Economia-da-Cultura-e-Desenvolvimento-Sustentável-o-Caleidoscópio-da-cultura-Ana-Carla-Fonseca-Reis

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    ECONOMIA DA CULTURA E DESENVOLVIMENTO

    SUSTENTVEL

    O caleidoscpio da Cultura

    Ana Carla Fonseca Reis

    2006

    Prmio Jabuti 2007 em Economia, Administrao e Negcios

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    AGRADECIMENTOS

    Insubstituvel sextante de luz, vento de nimo em perodos de calmaria e precioso radar emtempos turbulentos. Quem conhece minha me no se surpreender que meu primeiro e maior

    agradecimento tenha nela sua inspirao. Sua inteligncia arguta, seu amor e criatividade semlimites e a confiana inabalvel que deposita em minhas aventuras fazem de um abrao no qualcabe o mundo o meu real porto seguro.

    Tambm fui agraciada com a presena e a amizade de pessoas especiais como Edna dos Santos-Duisenberg, referncia na arte de antever e realizar; Fbio de S Cesnik, exemplo de abnegaocultural e competncia profissional; Lala Deheinzelin, grande companheira de desbravamentoscriativos; Leonardo Brant, vulco de idias em permanente erupo.

    Amigos e colegas que me incentivaram a cada dia, representantes de instituies que franquearamum espao em suas atribuladas agendas para compartilhar conosco informaes preciosas, time

    do Instituto Pensarte. Com todos e cada um de vocs, compartilho agora este trabalho cujagestao foi to acalentada.

    Ana Tom (Agencia Espaola de Cooperacin Internacional)Andr Martinez (Brant & Associados)

    Edma Fioretti (Programa Monumenta)

    Facundo Solanas (Observatorio Industrias Culturales de la Ciudad de Buenos Aires)Francisco Simplcio (United Nations Development Programme SSC Unit)

    Franco Cilia

    Jos Carvalho de Azevedo (Banco do Estado do Esprito Santo)Luiza Morandini (Instituto Pensarte)

    Mauro Munhoz (Festa Literria Internacional de Paraty)

    Paulo Miguez (Centro Internacional da Economia Criativa)PX Silveira (Instituto Pensarte)

    Rachel Gadelha (Festival de Jazz de Guaramiranga)

    Rodrigo Salinas (Cesnik, Quintino, Salinas e Associados)Ruy Cezar Silva (Mercado Cultural)

    Tuca (Associao Quilombola de Conceio das Crioulas)

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    A sabedoria est no meio.

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    INDICE

    Introduo1) Cultura2) Economia3) Desenvolvimento

    I) Economia da cultura e cultura da economia1) Cultura da economia

    World Values Survey(Pesquisa Mundial de Valores)2) Economia da Cultura

    2.1) A Cultura na histria do pensamento econmico2.2) Baumol & Bowen nasce a economia da cultura como disciplina de estudo2.3) A Necessidade de reviso dos pressupostos econmicos

    3) Medindo o imensurvel valor cultural e valor econmico3.1) Tipologias de valor

    3.1.1) Valor econmico3.1.2) Valor cultural

    3.2) Valor e preo bens privados3.3) Valor, propenso a pagar e polticas pblicas bens pblicos

    II) Os Nmeros da cultura1) Estatsticas das contas pblicas

    1.1) Dados no Brasil1.2) Dados internacionais

    1.2.1) Frana1.2.2) Espanha1.2.3) Uruguai

    2) Metodologias de avaliao do impacto econmico de programas e projetos culturais2.1) Estudos de impacto setorial2.2) Estudos de impacto de projetos ou aes culturais

    2.3) Mtodos de preferncia revelada2.3.1) Mtodo do custo de viagem2.3.2) Mtodo de precificao hednica

    2.4) Mtodos de preferncia declarada2.4.1) Mtodo de valorao contingente (CVM)

    2.5) Ressalvas s metodologias de avaliao do impacto econmico

    III) Demanda1) Demanda privada individual

    1.1) Pesquisas de audincia e participao, hbitos e atitudes

    1.1.1) Gr-Bretanha1.1.2) Estados Unidos1.2.3) Itlia

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    1.2.4) Brasil1.2) Pesquisa de gastos domiciliares1.3) Ressalvas quanto aos estudos de participao cultural e gastos domiciliares

    2) Demanda privada por pessoa jurdica2.1) Programas corporativos de marketing cultural e investimento social privado2.2) Demanda das instituies sem fins lucrativos

    IV) Oferta1) A Oferta cultural privada2) A profisso de artista

    2.1) O Artista como profissional nos ltimos sculos2.2) A Atual definio de artista2.3) As Profisses culturais e seu impacto econmico

    2.3.1) Exemplo prtico: o caso da Frana2.3.2) Um Contraponto: o perfil dos artistas no Reino Unido

    2.4) O Tratamento da questo no Brasil

    V) Mercado e distribuio1) Museus

    1.1) A Multiplicidade de papis econmicos dos museus1.2) O Acervo como patrimnio

    2) Demais equipamentos culturais3) Mercados de arte e arte como investimento

    3.1) Mercados de arte3.2) A Precificao de obras de arte3.3) Arte como investimento

    4) Mercados alternativos de distribuio da produo cultural

    VI) Polticas pblicas de cultura uma abordagem transversal1) O Conceito de poltica cultural e suas derivaes2) Objetivos de poltica pblica

    2.1) Diversidade cultural2.1.1) Diversidade cultural nacional2.1.2) Diversidade cultural em um contexto internacional

    2.2) Democracia cultural e incluso2.2.1) Incluso digital2.3) Cultura e identidades a percepo de si mesmo e do outro2.4) Regenerao geogrfica e qualidade de vida2.5) Cultura e imagem nacional

    2.5.1) Diplomacia cultural uma abordagem integrada2.5.2) Organizaes culturais no exterior

    VII) Instrumentos nacionais de poltica pblica1) De Estado interventor a Estado regulador

    2) Instrumentos reguladores2.1) Bancos de desenvolvimento e empresas pblicas2.2) Incentivos fiscais

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    2.2.1) Leis federais de incentivo cultura benefcios e malefcios2.2.2) Crticas

    2.3) Loterias2.4) Protegendo a produo, os mercados e a diversidade quotas, taxas e fundos2.5) Incentivos variados demanda

    VIII) Instrumentos multilaterais de interveno1) Direitos de propriedade intelectual

    1.1) Instrumentos legais de proteo aos direitos autorais1.2) TRIPS e o abismo entre pases desenvolvidos e em desenvolvimento1.3) A Representatividade econmica dos direitos autorais1.4) O Problema da pirataria

    2) Fluxos internacionais de bens e servios culturais2.1) Davi ou Golias? - a exceo cultural

    IX) Cultura e desenvolvimento uma perspectiva integrada1) Sustentabilidade2) Transversalidade3) Polticas pblicas de desenvolvimento4) O Papel do setor privado da responsabilidade social estratgia de desenvolvimento5) Dos Indicadores econmicos aos indicadores de desenvolvimento

    5.1) Definindo indicadores critrios bsicos5.2) Indicadores econmicos, culturais e de desenvolvimento

    5.2.1) Indicadores econmicos5.2.2) Indicadores culturais5.2.3) Indicadores de desenvolvimento

    X) Turismo e patrimnio cultural1) Turismo cultural e entretenimento

    1.1) Definio1.2) Impacto econmico do turismo cultural e da experincia1.3) Turismo cultural e sustentabilidade1.4) Entretenimento

    2) Patrimnio cultural tangvel

    2.1) Quem paga e quem ganha?2.2) Priorizando o incomparvel3) Patrimnio cultural intangvel

    XI) Das indstrias culturais economia criativa1) Indstrias culturais

    1.1) Definio1.2) Representatividade econmica, concentrao e integrao vertical

    2) Economia criativa2.1) Indstrias criativas um conceito em evoluo

    2.2) Mudando o paradigma economia criativa como ferramenta de desenvolvimento2.2.1) A propriedade intelectual nos pases em desenvolvimento2.2.2) Criatividade matria-prima em abundncia

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    2.2.3) O Entrelaamento dos objetivos econmicos e simblicos2.2.4) Inserindo distribuio e demanda clusters criativos e comunidades

    criativas2.2.5) Educao e capacitao a base do econmico e do simblico2.2.6) A Incluso scio-econmica por meio das micro e pequenas empresas2.2.7) Das Indstrias criativas ao ciclo da economia criativa

    2.3) Uma definio de economia criativa adequada aos pases em desenvolvimento3) Financiamento

    3.1) O papel fundamental do governo no incentivo ao financiamento3.2) Formas de financiamento e investimento

    3.2.1) Emprstimos financeiros3.2.2) Equitye venture capital3.2.3) Business angels3.2.4) Formas alternativas de crdito

    3.3) Divulgando a existncia dos financiamentos disponveis

    XII) Consideraes intermedirias

    Bibliografia

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    INDICE DE QUADROS

    !Cultura, economia, desenvolvimento harmonizando conceitos

    !Eficcia, eficincia e custo de oportunidade bom senso acima de tudo

    !Capital cultural legado do passado e responsabilidade para com o futuro

    !Otimistas e pessimistas culturais vises contraditrias ou complementares?

    !Externalidades e efeito multiplicador elementos bsicos de economia

    !Contas satlite medindo o impacto do setor cultural na economia do pas

    !Confundindo meios e fins como (no) relacionar objetivos e resultados

    !Stuart Mill e a classificao hednica

    !Medina de Fez cultura e economia unidas por sua preservao

    !Elasticidade-renda da demanda e elasticidade-preo da demanda conceitos econmicos

    praticados no dia-a-dia

    !Gosto discuti-lo ou no discuti-lo, eis a questo

    !Socializao cultural na infncia o desenvolvimento do repertrio cultural nos anos em que o

    mundo uma fonte de descobertas

    !Pela defesa dos onvoros culturais!

    !A Participao cultural por meio das novas tecnologias

    !AAccademia di San Luca precursora dos primeiros sindicatos de artistas

    !FAMURS e Censo Cultural da Bahia solues simples para problemas comuns

    !O Fomento ao mercado de arte contempornea programas inovadores para obras

    vanguardistas

    !Festival dejazze bluesde Guaramiranga um festival de bons exemplos

    !Mercado Cultural quando a produo independente d o tom

    !Biodiversidade e diversidade cultural dois lados de um patrimnio comum

    !Associao Quilombola de Conceio das Crioulas economia, artesanato e cultura

    entrelaados nas razes da identidade tnica

    !Investimento em cultura ingrediente bsico da regenerao scio-econmica

    !Quando o tiro sai pela culatra utilizando a diplomacia cultural para reparar a imagem do pas

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    !Zurique de centro financeiro a plo de criatividade

    !Interferir ou no interferir justificativas econmicas em prol de uma atuao ativa do Estado

    !Estatuto de Anne o primeiro documento legal de proteo aos direitos autorais Inglaterra,

    1710

    !Creative Commons buscando um balano entre proteo e excluso

    !A Classificao das indstrias baseadas em direitos autorais

    !Capitais Europias da Cultura a unio da Europa pela transversalidade da cultura

    !Objetivos de Desenvolvimento do Milnio onde est a cultura?

    !Da Estratgia do Oceano Azul Riqueza na Base da Pirmide

    !

    Quando a iniciativa privada tambm ergue a bandeira do desenvolvimento ndices financeiro ede sustentabilidade empresarial

    !Estrada Real promovendo o turismo cultural com base nas pequenas empresas

    !Forum per la Laguna ressaltando as contradies do turismo cultural em Veneza

    !Convenio Andrs Bello o exemplo dado ao lado de casa

    !A Unesco e a lista de patrimnios culturais da humanidade

    !Programa Monumenta promovendo a sustentabilidade cultural, econmica e social do

    patrimnio cultural brasileiro

    !Cingapura e o ecossistema cultural

    !Richard Florida e a ascenso da classe criativa

    !O Exemplo que vem de casa Banco do Estado do Esprito Santo

    !Os Bancos da economia criativa

    !Quando o mundo mais amplo incentivos nacionais exportao cultural

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    PREFCIO (Embaixador Rubens Ricupero)

    Tambm presentes criao

    Consta que Afonso, o Sbio, rei de Castela, teria declarado

    com alguma falta de modstia: Se eu tivesse estado presente criao, teria dado alguns palpites

    teis para o melhor ordenamento do universo. Dean Acheson, que era tambm imodesto e

    secretrio de Estado de um pas obcecado pelo imodesto sonho americano, encontrou nessa

    citao o ttulo para suas memrias, Present at the Creation. Estvamos todos no fim da SegundaGuerra Mundial, conscientes de que crivamos um mundo novo e melhorado.

    (John Holmes, Life with Uncle)

    Roubei o ttulo e a citao do economista canadense Michael Hart, que, por sua vez, se

    servira de Holmes, o qual se referia a Dean Acheson e, por essa intermediao, a Afonso, o Sbio,

    de Castela. Fiz isso por dupla razo. Primeiro, por achar apropriada a idia de presente criao

    na introduo de obra dedicada a conceito em formao, em processo de evoluo, um work inprogress. Mais ainda, porque esse mesmo conceito tem como contedo principal a criao de

    condies para favorecer a criatividade. Tudo a ver, portanto.

    O comeo do meu novelo pessoal de contatos com a economia da cultura ou da

    criatividade data de vrias dcadas atrs. Estava lendo um livro de John Kenneth Galbraith, talvez

    The Affluent Society e lembro apenas de minha reao de incredulidade diante da profecia de

    que, em futuro no muito distante, o motor da economia seria a produo e o consumo de bens

    culturais. Pura fico de intelectual sonhador, pensei. Em livro posterior, The Culture of

    Contentment, o prprio Galbraith admite que a concentrao na produo e consumo de bensculturais no para todos. Haver divises e excluses no seio das sociedades avanadas e entre

    estas e as demais, aquelas onde a maioria das pessoas continuar, segundo as palavras de

    Thoreau, a levar vida de quiet desperation, de calado desespero e de trabalho embrutecedor.

    No obstante, inegvel que a economia criativa representa claramente o futuro e esta

    obra vem recheada de cifras e argumentos para no deixar dvidas sobre a direo para a qual

    aponta a curva da expanso econmica. O rumo o da crescente acumulao de riqueza em bens

    intangveis, em larga medida produtos da engenhosidade, da criatividade humana e relativamente

    pouco dependentes dos fatores tradicionais de produo associados a vantagens naturais, capital,mo de obra barata. O que conta mais e mais a infinita e maravilhosa capacidade do ser

    humano de tirar algo do nada ou quase nada, a partir de sua interioridade e de sua interrelao

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    construtiva com os outros, reflexo, diro os crentes, da fagulha divina que fez com que Deus

    deixasse inacabada sua criao a fim de que pudessem os homens ajudar a complet-la.

    Uma das coisas maravilhosas da criatividade que ela brota at em terrenos pobres e de

    pouca gua. O Esprito sopra aonde quer e suscita talentos naturais em toda a parte. Saint-

    Exupry lamentava os incontveis pequenos Mozarts que se perdiam por falta de oportunidades e

    de cultivo.

    Como Secretrio Geral da Conferncia das Naes Unidas para o Comrcio e o

    Desenvolvimento (UNCTAD), acompanhei com interesse o trabalho realizado por uma de nossas

    funcionrias mais brilhantes, Zeljka Kozul-Wright, com o governo jamaicano. A Jamaica uma das

    fontes mais ricas e originais de gerao inesgotvel de ritmos e msicas que marcaram fortemente

    o jazz e a msica popular de nosso tempo. Acontece que muito pouco dos benefcios materiais

    aportados pelos ritmos e msicas jamaicanos fica no pas de origem ou redunda em melhoria devida para as pessoas do povo da ilha. Os msicos e intrpretes emigram para Londres ou Nova

    York, se que j no vivem nessas cidades, sedes tambm das companhias que monopolizam a

    impresso, distribuio, venda de discos, detendo os direitos de propriedade sobre a explorao

    daquilo que foi, num momento, o reflexo do patrimnio comum e annimo do povo. O projeto

    visava a trabalhar com o governo e a comunidade para a criao de agncias capazes de melhor

    proteger a propriedade intelectual originria do pas. O xito desse trabalho pioneiro levou-o

    gradualmente a atrair a ateno de toda a regio caribenha, de Cuba, de pases africanos.

    Em 2001, as iniciativas em torno do assunto estiveram em posio destacada naConferncia das Naes Unidas sobre os Pases Menos Avanados, que constituem as 50

    economias mais vulnerveis do mundo. Desde ento, as creative industries ou economia criativa

    se converteram num dos programas para promover o desenvolvimento de pases da frica, sia,

    Amrica Latina, Caribe, mediante o pleno aproveitamento do seu potencial cultural em termos de

    desenvolvimento econmico e social.

    Todo esse esforo culminou na XI Conferncia das Naes Unidas sobre Comrcio e

    Desenvolvimento em So Paulo, em 2004, da qual saiu o programa sistemtico da UNCTAD na

    rea, sob a liderana de uma das profissionais mais dinmicas e competentes das Naes Unidas,a brasileira Edna dos Santos-Duisenberg. Graas em grande parte ao empenho de Edna e ao

    entusiasmo esclarecido do Ministro Gilberto Gil, tomou-se a deciso de estabelecer em Salvador

    um Centro Internacional para a Economia Criativa, de cuja formatao Ana Carla foi participante

    ativa.

    Narrei essa histria para mostrar que minha aproximao com os problemas da economia

    criativa ocorreu sobretudo a partir do ngulo de sua capacidade de servir como instrumento de

    riqueza e desenvolvimento de povos que no dispem com frequncia de muitas outras condies

    propcias. Poderamos cham-lo A riqueza dos pobres, a fim de mostrar precisamente que, emmatria de cultura e arte, os que chamamos de pobres os msicos de jazz de New Orleans e do

    Mississipi, os guajiros cubanos inventores do son, os compositores dos morros cariocas, os

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    Cartolas, Nelson Cavaquinhos, Carlos Cachaas, que vendiam sambas a dez mil ris para cantores

    do rdio eram os verdadeiros milionrios a esbanjar talento, a desperdiar beleza em troca de

    uns tostes para sobreviverem e no serem obrigados a lavar automveis, conforme aconteceu

    com Cartola at ser redescoberto.

    No se pense que o fenmeno restrito msica popular. O panorama universal: as

    cores deslumbrantes dos tecidos africanos, dos panos da Costa, como se dizia no Brasil de

    outrora, as tonalidades inesgotveis dos saris indianos, as mscaras e esculturas do Mali, de

    Burkina, do Congo, do Gabo, as pinturas do Haiti, do sul da frica, o cinema do Ir, a poesia dos

    cordis ou dos poetas repentistas do Nordeste, ficaramos a encher pginas aqui se buscssemos

    fazer o inventrio da criatividade annima dos povos ditos atrasados.

    essa diversidade das culturas e dos produtos que elas engendram que, desde tempos

    imemoriais, alimentou o comrcio de sedas, damascos, brocados, incenso, perfumes, especiarias,entre Oriente e Ocidente, Sul e Norte. O que indito em nossos dias a escala estonteante de

    multiplicao desses contatos e o aparecimento de um pblico de massa, de milhes de indivduos

    com capacidade de compra, dispostos a pagar para assistir um concerto de ctara indiana ou de

    msicos tuaregues, comprando-lhes os discos editados por casas especializadas.

    A globalizao, em outras palavras, expandiu em dimenso geomtrica a demanda por

    variedade cultural. Como a globalizao tambm tende dialeticamente a espalhar a praga do que

    h de pior nos modismos culturais degradados dos Estados Unidos e do Ocidente, houve quem se

    fixasse apenas em tal tendncia, esquecendo a outra, a da fome de diversidade num mundo quese afoga na mediocridade e no grotesco da televiso e do consumismo.

    A relao ambgua, contraditria, da diversidade cultural com a economia globalizada

    oferece alguma analogia com tendncia anterior, a da relao igualmente ambivalente da cultura e

    das artes com o surgimento de mtodos industriais que permitiram multiplicar em massa as obras

    artsticas, por meio de processos reprodutivos como a fotografia. A rigor, tudo comea muito

    antes, quando a tipografia de Gutemberg pe fim longa era do livro-pergaminho, privilgio de

    poucos. medida que se alarga o crculo de pessoas alcanadas pela obra de arte, um movimento

    similar faz com que a nfase do conceito de cultura se desloque da produo de cultura para seuconsumo, desfrute ou apreciao. Enquanto os produtos culturais eram sobretudo proporcionados

    por meio de representaes ao vivo, como no teatro ou nos espetculos dos jograis das feiras

    medievais, o vnculo entre sua produo e seu consumo era ainda bem visvel. Isso muda

    radicalmente no momento em que idias culturais passam a serem incorporadas em objetos

    reprodutveis fornecidos a um mercado de massa disperso no espao e no tempo.

    A mesma razo explica que o debate sociolgico sobre a cultura alterne entre uma

    perspectiva de produo ou de consumo. Partindo do ngulo da criao, Walter Benjamin foi dos

    primeiros a explorar como a produo artstica era moldada pelas condies tecnolgicasexistentes. Em seus escritos sobre fotografia, entre outros, ele encarou a produo em larga

    escala de cultura como tendncia essencialmente positiva. J seu contemporneo e colega Adorno

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    e, antes dele, Nietzsche, associaram a co-modificao da cultura com um processo destrutivo,

    frequentemente ligado abordagem industrial ou mercadolgica do consumo da cultura.

    A globalizao possui, efetivamente, dimenso cultural fundamental, uma vez que ela no

    se resume unificao, em escala planetria, dos mercados para o comrcio, o investimento e as

    transaes financeiras. Dois dos elementos cruciais dessa transformao so culturais por

    natureza: o carter dos avanos em cincia e tecnologia, ambas produtos da cultura e seu

    resultado, que de promover a transmisso de informaes, conhecimento e idias, ou seja, da

    essncia da cultura.

    Desse ponto de vista, preciso reconhecer o incalculvel potencial positivo da globalizao

    para multiplicar e facilitar as possibilidades de intercmbio e de interao entre diferentes culturas

    e civilizaes. Afinal de contas, boa parte do progresso histrico nas cincias, nas artes e na

    cultura em geral ocorreu como resultado direto da transmisso intercultural. dessa complexa trama entre economia e cultura, entre globalizao e diversidade, entre

    criatividade gratuita e utilidade comercial que trata o estudo de Ana Carla. Chama a ateno que

    ela tenha chegado a essa etapa seguindo caminho de certo modo surpreendente. Em 2002, ela

    havia publicado Marketing Cultural e Financiamento da Cultura, com o subttulo Teoria e prtica

    em um estudo internacional comparado (Editora Thomson, So Paulo). O livro adotava enfoque

    eminentemente concreto e prtico, procurando mostrar as diversas alternativas existentes nos

    pases lderes em termos de financiamento das atividades culturais e de sua promoo e

    distribuio.Basta percorrer com o olhar o ndice desse trabalho para ter o interesse despertado pela

    sua enorme potencialidade em matria de orientao utilitria para todos os que, de uma forma

    ou outra, trabalham com o mundo da cultura e da economia. H, por exemplo, captulos dedicados

    aos mtodos de seleo de projetos, de avaliao dos resultados, de treinamento de pessoal

    habilitado e at, numa das passagens que achei mais originais, grande participao possvel para

    pequenas e micro empresas.

    O que at certo ponto me surpreendeu foi que, aps demonstrar sua faceta matter of

    fact ou businesslike (desculpem o ingls, mas difcil evitar nessas matrias prticas o recursoao idioma do pas que um dos seus presidentes, Clavin Coolidge, assim definiu: The business of

    the United States is business) , a autora empreendesse vo terico muito mais desafiador com

    esta nova obra. O Caleidoscpio da Cultura Economia da cultura e desenvolvimento

    sustentvel , como se pode perceber da abrangncia do ttulo, esforo de envergadura de asas

    muito mais ampla e generosa. Trata-se, em realidade, de um dos estudos mais sistemticos e

    completos que conheo sobre o universo em gestao da economia da cultura e da cultura da

    economia, alis ttulo de seu primeiro captulo.

    O caminho que se poderia talvez considerar mais usual teria sido partir de alguns conceitosbsicos de carter geral e descer gradualmente ao particular e especfico. Ana Carla abriu caminho

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    inverso porque, conforme deixa claro na introduo do livro anterior, sua trajetria pessoal nessa

    rea foi sempre marcada por uma constante e inseparvel interao entre reflexo e prtica, pela

    unidade entre o pensamento terico e sua transformao em resultados concretos, que fazem

    sentido do ponto de vista rigoroso de uma economia preocupada com custos financeiros e

    dividendos objetivos.

    Dessa perspectiva, vale observar como, logo aps discutir os grandes conceitos e

    definies que balizam o debate contemporneo sobre economia criativa, indstrias criativas,

    economia da cultura ou da criatividade e seus possveis contedos, ela no perde o p nesse

    terreno especulativo em ebulio e imediatamente cala a narrativa com o captulo seguinte, que

    sugestivamente se volta para Os Nmeros da cultura. Creio que um dos aspectos que explicam a

    riqueza e valor da arquitetura interna da obra e de sua concretizao precisamente a feliz

    coincidncia, na autora, de vivncia pessoal do tema nas suas atividades profissionais, com a

    experincia provada no competitivo mundo das grandes transnacionais globalizadas e com uma

    acentuada vocao para a explorao das idias, de anlise de conceitos com rigor acadmico.

    Esta uma rea de bibliografia parca e insatisfatria, conforme a prpria Ana Carla

    comenta na introduo do primeiro livro, ao confessar sua surpresa com a quase inexistente

    bibliografia no Brasil e ao notar como eram raros, mesmo no exterior, os livros de referncia com

    a solidez que eu buscava. Nessa confisso esconde-se possivelmente o secreto projeto desde

    ento da autora no sentido de esboar, ela mesma, a obra slida necessria, que toma corpo

    agora com este novo trabalho, a partir da sistematizao do exame do problema em seus diversos

    nveis possveis de generalizao e de anlise dos casos particulares.

    A maioria dos escritos sobre este campo em processo de desbravamento provm, com

    efeito, de gente da universidade, sobretudo dos pases de lngua inglesa, Reino Unido, Austrlia,

    Canad, Nova Zelndia, Irlanda onde j existem cursos estabelecidos de economia criativa. Outros

    ttulos foram escritos de uma perspectiva essencialmente prtica. O que , de fato, extremamente

    raro encontrar algum que alie essas duas dimenses de forma harmoniosa e fecunda, como no

    caso da autora.

    Ademais, ela demonstra, entre outras coisas, que ser prtica e terra-a-terra no exclui asensibilidade para a linguagem clara e elegante, para uma cultura universal e com capacidade de

    escolher o melhor, para o conhecimento atualizado do que se est no momento fazendo nesse

    domnio, o que acentua o valor e a utilidade do que ser um roteiro seguro para quem se aventure

    nos caminhos ainda pouco mapeados da economia criativa. No tenho dvidas de que Ana Carla

    Fonseca Reis conseguiu realizar o que buscava: uma obra slida que constituir, a partir de agora,

    o marco inicial e a referncia insubstituvel para o estudo da economia criativa no Brasil.

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    INTRODUO

    Gosto de pensar que um livro um ser em formao. gestado ao longo de meses, durante osquais provoca alegrias incontidas, alternadas com crises de responsabilidade atrozes. Quando vem

    ao mundo, no obstante nossos esforos obstinados, dia aps dia, em tentar imaginar como

    realmente seria em sua verso final, sempre uma surpresa. Reconhecemos imediatamente nossa

    marca indelvel em seus traos gerais e em tantos detalhes mas inevitvel esquadrinhar cada

    pgina buscando referncias a outras obras, situaes ou experincias que a tenham inspirado e

    presenteado com uma carga de referncias nica. bem verdade que em vrios casos nos

    perguntamos a quem aquele captulo ter puxado. E temos de admitir, aps uma varredura das

    fichas fsicas e mentais, que a ningum. Aquele seu trao distintivo, sua contribuio singular,que o impulsionar a alar vo, descobrir seu prprio caminho, relacionar-se com outras obras e,

    depositrio de nossas mais profundas esperanas, preencher-nos de emoo ao percebermos que

    deu origem a novas discusses, propostas e obras.

    Este livro nasce com uma misso ambiciosa e no desprovida de ousadia: analisar um tema to

    valioso, simblica e economicamente, como o dos caminhos de mo dupla que unem cultura e

    desenvolvimento sustentvel. Essa proposta se sustenta em uma trama de trs premissas

    entrelaadas. A primeira a percepo de que os caminhos tm paisagens to mais variadas quo

    mais rica for nossa identidade (ou nossas identidades) e mais consciente for nosso entendimentode sua dimenso estratgica. A segunda traduz essa dimenso em um caleidoscpio cujas facetas

    cultural, econmica e social se complementam para formar as vrias imagens possveis de nosso

    desenvolvimento. A terceira, por fim, reconhece que esses caminhos no so lineares. Eles se

    cruzam, bifurcam, reencontram-se, fundindo limites entre conceitos, articulando parcerias entre

    setores, descortinando horizontes que at ento no se faziam visveis.

    Prope-se aqui a viso plural de cultura, economia e desenvolvimento sustentvel. Para isso,

    preciso girar o caleidoscpio, revelando a criatividade da economia, que se cr to racional. Afinal,

    como disse Marx, A razo sempre existiu mas nem sempre de modo racional. Damos mais umagiro e enxergamos o aspecto racional e tangvel da cultura, que em nada tolhe sua criatividade.

    Como bem expressou Picasso, No h arte abstrata. Voc sempre precisa comear com algo.

    Depois pode remover-lhe todos os traos da realidade.

    Essa busca de uma trilha prpria, ladeada de esteretipos desfeitos, tem sua base lanada no

    primeiro captulo. Economia da cultura e cultura da economiaapresenta conceitos que nos

    serviro de bssola at nossa meta final e tem na complementaridade de valor simblico e valor

    econmico suas coordenadas bsicas. A discusso da diferena entre valor e preo nos levar a

    Os Nmeros da cultura, no qual as metodologias de avaliao do impacto econmico restituiro cultura sua posio privilegiada tambm na gerao de riqueza, empregos, arrecadao

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    tributria e comrcio internacional. Ao ser vista no mais como consumidora de recursos mas sim

    como sua geradora, a cultura se vale das ferramentas econmicas para conduzir aos objetivos de

    desenvolvimento econmico-social.

    Os captulos seguintes, Demanda, Ofertae Mercado e distribuio, formam uma trade que

    explicita as particularidades dos produtos e servios culturais e a incapacidade das regras de

    mercado em incorporar e refletir tambm seu valor simblico. Para resgatar essa dimenso

    paralela, Polticas pblicas de cultura uma abordagem transversal defende a

    permeabilidade da cultura a outros setores e seu papel estratgico para integrar a seu redor as

    polticas educacional, social, econmica, das relaes exteriores, do turismo, do trabalho, em prol

    do objetivo comum de desenvolvimento. A seu favor esto os Instrumentos nacionais de

    poltica pblica, que quando incorporam a sociedade civil e a iniciativa privada lanam as bases

    para a produo, abrem as portas da distribuio e franqueiam o acesso aos bens e servios

    culturais. Porm, em um mundo globalizado que reconhece a importncia dual da cultura e joga

    essa carta nas mesas de negociao e acordos internacionais, fundamental incluir nessa anlise

    os Instrumentos multilaterais de interveno.

    Salienta-se a necessidade de lutarmos por direitos de propriedade intelectual que salvaguardem

    tambm os conhecimentos tradicionais e no s defendam, como promovam a diversidade

    cultural, em simbiose com a biodiversidade. Do mesmo modo, a dinmica dos fluxos internacionais

    de bens e servios culturais deslindada para que a percepo dos interesses e presses em jogo

    promova a conscientizao de nosso papel como partcipes desse processo. Sem conscincia no

    h liberdade de fato. E liberdade um ativo precioso, conforme salientado com elegncia mpar

    por Amartya Sen1, Prmio Nobel de Economia: a liberdade no apenas o objetivo primordial do

    desenvolvimento, mas tambm seu principal meio.

    Cultura e Desenvolvimentoreconhece que nosso caminho ladrilhado com potencialidades e

    recursos que ultrapassam os naturais e tecnolgicos, navegam pela sociedade do conhecimento e

    pela busca da experincia. Eles unem passado e futuro, atravs de Turismo Cultural e

    Patrimnioe se ancoram na criatividade capaz de se concretizar em inovao, tnica dada por

    Das Indstrias Culturais Economia Criativa. O sucesso da economia criativa como

    estratgia de poltica pblica em diversos pases da Europa, Oceania e Amrica do Norte tem

    levado outros a seguir seus passos. As oportunidades so imensas. Mas, para aproveit-las de

    fato, preciso encontrar uma definio e um modo de implementao que atendam s nossas

    caractersticas, aproveitem nossos talentos, lancem as fundaes de um caminho transversal e

    conduzam, de fato, ao desenvolvimento sustentvel.

    1Desenvolvimento como Liberdade.

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    ECONOMIA DA CULTURA E CULTURA DA ECONOMIA

    No mundo imperial, o economista, para citar um exemplo, precisa ter conhecimento bsico daproduo cultural a fim de compreender a economia, e da mesma forma o crtico cultural precisade conhecimento bsico dos processos econmicos para compreender a cultura. (...) As lutas so

    ao mesmo tempo econmicas, polticas e culturais e, por conseqncia, so lutas biopolticas,valendo para decidir a forma da vida. So lutas constituintes, que criam novos espaos pblicos e

    novas formas de comunidade.2

    Michael Hardt e Antonio Negri

    Cultura da economia ou economia da cultura? Dois conceitos parecidos somente no nome.Veremos a seguir a que se refere cada um deles e nos prximos captulos como se desdobra oreconhecimento de duas dimenses paralelas: a dos valores simblicos e a dos valoreseconmicos.

    1) Cultura da economia

    A cultura da economia estuda essencialmente a influncia dos valores, crenas e hbitos culturaisde uma sociedade em suas relaes econmicas. Vista sob esse ngulo, a cultura tida como

    fator de propulso ou de resistncia ao desenvolvimento econmico. devido a essa premissa quenos deparamos com afirmaes de que uma determinada sociedade mais talhada para oprogresso econmico, enquanto outra tradicional demais para admitir mudanas e inovaesque conduzam ao desenvolvimento econmico.

    Assim, para entender o comportamento econmico seria necessrio conhecer a cultura e aestrutura social que a reflete. preciso porm evitar uma abordagem determinista da questo, porduas razes bsicas. Em primeiro lugar, um valor ou trao cultural tido como favorvel aodesenvolvimento econmico pode ser-lhe prejudicial em outro contexto. o caso da tendncia apoupar da sociedade japonesa. Embora tenha sido fundamental para financiar a solidez da

    economia do pas durante sua recuperao e expanso, hoje trava o consumo, desaquece omercado e constitui um dificultador da retomada econmica.3

    Em segundo lugar, a existncia de uma multiplicidade de culturas no deve ser alvo de umacruzada que defende a eliminao de determinados traos culturais para abrir espao a umsuposto desenvolvimento econmico. Tratar-se-ia de um exerccio disparatado, j que a cultura a essncia de uma sociedade e no pode nem deve ser mudada por imposio. Do ponto de vistatico e conceitual, esse raciocnio pressupe que exista apenas um modo de atingir odesenvolvimento econmico. O fato de o modelo que conhecemos hoje ser bem-sucedido emmuitas sociedades no significa que seja o nico possvel. Conforme sumariza o Relatrio de

    2Imprio, p.16 e p.75.3PORTER, Michael E., Atitudes, valores, crenas e a microeconomia da prosperidade.InHarrison e Huntington(Org.),A Cultura Importa os Valores que definem o progresso humano, p.54.

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    Desenvolvimento Humano do Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento - PNUD, Sealgumas culturas de uma socieade so tidas como fora de sintonia com o crescimento econmicoou a democracia, no preciso ir muito longe para argumentar que precisam ser suprimidas ouassimiladas (...) Como a cultura no estanque, a cultura da sociedade de hoje pode dizer muito

    pouco acerca de seu desenvolvimento futuro. E essas mudanas ocorrem no como resultado depolticas definidas de mudana cultural, conforme os deterministas culturais podem propor. Elasacontecem atravs de interaes econmicas e polticas com outras culturas, atravs de umamelhor educao uma concluso pouco diferente das que tiramos em outras reas da teoria dodesenvolvimento.4

    CULTURA, ECONOMIA, DESENVOLVIMENTO harmonizando conceitos

    Cultura, economia, desenvolvimento. Trs conceitos que motivam debates acalorados e

    classificaes distintas, sem que de fato se atinja um consenso. As verses aqui propostas nopretendem pr fim a essa questo mas sero teis para alinhar o entendimento do que serdiscutido nas prximas pginas.

    Cultura

    Etimologicamente o conceito de cultura deriva do cultivo da terra. Transposto depois ao cultivo damente, traz em si a idia de que uma pessoa que se prepara, absorve conhecimento e d ascondies para a sua maturao colhe bons frutos intelectuais tornando-se uma pessoa culta.Em uma abordagem antropolgica, cultura engloba os conhecimentos, crenas, lnguas, artes, leis,valores, morais, costumes, atitudes e vises de mundo. Essa a chamada Cultura com c

    maisculo, o amlgama e o diapaso da sociedade. Em um sentido mais estreito ( culturacom cminsculo), refere-se aos produtos, servios e manifestaes culturais, ou seja, que trazem em siuma expresso simblica da Culturaem sentido amplo. a essa cultura, que ao integrar a arenaeconmica adquire valor dual simblico e econmico que fazemos referncia.

    Economia

    A economia ganhou corpo com a expanso mercantilista, quando as questes comerciais foramseparadas da teologia, em nome dos interesses nacionais. Tornava-se possvel discutir valor demodo abstrato e sem julgamentos morais.5Sculos depois, a definio mais corrente v economia

    como a cincia da alocao de recursos escassos (trabalho, dinheiro, matrias-primas, gua etc.).Em essncia, portanto, a economia lida com escolhas, utilizando um sem-nmero de modelos paraexplicar a relao entre variveis e propor a melhor soluo para os objetivos traados. Comoqualquer cincia, ela evolui e se transforma a cada dia, aglutinando correntes ortodoxas eheterodoxas. A microeconomia estuda os agentes econmicos individuais, como empresas,famlias, governo, trabalhadores e as teorias de oferta, demanda e preo. J a macroeconomiatrata do funcionamento da economia de modo agregado, lidando com a contabilidade nacional, ademanda e a oferta agregadas e o equilbrio entre renda, produto, moeda e juros.

    Desenvolvimento

    4UNITED NATIONS DEVELOPMENT PROGRAMME,Human Development Report 2004, p.38.5WILK, Richard R.,Economies and Cultures Foundations of economic anthropology.

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    Tradicionalmente, enquanto o crescimentodiz respeito acumulao (e.g.de renda individual oudo PIB), o desenvolvimento lida tambm com sua distribuio, analisando o bem-estar e aqualidade de vida na sociedade. Crescimento, ento, apenas um aspecto do desenvolvimento.Uma abordagem mais inovadora define desenvolvimento como a expanso das liberdades

    humanas Amartya Sen.

    Pesquisa de Valores Culturais (World Values Survey)

    A World Values Survey, como o nome indica, um levantamento que busca mapear valoreshumanos, objetivos e expectativas relacionados a uma ampla srie de questes, como poltica,economia, religio, comportamento sexual, papis dos sexos, valores familiares, identidadescomuns, engajamento civil, preocupaes ticas, proteo ambiental, progresso cientfico,desenvolvimento tecnolgico e felicidade humana. Desenvolvido junto a mais de 80 pases, coleta

    dados relativos a todas as faixas de renda, em pases tidos como democrticos ou autoritrios,praticantes de diferentes religies e nos quais a cultura considerada individualista oucomunitria.6

    Um dos aspectos mais interessantes desse levantamento o uso de uma metodologia que permitea comparao dos pases com relao a diferentes atributos, minimizando a incorporao de juzosde valor do analista. Os dados podem ser apresentados sobre dois eixos. O primeiro deles cobre adimenso tradicional x secular-racional e reflete o contraste entre sociedades conforme aimportncia que atribuem religio, aos laos familiares e sua deferncia autoridade. Assim,uma das constataes que sociedades tradicionais enfatizam a submisso social, tm maior

    respeito hierarquia e se apiam no consenso, em oposto s sociedades com valores seculares-racionais, voltadas s conquistas individuais. O segundo eixo o da sobrevivncia x auto-expresso. No extremo da sobrevivncia encontram-se sociedades com baixo nvel de bem-estarsubjetivo e confiana interpessoal, nas quais h maior intolerncia frente a grupos externos e adesigualdade entre os sexos no recriminada. J as sociedades de auto-expresso apresentamvalores opostos, tendendo a ser ativistas ambientais e desfavorveis a governos autoritrios.

    Assim, conclui-se que as sociedades que enfatizam a auto-expresso tm maior probabilidade deserem democracias estveis.

    A pesquisa permite observar a evoluo da percepo quanto a temas variados em um mesmo

    pas, no perodo de 1981 a 2000 ou ainda cruzar os dados relativos a diferentes pases quanto aum mesmo assunto. Questo intrigante, por exemplo, a que avalia a confiana das pessoas comrelao a a diversas instituies. Elegendo-se duas delas, televiso e governo, chegamos devastadora (embora em muitos casos no surpreendente) constatao que a confiana nateleviso maior do que a depositada no governo, na polcia, nos sindicatos ou partidos polticos.

    6Desde novembro de 2005 os dados esto disponveis nositewww.worldvaluessurvey.com

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    Grau de confiana em instituies - Brasil

    10,6 10,9 12,7 9,4 3,7

    46,537,3

    41,235,5

    28,5

    22,5

    19,3

    18,2

    20,2

    19,4

    20,231,6 25,7 34,1

    47,6

    0,3 0,9 2,3 0,8 0,8

    0%

    20%

    40%

    60%

    80%

    100%

    Televiso Governo Sindicatos Polcia Partidos polticos

    Confio muito Confio No confio muito No confio No sei

    Outra considerao relevante da pesquisa fornecer subsdios analise no apenas da influnciados valores culturais sobre o nvel de desenvolvimento econmico, como tambm do impacto dodesenvolvimento econmico sobre os valores culturais. De fato, uma das concluses dolevantamento indica que alm de transformar a estrutura social, contribuindo para a educao e aformao profissional, o desenvolvimento econmico favorece mudanas culturais (aumento deconfiana interpessoal e tolerncia, por exemplo) que ajudam a estabilizar a democracia.7 Emoutras palavras, a esfera cultural no s influenciaria o desenvolvimento econmico mas seria porele influenciada.

    2) Economia da cultura

    Os economistas tm dedicado pouca ateno ao papel da cultura no desenvolvimento econmico,seja ao contextualizar o processo de crescimento no mundo em desenvolvimento ou ao influir mais

    diretamente nos resultados econmicos dos pases desenvolvidos. H provas de que essesparadigmas tradicionais esto mudando. Em anos recentes despertou-se interesse considervel

    pela noo de que, longe de ser perifrica ao desenvolvimento econmico, a cultura inextricvele central a ele, oferecendo tanto o contexto no qual o progresso econmico ocorre, quanto o

    prprio objeto de desenvolvimento, quando vista sob a perspectiva das necessidades individuais.8

    David Throsby

    Por outro lado, a economia da cultura se refere ao uso da lgica econmica e de sua metodologiano campo cultural. A economia passa assim a ser instrumental, emprestando seus alicerces deplanejamento, eficincia, eficcia, estudo do comportamento humano e dos agentes do mercadopara reforar a coerncia e a consecuo dos objetivos traados pela poltica pblica. A economiano normativa, ela no julga a legitimidade da poltica pblica e no se prope a definir quaisseriam seus objetivos, mas se coloca a servio da cultura para garantir que estes sejam atingidos.

    7INGLEHART, Ronald, Cultura e democracia.InHarrison e Huntington, op.cit., p.143.8Economics and Culture, p.164.

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    Retoma-se assim a prpria origem epistemolgica da palavra grega economia: oikos, casa; nomos,administrao, organizao, distribuio. Para isso, a economia analisa as relaes entre oferta,distribuio e demanda culturais, identifica as falhas de mercado que fazem com que nem todostenham acesso produo cultural, mapeia as restries individuais que limitam seu consumo,

    sinaliza caminhos possveis para o desenvolvimento sustentvel e sugere aes a serem tomadaspara que distores sejam corrigidas. Ela se vale do uso de estratgias e objetivos, de indicadoresde cumprimento e monitoramento, com monitoramento dos meios mas foco nos resultados,minimizando assim o que Peacock definiu como ... a tendncia a utilizar uma cortina de fumaade palavras para disfarar a falta de coeso na poltica cultural.9As perguntas de fundo referem-se a como melhor utilizar os recursos, agentes e estruturas disposio da sociedade para atingiros objetivos de poltica pblica e faz-lo com a mxima eficincia possvel.

    EFICCIA, EFICINCIA E CUSTO DE OPORTUNIDADE bom senso acima de tudo

    1) Eficcia uma ao ou programa eficaz quando seu objetivo final atingido. Assim, pode-sedizer que um estudo da cadeia produtiva do artesanato foi eficaz em identificar os gargalos deproduo ou ainda que um projeto foi eficaz em gerar empregos para a populao local.

    2) Eficincia uma ao ou programa eficiente quando com determinados recursos obtm-seos melhores resultados possveis. Uma anedota diz que atingir uma mosca com uma bala decanho pode ser eficaz mas certamente no ser eficiente, porque os recursos empregados forammuito superiores aos que teriam sido necessrios para atingir o objetivo traado. Eficinciarelaciona-se, portanto, com o modo como os recursos so empregados. Um desdobramento doconceito de eficincia o de eficincia de Pareto, que ocorre quando no h alocao de recursosque deixe as pessoas ao menos to bem quanto j esto e algum em situao melhor. Se algono eficiente de Pareto, significa que algum pode estar melhor, sem que os outros sejamprejudicados.

    3) Custo de oportunidade o custo de oportunidade baseia-se no fato de que um agenteeconmico (empresas, governos, instituies e cada um de ns) faz escolhas continuamente. Dadoque os recursos so limitados (tempo, dinheiro, recursos naturais) e as oportunidades deinvestimento so variadas (uma pessoa pode escolher aplicar seu dinheiro em uma aplicaofinanceira, viagem, curso, compras ou ainda no fazer nada com ele), ao optarmos por um uso do

    recurso renunciamos automaticamente s suas alternativas. O custo de oportunidade o custoassociado s oportunidades que so descartadas, quando se faz uma escolha. Assim, uma pessoater de abdicar do consumo do bem B, se resolver consumir o bem A; do mesmo modo, ao investirem um determinado projeto uma empresa dever desconsiderar o investimento simultneo emoutros projetos. Outra implicao do custo de oportunidade que os benefcios de umdeterminado projeto devem no s ser superiores ao seu custo, mas tambm maiores do que osbenefcios que poderiam ter sido gerados por outros investimentos. Embora o conceito sejaintuitivo (cada um de ns questiona continuamente se a satisfao pessoal, profissional,financeira de seu trabalho a melhor que poderia obter ou se valeria a pena mudar de atividadeou emprego), nem sempre essa comparao considerada quando os resultados de um

    investimento privado ou das polticas pblicas so apresentados. Quando o investimento feito

    9PEACOCK, Alan,Paying the Piper culture, music and money, p.148.

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    com verba pblica, o governo deve considerar o custo de oportunidade entre diferentesalternativas, frente a seus objetivos. Se sua meta for promover a identidade nacional, a anlise docusto de oportunidade indica que, por maiores que sejam a renda e o nmero de empregosgerados com o subsdio de espetculos musicais estrangeiros, por exemplo, no existiro recursos

    necessrios ao subsdio de projetos voltados ao resgate das razes da cultura popular, que de fatopromoveriam a identidade nacional. simplesmente uma questo de coerncia (ou falta de) entreos objetivos de poltica cultural e as aes tomadas para atingi-los.

    Ao restituir cultura seu valor econmico, a economia da cultura lhe garante um lugar de peso namesa de negociaes multilaterais, nos debates sobre alocao de oramentos pblicos e promoveo envolvimento do setor corporativo nas questes culturais no apenas como marketing culturalou responsabilidade social, mas como parceiro viabilizador de empreendimentos culturais. Em ummundo que se guia por avaliaes e mensuraes, a economia devolve cultura sua voz ativa ecomplementar aura esttica, simblica e social que transcende essa discusso. Assim, entramem jogo as roldanas que fazem a cultura transitar com desenvoltura tambm pelos meandroseconmicos: metodologias de avaliao do impacto econmico da cultura na gerao de riqueza eempregos; valor do capital cultural; participao no mercado; direitos de propriedade intelectual;

    justificativas para a interferncia estatal no mercado; impactos dos acordos multilaterais nasrelaes sociais e na preservao das expresses culturais de um povo.

    A economia da cultura utiliza seu arsenal de conhecimento e tcnicas para comprovar de modoinquestionvel a importncia primordial da cultura como motor de crescimento econmico e seupotencial para o desenvolvimento scio-econmico. A economia se pe assim disposio dasmetas de desenvolvimento.

    A necessidade de reconhecer poliglota cultura tambm a lngua da economia evidente quandose discute a alocao de recursos e financiamentos. Nada mais esclarecedor desse ponto do que otestemunho de um banco. Ao proferir um discurso no qual sua simpatia pelo financiamento deprojetos culturais ficou patente, o ento Representante de Desenvolvimento Urbano do BancoInteramericano de Desenvolvimento - BID, Eduardo Rojas, manifestou o dilema que os bancos dedesenvolvimento enfrentam ao analisar o financiamento de projetos culturais. Apesar dessasconsideraes (acerca da importncia da cultura para o desenvolvimento econmico), para um

    banco de desenvolvimento multilateral, at mesmo um com abrangncia do BID, financiar acultura como componente do desenvolvimento problemtico. (...) Mesmo em atividades nasquais o apoio do governo tido como necessrio, como preservao do patrimnio urbano, hpouca clareza acerca de sua prioridade para competir com investimentos para a diminuio dapobreza em educao, sade e saneamento, frente aos escassos recursos pblicos. Alm disso,para serem elegveis ao financiamento do Banco, os projetos devem ter benefcios econmicosdemonstrveis com as metodologias disponveis. Essas metodologias freqentemente nocapturam todos os impactos do desenvolvimento cultural.

    At muito recentemente, porm, o estudo da economia da cultura ainda gerava fortes resistncias,

    tanto por parte da classe econmica, como do setor cultural. A falta de uma compreenso real danecessidade imperiosa de municiar a cultura com uma expresso econmica que sua por direitogerava preconceitos de ambos os lados. Alan Peacock, economista escocs e um dos primeiros

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    estudiosos do tema, chegou a declarar: Eu esperava que um economista pudesse ser visto quasecomo um ser humano, embora alguns dos meus colegas economistas considerassem a tentativade aplicar a economia s artes como um primeiro sinal de senilidade.10Os mal-entendidos eramvrios mas em sua essncia se resumiam ao receio de que uma vez reconhecido que a cultura

    possui tambm uma dimenso econmica fortssima, esse valor econmico relegasse a segundoplano o valor simblico da cultura e a abandonasse s regras do mercado. Em resposta a essaviso equivocada, testemunhos esclarecedores surgiram em ambos os lados. Como sintetiza AimarLabaki: O teatro s existe com liberdade. E, salvo engano, no mundo moderno isso s aconteceem democracias burguesas apesar de todos os seus imensos defeitos. (...) O capitalismo o piordos sistemas econmicos, com exceo dos outros. irmo da democracia. Imperfeito, mas porenquanto insubstituvel. () Quem aceita tratar o resultado de seu trabalho artstico comomercadoria, tem de aprender a linguagem do mercado. preciso organizar racionalmente nossaproduo, entender o que financiamento pblico e o que financiamento privado. Cortar oscustos e maximizar os lucros. Um verdadeiro mercado teatral daria base financeira e poltica paraa organizao da produo no-comercial.11

    CAPITAL CULTURAL legado do passado e responsabilidade para com o futuro

    O termo capital culturalfoi cunhado pelo filsofo e socilogo francs Pierre Bourdieu, em umaobra lapidar, A Distino: crtica social do julgamento, publicada em 1979. O termo engloba umconjunto de qualificaes intelectuais produzidas pelo ambiente familiar e pelo sistema escolar. Emtermos prticos, o capital cultural assume diferentes formas, como a incorporada (facilidade deexpresso em pblico e de socializao), a objetivada(produtos culturais que uma pessoa possui)

    e a institucionalizada(diplomas de formao e o valor que o mercado lhes confere).

    David Throsby, economista australiano e um dos mais renomados estudiosos da economia dacultura, transforma essa definio fazendo referncia ao patrimnio cultural e suasustentabilidade: Assim como nos legaram capital natural, as geraes passadas nos transmitiramuma herana sem preo de capital cultural tangvel e intangvel; no somente pinturas,construes e monumentos mas literatura, msica e as lnguas que falamos, os hbitos com osquais nos identificamos e que nos unem como seres humanos civilizados. Temos aresponsabilidade de zelar pela nossa cultura, que no menos importante que a responsabilidadeque temos de zelar pelo nosso ambiente fsico. Os economistas podem contribuir nesse quesito,

    ajudando a transformar o conceito de sustentabilidade como aplicado cultura em uma realidadeoperacional.12

    O capital cultural pode ser acumulado ao longo do tempo, um ativo da pessoa que o possui e ao menos parcialmente transmitido s geraes futuras. Assim, a noo de capital cultural guardauma analogia com os demais conceitos de capital, como financeiro, fsico (mquinas,equipamentos, instalaes), humano (conhecimentos, habilidades, tcnicas), social (rede decontatos, relacionamentos e posies ocupadas) e natural(recursos naturais e ambientais).

    10PEACOCK, Alan, op.cit., p.22.11LABAKI, Aimar, Mercado e sociedade.InBRANT, Leonardo (Org.),Polticas Pblicas Vol.1.So Paulo:Manole, p.67.12WORLD BANK, Culture Counts financing, resources and the economics of culture in sustainable development,

    p.40.

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    2.1) A Cultura na histria do pensamento econmico

    Observar o papel atribudo cultura (ou s artes, como era considerada de modo mais limitado

    at recentemente) na economia ao longo dos sculos constitui um interessante exerccio deanlise da evoluo do pensamento humano. como se a economia, ao ter sua certido denascimento validada, tivesse rompido com a cultura para poder encontrar seus prprios valores eestruturar-se. Uma vez estabelecida como cincia, voltou s fontes das quais bebeu e sereconciliou com a cultura, no s como objeto de estudo mas como fator influenciador e por elainfluenciada.

    Comeando nossa digresso histrica em meados do sculo XVIII e seguindo pelo incio do XIX,dois dos maiores expoentes da economia clssica, Adam Smithe David Ricardo, consideravamas artes atividades economicamente improdutivas. O trabalho empregado na execuo das obras e

    os gastos realizados com sua aquisio eram tidos como desvios de recursos que poderiam serempregados nos setores produtivos da economia. Nem por isso, porm, o valor simblico e socialdas artes lhes era negado. Smith reconheceu em sua obra mxima, A Riqueza das Naes, que oteatro consegue dissipar na maioria das pessoas a disposio melancolia. Mas talvez a maiorcontribuio de Smith para o que viria a ser o estudo da economia da cultura resida no fato de tersido o primeiro a admitir a existncia de valor de uso e valor de troca: "As coisas que tm o maiorvalor de uso possuem freqentemente pouco ou nenhum valor de troca; e, ao contrrio, as quetm o maior valor de troca possuem com freqncia pouco ou nenhum valor de uso." 13 Parasustentar sua hiptese, Smith cita os diamantes (que tm alto valor de troca mas parco valor deuso) e a gua (com grande valor de uso mas baixo valor de troca). Alm disso, prenuncia o quehoje se denomina valor intangvel. Tal o caso dos valores ambientais, a exemplo do ar puro,que apresenta enorme valor de uso e sub-avaliado pelo mercado.

    Contemporneo de David Ricardo, John Ruskinpreconizou em 1857 a distino hoje consolidadaentre crescimento econmicoe desenvolvimento econmico, ao incorporar produo o cuidadoque se deveria dar ao aspecto da distribuio. Lanou com isso uma viso de longo prazo em umapoca na qual a diviso do trabalho conduzia supresso da criatividade, elemento fundamentalpara o prprio processo produtivo. Em sua definio mais simples e clara, economia, seja pblicaou privada, quer dizer o sbio gerenciamento do trabalho; e significa isto principalmente com triplo

    significado, a saber: primeiramente, a aplicao racional do trabalho; em segundo lugar, apreservaocuidadosa de seus frutos; e, por ltimo, a distribuiooportuna dos mesmos.

    Algumas dcadas mais tarde, Karl Marxcriticava os preceitos de livre escolha propostos peloseconomistas clssicos, dado que em seu entender as pessoas tinham suas opes cerceadas pelasamarras do sistema capitalista. O pensamento de Marx deu origem s discusses acerca daliberdade de escolha no s terica, mas prtica , que hoje caracteriza a definio dedesenvolvimento14.

    Marx tambm acreditava que as pessoas so criadas em um contexto histrico especfico mas tmo potencial de alterar sua situao atravs da conscincia e da luta de classes. J segundo Max

    13Livro I, captulo 4.14A UNESCO trabalha com o conceito de desenvolvimento como ampliao de liberdade de escolhas, defendido porAmartya Sen. Essa proposta detalhada no captulo IX, Cultura e Desenvolvimento uma proposta integrada.

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    Weber, toda a sociedade compartilha um conjunto de valores e idias, ou seja, um substratocultural que transcende a condio social e fundamenta o comportamento econmico.

    OTIMISTAS e PESSIMISTAS CULTURAIS vises contraditrias ou complementares?

    Nazismo, guerra, exlio. A trajetria dos pessimistas culturais no poderia ter sido mais turbulenta,durante as dcadas que presenciaram o melhor e o pior do que o ser humano capaz de oferecera si mesmo e criaram as condies para uma expanso sem fronteiras das indstrias culturais. Seubero foi o Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt, criado em 1923 por FelixWeil e outros intelectuais marxistas15. Apesar do nome, a Escola de Frankfurt transcorreu suaadolescncia em Genebra, onde Horkheimer e outros de seus dirigentes se refugiaram em 1933 enos Estados Unidos, para onde emigraram em 1935. Foi somente em 1949 que o Institutoretornou cidade que lhe deu nome. Diante da avalanche de atrocidades vivenciadas, a TeoriaCrticadesenvolvida pela Escola tinha como foco promover a emancipao humana e recuperarsua dignidade, liberando os seres humanos das circunstncias que os escravizam16. Adorno, umdos mais fortes elos dessa corrente, critica duramente a dominao ideolgico-social possibilitadapela racionalidade tcnica e que reprime a sociedade que se auto-aliena. O cinema e a rdio notm mais necessidade de serem empacotados como arte. A verdade de que nada so alm denegcios lhes serve de ideologia. (...) O que no se diz que o ambiente em que a tcnica adquiretanto poder sobre a sociedade encarna o prprio poder dos economicamente mais fortes sobre amesma sociedade. () Os talentos pertencem indstria muito antes que esta os apresente; ouno se adaptariam to prontamente.17Assim, a ideologia dominante legitima o status quoatravsde doses contnuas e massificantes de mensagens veiculadas pelos tentculos das indstrias

    culturais.

    Por outro lado, os otimistas culturais acenam com os benefcios que as indstrias culturaisproporcionam, ao franquear o acesso da populao a produtos e servios culturais antes restritos aum crculo limitado de privilegiados. Eles defendem que, alm do entretenimento passivo epasteurizado, as indstrias culturais tambm tornam acessveis produes literrias de primeiralinha, documentrios televisivos que rompem barreiras geogrficas e sociais, msicas e filmesestranhos ao circuito comercial.

    A discusso, portanto, bipartida. Em seu estrato mais visvel, refere-se oferta de programas

    to variados como, por um lado, os documentrios da TV Futura, calcados na expanso dorepertrio de conhecimento humano; por outro, programas do calibre do Big Brother, no qual ovoyeurismo escapista retroalimentado pela banalidade das peripcias sexuais de autmatoscatapultados por quinze minutos ao estrelato das telinhas.

    Em sua camada mais profunda, diz respeito liberdade de escolha efetiva e consciente dapopulao pelo que deseja ver, absorver e como se relaciona com o mundo ao seu redor e aopapel que o Estado deve desempenhar na ampliao desse leque de liberdades. Os limites daanlise expandem-se claramente de uma viso simplista de poltica cultural nacional e

    15Para uma descrio mais detalhada dos fundadores da Escola de Frankfurt, www.marxists.org/subject/frankfurt-school16HORKHEIMER, Max, Critical Theory, p.244.17ADORNO, Theodor,Indstria Cultural e Sociedade, p.8-10.

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    entremeiam-se com aspectos econmicos, polticos, sociais, em um contexto regido por influnciase acordos mundiais.

    Economista de grande envergadura na evoluo do pensamento econmico, John MaynardKeynes legou economia conceitos de validade inquestionvel, inclusive para a economia dacultura18. Colecionador de arte e apaixonado pelo setor, foi o fundador da London Artists

    Association, em 1925. Tambm atuou como ardoroso defensor do Council for Music and the Arts,cujo objetivo era garantir o sustento dos artistas durante a II Guerra Mundial e foi um dos grandespivs na formao doArts Council England, em 1946, instituio pblica voltada ao financiamentodas artes na Inglaterra.

    Com a teoria neoclssica, no mais se diferenciavam as atividades produtivas das improdutivas.O valor de um bem passou a ser traduzido em termos da utilidade que proporciona a quem o

    adquire ou consome. Dentre os seus pressupostos, os nveis de produo e consumo so resultadodo comportamento dos agentes individuais. O interesse pblico derivado das decises dessesagentes, que compem a sociedade.

    2.2) Baumol e Bowen nasce a economia da cultura como disciplina de estudo

    Notria por sua atuao no incentivo e fomento de projetos sociais e culturais, a Fundao Fordprovavelmente no imaginou a que ponto suas inquietaes quanto ao gerenciamento deprogramas seriam importantes para a economia da cultura. Em 1965 a Fundao contratou a

    consultoria dos economistas William Baumol e William Bowen para desenvolver uma anlise dosetor de teatros e apresentaes ao vivo na Broadway. Responsvel pela viabilidade financeira denmero expressivo de orquestras, espetculos de bal e pera, a Fundao se inquietava com oscustos crescentes das produes, em paralelo ao fechamento de muitos teatros por falta decondies financeiras de operao.

    Em 1965 Baumol & Bowen publicaram um estudo que lhes valeu a alcunha de precursores daeconomia da cultura. Em Performing Arts: the economic dilemma19, os autores defendem osubsdio s artes pelo fato de serem atividades que usam trabalho de modo intensivo. Ao contrriode outros setores, nos quais o emprego intensivo da tecnologia gera ganhos de produtividade e

    uma conseqente reduo nos custos, as companhias e instituies culturais teriam seus custosrelativos progressivamente mais elevados. O exemplo clssico o de que o nmero de msicosnecessrios para executar uma sinfonia de Beethoven constante e independe do nvel deprogresso tecnolgico da sociedade. Assim, os custos de remunerao dos msicos e de comprados instrumentos no seriam reduzidos pelos ganhos de produtividade que beneficiam os outrossetores da economia. Com isso, para os autores, seria legtimo subsidiar a realizao dosespetculos ao vivo. Essas concluses obviamente caram como uma luva para as organizaesartsticas da poca, respaldando suas solicitaes de subsdios.

    Hoje, contando com o benefcio de quarenta anos de estudos e histria, no so poucas as

    ressalvas feitas s concluses de Baumol e Bowen. A primeira delas desloca a discusso dos custos18Um exemplo o conceito de multiplicador econmico, exposto na pgina XXXX.19Artes Performticas: o dilema econmico. No traduzido para o portugus.

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    de produo para a anlise dos ganhos de distribuio possibilitados pela tecnologia multimdia,como gravaes e reprodues de espetculos a custo baixo e transmisses por televiso ou on-line, alm dos recursos gerados com a venda desses direitos de transmisso. Ademais, o coro decrticas argumenta que embora os custos com salrios sejam relativamente inflexveis, haveria

    margem de reduo de despesas por meio da reutilizao ou troca de cenrios e figurinos comoutras companhias e do aumento do nmero de apresentaes na temporada. Seja como for,talvez o mrito do relatrio de Baumol & Bowen tenha sido o de despertar os economistas paraum setor at ento inexplorado como objeto de estudo da economia.

    Seguindo o rastro desse estudo pioneiro, outros tantos foram produzidos. Em 1975 o interessepelo tema deu margem criao da mais renomada publicao do setor, o Journal of CulturalEconomics. Na Inglaterra, um estudo de Myerscough, The Economic Importance of the Arts inBritain, publicado em 1988, salientou a magnitude do setor cultural na economia da Gr-Bretanha,acenando com a cifra de respeitveis 10 bilhes anuais (cerca de US$17 bilhes poca) e com

    cerca de 500 mil empregos no setor (ou 2,1% da populao empregada no pas). Foi a partir dadcada de 1990, entretanto, que se acelerou a produo de estudos acerca da contribuio dasindstrias culturais, do mercado de arte e do entretenimento para a economia. Em 1992 a

    American Economic Associationincluiu a economia da cultura em sua classificao de disciplinaseconmicas.20

    Alguns fatores parecem ter contribudo para acelerar essa evoluo. Quando as presses polticase sociais atingiram em cheio a essncia das discusses culturais em vrios paises (nos EstadosUnidos, o National Endowment of the Arts correu o risco de ser extinto; no Brasil, parcelaimportante das instituies culturais pblicas efetivamente o foi, por malfadado decreto do ento

    Presidente Collor de Mello), grupos e pessoas que nunca tinham posto em dvida o papel social dacultura foram levados a buscar instrumentos que comprovassem tambm sua representatividadeeconmica. Do ponto de vista pblico, traduzir a importncia econmica dos processos, produtos eservios culturais passou a ser fundamental para aumentar a eficincia da alocao de recursos e,com isso, melhor responder aos objetivos de poltica pblica de cultura. No setor privado, aeconomia da cultura passou a oferecer subsdios para envolver as empresas em projetos culturais,em uma primeira tentativa de estabelecer uma parceria mais ntima com o setor.

    Em paralelo, outras tendncias e preocupaes atuaram como catalisadoras dos debatesenvolvendo economia e cultura. Dentre elas, a inquietao crescente quanto supremacia da

    indstria cultural dos Estados Unidos no mundo, sob os aspectos ideolgico (de transmisso demensagens) e econmico (de dominao do mercado em vrios setores); a conscientizao de queas atividades culturais e os setores pautados pela criatividade constituem um setor em francaexpanso; a escassez de recursos, tornando sua distribuio uma guerra de foices baseada emargumentos polticos, sociais e econmicos; a crescente demanda social por projetos deregenerao de reas degradadas e de recuperao social; o endurecimento das negociaesmultilaterais nos acordos de comrcio de bens e servios culturais. Uma longa lista, mas queapresenta apenas alguns dos chamados que levaram a economia da cultura a sair dos bastidores.

    Comearam a surgir iniciativas nacionais e regionais de expresso. Em 1999 foi criado na

    Inglaterra o Regional Issues Working Group, com os objetivos bsicos de analisar a contribuio

    20PEACOCK, Alan, op.cit.

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    das indstrias criativas para a economia e encontrar formas de estimular seu desenvolvimento. Em2000 o Banco Mundial co-patrocinou, em parceria com a UNESCO e o governo da Itlia, aconferncia Culture Counts Financing, resources and the economics of culture in sustainabledevelopment, reforando a mensagem de que s possvel promover o desenvolvimento

    sustentvel de uma regio ao se considerar sua cultura, tanto como base de tecido social, quantocomo setor de representatividade econmica.

    2.3) A Necessidade de reviso dos pressupostos econmicos

    Sendo uma disciplina relativamente nova, a economia da cultura desafia alguns dos pressupostosbsicos da teoria econmica e exige adaptaes. Cria-se assim um momento fascinante de revisode paradigmas que imprimem a qualquer cincia um dinamismo e um frescor de realidadeimprescindvel.

    Uma das primeiras contestaes da economia da cultura diz respeito lei das utilidadesmarginais decrescentes, segundo a qual a utilidade marginal proporcionada pelo consumodiminui progressivamente, conforme se consomem novas unidades. Assim, um segundo par desapatos pode ser til, mas o menos do que o primeiro o foi. Tomar sorvete extremamenteprazeroso, mas o segundo sorvete no to apreciado quanto o primeiro e assim por diante. Jno campo cultural, conforme ressalvado por Alfred Marshall, um dos pais da economia neoclssica,

    quanto mais boa msica uma pessoa ouvir, mais provvel que seu gosto por ela aumentar21.Marshall, porm, justificava essa exceo pelo fato do conceito de utilidade marginal decrescenteno contemplar um lapso de tempo nas preferncias de uma pessoa mas sim referir-se a um

    momento pontual. Seja como for, vrias pesquisas comprovam que o consumo de cultura fomentaa formao do hbito22. Com isso, quantos mais produtos e servios culturais uma pessoaconsumir, mais gosto ter por esse consumo.

    O segundo aspecto digno de nota o que diz respeito intangibilidade e, mais ainda, valorao da criatividade. O arsenal de instrumentos econmicos adequado para mensurarprodutos e algumas forma de servios mas no apreende o valor total do intangvel. Assim comose desenvolveram metodologias de avaliao do valor de uma marca corporativa e de confecodo balano social, preciso criar uma metodologia que contemple o valor dos intangveis culturais.Quanto vale, para uma editora, sua carteira de autores? Como precificar um quadro, j que seu

    valor muito superior tinta, tela, s horas empregadas para cri-lo? Qual o valor econmico deuma tecnologia cultural dominada por uma pequena comunidade que h sculos trabalha seuartesanato de modo nico no mundo? Quanto vale manter uma instituio cultural que contribuirpara formar a identidade nacional ou regional, para promover a incluso em um mundo global,enfatizar o esprito de respeito diversidade, a criatividade da populao? So questes quedevem ser respondidas no s como reconhecimento econmico aos criadores e para sustentar asaes de poltica pblica, como tambm para identificar e eliminar gargalos de financiamento dosetor cultural. Uma das maiores dificuldades das empresas culturais em formao ou expanso aobteno de crdito. Isso ocorre porque em sua maioria avassaladora as instituies financeiras

    21MARSHALL, Alfred,Principles of Economics. Livro 3, Captulo III, 1890.22Seus resultados so apresentados no captulo III, Demanda.

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    tradicionais ainda no esto preparadas para avaliar o potencial financeiro de investimentos emintangveis.23

    Por fim mas sem exaurir o rol de ressalvas, vale mencionar o carter insubstituvel dasmanifestaes e criaes culturais. Enquanto os produtos e servios comuns so substituveis

    entre si (em termos prticos, a blusa de um marca apresenta diferenas limitadas frente vendidapor outra marca), os produtos e servios culturais no so intercambiveis. Uma tela de Rafaelnunca ser equivalente a uma de Caravaggio, embora ambas sejam criaes sublimes. Uma peade teatro guarda poucas semelhanas com outra, alm eventualmente de sua forma.

    Veremos ao longo dos prximos captulos outros pressupostos da teoria econmica e suasressalvas no campo cultural.

    3) Medindo o imensurvel

    Nem tudo o que pode ser contado necessariamente conta; nem tudo o que conta podenecessariamente ser contado.

    Albert Einstein

    Cena um: na prestigiosa Sothebys the Londres o leilo de uma pea arqueolgica atinge valoresrecord de faturamento. Cena dois: no Parque Nacional de Sete Cidades, no Piau, um stioarqueolgico de representatividade mpar luta para combater a degradao com um oramentoexcessivamente diminuto. Cena trs: um prato de porcelana esquecido por anos no quartinho de

    despejo torna-se a atrao da feira de antigidades da cidade.Bem-vindo ao mundo das contradies aparentes, onde o que tem valor nem sempre custa o quevale e o que se paga nem sempre vale o que custa. Em outras palavras, valor e preo noraramente desviam-se dos preceitos da lgica. No os seguem e nem poderiam segui-los.Enquanto o preo de um bem cultural fixado pelo mercado e necessita para se concretizar de aomenos um comprador e um vendedor, o valor atribudo a ele altamente subjetivo e no raroindepende de outros agentes. Adicione-se a isso um complicador: enquanto o comrcio dita asregras para os bens privados, o reconhecimento do valor dos bens culturais pblicos basicamente dado pelo governo.

    Para desenredar esse novelo de conceitos entrelaados, sero apresentadas a seguir trsdiscusses fundamentais: os diferentes tipos de valor atribudos a um mesmo bem ou serviocultural; a distino entre valor e preo de bens culturais privados; a relao entre preo edisposio a pagar por bens culturais pblicos.

    3.1) Tipologias de valor

    Os produtos e servios culturais apresentam um carter marcadamente dual. Ao mesmo tempo emque transmitem uma mensagem simblica, tm tambm representatividade econmica. A anlise

    de seu valor, portanto, reflete esses dois traos distintos e complementares.

    23A questo do financiamento desenvolvida no captulo XI, Das Indstrias culturais economia criativa.

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    Como lembra Throsby, h um mercado fsico para as obras de arte e um mercado paralelo paraas idias, que so um atributo ou produto necessrio dessas obras. O mercado fsico determina ovalor econmico da obra; o mercado das idias determina seu valor cultural. O fato de a obrafsica ser o veculo transmissor da idia a transforma de bem econmico ordinrio em bem

    cultural.24

    3.1.1) Valor econmico

    O valor econmico no se confunde com valor financeiro, embora indiretamente existam tcnicaspara express-lo em termos financeiros. Assim, o valor econmico de um museu pode serrepresentado por seu faturamento ou oramento, acrescentado do impacto que gera na economiada regio (pagamento de salrios e honorrios, compra de materias e equipamentos, realizao decursos etc.).

    3.1.2) Valor cultural

    O valor cultural apresenta uma multiplicidade de fatores. Veremos as seis principais imagens quecompem esse caleidoscpio.

    a)Valor esttico o mais explcito dos valores culturais deriva de um conjunto de percepes ejulgamentos de valor da sociedade ou grupo que o analisa e do momento histrico em que isso feito. Um objeto no belo em si, mas sua beleza dada pelos olhos de quem o v. Percebe-se

    assim e desde j que as distintas facetas do valor cultural influenciam e so influencidas pelasoutras (como, neste caso, pelo valor social). A apreciao esttica, porm, em diferentesmomentos histricos s tinha seu valor reconhecido quando acompanhada de uma funo. Asubjetividade que caracteriza essa dependncia e o valor que dela deriva so ilustrados pelareao de Goethe diante do aqueduto de Spoleto, na Itlia, no incio do sculo XIX: Subi aSpoleto e estive no aqueduto que serve tambm como ponte entre dois montes. As dez arcadasem tijolos que dominam o vale esto ali tranqilas h sculos e a gua ainda jorra de uma ponta outra de Spoleto. essa ento a terceira obra dos antigos, que tenho diante de mim e da qualobservo a mesma marca, sempre grandiosa (...). Somente agora sinto com quanta razo sempre

    achei detestveis as construes feitas por capricho (...). Todas coisas natimortas, j que o queno tem em si uma razo de existir nao tem vida e no pode ser ou tornar-se grande.25

    b) Valor social o valor que uma sociedade atribui a determinado bem reflete suas crenas,modo de pensar e identidade. atravs desses smbolos que ela se mantm unida e se reconhececomo um grupo com essncia comum. Para os cariocas, o valor social do Cristo Redentor muitomaior do que os 38 metros de concreto que o sustentam ou o impacto turstico que gera. O valorsocial do acaraj alou-o condio de patrimnio cultural nacional, muito alm dos limites da

    24THROSBY, David, Economic and cultural value in the work of creative artists.In Getty Conservation Institute,Values and Heritage Conservation, p.29.25GOETHE, Johann Wolfgang, Viaggio in Italia.

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    Bahia e de constituir a profisso e modo de sustento de tantas famlias que produzem esseacepipe. Conforme o nome indica, o valor social atribudo a determinados produtos e servios nosegue necessariamente noes individuais ou institucionais mas influencido pelas lentes dasociedade.

    c) Valor de existncia derivado da satisfao que uma pessoa tem ao saber quedeterminado bem cultural existe, mesmo que no haja a inteno de visit-lo ou adquiri-lo. Assim,o valor de existncia da Muralha da China ou das tradies culturais dos ndios yanomami pode seraltssimo para uma pessoa, embora ela eventualmente no tenha sequer perspectivas de ir Chinaou Amaznia. A considerao do valor de existncia, porm, pressupe que o bem oumanifestao cultural seja conhecido, o que traz baila a necessidade vital da informao naanlise de valor. Um dos motivos de sua preservao pode ter como pano de fundo mant-lo parao deleite das futuras geraes, o que vrios autores denominam valor de legado.

    d)Valor espiritual o valor espiritual reveste uma obra ou tradio de uma aura intocvel. porisso que ridicularizar smbolos religiosos pode dar margem a reaes ferozes por parte dos fiis.Por outro lado, era contando com a fora desse valor que as cruzadas religiosas carregavamostensivamente seus smbolos diante dos exrcitos. Voltando interdependncia dos valoresculturais, interessante notar como eles podem ser at mesmo conflitantes, conforme o prisma dequem os v. Um exemplo o de um stio arqueolgico, que para os arquelogos deve serestudado porque traz em si a chave para a compreenso de vrios mistrios e se reveste de valor

    histrico, enquanto para os descendentes daquela comunidade possui valor eminentementereligioso, constituindo um local sagrado e que no deve ser profanado.

    e) Valor poltico as obras culturais podem ter um valor poltico mais ou menos explcito. Porum lado, a histria nos presenteia com vrios exemplos do uso da cultura com fins de manipular aopinio da sociedade em prol da ideologia do governo ou da classe hegemnica. o caso clssicodos filmes da propaganda nazista ou ainda das produes cinematogrficas dos Estados Unidosdurante a Segunda Guerra Mundial. Por outro lado, as obras culturais podem conter um forte valorpoltico de contestao, embaladas ao ritmo de Apesar de voc e Samba de Orly. Mais

    recentemente, as obras de artistas de diversos pases foram utilizadas como expresso deperplexidade e gerao de discusses acerca dos atentados de 11/09 e das novas forasgeopolticas. Conforme expressou Timothy Park, historiador britnico: Sei que h algumaspessoas tentando trabalhar sobre esse assunto (os atentados de 11/09) e algumas delas estofazendo grandes coisas. H pouco houve uma exposio em Nova York das fotos de Abu Ghraib.Ocorreu mesmo uma considervel presso do pblico contra a idia de que essas fotos fossemmostradas num espao de arte. Ento, mostr-las ali foi um ato corajoso e isso teve um real valorpoltico. Mas isso apenas o comeo. Os artistas percebem que esto numa situao nova, qualesto achando extremamente difcil responder.26

    26BienArt, A Modernidade na sombra da ameaa terrorista. Maro05.

  • 8/10/2019 Economia-da-Cultura-e-Desenvolvimento-Sustentvel-o-Caleidoscpio-da-cultura-Ana-Carla-Fonseca-Reis

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    f)Valor histrico com o passar do tempo objetos do dia-a-dia, funcionais ou estticos, passama assumir tambm um valor histrico. o caso de tantos museus da moda e de objetos doquotidiano que se tornam antigidades, representaes nicas de um pero