesa de$$$, velha legitimista, que fora a graa da corte toureira de @$ Ciguel) ovisconde de$$$, moo insignificante e vagamente louro, que eu acolhia bem, porque suairmã, que morrera, fora a minha 3ntima, a minha confidente de colégio$ Viera também aviscondessa de$$$, pequenita criatura petulante e med3ocre, que tinha a graa de ter vinteanos, *unta com a de graa de os não saber ter, e cu*a especialidade era o querer parecerprofundamente perversa, quando era apenas perfeitamente incaracter3stica$ Cas ao pé demim, sentado num sofá com um abandono asiático, estava um homem verdadeiramenteoriginal e superior, um nome conhecido ; 7arlos .radique Cendes$ Passava por serapenas um e#cAntrico, mas era realmente um grande esp3rito$ <u estimava+o, pelo seucaráter impecável, e pela feião violenta, quase cruel, do seu talento$ .ora amigo de 7arlos

"audelaire e tinha como ele o olhar frio, felino, magnético, inquisitorial$ 7omo "audelaire,usava a cara toda rapada: e a sua maneira de vestir, de uma frescura e de uma graasingular, era como a do poeta seu amigo, quase uma obra de arte, ao mesmo tempoe#ótica e correta$ Havia em todo o seu e#terior o que quer que fosse da feião romBnticaque tem o atã de 2rY cheffer, e ao mesmo tempo a fria e#atidão de um gentleman$0ocava admiravelmente violoncelo, era um terr3vel *ogador de anuas, tinha via*ado no5riente, estivera em Ceca, e contava que fora corsário grego$ 5 seu esp3rito tinha umimprevisto profundo e que fazia cismar: fora ele que dissera da pálida duquesa de CornY:elle a la b2tise melancoli8ue dAun ange$ 5 imperador citava muitas vezes este dito, comosendo con*untamente a critica profunda de uma fisionomia e de um caráter$

7arlos .radique tinha por mim uma amizade elevada e sincera$ 7hamava+me seu queridoirmão$ 7onhecia+me desde peque na, andara comigo ao colo$ <m Paris tornou+se célebre)era o que se poderia chamar um filósofo de bouleard $ 0inha sido lAami de coeur   deIigolboche, e quando ela rompeu por se ter apai#onado por 7apoul, 7arlos .radiquedei#ou+lhe no álbum uns versos quase sublimes, de um desdém cruel, de um c6micolúgubre, uma espécie de Dies irae do dandismo$$$ Prometia a Iigolboche que quando elamorresse ele velaria para que ainda além do túmulo ela vivesse no chique, sentindo Parisna sepultura$ 2lgumas das estrofes que ele traduziu para mim, e que depois se publicaram,fizeram sensaão e escola$$$

E eu 8Binda te amo1 C pálida canalhaue sou gentil e bom1Far-te-ei enterrar numa mortalhaTalhada ? 9enoiton3)rei ? noite com Marie 4ari%e15énus do macadam1Fa<er sentir ao pC do teu es8ui%e,s gostos do cancan&&&

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E no tempo das courses1 pAlo 5er$o "ssim to 0uro eu

)rei dar parte ? tua podrid$oSe o .ladiador enceu&&&

<ram dez horas$ 7arlos .radique, com uma voz impass3vel, quase lBnguida, contava assitua4es monstruosas de uma pai#ão m3stica que tivera por uma negra antropófaga$ 2 suaveia, naquele dia, era toda grotesca$ + 2 pobre criatura ; dizia ele ; untava os cabeloscom um óleo ascoroso$ <u seguia+a pelo cheiro$ m dia, e#altado de amor, apro#imei+medela, arregacei a manga e apresentei+lhe o brao nu$ 1ueria fazer+lhe aquele mimo= <lacheirou, deu uma dentada, levou um pedao longo de carne, mastigou, lambeu os beios epediu mais$ <u tremia de amor, fascinado, feliz em sofrer por ela$ ufoquei a dor, e

estendi+lhe outra vez o brao$$$

; 5h= r$ .radique= ; gritaram todos, escandalizados com a invenão monstruosa$ +7omeu mais ; continuou ele gravemente +, gostou e pediu outra vez$

.alava com um sorriso fino, quase beatifico$ >ós 3amos revoltar+nos contra a cruele#centricidade daquela história$ >este momento vi ! porta da sala, trAmula, com umgrande espanto nos olhos, chamando+me bai#o, a minha criada "ettY$ .ui: ela tomou+mepela mão, foi+me levando, e no corredor, olhando com receio, abrindo num grande pasmoos braos, disse+me ao ouvido:

; M ele= <ncostei+me desfalecidamente ! parede, sentindo parar o coraão$ "ettY, compassos discretos, foi abrir a porta do meu toilette$ <ntrei$ @e pé *unto de uma mesa,e#tremamente pálido, estava ele$ 2pertei as mãos sobre o peito, fiquei imóvel, suspensa$<le caminhou para mim com os braos abertos, para me envolver) eu dei#ei+me cair aosseus pés e, calada, bei*ei+lhe os dedos$ <le tinha a*oelhado comigo, e com as mãosenlaadas, os olhos confundidos, chorávamos ambos$ <u só dizia num murmúrio delágrimas:

; Há tanto tempo=$$ + Cinha senhora, minha querida menina ; dizia "ettY da porta +, eaquela gente, santo @eus, que há de dizer=?

<u não a escutava$ .oi ele que disse sorrindo: + 0em razão, "ettY, tem razão= M necessáriovoltar ! sala$

< deu+me o brao$ <ntramos: ele grave, eu meio desfalecida, abstrata, com os olhosmare*ados de lágrimas e um sorriso vago nas fei4es$ @isse o nome de 7aptain IYtmel, e asua antiga amizade com o conde$ Vi a marquesa sorrir levemente$ < voltando+me paraIYtmel:

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; 5 sr$ 7arlos .radique ; disse eu +, antigo pirata$ 5s dois homens apertaram a mão$ + 2senhora condessa lison*eia+me e#tremamente$ <u fui apenas corsário ; disse

7arlos$ entei+me ao piano acordando, a fugir, o teclado$ 2ssim via bem IYtmel$ 2 luzenvolvia+o$ <stava mais pálido, o seu rosto apresentava linhas mais graves$ 2 testa tinhaperdido a sua pureza: havia uma ruga estreita e funda que a dominava$ .radiquecontinuava falando$ 2gora fazia a critica das mulheres do >orte$

; 2 irlandesa ; dizia ele ; tem, mais que nenhuma mulher, a graa$$$ obretudo a quevive *unto dos lagos= 2 melhor religião, a melhor moral, a melhor ciAncia para um esp3ritofeminino ; é um lago$ 2quela água imóvel, azul, pálida, fria, pac3fica, dá um e# tremorepouso ! alma, uma necessidade de coisas *ustas, um hábito de recolhimento e depensamento, um amor da modéstia e das coisas 3ntimas, o segredo de ser infinito sendomonótono, e a ciAncia de perdoar$$$ <#i*o, na mulher com quem casar, que tenha as unhasrosadas e polidas, e um ano de convivAncia com um lago=

<u vi IYtmel corar de leve e torcer nervosamente o bigode$ Pelo lúcido instinto da pai#ão,compreendi que entre aquela glorificaão dos lagos, e os ocultos pensamentos de IYtmel,havia uma afinidade$ (embrou+me a revista de

4ongchamps, os louros cabelos irlandeses de miss horn, e voltando+me para 7arlos.radique:

; Ceu caro amigo, um pouco do seu violoncelo, sim? 2 sala abria sobre os *ardins$ 2plácida respiraão do vento fazia arfar as cortinas$

7arlos .radique comeou a tocar uma balada das margens do mar do >orte, de umencanto singularmente triste$ entia+se o chorar das águas, o feérico correr das ondas, ocompassado bater dos remos de um pirata norvégio, a fria (ua$ <u tinha ido comIYtmelpara *unto da varanda, e enquanto a pequena melodia soava nas cordas dovioloncelo, lembravam+me as antigas coisas do meu amor, o 7eilão, as noites silenciosasem que ele me *urava a verdade da sua pai#ão e a voz do mar parecia uma afirmaãoinfinita) lembravam+me os terraos de Calta batidos da (ua, as moitas de rosas de

!larence-/otel , os prados suaves de Ville d`2vraY) via+o ferido, pálido sobre as suasalmofadas) via+o abordo do omantic  comandando as manobras da fuga, chorando osdesastres do amor$$$ < estas memórias embalavam+se no meu cérebro, confundidas com asmelodias do violoncelo$

72P&0(5 S

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2o outro dia eu devia encontrar+me com ele nessa fatal casa n$$$ .ui, como sempre, todavestida de preto, envolta num grande véu$ <stava e#tremamente pálida, palpitava+me o

coraão de susto$ <ra aquele um momento de transe$ <u decidira ter com IYtmel umae#plicaão clara, definitiva, sem equ3vocos$$$ ma palavra que ele dissesse, seca ouindiferente, um gesto impaciente, e eu considerar+me+ia como abandonada, e#ilada davida, retirava+me para um chalé na u3a, ou para -erusalém, ou para a melancolia de umclaustro no ul da .rana$ 0inha determinado assim a soluão do meu destino$

1uando cheguei ! casa n$$$ ele não estava ainda$ .iquei ali muito tempo, imóvel numacadeira$ 5s ru3dos da rua chegavam+me como no fundo de um sonho$ 2 sala tinha uma luzesbatida, através dos vidros foscos como os globos dos candeeiros$ <u sentia aquelaimpressão indefinida, que nos vem quando estamos durante muito tempo num lugar

sossegado e triste, olhando o silencioso cair da chuva$

@e repente a porta gemeu docemente, ele entrou$ Vinha do campo$ 0inha colhido paramim um pequenino ramo de flores miadas das sebes$ Veio apoiar+se nas costas da minhacadeira, e dei#ou+mas cair no regao$$$

@epois, falando+me bai#o, *unto da face: + 2ndei todo o dia a pensar em si, ! traerschamps$ >ão respondi, e com os olhos errantes nas cores do tapete, desfolhei cruelmenteas pequeninas flores dos prados$ 0inha um contentamento amargo em torturar aquelesdelicados seres, que vinham dele, e que me parecia terem dele aprendido a mentir$

; Pensei constantemente em si, e o passeio foi encantador ; repetiu com uma vozdocemente insistente$

<u ergui os olhos para ele$ + Iesponda+me: sabe mentir? ; Cas, meu @eus ; disse ele,afastando+se +, parece que me quer ho*e mal, minha querida filha= >ão respondi) mas omeu regao estava coberto de flores mutiladas$

<le então a*oelhou ao meu lado, e tomando+me as mãos, espreitando os meus olhosimpass3veis, ficou esperando, numa contemplaão amante e paciente, que eu quebrasseaquela imobilidade$ <u sentia todo o meu ser pender para ele, numa atraão insens3vel,

mas dominava+me$ 2té que por fim ele ergueu+se lentamente, arremessou o corpo paraum sofá, e ali ficou, como refugiado, folheando um volume de Cusset, que estava sobre amesa$$$

(evantei+me, tirei+lhe arrebatadamente o livro das mãos: + abe o que é? >ão ocompreendo, e é necessário que me diga, mas francamente, claramente, s3laba por s3laba,o que tem= >ão me ama, é claro$ <scusa de protestar$ Vi+o logo pelo tom das primeirascartas que me escreveu de (ondres$ < agora ve*o+o pelo seu olhar, as suas menorespalavras, o seu silAncio, até$ Há uma coisa qualquer, não sei qual, mas há$ 2 verdade é que

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me abando na, que me não ama$ M necessário que se e#plique$ &sto não pode ser assim$ofro$ e soubesse= 7horei toda a noite$$$ < recomecei a chorar diante dele, com soluos

que me quebravam$ <le tinha+me tomado as mãos e dizia+me bai#o as coisas maistocantes, em que havia as ternuras do amante e as consola4es do amigo$ 2fastei+o demim, e comprimindo o pranto: + >ão, não, é necessário que me diga claramente tudo$ <unão sei o que te quero perguntar ou não me atrevo talvez$$$ Cas tu sabes o que me devesresponder$$$ @iz+me a verdade$$$

<le, cruzando os braos, respondeu+me, com uma e#trema placidez: ; Cas, minhaquerida amiga, a verdade é que as ilus4es do seu esp3rito são a nossa desgraa$ >ão éculpa sua, sei: é uma fatalidade do caráter feminino$ M+lhes insuportável a serenidade$ >avida pac3fica procuram o romance, no romance procuram a dor$ M necessário que esses

pequeninos e graciosos crBnios tenham sempre a honra de cobrir uma tempestade$ 1uequer então que lhe diga? >ão vim a Portugal espontaneamente? >ão tem encontradosempre ao seu lado o meu amor, fiel como um cão? 1ue mais quer? 2cha+me reservado,diz$ < se eu tivesse as violAncias de 5telo, achava+me decerto rid3culo= @e resto, sabe+obem, amo+a= @igo+lho aqui, sentado num sofá, de sobrecasaca, numa casa que temnúmero para a rua, e vou aqui apouco, num coupé, *antar, *ogar tal vez o #adrez, vestir ;quem sabe? ; um robe-de-chambre= M lamentável tudo isto, bem sei$ < é por isto que nãotem confiana em mim? < diga+me francamente: se eu estivesse aqui nos paro#ismos de2ntonY, ou tivesse uma toilette  veneziana, ou se isto fosse uma abadia feudal, ou se eupartisse daqui para conquistar -erusalém, diga+me ; tinha mais confiana?

; 0udo isso não quer dizer nada$ + 5h, minha querida amiga$$$ ; 2 sua querida amiga ;interrompi ; nada mais pede que um coraão franco e reto$ ão tudo, pois, imagina4esminhas? >ão há nada que nos separe? Pois bem, vou dizer+lhe uma coisa, e *uro+lhe que éirremiss3vel, *uro que o digo em toda a frieza do meu *u3zo, sem e#altaão e sem pai#ão,com o discernimento mais livre, o cálculo mais positivo$$$ + Cas, meu @eus= @iga$$$

; < esta resoluão, aceita+a?+ ma resoluão$$$ < o que envolve ela? ; <nvolve a únicacoisa poss3vel, a única que me fará crer em si, com a mesma fé com que creio em mim$2ceita?+ Cas como não hei de aceitar?$$$

; Pois bem ; comecei eu$ < tomando+lhe as mãos, disse+lhe *unto da face numa voz ardente como um bei*o: ; .u*amos amanhã$ IYtmel empalideceu levemente e retirandodevagar as suas mãos de entre a pressão das minhas:

; < sabe que é uma coisa irreparável?+ ei$ <le sentara+se, com os olhos sobre o tapete, eeu no entanto, de pé *unto dele, com a minha mão pousada sobre o seu ombro, dizia+lhecomo num murmúrio de um sonho: + Pensava nisto há um mAs$ Vamos para >ápoles$Vamos para onde quiser$ 2doro+te$$$

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M como uma pessoa que se dei#a adormecer$ 2doro+te, e quero viver contigo$$$ Pousei+lhea mão sobre a testa, ergui+lhe a cabea, para ver a resposta dos seus olhos) estavam

cerrados de lágrimas$; Ceu @eus= IYtmel, tu choras$$$

; >ão, não, minha querida= <stava pensando em minha mãe, que não torno talvez a ver$$$2cabou+se$$$ 2mo+te, amo+te$$$ e$$$ 2vante=

< tomou+me nos seus braos, ardentemente, como selando um pato eterno$

72P&0(5 O 

.ui logo para casa, chamei precipitadamente "ettY$ ; "ettY ; disse eu fechando a portado quarto$ ; "ettY, de pressa, quero dizer+te uma coisa$ >ão me digas que não$$$

; anto @eus= ossegue, descanse, minha querida menina= -esus, como vem pálida= ;"ettY, é uma coisa irreparável$$$, devia ser$ .oi pensada a sangue+frio$ VAs como estoutranquila, sem e#altaão, sem nervos$ M uma resoluão digna$ "ettY, não me digas quenão=$$$ + Cas, minha rica senhora$$$

; >ão se podia voltar atrás$ @emais, sou feliz assim, tão feliz, tão feliz= ; "em feliz, aomenos?+ @oidamente$ < se não fosse assim, morria$$$

; Cas então$$$ + .ugimos amanhã$ <la estremeceu toda, deitou+me um grande olhar emque apareciam lágrimas, e sufocada, com as mãos *untas: + < eu?

2tirei+me aos seus braos$ ; Pois havias de ficar, "ettY? 0u vens conosco, "ettY$ <correndo pelo quarto, abria os guarda+vestidos, tirando roupas, batendo as palmas egritando: + 2rran*a, "ettY, arran*a tudo$ @epressa= 2rran*a=, arran*a=

Candei p6r a caleche$ <ram quatro horas$ @esci o 7hiado$ &a alegre, triunfava: a minha

vida aparecia+me, larga, cheia, esplAndida, coberta de luz$ <ntrei nas modistas, olhei,escolhi, comprei, com impaciAncias de noiva, e recatos de conspirador$ 2pertei a mão aalgumas amigas$ + Partes? ; perguntaram+me$

; Para .rana$ ; 7om a guerra?+ >ão há guerra$ <, havendo, não é interessante ver matarprussianos?=

[ porta do assetti, encontrei 7arlos .radique$ + abe que parto amanhã? ; disse+lhe eu$; abe que parto ho*e? ; respondeu+me$ ; &a lá, apertar+lhe a mão$ ; Cas é inesperadoisso= Vai para .rana? Para quA?+ Ver os campos de batalha ao luar, ou aos archotes$ @eve

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ha ver atitudes de mortos muito curiosas$ + Cas vai debalde$ >ão há guerra$ M positivo$ Porisso eu vou para &tália$

; Vai para &tália?$$$ Cas, então$$$ 2h= Vai para &tália? Cinha pobre amiga, quem sabe seisso devia ser= <m todo o caso, em qual quer parte, ou feliz, ou triste, para a consolar, oupara fazer um trio com o meu violoncelo, sou eu, adeso e sempre$ 2pertou+me a mão$ >ãosei porquA, aquelas palavras deram+me uma sensaão triste$ 1uis ir ao 2terro$ 2 tardeca3a$ 2 água tinha uma imobilidade luminosa$ @o outro lado os montes estavam esbatidosnum vapor azulado e suave$ obre o mar havia nuvens inflamadas, de uma cor fulva, comono fundo de uma glória$ 2lgumas velas passavam rosadas, tocadas da luz$ entia+mevagamente melancólica$ 5 rio, aquelas casas triviais, todos aqueles aspectos que euconhecia, que eram para mim até a3 quase ine#pressivos, apareciam+me, pela última vez

que os via, com uma feião simpática$ 0ive uma saudade piegas daqueles lugares: quissorrir, escarnecer) mas a verdade era que aquela paisagem, o pesado hotel 7entral, oterrao de 9ragan<a-/otel , a grosseira e escura Iua do 2rsenal, todas essas coisas alheiasa mim, me despertavam inesperadamente o dese*o instintivo de tranquilidade, de fam3lia,de situa4es pac3ficas, fazendo destacar no fundo da minha vida, num relevo negro, aaventura que eu ia intentar) e aparecendo+me como um a*untamento de velhos rostosamigos que se despedem, faziam+me pensar nas coisas irreparáveis, no e#3lio e na morte=

2 minha carruagem subia a passo a Iua do 2lecrim$ 2s luzes acendiam+se$ 5 céu estavaainda pálido$

ma senhora passou, só, a pé, levando uma criana pela mão: era uma mulher nova edistinta) parecia feliz$ 5 pequenino, louro, gordo, ria, palrava naquela linguagemmisteriosa e dote, que é o que ficou ainda na voz humana do abc do 7éu$

7omo seria bom ser assim uma mulher pac3fica, com um equil3brio suave no coraão, umatoilette  fresca, o amor das coisas *us tas, e um filho pela mão= e eu fosse assim seriaalegre, amável, passearia, daria bombons ao meu pequerrucho, trá+lo+ia vestido de coresleves, com uma flor no cinto) conversaria com ele, e ! volta, depois do cansao do meupasseio, amaria a tranquilidade da minha vida$ /randes borboletas brancas voariam em

Volta do candeeiro) eu, a*oelhada, procuraria despi+lo, sem o acordar, cantando, bai#o, emsegredo, uma melodia dormente de Cozart e no entretanto a pena do pai rangeria, a umcanto, sobre o papel$ 5 perfumados para3sos da vida= como eu me afasto de vós=

2ssim pensava, quando cheguei a casa$ >o meio do meu quarto estavam fechadas,afiveladas, sobrepostas as minhas malas$ 2o pé uma grande pele, apertada na sua correia$

0udo estava pronto, dev3amos partir na manhã seguinte$ 2s minhas ideias simplesdebandaram$

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enti um e#tremo dese*o de liberdade, de mares abertos, de pa3ses e#tensos e distantes,que se atravessam ao galope da posta ou na velocidade de um vagão$ <ra noite$ >ão pedi

luz$ 5 luar entrava no quarto através das árvores do *ardim$ entei+me ! *anela$2 minha situaão apareceu+me então com o prestigio de um belo romance$ Cilimagina4es e fantasias cantavam no meu cérebro$ entia+me ! entrada de uma vida deperigos, de A#tases, de glórias$ Via+me na tolda de um paquete entre os perigos de umnaufrágio: ou numa serra espessa, por um grande luar, numa companhia decontrabandistas que cantam ! Virgem) ou no silAncio de uma caravana escoltada debedu3nos, acampando no monte das 5liveiras, defronte de -erusalém$ Percorria a &tália)entraria nas cidades ao galopedos cavalos, ao acender o gás, quando a multidão enche oscorsos entre fileiras de altivos palácios da Ienascena$ Via+me em >ápoles, na baia, por

um luar calmo) dormindo sob as vinhas em Lsquia) ou na frescura das grutas do Paus3lipo,onde ainda choram as náiades$$$ 2porta abriu+se de repente, um criado entrou com umacarta$ >ão vi a letra do envelope, não olhei sequer, mas sentia+a= Veio luz$ <ra verdade, erade IYtmel= 0ive+alongo tempo na mão, incerta, trAmula$ Pu+la em cima da pedra de umaconsole, fui olhar+me ao espelho, vi+me pálida$ >o entanto a carta atra3a+me, parecia+meque luzia sobre o mármore branco$ 0omei+a, pesei+a, senti+lhe o aroma, e devagar,cansada, suspirando, com os braos vergados ao peso dela, fui+a lentamente abrindo$

72P&0(5 F 0ranscrevo te#tualmente essa carta terr3vel:

%1uerida: ; 0enho aqui no meu quarto, diante de mim, as minhas malas fechadas eafiveladas: 0enho o meu passaporte$$$ M verdade= >ão te esqueas de tirar o teu$ <screviaminha mãe$ <screvi a um amigo querido, que vive na intimidade da minha vida$ Por issobem vAs que te escrevo, na austera firmeza da tua resoluão$ ou só$ 5 meu destinotenho+o aqui preso na minha mão, como um pássaro, ou como uma luva: posso pousá+losobre a tolda de um paquete, p6+lo numa mesa de *ogo em cima de uma carta, colocá+lona ponta de uma espada, ou fechar+to na mão e dar+to$ Cas tu pelas condi4es da tua vidatens um lugar definido no mundo, limitado e circunscrito$ <stás presa, por um anel decasamento, a uma ordem de coisas, a um certo número de leis, e és na vida co mo umnavio ancorado no mar$ Por isso é *usto que antes de te se parares violentamente do teucentro leg3timo, eu, que tenho a e#periAncia das desgraa s, das viagens, e do espetáculodo mundo, te diga algumas palavras, que, se não me tornarem mais amado ao teucoraão, tornar+me+ão mais estimado ao teu caráter$ .ias+te de mais no amor, minha doceamiga= 2bstrai neste momento de mim, da minha honra e da minha fidelidade$ .alo doamor, lei ou mistério ou s3mbolo, fora natural ou invenão literária$ .ias+te de mais noamor= 2quele amparo superior, aquele apoio sólido e protetor, que todo o esp3rito procura

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no mundo, e que uns acham na fam3lia, outros na ciAncia, outros na arte, tu parecequereres encontrá+lo somente na pai#ão, e não sei se isso é *usto, se isso é realizável=

%7reio que te fias de mais no amor= <le não constrói nada, não resolve nada, comprometetudo e não responde por coisa alguma$ M um desequil3brio das faculdades) é o predom3niomomentBneo e efAmero da sensaão) isto basta para que não possa repousar sobre elenenhum destino humano$ M uma limitaão da liberdade) é uma diminuião do caráter)especializa, circunscreve o indiv3duo) é uma tirania natural, é o inimigo astuto do critério edo arb3trio$ < queres que tenha esta base a tua situaão na vida? < crAs na estabilidade doamor, tu?$$$ im, é poss3vel, enquanto ele viver do imprevisto, do romance e do obstáculo)enquanto necessitar do coupé de stores cerrados) mas logo que entre num estado regular,que se estabelea definitivamente para durar, que se organize, que se economize,

e#tingue+se trivialmente) e quando quer conservar +se, tem a miséria de se assemelhar !schamas pintadas de um inferno de teatro$ < então, desde o momento que o amordesaparecesse, que razão de ser tinha a tua vida, e que *ustificaão tinha que dar de si oteu incoerente destino? .icavas sem uma situaão definida) tudo te era vedado, ou pelafora das leis sociais, ou pela altivez da tua honra$ Iecuar para as coisas legitimas,arrepender+te, era imposs3vel: o arrependimento é um fato católico, não é um fato social$7ontinuar a persistir em viver pelo amor era um equ3voco hipócrita, e poderias um diaencontrar+te a viver na libertinagem$'&maginas ho*e que o amor é a única tendAncia, aúnica preocupaão da tua vida$$$ >ão: é apenas ideia dominante na tua natureza$ Háoutras e#igAncias, que ho*e não sentes clamarem dentro de ti, porque tAm sido

plenamente satisfeitas nomeio legitimo em que tens vivido) mas quando, mais tarde,estiveres retirada de tudo, fechada no amor como numa concha, sentirás então amargamente que te falta o quer que se*a que é a sociedade, a opinião, o centro de amizades, orang, as consola4es incomparáveis que dá a estima dos que nos saúdam$ < o nãoencontrar então no mundo o teu lugar, elegante, aveludado, agaloado, emplumado ecoroado, dar+te+á a sensaão do abandono) e as consola4es que então te quiser ministraro amor pela sociedade que te falta, encontrarão aos teus olhos o mesmo tédio queencontrariam agora as consola4es da sociedade pelo amor que te fugisse$ ma mulherque foge com o seu amante, só pode ter um lugar no Demi-monde) ou então um lugarequ3voco nas salas, quando é célebre por um talento ou por uma arte$ 5ra tu não quererásir para a &tália frequentar, em >ápoles, Cadame de almé, nem quererás cantar numteatro, nem cometera inconveniAncia de escrever um livro$ 2 viver modesta, tens de vivertriste) a viver radiante, tens de viver humilhada$ < pensas que podes, por um ano sequer,viver na intimidade absoluta e no segredo?'5 segredo, o refúgio, um ninho perfumadonum quinto andar, são coisas e#tremamente doces, no meio da sociedade e das rela4esdo mundo) a publicidade oficial da vida dá então um encanto estranho !queles momentosde mistério$ Cas a perpetuidade do mistério deve ser igual !quela legendária tortura dabeatitude eterna= 1uando dois entes se encontram, pelas fatais condi4es do seuprocedimento, obrigados a viverem um do outro, um para o outro, um eternamente no

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segredo do outro, quando isto se não passa na ilha de Iobinson, num entre dois disc3pulosde edenborg, nem entre dois desgraados cheios de fome ; mas numa cidade ruidosa

e viva, entre duas pessoas positivas e educadas pelo egundo &mpério, e que tAm ascomplacAncias do lu#o, crA que deve ser amargo$

%< depois, pensa= 2 nossa vida arrastar+se+á tristemente, de pa3s em pais, sem um centroamado, sem uma fam3lia, sem um fim$ >ão teremos, nem durante a e#istAncia nem nograve momento da morte, a serenidade de quem é *usto$ 2 nossa vida será como a dassombras romBnticas de Paulo e .rancesca de Iimini, levadas pelo vento contraditório$Correremos enfim como dois seres estéreis, que nada criaram, e que não tAm quem fiquena terra com a herana do seu caráter) e quando todos pelos seus filhos ganham a única

 *usta imortalidade, nós somente seremos mortais, e para nós mais que para ninguém será

terr3vel a lembrana do fim= Perdoa que te escreva estas coisas$ Cas fiz o meu dever$ <agora posso livremente, insuspeitamente, dizer+te que me sinto feliz, e que o momento deamanhã, quando virmos desaparecer a terra e nos acharmos sós, no infinito mar, será paramim tão belo, que só por ele *ulgarei *ustificada a minha vida$'

1uando acabei de ler esta carta, sentei+me maquinalmente diante das malas, com os olhosfi#os, como idiota$ 2bri uma gaveta, tirei não me recordo que pequeno ob*eto de renda, etornei a fechar, com um movimento automático, lúgubre, e a ausAncia absoluta daconsciAncia e da vida$ 7hamei "ettY:

; "ettY, que horas são?+ 5nze, minha senhora$; @á+me água, tenho sede$ @á+me água com limão$$$ 1uando ela saiu fui encostar acabea ! vidraa, a olhar o movimento ondeado e lento das ramagens escuras$ 2 (uapareceu+me regelada$ "ettY entrou$

; "ettY ; disse+lhe eu numa voz sumida +, sabes? 0enho medo de morrer doida$$$ <laolhou+me, e viu no meu rosto uma tal e#pressão de angústia, que me disse:

; 1ue tem, meu @eus, que tem? 7hore, minha rica menina, chore$$$ + >ão posso, nãoposso$ <u morro$$$ Vem para ao pé de mim, "ettY=$$$ ; Ceu @eus, quer+se deitar? @iga$$$ <

erguendo os olhos e as mãos, numa imploraão cheia de dor, de desespero: + @eus me levepara si= 2i= >ada disto era se a mamã fosse viva, minha senhora=

7omeou a chorar$ <u olhei+a com uma grande aflião, senti os olhos úmidos, os soluossufocaram+me, e arremessando+me aos seus braos, chorei, chorei amargamente, choreicruelmente, chorei pela saudade, chorei pela traião, chorei pelo meu passado legitimo,chorei pelo encanto dos meus pecados, chorei por me sentir chorar$$$

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osseguei$ Vencida, fiquei numa chaise-longue, muda e como morta$ 5lhavamaquinalmente o tremer da luz$

; "ettY ; disse eu +, deita+te$ <u estou bem$ Vai$$$ <la saiu, chorando$ 5 quarto estava malalumiado$ <u via, fora, as ramagens do *ardim, recortando+se num relevo negro sob opálido céu, cheio da (ua$ <stive muito tempo assim, olhando, sem consciAncia e semvontade$ (entamente, creio, comecei pensando em coisas alheias aos interesses da minhador: lembrava+me a for ma de um vestido que eu tinha desenhado para a 2line$ Por fimergui+me, passei muito tempo no quarto, o movimento chamou+me ! consciAncia e !verdade das minhas afli4es$ 2rranquei a folha de uma carteira, e escrevi a lápistumultuosa mente: %0em razão, tem razão$ <spero+o amanhã !s D horas da noite nacasa$$$ 2té lá não lhe direi que o amo) só lá lhe direi o que sofro$'<u mesma sa3 docorredor, e do alto da escadaria, silenciosa, alumiada por um grande globo fosco, chameium criado, 2ndré, imbecil e discreto, e atirei+lhe o bilhete lacrado,dizendo+lhe:

; (eve este bilhete *á$$$ Vá numa carruagem$ < indiquei+lhe a casa de meu primo$ IYtmelestava hospedado lá$ Vim sentar+me ! *anela do meu quarto: vinha um aroma suave do

 *ardim) o luar, as grandes sombras, tinham um repouso romBntico e triste$ (entamente, aminha desgraa comeou aparecendo+me inteira, n3tida, em pormenores, numa grandes3ntese, como se fosse um mapa$

<u era tra3da= 2os vinte anos, com todas as inteligAncias da pai#ão, com todos os delicadosprest3gios do lu#o, era tra3da, era tra3da= enti então, pela primeira vez, a presena dociúme, esse personagem tão temido, tão cantado nas epopeias, tão arrastado pela rampado teatro, tão conhecido da pol3cia correcional, tão cruel, tão rid3culo, tão real= Vi+o=7onheci+o= enti o seu contato irritante e mordente como um corrosivo) a suaargumentaão miúda, *esu3ta, implacável, sanguinária: todo o seu processo de aão, quetorna de repente o coraão mais puro tão imundo como a toca de uma fera$

enti o mais cruel dos ciúmes todos) aquele que se define, que diz um nome, que desenhaum perfil, que no+lo mostra, o nosso inimigo, que nos enche as mãos de armas, que nosobriga a avanar para ele$ <u sentia no meu ciúme um ponto fi#o ; ela$ <ra ela, a outra=(embrava+me confusamente: tinha cabelos louros, finos, espalhados, uma nuvem de ouroesfiado$ <u tinha+a visto em Paris vestida de ro#o na revista de 4ongchamps$ 5 seu olharera franco: os homens deviam encontrar nele o que quer que fosse, que prometia umdestino pac3fico$ 1ue secreto encanto se irradiaria da esbelta fraqueza do seu corpo? <ra asimplicidade? <ra a inteligAncia? <ra a ciAncia das coisas do amor?$$$ 7omo eu ardia por aconhecer= < não sabia nada dela senão que era irlandesa, e que se chamava miss horn=2h=, sim, sabia outra coisa ; que ele a amava= 7onhecA+la= 7onhecA+la= Cas como? Podiaser, pelas suas cartas= @ecerto= <la devia p6r nelas toda a sua 3ntima personalidade$ <ra

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loura, era inglesa, por isso raciocinadora: devia escrever pacificamente, sem sobressalto sesem inspira4es da pai#ão) nas suas cartas, provavelmente, desfiava o seu coraão$ <u

conhecA+la+ia bem, se as lesse= <u saberia o estado de esp3rito de IYtmel, a marcha da suapai#ão, pelas cartas dela$ @evia lA+las= <ra necessário pedi+las, roubá+las, comprá+las, eusei= Cas era necessário lA+las=

Para pensar assim eu nenhuma prova tinha de que ele recebia cartas dela, mas tinha acerteza que elas e#istiam e que o seu coraão estava cheio delas$$$

1uis serenar, pacificar+me, dormir$ @eitei+me$ 5 meu pobre cérebro estava numa vibraãotempestuosa) era como numa tormenta em que vAm ! superf3cie da mesma vaga osdestroos de um naufrágio e as flores da alga) no meu esp3rito revolto, surgiam, no mesmoredemoinho, as coisas graves e as recorda4es fúteis, as minhas dores e as minhasfantasias, os desastres do meu amor e ditos de óperas c6micas= entia a chegada da febre$7hamei "ettY$

; "ettY= >ão posso dormir, não sei que tenho$ 1uero dormir por fora$ 1uero amanhãtodas as minhas faculdades em equil3brio$ e não durmo estou perdida, endoideo$$$ @á+me alguma coisa$

; Cas o quA, minha senhora?+ 5lha, dá+me aquela bebida que davam ! mamã, nasins6nias, a que tu tomas quando tens as dores$$$ 0ens?+ 1uer ópio?

; >ão sei= Zgua opiada, vinho opiado, o quer que se*a$ .oi o doutor que me disse$$$ ;Cinha querida menina, eu tenho ópio$ ma gota num copo de água$ <u sei? 0alvez lhefaa mal=

; @á+ma, o doutor disse+mo ontem$ @á, depressa= "ebi$ <ra água opiada, creio eu$ >ãosei$ Parece+me que adormeci logo, e lembro+me que durante o sono sentia+me caminharincessantemente, num movimento perpétuo que afetava todas as formas, ora lento epac3fico, como um passeio sob uma alameda) ora rápido, volteado, e era a valsa de/ounod que eu danava) ora solene e melancólico, e era um enterro que euacompanhava) ora cortante, escorregadio, veloz, e era em Paris, e era no &nverno, e eu

patinava sobre a neve$

2cordei de manhã, serena e decidida$ Candei p6r um coupé$ ai$ .iz parar ! porta de meuprimo$ <ram duas horas da tarde$ <u sabia, desde essa manhã, que IYtmel estava comele,em "elas$ ubi$ 2pareceu um criado portuguAs, (u3s, que eu conhecia, um imbecil, atrevidopara o ganho, discreto pelo medo

; C$ IYtmel=+ aiu, senhora condessa$

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; -acques?+ .oi com ele, senhora condessa$ -acques era um criado antigo de IYtmel$ ;(u3s, leva+me ao quarto de Cr$ IYtmel$ 2o abrir a porta do quarto estremeci$ entia+me

humilhada$ .ui rapidamente a uma secretária, revolvi as gavetas, as peque naspapeleiras$$$ >enhumas cartas, apenas cartas indiferentes$ &rritada, abri as c6modas,espalhei as roupas, procurei nos baús, nas malas, nos bolsos, ergui o travesseiro$ 0remia,arque*ava$ <ra uma busca inquisitorial, frenética, desesperada, infame=+ (u3s ; disse eubai#o$ ; (u3s, tens vinte libras$ 0ens cinquenta$

; Cas, minha senhora$$$ + <ste senhor onde tem as suas cartas? 0ens cem libras$ @ou+tetudo, estúpido$$$ 5nde tem ele !s cartas, ele?

; 5h, minha senhora ; disse o criado, com uma voz lamentável +, eu não sei$ + >ão tensvisto? >ão tem uma secretária, uma papeleira, uma carteira?$$$

; 0em$ 0em uma carteira de marroquim$ 0rá+la consigo$ 2nda cheia de cartas$$$ (evou+adecerto$ >unca a dei#a$ a3, desci a escada, correndo, fugindo daquele desastre, daquelavergonha, daquelas confidAncias$ 2tirei+me para o fundo da carruagem$ + 2 casa= ; gritei$

0inha fechado os stores: soluava, sem chorar$ + "ettY= "ettY= ; clamei logo no corredor$<la apareceu, correndo, ; "ettY ; disse eu, vivamente, fechando a porta do quarto$ ;@iz+me: aquela água com ópio não faz mal? ; PorquA? ente+se doente? ; >ão$ <stoubem$ >ão faz mal?+ >enhum$

; -uras? ; -uro$ Cas$$$ + -ura sobre estes santos <vangelhos$

; 5h, senhora= Cas, porquA? -uro$ Cas, porquA?+ 0ens ópio? @á+mo$ ; 1uer dormir? ;>ão$ <la então olhou+me, fez+se e#tremamente pálida$

; Cas, senhora condessa, que quer isto dizer?+ @á+mo$ @á+mo, "ettY$ Pensas que mequero matar? <la calou+se$ ; 5h, doida= ; disse eu, rindo$ ; e me quisesse matar não topedia$ Cas sou feliz$$$ Passaram+se outras coisas, vAs tu? >ão tas digo, mas sou feliz$ abeso que é? M que me vou logo encontrar com ele$ < com a voz mais bai#a, comoenvergonhada:

; M !s dez horas, e vAs tu? 1ueria dormir para não esperar$ ; 5h, minha senhora, não lhevá fazer mal= @e resto, eu lho dou$ 5 frasco de ópio está aqui nesta gaveta do lavatório$>ão lhe faa isto mal, meu @eus=

; >ão, não, minha "ettY= 2h= <stá na gaveta? "em$ ão duas gotas, sim? >ão faz mal$<stou tão contente= 5lha, até nem quero dormir$ .ica aqui a conversar comigo$ ão cincohoras$ Para as dez pouco falta$ >ão custa esperar$ <stá então naquela gaveta o frasco$$$"om$

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abes, "ettY? ou feliz$ >ão quero dormir$ 7onta+me uma história$ 2 pobre criatura,vendo+me alegre, sorria$ <u, entretanto, tinha os olhos fitos na gaveta do lavatório$ "ettY

falava, falava= <u ouvia as suas palavras sem compreender, como se ouve um murmúrio deágua$

72P&0(5 D 

2 tarde descia no entanto, e eu sentia uma inquietaão, uma angústia crescente$ Ceuprimo, não sei se poderei contar+lhe miudamente todos os transes daquela noite$ >ão oe#igirá decerto$ >ada seria mais terr3vel do que ter de redigir e colorir o meu crime$

Perdoe+me a confusão aflita das minhas palavras e os arabescos trAmulos da minha letra$<ram dez horas da noite: fui ! casa n$$$ IYtmel estava lá$ 2chei+o pálido, e instintivamenteestremeci$ 7onversamos$ <nquanto ele falava, eu olhava+o avidamente, e#aminava a suacasaca, espreitava o volume que devia fazer a carteira onde estavam as cartas$ < revolviacom a mão úmida o bolso do meu vestido: tinha nele o frasco do ópio$

<ra um frasco de cristal verde, facetado, com tampa de metal fi#a$ 2s palavras deIYtmelnessa noite eram muito doces e muito amantes$ Procuravam e#plicar+me a suacarta, e palpitavam ainda de pai#ão$$$ Vinham real mente da verdade do seu coraão? <rauma retórica artificial ! flor dos lábios, enganadora, como um pano de teatro? >ão o sabia:

só ascartas dela mo poderiam revelar, e ele tinha+as ali no bolso= <u via o volume que faziaa carteira no peito da casaca= <stava ali a sentena da minha vida, a minha infelicidadeinsondável, ou a imensa pacificaão do meu futuro= Podia porventura hesitar? ; <le falavano entanto$ <u tremia toda$ 5lhava fi#amente para um copo que estava sobre a mesa aopé de uma garrafa de cristal da "oAmia$ 5 reposteiro da alcova achava+se corrido: dentroestava escuro$ "ettY tinha ido comigo, e ficara num quarto distante, que dava para unsterrenos vagos$$$ + < se houvesse um desastre= ; pensei eu de repente$ ; >ão há pessoasque sucumbiram completamente, cu*o adormecimento foi acabar de arrefecer no túmulo?

Cas eu via sempre a saliAncia da carteira, que me tentava co mo uma coisa

resplandecente e viva$ Podia apro#imar+me dele de repente, enfraquecA+lo ao calor dasminhas palavras, ir levemente, astuciosamente, arrebatar+lhe a carteira, saltar, correr,atirar+me para o fundo do meu coupé, e fugir$ Cas se ele resistisse? e perdesse aconsciAncia da sua dignidade e da humilde debilidade do meu ser? e me su*eitasseviolentamente, se me arrancasse outra vez as cartas? >ão podia ser$ <ra necessário quedormisse tranquilamente= e as cartas fossem inocentes, simples, ine#pressivas, como eua*oelharia depois, ao pé do seu corpo adormecido, como esperaria com uma Bnsia felizque ele acordasse= 1ue aurora sublime acharia ele nos meus olhos quando os seus seabrissem= Cas se houvesse nas cartas a culpa, a traião, o abandono?= (evantei+me$

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IYtmel tinha ao pé de si um copo com água$ "ebia aos pequenos golos quando fumava$ <udei#ava+o fumar$ Cas eu não sabia como havia de achar um momento meu, bastante para

deitar duas gotas de ópio no copo$0ive um e#pediente trivial, estúpido$ ; IYtmel ; disse eu, como num teatro, como nascomédias de cribe, com uma voz imbecilmente risonha +, vá dizer a "ettY, que pode ir, sequiser$ 2 pobre criatura dormiu pouco, está doente$

<le saiu) ergui+me$ Cas ao apro#imar+me da mesa, defronte do copo, fiquei hirta,suspensa$ <stive assim um tempo infinito, segundos, com a mão convulsa apertando ofrasco no bolso$ Cas era necessário, eu tinha+o ouvido falar, voltava, sentia+lhe os passos,ia entrar$$$ 0irei o frasco, e louca, precipitada, mordendo os beios para não gritar,esvaziei+o no copo$

<le entrou$ <u dei#ei+me abater sobre uma cadeira, trAmula, em suor frio, e, não seiporquA, sentindo uma infinita ternura, disse+lhe sorrindo, e quase chorando:

; 2h, como eu sou sua amiga= ente+se ao pé de mim$ <le sorriu$ < ; meu @eus= ;apro#imou+se, creio que sorriu, e tomou o copo= < com o copo na mão:

; < sabe ; disse ele ; que ninguém o crA mais do que eu=$$$ e não fosse o teu amorcomo poderia eu viver?

< conservava o copo erguido$ <u estava como fascinada$ Via o refle#o da água, parecia+mevagamente esverdeada$ Via as cintila4es do cristal facetado$ .inalmente bebeu= $$$ @esdeesse momento fiquei num terror$ e ele morresse? Ceu @eus, porquA? >ão se dá ópio !scrianas, aos doentes? >ão é ele a clemente pacificaão das dores? >ão havia perigo$1uando acordasse eu seria tão sua amiga, tão terna com ele, para me absolver daquelaaventura imprudente= 2inda que se*a culpado, amá+lo+ei= pensava eu$ Pobre dele= >ão lhebastava ter de dormir as sim foradamente num sono pesado e cruel? 2má+lo+ia, culpado$0ra3da, amá+lo+ia ainda= <le, entretanto, estava calado, no sofá, com a cabea encostada$@e repente pareceu+me vA+lo empalidecer, ter uma Bnsia, sorrir$ >ão sei o que houveentão$ >ão me lembra se falamos, se ele adormeceu brandamente, se alguma convulsão o

tomou$ @e nada me lembro$

2chei+me a*oelhada ao pé dele$ @evia ser meia+noite$ <stava imóvel, deitado no sofá$0inham passado duas horas$ enti+o frio, via+o l3vido, não me atrevia a chamar "ettY$ @eialguns passos pelo quarto numa distraão idiota$ 7obri+o com uma manta$ ; Vai acordar; dizia eu maquinalmente$ 7ompus+lhe os cabelos ligeiramente desmanchados$ @e repente a ideia da morte apareceu+me n3tida e pavorosa$ <stava morto= enti como o fim detodas as coisas$ Cas chamei+o, chamei+o brandamente, e com doura$$$

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; IYtmel= IYtmel= < andava nos bicos dos pés para o não acordar= ubitamente estaquei,olhei+o avidamente, precipitei+me sobre o corpo dele, gritando sufocada: + IYtmel=

IYtmel=<rgui+o: a alucinaão dava+me uma fora cruel$ 2 cabea pendeu+lhe inanimada$@esapertei+lhe a gravata$ 2mparei+o nos braos, e nesse momento senti o volume, asaliAncia que na sua casaca fazia a carteira$ Veio+me a ideia das cartas$ 0udo tinha si dopelo dese*o de as ler$ 0irei+lhe a casaca) era dif3cil) os seus músculos estavam hirtos$ -untocom a carteira havia outros papéis e um mao de notas de banco$ 2o tomá+los, os papéis eas cartas espalharam+se no chão$ 2panhei+as, apertei+as na gravata branca e meti tudo nobolso$

&sto tinha sido feito convulsivamente, inconscientemente$ @ei com os olhos em IYtmel$Pela primeira vez via contraão mortal do seu rosto$ 7hamei+o, falei+lhe= <stava frenética=Porque não queria ele acordar? <mpurrei+o, irritei+me com ele$ Porque estava assim)porque me fazia chorar? 0inha vontade de lhe bater, de lhe fazer mal$

; 2corda= 2corda= &nsens3vel= &nsens3vel= Corto= 5uvi passar na rua um cano$ Havia poisalguém vivo= @e repente, não sei porquA, lembrei+me que tinha esvaziado o frasco=@eviam ser só duas gotas= <stava morto=

/ritei: + "ettY= "ettY=

<la apareceu, arremessei+me aos seus braos$ 7horei$ Voltei para *unto dele$ 2*oelhei$7hamei+o$ 1uis dar+lhe um bei*o: toquei+lhe com os lábios na testa$ <stava gelada$ @ei umgrito$ 0ive honor dele$ 0ive medo do seu rosto l3vido, das suas mãos geladas=

; "ettY, "ettY, fu*amos= 7onsciAncia, vontade, racioc3nio, pudor, perdi tudo aos pedaos$0inha medo, somente medo, um medo trivial, vil=+ .u*amos= .u*amos=

>ão sei como sal$ .ora da porta vi ao longe, no comeo da rua, uma luz caminhar=7aminhava, crescia= Havia alguém, vestido de vermelho, que a trazia= Parecia+me sersangue= 2 luz crescia$

<sperei, a tremer$ 2quilo caminhava para mim$ 2pro#imava+se= <u estava encosta da !porta, na sombra, fria de pedra$ 2 luz chegou: vi+a$ <ra um padre, era outro homem comuma opa vermelha e uma lanterna$ &am levar a alguém a e#trema+unão$$$

2mparei+me no brao de "ettY, e principiei a andar, sem saber para onde, como louca$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$

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eguiam+se as linhas em que se contava o encontro que teve comigo, as quais linhaselimino por se referirem a sucessos que eu mesmo narrei e que V$, senhor redator, *á

conhece$ ; 2$ C$ 7$

CONCLUEM AS REVELAÇÕES DE A. M. C.

72P&0(5 D 

7onvidada a e#por o que sabia, a condessa disse de viva voz, com humildade e comfirmeza, a causa e o modo como involuntariamente matara IYtmel$ ; <is as cartas e as

notas que ele trazia consigo ; concluiu ela, colocando sobre a mesa um mao de papéisatados numa gravata branca$ ; 2s minhas derradeiras disposi4es ; acrescentou ;estão feitas$ @Aem+me o destino que quiserem$ &nfli*am+me o castigo que mereo$<stávamos todos calados$ .$$$ adiantou+se para o centro da sala e ergueu a voz:

; 7astigar é usurpar um poder providencial$ 2 *ustia humana que se apodera doscriminosos não tem por fim vingar a sociedade, mas sim protegA+la do contágio e dainfecão de culpa$ 0odo o crime é uma enfermidade$ 2 aão dos tribunais sobre oscriminosos, posto que nem sempre cesse de fato, cessa efetivamente de direito nomomento em que termina a cura$ equestrar aqueles em que o mal dei#ou de ser uma

suspeita fisiológica, e por conseguinte uma verdade cient3fica, é fazer ! sociedade umae#torsão, que, por ser muitas vezes irremediável

não dei#a de ser monstruosa e horr3vel$ 0odo aquele que não é pernicioso, é necessário, éin dispensável ao con*unto dos sentimentos, ao destino das ideias, ! aritmética dos fatosno problema da humanidade$ 2 natureza do ato que estamos ponderando, as raz4es que odeterminaram, as circunstBncias que o revestiram, a intenão que lhe deu origem, tu doisto nos convence de que a liberdade desta senhora não pode constituir um perigo$<ncarcerada e entregue ! aão dos tribunais, seria uma causa+crime, interessante,escandalosa, pre*udicial$ Iestitu3da a si mesma, será um e#emplo, uma lião$

< apro#imando+se da porta, correu a chave que a fechava por dentro, abriu+a de par empar, e dirigindo+se ! condessa, com voz respeitosa e grave, acrescentou: ; Vá, minhasenhora: tem amais plena liberdade$ Poderia disputar+lha a *ustia oficial, não podeempecer+lha a retidão dos homens de bem a quem foi entregue a decisão da sua causa$ 5seu futuro, violentamente assinalado pela desgraa, não pertence aos criminosos,pertence aos desgraados$ (eve+lhes a melancólica lião destes desenganos, e permita@eus que perante a suprema *ustia, possam os benef3cios obscuros e ignorados quehouver de espalhar em volta de si, compensar os erros que atravessaram o seu passado=

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5s vest3gios da sua culpa ficarão sepultados nesta casa$ >ós abrimos+lhe passagem paraque sa3sse$ 2 condessa, numa palidez cadavérica, vacilava) faltavam+lhe as foras) não

podia sustentar+se em pé$ 5 mascarado alto deu+lhe o brao$ <la fez uni movimento comose tentasse falar) o seu rosto contraiu+se numa profunda e#pressão de dor) hesitou ummomento) por fim comprimiu os beios no leno e saiu abafando uma palavra ouestrangulando um soluo$ Comentos depois ouvimos a carruagem afastando+se comaquilo que fora no mundo a condessa de X$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$Hav3amos acordado no modo de ocultar o cadáver, o que se tornava tanto mais fácilquanto era inteiramente ignorada a assistAncia do capitão em (isboa$ Viéramos para opavimento inferior do prédio, a uma casa térrea, a que se descia por quatro degraus parabai#o do solo$ <ra o fim da tarde$ <stávamos alumiados com a luz das velas, porque nãoentrava na lo*a a luz do dia$ 0inha+se cavado uma profunda cova$ entia+se o cheiro úmido

e acre da terra revolvida$ @ois dos indiv3duos a que tenho chamado os mascarados,seguravam duas serpentinas em que ardiam dez velas cor+de+rosa$ @A trave*amentoescuro do teto pendiam como cortinas pardacentas e prateadas as teias de aranharasgadas pelo peso do pó$

@esenrolamos o fardo que t3nhamos colocado *unto da cova, e contemplamos peladerradeira vez a figura do morto estendido sobre a sua manta de viagem$

0inham+lhe atado a gravata branca, abotoado o colete e vestido a casaca azul de bot4es deouro, em cu*a carcela se via ainda pendida uma rosa murcha$ 2 cabea dele, na luz a que

estava su*eita, era de uma e#pressão ideal$ 5s olhos, de que se não viam as pupilas,apagados e imóveis, davam ao seu rosto o vago aspecto que apresentam os das antigasestátuas$ >os lábios entreabertos parecia pairar um leve sorriso sob o bigode arqueado$ 5sanéis do cabelo, despenteados pelo contato da manta em que viera envolto o cadáver,destacavam na lividez da fronte como um velo de ouro nu ma superf3cie de marfim$ Haviaum silAncio profundo$ 5uvia+se o bater dos segundos nos relógios que t3nhamos nasalgibeiras e o zumbir das moscas que esvoaavam sobre a face do morto$ <u, fitando+ocom os olhos mare*ados de lágrimas, pensava melancolicamente$$$

Pobre IYtmel= e neste momento solene, em que o teu corpo espera ! beira da cova pelo

seu descanso eterno, te faltam na terra as pompas fúnebres devidas ! tua *erarquia) se tenão seguiu até aqui um préstito de uniformes recamados de ouro) se nem sequer tens aoentrar na tua derradeira morada as ora4es de um padre e a luz de um c3rio, cubra+te aomenos a bAnão da amizade= @escendente de lordes, moo, inteligente e belo, quandotodas as flores que perfumam a vida desabrochavam debai#o dos teus passos, apaga+se desúbito no firmamento a estrela que presidiu ao teu nascimento, e tu baqueias como o entemais desprez3vel no fundo de uma sepultura sem lápide, sem nome, na mesma casa emque vieste procurara última e#pressão da tua felicidade, ! luz das mesmas velas quealumiaram o teu derradeiro bei*o= 5s outros desgraados que morrem tAm ao menos na

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terra um lugar assinalado onde repousam as suas cinzas, e onde podem ires que !samaram, chorar por eles$

M mais cruel o teu destino) tu morres e desapareces= >ão ensombrarão a tua campa asárvores tristes dos cemitérios$ 2s aves que passarem nos céus não bai#arão a beber daágua que as chuvas tiverem dei#ado na urna do teu mausoléu$ 2 (ua, terna amiga dosmortos, não virá bei*ar por entre a rama negra dos ciprestes, a brancura da tua campa$ 5orvalho das madrugadas não chorará nas flores do teu *azigo$ 2s abelhas não murmurarãoem torno das rosas plantadas sobre o teu corpo$ 2s borboletas brancas não ade*arão nofluido de ti mesmo que pudesse romper do seio da terra para a luz da manhã no aromados *asmineiros e dos goivos$ 0ua mãe, pensativa e pálida, procurará debalde agrade emque se ampare para dobrar os *oelhos e levantar para o 7éu esse olhar de interrogaão em

que a lembrana dos filhos mortos se envolve como na túnica luminosa de umaressurreião$

5 mascarado alto curvou+se sobre o cadáver de 7aptain IYtmel e ergueu+o vigorosamentepelos ombros$ >ós amparamos o corpo e descemo+lo ao fundo da cova$ 5 mascarado,a*oelhando+se depois no chão, cobriu com um leno o rosto do morto e disse, como seestivesse falando a uma criana adormecida: + @escansa em paz= <u irei dizer ! tua mãe olugar em que re pousa o teu corpo, e voltarei a a*oelhar+me sobre esta sepultura de poisde ter recebido no meu próprio seio as lágrimas que ela derramar por ti$ 2deus, IYtmel=2deus=

< impeliu em seguida para dentro da cova uma grande porão de terra amontoada aosseus pés$ 2 terra desabou de chofre sobre o cadáver, levantando um som bao e mole$

CAPITULO 2

<#aminamos depois os papéis de IYtmel a fim de coordenar mos os seus negócios$Verificou+se a e#istAncia de mil e trezentas libras em notas do banco de &nglaterra$$ <ntreas cartas não ha via uma só letra de miss horn$ >enhum de nós tinha o esp3rito bastante

sossegado para poder reentrar imediatamente nos assuntos triviais da e#istAncia$ Iesolvemos permanecer ali até que decorressem alguns dias sobre a catástrofe de quet3nhamos sido testemunhas$

5 prédio em que estávamos foi comprado em nome de (adY$$$ a mãe de IYtmel, e nele seguardaram todos os ob*etos que lhe tinham pertencido$ m cofre de ferro, damasquinadode ouro e destinado a receber as cinzas do morto, foi colocado no lugar em que ele seachava sepultado$ 5 mascarado alto  dispunha+se a partir para (ondres quando tivemosnot3cia da publicaão das cartas do doutor neste periódico$ 2 condessa declarou que se

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entregaria ! pol3cia, se não levantássemos na imprensa as suspeitas formuladas na cartade T$$$ acerca da probidade do médico, e se .$$$ se não desdissesse categoricamente das

in*úrias que nos dirigira na carta intempestivamente mandada ao @r$$$ por intermédio de.riedlann$ 2 condessa autorizava+nos a tornarmos pública a sua historia, dizendo que tinhadei#ado para sempre de pertencer ao mundo, para o qual a biografia que ela lhe legavaseria talvez um e#emplo prof3cuo$ .oi então, senhor redator, que determinamos referir+lheto dos os pormenores deste doloroso acontecimento, ocultando ou substituindo os nomesdas pessoas que tiveram parte nele, e dei#ando ! sociedade a faculdade de as descobrir eo direito de conde ná+las ou absolvA+las$

2 condessa resolveu em seguida entrar num convento, que ela mesma escolheu depois demiúdas indaga4es$ 5 mascarado alto acompanhou+a e eu segui+o a uma vila da prov3ncia

do Cinho, onde e#iste ainda, regido com todo o rigor ascético do estatuto, um velhoconvento de carmelitas descalas, habitado por cinco ou seis religiosas$ <stas mulheresdecrépitas vivem como dantes tia pobreza de que fizeram voto, mantendo a oraão, apenitAncia e o *e*um com a mesma e#altaão m3stica, com o mesmo fervor católico dosprimeiros anos das suas núpcias com o divino <sposo$ 0razem os pés nus e o corpoconstantemente envolto na aspereza estreme do burel $ >ão usam roupas de linho nemalgodão$ <m nenhum dia do ano se permitem carne !s suas refei4es$ 7omem *untas noantigo refeitório, havendo sempre uma que revezadamente se prostra ! entrada da sala,segundo o primitivo uso da ordem, para que as outras lhe passem por cima ao entrar e aosair da mesa$ >ão tAm patrim6nio de nenhuma espécie, nem outro algum rendimento que

não se*a o produto dos trabalhos que fazem$ .urtadas a toda a convivAncia e#terna vivemna clausura mais estreita e na miséria e#trema$ >inguém no mundo tornou a ver asmoradoras daquela casa desde que entraram nela$ 2s que morrem são enterradas pelasoutras no claustro e cobertas com uma pedra lisa, sem nome e sem data, >ão há d3sticonem outro sinal que diferencie as que dei#am de e#istir$ 2 morte para todas elas comeano momento em que transp4em o limiar da portaria$ @entro tudo é sepulcro$ 2 morte ésimplesmente a mudana de cub3culo$ 0al foi a casa escolhida pela condessa pararecolhimento e asilo do resto de seus dias$

5 e#terior do edif3cio era misterioso e lúgubre 7ingia+o em to da a sua amplitude uma alta

muralha que o disgregava do resto do mundo, cerrando as casas habitadas pela freiras aoe#ame de fora$ <ra um prédio emparedado$ 2muralha, que media a altura de quatroandares, era da cor da estamenha, sombra e triste, manchada de grandes nódoasesverdeadas e negras como o capuz de um ermita, tinia espécie de lenol em que seenrolasse para o enterro uma casa morta$ Havia um ponto em que esta fai#a se recolhia,formando o pátio por onde se entrava para o convento, cu*a porta, mordida pelos anos,chapeada e crave*ada com enormes pregos, se via no fundo através dos grossos var4es dóuma grade de ferro$ Pelas *untas desarticuladas das grandes pedras que la*eavam o pá tio,rompiam moitas de ortigas, com a rudeza de cabelos hirsutos, sa3dos pelos rasg4es de um

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barrete$ @o meio do largo surgia o bocal da um poo, cu*o balde, seguro por uma corda dóesparto, pendia de uma estaca$ >o chão estavam estendidos os andra*os das pobres da

vizinhana, que vinham lavá+los ao pé do poo, e nesse recinto os dei#avam a en#ugar *untamente com as en#ergas dilaceradas e apodrecidas dos beros dos seus pequenos$ 2um canto do pátio pendia do muro uma corrente de ferro com que se tangia uma si netainterior$ 2 este sinal via+se uma abertura da alvenaria rodar no muro um cilindro demadeira, que por um movimento vagaroso metia para dentro a sua superf3cie c6ncava emostrava para fora o seu interior conve#o$ Parecia quando isto se ouvia que o taciturnomonstro entreabria a pálpebra, dei#ando ver uma órbita sem olho$ <ste aparelho chama+se a roda$ 2 condessa pronunciou a3 uma palavra, a que respondeu de dentro uma espéciede gemido, e foi esperar em seguida para *unto da porta negra ao fundo do pátio$

1uando a porta se abriu e o primo da condessa lhe apertou pela última vez a mão, aslágrimas, que até a3 conseguira dificultosamente reprimir, saltaram+lhe dos olhos$ ; 2chahorr3vel, não é verdade? ; perguntou+lhe ela com um sorriso em que transparecia aestranha luz da resignaão das mártires antigas$ ; 1ue queria que eu fizesse, meuquerido amigo? Catar+me? Prostituir+me ! conveniAncia da sociedade? >ão posso$

.alta+me o valor para sacrificar ao meu infortúnio a salvaão da minha alma, e escuso dedizer+lhe que me falta igualmente a intrepidez precisa para sacrificar ao sossego ordinárioda vida o pudor do meu coraão$ "em vA, pois, que aceitei a soluão mais suave$ 7oitado=como lhe dói a tristeza do meu destino= @ei#e estar: prometo+lhe morrer breve, se me não

suceder aquela desgraa receada por anta 0eresa de -esus: que o prazer de me sentirmorrer me não prolongue mais a vida=

<ntregando+lhe em seguida o capuz e o manto de casimira em que fora envolvida: + 2deus,meu primo ; disse+lhe ela dei#ando+se bei*ar na testa +, adeus= Pea a @eus que meperdoe, e aos vivos que me esqueam$ 2os primeiros passos que ela deu para lá da porta,esta fechou+se do mesmo modo por que havia sido aberta, sem que ninguém mais fossevisto, tendo mostrado um buraco l6brego, negro e pro fundo como a goela de um abismo,e a amante de IYtmel entrou no claustro$ 5s ferrolhos interiores rangeramsucessivamente nos anéis, e#pedindo uns sons entrecortados, semelhantes a soluos$

arrancados de uma garganta de ferro$ 5 mascarado alto passou parte dessa noite na vila,esperando a mala+posta que partia ! uma hora$ 2o subirmos *untos ! carruagem ouvimosuma espécie de rebate em dois sinos de uma igre*a$ Perguntamos o que era$ 5 deputadoda localidade, que nos acompanhava no coupé, respondeu, atirando fora um fósforo comque acendera um charuto:

; ão as carmelitas que pedem o socorro da caridade, porque não tAm que comer$ 5cocheiro fez estalar o aoite, e a berlinda partiu a galope, abafando o vozear entristecidodas sinetas com o estrépito que ia fazendo pelas caladas estreitas e tortuosas dapovoaão$ Pouco mais tenho que contar+lhe$

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7/25/2019 Eça de Queiroz (1870) - O Mistério da Estrada de Sintra.pdf

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5 conde de X$$$ recebeu em "ru#elas uma carta de sua mulher contendo estas linhas:%@estituo+me voluntariamente da minha posião na sociedade$ @e todos os direitos que

porventura pudesse ter, um só peo que não se*a contestado: o direito de acabar$ uplico+lhe que me permita desaparecer, e que acredite na sinceridade da minha gratidão eterna$'

5 doutor está, como ele mesmo disse, nos hospitais de sangue do e#ército francAs$.rederico .riedlann partiu repentinamente no mesmo dia em que lanou no correio acarta de .$$$, para ir incorporar+se na segunda land+er  do seu pa3s$ .$$$ e 7arlos .radiqueCendes achavam+se há dias numa quinta dos subúrbios de

(isboa escrevendo, debai#o das árvores e de bruos na relva, um livro que estão fazendode colaboraão, e no qual ; prometem+no eles ! natureza+mãe que vice*a a seus olhos ;levarão a pontapés ao e#term3nio todos os trambolhos a que as escolas literáriasdominantes em Portugal tAm querido su*eitar as invioláveis liberdades do esp3rito$ e me él3cito, por último, falar+lhe de mim, saberá, senhor redator, que estou recolhido numapequena casa na prov3ncia$ e ainda se lembrar de 0eresinha, não estranhará que euacrescente que estou casado há dias$ Precisava disto o meu coraão: da paz de um lartranquilo$ Presenciar as profundas como4es romanescas da vida é como ter assistido aum grande naufrágio: sente+se então a necessidade consoladora das coisas pac3ficas:então mais que nunca se reconhece que o ser humano só pode ter a felicidade no devercumprido$